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Trabalho de Conclusão de Curso A ARTE COMO MECANISMO TRANSFORMADOR: UMA ABORDAGEM SOCIAL NO SESC LAGEADO-MS. Rita de Cássia Ribeiro Benites 1 RESUMO Esta pesquisa procurou compreender como a arte torna-se um meio de transformação social para crianças e adolescente em vulnerabilidade. O objeto de estudo centralizou-se nos alunos da Unidade SESC Lageado em Campo Grande- MS, que possui gratuidade no acesso a cursos de música e dança e que fazem parte diretamente de ações culturais. O objetivo do estudo foi analisar as vivências culturais como transformadoras do modo de vida dos alunos do SESC Lageado para desenvolver estratégias no combate a pobreza e a desigualdade social. Conclui- se que a participação ativa em um ambiente cultural traz autonomia ao educando, provocando-o e instigando-o ao conhecimento amplo e de sua própria realidade social e, logo, transformando-a. Palavras-chave: Arte. Desigualdade. Transformação. 1 INTRODUÇÃO A formação em arte educação habilita observar os benefícios das manifestações artísticas para os seres humanos, os quais passam a exercer uma vida mais aprazível seja através do teatro, da música, da dança, da pintura, etc. As pessoas que, eventualmente, se dedicam aos projetos culturais têm mais percepção artística do que as pessoas que não se envolvem nas diferentes formas de expressão cultural, e é este o foco da pesquisa: nas vivências que as pessoas de baixa renda têm ao participarem ativamente de cursos de invento cultural e, sobretudo se este processo possibilitou o reconhecimento ou uma transformação social. A delimitação espacial da pesquisa são as ações culturais oferecidas pelo Serviço Social do Comércio SESC, especificamente a Unidade de Assistência Cultural SESC Lageado, localizado na cidade de Campo Grande/MS, com representativa participação da população e por suas propostas de ensino e aprendizagem, apoio a formação cultural, metodologias, além da região e clientela. A análise será norteada pelas experiências que os alunos em vulnerabilidade social possuem ao frequentarem uma escola cultural. Localizado na cidade de Campo Grande/MS, com representativa participação da população. A instituição 1 Graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Pós- Graduanda em Educação, Pobreza e Desigualdade Social pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected]

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Trabalho de Conclusão de Curso

A ARTE COMO MECANISMO TRANSFORMADOR: UMA ABORDAGEM

SOCIAL NO SESC LAGEADO-MS.

Rita de Cássia Ribeiro Benites1

RESUMO

Esta pesquisa procurou compreender como a arte torna-se um meio de transformação social

para crianças e adolescente em vulnerabilidade. O objeto de estudo centralizou-se nos alunos

da Unidade SESC Lageado em Campo Grande- MS, que possui gratuidade no acesso a cursos

de música e dança e que fazem parte diretamente de ações culturais. O objetivo do estudo foi

analisar as vivências culturais como transformadoras do modo de vida dos alunos do SESC

Lageado para desenvolver estratégias no combate a pobreza e a desigualdade social. Conclui-

se que a participação ativa em um ambiente cultural traz autonomia ao educando,

provocando-o e instigando-o ao conhecimento amplo e de sua própria realidade social e,

logo, transformando-a.

Palavras-chave: Arte. Desigualdade. Transformação.

1 INTRODUÇÃO

A formação em arte educação habilita observar os benefícios das manifestações

artísticas para os seres humanos, os quais passam a exercer uma vida mais aprazível seja

através do teatro, da música, da dança, da pintura, etc.

As pessoas que, eventualmente, se dedicam aos projetos culturais têm mais

percepção artística do que as pessoas que não se envolvem nas diferentes formas de

expressão cultural, e é este o foco da pesquisa: nas vivências que as pessoas de baixa renda

têm ao participarem ativamente de cursos de invento cultural e, sobretudo se este processo

possibilitou o reconhecimento ou uma transformação social.

