revista literatas nº 31 - ano ii

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Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 25 de Maio de 2012 | Ano II | N°31 | E-mail: [email protected] “A oralidade é meu culto” "A África que o mundo necessita é um continente capaz de ficar de pé, de andar em seus próprios pés. É uma África consciente do seu próprio passado e capaz de continuar reinvestindo este passado em seu presente e futuro." - Joseph Ki-Zerbo HOJE É DIA DA ÁFRICA 90 anos do poeta-mor Uma carta ao Ministro Págs. 03-04 Por quê Ler?Pág. 05

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Page 1: Revista Literatas Nº 31 - Ano II

Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 25 de Maio de 2012 | Ano II | N°31 | E-mail: [email protected]

“A oralidade

é meu culto”

"A África que o mundo necessita é um continente capaz de ficar de pé, de

andar em seus próprios pés. É uma África consciente do seu próprio passado

e capaz de continuar reinvestindo este passado em seu presente e futuro."

- Joseph Ki-Zerbo

HOJE É DIA DA ÁFRICA

90 anos do poeta-mor

Uma carta

ao Ministro Págs. 03-04

Por

quê

Ler?Pág. 05

Page 2: Revista Literatas Nº 31 - Ano II

S E X T A - F E I R A , 2 5 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 2

José Craveirinha, ícone eterno das gerações literárias

Q uando um homem já não faz parte de nós, diz-se que

morreu, mas quando um rei se vai, tomba, não morre

nem falece, muito pelo contrário, nasce para uma nova

vida. Reixiste. Revive. É um deus, principalmente neste

continente nosso que só ele próprio desvenda os seus

mistérios.

No dia 28 de Maio de 1922, nasceu na rua do Zilhalha que hoje cedeu

à civilização, para se chamar Irmãos Roby, aquele que se tornou o

poeta de todos os tempos, o poeta-mor, o embondeiro e monstro

sagrado da Literatura Moçambicana que enquanto homem dedicou

a si próprio, vidas e vidas. Esse herói da poesia chama-se José Craveirinha. O símbolo in-

delével de um país que ainda em vida disse que ama sem dizer o nome.

Neste 2012 que o poeta não está entre nós, celebra os seus 90 anos de nascimento. E não

dissemos? Poetas não morrem e quem assim os têm, viverá no temor dos seus fantasmas,

porque eles, estão registados nos livros do mundo, na memória do povo e na história uni-

versal. Ninguém os apagará, muito pelo contrário, quanto mais dista o seu desapareci-

mento físico, mais se consuma a sua presença. José Craveirinha, os 90 anos que comemora,

está lá, na Mafalala, na Munhuana, na sua casa fechada para os mochos e aberta para o seu

povo que sempre dedicou versos.

Está lá o velho Craveirinha, no Tunduro celebrando os seus 90 com os M’sahos que tanto

preza, dizendo a sua poesia composta por lâminas e alfinetes, fazendo delirar os ares com

as verdades que sempre recitou. Está lá com a sua poesia que tem tom de ordens por se

cumprir de imediato.

Entretanto, neste dia que África em pleno congestionamento de ambições e indigestões,

celebra seu aniversário. 25 de Maio que hoje é, pautamos por uma edição mais africana ou

africanizada, afinal já cá estamos neste continente sedento no olhar do mundo. E porque

esta África vem daquela que é o Berço da Humanidade, destacamos uma africana que se

encontra em Portugal. Trata-se da escritora angolana Ana Paula Tavares que através de

uma entrevista ao Buala, ora em destaque na nossa revista, fala dos seus versos e adversos,

seus tempos e contratempos de Angola, os fantasmas da escrita que o perseguem e os que

vivem consigo, em fim, fala de si e dos seus.

Algo a destacar nas suas declarações é que, contrariamente a o que se tem dito através da

crítica literária de que Ana Paula Tavares é a maior da poesia contemporânea angolana, a

escritora declara sumariamente que não é justa essa designação, enumerando outras es-

critoras que ao seu entender, são dignas desse título, para a nossa admiração. De facto a

humildade é o culto dos melhores. Ser e não assumir ser, dá-lhes mais mérito e, é por

merecer.

Enquanto isso, em Maputo, o Movimento Literário Kuphaluxa deu o início ao projecto

Núcleos Escolares de Leitura, uma iniciativa que virá a provar que a leitura é uma cultura

e, como tal, se transmite. Nesta semana o escritor António Cabrita juntou-se à iniciativa

dando uma palestra sobre a leitura para cerca de 200 alunos na Escola Secundária Fran-

cisco Manyanga. Um bom princípio para um projecto tão jovem. Mais e mais vai se mar-

cando entre as páginas que se seguem nesta edição que é trigésima primeira. Mas antes e

com tom de boa fofoca fica esta frase “os bons momentos virão”.

Eduardo Quive

[email protected]

Editori@l Destaque S E X T A - F E I R A , 2 5 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 3

Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78

117

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Japone Arijuane

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EDITOR

Eduardo Quive

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CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele

([email protected])

Cel: +258 82 57 03 750

REPRESENTANTES PROVINCIAIS

Dany Wambire - Sofala

Lino Sousa Mucuruza - Niassa

COLABORADORES FIXOS

Pedro Do Bois (Saranta Catarina-Brasil), Victor Eustáquio (Portugal), Mauro Brito

COLABORAM NESTA EDIÇÃO

João Tala - Angola

Francelino Wilson - Lichinga

Ana Paula Mabrouk-Portugal

Camila Vardarac-Brasil

Luís Kandjimbo - Angola

Ricardo Riso - Brasil

Cruz Salazar - Maputo

COLUNISTA

Marcelo Soriano (Brasil)

Nelson Lineu - Maputo

FOTOGRAFIA

Arquivo — Kuphaluxa

Eduardo Quive

ARTE E DESIGN Eduardo Quive

PARCEIRO

Centro Cultural Brasil—Mocambique

FICHA TÉCNICA

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José Craveirinha, ícone eterno das gerações literárias

Q uando um homem já não faz parte de nós, diz-se que

morreu, mas quando um rei se vai, tomba, não morre

nem falece, muito pelo contrário, nasce para uma nova

vida. Reixiste. Revive. É um deus, principalmente neste

continente nosso que só ele próprio desvenda os seus

mistérios.

No dia 28 de Maio de 1922, nasceu na rua do Zilhalha que hoje cedeu

à civilização, para se chamar Irmãos Roby, aquele que se tornou o

poeta de todos os tempos, o poeta-mor, o embondeiro e monstro

sagrado da Literatura Moçambicana que enquanto homem dedicou

a si próprio, vidas e vidas. Esse herói da poesia chama-se José Craveirinha. O símbolo in-

delével de um país que ainda em vida disse que ama sem dizer o nome.

Neste 2012 que o poeta não está entre nós, celebra os seus 90 anos de nascimento. E não

dissemos? Poetas não morrem e quem assim os têm, viverá no temor dos seus fantasmas,

porque eles, estão registados nos livros do mundo, na memória do povo e na história uni-

versal. Ninguém os apagará, muito pelo contrário, quanto mais dista o seu desapareci-

mento físico, mais se consuma a sua presença. José Craveirinha, os 90 anos que comemora,

está lá, na Mafalala, na Munhuana, na sua casa fechada para os mochos e aberta para o seu

povo que sempre dedicou versos.

Está lá o velho Craveirinha, no Tunduro celebrando os seus 90 com os M’sahos que tanto

preza, dizendo a sua poesia composta por lâminas e alfinetes, fazendo delirar os ares com

as verdades que sempre recitou. Está lá com a sua poesia que tem tom de ordens por se

cumprir de imediato.

Entretanto, neste dia que África em pleno congestionamento de ambições e indigestões,

celebra seu aniversário. 25 de Maio que hoje é, pautamos por uma edição mais africana ou

africanizada, afinal já cá estamos neste continente sedento no olhar do mundo. E porque

esta África vem daquela que é o Berço da Humanidade, destacamos uma africana que se

encontra em Portugal. Trata-se da escritora angolana Ana Paula Tavares que através de

uma entrevista ao Buala, ora em destaque na nossa revista, fala dos seus versos e adversos,

seus tempos e contratempos de Angola, os fantasmas da escrita que o perseguem e os que

vivem consigo, em fim, fala de si e dos seus.

Algo a destacar nas suas declarações é que, contrariamente a o que se tem dito através da

crítica literária de que Ana Paula Tavares é a maior da poesia contemporânea angolana, a

escritora declara sumariamente que não é justa essa designação, enumerando outras es-

critoras que ao seu entender, são dignas desse título, para a nossa admiração. De facto a

humildade é o culto dos melhores. Ser e não assumir ser, dá-lhes mais mérito e, é por

merecer.

Enquanto isso, em Maputo, o Movimento Literário Kuphaluxa deu o início ao projecto

Núcleos Escolares de Leitura, uma iniciativa que virá a provar que a leitura é uma cultura

e, como tal, se transmite. Nesta semana o escritor António Cabrita juntou-se à iniciativa

dando uma palestra sobre a leitura para cerca de 200 alunos na Escola Secundária Fran-

cisco Manyanga. Um bom princípio para um projecto tão jovem. Mais e mais vai se mar-

cando entre as páginas que se seguem nesta edição que é trigésima primeira. Mas antes e

com tom de boa fofoca fica esta frase “os bons momentos virão”.

