pobreza e currÍculo escolar: concepÇÕes e...

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1 Trabalho de Conclusão de Curso POBREZA E CURRÍCULO ESCOLAR: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DOCENTES Viviane Soares Vilasanti * Hellen Jaqueline Marques** Resumo: Com o intuito de investigarmos a concepção docente sobre a pobreza e de averiguarmos se a escola tem contemplado iniciativas pedagógicas que visem combater a pobreza, entrevistamos 13 professores de uma instituição pública de ensino, localizada em um dos municípios mais pobres do Mato Grosso do Sul. As questões das entrevistas versaram sobre os temas pobreza, currículo escolar, função social da escola e do professor e foram analisadas com base em autores da teoria histórico-crítica que dissertam acerca das referidas temáticas. Os resultados da pesquisa indicam que os docentes, apesar de considerarem relevante oportunizar discussões sobre o assunto com alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental, raramente desenvolvem intervenções pedagógicas que promovam a reflexão sobre as causas e o impacto da pobreza, possivelmente em decorrência da perspectiva meritocrática e do precário conhecimento sobre a pobreza para além do senso comum. As conclusões apontam para a necessidade de intensificação de discussões sobre o tema entre os docentes, com vistas ao repensar do trabalho pedagógico junto aos alunos que vivem em situação de pobreza. Palavras-chave: Educação. Escola. Currículo. Pobreza. 1 INTRODUÇÃO De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), pobre é o sujeito que vive com até R$ 144,00 mensais e extremamente pobre é aquele que sobrevive com R$ 77,00 por mês (BRASIL, 2016). No entanto, entendemos que, para além da escassez de recursos materiais, a pobreza está relacionada com a privação das condições mais básicas para viver de forma justa e digna como ser humano. "Aos pobres são negados os direitos sociais mais básicos, como alimentação, teto, renda e trabalho, os quais é atribuição do Estado garantir” (ARROYO, 2015, p. 13). * Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (2013) e Especialista em Docência no Ensino Superior pela UniCesumar (2015). Exerce o magistério no Ensino Fundamental I, desde 2014, nos Anos Iniciais. Atualmente exerce a função de coordenação pedagógica na Educação Básica do município de Paranhos. E-mail: [email protected] ** Professora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus do Pantanal. Doutoranda em Educação Escolar na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Araraquara. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]

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1 Trabalho de Conclusão de Curso

POBREZA E CURRÍCULO ESCOLAR: CONCEPÇÕES E PRÁTICAS

DOCENTES

Viviane Soares Vilasanti*

Hellen Jaqueline Marques**

Resumo: Com o intuito de investigarmos a concepção docente sobre a pobreza e de

averiguarmos se a escola tem contemplado iniciativas pedagógicas que visem combater a

pobreza, entrevistamos 13 professores de uma instituição pública de ensino, localizada em

um dos municípios mais pobres do Mato Grosso do Sul. As questões das entrevistas

versaram sobre os temas pobreza, currículo escolar, função social da escola e do professor e

foram analisadas com base em autores da teoria histórico-crítica que dissertam acerca das

referidas temáticas. Os resultados da pesquisa indicam que os docentes, apesar de

considerarem relevante oportunizar discussões sobre o assunto com alunos dos anos iniciais

do Ensino Fundamental, raramente desenvolvem intervenções pedagógicas que promovam

a reflexão sobre as causas e o impacto da pobreza, possivelmente em decorrência da

perspectiva meritocrática e do precário conhecimento sobre a pobreza para além do senso

comum. As conclusões apontam para a necessidade de intensificação de discussões sobre o

tema entre os docentes, com vistas ao repensar do trabalho pedagógico junto aos alunos que

vivem em situação de pobreza. Palavras-chave: Educação. Escola. Currículo. Pobreza.

1 INTRODUÇÃO

De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), pobre é o sujeito

que vive com até R$ 144,00 mensais e extremamente pobre é aquele que sobrevive com R$

77,00 por mês (BRASIL, 2016). No entanto, entendemos que, para além da escassez de

recursos materiais, a pobreza está relacionada com a privação das condições mais básicas

para viver de forma justa e digna como ser humano. "Aos pobres são negados os direitos

sociais mais básicos, como alimentação, teto, renda e trabalho, os quais é atribuição do

Estado garantir” (ARROYO, 2015, p. 13).

* Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá (2013) e Especialista em Docência no Ensino

Superior pela UniCesumar (2015). Exerce o magistério no Ensino Fundamental I, desde 2014, nos Anos

Iniciais. Atualmente exerce a função de coordenação pedagógica na Educação Básica do município de

Paranhos. E-mail: [email protected] ** Professora na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus do Pantanal. Doutoranda em

Educação Escolar na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de

Araraquara. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: [email protected]

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A constatação dessas condições há que conduzir à formulação e implementação de

políticas sociais e de programas que visem à transformação dessa realidade, sem, todavia,

incidir em medidas assistencialistas ou moralizantes (ARROYO, 2015). Entretanto, tais

programas, como por exemplo o Bolsa Família, têm sido concebidos como a razão do

desestímulo ao esforço de cada indivíduo, ao estudo e à capacitação.

A responsabilização do pobre por seu fracasso escolar ignora os definidores de sua

condição. Na configuração social atual os sujeitos não nascem todos com as mesmas

oportunidades. A distribuição de renda, por exemplo, não é igualitária. Portanto, os sujeitos

vivenciam diferentes realidades e possibilidades de vida desde a mais tenra idade.

Diante do exposto, este trabalho visa responder as seguintes problemáticas: Quais

são as concepções de professores acerca da pobreza? Os educadores que convivem com

alunos em situação de pobreza e extrema pobreza consideram relevante o estudo do tema em

sala de aula?

