revista literatas

15
Poeta até no parlamento! Lopito Feijoó Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 11 de Maio de 2012 | Ano II | N°29 | E-mail: [email protected] No ensino de Português na África do Sul: 51% de alunos são de nacionalidade sul-africana Págs. 03 & 04 AMEI UM BICHEIRO: Ritmo e Planejamento Por Guido Bilharinho Pág. 06 Nova vaga de poesia moçambicana carregada de crítica Por Dinis Muhai Pág. 13

Upload: movimento-literario-kuphaluxa

Post on 17-Mar-2016

250 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Revista de literatura mocambicana e lusofona, encontre conteudos como poemas, cronicas, contos, entrevistas, ensaios e muito mais.

TRANSCRIPT

Poeta até no

parlamento! Lopito Feijoó

Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 11 de Maio de 2012 | Ano II | N°29 | E-mail: [email protected]

No ensino de Português na África do Sul:

51% de alunos são

de nacionalidade

sul-africana Págs. 03 & 04

AMEI UM BICHEIRO:

Ritmo e Planejamento Por Guido Bilharinho Pág. 06

Nova vaga de poesia

moçambicana carregada

de crítica

Por Dinis Muhai Pág. 13

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 2

A Língua Portuguesa e suas (trans) formações

D esde o sábado passado Maputo tem vindo a ser palco de vários

acontecimentos que giram em torno da língua portuguesa den-

tro dos países em que ela é falada oficialmente e nos que a tem

apenas por influência das imigrações, como é o caso da

Suazilândia, Zimbabué, Namíbia e África do Sul, estes dois últi-

mos com o português como disciplina curricular.

A cinco de Maio, celebrou-se através de um evento realizado no Centro Cul-

tural Brasil – Moçambique, o dia da CPLP – Comunidade dos Países de Língua

Portuguesa tendo havido no mesmo acto um debate em torno das transformações que a língua vem

tendo desde os tempos, com principal destaque para os últimos anos em que o novo Acordo Or-

tográfico da Língua Portuguesa está na senda dos acontecimentos.

Portanto, há já para discussão assuntos culturais, para além da integridade regional e económica dos

países membros, por sinal, o que é mais discutido.

Enquanto isso, o Instituto Camões realizou durante dois as sextas Jornadas de Língua Portuguesa, na

Faculdade de Ciências de Linguagem, Comunicação e Artes da Universidade Pedagógica, um evento

que discutiu essencialmente, a língua, a sua evolução, as transformações e académicos de oriundos dos

diversos países apresentaram comunicações visando dar conhecer as investigações levadas a cabo so-

bre o português.

Desses académicos, a Literatas conversou com Rui de Azevedo, Coordenador do Programa de Ensino

da Língua Portuguesa na África do Sul, Namíbia, Suazilândia e Zimbabué, a fim de nos inteirarmos dos

acontecimentos nesses países e a relação que se pode ter com os países oficialmente falantes do portu-

guês.

A realidade que se pode construir segundo Azevedo é que a língua do Camões é mesmo atractiva. Ela

não só atrai luso-descendentes, atrai na grande maioria os próprios sul-africanos.

Olhando para esse cenário, que é bom, não nos devemos calar perante as transformações/formações

que a língua portuguesa tem vindo a sofrer nos últimos tempos, tendo em conta a implementação por

parte de Portugal do novo acordo ortográfico.

Opiniões ainda diverge quanto à aplicabilidade dessa nova grafia, enquanto outras, preferem acreditar

que as mudanças que a língua vai sofrendo servem para mantê-la e viva, dinâmica e internacionali-

zada. Aliás, o português está na luta pela aprovação para que seja um dos idiomas de trabalho nas Na-

ções Unidas. Aí está o motivo das mudanças.

Mariza Mendonça ainda considera que a ratificação por parte de Moçambique do novo acordo or-

tográfico vai trazer melhorias no ensino e aprendizagem da língua no país!

a verdade ou mentira, lendo ou imediato, Mendonça alerta que chegará uma altura em que Moçam-

bique não terá o que escolher, a solução será uma e única: ratificar o acordo ortográfico, já que todos já

estarão envolvidos.

