trajetÓria escolar da educaÇÃo bÁsica ao ensino superior de...

23
TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE EX- BENEFICIARIOS DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA Dalete de Souza Salles Borges 1 Márcia Regina do Nascimento Sambugari 2 RESUMO: O presente estudo teve como finalidade analisar a trajetória escolar da educação básica à universidade de ex-beneficiarios do Programa Bolsa Família (PBF) que estão cursando o ensino superior. Para tanto partiu de alguns questionamentos: quais foram as contribuições do Programa para que este estudante chegasse ao ensino superior? Quais as dificuldades enfrentadas? Qual o maior incentivador nessa trajetória? Como metodologia, a pesquisa contou com a realização de entrevista com três jovens, ex beneficiários do PBF, que estão cursando o nível superior em uma universidade pública em Corumbá, MS. Os dados foram organizados em eixos de análise, focalizando a trajetória dos sujeitos e suas percepções sobre o PBF. Com esse estudo buscou-se conhecer quais foram as contribuições do PBF para que os jovens vencessem as barreiras da pobreza e do preconceito para que chegarem ao Ensino Superior. Com as análises foi possível verificar o quanto o PBF foi de suma importância na vida escolar desses jovens, pois contribuiu para que os mesmos permanecessem no ensino regular, possibilitou a aquisição de materiais escolares necessários, ajudou as famílias na compra de alimentos necessários para o dia-a-dia e, consequentemente, colaborou para que ex-beneficiários tivessem acesso a uma universidade pública. Constatou- se também que as políticas sociais de transferência de renda têm colaborado para a redução das desigualdades da população que se encontra em situação de vulnerabilidade, principalmente dado o baixo investimento em capital escolar. Palavras-chave: Jovens. Trajetória. Universidade. Bolsa Família. 1 INTRODUÇÃO O Programa Bolsa família (PBF) é um programa desenvolvido pelo Governo Federal que visa ajudar as famílias que vivem em situação de pobreza e/ou extrema pobreza a superarem essa situação. A iniciativa do Programa visa estimular a geração de renda e a permanência das crianças na escola, para criar condições de crescimento econômico e social a 1 Aluna do curso de Especialização Educação, pobreza, Desigualdades Sociais (EPDS). Especialista em Educação Infantil pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus do Pantanal (CPAN). Coordenadora Pedagógica do Colégio Salesiano de Santa Teresa, em Corumbá, MS. E-mail: [email protected] 2 Orientadora. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação, nível Mestrado e do Curso de Pedagogia do Campus do Pantanal (CPAN) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: [email protected]

Upload: others

Post on 12-Nov-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE

EX- BENEFICIARIOS DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA

Dalete de Souza Salles Borges1

Márcia Regina do Nascimento Sambugari2

RESUMO: O presente estudo teve como finalidade analisar a trajetória escolar da educação básica à universidade de ex-beneficiarios do Programa Bolsa Família (PBF) que estão cursando o ensino superior. Para tanto partiu de alguns questionamentos: quais foram as contribuições do Programa para que este estudante chegasse ao ensino superior? Quais as dificuldades enfrentadas? Qual o maior incentivador nessa trajetória? Como metodologia, a pesquisa contou com a realização de entrevista com três jovens, ex beneficiários do PBF, que estão cursando o nível superior em uma universidade pública em Corumbá, MS. Os dados foram organizados em eixos de análise, focalizando a trajetória dos sujeitos e suas percepções sobre o PBF. Com esse estudo buscou-se conhecer quais foram as contribuições do PBF para que os jovens vencessem as barreiras da pobreza e do preconceito para que chegarem ao Ensino Superior. Com as análises foi possível verificar o quanto o PBF foi de suma importância na vida escolar desses jovens, pois contribuiu para que os mesmos permanecessem no ensino regular, possibilitou a aquisição de materiais escolares necessários, ajudou as famílias na compra de alimentos necessários para o dia-a-dia e, consequentemente, colaborou para que ex-beneficiários tivessem acesso a uma universidade pública. Constatou-se também que as políticas sociais de transferência de renda têm colaborado para a redução das desigualdades da população que se encontra em situação de vulnerabilidade, principalmente dado o baixo investimento em capital escolar.

Palavras-chave: Jovens. Trajetória. Universidade. Bolsa Família.

1 INTRODUÇÃO

O Programa Bolsa família (PBF) é um programa desenvolvido pelo Governo Federal

que visa ajudar as famílias que vivem em situação de pobreza e/ou extrema pobreza a

superarem essa situação. A iniciativa do Programa visa estimular a geração de renda e a

permanência das crianças na escola, para criar condições de crescimento econômico e social a

1Aluna do curso de Especialização Educação, pobreza, Desigualdades Sociais (EPDS). Especialista em Educação Infantil pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus do Pantanal (CPAN). Coordenadora Pedagógica do Colégio Salesiano de Santa Teresa, em Corumbá, MS. E-mail: [email protected] 2Orientadora. Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Programa de Pós-graduação em Educação, nível Mestrado e do Curso de Pedagogia do Campus do Pantanal (CPAN) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: [email protected]

Page 2: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 2

médio e longo prazo, pois muitas crianças desistem da escola para contribuir com a renda

familiar.

Isso nos remeteu a pensar se tais objetivos são alcançados a médio e longo prazo,

suscitando alguns questionamentos: os jovens ex-beneficiários conseguem concluir o Ensino

Médio e entrar no Ensino Superior? Quais foram as contribuições do Programa para que este

estudante chegasse ao ensino superior? Quais as dificuldades enfrentadas? Qual o maior

incentivador nessa trajetória? Para responder essas questões, buscamos com a realização dessa

pesquisa, investigar como os jovens venceram as barreiras impostas e chegaram ao ensino

superior público.

O percurso que culminou nesse estudo surgiu durante o curso de pós-graduação em

Educação Pobreza e Desigualdade social. Ao longo dos estudos dos módulos várias questões

foram levantadas pelos alunos tais como: os beneficiários têm mais filhos para ganhar o

dinheiro? Usam o benefício para compra de produtos desnecessários? Buscando analisar essas

concepções, que nos propusemos verificar quais os jovens que conseguiram escapar desse

círculo vicioso imposto pela sociedade e chegaram à universidade pública com ajuda, ou não,

do PBF, apesar das barreiras enfrentadas durante sua trajetória escolar.

Como objetivo geral analisamos a trajetória escolar, do ensino básico ao superior, de

três jovens de ex-beneficiários do PBF que cursam o ensino superior em uma universidade

pública de Corumbá, MS. Como objetivos específicos, nós buscamos identificar se houve

contribuição, ou não, do PBF para que este jovem chegasse ao ensino superior. Também

investigamos o papel da família na trajetória desse jovem.

A presente pesquisa está inserida no eixo ‘escola: espaços e tempos de reprodução e

resistências da pobreza’, do curso de especialização em educação, pobreza e desigualdade

social. Focaliza a escolarização de jovens, ex-beneficiários, a partir de sua inserção na política

de transferência de renda.

Assim, por meio do estudo dessa temática, pretendemos trazer contribuições a

respeito desses casos, muitas vezes considerados como improváveis na visão de muitos, pois

ainda existe muito preconceito com aqueles que recebem o benefício, tendo a visão de que

não trabalham, não precisam estudar e só vivem esperando o dinheiro. Para desmistificar essa

ideia, faz-se necessária a realização de pesquisas empíricas a fim de perceber as contribuições

do PBF no sucesso escolar dos filhos dos beneficiários. Entendemos que é de suma

importância conhecer o percurso escolar, como foi construída a trajetória de alunos oriundos

Page 3: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 3

das camadas populares, a fim de que possamos quebrar os preconceitos e estereótipos que a

sociedade possui com relação aos estudantes e ex-beneficiários do PBF. Com a realização

dessa pesquisa buscamos, portanto, evidenciar que com a contribuição do dinheiro do

Programa os jovens conseguiram sair do ensino básico e chegaram ao ensino superior.