Eduardo Quive

[email protected]

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“O português de Moçambique

nasceu com a independência”

F alando momentos depois da sua comunicação

nas Jornadas de Língua Portuguesa decorridas a dias em Maputo, sobre os Desafios de Moçambique a nível da Pesquisa sobre o Português, a linguista Perpétua Gonçalves teceu seus comentários à Literatas, sobre a afluência do português nos moçambicanos e sobre o que chamou de Português Moçambicano, caracterizado por algum desvio das normas europeias. No entender da académica, existem ainda poucos estudos sobre a fonética moçambicana no português e isso, poderá se justificar pelo facto de, o nosso português não ter mais de quarenta anos, caminhando com os anos da independência de Moçambique (37 anos) do jugo português. “Há muitos fenómenos a acontecer a muito pouco tempo, praticamente o português de Moçambique nasceu com a independência. Então para uma história da ciência, quarenta anos não é nada e nós temos, portanto, tudo em aberto. Para dar um exemplo, estudos sobre a fonética, portanto a fonologia, a pronúncia específica dos moçambicanos, praticamente não há nada feito sobre isso. E é uma área interessantíssima onde acontecem viários fenómenos. Mesmo outras áreas onde já estão relativamente estudadas como por exemplo a regência verbal. Mas isto, refiro-me ao nível

da língua. E o ensino? As estratégias adequadas a esta nossa população e a situação do contacto bilingue? Portanto é um mundo que está em aberto.” Entretanto, enquanto os fenómenos linguísticos moçambicanos ainda são pouco estudados, há por parte de falantes do português em Moçambique, uma tendência de abandonar as normas do Português Europeu. Sobre isso Perpétua Gonçalves, considera que “o português europeu é a norma oficial e isso não significa que os falantes usem essa língua e, eles já estão a introduzir alterações e novas formas de fala e isso, trás para nós uma certa dificuldade em saber o que podemos considerar ou não.” Perpétua Gonçalves, vai mais longe, mostrando casos concretos do cenário moçambicano. “Por exemplo na concordância verbal, parece que nós queremos seguir a norma europeia nós não queremos dizer coisas como “nós está cansado” ou “houveram problemas” são esses fenómenos que tendemos a não querer e até corrigimos, mas isso já faz parte da nossa moçambicanidade. Aliando aos exemplos que dei já, “os jovens não são dados responsabilidades de família”. Isto é um tipo de construção absolutamente excluída pelo português europeu, mas que os falantes escolarizados e os não escolarizados usam e que provavelmente vamos querer conservar.” Por outro lado, se o cenário é assim nas zonas urbanas, o que se pode dizer sobre a situação em que estão as zonas recônditas?

“Nas zonas recônditas não se fala português. Nessas zonas falam-se

línguas bantu, a massificação é um fenómeno que acontece

gradualmente, é uma situação que não pode ser gerida estatalmente. A

própria comunidade vai ajudando a estabilizar os fenómenos, vai

ajudando outros a serem excluídos e abandonado. É um processo lento,

como em qualquer comunidade não só na nossa, as línguas vão

mudando de forma natural e não por processo governamental, excepto a

ortografia, aí não há possibilidade.”

- Defende a linguista moçambicana Perpétua Gonçalves

Eduardo Quive – Maputo

Texto & Foto

Queixumes ao meu avô estiloso (Pelos 90 anos que faz este ano 2012)

K a Mpfumo, antes Maputo, cidade capital desta pátria a parte, já não é, está ainda a quilómetros de distância de marcar esse golo. Maputo, onde

é? A pergunta sensata que nunca se atreve a calar, e que nós teimaremos em repetir; necessitamos das coordenadas para a possível localização dessa cidade vendida a trinta dinheiros aos mesmos que antes eram dela seus proprietários. Ontem Mpfumo, com seus poucos brilhos e consolos, palmatoadas e algumas tantas promovidas avenidas heroicamente topo -nominadas. Onde não tem lugar quem por ela lutou arduamente, dividida estava urbana e suburbana - mente, hoje já não se pode atrever a mencionar tal afamada divisão, pois já não se tem a noção, de que o que é o quê, e onde é onde! Tudo a mistura, como uma salada russa com muitos ingredientes que não lhe fazem parte, a miséria promovida nas avenidas, as gentes anti-municipais condenadas por existirem, a paisagem se que é

existe, escancarada, pseudo - revolucionários a solta, removendo os vírus que lhe sustentam a qualidade dos que intervêm. Hoje é Maputo (a), desfavorecida a maioria, ácida e humedecida pelos discursos insípidos. Uma cidade de espelhos, que nos mostra apenas o que queremos ver, a nossa imagem e semelhança, translúcida (apenas vêm os que estão por dentro, não sendo possível aos que estão cá fora), Maputo é resumo ou uma pequena resolução das restantes províncias, se no quintal da capital se encontram essas mazelas, não muito diferente serão as restantes. Aqui nasceu O POETA, da Mafalala, bairro mítico e tão real que lhe conste, onde os zincos que lhe fazem as paredes ainda conservam o cheiro dos tempos idos e a poeira das armas baleadas em mãos, de mãos, da companhia miliciana. POETA do povo e de todos, 2012 nasce pela 90ª vez, com um parto pouco condigno, só os teimosos ou reaccionários, assim denominados os homens das artes, o assistem e lhe dão as primeiras assistências, nasce ao olhar seco e indiferente dos

Carta Aberta ao Senhor Ministro

Mauro Brito – Maputo

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Livros & Leitores S E X T A - F E I R A , 2 5 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 4

dirigentes que a dada altura, assim mandava o protocolo ou ordens superiores, lhe atribuíram o título de Herói nacional. Como pode um herói nacional, não receber nenhuma menção ou consideração por parte dos nossos dirigentes, desde os tempos da sua existência como cidadão e POETA? Atirado aos bichos, hoje assim o vemos, sem nenhuma notícia por parte dos órgãos de informação públicos que por dever, informariam ao povo sobre a sua vida e a poesia; atirado também ao fundo de uma rua que ostenta seu nome, rua sem estilo, e sem conteúdo, pouco visitada, não deveria na rua em seu nome estar patente a título eterno uma estátua sua, como acontece aos PESSOAS, MIGUEIS TORGA, OU CARLOS DRUMOND DE ANDRADE e demais? As suas lágrimas hoje tombam no mesmo chão da sua última morada (rua), Romão Fernandes Farinha, e continua a crescer essa nódoa de lágrima sempre que lá me faço junto com os meus colegas (Kuphaluxa) ou ainda só, a mancha vai crescendo de gota para poça, para lagoa, de lagoa para rio. Os seus poemas intemporais salientam e põem sem véu aquilo que ele já há muito previa, esse poder dos escritores de prever, serão estes os que nos irão governar? Cometera eu algo propositadamente, José Craveirinha, não faria 90 anos, ele continuará fazendo enquanto a sua poesia continuar existir, ser ouvida, lida e bebida,

ela fala por si e de verdade, sem intermediários nem mediadores. Tsilana (que txaia) a seu estilo, físico, como literariamente, vai chicoteando os homens de jet 7, sem intimidações, passeando a sua Mafalala, de pele curtida, a secar ao sol, de norte à sul e do zumbo ao Índico deste áfrico país, moçambicanamente ao sabor das tangerinas de Inhambane. “Sabes ou não sabes minha mãe?”

Podem os quem de direito, mostrar-se indiferentes e a pouca vergonha para com o povo, o poeta e a eles mesmos? Não é tempo de nos despirmos de véus e grinaldas que nos atrapalham a vista não -direccionada ao objecto real e não desfocado, como temos sido habituados a assistir? E ainda há sentimento de que tudo lhes é estrangeiro, que nada os diz respeito, ignorando um simples pedido de apoio para manutenção do espólio, da casa e publicações DAS OBRAS do Poeta, que muito encontra-se por explorar, com a devida atenção, responsabilidade, idoneidade, calibre e capacidade literária. Coisa que não tem sido verificada, qual o papel das entidades criadas para velar pela cultura como deve ser? Violando a própria alma, as bases da cultura de um país que se diz país. Há tanto tempo há desfolhar… Um autêntico assalto à cultura. Por favor Senhor ministro da cultura, com o devido respeito, podem gastar milhões de meticais em anuais festivais nacionais de cultura, sem resultados vistos, movimentando o país todo (contacto ou uma façanha de unidade nacional), fazendo empobrecer ainda mais, e não sequer fazer uma dedicatória, uma comunicação, uma menção, em nome do POETA? O vosso silêncio preocupa imenso, silêncio é o rei do momento de acção política, só quando as massas se agitam e sentem a comichão a vir, dão um alívio temporário, quando muito lhes interessar e dai obterem vantagem política (pontos no seio do partido). “O pior cego é aquele que finge que não vê” Não seria a adaptada Casa -Museu José Craveirinha uma casa de todos e para todos, com a devida organização, respeito, cuidado, uma rota e onde os alunos pudessem contemplar e complementar a matéria escolar ligada as letras e não só, enriquecimento cultural, ser um ponto de visita constante, por parte de turistas, estudantes, cidadãos, organizações, instituições ligadas a ao trabalho da letra e da palavra. José Craveirinha é um homem de cultura. Não o podem vigiar na sua cabeça. Não é?

Em titulo da minha homenagem aqui deixo um inédito texto, que com certeza vos há-de retirar os ferrolhos do cérebro.

SOBROLHOS FRANZIDOS

Na urbe de sobrolhos franzidos imoral não é das balas o coito

Nem sequer a bêbeda nudez das facas

Mas sim nesta cidade de merda A cínica parábola indecorosa

de quem é o dono do revólver que nos baleia Ou pelas surradas costas da metáfora

Origina a puta da mão que nos esfaqueia

(poema inédito de autoria de José Craveirinha) Várias cartas não correspondidas e respondidas, simplesmente atirada ao caixote de lixo, respostas claras de que a preocupação do governo e dos privados não é poesia, literatura muito menos cultura no seu verdadeiro sentido; o maior foco e interesse sempre foi a matéria sócio -politica e económica. Celebram-se com a nossa pobreza de espírito, estaremos sempre ao lado dando a mão a palmatória, fazendo e dizendo as palavras e poesias culturalmente, que a alma do poeta descanse e que se façam mais cidadãos de uma nação que ainda esta por existir, se assim for permitido pelas instâncias superiores e por nós mesmos. Estamos todos de acordo, estamos todos de acordo…. Nota:

José Craveirinha, considerado maior poeta de Moçambique

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Livros & Leitores

O evento que contou com a presença de cerca de 200 alunos da 11ª e 12ª classe, marca o princípio do projecto Núcleos Escolares de Leitura (NELE) criado no âmbito de Programa de Apoio e Incentivo à Leitura do Movimento Literário Kuphaluxa, com os apoios da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), Instituto Camões em Maputo e da revista Literatas. “o Porco Espinha estava na estrada, de repente ouve um barulho ao fundo para onde presta atenção e vê uma coisa grande que crescia cada vez mais. A coisa ia crescendo e aproximava-se de si, mas o Porco Espinha não sabia o que era aquilo. Olhava atentamente, mas não reconhecia aquela coisa que já está muito perto de si. E a tal coisa que era um camião, passou por cima de si e esmagou-o sem que ele soubesse de que se tratava.” Foi esta a parábola inicial do escritor para ilustrar a falta de lucidez pelos que não lêem. Seguindo em frente, Cabrita disse para explicar a essência da sua estória “quando a gente não lé, se parece com o Porco Espinha. Ficamos sem conhecer os nomes das coisas, da sua utilidade e dos seus perigos. Ficamos na penumbra. Daí, ler ajuda a ultrapassar obstáculos. A leitura torna-nos gente, nos diferenciando doutras coisas. Por isso é importante ser um leitor.” Na sua conversa sobre a leitura António Cabrita, frisou que a leitura é o caminho para o desenvolvimento académico e que só assim é que se justifica o facto de a cabeça ser redonda. “Sabem porque é que a cabeça é redonda? É porque ela tem a capacidade de circular pelas ideias. Isto significa que como pessoas, já nascemos com capacidade de ser multiplicadores de pensamentos e capazes de pensar uma coisa enquanto pensamos noutra. Não se quer que sejamos quadrados. Pessoas com uma linha de pensamento recta. Com uma só ideia. Então lendo, teremos essa capacidade de ser múltiplos nos olhares, nos saberes e nas atitudes” considera o escritor. A Escola Secundária Francisco Manyanga, tida como uma das maiores instituições de ensino no países é pioneira na implantação

dos Núcleos de Leitores pelo Movimento Literário Kuphaluxa, e de acordo com a organização, seguir-se-ão, as escolas secundárias da Polana e Josina Machel. O projecto NELE serve igualmente, para responder os desafios da qualidade de ensino que se tem ainda como baixa no país, podendo com a ampliação dos recursos existentes, alastrar-se para o resto das províncias do país.