O objetivo geral desta pesquisa é, portanto, investigar se a escola tem dado subsídios

pedagógicos aos alunos pobres na perspectiva de superação dessa condição. Para tanto,

realizamos entrevistas semiestruturadas com professores de uma escola pública municipal

na cidade de Paranhos/MS, que versaram sobre os temas: concepção de pobreza, função

social da escola e do professor e currículo escolar.

Durante as discussões realizadas nos encontros da pós-graduação “Educação,

Pobreza e Desigualdade Social”, levantamos a seguinte hipótese: são poucos os profissionais

da Educação Básica que conhecem a pobreza a partir da perspectiva científica e que

desenvolvem intervenções pedagógicas sobre o tema, precipuamente no Ensino

Fundamental I.

Para que possamos responder as problemáticas explicitadas nos parágrafos

anteriores, faz-se necessário tecer considerações sobre o direito à educação, a função da

educação e do professor, destacando sua relevância para a transformação dos sujeitos e da

sociedade, e sobre o conceito e implicações do currículo escolar para o processo de ensino e

aprendizagem. Essas temáticas serão deslindadas no decorrer deste trabalho.

Entendemos que este estudo oportunizará a reflexão e a compreensão de uma

realidade educacional do Mato Grosso do Sul e que poderá engendrar mudanças nas práticas

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pedagógicas de professores que convivem, diariamente, com alunos em situação de pobreza

e de extrema pobreza, em nível regional, estadual e nacional.

2 A EDUCAÇÃO: DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO

O artigo 205 da Constituição Federal de 1988, afirma que a educação se constitui

como “direito de todos e dever do Estado e da família”, devendo ser “[...] promovida e

incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa,

seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL,

1988).

A educação apregoada na legislação – a instrução formal – passou a ser pública,

gratuita e obrigatória no início do século XX, contexto histórico em que o Brasil vivenciava

um momento de “[...] mobilização política e cultural em prol da modernização do país e do

fim do domínio das elites oligárquicas e conservadoras” (LEITE, 2015, p. 32).

Nessa época, concretizava-se a proposta de uma escola pública, gratuita e

obrigatória, materializada no que foi denominado “O Manifesto dos

Pioneiros da Escola Nova”, escrito em 1932. O documento propunha uma

educação para todos, sem privilégios econômicos de uma minoria. A

educação era vista como instrumento de reconstrução da democracia,

permitindo a integração dos diversos grupos sociais. (LEITE, 2015, p. 32)

A educação como direito, apregoada no referido manifesto e também na Declaração

Universal dos Direitos Humanos, em 1948, passou a se constituir como direito social com a

promulgação da Constituição Federal de 1988.

Thomas Humphrey Marshall (1967 apud SAVIANI, 2013) classificou os direitos em

três categorias: políticos, civis e sociais. Para Saviani (2013, p.744), a educação integra os

direitos sociais, os quais dizem respeito ao acesso de todos os sujeitos ao “[...] nível mínimo

de bem-estar possibilitado pelo padrão de civilização vigente”.

Assim, independente da classe econômica, raça e gênero, os cidadãos têm o direito

de acesso à instrução formal, sendo esta condição sine qua non para a inserção dos sujeitos

na cultura e na sociedade, para a sua humanização.

Vasconcellos (2011, p. 19) pontua que

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A educação é um direito humano fundamental; não nascemos prontos, nem

programados; precisamos da educação para nos humanizar. A escola tem

uma importante contribuição na medida em que trabalha com aspectos

educativos que o sujeito muito provavelmente não teria acesso

espontaneamente ao longo de sua vida (principalmente no seu período de

formação inicial).

Para Saviani (2013) essa classificação de Marshall quanto aos direitos individuais

não condiz com a realidade em suas diversas determinações, articulações e contradições. A

educação, para além de consistir em um direito social, é condição basilar, ainda que

insuficiente, para o exercício dos demais direitos.

A educação como direito social é mencionada no artigo 6º da Constituição Federal

vigente, que aduz: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a

moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a

assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Conforme o autor supracitado, a participação ativa e o exercício dos direitos de todos

os tipos na sociedade moderna, demanda o domínio de códigos escritos, fato que justifica a

razão de a escola ter sido consagrada como “[...] forma principal e dominante de educação e

[que] advogou a universalização da escola elementar como forma de converter todos os

indivíduos em cidadãos, isto é, em sujeitos de direitos e deveres.” (SAVIANI, 2013, p. 745).

Ressaltamos a diferença entre a definição de direitos e a sua concretização. Cada

direito corresponde a um dever. Assim, se a educação é anunciada como um direito e

reconhecida pelo poder público como tal, “[...] cabe a esse poder a responsabilidade de

prover os meios para que o referido direito se efetive.” (SAVIANI, 2013, p. 745).

Para além do acesso à escola, o direito à educação abarca também a qualidade e as

condições de oferta da educação. Diante disso, são recorrentes discussões sobre a qualidade

do ensino e a necessidade de efetivação de práticas pedagógicas que promovam a

aprendizagem e o desenvolvimento dos estudantes, assunto versado no tópico a seguir.

3 O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR E DO PROFESSOR NA SOCIEDADE

A educação consiste em um direito social e esse direito abrange não apenas o acesso

à escola, mas também a garantia de uma educação de qualidade para todos. No entanto,

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sabemos que, na configuração social vigente, as pessoas não têm as mesmas oportunidades

de desenvolvimento e de acesso à cultura historicamente acumulada pela sociedade.

Diante dessa realidade, faz-se mister refletir sobre a função social da escola frente à

exclusão social, política e econômica vivenciada pelos sujeitos pertencentes às camadas

populares.

Para tanto, tomamos como referencial teórico a pedagogia histórico-crítica.