Esse artigo está organizado em cinco partes, contando com a introdução e as

considerações finais. A primeira parte trata dos interesses que moveram a realização da

pesquisa e o objetivo proposto para a realização da mesma. Na segunda consta uma breve

discussão acerca do surgimento das universidades, as dificuldades encontradas para o acesso e

permanência de jovens de origem popular no ensino superior no Brasil, bem como o longo

caminho que essa instituição percorreu para que os jovens das camadas menos favorecidas

tivessem acesso as universidades públicas. A terceira parte aborda o percurso metodológico

da pesquisa. Na quarta parte há a descrição e análise da trajetória escolar dos ex-beneficiários

do PBF, hoje, alunos de cursos de licenciatura de uma Instituição de Ensino Superior (IES)

pública de Corumbá, MS, evidenciando como esses jovens venceram as barreiras impostas

durante o percurso escolar. Por fim constam as considerações finais.

2 O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR DE JOVENS DE CAMADAS POPULARES

Segundo Wanderley (1983), o termo universidade está ligado a muitos outros, tais

como: cultura, Ciência, ensino superior, pesquisa, autonomia. Suas finalidades e seus ideais

são: qualificar os mais aptos para as diversas profissões, diferençar o saber científico e o pré-

científico, a cultura erudita e a popular, tornar a universidade mais democrática, tanto no

sentido do poder interno, quanto no sentido de abri-la para camadas mais vastas da população.

A universidade é um lugar de privilégio para que se possa conhecer a cultura universal e as

várias ciências, criar e divulgar o saber, e deve buscar identidade própria.

De acordo com Moacyr (1937), no Brasil, com a vinda da família real portuguesa

para o Brasil-colônia surge o ensino voltado para a elite. As únicas iniciativas na área da

educação durante muito tempo permaneceram nas mãos dos jesuítas, tendo o ensino voltado

para a catequese religiosa. Para a criação das universidades, notamos certa resistência, seja de

Portugal, com reflexo na sua política de colonização, e de muitos brasileiros que não exigiam

a criação desse tipo de instituição na colônia, pois na época a elite ia para Europa fazer o

curso superior.

Page 4: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 4

A chegada do ensino superior no Brasil não partiu de interesses da população que

vivia no Brasil, mas sim, como decorrência do momento político, que necessitava mudanças

no ensino para atender às exigências da Côrte que aqui se instalou. Conforme Freire (1993)

com o estabelecimento da Coroa Portuguesa, no Rio de Janeiro em 1808, houve uma

preocupação imediatista e profissionalizante com o ensino para preparar o pessoal que deveria

servir aos novos habitantes da nova sede do Reino.

Registra-se o surgimento da universidade no Brasil, em 1920, na República Velha,

com a criação da universidade do Rio de Janeiro, reunindo as faculdades de Medicina,

Direito, e Engenharia; organizadas em cátedras, ou seja, aqueles que denominavam um campo

específico do saber escolhiam seus assistentes e permaneciam no topo da hierarquia

acadêmica. O ensino superior foi pago desde o início, mas não se apresentava como problema,

pois: Num país escravagista, produtor de mercadorias para os mercados centro do capitalismo, a população que tinha condições objetivas e subjetivas para desejar ingressar num curso superior não encontrava obstáculo no pagamento no das taxas escolares. A ninguém ocorria que o ensino superior fosse gratuito (CUNHA, 1991, p. 32).

Na República Nova, que foi de 1930 a 1945, e tinha Getúlio Vargas como presidente,

foi criado o Ministério da Educação e da Saúde; o primeiro ministro foi Francisco Campos

que aprovou o Estatuto das Universidades, em vigor até 1961. O estatuto dava direito às

universidades de pertencerem ao Governo Federal, aos estados, aos municípios e, até mesmo

serem privadas. Elas deveriam ser compostas dos seguintes cursos: Medicina, Direito,

Engenharia, Educação, Ciências e Letras (SOARES, 2002).

A partir do estatuto, muitos modelos de universidade surgiram no Brasil, como a

Universidade do Estado de São Paulo (USP), que por ser o estado mais rico do país, mas que

perdeu seu poder político pela crise do café, criou sua própria universidade, livre do governo

federal, como tentativa de recuperar a hegemonia política que tinha antes de 1930, tornando-

se o maior centro de pesquisa do Brasil, tendo como eixo à faculdade de filosofia que

promoveria a integração entre os diversos cursos. Durante a República Nova foram criadas 22

universidades federais, oito universidades católicas e uma presbiteriana (CUNHA, 1991).

Enquanto instituição, a universidade não sofreu grandes mudanças até o período da

ditadura militar, os governos militares promoveram o afastamento de vários professores das

universidades e criaram uma assessoria de informações nas instituições federais para que não

ocorressem atividades “subversivas” dos alunos e professores. A reforma universitária (Lei n°

Page 5: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 5

5540/68) ocorreu durante a ditadura militar, criando os departamentos, o sistema de crédito, o

vestibular classificatório, os cursos de curta duração, o ciclo básico, dentre outras inovações

no curso superior. As cátedras foram abolidas, tendo as chefias, caráter rotativo. O exame

vestibular passa a ser classificatório deixando de ser eliminatório, estabeleceu a

indissociabilidade das atividades de ensino, pesquisa e extensão e o regime de tempo e

dedicação exclusiva do professor. Para os militares, as universidades eram centros de

formação de recursos humanos de alto nível, garantindo status para a classe média através dos

diplomas universitários, portanto incentivaram a criação de mestrado e doutorado (SOARES,

2002).

Ao tecer esse breve panorama histórico foi possível verificarmos que, ainda no

século XXI, a universidade continua marcada por desigualdades sociais apesar das mudanças

que ocorreram, não apenas no acesso, mas a permanência, e claro que o mais atingido é o

aluno de origem popular. Conforme assinala Soares (2002), a universidade está sofrendo

pressões por parte dos setores excluídos, já que existem muitas barreiras para o seu acesso. As

alternativas criadas pelo Governo Federal são apenas de caráter paliativo, pois só diminuem

as pressões, não resolvendo o real problema do ensino superior público brasileiro. O Brasil

vem passando por uma fase de reformas, principalmente no campo educacional, dentre estas,

a universidade, com a criação de várias alternativas para que o aluno de origem popular

chegue ao curso superior. Entretanto não está sendo suficiente para mudar a característica

elitista das universidades públicas (SOARES, 2002).

Para Bourdieu e Passeron (BOURDIEU, PASSERON, 2008), a universidade pública

possui uma lógica elitista que prepara profissionais reprodutores do capitalismo e sua

hierarquia. Os próprios estudantes da camada popular não são preparados para atender sua

camada social, mas para satisfazer necessidades da camada dominante.

A educação é um setor de extrema importância para o desenvolvimento dos países,

pois é por meio da produção de conhecimentos que o país pode crescer, melhorando a

qualidade de vida. O Brasil, apesar de ser rico em belezas naturais, é um dos países com pior

distribuição de renda do mundo interferindo diretamente na educação, desde as séries inicias

até o nível superior.