Mas nesta edição, destacamos o poeta que se divorciou com a Assembleia Nacional da Angola, como

deputado. Agora, reformado depois de 16 anos de legislador, depois de 11 anos de polícia, voltou a fazer

as pazes com a poesia de que era já vitma de acusações de a ter traído. Mas ele vem a Literatas para

afirmar “eu sou poeta. Entrei no parlamento como poeta e saí continuamente poeta”.

Então é isso caro leitor, Lopito Feijóo é poeta e no seu último livro “Lex & Cal Doutrina” vem a entrar

no concretismo e na trans/formação do português na sua linguagem rigorosamente poética.

Eduardo Quive

[email protected]

Editori@l Destaque S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 3

51% de alunos de português são sul-africanos

Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78

117

Fax: +258 21 02 05 84

E-mail: [email protected]

Blogue: literatas.blogs.sapo.mz

Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa

Direcção e Redacção

Centro Cultural Brasil - Mocambique

Av. 25 de Setembro, N°1728,

C. Postal: 1167, Maputo

Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 117

Fax: +258 21 02 05 84

E-mail: [email protected]

Blogue: literatas.blogs.sapo.mz

DIRECTOR GERAL

Nelson Lineu

([email protected])

Cel: +258 82 27 61 184

DIRECTOR COMERCIAL

Japone Arijuane

([email protected])

Cel: +258 82 35 63 201

EDITOR

Eduardo Quive

([email protected])

Cel: +258 82 27 17 645

CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele

([email protected])

Cel: +258 82 57 03 750

REPRESENTANTES PROVINCIAIS

Dany Wambire - Sofala

Lino Sousa Mucuruza - Niassa

COLABORADORES FIXOS

Pedro Do Bois (Saranta Catarina-Brasil) , Victor Eustáquio (Lisboa - Portugal), Mauro

Brito

COLABORAM NESTA EDIÇÃO

João Tala - Angola

Frederico Ningi - Angola

COLUNISTA

Marcelo Soriano (Brasil)

FOTOGRAFIA Arquivo — Kuphaluxa

Eduardo Quive

ARTE E DESIGN

Eduardo Quive

PARCEIRO

Centro Cultural Brasil—Mocambique

FICHA TÉCNICA

Destaque S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 3

Texto: Eduardo Quive |

51% de alunos de português são sul-africanos

A língua portuguesa no Zimbabué, Suazilândia, Namíbia e África do Sul tem ganhado mais espaço, com principal incidência neste últi-mo país, com 2.600 alunos de português nos ensinos pré-escolar e secundário.

O ensino da língua portuguesa nesses países que tem como línguas oficiais o Inglês, é intensificado pelo Instituto Camões sendo que na África do Sul, onde se situa a representação desta instituição, que mais se expande a lín-gua principalmente, em Joanesburgo e Cape Town, através das instituições de ensino locais. Dados fornecidos pelo Coordenador do Programa de Ensino de Língua Por-tuguesa nos quatro países, na Suazilândia e Zimbabué o Camões tem ape-nas dois professores sendo por isso, a principal aposta da instituição, apoiar a formação de professores de português nesses países, o que só acontece, até o momento, no Zimbabué através de um curso de leitores que também é levado a cabo na Namíbia. Rui de Azevendo fez saber que na África do Sul não há nenhuma instituição que forma professores de português o que constitui constrangimento diante de muita adesão ao ensino da língua. “Quem está a suportar essa rede de procura é o Instituto Camões o que exi-ge esforços financeiros adicionais e numa altura de crise tem que se ver melhores estratégias de modo a reduzir os custos. Uma das estratégias é apoiarmos na formação de professores locais, pois, a língua portuguesa na África do Sul tem futuro. Há já um número considerável de falantes dessa língua, tal como já acontece na Namíbia.” Na Namíbia, de acordo com Azevedo, há um protocolo entre o Instituto Camões e autoridades de educação namibianas de modo a formar mais professores, estes que virão a aumentar o número dos seis professores daquela nacionalidade espalhados pelo país a dar português no ensino secundário como uma disciplina curricular. “É isso que queremos fazer nos outros países, por isso estamos a negociar com as autoridades académicas de Joanesburgo e de Cape Town, para apoiar a formação de professores, mas sem nos desligarmos do ensino, vamos é mais do que levar professores para algumas escolas, que depois

