uma casa exemplar - educação pública · web viewe o da inconfidência, em ouro preto – os dois...

34
Uma Casa Exemplar. Pedagogia, memória e identidade no Museu Imperial de Petrópolis Alda Lúcia Heizer Apresentação Lembro-me de um texto – As crianças e os museus 1 - em que o autor afirma que, ao visitarmos um museu, e normalmente o fazemos aos domingos, estamos vivendo uma experiência semi-religiosa. Procuramos algo que transcenda os acontecimentos diários. Por sua vez, Hammad afirma que, quando um visitante percorre uma exposição, ele realiza uma leitura do espaço, leitura essa que, longe de ser passiva, se constitui num “processo dinámico em el que los elementos se confrontam entre sí y se comparan em la memoria a otros elementos no presentes em el lugar” 2 . Afastados de seu uso diário, adquirindo valor simbólico, os objetos dos museus passam a servir a uma espécie de dramatização. São resultados de ações humanas que, deslocadas de seu meio, sofrem um processo de ritualização. Mas de que maneira se dá esta ritualização? Além de guardião de bens culturais, o museu ocupa um lugar importante na vida social. Mais do que recolher, catalogar, conservar, interpretar e expor, ele deve fazer pensar. Duby nos diz que 1 Cf. Bruno Bettelheim. As crianças e os museus. In: A Viena de Freud e outros ensaios. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 137. 2 Manar Hammad. Lectura Semiótica de um museo. In: Revista Museum, n. 154, 1987, p. 56.

Upload: vonguyet

Post on 11-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Uma Casa Exemplar.Pedagogia, memória e identidade no Museu

Imperial de PetrópolisAlda Lúcia Heizer

Apresentação

Lembro-me de um texto – As crianças e os museus1 - em que o autor afirma que, ao visitarmos um museu, e normalmente o fazemos aos domingos, estamos vivendo uma experiência semi-religiosa. Procuramos algo que transcenda os acontecimentos diários. Por sua vez, Hammad afirma que, quando um visitante percorre uma exposição, ele realiza uma leitura do espaço, leitura essa que, longe de ser passiva, se constitui num

“processo dinámico em el que los elementos se confrontam entre sí y se comparan em la memoria a otros elementos no presentes em el lugar”2 .

Afastados de seu uso diário, adquirindo valor simbólico, os objetos dos museus passam a servir a uma espécie de dramatização. São resultados de ações humanas que, deslocadas de seu meio, sofrem um processo de ritualização.

Mas de que maneira se dá esta ritualização?

Além de guardião de bens culturais, o museu ocupa um lugar importante na vida social. Mais do que recolher, catalogar, conservar, interpretar e expor, ele deve fazer pensar.

Duby nos diz que

“O historiador conta uma história que ele forja recorrendo a um certo número de informações concretas”.3

Entram em cena os personagens de um diálogo: os profissionais que concebem o museu – aquisição de acervo, exposição etc – e o usuário que, durante sua visita, fará o confronto passado e presente em sua memória.

O museu, agente educador, produz saber, preserva e monumentaliza, evidenciando valores que se quer perpetuar.

Há sete anos venho trabalhando em pesquisa para exposições de museus. A primeira oportunidade que tive foi a de participar da pesquisa para a elaboração do módulo Colonização e Dependência do Museu Histórico Nacional. Após este trabalho, fui para o Museu de Astronomia e Ciências Afins, do CNPq, onde iniciei algumas

1 Cf. Bruno Bettelheim. As crianças e os museus. In: A Viena de Freud e outros ensaios. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 137.

2 Manar Hammad. Lectura Semiótica de um museo. In: Revista Museum, n. 154, 1987, p. 56. 3 Georges Duby e outros. História e nova História. Lisboa: Teorema, 1986, p.11.

reflexões na área de História da Ciência voltadas para as exposições propostas por esta instituição.

Muitas dúvidas acompanharam o meu trabalho, principalmente no que diz respeito ao fato de o museu ser possuidor de um potencial pedagógico que precisa ser levado em conta e, ao mesmo tempo, o perigo de estas instituições se manterem escolarizando suas atividades.

O estudo que me propus realizar está centrado no Museu Imperial de Petrópolis – o MIP –, lugar de memória que concentra os símbolos da monarquia e detém importante acervo sobre o período imperial.

Poderia destacar dois objetivos que pretendo alcançar nesta dissertação:

Relacionar a criação do MIP com alguns aspectos do projeto político-pedagógico estadonovista; e

Identificar elementos reveladores da maneira pela qual o MIP reforça a imagem positiva e exemplar da família imperial e, por extensão, das famílias da “boa sociedade”, através de sua exposição permanente.

No que se refere à descrição da exposição permanente, procurei utilizar alguns escritos do antropólogo Clifford Geertz, principalmente a sua definição de descrição e cultura, que me foi bastante útil.

Geertz propõe uma “descrição densa” – thick description – como trabalho etnográfico. Para ele não são os procedimentos que definem uma pesquisa, e sim o que ele chamou de “esforço intelectual”, traduzido pela expressão acima utilizada. O autor afirma que para se compreender uma ciência é preciso entender o que os seus praticantes fazem. A simples coleta e descrição não resolvem. É preciso, diz o antropólogo, “ser um pouco crítico literário”.

Entendendo o objetivo da Antropologia como “alargamento do discurso humano”, Geertz propõe uma conversa com o outro. O etnógrafo – e aqui abro um espaço para utilizar a expressão de Robert Darnton – o “historiador etnógrafo” também se encontra constantemente diante de uma multiplicidade de culturas, daí a necessidade de entender o trabalho deste estudioso como uma tentativa de ...

“... ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas, comentários tendenciosos escritos não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado...”4

Em relação ao conceito de cultura, Geertz o define como semiótico. Esta noção é discutida no primeiro capítulo do livro A Interpretação das Culturas. Nele o autor critica uma “difusão teórica” sem sentido, somatório de tendências vistas como um “abre-te-sézamo”, afirmando que o ecletismo “é uma auto-frustração”, sendo preciso escolher uma direção que permita delimitar o conceito de cultura. Para Geertz o homem está “amarrado às teias de significados (expressão de Weber) que ele mesmo teceu”. O comportamento para ele é uma ação simbólica. Interpretam-se os documentos em ação

4 CLIFFORD Geertz. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1989, p. 20.

entendendo cultura como contexto no qual os acontecimentos, comportamentos e significados podem e devem ser descritos com densidade – thick description. Mas é preciso entender o conceito de cultura de Geertz sem perder de vista a sua concepção de Antropologia. O autor situa esta disciplina como uma ciência interpretativa à procura de significados. A antropologia interpretativa deste autor pretende ser mais uma disciplina caracterizada por estratégias de pesquisa do que por esquemas teóricos.

“La sua [de Geertz] polêmica si volgue de um lato contro quanti, gli strutturalisti in particolare, ritengono che la cultura sai una realtá super organica, com forze e scopi propi che si impongono agli individui; d’altro contro tutte le forme di riduzionismo che vedono nella cultura um modello grezzo di eventi comportamentali, di azioni...”5

Alguns historiadores aproximaram-se de Geertz, como por exemplo Robert Darnton, devido ao seu entendimento da realidade social não como um todo dotado de existência autônoma, mas como um complexo de significados produzido pelos indivíduos que a vivenciaram. Foi a partir desta premissa que tentei “ler” a exposição permanente do MIP.