Os problemas de acesso e permanência ao ensino superior no Brasil datam de longos

anos, entretanto, segundo Souza e Silva (2003), o fenômeno das desigualdades no

desempenho escolar como um problema teórico é relativamente novo no campo educacional

Page 6: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 6

brasileiro. Até a década de 1960, o principal desafio do sistema escolar do país se colocava no

terreno da democratização e do acesso de contingentes expressivos da população, tanto de

crianças quanto de adultos nos bancos escolares.

Zago (2006) nos alerta que é necessário conhecer as reais condições da escolarização

de alunos das camadas populares que estão conseguindo ultrapassar barreiras ao longo das

trajetórias escolares, ingressar e permanecer nas universidades públicas, bem como conhecer

as condições dadas aos estudantes para que os mesmos possam lograr êxito e superar suas

condições iniciais de fracasso. Portanto, essa pesquisa buscou verificar os jovens que

venceram as dificuldades e com ajuda do benefício chegam a universidade pública.

3 PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA

A natureza da presente pesquisa é empírica, pois, em consonância com os objetivos

do curso de especialização em educação, pobreza e desigualdade social, buscou refletir, numa

perspectiva relacional a educação, a pobreza e as desigualdades sociais. Tendo em vista os

objetivos propostos para esse estudo, inicialmente foi realizado um estudo acerca da

universidade e o acesso ao ensino superior de jovens de camadas populares.

Como sujeitos, esse estudo contou com três jovens, ex-beneficiários do PBF, que

cursam o ensino superior em uma IES pública de Corumbá, MS. Para a seleção, inicialmente

foi realizado um levantamento de alunos universitários que são ex-beneficiários do PBF a

partir de conversas com acadêmicos de cursos de licenciaturas de uma IES pública. Dessas

conversas localizamos e selecionamos três sujeitos que são alunos nessa universidade. O

contato preliminar foi realizado procurando saber se os mesmos gostariam de participar da

pesquisa, posteriormente cada sujeito escolheu o local para a realização da entrevista.

Dois dos sujeitos permitiram que fosse realizado em sua residência, propiciando uma

investigação mais detalhada e enriquecedora, conforme destaca Lahire (1998) acerca da

importância do pesquisador conhecer os espaços no qual seus sujeitos estão inseridos, pois,

além de escutar suas histórias de vida por meio do relato oral, foi possível vivenciarmos de

perto o lugar no qual cada um vive e, ainda, conhecer suas famílias. Um dos sujeitos escolheu

a universidade para que a entrevista fosse realizada, não comprometendo a pesquisa, já que

era o local em que o mesmo sentiu-se mais a vontade.

Como procedimento para coleta de dados foi utilizada a entrevista com os três

jovens, ex-beneficiários por entender que a partir das verbalizações é possível identificar

Page 7: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 7

concepções que orientam o contexto das ações de cada um e, principalmente, por acreditar

que por meio de depoimentos torna-se possível tecer análises acerca das relações do sujeito

com o seu grupo e analisar como ele vai elaborando as regras de permanência e de

reestruturação, pois, no processo de relembrar, recompor e reconstruir a história é que se dá o

entrelaçamento entre passado, presente e futuro no agora (PÉREZ, 2003 apud, GARCIA,

2006).

A entrevista contou com um roteiro semiestruturado elaborado a partir do

instrumento produzido por Sambugari (2010) com questões referentes à família, processo de

escolarização, práticas culturais, dificuldades de acesso ao curso superior, e a situação

socioeconômica dos sujeitos, conforme consta no Apêndice A.

As entrevistas foram gravadas em áudio como registro de diálogos verbais para,

posteriormente, transcrever as falas possibilitando, segundo Kassar (1995 apud GARCIA,

2006), o contato mais lento e cuidadoso com os diferentes dizeres, pois através do registro

pode-se trazer o discurso novamente para entendê-los e buscar os muitos sentidos.

Para manter o sigilo dos dados pessoais, em conformidade com o Comitê de Ética da

UFMS, os sujeitos da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido

(TCLE) aceitando participar da pesquisa (Apêndice B).

Os dados foram organizados em dois eixos de análise, para assim, traçarmos o perfil

dos sujeitos, bem como as contribuições do PBF em sua trajetória escolar.

No eixo1 ‘Trajetória de vida e escolarização dos sujeitos’ foram organizados os

dados dos sujeitos referentes à situação pessoal e econômica (faixa etária, sexo, estado civil,

naturalidade, mobilidade, autoclassificação da camada social); situação familiar na infância

(situação econômica e práticas culturais, condições de acesso e aquisição de bens e locais

culturais do respondente em sua infância); escolarização dos sujeitos (escolarização dos

sujeitos na escola básica, tipo de dependência administrativa que estudaram: período, sistema;

disciplinas que mais gostavam na escola; as que menos gostavam na escola e as que tinham

dificuldades; entrada na universidade, escolha do curso de nível superior), e, por fim, a

escolarização e profissão dos familiares (escolarização e profissão dos pais e avós paternos e

maternos).

No eixo 2 ‘Percepções sobre o PBF: contribuições e limites’ estão organizadas as

informações acerca das dificuldades e contribuições do PBF na Educação e em sua trajetória

escolar.

Page 8: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 8

Esses dados foram analisados em constante diálogo com pesquisadores da área, e

constam descritos a seguir.

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Segundo o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

(PNUD), por meio de políticas públicas como o PBF, o Brasil conseguiu erradicar a fome e

diminuir a extrema pobreza no país, bem como garantiu o acesso à educação a milhares de

crianças. Entretanto, conforme apontam Teixeira e Silva (2007), o acesso ao ensino superior

para muitos jovens oriundos de camadas populares ainda é um desafio a ser alcançado e os

que conseguem entrar na universidade “[...] representam o que a sociologia convencionou

chamar de êxitos atípicos: o sucesso é obtido à custa de muito esforço, sofrimento, obstinação

e “luta” contra o fatalismo de destinos sociais” (TEIXEIRA; SILVA, 2007, p. 10, grifos dos

autores). Nessa perspectiva, com a realização desse estudo foi possível conhecermos como

alguns jovens que foram beneficiários do PBF chegaram à universidade pública.

A seguir apresentamos algumas discussões acerca da análise a partir da história de

vida e familiar dos sujeitos, sua trajetória escolar e influência da família e professores na

escolarização, bem como as estratégias utilizadas para se chegar à universidade pública.

Também foi possível verificar em que medida o PBF auxiliou para que esse êxito fosse

alcançado. Consta também a análise da percepção dos sujeitos a respeito do PBF, suas

contribuições durante a trajetória escolar, como contribuiu para a permanência na escola e

para que os mesmos chegassem à universidade, o que mudou na família depois que passaram

a receber o benefício, como o programa contribui diretamente com a educação.

4.1 TRAJETÓRIA DE VIDA E ESCOLARIZAÇÃO DOS SUJEITOS

4.1.1 “O QUE EU APRENDESSE ERA A ÚNICA COISA QUE NINGUÉM IA PODER

ROUBAR” - O CAPITAL CULTURAL INCORPORADO NO PERCURSO DA

ACADÊMICA MARIA

A entrevista com a acadêmica Maria ocorreu em sua casa. Marcamos no final da tarde

e, quando eu cheguei a sua casa estavam presentes sua mãe, sobrinhos, e irmãos. Na medida

em que chegava uma pessoa na casa, eu era apresentada. Quando Maria tinha alguma dúvida

em relação a datas perguntava à sua mãe que respondia prontamente. Esse contato foi

importante, pois como pesquisadora conheci a dinâmica da família e como se preocupam uns

Page 9: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 9

com os outros. Ao final da entrevista, a Maria me convidou para comer bolo, tomar café e

mostrou como era sua casa, e toda orgulhosa, a pequena biblioteca que está montando na parte

externa da sua casa.