A delimitação espacial da pesquisa são as ações culturais oferecidas pelo Serviço

Social do Comércio – SESC, especificamente a Unidade de Assistência Cultural SESC

Lageado, localizado na cidade de Campo Grande/MS, com representativa participação da

população e por suas propostas de ensino e aprendizagem, apoio a formação cultural,

metodologias, além da região e clientela. A análise será norteada pelas experiências que os

alunos em vulnerabilidade social possuem ao frequentarem uma escola cultural. Localizado

na cidade de Campo Grande/MS, com representativa participação da população. A instituição

1 Graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Pós- Graduanda em

Educação, Pobreza e Desigualdade Social pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail:

[email protected]

Trabalho de Conclusão de Curso

oferece possibilidades de aprendizagem e conhecimento artístico nos diversos âmbitos da

arte.

O SESC Lageado se destaca, sobretudo, por ser um centro cultural de apoio à

comunidade carente e oferece curso de dança e educação musical. É importante observar que

esse tipo de curso, a princípio, não desperta interesse da população de baixo poder aquisitivo,

porém, como forma de experiência, o SESC implantou os cursos e, surpreendentemente,

houve significativa receptividade por parte da comunidade.

O contraste entre a expectativa de baixa por parte dos alunos e a realidade pós-

inscrições, com número superior ao esperado pelos administradores, caracteriza-se como um

objetivo de estudo que instiga a compreender como as vivências culturais beneficiam o

educando na construção de identidade, no crescimento pessoal e no seu empoderamento.

O objetivo geral do artigo é “Analisar as vivências culturais como transformadoras

do modo de vida dos alunos do SESC Lageado”. Os objetivos específicos caracterizam-se por

entender como a formação cultural se desenvolve; buscar experiências positivas que

evidenciem a transformação do indivíduo atuante nos meios culturais.

A metodologia de aplicação da pesquisa está referenciada em revisão bibliográfica

sobre os benefícios das vivências artísticas e sobre a história do SESC Lageado e entrevistas

com os profissionais da unidade. Depois deste primeiro contato para levantamento de dados,

foram realizadas entrevistas com os alunos da unidade que relataram suas próprias

experiências com o curso.

As reflexões sobre a importância de se fomentar a arte como meio cultural e como

forma de conhecimento serão retiradas do livro “A Necessidade da Arte” de Ernst Fischer e

do livro “Psicologia da Arte” de Lev Vigostki, e também para auxiliar nos esclarecimentos

sobre o conceito de arte e cultura.

Elliot Eisner em seu livro “Estrutura e mágica no ensino da arte” ajuda a entender

sobre a contribuição da arte na vida das pessoas, e a forma positiva como ela se manifesta. E

os autores Izabel Marques e Fábio Brazil em seu livro “Arte em questões” trazem

posicionamentos sobre a arte dentro de um contexto social e sua funcionalidade nele

entrelaçando o meio transformador da arte e da educação também salientada por Paulo Freire.

Basicamente, esta pesquisa busca através de referenciais teóricos, análises e

discussões não só refletir sobre arte e cultura, mas também perceber como ela se manifesta

Trabalho de Conclusão de Curso

em um espaço de vulnerabilidade social ao entender o seu papel como um meio

transformador de realidades.

2 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO SESC

O SESC é uma das Instituições do Sistema “S” com serviços destinados ao

comerciário2. O Sistema S é o termo pelo qual as entidades de apoio a diversas categorias

profissionais são conhecidas. Estas recebem recursos do governo federal que são

administradas pela iniciativa privada.

As corporações do Sistemas S são mantidas pelas empresas que contribuem com um

percentual variável sobre um valor total de 5,8% instituído pelo decreto lei nº 3.048/99

destinado à estas corporações, tomando como base de cálculo a folha de pagamento das

empresas, onde o Instituto Nacional de Seguro Social - INSS se incumbe de arrecadar e

repassar os valores para estas entidades. Atualmente compõe o Sistema S:

SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial.

SESC – Serviço Social do Comércio.

SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial.

SESI – Serviço Social da Indústria.