não tem aquele efeito massificador que nós queremos.” Disse Rui Aze-vedo acrescentando que “só os privilegiados é que podem ter português porque não temos professores suficientes, então a ideia é que tenha-mos mais professores de português para que possam chegar onde não chegamos.” Na África do Sul temos neste momento, cerca de 2600 alunos, distribuí-dos dos níveis pré-escolares e secundário. Não estou a incluir os de ensino superior. Esses alunos estão distribuídos em 86 escolas, isto é, estamos só em algumas zonas na maioria de Joanesburgo. Só algumas escolas têm o privilégio de ter o ensino do português com o apoio do governo português. Há escolas que tem professores de português que são eles quem contratam, mas são em números reduzido. Isso aconte-ce também porque não há professores de português, alguns professo-res vindo de Moçambique estão a trabalhar aqui mas não é tão fácil, daí a necessidade de formar sul-africanos. Para que sejam eles a leccionar. Nisso estamos aptos a investir, no entanto, são necessárias parcerias, temos já com a UEM que nos fornece leitores que colocamos nas uni-versidades da África do Sul e na região para formarem professores, vamos estabelecer um protocolo com a UP também para esse efeito. Vamos formar professores locais para manter a continuidade do ensino da língua.

Porquê o interesse dos sul-africanos ao português?

“Por causa da proximidade com Moçambique obviamente. Pela visão do futuro dos filhos por parte dos pais. Eles incentivam os filhos a aprender o português por vários motivos, dentre os quais, o facto de serem luso-

descendentes, outros porque são portugueses, uns moçambicanos, outros porque são mesmo sul-africanos e tem a necessidade de ver o

De acordo com Rui de Azevedo, Coordenador do Programa de Ensino de

Língua Portuguesa do Instituto Camões na África do Sul, Namíbia, Zim-

babué e Suazilândia, são 3.600 alunos que vão do ensino pré-escolar ao

superior, leccionados por 36 professores divididos pelos quatro países.

No entanto, onde há mais alunos é na África do Sul, onde os números

atingem 2.600, com 51% dos quais representados por cidadãos nativos,

contra 49% de cidadãos luso-descendentes.

NA ÁFRICA DO SUL

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 4

Croniconto filho a aprender uma língua estrangeira. Se tem que aprender uma lín-gua estrangeira e não as nacionais que são muitas na África do Sul, o português é o que mais faz falta por causa da proximidade com Moçam-bique e com Angola. E vem aí o futuro posto às relações com o Brasil, por exemplo.” Considera a nossa fonte.