Conforme essa teoria, o trabalho educativo consiste no “[...] ato de produzir, direta e

intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e

coletivamente pelo conjunto dos homens.” (SAVIANI, 2011, p. 6). Destarte, a educação

escolar é valorizada, tendo a função de garantir a aprendizagem dos conteúdos que permitam

aos sujeitos compreender e participar da sociedade de forma crítica.

De modo complementar, Libâneo, Oliveira e Toschi (2012) aduzem que a busca pelo

melhor funcionamento das escolas decorre do fato dela se constituir como uma instituição

que preza pela aprendizagem, fazendo-se necessário investir em condições que favoreçam o

processo de ensino e aprendizagem. Nas palavras dos autores,

O êxito da escola, sobretudo da escola pública, depende não apenas do

exercício da democracia no espaço escolar, da gestão participativa, da

introdução de inovações técnicas, mas também, basicamente, da qualidade

cognitiva e operativa das aprendizagens, propiciada a todos os alunos em

condições iguais. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 494)

Os autores assinalam que, em sala de aula, o professor, enquanto agente de

transformação, pode realizar a justiça social.

Por meio da formação cultural – de sólidos conhecimentos e capacidades

cognitivas fortemente desenvolvidas –, os filhos das camadas médias e

pobres da população, podem tomar posse de uma vida mais digna e mais

completa, com maior capacidade operativa (saber fazer, saber agir) e maior

participação democrática. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p.

494)

Na mesma perspectiva, Vasconcellos (2011) afirma que a função social da escola

consiste em “[...] propiciar intencional e sistematicamente a aprendizagem crítica, criativa,

significativa e duradoura dos elementos essenciais da cultura”, favorecendo o

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desenvolvimento humano pleno de todos (VASCONCELLOS, 2011, p. 14). Para tanto, o

professor há que conduzir os alunos à superação da visão do senso comum, de modo que

estes incorporarem o universo cultural acumulado pela humanidade às suas experiências

iniciais (SAVIANI, 2015).

Assim, compete à educação selecionar os elementos culturais que devem ser

assimilados pelos alunos e as formas mais adequadas a essa assimilação, sendo necessária a

distinção entre o principal e o secundário. É considerando essa distinção que Saviani (2011,

p.13) apresenta o conceito de clássico: “O clássico é aquilo que se firmou como fundamental,

como essencial. Pode, pois, constituir-se num critério útil para a seleção dos conteúdos do

trabalho pedagógico.”

Nesse sentido, à medida que a escola dá ao sujeito condições de acesso aos clássicos,

mediante a criação de condições que promovam a aprendizagem dos alunos, ela cumpre com

sua função social, permitindo que as camadas populares transponham a condição de “classe

em si” para a condição de “classe para si”, isto é, a passagem do senso comum à consciência

crítica (SAVIANI, 1996).

Com efeito, preocupar com a educação significa atentar à elevação do nível cultural

das massas; significa, em consequência, admitir que a defesa de privilégios (essência mesma

da postura elitista) é uma atitude insustentável. Isto porque a educação é uma atividade que

supõe a heterogeneidade (diferença) no ponto de partida e a homogeneidade (igualdade) no

ponto de chegada.

Considerando que "Toda relação de hegemonia é necessariamente uma relação

pedagógica", cabe entendermos a educação como um instrumento de luta. Luta para

estabelecer uma nova relação hegemônica que permita constituir um novo bloco histórico

sob a direção da classe fundamental dominada da sociedade capitalista – o proletariado. Mas

o proletariado não pode se erigir em força hegemônica sem a elevação do nível cultural das

massas. Assim, destacamos a importância fundamental da educação e do currículo escolar,

isto é, do conjunto de conhecimentos, hábitos e valores que serão priorizados pela escola,

temática essa que será discutida adiante.

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4 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CURRÍCULO ESCOLAR

O currículo escolar tem integrado a pauta de discussões da educação nos últimos

anos. Entre 2015 e 2016 a sociedade brasileira participou de um amplo debate acerca da

construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Para a criação de um documento

único que estabelecesse as habilidades e competências que os alunos da Educação Básica

precisam desenvolver no decorrer de sua formação escolar, foram realizadas discussões em

âmbito nacional, estadual e municipal em todo o Brasil.

A criação da BNCC ressalta a necessidade de reformulação dos currículos das escolas

brasileiras. Apesar das efervescentes discussões acerca do tema, por meio de Diretrizes,

Parâmetros e Referenciais Curriculares Nacionais, a lógica do currículo disciplinar

instrucionista não sofreu significativas mudanças em sua dimensão prática

(VASCONCELLOS, 2011).

Frente a essa realidade, Vasconcellos (2011) pontua a necessidade de que se

considere a atividade humana como princípio educativo, no contexto do processo de ensino

e aprendizagem, isto é, “[...] da pessoa, no processo educativo escolar (e não dos conteúdos

ou metodologias, que são meios e não fins [...]“ (VASCONCELLOS, 2011, p. 13).

O autor aduz que “A centralidade da pessoa humana no currículo nos leva a indagar:

Como nos tornamos seres humanos melhores? Este é o grande tema da escola na perspectiva

do currículo que assume a atividade humana como princípio educativo.”

(VASCONCELLOS, p. 14-15)

No campo da prática, a grande pergunta é: como organizar a escola de

forma que contribua concretamente para a humanização de todos? Como

fazer com que a escola não seja uma forma de reproduzir o que há de pior

na sociedade? O currículo baseado na atividade humana como princípio

educativo é voltado para a formação humana plena. (VASNCONCELLOS,

2011, p. 15)

Vasconcellos (2011, p. 26) afirma que “existem muitos conceitos de currículo, cada

um marcado por sua respectiva visão de mundo e posicionamento pedagógico”. Libâneo,

Oliveira e Toschi (2012, p. 489) também assinalam que há uma gama de definições do termo,

podendo consistir: no “[...] conjunto de disciplinas, resultados de aprendizagem pretendidos,

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experiências que devem ser proporcionadas aos estudantes, princípios orientadores da

prática, seleção e organização da cultura”.