SENAR – Serviço Nacional de Aprendizagem Rural.

SENAT – Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte.

SEST – Serviço Social do Transporte.

SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas.

SESCOOP – Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo.

O SESC surgiu em meados do século XX, entre um contexto pós-guerra e queda do

estado novo de Getúlio Vargas, em meio a reformas trabalhistas. Ele é fundado inicialmente

para conter tensões entre trabalhadores e empregadores, através do decreto-lei nº 9.853 de 13

de setembro de 1946 que atribui a Confederação Nacional do Comércio a criar o Serviço

Social do Comércio – SESC, oferecendo serviços de assistência ao trabalhador.

A implantação do SESC em Mato Grosso do Sul o SESC ampliou a oferta de

serviços, considerando a demanda do público em diferentes segmentos, tais como: saúde,

educação, lazer, etc. A empresa oferece inúmeros serviços ao público, que se estende por

2 Comerciário: trabalhador do comércio; Vendedor.

Trabalho de Conclusão de Curso

ordem de prioridade: ao comerciário, ao funcionário, aos dependentes (filho, cônjuge, pai e

mãe) e ao usuário (população em geral). A forma de organização e proposta de serviços varia

de acordo com cada município e estado.

Em Campo Grande, capital do estado, foi criada a primeira unidade em 1947 e hoje se

destaca na promoção de diversos serviços como saúde, esporte, lazer, cultura e assistência

social, este último de arrecadação de alimentos como o Programa Mesa Brasil e ações

culturais oferecidos à população como, por exemplo, balé, pintura, educação musical, etc.

Atualmente, estes serviços estão distribuídos por unidades físicas espalhadas pela cidade e

por setor: Na unidade SESC Horto funcionam a escola, o restaurante, a cafeteria e a

biblioteca. No SESC Camilo Boni são prestados serviços destinados ao lazer, recreação,

nutrição, restaurante e também esporte e academia. No SESC Saúde tem serviços

odontológicos e o SESC Lageado conta exclusivamente com cursos de assistência cultural.

Dentro do setor cultural, o indivíduo pode usufruir dos serviços, além de participar

dos eventos culturais e apresentações artísticas como dança, teatro, exposições, etc. Alguns

serviços oferecidos possuem gratuidade, outros seguem uma linha de desconto que obedecem

uma ordem de prioridade onde inicia-se pelo comerciário, mas alcança também o cidadão

comum. Os preços dos serviços se destacam por terem menores custos comparados com o

que se é comumente ofertado. Ou seja, a população em geral também usufrui dos serviços do

SESC, desde que se enquadre em valores diferenciados e se atente ao número de vagas

oferecidas. Para ter acesso a esses serviços e tabela de descontos, o cidadão ou comerciário

deve se dirigir a uma unidade do Sesc e solicitar a criação do seu cartão.

O SESC é uma empresa que mescla o serviço privado como utilidade pública, sendo

uma das poucas instituições que oferecem cursos voltados para a cultura de forma gratuita

para a população mais carente além de fomentar a arte e a cultura nas suas diversas

instâncias. As apresentações artísticas e exposições geralmente são abertas ao público, sem

necessidade de cadastramento para participar.

Em 2010, de um acordo entre o SESC e governo estadual, implantou-se em Campo

Grande a Unidade SESC Lageado, com o objetivo de oferecer assistência cultural e social

para a região do Bairro Lageado e dar suporte ao estado na oferta de serviço. A região do

Lageado fica ao sul de Campo Grande e abriga 4,5 mil casas sendo 87% da população com

renda familiar de até três salários mínimos (Dados SESC, 2010). De acordo com o gerente da

unidade, atualmente a unidade atende pouco mais de trezentos e cinquenta alunos.

Trabalho de Conclusão de Curso

A figura abaixo apresenta a fachada da Unidade SESC Lageado.

Figura 1: Fachada do SESC Lageado 1

Fonte: BENITES, R. C. R.