SOBRE O NOVO ACORDO ORTOGRÁFRICO

Ainda na conversa que tida com a Literatas, o Coordenador do Progra-ma de Ensino de Língua Portuguesa na África do Sul, Suazilândia, Zim-babué e Namíbia, Rui Azevedo, informou que o novo Acordo Ortográfi-co de Língua Portuguesa já está a ser implementado no sistema de ensino da língua nos quatro países. Entretanto, ciente da polémica que esse assunto cria no seio da Comu-nidade dos Países de Língua Portuguesa, tece comentários. “Sei que faz essa pergunta porque essa é uma questão polémica, inclu-sive, aqui nas jornadas há pessoas que defendem e outras que não o acordo, mas eu, defendo-o. Ele vai internacionalizar mais a língua por-tuguesa, vai facilitar aos portugueses e pessoas de outras línguas que queiram aprender o português.” A coordenação do ensino a nível da África do Sul, Suazilândia, Zimba-bué e Namíbia já está a trabalhar com o novo acordo ortográfico desde Janeiro do presente ano, isto porque “o acordo já foi ratificado por Por-tugal, foi publicado no Diário da República e o Ministério da Educação já começou a trabalhar com o novo acordo ortográfico desde Setembro do ano passado. Os nossos manuais escolares já tem o novo acordo orto-gráfico portanto para nós não é nenhuma polémica e estamos no pro-cesso de transição.” Afirmou a fonte. Rui Azevedo disse ainda que as mudanças não devem ser preocupan-tes porque “o português é uma língua viva” e como língua viva “se sofre essas mudanças ainda bem. Antigamente escrevíamos Farmácia com Ph, agora já não escrevemos, ao princípio foi difícil para os que assim escreviam mas adaptaram-se.” O nosso entrevistado, considera que a demora da ratificação do acordo por parte de países como Moçambique e Angola está no envolvido de outras razões como, por exemplo, a guerra civil a que os dois países estiveram envolvidos sendo por isso, achar necessário que se dê tempo ao tempo. Contudo, “é útil haver uma única grafia da língua portuguesa, assim chegamos mais pessoas, internacionalizamos mais a nossa língua, é mais fácil para escreventes da nossa língua escrever numa única grafia. Obviamente somos humanos e não podemos agradar a gregos e troia-nos.” Rematou.

“INDEPENDENTEMENTE DE MOÇAMBIQUE RATI-FICAR OU NÃO ELE VAI TER QUE ADOPTAR O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO”

Marisa Mendonça, directora da Faculdade de Ciências da Linguagem, Comunicação e Artes (FCLCA) também teceu seus comentários sobre o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em via de ratificação por Moçambique. Mendonça deu a conhecer que a Comissão Nacional do IILP - Instituto Internacional de Língua Portuguesa, comissão da qual faz parte, já apresentou ao ministro da Educação moçambicano, a proposta daquilo que serão as transformações que advirão da adopção do novo acordo. Por outro lado, o documento já devia ter sido apresentado ao Conselho de Ministros, mas por uma série de constrangimentos ainda não foi, mas, a nossa entrevista, considera que “muito brevemente este docu-mento será analisado pelo executivo para que o Governo Moçambicano possa decidir se ratifica, ou na totalidade, ou com observações ou se ratifica com algum condicionalismo o novo acordo ortográfico.” Entretanto, Marisa Mendonça ainda afirma “eu penso que vai haver algum condicionalismo, no sentido de poder se ajustar melhor o texto de base deste acordo. Falar das empatias ou antipatias perante o acordo, elas existem. O acordo provoca mudanças e tudo que provoca mudan-ças, por um lado há pessoas que concordam e por outro há os que dis-cordam. Mas também as mudanças provocam essas posições as pes-soas ou são muito a favor porque acham que é melhor em alguma coisa ou são totalmente contra porque acham que é a pior coisa do mundo.” Apesar dos constrangimentos que poderão advir das mudanças como avalia, Marisa Mendonça entende que para a aprendizagem do portu-guês em Moçambique o acordo vai ajudar. “Alguns elementos que constam do acordo vão ajudar as nossas crian-ças a escrever melhor no português.

Sou também um pouco crítica a outros aspectos envolvidos no acordo porque quando começo a ler o

acordo com atenção percebo que há alguns elementos que concorrem para não harmonização da escrita, mas que permitem as duas variedades, então se estamos a criar um acordo no sentido de harmonização, devíamos em todos momentos desse acordo ter presente essa perspectiva.” Mendonça vai longe ainda, ao dar a conhecer que “independentemente de Moçambique ratificar ou não ele vai ter que adoptar” considerando que vários países da CPLP já aderiram, apesar de mesmos nesses, haver um certo cepticismo. “ Moçambique será obrigado a adoptar o acordo.” Reitera.

Refira-se que estas declarações, as fontes consideram em exclusivo a Lite-

rata, a margem das VI Jornadas de Língua Portuguesa, que tiveram lugar

nos dias 8 e 9 do mês em curso no Centro de Línguas da Universidade

Pedagógica em Maputo onde o acordo ortográfico não foi o foco das discus-

sões, nem dos temas como questão específica destas jornadas da língua

portuguesa.