A acadêmica Maria possui 39 anos, mora em Corumbá, nasceu no estado do Paraná, é

solteira e não tem filhos, sendo a mais velha de cinco irmãos, se autodenomina negra e

considera-se pobre, embora avalie que a sua situação social e econômica hoje é bem melhor

com relação à de seus pais quando era criança. Eu considero minha família pobre, porque tem algumas coisas que a gente não consegue fazer, por exemplo, a gente começou a reforma dessa casa desde quando comprou ela. Até agora não conseguimos terminar. Uma reforma, se você entrar pela casa falta piso o banheiro falta tudo quase (Maria. entrevista, 2016).

Em sua infância, ela não tinha acesso a jogos, palavras cruzadas. Não frequentava

clubes, cinemas e bibliotecas, relatando que nem sabia o que era. A sua família não possuía

condições financeiras para adquirir livros revistas e jogos. Era moradora da zona rural não

existindo nada próximo, sua família não tinha envolvimento com igreja ou grupos religiosos e

seu contato os livros foi apenas na escola.

Maria sempre estudou em escola pública, os primeiros anos do ensino básico foram

feitos em salas multisseriadas junto aos irmãos. Quando foi para a 5ª série voltou a fazer a 4ª

série sem estar matriculada, pois não tinha mais escola perto da casa para dar continuidade.

Para fazer a 5ª série Maria precisou morar com uma família desconhecida e começou a

estudar a noite e teve muita dificuldade para conciliar os estudos porque tinha que estudar e

trabalhar.

Segundo Teixeira e Silva (2008), estudar e trabalhar é uma realidade na vida dos

jovens de camadas populares, situação difícil para a obtenção de conquista escolar, já que

para esses jovens é necessária a escolarização para o mercado de trabalho e o capital cultural.

Ainda com relação à escolarização, Maria estudava um ano e parava o outro, pois

voltava para o sítio com seus pais, ficando assim até a 7ª série quando foi morar com outra

pessoa. Continuou seus estudos só que no período da manhã e em outra escola, pois a noite

cuidava de uma criança. Ela considera uma das piores experiências que teve na vida escolar e

não guarda lembranças dessa época.

Maria ficou sem estudar por 11 anos e ao retomar os estudos o pai já tinha falecido.

Depois desse tempo ela foi trabalhar com a mesma família que seus pais a tinham deixado

Page 10: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 10

quando saiu do sítio pela primeira vez. Cuidava de duas crianças durante o dia e a noite

estudava.

Ela considera esse período de grande importância em sua vida, lembrando com

carinho dos professores, diretores e colegas e considera esse tempo de suma importância, uma

das razões para ter chegado a universidade.

Já estava onze anos sem estudar, peguei minha transferência, fiz minha matrícula… Fui tremendo, eu pensava: “como vou copiar do quadro, eu não vou conseguir” […] Não foi isso que aconteceu. Eu voltei a noite no ensino regular, foi a melhor experiência, Dom Bosco, de todas as escolas que eu estudei foi a melhor. Eu acho que foi o que me fez chegar à universidade (Maria. Entrevista, 2016).

Durante o Fundamental II Maria continuou os seus estudos na mesma escola pública,

enfrentou várias dificuldades, mas permaneceu. No ensino médio ela foi ajudar uma

professora com aulas de reforço e era ainda babá, ia para a escola muitas vezes com fome, já

que nesse lugar que trabalhava não ofereciam comida para ela. Quando chegava à escola

comia a merenda escolar. Só que nessa casa, não tinha comida, na casa que eu era babá. Eu ficava sem almoçar, aí chegava na escola, ia comer o lanche da escola, ia comer a merenda da escola. Aí quando, por exemplo, saía leite, eu sou intolerante a leite, ficava sem comer (Maria. Entrevista, 2016).

Quando Maria estava no último ano do Ensino Médio foi para Campo Grande com

mesma família para ser babá de uma criança. Ficou na cidade por quatro meses e retornou a

Corumbá para fazer a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).

Em seu percurso de escolarização ela estudou a maior parte do tempo no período

noturno, no sistema de ensino regular e gostava de todas as disciplinas. Maria se considerava

uma boa aluna no ensino regular apesar da timidez. Seus pais incentivaram o estudo,

deixando-a ficar na cidade com outra família, mesmo que para isso precisasse trabalhar.

Durante sua trajetória no ensino básico Maria recebia o apoio e incentivo de vários

professores para que ela chegasse à universidade. A acadêmica acreditava que terminaria os

estudos para melhorar sua condição de trabalho, mas que nunca teria a chance de chegar a

uma universidade pública. Porém, os professores mostravam ao contrário dizendo que ela

poderia e deveria chegar a uma instituição de ensino superior.

Seus pais acompanhavam seus estudos mesmo não tendo completado o Ensino

Fumamental I. O maior incentivador nos estudos foi o pai, hoje já falecido, em seguida os

Page 11: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 11

colegas da escola que já viam em Maria a oportunidade para chegar ao Ensino Superior, pois

a mesma sempre demostrava muito esforço próprio nos estudos. Meu pai sempre dizia que o que eu aprendesse era a única coisa que ninguém ia poder roubar, podia levar tudo, mas o que estava aqui dentro, o que eu tivesse aprendido não iam me levar (Maria. Entrevista, 2016).

Essa importância do pai de Maria aos estudos, na perspectiva de Bourdieu (2001)

refere-se ao capital cultural incorporado que apresenta-se na forma de disposições duráveis do

organismo, tendo como principais elementos constitutivos os gostos, o domínio, maior ou

menor, da língua culta e as informações sobre o mundo escolar. A acumulação dessa forma de

capital cultural demanda que sua incorporação seja feita mediante um trabalho de inculcação e

assimilação. A internalização exige investimentos de longa duração para tornar essa forma de

capital parte integrante da pessoa.

Maria escolheu o curso de Pedagogia como primeira opção, seu interesse surgiu

quando foi para a escola Dom Bosco e foi auxiliar de uma professora com aulas de reforço e

trabalhou com uma pedagoga, mesmo esta não falando sobre como era sua profissão. A

estudante ganhou bolsas em universidades privadas, mas sua busca pelo ensino público não

parou. Fez a prova do ENEM por três vezes, como não tinha conhecimento, nem internet em

casa não conseguiu acompanhar sua classificação nas duas vezes em que fez a prova. Na

terceira, e última vez, no ano de 2013 que Maria fez o ENEM e conseguiu ser aprovada,

entrando pelo sistema de cotas.

Segundo Segato (2004), o sistema de cotas é uma política afirmativa que visa

possibilitar o acesso da população negra ao Ensino Superior, mecanismo legal com o objetivo

de compensar a dívida histórica que nossa sociedade tem com os negros. Através do sistema

de cotas, 20% das vagas de todos os cursos estão reservadas para estudantes que se declaram

negros.

Apesar de todas as dificuldades enfrentadas durante a sua trajetória escolar, Maria

conseguiu superar as dificuldades que encontrou e consegui alcançar seu objetivo de ingressar

em uma universidade pública. Hoje é acadêmica do 7º semestre de um curso de licenciatura,

única dos irmãos a chegar a um curso superior.