Esta unidade foi fundada em 29 de Setembro de 2010 e funciona em um prédio

cedido pelo governo do estado através de um acordo, nele o SESC comprometia-se a

desenvolver ali ações voltadas para cursos de valorização social. A priori os cursos eram

destinados aos adultos, e cobravam-se preços irrisórios. Os cursos tinham como o objetivo

auxiliar a renda de seus participantes, e voltava-se para o corte e costura, pintura em tecido,

crochê, etc., ou seja, proporcionavam principalmente aos desempregados, um meio

profissional. Até 2013 a unidade seguiu neste formato, mas necessitou por uma readequação,

pois havia muita dificuldade em manter a frequência desses alunos, pois uma vez que

conseguiam emprego fixo, evadiam ou abandonavam os cursos.

Através de uma pesquisa realizada no entorno descobriu-se que a região conta com

aproximadamente 17 mil pessoas, sendo um terço delas, crianças de zero a 18 anos. Foi então

que o SESC resolveu oferecer cursos destinados a crianças e adolescentes, pois era uma

demanda da população local.

Em 2014, depois de uma adaptação, os cursos direcionaram-se para uma linguagem

mais cultural, oferecendo aulas de violão, flauta, percussão e balé, e somente em 2015

agregou-se o canto, estabelecendo o coral. Hoje, a unidade atende crianças de 5 a 18 anos, em

Trabalho de Conclusão de Curso

diferentes níveis de aperfeiçoamento, sendo que ao entrarem, independentemente de sua

idade, passam por um processo de reconhecimento musical e de iniciação a música, que

compreende uma sensibilização do aluno ao instrumento. Este processo dura

aproximadamente um ano. O aluno evolui a sua maneira, finalizando o curso já na orquestra,

quando o aluno evolui para as apresentações externas.

Os alunos da unidade participam do Programa de Comprometimento e Gratuidade, o

PCG, que garante 100% de gratuidade no curso, desde que eles entrem em todos os requisitos

seguintes: ser oriundo de escola pública, ou bolsista em rede privada e que pertença uma

família com renda de até três salários mínimos. Dentro desse perfil, as matrículas são

distribuídas através de uma análise, dando-se preferência pela maior vulnerabilidade de cada

aluno. As matrículas são divulgadas pelo site do SESC em forma de edital previsto uma vez

por ano, não havendo outra forma de ingressar nos cursos da unidade se não por esta. Os

responsáveis respondem um questionário socioeconômico e de responsabilidade, fazem a

entregas de documentos para que então os inscritos passem pelo processo de seleção.

Atualmente a unidade oferece 460 vagas, sendo 416 matrículas distribuídas em 338 alunos,

com alguns matriculados em mais de um curso.

A unidade conta com uma própria programação que não segue necessariamente o

calendário escolar dos alunos. Os cursos ofertados são nos turnos matutino e vespertino,

atendendo alunos no contra turno. As aulas são divididas por linguagens: a dança e a música.

Na primeira estão os cursos de balé clássico e baby class (para o infantil), que já é referência

há mais de dez anos no balé educacional de Campo Grande. Já na música, o SESC Lageado

conta com aulas de violão, de instrumentos clássicos como violoncelo, violinos, flauta, baixo-

acústico e também aulas de percussão e canto. Somente esta unidade oferece esses cursos.

Os profissionais da unidade se resumem em quatro professores: um de dança e

outros três da área musical, todos com curso superior na aérea de atuação em licenciatura. Os

materiais necessários para a realização dos cursos, como os instrumentos e roupas de balé são

doados aos alunos matriculados, de forma totalmente gratuita, podendo e devendo o aluno

levá-lo para a sua residência a fim de que aperfeiçoe suas habilidades. Em caso de desistência

ou abandono do curso, é solicitado ao aluno que devolva o instrumento. Estima-se que apenas

6% dos instrumentos doados são danificados ou perdidos. Alguns instrumentos mais onerosos

e delicados como violoncelo, violinos, baixo-acústico permanecem na unidade, porém estão a

total disposição do aluno.