Na perspectiva dos autores, o currículo há que ser compreendido como “[...] um

modelo de seleção da cultura produzida pela sociedade, para a formação dos alunos; é tudo

o que se espera que seja aprendido e ensinado na escola.” (LIBÂNEO; OLIVEIRA;

TOSCHI, 2012, p. 489).

Para os autores, existem três tipos de manifestações curriculares: o currículo formal,

o currículo real e o currículo oculto. O primeiro consiste nas diretrizes curriculares, no

conjunto de objetivos e de conteúdos de cada disciplina, o qual é estabelecido pelos sistemas

de ensino. Os Parâmetros Curriculares Nacionais e as propostas curriculares dos estados e

municípios são exemplos desse tipo de currículo.

Com relação à segunda manifestação, o currículo real, Libâneo, Oliveira e Toschi

(2012) definem-no como aquele que de fato se concretiza em sala de aula, em decorrência

do projeto pedagógico e dos planos de ensino. Conforme os autores, “É tanto o que sai das

ideias e da prática dos professores, da percepção e do uso que eles fazem do currículo formal,

como o que fica na percepção dos alunos.” (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p.

490).

Finalmente, no tocante ao currículo oculto, Libâneo, Oliveira e Toschi (2012, p. 490)

afirmam que este é referente às

[...] influências que afetam a aprendizagem dos alunos e o trabalho dos

professores e são provenientes da experiência cultural, dos valores e

significados trazidos de seu meio social de origem e vivenciados no

ambiente escolar – ou seja, das práticas e experiências compartilhadas na

escola e na sala de aula.

Ele é assim denominado, tendo em vista que sua manifestação não é clara, precisa,

nem tampouco está explícita no planejamento do professor, mesmo constituindo-se em um

importante fator de aprendizagem. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012).

Nesse sentido, a cultura escolar constitui-se em um relevante elemento curricular,

visto que abarca um conjunto de ações que interferem no currículo real, tais como:

[...] a linguagem dos professores, as atitudes que tomam com relação às

diferenças individuais dos alunos, o modo pelo qual estes se relacionam

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entre si, as atitudes nas brincadeiras e nos jogos, a higiene e a limpeza nas

dependências da escola [...], entre outros. (LIBÂNEO; OLIVEIRA;

TOSCHI, 2012, p. 491).

A partir do exposto, entendemos que as aprendizagens não formais são tão

importantes quanto as formais. Portanto, no tocante ao currículo oculto, afirmamos que “[...]

representa tudo o que os alunos aprendem pela convivência espontânea com as várias

práticas, atitudes, comportamentos, gestos e percepções em vigor no meio social e escolar.”

(LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 491).

Assim, a composição da proposta curricular da escola demanda uma compreensão de

currículo para além da definição de conteúdos disciplinares. Faz-se mister entendê-lo como

o conjunto dos diversos tipos de aprendizagens, isto é:

[...] aquelas exigidas pelo processo de escolarização, mas também os

valores, comportamentos, atitudes adquiridas nas vivências cotidianas na

comunidade, na interação entre professores, alunos e funcionários, nos

jogos e no recreio e em outras atividades concretas que acontecem na

escola, as quais denominamos ora de currículo real, ora de currículo oculto.

(LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 491).

No contexto desta pesquisa, que tem como objeto de estudo a relação entre currículo

escolar, pobreza e ação docente, tecemos considerações acerca do currículo e das situações

de aprendizagem propiciadas aos sujeitos que se encontram em situação de pobreza e de

extrema pobreza.

De acordo com Arroyo (2012), a chegada dos coletivos pobres à escola reconfigurou

o sistema público tornando-o popular, de modo a ter sua função social redefinida.

Passa a se pensar na tradição civilizatória da empresa colonial. Uma

autoimagem que vem sendo reforçada com a presença massiva dos

coletivos populares nas escolas vistos como carentes de valores, de atitudes

e condutas morais. (ARROYO, 2012, p. 163).

Diante disso, o autor sugere que se busque ter clareza acerca de como os alunos

populares foram e são vistos. Para ele, essa atitude pode ajudar a reinterpretar a história da

instrução e do sistema público de ensino, no sentido de reconfigurar a função social da escola

pública, de seus currículos, das políticas e das diretrizes curriculares (ARROYO, 2012).

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Arroyo (2012) ainda aduz que "A história do sistema escolar público e das políticas

deve ser reinterpretada a partir da presença dos coletivos populares, de como foram e

continuam sendo pensados.” (ARROYO, 2012, p. 163).

O autor assinala que a escola pública não permanece inalterada. Ela se redefiniu e foi

repensada a partir das formas de pensar da "nova clientela”, os trabalhadores, os pobres, os

negros, de modo que o sistema público de ensino básico passou a ter “[...] a cor, os traços,

até a pobreza física e de condições de infância, adolescência pobres que foram teimando em

entrar nas últimas décadas.” (ARROYO, 2012, p. 164).

Diante do exposto, urge que os profissionais da educação, que lidam diariamente

com o currículo – tanto o currículo estabelecido, como o real e o oculto - caminhem no

sentido de introduzirem conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos nos currículos da

escola pública, dando condições aos pobres de entenderem a sua condição de pobreza e de

lutarem por seus direitos, pela garantia de uma vida digna e humana.