Entretanto, a falta de apoios poderá dificultar o alargamento da iniciativa por

outras instituições de ensino, contando-se no princípio apenas com a doação de

livros pela AEMO e desde já, com o envolvimento do Instituto Camões e com

divulgação pela Revista Literatas. Também os escritores, a título individual, vão

se envolvendo no projecto. O próximo encontro com do núcleo, será com a

escritora Paulina Chiziane. BLOG OFICIAL: nelemocambique.blogspot.com

L ançado que foi “O Branco das Sombras

Chinesas” na Livraria Minerva Central em

Maputo, o escritor português António

Cabrita, a convite do Movimento Literário

Kuphaluxa, orientou uma palestra, na última

quarta-feira, sobre a leitura na Escola Secundária

Francisco Manyanga em Maputo.

“Ler ajuda a

ultrapassar

Eduardo Quive – Maputo

Texto & Foto

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Reflexões

A literatura africana contemporânea não tem recebido, especialmente nos países de língua

portuguesa, a devida atenção, merecida por sua importância cultural. Ela tem se manifestado nos diversos idiomas que configuram a teia linguística do continente africano, dos quais os principais são os de origem francesa, inglesa e portuguesa. Esta literatura se enraíza principalmente no movimento denominado negritude. A primeira leva de escritores africanos, a qual participou do primeiro congresso de escritores da África, concretizado em 1956 na capital francesa, inspirou-se nas revoltas de carácter anticolonialista. Entre eles figuram nomes como Léopold Sédar Senghor, Mongo Beti, Bernard Dadié, Ahmadou Kourouma, Sembene Ousmane, Ferdinand Oyono, Tchicaya U’Tamsi e Sony Labou Tansi. Já as obras escritas após a emancipação das colónias africanas se basearam em outra realidade, na qual imperavam os governos totalitários, as agitações tribais, as revoluções e golpes de estado. Elas condenavam as atitudes repressivas, os desmandos dos governantes, ou simplesmente narravam as vivências de seus autores sob este contexto. Por outro lado, alguns escritores procuravam resgatar as antigas tradições. A literatura exercitada neste continente ganhou repercussão mundial por meio de autores renomados e premiados, como Wole Soyinka, da Nigéria; Nadine Gordimer, da África do Sul; e o egípcio Naguib Mahfuz, todos detentores do Prémio Nobel de Literatura. Destacam-se também o queniano Ngugi Wa Thiong’o, o poeta ugandense Okot p’Bitek, entre outros. Não se pode subestimar o papel significativo que as mulheres africanas exerceram nesta literatura; em seus livros elas relatam suas experiências complexas e peculiares, em um continente no qual as mulheres ainda enfrentam problemas típicos dos séculos passados, como a poligamia, ser mãe, a prostituição e a subjectividade feminina, além das formas encontradas para fugir da intensa repressão que sofrem. Escritoras como Amma Darko, Flora Nwapa, Buchi Emecheta, Mariama Ba, Fatou Diome, Bessie Head, Tsitsi Danaremba, entre outras, fazem de sua obra uma bandeira pela integração do feminino na sociedade africana, radicalmente patriarcal e machista, bem como nas decisões económicas e na vivência cultural. Na literatura actual sobressaem nomes como os de Mia Couto, José Eduardo Agualusa e José Luandino Vieira. Mia é de uma família de imigrantes portugueses que se fixaram em Moçambique, país onde ele nasceu, em 1955. Ele é hoje um dos autores moçambicanos mais importantes, e traduzido em inúmeros idiomas. Seus esforços convergem para a elaboração de uma nova narrativa continental. Sua principal obra, Terra Sonâmbula, foi escolhida por um júri especial como uma das melhores produções do século XX. Este romance é constantemente comparado com os livros do brasileiro Guimarães Rosa. O angolano José Eduardo Agualusa é integrante da União dos Escritores Angolanos. Ele contribuiu não só com sua obra, mas também através da criação, em parceria com Conceição Lopes e Fátima Otero, da editora brasileira Língua Geral, a qual é voltada exclusivamente para a edição de livros no idioma português. Entre suas publicações constam Na rota das especiarias, o Filho do Vento, A girafa que comia estrelas, entre outras. Outro angolano importante é José Luandino Vieira, nascido em Portugal, mas naturalizado cidadão de Angola por sua imprescindível actuação na construção da República Popular de Angola, logo depois da conclusão da Guerra Colonial. Em 2006 ele recebeu o Prémio Camões, o mais significativo nas premiações literárias, mas o rejeitou, por acreditar que não está mais literariamente activo; mesmo depois desse discurso ele ainda lançou mais dois livros, neste mesmo ano. Entre suas criações estão os contos Luanda e Velhas Histórias; os romances

Literatura Africana

Contemporânea

Ana Lucia Santana

Rapunzel e outros poemas

da infância

“ É hora de ler”. Essa parece ser a frase que sintetiza o

estatuto atual da leitura em nossa sociedade − ao

menos a nível de expectativas. Atualmente, uma parcela dos educadores, agentes midiáticos, militantes

culturais e gestores públicos vêm chamando a atenção para o papel da leitura na formação de cidadãos criativos e com senso crítico apurado, sobretudo quando incentivados a

manter uma relação de proximidade com a leitura desde o início da infância. Essa perspectiva é também defendida pelo poeta Jairo Cezar, autor de Rapunzel e outrospoemas da infância” (Forma editorial, 2012), seja por meio de ações como educador e ativista cultural, seja no interior de sua própria casa, durante o educar cotidiano de sua filha Beatriz, a quem o referido

livro é dedicado. No entanto, “Rapunzel...” não é uma obra que visa “apenas” incentivar o hábito da leitura junto ao público infantil − objetivo que em si já poderia

ser visto como de grande valor, mas que não seria bem-sucedido se a obra não contasse também com uma qualidade estética apurada (alusiva, nesse caso, ao conjunto poemas/ilustrações). O livro trás (re)leituras poéticas de histórias como “Pinóquio”, “Rapunzel”, “Os três porquinhos”,“O Pequeno Príncipe”, “A Bela e a Fera”, “Peter Pan”... e de episódios vividos por outros seres, que por vezes adquirem um significado mágico no universo infantil, como as joaninhas, girafas e as borboletas. Conta ainda com belas ilustrações que ambientam as poesias ou permitem aos leitores − na segunda parte da obra – divertir-se enquanto colorem imagens vinculadas aos poemas que acabaram de ler.

É desses livros que permitem, aos nossos pequenos, ter “em mãos” um objeto que possibilite que suas mentes sejam regadas, ainda mais, com a fantasia, dando-lhes mais um momento, entre uma e outra descoberta diária, de inserção do maravilhoso em seu cotidiano. “Rapunzel...” é, além disso, do tipo de obra que um pai compra para presentear o filho, mas acaba, ele mesmo, parado, a folhear as páginas, ver e rever as ilustrações ou rememorar as obras a que teve contato em sua própria infância... Em síntese, com seu “Rapunzel...”, Jairo Cezar estreia na literatura infantil mostrando que o gênero – e, em especial como ele o produz −

não se constitui como uma literatura menor. Estreia trazendo muitas expectativas para os seus leitores e tentando mostrar, em consonância com o atual contexto sócio-cultural vivido por nosso país, que não!, “livro fechado não manda recado”.

Anda menina,

vem sem cuidado,

livro fechado

não manda recado.

(Jairo Cezar - É hora de ler

In: Rapunzel e outros poemas da infância)

CEZAR, Jairo. Rapunzel e outros poemas da infância.

Ilustrações de Tônio. João Pessoa: Forma Editorial, 2012.

Janailson Macêdo - Brasil

Fonte: Revista Blecaute

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Poesia LIBERTA-ME DO ESQUECIMENTO, MULHER

JOÃO TALA - Angola

Ela solta o corpo o texto animal e frutos avultados. Quando prontos os frutos bebo-lhe noites o odor da manada. A ela devo as coisas mais elementares: o suspiro libertador a primeira água e, o evangelho deste corpo intacto e húmido; a água acumulada no meu celibato como o amor no último cuspo.

Do Poemário FORNO FEMININO

FOLHAS DE ROSA

Todas as prendas que me deste, um dia,

Guardei-as, meu encanto, quase a medo,

E quando a noite espreita o pôr-do-sol,

Eu vou falar com elas em segredo...

E falo-lhes d’amores e de ilusões,

Choro e rio com elas, mansamente...