Atualmente a acadêmica é bolsista do Programa de Iniciação a Docência (PIBID), e

relata que se não fosse essa bolsa não conseguiria permanecer na universidade. Recebe ajuda

da mãe e dos irmãos com materiais que utiliza na universidade. Ela é o orgulho da mãe e dos

irmãos que sempre tentam ajudá-la como podem.

Page 12: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 12

4.1.2 “MINHA MÃE SEMPRE OLHAVA O MEU CADERNO” – A PRESENÇA

MATERNA COMO MARCA DA TRAJETÓRIA ESCOLAR DE SUCESSO DA

ACADÊMICA FÁTIMA

A acadêmica Fátima logo já se demostrou muito tímida e pediu que a entrevista fosse

realizada na própria universidade, em uma sala. Fiz como a entrevistada sugeriu e nos

encontramos no final da tarde, antes de iniciarmos conversamos um pouco, assim que Fátima

se sentiu mais à vontade começamos a entrevista.

Fátima tem 20 anos de idade, nasceu em Corumbá e atualmente está morando em

Ladário. Solteira, não tem filhos e é a mais velha de duas irmãs. Considera-se pobre e

autodenominou-se parda. Seus pais atualmente possuem casa própria, de alvenaria.

Fátima relata que na infância os seus pais sempre a levavam à igreja, o acesso a livros

era dentro da escola, não brincava com jogos ou palavras cruzadas, sua família não tinha

condições financeiras de frequentar cinemas ou teatros, frequentava uma biblioteca pública

que se localizava próximo da sua casa.

Sua trajetória escolar do Ensino Fundamental e Médio foi em escola pública, no

período matutino, com ensino regular. Gostava das disciplinas de Ciências e Biologia, tendo

facilidade nessas disciplinas e não gostava e apresentava dificuldades em Matemática e Física.

Os Pais eram exigentes em relação às notas, e apresentou dificuldade no Ensino

Médio, o que levou sua mãe conversar com os professores vendo a possibilidade da melhor

forma de ajudar em seu desempenho escolar. Ela nunca ficou retida e se considerou uma boa

aluna, buscando sempre tirar boas notas.

Na Educação Básica, a mãe sempre esteve presente se preocupando diretamente com

os estudos, ajudava olhando os cadernos e ia sempre à escola. Matriculou a filha em um

cursinho pré-vestibular no Ensino Médio, almejando seu ingresso em uma universidade,

sendo sua maior incentivadora na trajetória escolar. Minha mãe sempre olhava meu caderno, no ensino médio me matriculou no cursinho da escola, pra eu poder prestar vestibular (Fátima. Entrevista, 2016).

Segundo Souza e Silva (2003) a presença das mães na família, contribui na trajetória

dos filhos, entretanto, a base material desse apoio era fornecida pelos pais, cabendo à mãe a

responsabilidade direta pela vida escolar.

Page 13: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 13

Fátima não se lembra de algum professor específico que tenha a incentivado a

estudar, relata que, de maneira geral, os professores cobravam que os alunos estudassem.

Apesar de acreditar que tenha sido boa aluna na Educação Básica, ela não considera

sua entrada na universidade fácil, pois não passou na primeira chamada do ENEM. Mas, para

não desistir de seu sonho de entrar em um curso superior foi para uma instituição privada a

distância, mas no mesmo ano foi selecionada na terceira chamada e começou a fazer seu curso

de graduação em uma universidade pública e é bolsista Vale universidade.

Seus pais, diferentes dos outros sujeitos, conseguiram frequentar a escola por um

período maior de tempo, seu pai estudou até a 8ª série e a mãe terminou o Ensino Médio,

ainda relata que sua avó materna fez o magistério. O pai é mecânico autônomo. A mãe

atualmente está desempregada, mas já trabalhou como recepcionista e balconista.

4.1.3 “A GENTE CHEGOU A PASSAR POR MOMENTOS SEVEROS” – A ESCOLARIZAÇÃO

FRENTE AOS DESAFIOS DA VIDA NO CAMPO DO ACADÊMICO JOÃO

O acadêmico João é morador da zona rural de Corumbá, MS e vai para a casa dos

tios na cidade durante a semana para poder frequentar a universidade. Possui 21 anos, solteiro,

não tem filhos. Mais velho de dois irmãos acredita que sua condição financeira está

melhorando.

A entrevista ocorreu na casa do João na zona rural. A sua mãe me esperou com suco

que tomamos ao final da entrevista. Sua mãe e irmã acompanharam enquanto conversávamos.

Sentamos embaixo de uma árvore e elas ao lado, por muitas vezes, quando João relatava,

emocionado, a sua trajetória de dificuldades enfrentadas e a importância dos pais para a sua

conquista em chegar a uma universidade pública, o olhar da mãe era de extremo orgulho e

satisfação por ver o filho vencendo e ultrapassando todas as dificuldades encontradas no

caminho.

João mora com os pais e a irmã mais nova, sendo o pai o principal provedor da família, mas

ajuda a família com o dinheiro que recebe dos auxílios da universidade: bolsa permanência3 e

auxílio alimentação4.

3 O Programa Bolsa Permanência refere-se a um repasse financeiro ao acadêmico em situação de vulnerabilidade socioeconômica, de forma a garantir a sua permanência na Universidade e contribuir para sua formação integral, buscando reduzir os índices de retenção e evasão decorrentes de dificuldades de ordem socioeconômica. Mais informações em: http://preae.sites.ufms.br/coordenadorias/assistencia/. 4O auxílio alimentação consiste em auxilio financeiro no valor de 33% do salário mínimo vigente destinado a acadêmicos matriculados em um dos cursos de graduação presencial nos Campus da UFMS onde não exista Restaurante Universitário. Mais informações em: http://preae.sites.ufms.br/coordenadorias/assistencia/.

Page 14: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 14

Considera que a situação da família melhorou em relação à sua infância, pois viviam

da plantação e em tempos de seca não tinham o que vender na feira. Antigamente a gente vivia da feira, tinha horta, plantava. Era um dinheiro por semana certo […] Dava para fazer a compra da semana, arroz, feijão, carne, alguma coisa. Nem toda semana podia, porque tem essa que a horta não dá, né, em tempos de seca que a horta não produz. Então a gente chegou a passar por momentos severos (João. Entrevista, 2016).

Sua moradia é simples, ainda em construção, cercada de árvores e algumas poucas

casas ao redor. João tem a esperança que ao finalizar o seu curso de graduação ajude os pais a

construírem uma residência melhor.

Em sua infância ele participava com a família de um grupo religioso, o pastor

frequentava sua casa e fazia cultos evangélicos. Depois de um tempo a família começou a

frequentar uma igreja perto de onde moram.

O acesso aos livros era somente na escola e quando tinha a oportunidade de brincar

com jogos eram os professores que proporcionavam no ambiente escolar. A leitura era

proporcionada principalmente na igreja, gostava de ler a bíblia e decorar os versículos, cujo

prêmio era doce que ganhava quando acertava. A família não frequentava bibliotecas, quando

aconteciam os passeios para exposições, era proposta dos professores. A família do João não

tinha condições financeiras de frequentar clubes, comprar livros ou jogos.

João estudou o Ensino Fundamental (I e II) na zona rural perto da sua casa e quando

foi fazer o Ensino Médio precisou trocar de escola, continuando a escolarização na área rural.

Entretanto, para chegar à escola precisava pegar um ônibus que passava três vezes por semana

na porta de sua casa e levava para escola também na área rural.