Para este tipo de análise, além das observações feitas à exposição permanente e das conversas informais com alguns funcionários, utilizei os anuários e livros referentes à criação do MIP que fazem parte da divisão de documentação desta instituição. Foram pesquisados também documentos, revistas e textos do CPDOC/FGV. Encontrei nestes arquivos informações sobre a criação de instituições como o MIP, assim como o registro dos discursos dos intelectuais “colaboradores” do projeto político-pedagógico do Estado Novo, expresso em revistas como, por exemplo, Cultura Política. O CPDOC dispõe, por outro lado, de importantes trabalhos de especialistas, como os de Angela de Castro Gomes, Lucia Lippi, Monica Pimenta Velloso, Ricardo Benzanquem Araújo e outros, que também abordam questões como o mito Vargas, a cultura e o projeto ideológico estadonovistas.

Dividi este trabalho em três partes. Na primeira parte, procurei relacionar algumas manifestações em torno da criação do MIP, em 1940, como uma das estratégias do projeto politico-pedagógico estadonovista de “redescobrir” o Brasil, estimulando a criação de instituições que retratassem a “verdadeira” fisionomia da nação, a partir da busca das tradições perdidas. Mas, como afirma o historiador Guy Lardreau, “a memória não é proustiana” 6, na medida em que ela retém o excepcional.

Sendo assim, tentei, na segunda parte da dissertação, fazer algumas reflexões sobre que memória se quer preservar nos museus. Utilizei alguns exemplos para demonstrar que os museus evocam um tempo escolhido: os museus inventam uma memória. Pretendi também reconhecer o papel desempenhado pela exposição permanente do MIP na atualização de um imaginário específico referido a um “sentimento aristocrático”. Para tanto, utilizei como estratégia uma descrição da exposição que ocupa o prédio principal do museu.

5 Angelo Torre. Antropologia Sociale e Ricerca Storica. La Storiografia Contemporanea. Idirizzi e Problemi. Milano, II Saggiatore, 1987, p. 234.

6 GEORGES Duby e Guy Lardreau. Diálogos sobre a Nova História, op. cit. P. 63.

Na terceira parte da dissertação procurei ressaltar como, nos museus em geral, a teoria e a prática quase sempre estão desassociadas. Embora Seminários e Congressos sejam realizados constantemente e importantes questões sejam levantadas – o que e por que preservar; a problematização do acervo; a falta de diálogo entre exposições e público visitante – poucos museus conseguem detectar suas dificuldades diante destas questões e propor mudanças concretas.

Tentei, também, apontar para a necessidade de os museus serem vistos como instituições que fazem parte de projetos de sociedade – no caso específico do MIP, o projeto político-ideológico estadonovista – e, por conseguinte, para a possibilidade de serem considerados em sua dimensão pedagógica. E, por fim, sublinhar que é possível perceber que a concepção de história subjacente à criação do MIP se atualiza traduzida num “sentimento aristocrático” que atua nos imaginários sociais.

Foi a partir deste procedimento que procurei dar uma unidade às questões que me propus abordar.

Nos momentos de desânimo e dúvidas acerca da possibilidade de realização deste trabalho, lembrei-me sempre do que certa vez a artista plástica Fayga Ostrower disse: “criar é tão difícil ou tão fácil como viver. E é do mesmo modo necessário”. Sendo assim, mãos à obra.

Capítulo 1Comemorando um passado.

O Estado Novo e a criação do Museu Imperial.

“Polir a inteligência e temperar o caráter do cidadão (...) é o primeiro dever do Estado”.

Getúlio Vargas

A criação do Museu Imperial de Petrópolis – MIP – deu-se em 1940, durante o Estado Novo, por ocasião das comemorações do 119º aniversário da Independência e 52º da República, com o objetivo, entre outros, de :

“... recolher, ordenar e expor objetos de valor histórico e artístico referentes a fatos e vultos dos reinados de D. Pedro I e, notadamente, de D. Pedro II...”7.

A decisão de criar o museu coube ao presidente Getúlio Vargas e ao ministro da Educação e da Saúde Gustavo Capanema, e enquadra-se no projeto de um Estado Novo, sob a perspectiva evidente de uma história baseada em feitos de homens-heróis.8

7 Decreto-Lei, nº 2096, de 29/05/1940.

Nas falas dos que viveram o momento de criação do museu9 percebe-se não só uma atitude saudosista em relação ao Império, mas sobretudo o valor e a significação de uma obra que transparece na utilização de expressões como “monumento de cultura”, “casa de veneração da nacionalidade” etc...

“A Cultura brasileira está de parabéns com a inauguração do Museu Imperial, ato solene que festejou, em 16 de março, o centenário de Petrópolis.

O Palácio de D. Pedro II não é um vazio e triste edifício sepultado no Jazigo verde da mata que o envolve: mas uma vasta casa aberta ao povo onde mãos hábeis arrumaram com brilhante arte as cenas, os aspectos e os detalhes de outrora.

Um profuso capítulo da vida nacional ali está, distribuído pelo fulgor das baixelas, pela cintilação dos cristais, pela severidade dos corredores, pela alvura das paredes, pela riqueza dos quadros, pelo conforto austero dos largos aposentos, onde, não morou somente um rei bom e modesto, porém, com ele, um século inteiro.”

Pedro Calmon, 1943.

“Dom Pedro II honrou ao governo dos homens... ora, isso é passado... Está nas páginas da história. Engano. Está vivo, presente, na ressurreição do Museu Imperial de Petrópolis... Que lição e que saudade!”

Afranio Peixoto, 1943.

“Petrópolis tem, a partir de hoje, a melhor escola de brasilidade que já se fundou no Brasil, porque tudo quanto ali está disposto para transportar-nos ao passado faz-nos ter mais confiança no presente e mais vigorosos estímulos para o futuro. A porta que se abre para trás jorra luz para frente.

8 Atualmente o MIP é uma unidade do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural/IBPC, autarquia ligada à Secretaria da Cultura da Presidência da República.

9 Cf. Alcindo Sodré. O Museu Imperial. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa, 1950, p. 164-172.

Visitando o Museu Imperial é que se pode ter noção exata das responsabilidades que nos cabem, em face da tradição e da história. Ele é o traço de união entre duas épocas igualmente fecundas do nosso destino.”

Belisário de Sousa, 1943.

O MIP foi instalado na antiga residência de verão da família Imperial. O historiador Lourenço Luiz Lacombe afirma, em seu texto sobre o Palácio Imperial de Petrópolis, que

“A idéia de uma residência fora da Corte, para fugir do calor carioca, era uma velha aspiração que vinha dos tempos do Príncipe Regente D. Joãol. Porque os Paços do Rio, da Cidade e de São Cristóvão, não mereciam sequer o nome de palácios.”10

Mais tarde, por volta de 1830, D. Pedro I adquiriu a fazenda do Córrego Seco, da qual se originou a cidade de Petrópolis, com o objetivo de nela erigir um palácio: o palácio da Concórdia. No ano seguinte, o imperador hipotecou a propriedade, abandonando seu plano inicial, devido à abdicação do trono. Pedro II herdou a fazenda do Córrego Seco e, a partir de 1848, passou a veranear no palácio, longe dos ares quentes e insalubres que envolviam a corte.