Pouco a pouco o perfume do outrora

Flutua em volta delas, docemente…

Pelo copinho de cristal e prata

Bebo uma saudade estranha e vaga,

Uma saudade imensa e infinita

Que, triste, me deslumbra e m’embriaga

O espelho de prata cinzelada,

A doce oferta que eu amava tanto,

Que reflectia outrora tantos risos,

E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,

De lágrimas e estrelas constelado,

Resumem em seus brilhos o que tenho

De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,

Aquela que mais fala à fantasia,

São as folhas daquela rosa branca

Que a meus pés desfolhaste, aquele dia…

In, Poemas Selecionados

Que viagem é esta Que me transporta Além das nuvens, Que me faz flutuar No espaço sem fim, Que me leva Ao ponto mais alto do in-finito? Que viagem é esta Que me encanta, Me domina e me envolve? Que viagem é esta Que me estremece, Me fascina e me absorve? Que viagem é esta Que não tem caminho, Não tem estrada, Não tem ninguém? Que viagem é esta Que me incendeia, me abrasa E me faz suar? Enfim, Que viagem é esta Que me leva e me traz, Num momento de magia, E me deixa jogada, Respirando cansada, Numa paz infinita? É uma viagem inexplicável E, ao mesmo tempo, Tão simples... É a mais longa viagem E, ao mesmo tempo, Tão curta... É uma viagem encantada Que acontece comigo Toda vez que nos amamos. In, Stephanos - Enciclopédia virtual da Poesia Lusófona Contemporânea

www.olegalmeida.com

À Estrela de Jesus Vilela

Na beleza irremediável das feridas alimentam-se mães sem trégua. Nos rios secos, batem e batem os corações alimentados em sangue frio e espesso. Que é lívido. Que procura a boca das raízes nos conjugados ascensos e âmagos. O coração é um bicho estranho, foragido, que vai caminhando gota a gota, ambicionando o amor do ser intacto. E as feridas incautas aproximam-se das mães, em seu viçoso centro, imprudentes ao pérvio fardo de cada sopro: o amor, eternamente feroz. E as mães são as mutiladas candeias que efabulam do interior dos angulares corações. E as feridas das mães são cada vez mais belas. O medo caminha violentamente mais perto, no corpo, na cara, nas vértebras e no ventre onde se abriga com seu volúvel volume, o silencioso amor de mãe. A difusa distância entre o ventre e o gume. Sob a folhagem da água, mães cansadas da aridez que as toca, incendeiam-se através dos filhos. E os filhos, essecingido chumbo cravado nas asas, esse projecto que sobre o mar se estende, alimenta as feridas pelos tendões, como a garganta entre os dedos do útero. As mães debicam sobre a areia a sua rota clara, até ao fim do mundo, erectas: como pela última vez. Sobre a montanha, na subtileza das ínguas um filho incorpora-se na beleza incurável das feridas, enquanto mães em seu delírio tacteiama pedra, até ser flor. Por vezes sangram e cantam, secam os olhos, arrancama língua dos sexos e em permanente luta, corpo a corpo, o amor estende-se, mas os gestos são indiferentes, neste caminhar obsceno de criaturas sem frutos. A aprazível violência do filial e obsessivo bem-querer. Há-de caber numa clara sílaba, num vasto eco numalágrima, numa gota de mercúrio todo o tempo, todo o amor, toda a murcha flor e dor consumida de uma existência sem história: uma travessia nua.

In, O Buzio de Istambul, 2008

A dança das mães

João Rasteiro-Portugal

A VIAGEM

Lenir Mattos de Moura - Brasil Florbela Espanca

Seres que habitam os frutos, como tu, que desfazes a polpa na língua e te fundes na uva, ou eu que bebo na tua transpiração a promessa das grainhas. Seres que não te deixam estar só. O morto olha para si através de ti.

O HORTO MURADO

António Cabrita - Maputo

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Entrevista S E X T A - F E I R A , 2 5 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 9

FONTE: www.buala.org | Por Pedro Cardoso

É normalmente apontada como a referência da poesia contemporânea angolana no feminino. O que significa isso, na verdade? Não, não é verdade. Isso seria de uma injustiça extrema para com Ana de Santana, Liza Castel e Maria Alexandre Dáskalos, para só citar três nomes de criadoras intensas, originais no universo da poesia angolana. O número de títulos publicados não invalida outras contribuições de grande qualidade. Procuro um lugar no universo da poesia angolana, porque é de Angola a minha fala. Não sou muito dada a concursos, lugares cimeiros, comendas. Cresceu no Lubango, numa sociedade colonial marcadamente europeia, que ignorava a sociedade africana com quem convivia, mas que ao mesmo tempo a fascinava. A sua escrita reflecte ou afasta-se deste paradigma? Todos nós somos de um lugar, de uma infância, disse o poeta. Nasci na Huíla, no meio de uma sociedade colonial injusta. Os pastores estavam ali. À sociedade Nyaneka eu devo a poesia, a música, o sentido do cheiro, a orientação a sul. O contacto era-nos (a quem estava em processo de assimilação) interdito. E, também por isso, o desejo era mais forte. Conhecer, saber quem eram e quem éramos deu um sentido à vida. A escrita, em português, ficou para sempre ligada ao paradigma da oralidade, da chama do lugar, do acompanhamento dos ciclos, do respeito pela diferença, do horror à injustiça. Disse que a Huíla a influenciou do ponto de vista estético, sobretudo através dos cheiros, sons, cores e canções que a terão marcado muito do ponto de vista estético. Provém daí a sinestesia constante da sua obra?

A troca de sentidos, ou do apelo dos sentidos, uma certa doença é coisa que carrego desde a infância. Se não tivesse nascido ali talvez fosse mais normal.

Para além do Lubango viveu também no Huambo, Gabela, Sumbe, Benguela e Luanda. Luanda esta que sempre adiou, como já confessou. Que rastos lhe deixaram estes lugares? Tenho memória dos tempos nestes lugares. No Huambo, aprendi outras cores do medo, ao mesmo tempo que ensinava a ler os mais velhos nos arredores da cidade. Experimentei os limites da coragem física, ganhei amigos para a vida. No Kwanza- Sul (Gabela, Sumbe, Kibala, Ebo) percebi que a história de Angola tinha vários tempos e outras tantas velocidades. Fiquei esmagada com a imponência. Percebi o tamanho da minha ignorância. Que tempos eram os das necrópoles em pedra seca, rodeados por silenciosos inselbergs graníticos cheios de pinturas em grutas inacessíveis? Como perceber essas mensagens no meio do ruído louco da guerra. O sonho da cronologia e o seu avesso também ficou para sempre na minha escrita e na minha vida. Nasceu-me a filha, o que foi começar tudo de novo, água pura, meu novo sentido de mim. O medo voltou. Seria capaz de proteger, de percorrer os rios outra vez. Sumbe ajudou a inscrever para sempre, para nunca esquecer a memória do mal: a escravatura, o colonialismo, as relações de dominação, os pequenos e grandes poderes, o alargamento definitivo do sentido da história ao quotidiano. Benguela reforçou a minha ideia de lugares de pertença e lugares de rejeição. A poética do espaço foi um longo aprendizado. Não estava cá dentro. Praticava-se uma linguagem que tinha que aprender. Luanda é o princípio da cidade que de vez em quanto deixa de o ser. Convive bem e mal com os seus fantasmas. A baía é mágica, tem a mais bela curva do mundo. Quase enlouqueci a tentar perceber e a fazer pactos com deus e com o diabo. Mas foi ali que ficou mais clara a força das mulheres do meu país, a forma leve como

"A oralidade é meu culto”

A na Paula Tavares tem olhos grandes e doces. E uma intensidade na

escrita que a tornam numa das mais queridas poetisas e escritoras

angolanas. Em entrevista por e-mail a partir de Lisboa, onde vive,

aborda aspectos da sua escrita e da sua vida. Sem sequência

cronológica, com uma leveza que prende, pela profundidade que evidencia.

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Entrevista FONTE: www.buala.org | Por Pedro Cardoso

pisam o chão, apesar de carregarem um filho em cada mão e outro às costas e na cabeça o mundo inteiro. Já definiu a saída do Huambo para Luanda, por altura da independência, como uma “fantástica fuga que um dia alguém terá que contar”. Quer ser a primeira? Não seria a primeira. Lembro que o poeta Costa Andrade, Ndunduma, que infelizmente já não está entre nós, deixou no seu livro de memórias, Adobes de Memória (dois volumes), uma versão dessa fantástica e terrível aventura. Devo aos meus companheiros de viagem, por enquanto, o silêncio. Há quem fale num “mundo angolano” de Paula Tavares. Que mundo é este – o de Angola da infância, da independência, de 1992, de agora, à distância? Não sei quem falou. Para mim deve ser porque eu não sei falar de outra

coisa. Angola dói-me todos os dias,

alegra-me da mesma maneira.

Dá-me a medida exacta do meu

desconhecimento.

África, Angola, Japão à luz de Mishima, Europa. Lugares seus. Qual o ponto de intersecção? O chão, a terra, os afectos, a leitura. Considera-se uma escritora universal?

Não. Quem sou eu? O mundo é vasto e estranho. A relação com o corpo e com o sexo em África é também muito diferente da das sociedades ocidentais. A sensualidade e o erotismo presentes em alguns dos seus trabalhos têm como fonte esse nosso maior à-vontade com o corpo? Acho que essa famosa e proclamada relação com o corpo não existe. Também tivemos e temos igrejas que nos ensinam a ter vergonha do corpo. Temos mulheres que não têm tempo de crescer e escutar o seu corpo. Temos relações de violência e sofrimento em silêncio. Temos comportamentos próprios das cidades e outros de comunidades distantes. Temos relações injustas reguladas pela força do dólar, pelo exercício do poder. Velhos mitos coloniais sobrevivem, às vezes com novas máscaras, em plena pós- colonialidade. De facto, o seu primeiro livro, Ritos de Passagem, foi recebido em Angola com polémica. Consideraram-na “ressabiada”, “pornógrafa”, como contou numa entrevista…Pois assim se provam os velhos e novos equívocos e também que as idades da inocência se pagam amargamente. Escreve desde pequenina, “para espantar os medos”. Que medos tinha, quando era criança? Todos os medos das crianças, medo do escuro, medo da luz, da injustiça, de perder, de ganhar. Continua a escrever com o mesmo objectivo? Se sim, quais são os medos da Ana Paula Tavares adulta? A escrita tem muitos sentidos. Vastos os enunciados. Não estou fechada na concha do medo. Agora há angústias: não consigo suportar a partida dos amigos, o sofrimento de alguns deles. O medo de estar longe, demasiadamente longe, a ideia de perder a voz e a vez da poesia. Definiu já a literatura e música brasileiras, que os viajantes lhe traziam, como grandes influências enquanto escritora. Que impacto tiveram, ao certo? O Brasil literário e musical foi chegando aos poucos, por ondas em todos os momentos de crescimento, maturidade e velhice. Chico e Caetano, Elza Sores, Elis Regina, Tom Jobim, e tantos outros. A poesia impôs-se com Manuel Bandeira, Drummond de Andrade, Murillo Mendes, o definitivo João Cabral de Melo Neto. Depois a prosa com um lugar de visita constante para Clarice Lispector, Nélida Pinon, Lygia Fagundes Telles. As descobertas mais recentes com Radnuam Nassar, Milton Hatoum ou Bernardo de Carvalho pedem que continue atenta ao que se passa na margem de lá do Atlântico. Trabalhou muito na recolha de tradição oral em Angola. Há quem diga que

os seus textos podem ser lidos em voz alta, que não perdem a força nem se “perdem pelo caminho”. A oralidade é meu culto. As mães embalam os filhos cantando ou dizendo palavras nas nossas línguas todas. Se os meus textos puderem ser lidos em voz alta fico muito contente. Em que ponto está o seu projecto sobre as culturas lunda e tchokwe?