Na escola gostava muito da disciplina de Matemática, assim era o destaque da turma quando realizava as atividades, apresentava dificuldades em Língua Português e Literatura. Nunca ficou retido, era aplicado nos estudos, prestava atenção nas explicações e tira as dúvidas em sala de aula, valorizava os estudos, pois sabia que para estar ali dependia de muito sacrifício [...] Eu tinha consciência, a gente vem de tão longe para estudar, o ônibus vem de tão longe busca a gente, professores saem lá da cidade para dar aula pra gente, então tenho que ter o respeito (João. Entrevista, 2016).

A análise desse depoimento nos permite verificar que desde a escolarização gostava da

disciplina na qual optou fazer o curso superior: a Matemática e confirma o que Valle (2006)

verificou em seu estudo, que a escolha de uma profissão é como o “[...] resultado de uma

Page 15: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 15

combinação entre a representação que o indivíduo tem de si e a experiência vivida” (VALLE,

2006, p. 183).

Apesar do pouco estudo, os pais de João sempre fizeram questão de acompanhar o

aprendizado no filho na escola. Além dos pais, ele contava com a preocupação de uma tia que

se interessava pela sua rotina escolar. Seus professores também contribuíram durante a sua

trajetória escolar. João mencionou um professor com muito carinho, que esteve sempre

disposto a ajudá-lo e trazia, além dos materiais que utilizava em sala, outros que contribuíram

com a aprendizagem. Ele falava eu tenho isso aqui, ele trazia livros de exercícios a mais para mim fazer. Ele era de matemática e física… Trazia atividade de raciocínio lógico, uma coisa a mais. Eu sempre perguntava o que tem a mais pra mim? Eu queria ir além (João. Entrevista, 2016).

A presença dos pais foi marcante na vida do João, seus maiores incentivadores

durante sua trajetória. João também recebeu o apoio de uma coordenadora pedagógica quando

estava no Ensino Médio, que para auxiliar os alunos promovia simulados e falava a respeito

da universidade, salientando que todos podiam e deveriam chegar ao um curso superior. Quando ela ia falar, batia muito nesse ponto. Não é porque vocês estão aqui em Albuquerque que vocês não têm chance de cursar a universidade (João. Entrevista, 2016).

Sua trajetória no Ensino Básico foi marcada por dificuldades e muitos desafios, mas

João não desistiu, seu objetivo maior era chegar à universidade pública. Então ele se

inscreveu para fazer o ENEM no ano do Ensino Médio e aguardava ansioso pelo resultado.

Sua primeira opção de curso foi contabilidade, a segunda Matemática. Foi chamado para

Matemática, fez a matrícula e hoje está bem satisfeito com sua escolha.

João conseguiu entrar em um curso superior, mas ainda precisava superar outros

obstáculos, permanecer na universidade. No início do ano letivo já começou a enfrentar

dificuldades, precisou ficar na casa dos tios para poder estudar, não tinha dinheiro para os

materiais necessários e também em relação aprendizagem dos conteúdos. Como suas aulas no

ensino médio ocorriam três vezes na semana, João teve muita dificuldade em assimilar os

assuntos. Quando eu cheguei no curso foi muito difícil pra mim, o 1º semestre foi o mais difícil, até porque naquela época meu pais estava sem emprego e eu sem bolsa, sem nada, eu passei quatro meses na faculdade vivendo no extremo mesmo (João. Entrevista, 2016).

Page 16: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 16

Com tantas dificuldades João pensou em desistir do curso, mas relata que no segundo

semestre sua situação foi melhorando, pois começou a receber o auxílio Bolsa Permanência,

seu pai já estava trabalhando o que facilitou a dedicação para os estudos. Atualmente está

muito bem no curso e quando terminar quer trabalhar na área. Este ano João fará a prova para

seleção de Mestrado em Matemática Aplicada na cidade de Londrina, PR.

Zago (2007) observa que os jovens vindos das camadas populares, vivenciam várias

dificuldades em suas vidas, mas os sonhos e objetivos traçados fazem com que esses jovens

superem as barreiras das desigualdades educacionais.

4.2 PERCEPÇÕES DOS SUJEITOS SOBRE O PBF: CONTRIBUIÇÕES E LIMITES

Com a análise dos depoimentos dos sujeitos desse estudo foi possível verificar que

todos acreditam que o PBF contribuiu para a entrada na universidade pública, pois o benefício

possibilitou a permanência dos mesmos na escola básica. Fátima e João acreditam que se não

fosse o beneficio, precisariam ajudar os pais na renda da família: Sim, eu acredito que tenha contribuído bastante, até porque era só meu pai que trabalhava em casa, minha mãe nunca trabalhou, então ajudou bastante principalmente a minha irmã. Ajudou bastante na despesa pra que eu pudesse estar estudando (Fátima. Entrevista, 2016). Sim, muito porque hoje em dia as pessoas tem uma visão muito ruim do Bolsa Família, fala que todo mundo que recebe bolsa família usa para bebida, é bolsa isso, é bolsa droga, não é bem assim. [...] Ajudou muito sim, pra comprar material escolar, tipo assim. Minha mãe é testemunha de que quando chegava janeiro, a gente esperava chegar o dia de receber o bolsa família, eu ia com ela pra compara material escolar. [...] A gente chegou esse tempo, de pegar a bolsa pra comprar arroz, feijão, alguma carne. Contribuiu muito (João. Entrevista, 2016).

Maria sempre trabalhou para ajudar a família, quando sua mãe começou a receber o

benefício conseguiu estudar com mais tranquilidade.

Eu acho que contribuiu porque eu parei de ajudar a minha mãe, porque eu sempre trabalhei pra ajudar a minha mãe. Eu trabalhava porque minha mãe não tinha renda. Quando meu pai morreu, eu tinha 17 e meus irmãos todos eram menores que eu. E depois de um tempo ela recebia a pensão dele, mas era um salário para cinco pessoas. Eu lembro quando minha mãe ia fazer compra do mês, ela comprava mais de um fardo de arroz, ela não pegava um pacotinho, ela pegava um fardo e não dava para o final do mês. Era um fardo e um saco de farinha de trigo e o salário ia tudo ali (Maria. Entrevista, 2016).

Pellegrina (2011) em suas pesquisas encontrou evidências de que o recebimento do

benefício diminui o abandono escolar e aumenta a frequência. O aumento da frequência

Page 17: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 17

ocorre, pois uma das condicionalidades é que os beneficiários tenham presença mínima de

85%, com a frequência o aluno estando em sala de aula poderia melhorar seu desempenho

escolar. Quando a família desses jovens começou a receber o benefício, logo sentiram a

mudança na rotina da casa, contribuiu para alimentação, para comprar de materiais e até

mesmo para socialização com a comunidade do bairro.

Resende e Oliveira (2008) ressaltam que essa renda ajuda a melhorar o desempenho

escolar através da melhora nutricional das crianças. Quando as crianças frequentam a escola

com fome seu rendimento pode cair grandemente.

Os sujeitos desse estudo afirmam que houve mudanças em suas vidas após o

recebimento do benefício, possibilitou as famílias condições melhores para alimentação, ajuda

na compra de materiais escolares e participações em oficinas desenvolvidas pelo Centro de

Referência de Assistência Social (CRAS). O que mudou foi com relação à alimentação, porque antes a gente não tinha, não era tanto. Eu lembro da minha mãe vendendo na rua pra fazer compra pro mês. Então ela vendia todo dia, meu irmão fazia a feira com meu irmão, vendia cebolinha, fazia na feira (Maria. Entrevista, 2016).