Segundo algumas biografias de Pedro II, o imperador, quando se instalava em Petrópolis, dedicava-se à leitura, aos passeios, às festas, às exposições etc... O viajante Carlos Von Koseritz, ao passar pela cidade, descreveu-a da seguinte maneira:

“Uma verdadeira cidade imperial, uma cidade de palácios; aqui se respira de novo um ar europeu. Uma população elegante se acotovela na estação; ligeiros cabos, puxados por cavalos de raça, são guiados por senhoras, esbeltos cavaleiros cavalgam sobre lindos meio-sangues, seguidos por criados elegantes. Mais adiante está o carro imperial de seis cavalos. Nele se encontram o imperador e sua família.”11

Um periódico da época também apresenta a sua impressão sobre a cidade:

“Petrópolis anima-se. A imigração da corte aumenta de dia para dia; as casas alugam-se, os hotéis enchem-se, e os

10 O Museu Imperial. São Paulo: Banco Safra, 1992, p. 07.11 Ana Beatriz Figueiredo Silva. Petrópolis Lilás – Do Alvorecer ao fim do dia. Rio de Janeiro:

PUC/RJ – Departamento de História (monografia de bacharelado), 1990, p. 17.

divertimentos se sucedem como as trovoadas...”12

Com a proclamação da República, em 1889, Pedro II e a família deixam a casa de verão em Petrópolis e seguem para o exílio na Europa. Três anos depois o Colégio Sion transfere-se para o palácio, permanecendo naquele local até o ano de 1908. Em 1909 instala-se ali o Colégio São Vicente, que só sairá daquelas instalações cerca de 30 anos depois. Na década de 20, Alcindo Sodré, que veio a ser o primeiro editor do MIP, então vereador de Petrópolis, propunha a criação de um museu nacional. Em seu discurso estava presente a preocupação em recolher, organizar e expor tudo o que estivesse relacionado a um passado, para ele, brilhante. A idéia era reconstituir a casa do velho imperador.

Nos escritos sobre a história do MIP13 é sempre ressaltado que Alcindo Sodré, seu idealizador, ex-aluno do Colégio São Vicente, ao presenciar a descaracterização realizada no prédio pelos colégios que o ocuparam, teria afirmado que, ao se deitar à noite, sonhava em reconstituir aquele palácio como no tempo de Pedro II. Mais tarde, na inauguração do museu, Alcindo Sodré alertava para que não se caísse no erro de “caluniar” os “verdadeiros” fundadores da pátria.

Mas de que maneira este novo Estado, festejado e cortejado nas festas nacionais, nos desfiles e nos jornais subordinados ao Departamento de Imprensa e Propaganda – o DIP – se propunha recuperar a “verdadeira” origem da História do Brasil, recorrendo ao passado monárquico, enaltecendo a figura do imperador e de sua família?

O MIP foi criado na mesma época que outros três museus: o das Missões, em São Miguel, no Rio Grande do Sul; o do Ouro, em Sabará. E o da Inconfidência, em Ouro Preto – os dois últimos em Minas Gerais. Além dos museus, foram criadas instituições como o Instituto Nacional do Livro e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. É notável a relação íntima entre cultura e política neste momento. O Estado está presente na vida cultural do país. Memória e Tradição caminham juntas e se constituem nos alicerces da nova nação. O passado monárquico, recuperado, marcaria o “verdadeiro” início da História do Brasil.

A proposta de criação do MIP revela a ênfase que se dá a um tipo específico de história. Ao se optar por enaltecer a vida de um homem – no caso o imperador Pedro II –, o projeto estadonovista pretende estabelecer um tipo de continuidade entre ele e o presidente Vargas: os dois mitos “eleitos” pela nação e pela história. Uma dupla criação. A criação dos mitos não pode ser compreendida enquanto ato irresponsável da mente humana, uma vez que preenche uma função em resposta a uma necessidade14.

O historiador Pedro Calmon, em prefácio à edição do livro O Rei Filósofo, escrito em 1937, apresenta a sua concepção de história: “... apesar de o historiador não dever ser um apologista, é preciso ressaltar a falta da autêntica fisionomia do Brasil...”. Mais adiante afirma que “... a história da pátria de cem anos prá cá não foi escrita”. Portanto, preocupado com uma “fidelidade limpa”, escreve uma história de um personagem entremeada de eventos, destacados como exemplos passados para o presente. Calmon mencionava que o apelido dado a Pedro II era, na verdade, um julgamento: “Rei Filósofo”.

12 Idem p. 22.13 O Museu Imperial. Op. cit p. 05.14 Mircea Eliade. Imagens e Símbolos. Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo:

Martins Fontes, 1991, p. 08 e 09.

É importante ressaltar que esta memória inventada por Calmon está presente, entre outras, na concepção inicial do MIP. Calmon frisa a dívida de gratidão “amortizada” pelos brasileiros ao ser criado o MIP – “... um museu que fez ressurgir o imperador (que) está vivo no museu, na sua mansão feliz e bela”.15

Na descrição da morte do imperador, ao final do livro, Calmon reforça a sua história composta por exemplos marcantes do comportamento do homem que foi o imperador Pedro II:

“Soou meia noite. Era 5 de dezembro de 1891. O coração batia ainda, enfraquecendo, esgotando-se, perecendo... Meia hora mais tarde, a princesa, de joelhos, beijava a mão gelada do imperador, e choravam todos, sem ruídos, abafando nos lenços um pranto irreprimível. O grande corpo enchia a cama pobre, pousava-lhe sobre o busto um crucifixo; e a bela cabeça encanecida, de perfil aguçado pela morte, como modelada em cera, conservava a majestade e a altivez da realeza.

Houve em seguida uma rápida cerimônia. Oscularam os presentes a mão trêmula de D. Isabel que pensava desfalecer em dor: era a antiga maneira de reconhecer os herdeiros do trono, tudo o que indicava ali é que não morrera apenas D. Pedro de Alcântara, hóspede estrangeiro do quarto 18... mas sem coroa, sem casa própria, sem pátria – o imperador. Motta Maia aproximou-se com uma almofada. Substituiu por ela o travesseiro, no qual descansava a cabeça do morto. E recuou soluçando.

Cumprira um inocente e suave desejo dele. Pedira uma vez que lhe trouxesse uns punhados da terra natal, para repousar aí, com a ilusão de ter restituído ao chão do seu país o resto de si mesmo, que lhe pertencia. Aquela almofada estava cheia de terra do Brasil...”16.

Tanto Pedro Calmon como Alcindo Sodré partilham de uma mesma perspectiva histórica. Sodré em seu livro sobre a história do MIP inicia uma das partes intitulada A Mais Bela Tradição17, ressaltando que a casa de verão do imperador tinha uma

15 Anuário do Museu Imperial. 1943, volume 04, p. 290.16 Pedro Calmon. O Rei Filósofo. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1939, p. 467. 17 Alcindo Sodré. O Museu Imperial. Op. cit. P. 27.

significação evocativa: moralidade, ilustração etc... Preocupava-se com a história – exemplo, Sodré desejava um museu que fizesse com que o visitante assistisse a um passado irretocável. Ou seja, mais do que despertar a curiosidade, para ele, o museu deveria educar através de uma história permeada de exemplos, uma história mestra de vida.18

“L’Historia magistra pose que l’historien non seulement donne des enseignements, mais aussi émette des jugements et qu’avec son jugment il énonce des sentences”.