Trabalho de Conclusão de Curso

Há uma grande preocupação da gerência em aproximar os pais e responsáveis das

propostas da unidade, dando a eles atenção e voz. A entidade prioriza um diálogo aberto aos

pais e salienta que a unidade não seja um “depósito de crianças” ou uma alternativa para o

ócio, muito menos uma alternativa ao desespero dos pais em “com quem deixar seus filhos”.

Há uma longa conversa em dignificar a importância de se estar ali e entender o espaço como

uma escola cultural.

Os alunos geralmente se apresentam na própria unidade em forma de concertos,

agendados para o final de cada ciclo, estes destinados aos pais e responsáveis. Mas há

também apresentações externas, como por exemplo, em escolas, centros culturais e

educacionais diversos, e eventos em geral, desde que o pedido tenha concordância com a

proposta da unidade e da empresa.

Faz parte da proposta do SESC salientar a importância da educação para os alunos

não só de instrumentalização, mas também à apreciação, tanto musical como a de plateia. É

importante que esses alunos não foquem apenas em tocar um instrumento, mas que se

sensibilizem diante da música e de qualquer manifestação cultural, sabendo como conduzir e

se posicionar nas mais diversas apresentações artísticas, que aprendam a “degustar a cultura”

como diz em entrevista o gerente da unidade Luciano Campos.

Fica claro que o desempenho tanto da unidade quanto dos alunos é proporcionar

experiências sensíveis diante das ações culturais fomentadas ali, e que dentro ou fora das

paredes do SESC esse aluno possa frutificar suas experiências ao demonstrar seu

desenvolvimento artístico e cultural.

3 ARTE-CONHECIMENTO: A NECESSIDADE DA FORMAÇÃO CULTURAL DO

INDIVÍDUO

Gerar e participar ativamente de meios culturais são ações comumente indicadas, por

promover maior relação entre as pessoas e suas identidades, mas também como modo de

unificação, respeito e conhecimento entre os povos, além do sentido de pertencer a algum

lugar e de enriquecimento pessoal.

A sensação de pertencimento por intermédio das relações culturais são uma das raízes

da arte na construção da sensibilidade dos indivíduos. Entende-se então que arte é um

mecanismo de aproximação das pessoas e uma forma de expressão própria do ser humano,

sendo ela capaz de romper barreiras sociais, principalmente, relacionadas à cultura. Para

Trabalho de Conclusão de Curso

compreender a forma de enriquecimento, por intermédio das diversas manifestações artísticas

na formação das pessoas, é importante entender o real significado da “arte” e seus meandros,

como a necessidade e a função vital da arte e, sobretudo, sua relação com a cultura.

Em conseguinte, de acordo com Marcia Tiburi (2009), cultura é “um tipo de recorte

para definir práticas relacionadas às artes e às chamadas ciências humanas voltadas à

pesquisa de cunho antropológico e social”. Logo, pode-se definir, no âmbito deste artigo, que

cultura está relacionada às práticas artísticas em diferentes linguagens: cênica, musical, visual

ou plástica. Já a arte é a manifestação sensível do ser humano ao expressar-se, ao modificar

a realidade, através de materiais e ferramentas, tidas como a pintura, a música e o teatro por

exemplo.

O autor Ernest Fischer (1983), no livro “A necessidade de arte”, procura responder

ou, pelo menos, nortear duas perguntas fundamentais: Qual a função da arte na vida das

pessoas? Teria a arte uma função específica? No âmbito deste estudo, amplia-se as

indagações: Por que ensinar arte? O que se deve entender sobre arte e cultura? Obviamente,

são questões muito complexas, sem respostas absolutas, porém, com subsídios para refletir

sobre o tema.

Segundo Fisher (1983) a arte tem sido e sempre será necessária, pois instiga as

pessoas a transformarem a sociedade e traz sensibilidade ao homem. O ser humano precisa

“[...] relacionar-se com algo mais do que o << Eu>> alguma coisa exterior a si mesmo, mas

que lhe é essencial” (FISHER, 1983, p.10).