Para tanto, é preciso que a escola, além de dar ênfase ao passado (ao conhecimento

historicamente acumulado) e ao futuro (ao projeto de vida e de sociedade), problematize as

situações e contradições do presente, vivenciadas pelos estudantes (VASCONCELLOS,

2011).

[...] e o cotidiano concreto dos alunos? Não deveria ser uma temática

constantemente valorizada? Que espaço questões como respeito, liberdade,

sentimentos, relacionamentos, sentido de vida, projeto de vida, amizade,

dramas pessoais e familiares, condições de existência (alimentação, sono,

moradia, transporte, etc.), sexualidade, tem ocupado no currículo? (que

fique bem claro: não de forma pasteurizada em “tema transversais”, mas

criticamente, como tema do diálogo, da relação humana autêntica).

(VASCONCELLOS, 2011, p. 40)

Destarte, faz-se mister que se resgate o sentido da escola “[...] como instrumento de

concretização da res publica (do latim, coisa pública), e aproveitar o espaço de liberdade que

ali temos para ousar no currículo, a favor da aprendizagem de cada um e de todos os alunos.”

(VASCONCELLOS, 2011, p. 14).

Assim, ao elaborar a sua proposta curricular, é importante que a instituição escolar

considere um conjunto de princípios que nortearão a seleção dos conhecimentos a serem

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11 Trabalho de Conclusão de Curso

priorizados no currículo formal e que auxiliarão na definição das condutas e valores que

serão adotadas pela comunidade escolar.

Tais princípios são: a democracia e a formação solidária e cidadã; a articulação

entre culturas (cultura formal e cultura popular); o respeito à interculturalidade, valorizando

a diversidade cultural e as diferentes origens sociais dos alunos, de modo a combater o

racismo e qualquer forma de discriminação e preconceito; a identificação de modos de vida

e de hábitos que carecem de mudança, ao se considerar o projeto civilizatório; o

fortalecimento da subjetividade dos alunos, desenvolvendo neles a autonomia; a

interdisciplinaridade, por meio do desenvolvimento de projetos que coordenem os diversos

campos do conhecimento. (LIBÂNEO, OLIVEIRA, TOSCHI; 2012).

É nesse sentido que defendemos a necessidade de que a escola promova situações de

aprendizagem que permitam aos alunos desenvolverem o pensamento crítico acerca das

mazelas sociais, tais como a pobreza e a desigualdade, compreendendo o seu impacto para

a vida das pessoas, de modo a buscarem meios para a superação de tais realidades.

5 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

A pesquisa de campo foi realizada em uma escola localizada a sudoeste do Mato

Grosso do Sul, em um dos municípios mais pobres do estado. A instituição, localizada em

um bairro carente da cidade, é pública e atende alunos do Ensino Fundamental I e II, nos

períodos matutino e vespertino, bem como discentes da Educação de Jovens e Adultos (EJA)

no período noturno. Esta pesquisa tomou como foco de estudo, docentes que trabalham com

turmas do Ensino Fundamental I (anos iniciais). Nessa etapa, há 418 alunos matriculados em

um total de 17 turmas.

Tendo em vista que este estudo articula os temas currículo escolar, ensino e pobreza

e considerando que o Bolsa Família (BF) é um programa do governo federal destinado a

famílias de baixa renda – cujo objetivo é combater a pobreza e a extrema pobreza mediante

a redistribuição de renda –, organizamos uma tabela que apresenta o número e a porcentagem

de alunos da instituição que são beneficiados pelo referido programa.

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12 Trabalho de Conclusão de Curso

Tabela 1 – Número de turmas, alunos e porcentagem dos beneficiados pelo Bolsa Família.

TURNO

NÚMERO

DE

TURMAS

NÚMERO DE

ALUNOS

NÚMERO DE ALUNOS

BENEFICIADOS PELO

B.F.

PORCENTAGEM

MATUTINO 9 224 159 70,9%

VESPERTINO 8 194 145 74,7%

TOTAL 17 418 304 72,7%

Fonte: Elaboração nossa, com base nos dados disponíveis no sistema da escola.

Conforme apresenta a Tabela 1, no período matutino, 70,9 % das crianças são

beneficiadas pelo BF. Já no turno vespertino essa porcentagem é quase 5% maior, sendo de

74,7%. Considerando a totalidade dos alunos da instituição, 72,7% encontram-se inscritos

no Programa.

Com base na porcentagem de alunos em situação de pobreza e de extrema pobreza

apresentados na Tabela 1, realizamos a pesquisa de campo, por meio de entrevistas

semiestruturadas, com 13 professores do turno vespertino, sendo oito regentes, que

trabalham com as disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia e

Ciências e cinco que ministram disciplinas por área, sendo elas: Oficina Pedagógica,

Produção Interativa, Arte, Espanhol e Educação Física.

As questões das entrevistas versaram sobre os temas pobreza, educação e currículo

escolar, sendo que as questões objetivaram averiguar a concepção docente acerca da

pobreza, identificar o entendimento dos docentes sobre a função social da escola e do

professor e de que modo a educação pode contribuir no sentido de superar a pobreza.

A partir da pesquisa de campo, estabelecemos as seguintes categorias de análise:

concepção de pobreza; relação entre educação e pobreza; função social da escola e do

professor e organização do currículo escolar na perspectiva de superação da pobreza.

No tocante à primeira categoria, os docentes evidenciaram diversos conceitos, sendo

que todos eles atrelam a pobreza “à falta de”, a saber: falta de expectativa de vida; miséria,

falta de recursos e acesso à saúde, educação, alimentação; falta de condições dignas de

sobrevivência e de sustento; falta de oportunidade e de acesso à instrução; miséria social,

escassez, falta de condições e de informações; falta de condições financeiras; necessidade

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13 Trabalho de Conclusão de Curso

do básico, como alimentação, moradia, vestimentas, mas também a falta de acesso aos bens

culturais e tecnológicos.