Entregue a tese [de doutoramento], a luta pelo conhecimento continua. Considera a sua escrita ritualista?

Não. Nem por sombras. A sua segunda obra publicada, Sangue de Buganvília, surgiu apenas 13 anos depois de Ritos de Passagem. E passa da poesia à prosa. Porquê este interregno e a mudança de registo? Nunca parei de escrever. Só não via a necessidade da publicação. A escrita sempre se fez nos dois registos: a poesia e a história curta entre a crónica e o conto. A “prosa” e a “poesia” vivem isoladamente? São o que pensamos delas como conceitos, ou excedem-nos? Podem viver isoladamente ou na maior das misturas. Para mim a poesia pode viver isoladamente. Já a prosa (a minha) vive da outra de forma sôfrega e vampiresca. Que possibilidades ou limitações lhe colocam?

Possibilidades todas. Limitações: lembro

o provérbio Cabinda «A centopeia tem

cem pernas, mas anda sempre pelo

mesmo caminho».

Dizem-na avessa ao excesso no uso das

palavras. As palavras têm um valor

definido, como o que vemos afixado

num produto no supermercado? As

palavras têm o seu valor. Depende de

quem e como as usa.

Feminilidade, literatura feminina. Meros rótulos ou problemáticas sérias? Não são meros rótulos. O Feminismo dos anos sessenta do século passado já não está na moda, ou por vezes adquiriu facetas de uma tal rigidez de critérios que abalam as nossas crenças, objectivos, sensibilidades. Mas continuo sensível à diferença: aquilo que escrevem as mulheres, aquilo que vivem as mulheres, mesmo com mulheres presidentes ou ministras é absolutamente diferente daquilo que os homens passam. Mesmo avessa a uma teoria da interpretação, continuo a ler e a sentir essa diferença. Ana Paula Ribeiro Tavares é natural do Lubango, onde nasceu a 30 de Outubro de 1952. Estudou História na então Faculdade de Letras do Lubango (actual ISCED), curso que terminou em Portugal. É mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Logo após a independência, foi delegada da cultura no Kwanza-Sul e técnica do Centro Nacional de Documentação e Investigação Histórica (hoje Arquivo Histórico Nacional), do Instituto do Património Cultural. Nos anos 80 foi responsável pelo Gabinete de Investigação do Centro Nacional de Documentação e Investigação Histórica, em Luanda. Tem vindo a trabalhar em cultura, museologia, arqueologia e etnologia. Como poetisa e escritora, publicou um conjunto de obras que inclui Ritos de Passagem (1985), O Sangue da Buganvília (1998), O Lago da Lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001, vencedor do Prémio Mário António de Poesia 2004, da Fundação Calouste Gulbenkian), Ex-votos(2003) e a A Cabeça de Salomé (2004). A sua obra está presente em antologias de Portugal, Brasil,

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Leituras

A o ler A Cidade Subterrânea de Élio Martins Mudender ressalta, dentre várias

coisas, emoções, sensações, (des)prazeres, etc., a questão dos autores Joseph Hanlon e Teresa Smart, “há mais bicicletas – mas há desenvolvimento?”1

Ler este livro, igualmente, despertou-nos a vontade de partilhar com os amantes da pena e não só a nossa humilde apreciação sobre esta (nova) autarquia que se forma entre as entranhas deste pedaço de chão – Moçambique – como, alias, já se disse, “qualquer leitura crítica que se pretenda satisfatória deve passar da fase analítica a uma outra fase predominantemente sintética que é a da interpretação” (REIS, 1981:41). Fazemos este modesto exercício sem tendências de esgotar as possíveis (de/a)preciações a obra, cf. REIS (ibidem): “não se pense, porém, que com o processo de análise a que se submete o texto literário se completa a sua avaliação crítica ou (…) uma leitura crítica minimamente válida”. Valida ou não, Mudender apresenta-nos aqui uma cidade despida ou desprovida de seus bens e vestida de andrajos por uma turma de “abutres” que não poupa esforços para sugar até a última gota do que de precioso até então havia restado. Os nomes dos integrantes desta turma são nítidos: Pio, Marcelino, Paunde, Manhenje, Guebuza, Chissano e outros. Usar nomes com identidade própria, não só atenta o princípio da ficcionalidade, como também deixa margens de discussão entre a realidade e a ficção que não poucas vezes coabitam neste livro. Este facto deixou espaço para chamar de crónica a este conjunto de textos por alguns críticos literários; quanto a nós, soa melhor se considerarmos fragmentos de um diário mediatizado. “- Claro. Tenho lindas fotos. Lindas recordações. Os nossos serviços eram publicados na Rádio, Televisão, na Internet, nos Jornais, Revistas… Os clientes faziam encomendas… programas por telefone… tudo seguro e bem pago.” (p. 23) (itálico nosso) “Voltei a ligar o televisor. Uma luz insistente entrava pela janela. Aquele domingo grande movimentava pessoas para a igreja. Um e outro bêbado saía dos seus escombros de babalaze. Escândalos Sexuais de Altas Patentes. O sono ainda pairava nos meus olhos esbugalhados.” (p. 109) (itálico nosso) Os signos Rádio, Televisão/televisor, Internet, Jornais, Revistas, telefone ilustram a mediatização deste diário de um jovem em busca de oportunidade numa cidade domada por relações conspiratórias, jogos de poder e comissões de roubalheira. Estes são, alias, os desafios com que o edil dA cidade subterrânea se debate todos os dias. A prostituição gerada da pobreza urbana, a urbe que conflui gentes de todos os lugares, agudiza este conflito perene de busca de pão e dignidade de qualquer forma, subindo os outros, cometendo atrocidades ou vendendo a moral, o pudor e a dignidade. São rostos da pobreza que contrastam com a riqueza destA cidade subterrânea, enquanto potencialidades há nas mãos dos corruptos e corruptores cobertos com a capa de naturais ou compatriotas. “As pessoas reclamam por tudo e por nada. Falta tudo. Menos a pobreza e a miséria, que são os pratos do dia.” (p. 39) (itálico nosso) “Fome. Violência. Criminalidade. Prostituição. Desemprego. Eram as palavras em ordem. Ninguém cantava. Ninguém rezava. Ninguém dançava. Era um inferno total mergulhado no caos.” (p. 180) (itálico nosso) As palavras de ordem (pobreza, miséria, fome, violência, criminalidade, prostituição, desemprego, caos, cf. estratos acima) circulam no rosto de pessoas que procuram uma refeição para aguentar a vida. E a procura não tem lugar nem mãos a medir, acontece no cais junto de marinheiros ávidos de coxas de mulheres por prostituir, na Pensão Ideal, ou então em qualquer túnel desta cidade.

A prostituição domina largamente a temática desta obra, como a pedir uma área de vereação à edilidade para velar por este problema que, uma vez mais, afigura-se secular. Neste ponto, esta obra comunica-se com outras, tal é o caso de Memória das minhas putas tristes, de Gabriel Garcia Márques ou então, Nykonkwe a reforma da prostituta, de Mukhwarura. Esta comunicação extravasa o campo temático e manifesta-se por meio de citações/epígrafes de outras autorias: José Craveirinha, Mia Couto, Carmen Posadas, Jorge Bucay, só para citar alguns. Estes problemas são aflorados num diálogo electrizante entre Maria Consolo (prostituta de reconhecida influência na cidade) e o narrador (autodiegético/protagonista). Este diálogo domina largamente as páginas desta narrativa. Mudender opta por uma escrita rítmica e pausada, na base de semelhanças de sons e sinais pausais bruscos, um jogo de metaplasmas (REIS, op. cit., 366) bem encontrados. “Gosto de noites agitadas. Homens e mulheres. Dançando. Comendo. Bebendo. Fornicando. Gritando.” (p. 14) (negrito

nosso) A sua escrita não se limita aos artefactos de linguagem. Extravasa-os. Supera-os. E, copiando o discurso corrente, atribui uma identidade própria a cada personagem a partir da forma como cada um se expressa. “- Vem, conta-me-llllaaa o que estavas pá me dizer. - Contar? Vais te cansares de rir.” (p. 18) (itálico nosso) Esta forma de escrita atenta a tradicional gramática portuguesa e sugere uma estrutura frásica e léxico do Português moçambicano; é, desta forma, uma obra anti-purista, pouco recomendável para os conservadores da língua ou alunos/leitores buscando uma performance linguística. Em contrapartida, esta forma de escrita desconstrutiva dá um outro prazer ao leitor atento. Por fim, convocamos o pensamento dos autores Joseph Hanlon e Teresa Smart expresso na epígrafe deste texto. A cidade subterrânea de Élio Mudender assemelha-se a maioria das cidades do nosso país. São cidades que dormem e acordam mergulhadas numa pobreza de uns e riqueza de outros, assimetrias que chacinam as classes desfavorecidas, sujeitas a sonhar com uma bicicleta para toda a vida. “A cidade só tinha bicicletas. Desenvolvimento que é bom, nada.” (p. 83) “O que me doía era o estado miserável. Moribundo. Abandonado. Empobrecido. Em que se encontrava a cidade e suas gentes. Uma cidade molhada pelas chuvas e as ruas denunciando os buracos alagados e os casebres de cobertura de palha de coqueiro embriagados de água assassina.” (p. 11) Isto acontece num país onde alguns andam de autocarros sonhando com metros e outros apenas sonham com uma bicicleta. _____________________________________________________________

*Francelino Wilson é escritor e locutor do Emissor Provincial do Niassa/ Rádio Moçambique

2. Título da obra dos autores citados.

Bibliografia 1. MUDENDER, E. M. A cidade subterrânea. Maputo, AEMO, 2011. 2. REIS, C. Técnicas de análise textual. 3ª Edição revista.