Já Elliot Eisner (2011) em seu artigo “Estrutura e Mágica dentro do ensino de arte”,

direciona posicionamentos dentro do ensino de arte e insiste em falar sobre a mágica que

surge a partir dela:

O que a arte proporciona é uma contribuição ampla no desenvolvimento às

experiências humanas. Primeiramente a arte, isto é, as imagens e eventos

cujas propriedades fazem brotar formas estéticas de sentimento, é um dos

importantes meios pelo quais as potencialidades da mente humana são

trazidas à tona (...). Longe de ser uma atividade negligente, nosso

compromisso com a arte nos faz empregar nossas mais sutis formas de

percepção e contribui para o desenvolvimento de algumas de nossas mais

complexas habilidades cognitivas (EISNER, 2011, p.90).

É importante salientar que a arte e os meios culturais devem ser vistos e entendidos

como um conhecimento específico e como tal, necessita de seu próprio espaço dentro de um

Trabalho de Conclusão de Curso

ambiente de ensino. Vigotski (1999) complementa: “A arte é trabalho do pensamento, mas de

um pensamento emocional inteiramente específico” (Vigotski, 1999, p. 57). E, ainda mais,

especificamente, sobre a arte como conhecimento afirma:

Verifica-se, pois, que a poesia ou a arte são um modo específico de

pensamento, que acaba acarretando o mesmo que o conhecimento científico

acarreta, só que o faz por outras vias. A arte difere das ciências apenas pelos

seus métodos, ou seja, pelo modo de vivenciar, vale dizer, psicologicamente

(VIGOTSKI, 1999, p. 34).

A arte configura-se como um conhecimento específico, uma parte da ciência ligada ao

pensamento e poder reflexivo, visando um apontamento estético e uma sobreposição da

percepção refletida na expressão do indivíduo. Desta maneira, presume que perpetuar a

cultura e os meios culturais seja essencial para a estruturação das novas gerações através do

ensino. Precisa-se encarar a arte e cultura como forma de conhecimento e oportuniza-la às

crianças para que elas próprias construam sua experiência cultural e artística.

Neste quesito a unidade do SESC Lageado promove-se adequadamente, os alunos

encontram ali um espaço destinado a prática artística (a musicalidade e a dança com

ferramentas e metodologias apropriadas).

Há uma distinção clara entre o espaço de aprendizagem do SESC Lageado, a

realidade escolar a qual estão habituados e a compreensão disto por parte dos alunos. Tais

ações são fundamentais para que meninos, meninas, moças, rapazes e professores não

reproduzam ali os modismos que são enraizados em um espaço escolar.

4 A FORMAÇÃO CULTURAL NO ESPAÇO DA POBREZA: A ARTE COMO

MECANISMO TRANSFORMADOR

O SESC em sua estrutura não se preocupa apenas em proporcionar experiências

artísticas e culturais à população de seu entorno, mas também em formar cidadãos

conscientes do que fazem ao desenvolver o gosto pela arte, na dedicação em formar

indivíduos que sabem consumir cultura e, sobretudo, apreciá-la. Os alunos quando

matriculados nos cursos do SESC Lageado passam, primeiramente, por um processo de

sensibilização à musica - chamado de musicalização - para então escolherem um instrumento

que mais se identificam. A gestão entende que um jovem ou uma criança não devem ser

apresentados ao instrumento sem que seja identificada uma sensibilidade artístico musical no

Trabalho de Conclusão de Curso

aluno. Por esse motivo é importante não entender o processo de ensino e aprendizagem como

um mero reprodutor, mas sim como provocador, ao desenvolver o gosto pelo que faz, como

Eisner (2011) complementa: “(...) é primordial fornecer experiências que ajudem as crianças

a refletir sobre a arte” (Eisner, 2011, p.84).