Tais definições de pobreza são consoantes com o referencial teórico que suporta este

trabalho, que considera a pobreza não atinente apenas à condição financeira, mas também

ao acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade. Arroyo (2015) afirma que a

pobreza, para além da escassez de recursos materiais, abarca a privação das condições mais

básicas para viver de forma justa e digna como ser humano. Nas palavras do autor, "Aos

pobres são negados os direitos sociais mais básicos, como alimentação, teto, renda e

trabalho, os quais é atribuição do Estado garantir” (ARROYO, 2015, p. 13).

Todos os docentes corroboram com a existência de uma relação entre educação e

pobreza, de modo a conceberem a educação como o caminho necessário para o sucesso na

vida e a considerarem a interferência da pobreza no acesso das crianças aos bens culturais.

Essas ideias podem ser percebidas na fala de dois professores: “Quanto maior é a falta de

conhecimento, mais dificuldade se passa na vida e quanto mais conhecimento se tem, mais

oportunidade de superar a pobreza” (PROFESSOR 1); “A educação é o norte. Eu nunca

consegui identificar uma pessoa que foi muito bem-sucedida se não foi um aluno que teve a

educação como base na vida. Sem a educação, eu não vejo uma forma de alcançarmos

melhorias.” (PROFESSOR 5)

Tais afirmações apresentadas pelos docentes é condizente com a assertiva de Rego e

Pinzani (2015, p. 7) ao assinalarem que

[...] a pobreza leva à falta de instrução, uma vez que as crianças são

obrigadas a deixar a escola para trabalhar e ajudar a família, enquanto a

falta de instrução e qualificação perpetua a pobreza, pois, não há como

entrar no mundo do trabalho e sair dessa condição.

Um professor fez uma consideração diferenciada acerca da relação entre educação e

pobreza, explicitando que nem sempre a condição financeira interfere no rendimento escolar,

na aprendizagem dos alunos: “Tem gente que é muito pobre, que passa dificuldades

financeiras, e que é muito inteligente” (PROFESSOR 3). Essa ideia foi justificada tendo

como base o esforço de cada indivíduo.

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14 Trabalho de Conclusão de Curso

Há que se tomar cuidado com esse pensamento, pois ele pode levar o docente a pensar

que o sujeito obtém êxito somente por seu esforço pessoal, desconsiderando os fatores de

desigualdade pertinentes ao contexto do aluno. Sabemos que o interesse e a prontidão são

fundamentais para o sucesso do processo de ensino e aprendizagem, todavia, o querer e o

esforço são insuficientes, pois nem todos conseguem chegar ao patamar desejado, mesmo se

esforçando muito para isso.

Arroyo (2015) pontua que a responsabilização do pobre por seu fracasso escolar

desconsidera os definidores de sua condição e que a cultura escolar tende a “[...] privilegiar

os valores e as atitudes de cada pessoa como definidores de sua condição social.”

(ARROYO, 2015, p. 14).

Com relação à função social da escola e do professor, a concepção docente é

unânime: a escola é a instituição responsável pelo ensino, cabendo ao professor o papel de

transmitir conhecimentos. Em especial, destacamos a fala de dois professores: “Transmitir

o conhecimento científico, os conhecimentos do currículo, ensinando os alunos a serem

críticos.” (PROFESSOR 8); “Formar o cidadão, dando-lhe capacidade para que tenha uma

vida digna através da educação.” (PROFESSOR 12).

Cabe ressaltar que três docentes assinalaram que há uma contradição entre o ideal e

o real no que tange à função docente, pois, o professor acaba tendo que assumir a função de

educar as crianças moralmente, educação essa que, conforme a perspectiva dos docentes,

deveria vir de casa. Um dos professores disse:

Eu só queria ensinar, não queria me envolver com problemas como

indisciplina, falta de interesse, ensino da moral. Ganhei essa educação dos

meus pais e eu transmiti para os meus filhos. Professor nenhum perdeu

tempo com a gente tendo que ensinar sobre roubo, por exemplo.

(PROFESSOR 4)

Tendo em vista que a escola é uma instituição integrada à sociedade, ela não está

alheia às mazelas que acontecem fora dela. A comparação linear da realidade de diferentes

sujeitos que viveram em condições socioeconômicas e tempos distintos, pode levar a

concepções equivocadas e infundadas.

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15 Trabalho de Conclusão de Curso

Além disso, o acesso dos coletivos pobres à escola reconfigurou o sistema público

tornando-o popular. Conforme Arroyo (2012) os coletivos populares têm sido vistos, no

contexto escolar, como carentes de valores, atitudes e condutas morais. Frente a essa

realidade, o autor sinaliza a necessidade de que os atores escolares busquem ter clareza

acerca de como os alunos populares foram e são vistos para que, assim, a história da instrução

e do sistema público de ensino seja reinterpretada, com vistas à redefinição da função social

da escola pública, de sua organização e das políticas e diretrizes curriculares que a sustentam

(ARROYO, 2012).

Na perspectiva de superação da pobreza, os professores afirmaram que é relevante

trabalhar com o tema na escola, principalmente em decorrência da realidade local. “É

importante trabalhar com esse assunto até para eles conhecerem e diferenciarem a pobreza

da riqueza, para verem os dois lados da moeda e também para quererem mudar de vida”

(PROFESSOR 3). Todavia, pontuaram que o termo “pobreza” deveria ser substituído por

outro, como por exemplo pela expressão “desigualdade social”, pois a palavra “pobreza”,

segundo eles, causa um incômodo.