Neste novo universo simbólico legitimador de um novo começo, na nação que ressurge, busca-se o equilíbrio perdido na primeira República, evocando-se outro tempo: o tempo da monarquia. Resgatam-se os valores considerados mais caros, como a família, em contraposição a um individualismo extremado que teria prevalecido naquele momento. O MIP, lugar de uma família “eleita”, atualiza o tempo da monarquia; o tempo do “Rei Filósofo”, o tempo de alguns, um tempo que se quer lembrar. Sua proposta, no decorrer dos anos, apoiou-se na idéia de que bastaria o contato com a casa de verão e os objetos do imperador e de sua família para que o tempo de Pedro II, o “herói discreto”, o “iluminado”, o “pai de família”, fosse revisitado.

A construção da imagem de um imperador viabilizador da unidade nacional e de um Chefe de Estado “amigo do povo” interessava à construção do mito Vargas: um presidente chefe de família.

Num dos verões que o presidente Vargas passou na cidade de Petrópolis, é atendido o pedido de Alcindo Sodré para que fosse criado um museu do império. O presidente, a partir de então, passa a ser o “patrono” e o “bem-feitor” desta instituição durante o Estado Novo.

Carone afirma que no Estado Novo

“... mito e comemoração se conjugam. O primeiro acentua as qualidades, o segundo torna-o público.”19

Na construção do mito Vargas, e por meio de um Estado pedagogo, pretende-se edificar uma nova nação, através, dentre outros, da criação de instituições culturais, como a Comissão Nacional do Livro Escolar, por exemplo, e a Escola de Educação Física e Desportos da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. A intenção era a de formar homens saudáveis, orgulhosos de seu país, trabalhadores, enfim, “colaboradores” deste governo que pretendia eliminar os intermediários entre o presidente e o povo, como era indicado nas cartilhas que contavam, entre outros fatos, a vida do presidente.

Outras medidas foram tomadas pelo governo estadonovista, inspiradas nas idéias nacionalistas e autoritárias que norteavam as diretrizes do novo governo. Este empreendimento faz parte de um projeto político-pedagógico do qual é possível extrair elementos indispensáveis à compreensão da criação do MIP. Um momento de busca de um novo começo para a história do país, de reaproximação do povo de suas

18 Reinhart Koselleck. Le Futur Passé: contribuition à la semantique des temps historiques. Paris: École de Hautes Études em Sciences Sociales, Paris, 1990, p. 49.

19 Edgard Carone. O Estado Novo. São Paulo: DIFEL, 1976, p. 166.

necessidades, traduzido num verdadeiro redescobrimento do Brasil.20 Esta nova maneira de pensar o Brasil tem sua origem nos anos 30. Para alguns, a Revolução de 30 teria sido a solução necessária e única possível para acabar com o distanciamento do homem brasileiro de suas raízes.

Em um manuscrito que integra o arquivo Gustavo Capanema do CPDOC/FGV, com o título O presidente Getúlio Vargas e sua obra, pode-se verificar uma crítica contundente à República Velha:

“... assistimos, então, no derradeiro decênio da República, a este quadro desolador: regionalismos desenfreados comprometiam a integridade nacional, a máquina político-administrativa estava nas mãos de chefes eleitorais a serviço de inconfessáveis manobras partidárias de que se excluirá o interesse geral, sob os efeitos de um liberalismo de aparência explorado por numerosa clientela de agitadores oportunistas e de oligarcas experimentados na manipulação das fraudes, a democracia se tornava um mito e opinião nacional, já cansada dos desmandos do poder e também desiludida dos que antes a conduziam para inoperantes campanhas demagógicas traduzia o seu desgosto pela forma neutra, porém desesperada, de uma indiferença desdenhosa... E na sua ironia tão ilustrativa, o homem da rua já se habituara a dizer que o Brasil só caminhava de noite, aproveitando as horas em que os políticos dormiam.”21

Sendo assim, em contrapartida a um Estado ausente que seria, segundo os que criticavam a República Velha, característico deste período, a partir de 30 verifica-se um Estado protetor e administrador do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural, por exemplo. Afirmava-se que a liberal democracia, dissociando o homem de sua terra, não o teria contemplado em sua dimensão total. A imposição de uma nova ordem era fundamental para que o país se recompusesse. A Velha República teria sido, portanto, marcada pela desordem e pela ausência de um “timoneiro” que acabasse com os conflitos e lhe implementasse a harmonia e o progresso. Era hora de colocar o rio no seu curso; retomar o curso da história. A Revolução de 30, com seu sentido restaurador, trazia a ordem. Seu componente inovador encontrava-se na recuperação das tradições perdidas. Modernizar, nesta perspectiva, significa voltar às raízes da nacionalidade. Sendo assim, é possível o convívio das duas concepções – tradicional e moderna na

20 Cf. Angela Maria de Castro Gomes. “O Redescobrimento do Brasil – revolução e questão social”. Estado Novo. Ideologia e Poder. Rio de Janeiro: ZAHAR Editores, 1982, p. 109.

21 Simon Schwartzman (org.) Estado Novo. Um auto-retrato (Arquivo Capanema). Brasília: CPDOC/FGV, Editora Universidade de Brasília, v. 24, 1983, p. 21.

medida em que compreendamos a tradição como o “locus”, a origem da brasilidade; e o moderno, a restauração da tradição perdida.

É preciso ressaltar que o projeto político-pedagógico estadonovista implicava procedimentos diversos. Um deles era a participação dos intelectuais no projeto ideológico do Estado Novo, de fundamental importância, pois através de sua articulação foi possível não só a justificativa e/ou convencimento de uma nova ordem, como também o seu redimensionamento ideológico. A partir de 30, o Estado fará um movimento de absorção destes intelectuais, que devem ser vistos como homens de pensamento e ação. Com o objetivo de formar um modelo de brasilidade, é no passado que esses intelectuais irão procurar as raízes culturais necessárias à fundamentação deste modelo.

Vargas, em 1951, ao discursar sobre o binômio cultura e política, enfatiza a viabilidade da convivência da tradição com a modernização:

“As forças coletivas que provocaram o movimento na literatura brasileira (...) foram as mesmas que precipitaram, no campo social e político, a Revolução vitoriosa de 1930.

A inquietação brasileira (...) buscava algo de novo, mais sinceramente nosso, o mais visceralmente brasileiro (...) A renovação dos valores literários e artísticos de um lado, a renovação dos valores políticos e das próprias instituições (...) se fundiram num movimento mais amplo, mais geral, mais completo, simultaneamente reformador e conservador, onde foram limitados os excessos (...) harmonizadas as tendências mais radicais e divergentes (...) Tive ao meu lado as gerações novas do Brasil, que em todos os setores da inteligência e da cultura, procuravam novas formas de convivência e novas expressões para valores antigos (...) Porque nunca entendi favorecer reformas que não tivessem raízes nas aspirações mais profundas e mais constantes da coletividade e que não aspirassem um consórcio pacífico entre evolução e tradição.”22

Contudo, as diferentes tentativas de traçar uma fisionomia para a nação a partir da busca das raízes culturais estão presentes desde o séc. XIX. Antonio Candido ressalta que a independência política em 1822 desenvolveu na literatura do século XIX uma espécie de patriotismo expresso quer no enaltecimento da pátria, quer no indianismo ou em qualquer outra manifestação que “verdadeiramente nos exprimisse.”23

22 Idem, p. 21.

O pensador chileno Santiago Nunes Ribeiro, por exemplo, em 1843, já apontava para o fato de o Brasil ter uma literatura nacional.