Mais do que um mecanismo transformador, a arte é um meio de aprendizagem e

conhecimento. Quando entendemos que arte traz em si vários questionamentos, o apreciador

passa a exercer um estado de consciência sobre sua realidade ao refletir sobre a sociedade que

o cerca. Sendo assim, a arte torna-se um mecanismo social e transformador. Em entrevista a

arte-educadora Ana Mae Barbosa (2011) afirma preferir ligar a arte ao termo conscientização:

“A arte abre caminhos para a conscientização social,” e ainda “para a descoberta dos direitos,

das obrigações de cada um (Reportagem Caminhos para Conscientização, 2011)”.

Izabel Marques e Fábio Brazil (2012) são firmes em suas críticas quando defendem

que a arte como meio transformador não deve se ater a “tirar a criança da miséria por

algumas horas” para lhe dar um certo momento lúdico e contemplativo, mas que deveria

estimular a consciência crítica dessa criança, a compreender e ver o mundo sob outros

prismas.

É possível observar uma espécie de transformação cultural entre as pessoas que

participam dos cursos do SESC Lageado, tais como: maturidade e entendimento ao observar

uma intervenção artística sejam por intermédio da música, do cinema, das artes plásticas, do

teatro e da dança. Em entrevista, o gerente da Unidade garante que é notória a evolução do

aluno cursista na unidade, principalmente na relação com o inesperado, com o novo e como

que a experiência cultural transforma a autonomia, a expressão e a postura, diante de si

próprio e com os outros, segundo ele: “Há uma devolução social, a unidade faz com que esse

aluno se empodere sob sua própria postura e desenvolvimento social”.

Para refletir sobre o assunto foram entrevistados 16 meninas e 9 meninos,

totalizando 25 alunos, a faixa etária está entre 10 e 16 anos, frequentadores dos projetos

culturais da unidade SESC Lageado há pelo menos 1 ano, todos oriundos de escola pública.

Dentre os entrevistados, apenas 20% dos alunos tiveram contato com

instrumento musical ou com dança antes de entrarem no SESC Lageado. Destes, 60%

fizeram cursos na escola pública que frequentam e os outros 40% em outras instituições

sociais, tais como: igrejas e de associação de bairros. Do total, apenas sete alunos já

Trabalho de Conclusão de Curso

assistiram alguma apresentação artística antes do SESC ou visitaram uma exposição ou

museu. Dos 20%, 15% já haviam feito cursos culturais anteriormente.

Esses fatores levam a interpretação de que a população tem mais acesso as

apresentações quando envoltas em um ambiente cultural específico. Sendo assim o governo

não provém acessibilidade suficiente à cultura, restando à escola e instituições específicas

suprir essa deficiência, o que torna a condição insatisfatória, conforme Figura 2.

Figura 2

Gráfico de alunos entrevistados na unidade SESC Lageado

Por unanimidade, os alunos disseram ter melhorado o comportamento, a

concentração, diminuído a ansiedade e melhorado aprendizagem. Os alunos acima de 14 anos

disseram que ao frequentarem os cursos no SESC Lageado, passaram a ser mais responsáveis

e amadureceram, principalmente pela postura determinada pela instituição, com regras pré-

estabelecidas que diferem muito de uma escola regular.

As regras de convivência dentro da unidade estabelecem nos alunos princípios de

comportamento e constroem a formação do aluno, não só em nível cultural, mas em sua

pessoalidade, o que reflete, também, no amadurecimento pessoal.

Dois alunos disseram sentir-se “mais sensíveis” na percepção de mundo e da

aprendizagem que desenvolveram no SESC. Este fato dá-se por terem maior contato e

aprendizagem com os professores. Ao fazer o curso o aluno aprende a ouvir com maior

80%

5%

15% 0; 0%

Alunos entrevistados

Não frequentavam

apresentações artísticas

Não Frequentavam cursos

culturais anteriormente

Frequentavam cursos

culturais anteriormente

Trabalho de Conclusão de Curso

atenção, gesticular com melhor precisão, evolui sua concentração, ou seja, possui uma maior

percepção para com as manifestações artísticas que estão ao seu redor.