Sá e Silva (2012) em sua pesquisa apontam melhorias significativas na vida das

famílias beneficiadas, principalmente na área de alimentação. O dinheiro contribui no

aumento de dias em que as famílias podem ter os alimentos, assim como na variedade

nutricional das refeições. Como mostra Maria em seu relato, moradora da área rural o

dinheiro ajudou a família com a alimentação, pois para completar a renda a mãe precisava

vender o que colhia da roça.

No caso da Fátima, a mesma iniciou atividades no CRAS do seu bairro, o que

possibilitou a interação com outras pessoas. Eu lembro que quando minha mãe ficou sabendo, foi um tio meu que trabalha no CRAS e avisou que meu nome “tava” lá eu tinha que me envolver assim bastante em ações que eles promoviam lá, em curso, na época tinha Pro Jovem, então antes desse beneficio eu não participava de nada só ficava em casa. Aí depois que minha mãe começou a ganhar esse beneficio eu comecei a participar (Fátima. Entrevista, 2016).

João relata que o PBF contribuiu principalmente na aquisição de materiais escolares.

A família esperava por esse dinheiro para poder adquirir os materiais para iniciar o ano letivo.

João ainda cita a visão que as pessoas têm a respeito do programa, que aqueles que recebem

Page 18: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 18

utilizam para compra de bebidas, mostrando que sua família utilizava para obter os materiais

escolares para poder frequentar a escola.

Sim, muito porque hoje em dia as pessoas tem uma visão muito ruim do Bolsa Família, fala que todo mundo que recebe bolsa família usa para bebida, é bolsa isso, é bolsa droga, não é bem assim. Eu acho que ninguém deveria falar todo mundo né? Quando você fala todo mundo, envolve todo o conjunto, e não, eu conheço muitas pessoas, que desse dinheiro compravam comida, mercadoria. Ajudou muito sim, pra compra material escolar, tipo assim. Minha mãe é testemunha de que quando chegava janeiro, a gente esperava chegar o dia de receber o bolsa família, eu ia com ela pra compara material escolar (João. Entrevista, 2016).

O PBF vem contribuindo para permanência de alunos de origem popular na escola,

diminuindo a evasão dos alunos que saem das escolas para contribuir com a renda da família.

Para que essas famílias possam receber o benefício precisam cumprir as condicionalidades

exigidas, a frequência escolar é uma delas o que tem garantido a presença dos alunos,

principalmente das camadas menos favorecidas na escola. Para os sujeitos o Programa teve o

grande papel para que os mesmos permanecessem no colégio, continua contribuindo para

aqueles que mais necessitam. Acredito que ajuda muito, porque eu já trabalhei em escolas nessa minha trajetória aqui na universidade, eu percebo que hoje as escolas traz mais esses pais pra dentro da escola, tem um olhar a mais pra eles. Acredito que não tem mais aquele olhar rotulador pra crianças (Fátima. Entrevista, 2016).

Contribuiu sim, sempre no começo do anos os professores costumam passar uma listinha, pra essa aula você precisa disso, régua, lápis de cor. Esse dinheiro a gente usava pra isso mesmo, comprar material escolar, mochila, alguma coisa que a gente estava precisando (João. Entrevista, 2016).

Uma das condicionalidades do PBF para a garantia do benefício é a frequência escolar,

esta ajudou diminuir o número da evasão dos estudantes nas escolas. Entretanto, os

entrevistados acreditam que essa condicionalidade não é suficiente para contribuir com o

melhor desempenho escolar dos alunos. Acho que não favorece, o melhor aprendizado não, as vezes ele vai só para estar presente. As vezes ela da dentro da escola e se você perguntar o que o professor passou ele não vai sabe (Maria. Entrevista, 2016).

Eu acredito que além da questão da frequência do aluno da escola, acho que nada mais além da conversa, do que a escola tem que acolher tanto os pais quanto os filhos, tem que ter um olhar diferenciador. Você ouve não dentro

Page 19: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 19

da escola mais fora, essa criança só vai para receber o benefício, isso tem que mudar (Fátima. Entrevista, 2016).

Então, depende muito do aluno. Eu acho que tinha que ter como a gente tem na faculdade. Na faculdade se você fica de mais de duas matérias é chamado pra uma entrevista. Eu penso que seria nesse nível assim, o aluno vai na escola para estudar, nada mais do que isso. Se houvesse essa cobrança, tipo assim se o aluno faz oito matérias, se ele ficar pendente de mais de duas, chama aqui pra acompanhamento. Isso até força o aluno a estudar mais (João. Entrevista, 2016).

Os ex-beneficiários acreditam que o programa contribui diretamente para a melhoria

na qualidade da Educação. Maria relata sua experiência, precisou sair de casa para poder

estudar e com a morte do pai, precisou ajudar a família com a renda. Depois que sua família

começou a receber o beneficio, conseguiu caminhar com os estudos e suas irmãs puderam

frequentar a escola sem a necessidade de trabalhar, o que facilitou o desenvolvimento escolar. Acho que contribui, porque tira a criança do trabalho, foi isso que aconteceu aqui em casa, tanto que as minhas irmãs mais novas nunca trabalharam em casa de família. As minhas duas irmãs terminaram na idade certa, nunca ficaram de exame (Maria. Entrevista, 2016).

Fátima, também acredita que o PBF contribui diretamente com a educação, pois

acredita que aqueles que não estiverem recebendo esse dinheiro terão que ajudar a família

para completar a renda. Acredito que sim, são fatores que são desenvolvidos na ajuda financeira, que se não tivesse dentro da escola, talvez estaria trabalhando pra ajudar. Acredito que ajuda sim diretamente (Fátima. Entrevista, 2016). Contribui, mas depende do aluno. Se ele vai saber aproveitar Depois que eu terminar quero continuar na área, seja pra dar aula na escola na faculdade (João. Entrevista, 2016).

Com a análise desses depoimentos ficou constatado o quanto o PBF foi de suma

importância na vida escolar desses jovens, pois contribuiu para que os mesmos

permanecessem no ensino regular, possibilitou a aquisição de materiais escolares necessários,

ajudou as famílias na compra de alimentos necessários para o dia-a-dia e, consequentemente,

colaborou para que ex-beneficiários tivessem acesso a uma universidade pública. Ficou

explícito, portanto, com as análises, que as políticas sociais de transferência de renda têm

colaborado para a redução das desigualdades da população que se encontra em situação de

vulnerabilidade, principalmente dado o baixo investimento em capital escolar.

Page 20: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 20

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização desse estudo nos permitiu conhecer o percurso e estratégias que três

jovens universitários, sujeitos da pesquisa, traçaram para conseguirem entrar em uma

universidade pública, e de que maneira o auxílio do PBF contribuiu, ou não nesse processo. O

programa visa, além dos serviços básicos, o combate à fome, pobreza, pobreza extrema, saúde

e educação. Quando se trata de promover o acesso à educação, surge da tentativa do governo

em corrigir a dívida histórica com as camadas populares no nosso país.

No contato com estudos acerca do acesso ao ensino superior de jovens oriundos de

camadas populares percebermos o quanto a nossa História é marcada por desigualdades de

acesso desde o Ensino Básico ao Ensino Superior, antes voltado para elites e brancos, pois

não se via a necessidade de pobres e negros terem acesso à educação. O Brasil percorreu um

longo caminho para que estes alunos tivessem a oportunidade de estar nos bancos escolares,

ainda hoje muitos jovens precisam a custo de muito esforço pessoal ultrapassar esses

obstáculos.