“... agora perguntaremos se um país, cuja posição geográfica e constituição geognóstica, cujas instituições, costumes e hábitos tanto diferem da sua metrópole de outrora, não deve ter sua índole especial, seu modo próprio de sentir e conceber (...) se numa palavra, não deve ter caráter nacional. Sim, nos dirá todo aquele que estiver desprevenido. A literatura é a expressão da índole, do caráter, da inteligência social de um povo ou de uma época... ora, se os brasileiros têm seu caráter nacional, também devem possuir uma literatura pátria.”24

O romantismo no século XIX, visto como fenômeno literário e concepção de vida, inspira, sem dúvida, essa busca da originalidade de nossa nacionalidade. Ao citar a reflexão de Roque Spencer Maciel de Barros sobre a ligação entre romantismo e nacionalismo, Oliveira destaca:

“a construção Nacional refere-se à realização não apenas de uma tarefa política e econômica, mas de seu acompanhamento por uma obra espiritual, por um trabalho de formação, que é obra de poetas, de literatos e de filósofos, tanto quanto de estadistas, e que tem antes e acima de tudo, um sentido eminentemente pedagógico.”25

Associada ao projeto de consolidação do Estado Nacional havia a necessidade de se definir um perfil para esta nova nação que se configurava. Para tal, era preciso que esta nação tivesse escrito a sua história. Dentro desta atmosfera foi criado, em 1838, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – o IHGB – com o objetivo central de pensar a nação brasileira, através de intelectuais que iriam assumir esta tarefa.

Mas que nação era essa? Para alguns, a civilização nos trópicos. E onde encaixar os indígenas e os trabalhadores escravos?

Guimarães afirma em Nação e Civilização nos Trópicos:

“No movimento de definir-se o Brasil, define-se também o outro em

23 Antonio Candido. Formação da literatura brasileira. V.2. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1959, p. 10.

24 Santiago Nunes Ribeiro. Da nacionalidade da literatura brasileira. Caminhos do Pensamento Crítico (org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Editora Pallas / INL, 1980, p. 48.

25 Lucia Lippi de Oliveira. As raízes de Ordem. Os intelectuais, a Cultura e o Estado. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, p. 510.

relação a esse Brasil. Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da idéia de nação não se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito ao contrário, a nova nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa.

Nação, Estado e Coroa aparecem enquanto uma unidade no interior da discussão historiográfica relativa ao problema nacional.”26

Porém, segundo o autor citado, escravos e indígenas foram excluídos deste projeto de nação “... construída no campo limitado da academia de letrados, a nação brasileira traz consigo forte marca excludente.” 27

Criava-se um lugar onde os intelectuais forjariam a nacionalidade brasileira através de uma perspectiva histórica marcada pela idéia de progresso linear: do estado de barbárie a nação brasileira passava a um estado de civilização e progresso. Esta perspectiva, presente no século XIX, quando pensar a história é uma constante, vai caracterizar o debate historiográfico deste momento.

O período de transformação social dos primeiros anos da República caracterizou-se como atestam as sucessivas crises políticas que o marcaram – por diferentes entendimentos sobre o significado do ideal republicano e, consequentemente, pelas várias maneiras de assumi-lo em práticas políticas concretas. Há várias tendências ideológicas neste período, e cada uma delas procura se apresentar como intérprete dos anseios da população face à nova ordem política estabelecida com o advento da República.

Para os setores civis comprometidos com a oligarquia, a República representava a via política de um projeto de modernização do país. Sua noção de progresso, claramente demonstrada na transformação por que passou a cidade do Rio de Janeiro, confunde-se com a idéia de civilização, da qual seria a manifestação palpável. E civilizadas eram as nações da Europa industrializada, cujos hábitos e moda, precisavam ser imitados a qualquer preço. Para que o Brasil recuperasse o “atraso” em relação a essas “fontes de progresso”, teria que passar por um processo de “regeneração” que o reabilitasse diante deste mundo “civilizado”. Este programa de “regeneração” compreendia desde a repressão às formas e valores tradicionais (quer os de origem aristocrática, quer os que se ligavam à cultura popular) – elementos de uma história que se desejava apagar – à reorganização do espaço urbano. Esta nova nação, que se modernizava, lutava por pertencer ao mundo europeu, industrial, que tinha, como símbolo exterior, a cidade. Tanto é que, uma das faces deste progresso, que se pretendia regenerador, era a transformação da cidade pela higienização, urbanização e promoção

26 Manoel Luís Salgado Guimarães. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n.1, 1988, p. 06.

27 Idem, p. 07.

de eventos culturais e científicos. As transformações por que passava a cidade do Rio de Janeiro traduziam o ideal deste projeto modernizador.

Segundo Servcenko, quatro princípios norteavam a metamorfose que tomou conta desse momento: a condenação dos hábitos e costumes ligados à sociedade tradicional; a negação de todo e qualquer elemento da cultura popular que pudesse comprometer a imagem civilizada da sociedade dominante; a expulsão dos grupos populares da área central da cidade; o cosmopolitismo agressivo, profundamente identificado com a vida parisiense.28

“O Rio de Janeiro ‘civiliza-se’ para usar uma conhecida expressão da época e passava por profundas transformações para que pudesse apresentar-se ao mundo como cartão postal e capital do progresso, de certa forma teatralizava o movimento de construção de uma nova ordem que, no entanto, sob uma roupagem inovadora mantinha e aprofundava – modernizando-a – a lógica excludente e hierarquizadora do conjunto dos agentes sociais.”29

A partir dos anos 20, a discussão iniciada com o romantismo foi retomada num momento de crise por que passava o país com a falência do liberalismo e os efeitos da 1ª Guerra Mundial. As idéias relacionadas às questões típicas da literatura do início do século, como a “superioridade racial” do europeu, a partir de 20 passam a ser contestadas. A Semana de Arte Moderna de 22 aconteceu num ambiente intelectual onde os debates giravam em torno da busca de uma especificidade da cultura nacional. As manifestações modernistas buscavam um saber sobre a realidade brasileira.

Em seus estudos sobre o movimento modernista, Jardim aponta para a importância de não se perder de vista os acontecimentos de 1924.

A situação política daquele momento enrijecia a oposição dos modernistas aos passadistas, retirando a discussão do âmbito estritamente literário. Ressaltava-se, então, a dimensão ampla daquele movimento modernista, detonado pela ação, dentre outros, do movimento tenentista, verificando-se mudanças significativas dos rumos do nacionalismo no campo da literatura. O autor citado preocupa-se com as transformações ocorridas no interior do movimento modernista a partir de 24. A discussão sobre a renovação estética deslocava-se para a possibilidade de se reconstruir um projeto de cultura que fosse nacional. Numa perspectiva semelhante, Oliveira destacava que:

“... a mudança social é pensada como o desenvolvimento de um organismo no qual se apresenta como fundamental a existência do cérebro, ou seja, a presença de uma elite estratégica que arroga a si o privilégio do poder. O papel dessa elite

28 Nicolau Servcenko. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na primeira república. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 36-37.