Dois alunos citaram os professores e a própria instituição como “exemplo de carreira

e de futuro, como algo a se espelhar” e disseram ainda que o SESC “abriu seus olhos para

enxergar uma realidade na qual não fazia parte e nem ao menos vislumbrava”. Outro dois

alunos disseram que a vivência no SESC Lageado “Abriu sua mente” para o conhecimento e

visão de mundo.

Neste sentido deduzimos que a convivência com os professores traz uma grande

influência na vida destas crianças e adolescentes pelo simples fato de verem neles uma

profissão, ou seja, eles enxergam o resultado de esforço e conhecimento, tornando assim seus

planos e objetivos mais palpáveis, dando–lhes incentivo para continuar estudando e

aprendendo.

Dois professores concederam entrevistas, ambos trabalham na instituição há mais de

2 anos e concordam ao dizer que o primeiro contato do aluno com o SESC Lageado é muito

difícil, pois o aluno tem dificuldade em adaptar-se às regras do local. De acordo com eles os

alunos chegam pouco estimulados a criar, retraídos; é como se eles viessem “podados a

pensar” diz um dos professores. Eles não conseguem desenvolver a escrita nem as ideias, não

tem conhecimento de mundo e de cultura, apenas o que chega até eles através da cultura de

massa. Mas quando há aprendizagem, eles se aprimoram e vislumbram um fim em sua

aprendizagem.

Uma das professoras comenta que mais do que ensinar a música ou a dança sob a

parte técnica, o SESC ajuda a construir uma educação nestas crianças, pois é nítida a

mudança comportamental por parte delas. É muito relevante também o fato dessas

experiências trazerem uma realidade na qual eles não estão habituados, não só na parte

cultural, mas como na própria construção social, como por exemplo, hábitos de convivência e

sua própria relação interpessoal “É um grande incentivo para que eles ampliem seus

horizontes” finaliza a professora. Conclui-se que o trabalho da instituição está além das

fronteiras da aprendizagem musical ou corporal, os professores oferecem aos alunos

oportunidades que, ou não possuem ou as têm de forma reduzida. Uma vez que os alunos

criam autonomia e dão continuidade aos estudos há uma quebra na desigualdade social. Por

menor que seja o número de inscritos nos cursos, comparado à população do entorno, por

exemplo, é possível prever que, para os 338 alunos inscritos nos cursos, as vivências

Trabalho de Conclusão de Curso

artísticas experimentadas na unidade SESC Lageado, será um diferencial na vida pessoal e

social dessas pessoas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o trabalho de campo realizado com os profissionais do SESC Lageado e

com os alunos, foi possível perceber que a Unidade abre caminhos para crianças e

adolescentes em vulnerabilidade social sonharem, vislumbrarem e traçarem um futuro

profissional com a experiência que lhes é proporcionada. Nesse ponto se fundamenta a

qualidade transformadora da vivência cultural expressa em cada um dos alunos que

frequentam a unidade.

Percebe-se, através das entrevistas, que a arte tem sim um papel transformador na

vida dos alunos, pois amplia o conhecimento pessoal, intelectual e de mundo, auxilia na

construção da identidade e, consequentemente, reflete em uma maior autonomia sobre a

própria vida.

Cabe às autoridades ampliar a oferta de ações culturais à população de baixa renda,

proporcionando maior inserção, desafogando a escola do cumprimento destas ações,

tornando-a não a única, mas uma parceira no provimento de arte e cultura.

É fato que a arte não é redentora de todo o processo de desigualdade social, porém

ao compreender e ampliar a sua visão de mundo, o aluno detém autonomia, passa então de

um estado inativo para um indivíduo ativo perante si e perante a sociedade. Ao entender o seu

papel social, busca caminhos, respostas e estrutura novos horizontes, ou seja, sai de seu

estado de inércia e passa a exercer representatividade e este é um grande passo para frearmos

ou atenuarmos a pobreza e desigualdade social no Brasil.

6 REFERÊNCIAS

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Trabalho de Conclusão de Curso

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