Diante disso, questionamos: Por qual motivo os docentes consideram não ser

adequado utilizar a palavra pobreza nas práticas pedagógicas desenvolvidas junto aos

alunos? Por que esse termo causa incômodo e há que ser substituído?

Levantamos a seguinte hipótese: A pobreza em si é ruim, ela remete à “falta de”, à

escassez, sendo difícil abordá-la cientificamente sem que haja formação. Essa dificuldade

confirma a assertiva explicitada na introdução deste trabalho de que é ínfima a quantidade

de docentes da Educação Básica que conhece a pobreza a partir da perspectiva científica.

Outro fator do estranhamento do uso da palavra “pobreza” pode estar associado ao

preconceito a que sofrem os sujeitos que se encontram nessa condição, causando um

desconforto no professor ao discutir o assunto em sala de aula.

Ao serem questionados sobre os conteúdos que consideram relevantes para a

aprendizagem do aluno, com vistas à superação da pobreza, a priori, a totalidade dos

professores encontrou dificuldade.

Em um segundo momento, eles apresentaram em suas respostas possibilidades de

metodologias e encaminhamentos didáticos relacionados à pobreza, são eles: produção de

textos que abordem sobre os temas “pobreza e desigualdade social”, principalmente nas

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16 Trabalho de Conclusão de Curso

disciplinas de produção interativa e língua portuguesa; na disciplina de matemática,

promoção do estudo de dados/índices disponibilizados pelo IBGE e discussão do conceito

de valor durante o ensino do Sistema Monetário; em ciências, contemplar discussões sobre

alimentação saudável, higiene do corpo e do entorno e reciclagem; em história, voltar no

passado e fazer um paralelo entre os diferentes tipos de organização social

(feudalismo/capitalismo); no contexto da disciplina de geografia, destacar as localidades

mais pobres, evidenciando as dificuldades enfrentadas pelas pessoas que vivem nessas

regiões; valorização das produções artísticas dos alunos; elaboração e implementação de

projetos, em parceria com a assistência social, que versem sobre a relação entre educação e

trabalho, saúde, reciclagem; estudo de imagens que retratem a pobreza, pesquisa de campo,

roda de conversa; estudo dos temas ética e cidadania e dos pensadores/filósofos.

Os professores também pontuaram a possibilidade de o assunto ser trabalhado de

modo interdisciplinar, como tema transversal. “É possível trabalhar com esse tema em

qualquer disciplina, porque ele é interdisciplinar.” (PROFESSOR 3; PROFESSOR 5;

PROFESSOR 8; PROFESSOR 13).

Além do exposto, dois professores sugeriram aulas no contra turno, todavia em

perspectivas diferentes: um sugeriu aulas no período contrário de aulas com o objetivo de

ocupar as crianças no tempo em que ficam ociosos. O outro enfocou o preparo dessas

crianças para o futuro, visando a formação para o trabalho por meio de cursos

profissionalizantes.

Um dos entrevistados ressaltou a necessidade de o professor passar suas próprias

experiências de vida para os alunos, mostrando, principalmente àqueles que não gostam de

estudar, que “Se você não corre atrás dos seus objetivos você não vai conseguir nada.”

(PROFESSOR 11). O docente ainda assinalou que, em sua disciplina é possível trabalhar a

pobreza por meio de atividades práticas que recompensem os alunos conforme suas ações,

fazendo eles entenderem que “se não estão fazendo nada, não vão ter resultado algum.”

(PROFESSOR 11).

Mais uma vez foi possível identificar a presença da cultura meritocrática na fala

docente, a qual acaba por responsabilizar o pobre por seu fracasso escolar, ignorando os

definidores de sua condição.

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17 Trabalho de Conclusão de Curso

Para além da discussão explícita do tema, nenhum professor considerou que o

cumprimento de sua função social, que é de ensinar, também cria meios para a superação da

pobreza. Conforme o referencial teórico apregoado neste trabalho, o docente pode contribuir

com a justiça social oportunizando aos alunos o acesso a sólidos conhecimentos e o

desenvolvimento de capacidades cognitivas de qualidade, elementos essenciais para a

formação do sujeito ativo na sociedade, que luta por seus direitos e cumpre com seus deveres.

Nesse sentido, o currículo da escola pública deve contemplar conhecimentos

científicos, artísticos e filosóficos, oferecendo condições aos pobres de entenderem a sua

condição de pobreza e de lutarem por seus direitos, pela garantia de uma vida digna e

humana (ARROYO, 2012).

Além disso, o currículo escolar há que ser construído na perspectiva do

reconhecimento da atividade humana como princípio educativo, colocando o sujeito no

cerne do processo de ensino e aprendizagem, de modo a problematizar as situações e

contradições vivenciadas pelos alunos, levando-os, por meio do diálogo, a pensarem

criticamente a sua realidade de vida (VASCONCELLOS, 2011).

Apesar de considerarem as reflexões sobre o tema relevantes e de terem apresentado

várias possibilidades de intervenção com a temática, nenhum dos professores da instituição

trabalhou o assunto com objetivos previamente definidos durante suas aulas – ou porque

nunca haviam pensado nessa possibilidade ou pelo fato de a temática não estar explícita nos

conteúdos do currículo formal, não consistindo, portanto em um conteúdo de cunho

obrigatório.

Todavia, os docentes assinalaram que a pobreza foi trabalhada por meio de conversas

informais durante momentos de reflexão sobre a importância da escola e da educação para a

vida, como também por meio de conversas que objetivavam combater o bullying, sofrido

pelos alunos mais carentes, devido às suas vestimentas e hábitos de higiene.