29 Margarida de Souza Neves. Relatório sobre o MHN. In: Seminário Museus Nacionais: Perfil e perspectivas, Rio de Janeiro: Pró-Memória, 1988, p. 03.

cultural e política está configurado na idéia de civilizar por cima.”30

A partir de 30, a necessidade de uma literatura nacionalista tornou-se uma referência constante entre os intelectuais que, voltando-se para o próprio território, sentem a urgência de se construir um saber sobre a nação. Candido afirma que, a partir deste momento, o Brasil “... começou a se apalpar...”31

“... A literatura criada por essa nova categoria propiciou aos leitores que a consumiam uma visão renovada não convencional de seu país, visto como um conjunto diversificado mas solidário. Com efeito, segundo Antonio Candido, foi notável a interpenetração literária em todo o Brasil, depois de 30, quando um jovem , digamos do interior de Minas, ia vivendo, numa experiência feérica real da Bahia de Jorge Amado, a Paraíba de José Lins do Rêgo, a Aracajú de Amado Fontes, a Amazônia de Abgar Bastos, a Belo Horizonte de Cyro dos Anjos, a Porto Alegre de Érico Veríssimo ou de Dionélio Machado, a cidade cujo o rio imitava o Reno de Viana Moog ...”32

Em 1933 foram publicados dois livros que marcaram uma geração: Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e Evolução Política do Brasil, de Caio Prado Júnior. Mais tarde, em 1936, Sérgio Buarque de Holanda lançava Raízes do Brasil. Estes intelectuais preocupavam-se, cada qual à sua maneira, com os acontecimentos do pós-30. Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, por exemplo, inauguravam uma geração que adquiria o hábito de refletir sobre o Brasil, e, embora de formas distintas, “recusam a tradição e imprimem uma nova reflexão sobre a história.”33

Nesta missão “civilizatória” estavam presentes os grupos de editores das coleções Azul e Problemas Contemporâneos de contornos integralistas, Brasiliana, Documentos Brasileiros e Biblioteca Histórica, dedicadas ao conhecimento da realidade do Brasil. Era preciso, segundo estes grupos, editar no Brasil, livros sobre o Brasil, escritos por brasileiros. O lema era: para se compreender o presente, é preciso repensar o passado; rever o homem brasileiro e sua terra.

As coleções Brasiliana, iniciada em 1931, e Documentos Brasileiros, iniciada em 1936, voltaram sua produção para o homem brasileiro e a terra brasileira. A primeira propunha-se, como objetivo principal, divulgar a cultura e o pensamento brasileiros, e tinha como diretor Fernando de Azevedo. A coleção Documentos Brasileiros, cujo

30 Lucia Lippi de Oliveira. Repensando a Tradição. In: Revista Ciência Hoje, v. 7, n. 38, dezembro de 1987, p. 60.

31 Apud. Heloisa Pontes. Retratos do Brasil. Editores, Editoras e Coleções Brasiliana nas décadas de 30, 40 e 50. Op. cit. P. 361.

32 Idem. P. 367.33 Berenice Cavalcanti. História e Modernismo: Duas Versões sobre a nossa Brasilidade. In:

Rascunhos de História. Rio de Janeiro: Departamento de História/ PUC/ RJ, n. 4, 1992, p. 03.

primeiro título publicado foi Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, concentrou sua produção nas biografias e memórias. Até 1959 contou com dois diretores: Gilberto Freyre e Otávio Tarquínio de Souza. Estas duas coleções são exemplos típicos das divergências existentes no clima intelectual da época, em torno da busca de uma consciência nacional. De um lado, os “interpretativistas” – Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Oliveira Viana; de outro, os intelectuais considerados tradicionais, como Otávio Tarquínio de Souza e Pedro Calmon – ambos à frente de instituições como a Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Pedro Calmon, um campeão de livros editados – nove títulos -, foi um dos que fizeram parte do grupo que se manifestou pela criação do MIP.

A colaboração destes intelectuais com o projeto político-ideológico estadonovista independia, porém, de seu cunho ideológico. A identidade nacional deveria sobrepor-se às divergências, pois o importante naquele momento era ressaltar o que era brasileiro. O pensamento que se vai encontrar a partir de 37 tem suas raízes nos intelectuais de grande importância, representados, por exemplo, por Almir de Andrade, refletindo sobre a legitimação do regime; Azevedo Amaral, justificando a ampliação da autoridade do Estado; Oliveira Viana, Miguel Reale e Cândido Mota Filho, com suas leituras sobre o facismo, assim como Cassiano Ricardo, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oscar Niemeyer, Gustavo Capanema e Gilberto Freyre. De acordo com esta concepção, os intelectuais são os únicos capazes de captar a vontade popular. A idéia de Azevedo Amaral, partilhada com muitos, fundamenta-se em um dos pontos centrais do pensamento autoritário, que vê a sociedade como algo inorgânico, porque constituída por indivíduos sem maturidade e carentes de orientação. Os intelectuais, sob esta perspectiva, devem captar a vontade popular, cabendo ao Estado realizá-la. Estes “colaboradores” são considerados a elite intelectual do Brasil. Intelectuais como Francisco Campos, Nelson Werneck Sodré, por exemplo, escrevem em revistas como a Cultura Política, lançada em 1941 e diretamente vinculada ao Departamento de Imprensa e Propaganda – o DIP. Neste mesmo ano, Almir de Andrade escreve um artigo para a Cultura Política intitulado Política e Cultura, no qual aponta para a convergência destes dois conceitos:

“Existe entre a cultura e a política traço vigoroso de união. A cultura põe a política em contato com a vida, com as mais genuínas fontes de inspiração popular. A política empresta à cultura uma organização, um conteúdo socialmente útil, um sentido de orientação para o bem comum.”34

Temas como a recuperação do passado são utilizados para valorizar uma nova ordem; o surgimento de uma nova cultura – cultura política; a formação de “homens novos” (não instrumentos, e sim, colaboradores do Estado); e a idéia de Vargas, apresentado como concretizador do desejo nacional, estão presentes nas publicações e são trabalhados constantemente, mas de diferentes maneiras. Os intelectuais são compreendidos na condição de dirigentes dos destinos dos indivíduos. São, nesta perspectiva, formadores de consciência.

34 Lucia Lippi de Oliveira. As raízes da ordem: Os intelectuais, a cultura e o Estado. Op. cit. p. 523.

A partir de 30 e, mais especificamente, durante o Estado Novo, assiste-se a uma crença na releitura da tradição como pressuposto para se projetar o futuro. Desejava-se o novo, a mudança; sem que se perdesse de vista, porém, o horizonte conservador – um horizonte de valores extraídos de um passado católico e de uma sociedade patriarcal. Projetava-se um novo Estado, buscando-se legitimidade no passado. Mas “um novo princípio não se faz sem história, pois o traçado de origem é também uma volta ao passado.”35 Era preciso, portanto, reler o passado e projetar o futuro.