Coimbra, Livraria Almedina, 1981.

Élio Mudender, o autarca dA

Cidade Subterrânea

Francelino Wilson* - Lichinga

«Há mais bicicletas – mas há

desenvolvimento?»

Joseph Hanlon e Teresa Smart

Élio Martins Mudender

Page 11: Revista Literatas Nº 31 - Ano II

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Chuva de Palavras

- Apanhado de Meditações por Extenso -

O amor distante... Volta a ser... Quando canta o Uirapuru.

A minha máquina do tempo é de escrever.

Pa-lavrou-me a terra do coracéu. Rezou poemas de bom

dia... Fez o sinal-da-luz... Viu chover olhos de sol... O mundo

não sente. O mundo faz sentir. Assim como o vento não é

simples ar veloz, é trabalhador milagroso. Vivei, amanhacéu!

Escrevi um poema de ouvido - ouçam com os olhos! - que

'lindava' mais ou menos assim naquele exato momento: O

brejo solfeja em rãs. Os vendedores cantam vantagens. O

instrumento do lenhador é o machado. O malandro toca sua

sirigaita. Os colegiais regem com lápis e borrachas. Os

operários executam esmeris. O temporal aplaude nos telhados.

Duas notícias sobre a morte (uma boa, outra má): A má

notícia é que a morte nunca se atrasa. A boa notícia é que ela é

muito ocupada e não tem tempo de adiantar o serviço.

Reticências... Três sementes... -------------------------------------------------------

O Homem do Elevador

Querido. Solitário demais. Morava no primeiro

andar. Sempre o encontrávamos no elevador.

"Bom dia!", o saudávamos. "Parece que está

por chover!", respondia, como quem não está

com pressa. Um estranho vizinho que, por falta

de companhia, usava o elevador como ponto de

encontro... Consigo mesmo.

------------------------------------

no caminho errado

Nelson Lineu - Maputo

C ustódio Sábado estava sentado na sua casa, quando

viu Tiago passar com um ar desinteressado, nem se

quer saudou. Ficou admirado, nunca tinha acontecido.

Foi uma táctica que o rapaz usou. Todos sábados,

Custódio contava-lhe como foi a sexta-feira, como ele chamava.

Antes de contar enrolava, criando ansiedade e curiosidade,

quando Tiago fazia-se passar por desinteressado, Sábado

contava como foi a noite que sempre era criança.

Custódio esperou o Puto, preocupado, logo que o viu, chamou-

lhe, de seguida foi contando. No seu cenário habitual, matando a

babalaza, comendo numa panela suja que ele dizia lavar quando

estivesse mal disposto. A panela de barro continha restos de

comida do dia anterior, ele cozinhava por cima dela, via aquilo

cimo uma relação sexual, o prazer era notório quando ele comia,

mesmo com toda porquice (não lavava mão nem cara) dava

inveja quem o via transportar comida da panela a boca. Ainda por

cima era guloso, só servia quando eliminasse sua fome e

restasse algo, o interlocutor morto de curiosidade como um gato

na sua sexta vida, dispensava a inveja.

- Quando eu voltava do trabalho, vi de longe alguém com um

estilo igual ao do meu amigo, aquele da zona verde, o que se

fosse a uma barraca ou bar ia a procura da mulher, o que não era

da zona verde por viver naquele bairro com esse nome, mas de

espírito e coração. Foi aproximando-se, a imagem tornando-se

nítida, aquele homem de chapéu e camisa vermelha era mesmo

Gonçalves, mesmo com essa certeza eu ainda duvidava. Ele

sofria de sportinguismo, dizia ter sangue verde, a derrota deles

pelo Benfica, não lhe transformaria assim. Não podia ser

possível, podia acontecer qualquer coisa no mundo, essa

realidade não se passaria na minha cabeça. Depois de

cumprimentarmo-nos, não haviam duvidas, era ele o

avermelhado, havia uma força na sua mudança. Fomos ao bar

vizinho, entre copos surge mais um insólito, disse antes de tudo

tinha que lhe chamar por camarada (prefixo de qualquer membro

do partido frelimo), foi como se o álcool estivesse a sair de mim,

elucidei-me. Continuei a entornar, Logo Gonçalves que jurou

nunca votar nesse partido por causa da morte da mãe na guerra

que ficou conhecida como a de irmãos ou civil e o pai que sofreu

muito com o regime que para ele era ditatorial, a sua maior dor

era a adulação que se faz nos nossos dias para o líder,

consolava-se porque entre nós quando se morre passamos de

pecadores para santos. Essas inacreditíces, é que faziam-me

esquecer meu nome como naquela minha maior fará, aquela que

acordei num convento, nu, com todo material a doer. Gonça,

carinhosamente tratado, tornou-se revolucionário queria mudar o

regime, foi mudando de partidos da oposição para atingi-lo,

alimentando a sua esperança. O maior obstáculo para ele foi um

outro sonho. Com a possibilidade de nenhum deles concretizar-se,

tornar-se evidente, apostou no outro, o qual não podia morrer sem

concretizar. O verde dele avermelhou-se, por causa do seu de tornar-

se Secretário do bairro, porque nesse país só concretiza sonho

[email protected]

A avermelhação

do verde

O passo certo

Leituras FILOSOFONIAS

Marcelo Soriano

Page 12: Revista Literatas Nº 31 - Ano II

Ensaio

Literaturas africanas

Ou Literatura Africana

N ascido na Cidade do Cabo a 9 de Fevereiro de 1940, John Maxwell Coetzee estudou na sua cidade natal até completar dois bacharelatos, um em língua inglesa e outro em matemática. Os anos 1962 – 65 foram passados na Inglaterra,

trabalhando como programador de computadores, ao mesmo tempo que preparava uma tese sobre o novelista inglês Ford Madox Ford. Em 1968 Coetzee completou o seu doutoramento em linguística das línguas germânicas na Universidade do Texas, em Austin, com uma tese sobre os primeiros trabalhos de Samuel Beckett. Entre 1968 e 1971, Coetzee foi professor de inglês na Universidade do Estado de Nova Iorque em Buffalo mas, depois de lhe ser negado o direito de residência permanente nos EUA, regressou à África do Sul onde ensinou na Universidade da Cidade do Cabo, até 2000. Em 2002, ele emigrou para a Austrália e ensina na Universidade de Adelaide. A sua carreira literária no campo da ficção começou em 1969, mas o seu primeiro livro, Dusklands, só foi publicado na África do Sul em 1974. Coetzee recebeu vários prémios antes do Nobel e foi o primeiro a receber o Booker Prize por duas vezes: primeiro por Life & Times of Michael K em 1983 e por Disgrace, em 1999.Recebeu o Nobel de Literatura de 2003, sendo o quarto escritor africano a receber esta honraria e o segundo no seu país (depois de Nadine Gordimer, em 1991).

Há vários de seus livros traduzidos no Brasil e em Portugal.

Livros publicados

Dusklands (1974); In the Heart of the Country (1977); Waiting for the Bar-barians (1980) À Espera dos Bárbaros; Life & Times of Michael K (1983) O Cio da Terra: Vida e Tempo de Michael K Foe (1986); White Writing: On the Culture of Letters in South Africa (1988) ; Age of Iron (1990) A Idade do Ferro; Doubling the Point: Essays and Interviews (1992); The Master of Petersburg (1994) O Mestre de Petersburgo; Giving Offense: Essays on Censorship (1997); Boyhood: Scenes from Provincial Life (1998) Cenas de uma Vida; Disgrace (1999) Desonra; The Lives of Ani-mals (1999) A Vida dos Animais; Youth: Scenes from Provincial Life II- (2002); Juventude; Stranger Shores: Literary Essays, 1986-1999 (2002); Elizabeth Costello (2003) Elizabeth Costello; Slow Man (2005) Homem Lento; Diary of a Bad Year (2007) Diário de um Ano Ruim; Inner Workings

(20085) Mecanismo Internos; Summertime (2009) Verão.

E scritor e homem de letras nigeriano, Akinwande Oluwole Soyinka nasceu a

13 de julho de 1934, em Abeokuta, nas proximidades de Ibadan. Filho de

um mestre-escola e da dona de uma loja, teve acesso a uma educação

cuidada.

Após ter concluído os seus estudos propedêuticos no Instituto Superior

de Ibadan, partiu em 1954 para o Reino Unido, matriculando-se no curso de

Literatura Inglesa da Universidade de Leeds, que concluiu em 1959.

Enquanto estudante apaixonou-se pelo teatro, e por altura da sua formação, já

havia levado a palco algumas peças da sua autoria, como A Quality Of Violence

(1959), The Swamp Dwellers e The Lion And The Jewel, em que descrevia as

andanças de um professor e de um ancião chefe tribal africano, na sua tentativa

de conquistar o coração de uma jovem. Ambas foram reunidas num volume em

1963. Em 1960 regressou à Nigéria, onde, após ter recebido uma bolsa da

Fundação Rockefeller, fundou uma companhia de teatro, The 1960 Masks.

Publicou nesse ano A Dance In The Forests (1960), peça que celebrava a

Independência da Nigéria, e que combinava uma expressão tradicional africana

com técnicas europeias do teatro de vanguarda. Em 1965 apareceu com Kongi's

Harvest e The Road.

A Guerra Civil nigeriana rebentou em 1967, em consequência do movimento

separatista do biafra. Soyinka publicou, nesse ano, um artigo em que apelava à

paz, e foi imediatamente aprisionado e acusado de conspiração com os rebeldes.

Libertado em 1969 sobretudo por força dos protestos de vários escritores, como por

exemplo, Robert Lowell e Lillian Hellman, começou a trabalhar como professor.

Em 1970 publicou Madmen And Specialists, uma peça de teatro em que exprimia

o seu descontentamento face à corrupção e à sede de poder que se vivia no país

e, em 1972 debruçou-se sobre a sua experiência no cárcere ao publicar The Man

Died, obra que acabou por ser interdita no seu país.

Observando as garras da censura assomando-se do seu trabalho, optou por

abandonar a Nigéria nesse ano de 1972. Chegou portanto a Inglaterra, onde se

tornou professor convidado no Churchill College de Cambridge. Doutorou-se pela

Universidade de Leeds em 1973. Durante esse período publicou obras como

Jero's Metamorphosis (1972) e Death And The King's Horsemen (1975).