Dois professores relataram que acabaram perpassando pela temática durante o estudo

dos tipos de moradia. Segundo o Professor 4, “Eles [os alunos] perceberam que existem

famílias que têm melhores condições de vida do que outras. Eles viram a diferença entre a

situação de um índio, que moram na oca, e de um príncipe, que mora em um palácio. A

criança se vê na situação do pobre e queria estar na situação do rico.”

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18 Trabalho de Conclusão de Curso

Pela fala dos professores, foi possível verificar que os motivos e contextos que

ocasionam essas diferenças e seus impactos para a vida das pessoas não foram explorados,

o que pode levar a criança a pensar que essa é uma realidade inalterada, impossível de ser

reconfigurada.

Um dos docentes entrevistados relatou uma atividade realizada no final do ano letivo,

a qual teve como propósito desenvolver a empatia e a solidariedade – sentimentos

enaltecidos durante o natal. A proposta da atividade foi de que cada aluno produzisse um

texto contando sua realidade de vida, o qual seria lido por um colega da classe, que se

colocaria no lugar do aluno e buscaria encontrar alternativas para tornar a vida desse colega

melhor.

Mesmo que os docentes não tenham demonstrado compreensão das dimensões do

currículo (formal, real e oculto), foi possível constatar que a pobreza tem sido trabalhada na

escola, ainda que de modo superficial e insuficiente, a partir de conversas informais. Assim,

apesar de a pobreza não consistir em um conteúdo do currículo formal, ela se faz presente

durante as aulas nos currículos real e oculto. Entretanto, o trabalho com a “pobreza” é

esporádico e superficial, sendo um tema pouco explorado na escola, principalmente quando

partimos da perspectiva da superação da mesma e da transformação da realidade.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir deste estudo, constatamos que, para os professores, a pobreza consiste em

uma realidade de privação de condições tanto econômicas – que incidem na qualidade de

moradia, no acesso à saúde e no tipo de alimentação –, como de acesso aos bens culturais.

Todavia, encontramos algumas contradições nos relatos dos professores.

Apesar de a maioria deles afirmar que nunca trabalhou sistematicamente o assunto

com os alunos, os 13 professores consideraram relevante que a escola promova situações de

aprendizagem que discutam a pobreza, sua origem e seus impactos para a vida das pessoas.

Além disso, assinalaram que o trabalho com o assunto demanda formação docente sobre a

temática.

Ainda que os docentes tenham apresentado concepções de pobreza para além da

escassez de recursos financeiros, há uma forte defesa da cultura meritocrática, que se

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19 Trabalho de Conclusão de Curso

fundamenta na ideia de que o sucesso escolar dos alunos depende unicamente de seus

esforços, desconsiderando os condicionantes sociais a que esses alunos estão expostos.

Há, portanto mais uma contradição: ao mesmo tempo em que consideram que a

pobreza abarca uma gama de aspectos, e que alguns deles independem da vontade e do

esforço subjetivo, afirmam que o êxito escolar e as mudanças nas condições de vida, se

fazem possíveis pelo esforço do aluno, pela sua vontade em querer “ser alguém na vida”.

Nesta perspectiva, há a culpabilização dos indivíduos por sua situação, justificando as

desigualdades sociais como escolhas de cada um, naturalizando o modo de organização da

sociedade em classes.

Outro paradoxo que destacamos é o fato de que, apesar das dificuldades dos

professores em definirem os conteúdos relativos à pobreza (na perspectiva de sua superação),

eles apresentaram metodologias e possibilidades de intervenções pedagógicas em sala de

aula que, se incorporadas ao processo de ensino e aprendizagem de modo interdisciplinar e

comprometido com o projeto emancipatório de educação, podem gerar mudanças na forma

como os coletivos populares são vistos. Ou seja, possibilitando o desenvolvimento nos

alunos da compreensão crítica acerca das desigualdades sociais e de uma concepção de

mundo emancipadora, no sentido da conscientização para a transformação da sociedade

capitalista.

Ao considerarmos as relações entre a pobreza e extrema pobreza, o currículo, a

função da escola e o papel do professor a partir dos pressupostos teóricos da pedagogia

histórico-crítica, ressaltamos a necessidade de que os docentes, em colaboração com a

equipe de gestão, participem de momentos de estudo e discussão sobre a problemática e seus

desdobramentos na vida das pessoas. De modo a repensarem o currículo escolar e os

encaminhamentos didáticos, frente à realidade vivenciada pelos alunos da instituição.

Pontuamos a necessidade de que esses momentos de estudo relativos à pobreza

partam de uma perspectiva crítica, considerando as dimensões cientifica, filosófica e artística

do conhecimento. Oferecendo, assim, subsídios teóricos-metodológicos para a

transformação e aprimoramento das práticas pedagógicas e que possibilitem a compreensão

da função social da escola pública, de sua organização e das políticas e diretrizes curriculares

que a sustentam.

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20 Trabalho de Conclusão de Curso

À guisa de conclusão, constatamos que são ínfimas as intervenções pedagógicas com

alunos dos anos iniciais ensino fundamental que promovem reflexões sobre a pobreza de

modo planejado e sistemático, debatendo suas causas e consequências para a vida das

pessoas.

Diante disso, entendemos que, ao inaugurar o debate na instituição, reunindo

concepções e possibilidades de intervenções pedagógicas que, possivelmente, os docentes

não refletiriam durante o desenvolvimento de suas atividades cotidianas, esta pesquisa

iniciou o processo de ação-reflexão-ação nessa unidade escolar. Além disso, defendemos

que as discussões apresentadas neste trabalho são válidas no sentido de que apontam

possibilidades de trabalho com a temática em diferentes contextos escolares, precipuamente

naqueles cujos alunos encontram-se em situação de pobreza e de extrema pobreza.

7 REFERÊNCIAS

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21 Trabalho de Conclusão de Curso

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