Foi neste universo intelectual que foi criado o Museu Imperial – voltado para a lembrança de um passado – o monárquico – através do recolhimento dos objetos que pertenceram à família imperial e dos que, de alguma maneira, estavam envolvidos com ela, e apresentá-los ao público. O lugar escolhido: a casa de verão da família imperial. Como em outras ocasiões e lugares, ao MIP cabia atar o passado ao presente, de modo a poder dirigir o futuro. Enquanto instrumento pedagógico, ele procurava recuperar na história não apenas sua função de mestra da vida, mas também a de controladora do tempo – de um futuro orientado pela tadição.36

Capítulo 2A exposição permanente do Museu Imperial.

“Desvendar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha. Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.”

35 Angela Maria de Castro Gomes. O Redescobrimento do Brasil – revolução e questão social. Estado Novo – Ideologia e Poder. Op. cit. p. 111.

36 A respeito da tentativa de “controlar” o futuro a partir do conhecimento do passado, Cf. R. Koselleck. Op. cit. p. 19.

Manoel de Barros

Capítulo 2.1Visita a uma casa de família

“Uma nação... é um grupo mais ou menos considerável de famílias provindas às vezes de sangue mui diferente, mas todas unidas pela identidade de espírito público; tem no passado uma só história, não duas, e se dela rompesse as tradições deixaria de apresentar-se devidamente”.

Francisco Adolfo de Varnhagen, prólogo à História Geral do Brasil, Prólogo à 2ª edição, p. 05.

“... ao visitante apressado por certo escapará que no momento em que o Museu Imperial de Petrópolis se lhe apresenta muito mais como um museu da família imperial brasileira, ele revela sua proposta conceitual.”37

O homem que se curva aos pés do visitante, para pôr-lhe as pantufas que vão proteger o chão que se vai pisar, proporciona uma sensação estranha, logo no início da visita à exposição permanente do MIP. Sem dúvida, é o começo de uma experiência que transcende o cotidiano do visitante. Algumas pessoas seguram nas outras; crianças deslizam pelo hall de entrada do prédio principal. O ato de colocar aqueles “capotes de sapato” enormes funciona na imaginação dos visitantes como uma espécie de “passaporte” para uma experiência incomum, fora da sua realidade diária.

Um mergulho no tempo?

Passo pelo vestíbulo e deixo a bolsa e o casaco.

Não há um circuito fixando o sentido do percurso a ser seguido. Há, sim, um roteiro de visita onde está indicado o que vai ser visto; um itinerário a ser seguido.

37 Ilmar Rohloft de Mattos. Relatório sobre o Museu Imperial de Petrópolis. In: Seminário Museus Nacionais, Perfis e Perspectivas. Rio de Janeiro, Pró-Memória, 1988, p. 02.

Entra-se numa seqüência de salas e “cantos”, alguns separados por blindex, onde se assiste a uma espécie de congelamento de ações.

(Figura 1)

Pergunto-me se estou pisando na casa de verão da família imperial tal qual ela era. Vejo a sala de jantar: mesa posta, cristais, louças dos serviços imperiais, quadros, etc...

Mas serão verdadeiros aqueles objetos? Pouco importa. Interessa menos ao museu a autenticidade dos objetos expostos, e mais a eficiência dos mesmos na evocação de um passado escolhido para ser lembrado.

Sala de Jantar

“A mobília em mogno, com marca do fabricante francês F. Léger Jeanselme Père & Fils, foi do Palácio de São Cristóvão. A mesa está posta com o serviço de cristais de Bacará (fabricação francesa) com o brasão imperial, a porcelana francesa do serviço do casamento de D. Pedro I e D. Amélia e talheres de prata de marca “Christofle”, que pertenceram ao Barão de Mecejana.

O Lustre de metal dourado com pingentes de cristal e arandelas coloridas, para 48 velas, pertenceu ao Marquês de Abrantes.

A comida era preparada na cozinha externa do palácio e vinha em caixas de madeira forradas de zinco, para o corredor anexo, onde os alimentos eram servidos nas travessas e levados à mesa do Imperador.

Nas paredes, naturezas mortas de Estévão Silva, Augusto Rodrigues Duarte, Giambattista Pagani e Vicente Pereira Mallio, pintores do século XIX.”38

Algumas salas e “cantos” chamaram-me mais a atenção do que outros. Em uma das entradas de uma sala deparei-me com uma tabuleta com o nome de uma família e algumas informações sobre o mobiliário. Tratava-se de uma doação feita pela família Franklin Sampaio. As peças que estão naquela sala não têm uma função decorativa. Estão noutra casa de família, expostas ao olhar do visitante com um ar cerimonial e uma função específica.

38 Idem.

“De um lado estão as coisas, os objetos úteis, tais como podem ser consumidos ou servir para obter bens de subsistência, ou transformar matérias brutas de modo a torná-las consumíveis...

Todos estes objetos são manipulados e todos exercem ou sofrem modificações físicas, visíveis: consomem-se. De um outro lado estão os semióforos, objetos que não têm utilidade, no sentido que acaba de ser precisado, mas que representam o invisível, são dotados de um significado; não sendo manipulados, mas expostos ao olhar, não sofrem usura.”39

Agora, no MIP, objetos significantes, - semióforos -, protegidos num local destinado a este fim, deixam de ser o orgulho da família Sampaio para fazerem parte de uma coleção “eleita” por um lugar.

A escolha de um museu para abrigar aquelas peças tem como razões determinantes as próprias características destas instituições: o seu caráter de permanência, que garante a salvaguarda desses objetos, bem como a possibilidade de exposição ao público. Estas são também as razões que motivam certos grupos sociais a doarem a museus objetos de família.

Escolhe-se um passado que se quer que sobreviva, mas escolhe-se também uma forma de apropriação deste passado. Da fundação do MIP até 1993, a exposição permanente, que ocupa o prédio principal do museu, passou por pequenas modificações. Segundo alguns funcionários, foram realizadas adequações devido ao acervo adquirido e à necessidade de aproveitamento do espaço. Todavia, no essencial, a concepção da exposição não foi modificada na trajetória de vida da exposição.

Desde a criação do MIP várias famílias doaram objetos de uso pessoal e de suas residências: Guilherme Guinle, Lineu de Paula Machado, Pedro Paranaguá, só para citar algumas. Estas famílias, parte de grupos sociais privilegiados, formam o que Francisco de Paula Ferreira de Resende, no século XIX, identificava como “boa sociedade”, procurando caracterizar o segmento social privilegiado de uma sociedade escravista e colonial. Segundo o memorialista, a sociedade imperial era constituída pelas

“três seguintes classes: a dos brancos e sobretudo daqueles que por sua posição constituíam o que se chama a boa sociedade; a do povo mais ou menos miúdo; e finalmente a dos escravos.”40

Os objetos das famílias que por um tempo determinado habitam o MIP, ao serem deslocados de seu habitat, adquirem um valor diferente, ou seja, não se trata mais de

39 Krzystof Pomian. Coleção. Enciclopédia Einaudi, Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986, v. 1. Memória / História, p. 71.

40 Francisco de Paula Ferreira de Resende. Minhas Recordações. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944, p. 176.

objetos de uma sala de visitas: passam a ser testemunhos e a provocar nostalgia. Longe de se destinarem a decorar o museu, os objetos, por serem indícios culturais de um tempo, evocam este tempo. São objetos mitológicos e não mais funcionais. Assiste-se a uma seqüência de objetos que pertenceram a pessoas consideradas célebres, por isso, adquirem este caráter de objeto mitológico. Há uma espécie de fetichismo na forma como os objetos são apresentados no MIP.