Mudou-se para o Gana em 1975, onde colaborou com o periódico Transition como

editor mas, depois de um golpe de estado ocorrido no país, regressou à Nigéria,

onde passou a ocupar o cargo de professor catedrático de Inglês na Universidade

de Ife. Em 1976 publicou Myth, Literature, And The African World, um célebre

embrião do pensamento pan-africanista que o caracterizou.

Em 1993 participou numa marcha de protesto contra o regime militar do ditador

Sani Abacha, o que fez com que tivesse que deixar o país no ano seguinte,

acusado de atentados bombistas contra o exército. Pôde no entanto regressar em

1998, após a morte de Abacha.

Foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1986. Em 2001 Soyinka

publicou King Baabu, uma paródia aos ditadores africanos.

John Coetzee Wole Soyinka

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Ensaio

P ara compreender os fundamentos epistemológicos dos

Estudos Africanos nos quais se inscrevemos Estudos Literários Africanos, importa interrogar-nos sobre o momento a partir do qual se constituem como campo disciplinar dando lugar ao processo de produção do conhecimento sobre o continente africano. Numa abordagem histórica e comparada dos Estudos Africanos, enquanto investigação especializada sobre as sociedades e culturas africanas, a que também se designa por «africanismo», observa-se que eles são uma emanação das políticas coloniais da Alemanha, Grã-Bretanha, França e Bélgica, potências que disputavam a ocupação efectiva de África, procurando conferir à sua presença uma legitimação científica mais intensa, durante as duas primeiras décadas do século XX. Foi na Alemanha onde, em 1910, ocorreu a primeira experiência de institucionalização académica dos Estudos Africanos, por ocasião da nomeação de Diedrich Westermann como professor do Departamento de Línguas Orientais na Universidade de Berlim. Seguiu-se a Grã-Bretanha consagrando esse domínio do saber coma criação do International Institute of African Languages and Cultures, em 1926, que passou a publicar a revista África. O surgimento da School of Oriental and African Studies na Universidade de Londres, em 1939, substituindo a School ofOriental Studies, testemunha a existência de uma comunidade de investigadores, antropólogos e sociólogos, que realizavam já pesquisas em África. Em França, a investigação neste domínio adquire uma dimensão institucional alguns anos mais tarde, após a fundação da Sociétè des Africanistes em1930. Ora, é legítimo levantar questões acerca do carácter africano dos Estudos Africanos e da unidade das suas disciplinas, tal como faz Paulin Hountondji. Ao esboçar as suas respostas, partindo do pressuposto de que a actividade científica em África pode ser qualificada como «extravertida» e «destinada a ir ao encontro das necessidades teóricas dos nossos parceiros ocidentais e responder às perguntas por eles colocadas», o filósofo beninense escreve: Os chamados estudos africanos não só se baseiam em metodologias e teorias que se consolidaram em vários campos […]muito antes de terem sido aplicadas a África enquanto novo campo de estudo, como é, de resto, comum em instituições académicas e de investigação, encontrar esta matéria associada a outras disciplinas […]. Portanto, é perfeitamente admissível discernir perspectivas radicalmente diferentes defendidas por Africanos e não-Africanos, no que diz respeito à semântica dos Estudos Literários Africanos e suas disciplinas. Na organização institucional das universidades, os Estudos Literários Africanos constituem-se após a Segunda Guerra Mundial. Foi nas décadas de 40 e 50 que surgiram as primeiras universidades africanas do século XX. Mas a formação dos Estados independentes ocorre a partir da década de 60, obedecendo ao modelo ocidental e herdando as fronteiras e as instituições políticas das antigas potências coloniais. A edificação de sistemas de ensino que pudessem incorporar conteúdos programáticos sem qualquer influência externa foi imediata. Em alguns países africanos as mudanças curriculares de matérias respeitantes às Literaturas Africanas ocorreram logo a seguir à independência. É o que sucedeu como Senegal, onde se realizou o primeiro colóquio consagrado ao ensino das Literaturas Africanas, em 1962. Na Universidade de Dakar assim como na maior parte das universidades africanas, a esta disciplina fora conferido um estatuto semelhante a outras disciplinas leccionadas, no âmbito da organização de departamentos autónomos (Kane, 1994:27-39). Quanto ao ensino secundário, as Literaturas Africanas, sustenta Kane, foi introduzida de modo anárquico, sem métodos, sem programas. Numa perspectiva comparada, verifica-se que nos países africanos de língua

francesa, o ensino das Literaturas Africanas nas universidades e nas escolas secundárias se consolida em princípios da década de 70. Por exemplo, a introdução de textos literários africanos (incluindo a literatura oral tradicional) ocorre apenas em1972, após a Conferência de Ministros da Educação, realizada em Madagáscar. Nos países africanos de língua inglesa, o mais expressivo sinal de mudança produz-se comum texto datado de 1968, subscrito por três autores originários da África Oriental, através do qual defendem a abolição do Departamento de Inglês na Universidade de Nairobi e a criação do Departamento de Línguas e Literaturas Africanas (WaThiong’o, 1982:145-150). Tal como diz Biodun Jeyifo, «the constitution of African literary study as a legitimate academic discipline with certified degrees and professional specialization began in Africa, not in Europe or America». Pode dizer-se que o centro inaugural de gravidade de um ensino sério das Literaturas Africanas está situado em África. Ao apresentar as conclusões do um inquérito sobre o ensino das Literaturas Africanas nas universidades dos países africanos de língua inglesa, Bernth Lindfors, observa que a descolonização dos estudos literários em África estava em curso e em estado bastante avançado. Nota que dos 194 cursos seleccionados em 30 universidades do universo de14 países, a amostra representava acerca de 60% do número total de cursos em que se inscrevem 226 autores. A conclusão a que chega o referido investigador permite sustentar a ideia de que as Literaturas Africanas ocupavam um lugar significativo nos programas dos Departamentos de Inglês, Departamentos de Literaturas Africanas ou Departamentos de Línguas Europeias. Estes indicadores estatísticos fornecem um quadro que reflecte, provavelmente, de igual modo a situação dos países de língua francesa. Efectivamente, a investigação e o ensino das Literaturas Africanas tinham alcançado níveis sempre cedentes, especialmente no que diz respeito à sua institucionalização académica. Ignora-se, no entanto, e com alguma razão o que se passa nos países africanos de língua portuguesa. O processo de autonomização disciplinar das Literaturas Africanas foi dando origem ao abandono das denominações generalistas elaboradas na base de critérios raciais. A historiografia regista influências profundas que o movimento panafricanista e posteriormente a Negritude exerceram sobre as ideologias dos escritores Africanos. Durante muito tempo as Literaturas Africanas eram adjectivadas com fundamento no critério falacioso da raça. Era comum o uso de expressões como «literatura negro-africana», «literatura neo-africana» ou simplesmente «literatura negra». Para justificar tais designações, Lylian Kesteloot, na sua Anthologie Négro-Africaine, argumenta: Consideramos a literatura negro africana como manifestação e parte integrante da civilização africana. E mesmo quando é produzida num meio culturalmente diferente, anglo-saxónico nos Estados Unidos, Ibérico em Cuba e no Brasil […] O espaço da literatura negro-africana cobre não apenas a África ao sul do Sahara, mas todos os cantos do mundo onde se estabeleceram comunidades Negras, sob os auspícios de uma história turbulenta que arrancou ao Continente centenas de

Luís Kandjimbo - Angola

Literaturas africanas

Ou Literatura Africana

- Institucionalização de uma disciplina

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milhões de homens como escravos […]. O tipo de argumentos aduzidos por autores como Lilyan Kesteloot (literatura negro-africana), Janheinz Jahn (literatura neo-africana) ou Jacques Chevrier (literatura negra) não oferecem qualquer consistência teórica para merecerem a dignidade que lhes é conferida. A partir da década de 70 e 80, a tendência dominante da crítica designa as Literaturas Africanas no plural, confinando-as aos espaços nacionais. Passam a ser publicados estudos e antologias que obedecem ao critério da nacionalidade literária. Deste modo, Literaturas Africanas ou Literatura Africana é a denominação de uma disciplina que pela sua vocação generalista contradiz a lógica do Estado nação de que emana o paradigma filológico nacional em que se funda o ensino das Literaturas Europeias. Não é raro encontrar professores e investigadores europeus e americanos que, negando a existência de literaturas nacionais em África, defendem a denominação colectiva destas literaturas enquanto disciplina cuja definição depende do seu vínculo com as línguas europeias em que são escritas, sendo, por isso, leccionadas no âmbito de Departamentos de Estudos Ingleses, Franceses ou Portugueses. Por ausência de uma robusta epistemologia africana independente, observam-se repercussões deletérias dessa hierarquização nas universidades africanas. Deste modo a investigação e o ensino das várias Literaturas Nacionais do continente africano em muitos casos ainda assentavam em duas hipóteses erradas. Em primeiro lugar, a denominação generalista de Literatura Africana ou Literaturas Africanas que elimina a possibilidade de passar à compreensão das suas especificidades. Em segundo lugar, a balcanização linguística dos Estados que está na origem da marginalização das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa dos Estudos Literários Africanos cuja denominação disciplinar (Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa) em países como Portugal revela a pervivência de um paternalismo colonial que, segundo o investigador português Carlos Reis se manifesta através de uma «mal disfarçada resistência contra o reconhecimento do significado próprio […] fruto em parte de reminiscências ideológicas de raiz colonialista, essa resistência funda-se também na leitura de tais literaturas à luz do cânone literário português e europeu, leitura deste ponte de vista, é naturalmente desqualificadora». Apesar disso, o volume de trabalhos de investigação consagrados às Literaturas Africanas de Língua Portuguesa deu lugar à sua disciplinarização em várias universidades do mundo, especialmente do Brasil, Portugal e Estados Unidos da América. Se entendermos que o processo de disciplinarização comporta duas fases, uma pré-disciplinar e outra disciplinar, concluiremos que à primeira chega-se em finais da década de 70. Mas a fase disciplinar não alcançou a sua consolidação. Na fase disciplinar destacamos nomes de três professores universitários, os discipline-builders, nomeadamente Russell Hamilton dos Estados Unidos da América, Manuel Ferreira de Portugal e Maria Aparecida Santili do Brasil. Manuel Ferreira notabiliza-se como o responsável pela introdução da disciplina de Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em1974. Seguiram-se as Faculdades