Na tentativa de amenizar as desigualdades sociais, o PBF foi criado, o que

possibilitou que milhões de crianças frequentassem os bancos escolares, tirando dos trabalhos

domésticos e até muitas vezes da rua. Como podemos observar na pesquisa com esses três

jovens, o programa contribuiu para melhorar suas condições de vida e ampliou as

possibilidades dos mesmos, em busca de uma condição melhor de vida.

Com ajuda do benefício, as famílias puderam oportunizar aos seus filhos maior

tempo na escola, indo na contra mão de tudo que os próprios pais vivenciaram em sua própria

trajetória escolar. Foi possível verificar que os jovens entrevistados, passaram por momentos

de muitas dificuldades em suas vidas, mas conseguiram enfrentar as dificuldades e chegaram

à universidade pública.

No Brasil existem milhões de ‘Marias’, ‘Fátimas’ e ‘Joãos’ que enfrentam

dificuldades em seu dia-a-dia para permanecerem nas escolas, que lutam para conseguir

romper a barreira da pobreza e mudar de vida. No rosto de cada um desses jovens me vejo,

pois também de família humilde, que, embora com pouco estudo, deixou muita coisa de lado

para que eu pudesse realizar o meu sonho de estar em uma universidade pública. Somos

‘razões do improvável’, assim definido por Lahire (1998), pois, conseguimos romper as redes

da meritocracia, do preconceito. Que a história desses jovens, assim como a minha possa se

repetir, com a garantia de políticas públicas para o acesso e permanência na universidade.

Page 21: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 21

Que vençam as barreiras enfrentadas e realizem o sonho de estar em um curso superior. Que

muitos pais, assim como os nossos, possam ter o mesmo brilho nos olhos, como foi possível

presenciar nas entrevistas, bem como quando consegui entrar na universidade pública. Que

esse mesmo brilho e alegria possam ser compartilhados em milhões de famílias brasileiras.

6 REFERÊNCIAS

BOURDIEU, P.; PARRERON, J.C. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de

ensino. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A.

(Org.). Escritos de educação. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 73-79.

CARVALHO, J. J.; SEGATO, R. Uma proposta de cotas para estudantes negros na

Universidade de Brasília. Brasília: Universidade de Brasília, Departamento de Antropologia,

2002. (Série Antropologia, n. 314).

CUNHA, L. A. Educação e desenvolvimento social no Brasil. 12. ed. Rio de Janeiro:

Francisco Alves, 1991.

FREIRE, A. M. A. Analfabetismo no Brasil: da ideologia da interdição do corpo à ideologia

nacionalista, ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipinas,

Madalenas, Anas, Genebras, Apolônias e Grácias até os Severinos. 2 ed. rev. Aumentada. São

Paulo: Cortez, 1993.

GARCIA. E. S. Trajetória escolar de ex-alunos de classe especiais para deficientes mentais.

181 f. Tese (Doutorado em Educação Escolar) Faculdade de Ciências e Letras, Universidade

Estadual Paulista, Araraquara, 2006.

LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo:

Ática, 1998.

MOACYR, P. A Instrução e o Império. Subsídios para a história da educação no Brasil: 1854-

1889. São Paulo: Companhia Editora Nacional, v. 2, 1937.

Page 22: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 22

PELLEGRINA, H. S. Impactos de curto prazo do programa bolsa família sobre o abandono e

o desempenho escolar do alunado paulista, 2011. 103p. Dissertação (Mestrado em Economia)

- Faculdade de Administração, Economia e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São

Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12138/tde-

26092011-165149/pt-br.php>. Acesso em: 20 out. 2016.

RESENDE, A.; OLIVEIRA, A. Avaliando resultados de um programa de

transferência de renda: o impacto do Bolsa-Escola sobre os gastos das famílias

brasileiras. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 38, n. 2, p. 235–265, 2008. Disponível

em:<http://www.scielo.br/pdf/ee/v38n2/a02v38n2.pdf>. Acesso em: 20 out. 2016.

SÁ, M. O. L.; SILVA, L. B. Uma análise da aplicação do Programa Bolsa Família (PBF) no

município de São Bentinho -PB. In: ENCONTRO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E

GOVERNO, 2012, Anais... Salvador: Anpad, 2012, p. 1-16. Disponível em:

<http://www.anpad.org.br/diversos/trabalhos/EnAPG/enapg_2012/2012_EnAPG387.pdf>.

Acesso em: 20 out 2016.

SAMBUGARI, M.R.N. Socialização de futuros professores em situações de estágio

curricular, 2010. 166p. Tese (Doutorado em Educação: História, Política, Sociedade) -

Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2010.

SEGATO, R. Você é a favor da cota para negros? Sim. Correio Braziliense, Brasília, 18 abr.

2004.

SOUZA E SILVA, J. Por que uns e não outros? Caminhada de jovens pobres para a

universidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

SILVA, A., F. et al. Caminhadas de universitários de origem popular: UFMS. Rio de Janeiro:

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pró-reitoria de extensão, 2006. Coleção Caminhada

de Universitários de Origem Popular.

SILVA, M. et al. Diferenças e Desigualdades: O Curso de Administração na UFAM. In:

SILVA, J. S.; BARBOSA, J. L.; SOUZA, A. I. (Org.). Desigualdade e Diferença na

Universidade: Gênero, Etnia e Grupos Sociais Populares. Rio de Janeiro: UFRJ, Pró-Reitoria

de Extensão, 2006.

Page 23: TRAJETÓRIA ESCOLAR DA EDUCAÇÃO BÁSICA AO ENSINO SUPERIOR DE …epds.ufms.br/wp-content/uploads/anaisencontroiepds/pdfs/... · 2017. 8. 3. · Trabalho de Conclusão de Curso 2

Trabalho de Conclusão de Curso 23

SOARES, Maria S. A. (org). A educação Superior no Brasil. Brasília: CAPES - UNESCO,

2002.

TEIXEIRA, A. M. F.; SILVA, V. A. Jovens universitários de origem popular: alterando

percursos. REUNIÃO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E

PESQUISA EM EDUCAÇÃO: 30 anos de pesquisa e compromisso social, 30, Anais...

Caxambu: Anped, 2007, p. 1-15. Disponível em:

<les/gthttp://www.anped.org.br/sites/default/fi14-3473-int.pdf>. Acesso em: 20 out. 2016.

__________. Os jovens entre as certezas e incertezas: dilemas da relação educação e trabalho

na sociedade contemporânea. In: CRUZ, M.H.S. Pluralidade de saberes e territórios de

pesquisa em educação sob múltiplos olhares dos sujeitos investigadores/organização, São

Cristóvão: Editora UFS, 2008.

VALLE, I. R. Carreira do magistério: uma escolha profissional deliberada? Revista Brasileira

de Estudos Pedagógicos. Brasília, v. 87, n. 216, p. 178-187, mai/ago, 2006. Disponível em:

<http://www.rbep.inep.gov.br/index.php/RBEP/article/viewFile/32/34>. Acesso em: 20 out.

2016.

WANDERLEY, L. E. W. O que é Universidade. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

ZAGO, N. Do acesso à permanência no ensino superior percursos de estudantes universitários

de camadas populares. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 32 maio, ago., p. 226-370,

2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v11n32/a03v11n32.pdf> . Acesso em:

20 out. 2016.

_________. Processos de escolarização nos meios populares: as contradições da

obrigatoriedade escolar. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (Org).

Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. 3 ed.

Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 17-43.