A exemplaridade da família imperial é reforçada ao longo da trajetória do MIP. As notícias sobre as festas em torno dos 50 anos da instituição e 150 anos da cidade de Petrópolis enfatizam esta vocação do museu para casa de família. Em entrevista a um jornal de Petrópolis, em março de 1993, o ex-editor do MIP, Lourenço Luis Lacombe, fala desta vocação:

“JCO – Durante esses 50 anos, quem o Sr. Destacaria como o grande benfeitor do Museu Imperial, entre os presidentes da República que se sucederam?

Prof. LLL – Sem dúvida nenhuma, o Presidente Getúlio Vargas. Note bem, eu sou contra a ditadura Vargas, contra a repressão, embora ache, diga-se de passagem, que ele era um grande estadista... Mas o Museu Imperial foi a menina dos olhos dele. Entre 1940 e 1943 ele nos fez diversas visitas mesmo antes da inauguração, e sempre de improviso: estávamos nós muito bem no trabalho e aparecia alguém gritando: “Olha o Presidente! Olha o Presidente!”. E ele, sempre amabilíssimo, com aquele jeitão clássico, sentava-se no gabinete do Professor Alcindo, batendo na barriguinha, e perguntava: - “Ô Alcindo, o que está faltando no Museu?”. O professor Alcindo falava, o ajudante de ordens anotava; e dali a um ou dois dias o material chegava. Mesmo porque todo o mobiliário do Império que estava nas repartições federais foi entregue ao Museu Imperial. Eu fui o encarregado desse recolhimento, e várias vezes tive que brigar, na Biblioteca Nacional, no Arquivo Nacional, no próprio Palácio do Catete... Houve até o caso de uma cômoda linda – e agora eu posso falar, porque já morreu todo mundo... (risos) – evidentemente do tempo do Império, que o mordomo do Palácio Itamaraty me mostrou, na dúvida: “Olha, tem isso aqui... Será que pertenceu ao Palácio do Imperador?”. E eu, na maior cara-de-pau: “Pertenceu. Eu não tenho a menor dúvida!” (risos). Sei lá se foi do Imperador! Mas está aí, preservada, e é um móvel maravilhoso...(mais risos). Modéstia à parte, quem deu ao Museu o caráter de Casa de família que ele tem hoje, fui eu.”41

Casa de família, Museu Imperial ... O que ali sobrevive da história do período imperial – refiro-me aos objetos, suportes de memória – é o que os que conceberam o MIP escolheram: aspectos de uma família “exemplar”. Mas é também o que os que mantêm a instituição reforçam.

O Museu produz saber, persuade, inculca valores e crenças. Ele conta uma história mas também tem uma história a ser contada.

É sob esta perspectiva que tento compreender a atualização feita pelo MIP de um “sentimento aristocrático”.

41 Jornal Cultural. O Belisco, Petrópolis de 1993, ano IV, n. 39.

“É inteiramente aristocrático o sentimento que então dominava... Não só as diversas raças nunca se confundiam mas muito pelo invés disso, cada raça e cada uma das classes nunca deixavam de mais ou menos manter o seu lugar.”42

Otávio Tarquínio de Souza prefaciou o livro de memórias de Francisco de Paula Ferreira de resende, definindo-o como um mineiro de boa origem, por ser parente de grandes do Império. A sociedade apresentada por este mineiro estava impregnada por hierarquias e diferenças, vistas como naturais.

Ao percorrer as outras partes da exposição, deparei-me com outros objetos como, por exemplo, quadros, jóias, coroa etc..., objetos que nos fazem refletir sobre a existência de um momento histórico, pelo menos na aparência, de abundância e harmonia. A pergunta que nos ocorre é inevitável: e o conjunto da sociedade? Onde estão representados os que viviam naquele tempo, além da família imperial e das demais famílias da “boa sociedade”?

Entro em salas escuras onde estão expostas jóias, uma coroa, espadas, um traje majestáltico enfeitado com papos de tucano, que pertencia ao imperador Pedro II. Subo as escadas e passo por cuidadosas “arrumações”: quartos de vestir da princesa, berços etc... Desço e continuo a procurar os outros personagens daquela história. Chego a uma sala que apresenta alguns objetos relacionados com a Assembléia Constituinte de 1823, o reconhecimento da independência e outros eventos. Além dos móveis e quadros, encontram-se duas vitrines: uma dedicada à consolidação do Estado e outra à organização da Sociedade. Esta última, certamente, foi a que me interessou. No seu interior encontravam-se: uma gravura de D. Leopoldina e um óleo que apresentava tropeiros negociando um cavalo; uma carta de D. João VI de 03/09/1825 sobre o Tratado de Paz, Amizade e Aliança entre Portugal e Brasil; um gomil e uma bacia de prata que pertenceram a D. Pedro I; fivelas de prata usadas em sapatos; um bastão; uma compoteira e pratos de porcelana. Sem dúvida, esta sala é emblemática.

Que sociedade era essa que a vitrine apresentava? Que relação pode existir entre os grupos sociais que viveram o período monárquico e bastões, fivelas, bacia de prata e compoteiras, na forma como são apresentados? Seriam objetos usados por quem? Fui à procura de algo que desse conta da proposta da vitrine – “organização da sociedade”. Encaminhei-me a uma outra sala, que, diferente das outras, apresentava um texto:

“A vida urbana civiliza-se e importa modas e costumes, idéias e tecnologias, que gradualmente vão se ‘abrasileirando’ e caracterizando a fisionomia das grandes capitais – Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife.”43

Logo no início do texto o termo “Civiliza-se” chama a atenção. O sentido da expressão empregada é o de que se pressupõe que quem se civiliza estava num estado de bárbarie.

42 Apud Ilmar Rohloff de Mattos. O Tempo Saquarema. Op. cit. p. 112.43 Texto apresentado pela exposição do MIP na vitrine Organização e Sociedade.

“Esta palavra (civilização) foi criada a partir de Civilizado e Civilizar, que já existem desde há muito e são usuais no século XVI. Civilização ainda (por volta de 1732) não é mais que um termo de jurisprudência e designa um ato de justiça ou um julgamento que torna civil um processo criminal. A expressão moderna no sentido de passagem ao estado civilizado, vem mais tarde, em 1752, sob a pena de Turgot que então preparava uma obra sobre a história universal, mas ele próprio não a publicará. A entrada oficial da palavra num texto impresso é assinalada sem dúvida com a publicação do Traité de la population (1756) de Mirabeau, o pai do tribuno revolucionário.”44

Ao definirmo-nos como, agora, “civilizados”, definimo-nos em relação ao outro, ou melhor, aos outros. No caso, os que não são brasileiros e vivem na América – hispânica e os que não fazem parte da “boa sociedade: o povo mais ou menos miúdo e os escravos.”45

O MIP atualiza esta noção tão cara ao século XIX, quando a preocupação com a civilização, o progresso e a cientificidade são uma constante nos países como o Brasil, que pretendiam ingressar no conjunto das nações ditas civilizadas.

A visita à exposição chega ao fim. E pergunto-me: que perspectiva é esta que o MIP atualiza?

44 Fernand Brasudel. Gramática das Civilizações. Lisboa, Teorema, 1989, p. 18.45 Francisco de Paula Ferreira de Resende. Op. cit. p. 176.