de Letras da Universidade do Porto em 1975, pela mão de Salvato Trigo e, em1980, as Faculdades de Letras da Universidade de Coimbra e da Universidade Nova de Lisboa. A sua institucionalização ocorreria em 1978, através dos Decreto-Lei nº 53/78 de 31 de Maio e do Decreto-Lei nº 75/84 de 27 de Novembro. Os primeiros Mestrado se Doutoramentos foram criados nos anos 80 do século XX pelas universidades em que se leccionava a disciplina ao nível da licenciatura. No Brasil, em1984 discutia-se ainda a legitimação do ensino das Literaturas Africanas nos cursos de Letras. Durante as duas décadas que se seguiram, ao que parece a situação não sofreu alterações significativas, apesar da «última proposta de reformulação curricular», tal como nos diz a professora Laura Padilha (2010:4) que chega mesmo a defender, em matéria de ensino das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, a necessidade de uma «descolonização curricular» para o Brasil. Chamo a atenção para o facto de incidirmos a reflexão sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa em geral. Não rigorosamente das literaturas nacionais de cada um destes países. É de ensino das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa que se trata. Levanta-se aqui a possibilidade de estarmos perante duas disciplinas, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e a Literatura de cada um dos países, isto é, Literatura Angolana, Literatura Moçambicana, Literatura Cabo-Verdiana, Literatura da Guiné-Bissau e Literatura de S.Tomé. Relativamente à primeira podemos falar da necessidade de desenvolver um ensino interdisciplinar cruzando os Estudos Africanos e as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, estabelecendo as devidas linhas de diálogo comas Literaturas Africanas de Língua Inglesa e Língua Francesa. No dizer de Jean-Marie Grassin, a aludida perspectiva comparatista começaria por privilegiar a abordagem inter-africana: Trata-se de valorizar a sua especificidade e o seu papel nos grandes conjuntos literários para os quais ela terá contribuído […] Um comparativismo intra-africano permitiria situar, através do estudo dos correlatos externos, a cultura africana no quadro das grandes correntes artísticas, políticas e sociais do planeta. O que é indubitavelmente melhor do que um olhar sobre a palavra africana no seio dos grandes conjuntos exófonos. (Grassin, 1984:257-271). Portanto, é um imperativo para os Estudos Literários Africanos, proceder à revisão das denominações disciplinares das Literaturas Africanas no plural e das Literaturas nacionais dos países africanos no singular. É que a história da formação das disciplinas demonstra o papel que o nome de uma disciplina e a sua estabilidade desempenham na sua consolidação, além de outros factores como a existência de publicações científicas, nomenclatura profissional, publicidade institucional, comunidades científicas organizadas em associações. Ao nível institucional, a criação de unidades de investigação e ensino nas universidades, tais como Departamento de Línguas e Literaturas Africanas, Departamento de Estudos Literários Africanos, Departamento de Literaturas da África Austral, Departamento de Estudos

Literatas Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona

Informar é uma arte

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A vida é uma verdadeira sina. Um constante ida e volta sem eira nem

beira. Rapidinhas e etc, algumas ajeitadas e outras desajeitadas. Andando pela cidade de Xai-xai, acabei me sentando no Mira Rio, lugar de suprema vitalidade, onde a vida entra em harmonia com a natureza. Aquela vista de Rio Limpompo a caminhar para o infinito atraiu-me como a muitos atrai naquela serena cidade que é também refém de viajantes. Não é que andar errante é mesmo um exercício que nos remete a contínuas surpresas! De frente, olhando para a praça do Município, vi o que vi. Dois cães vadios a rasca para um acto sexual em plena praceta e à luz do dia! Ah, aquela mira acabou com o meu sossego diante do rio Limpompo que leva consigo Xai-xai para longe. Desassossegado assim, apenas uma foto me pode reter neste lugar. Tirei a máquina e … foto. Continuei a observar a cena. Era mesmo um sexo obsoleto em plena praça pública, no olhar de homens, mulheres, idosos e crianças que passavam.

Massinguita! Os dois cães fornicavam-se com eternidade. Minutos se passavam e eles não se importavam com a enchente que já se verificava por causa do insólito. Contudo ninguém os separa. Aquele momento é terno. É vital. Qualquer interrupção pode ser

fatal, entendem todos. Mas a cena é mesmo um pecado! Onde já se viu? É incrível como nós humanos admiramos coisas tão banais que, muitas vezes, fazemos como as mais nobres missões que temos como homens e mulheres. Lembro-me da história que me foi contada por um amigo, sobre agentes da PRM que encontraram um casal no jardim Tunduro, num daqueles compartimentos que seria para buscar o conforto da natureza, que decidiu rasgar as calças e molhar o jardim de insultos e outras infâmias. Um sexo no Jardim Tuduro. Era de noite e entre as pequenas grutas os dois venderam a dignidade por 60 segundos de prazer. A mesma fonte que me deu essa informação, indica que a posição que os dois usaram é denominada DOG-STYLE. No entanto, esse casal não foi feliz como estes cães que mesmo a nudez do dia e do espaço em que se encontram, com plateia e som ambiente, ninguém os interrompe. O casal de humanos, foi pego na hora H pela polícia. Um prazer ininterrupto como o que vem do acto sexual

lhes foi impedido no derradeiro momento.

E os cães não param. O macho penetra a cadela com os poderes que lhe são confiados pela natureza. É homem e tem de ser forte, mesmo magro para uma mais forte. Sinto que eles gemem de prazer. Tiram as línguas e gotejam saliva de satisfação. Lambuzam-se. Espantam tanto sofrimento de serem cães soltos pela rua a fora. Executam com maior primazia sua relação sexual. Decido me aproximar, tiro mais uma foto já de perto, também tentando penetrar no prazer que ambos sentem. Nem sinal de medo. Nem sinal de fim daquela orgia. Agora sinto que estão mais babados. As fotos que os tiro tornam-lhes heróis. Afinal, quem não quer registar esses momentos na vida?

DOG-STYLE

ANDANDO

Cruz Salazar - Maputo

[email protected]

T rês amigos eu tinha, bastante

mulherengos. Sim, apresentavam um

desviado comportamento no capítulo das

mulheres. Os três tinham apurada

competência para apreciar mulheres, abrir os zips das vestes femininas, afagar-lhes a

pele, excitá-las e, por fim, enroscarem-se-lhes nas suas mais profundas entranhas.

Crível, no resto, é o modo como estes amigos degeneraram na prostituição. Sim, falo da

prostituição e não da mulherenguice. Que se chame também os eles prostitutos e não

mulherengos. É que os homens, o hábito têm de suavizar os adjectivos dos piores

defeitos, e enaltecer os das virtudes. Ademais, quem se mete com as prostitutas?

Então, por que vulgarizar um outro adjectivo, bem distante, enquanto existe o próximo,

bastando apenas mudar uma letra da mesma palavra. Sim, apenas de a para o. Ah,

deixemos isso para o próximo capítulo, para não fugir as ordens do parágrafo. Dizia eu,

que crível é o modo como os meus amigos se tornaram prostitutos, exibindo seus nus a

toda mulher desfrutável.

Tudo teve início quando os hábitos da modernidade, oriundos talvez dos brancos,

abateram-se sobre a nossa tradição. Permitiu-se o namoro, desenvolveram-se

campanhas de combate à feitiçaria, esse nosso antiquado mecanismo de ordenamento

social. E, como preparação ao casamento, pessoas várias desataram a namorar,

incluindo menores e os que não tinham qualquer plano de casamento. Então, estes

últimos preparavam o quê? Prostituição?!

Na verdade, não demorou para que as consequências se abatessem sobre toda a

sociedade. Os namoros eram feitos com múltiplos parceiros ao mesmo tempo,

perigando a saúde dos envolvidos. E volvidos significativos anos, tais namoros

frutificavam, grosso modo, doenças, vícios, más-línguas. Os velhos assistiam ao

cenário, sem poder de frear aquilo que sucedia. Apenas lamentavam:

― Essa coisa de os homens brincarem mal com mulheres era proibido nos nossos

tempos, e havia feitiçaria para travar isso. ― Quase terminando o lamento

acrescentavam. ― Mas hoje dizem existir a polícia…!

Aconteceu, falando concretamente dos meus supracitados amigos, que mais tarde

casaram-se por pressão da idade e dos pais. E como na cidade houvesse escassez de

talhões para os de pouca posse, alugaram as respectivas casas. Ao fim do terceiro mês

do enlace matrimonial, as consortes já tinham alojado fetos nos respectivos ventres.

Admoestadas, depois, a irem a uma consulta pré-natal foram as gestantes. Até votadas

ao teste de HIV elas estiveram. Uma a uma entrou pela sala de consulta adentro a fazer

o teste. O resultado foi negativo para as três. Saíram ilesas das aventuras

extraconjugais dos cônjuges, pode-se dizer.

Uma delas, todavia, quis assustar ao marido, deixá-lo com nervos à flor da pele. Pegou

no celular que jazia na sua bolsa e ligou ao marido, que se chamava Josefino Costura.

Quando o marido atendeu, ela disse.

― Depois do teste do HIV que fiz, a enfermeira quer a sua presença aqui no centro de

saúde.

No seguido, explicou ainda ao marido que as amigas que igualmente tinham sido

sujeitas ao teste, não tiveram o azar de ser-lhes convocados os maridos. Para mais,

agravou ainda dizendo que no hospital são solicitados os maridos das gestantes cujo

estado serológico é positivo. E preocupado o marido ficou, mas escusou-se fazendo

caçoada, pois ele sabia que fiel a esposa era, diferente dele.

― Se somos seropositivos não é senão por causa de instrumentos cortantes não

esterilizados, mamã: agulhas, seringas, lâminas, etc.

À entrada do hospital, a mulher esperava por ele. Viu a seriedade dissimulada que

reluzia no semblante da mulher. De instantâneo, se desfez a mesma seriedade e ela

montou no carro do marido, feliz.

― Te mandei vir porque queria tua boleia, eu sou seronegativa. ― Disse a gestante.

― Então eu também sou seronegativo, filha! ― Disse, alegre, Josefino.

No dia ulterior, todos os três amigos meus encontraram-se a festejar a boa nova, e

diziam todos extasiados: nós somos seronegativos, as nossas mulheres fizeram o teste.

A encomenda do

teste de SIDA

Croniconto

Dany Wambire - Beira

[email protected]