Festival Conexão Lusófona

A organização de jovens da Lusofonia, Conexão Lusó-fona, leva a cabo, até ao dia 12 de Maio, diversas ini-ciativas pela cultura dos países de língua portuguesa na cidade de Lisboa. No dia 12 de Maio, o encerra-mento das iniciativas ficará marcado pelo Festi-val Conexão Lusófona, que conta com o apoio da UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portu-guesa). Sara Tavares, Yuri da Cunha, Susana Félix, Manecas Costa, Júlio Pereira, Tito Paris, Couple Cof-fee, Luiz Caracol, Pierre Aderne, Aline Frazão, Costa Neto, Tubias Vaiana e Kay Limak são os nomes confir-mados para o festival de encerramento, que terá lugar no Mercado da Ribeira.

Mais informações em http://interculturacidade.wordpress.com/contactos/

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 5

Croniconto

Aborto recompensado por um copo de cerveja

O s dias de calor exigem-nos muita criatividade, mas

eles reservam-nos pouca. Anda-se de mãos dadas com a preguiça e não

sei se chegamos a ser alcançados pela pobreza.

Num desses dias, saí a acompanhar amigos. Éramos quatro, eu,

Fiodélio, Cornélio e Orquídio. Aonde íamos, eu não sabia de início. Bas-

tava a confiança que neles eu depositava para confiar o destino. E não

foi serôdio para que desaguássemos no destino. Adivinhem onde era!

Numa barraca, localizada aí nas imediações do bairro Sem Nome. Os

meus amigos queriam se livrar do calor socorrendo-se da cerveja, bem

fresquinha, diziam eles.

No seguido, pediram os três, as respectivas cervejas e os compe-

tentes copos. Eu resignei. Eu não bebia. Ou melhor, ainda não bebia,

assim corrigir-me-ia minha avó. É que os que afirmavam, de forma cate-

górica, que não bebiam, segundo a minha avó, se tornavam excelentes

bêbedos. Tudo por força da maldição. Podiam ser-lhes rogadas pragas.

Cervejas, a bem dizer. Cerveja é maldição? Não respondo só em benefí-

cio dos bêbedos.

O mais importante é que nesse momento de ingestão e digestão

da cerveja, sucedeu um facto engraçado com proficiência de ser croni-

contado. Com efeito, irrompeu no grupo de bêbedos uma jovem mulher.

Jovem como quem diz, a mulher não tinha competência para tal orgulhosa

consideração, pois as polpas lhe haviam arredondado em demasia o corpo,

a beleza se evadido do seu rosto depois de tantas bofetadas, a voz se

adensado masculinamente.

Ademais, a mulher era portadora de imensas carnes debaixo do ven-

tre, produto de duas práticas, uma longínqua e outra recente. Barriga se

avolumara, primeiro, à conta de cerveja, formando uma notável saliência,

que os bêbados homens chamam curva de felicidade, segundo, por causa

de um recente aborto que ela engendrara duma gravidez de quase cinco

meses.

A mulher irrompeu a acachorrar-se entre os bêbedos, mendigando

copo de cerveja. As estratégias aplicadas até ao momento redundaram num

fracasso. Foi, então, a partir desse momento, que a mulher mudou de estra-

tégia, atentando-se ao Fiodélio e fitando-lhe nos olhos lamentou, absorta:

― Fiodélio, você não pode pagar um copo de cerveja a mulher que

tirou tua barriga de cinco meses!

Atónitos, todos desataram a rir incluindo o próprio Fiodélio. Mas ele é

que devia agir, silenciar outros segredos que podiam ser revelados, even-

tualmente, por aquela mulher. E acabou mesmo afiançando a paga do soli-

citado copo.

Dany Wambire - Beira

Artes Exposição de Desenho de Fernando

e Manuel Júlio (Guiné-Bissau)

Os irmãos Fernando e Manuel Júlio estão

entre os mais originais e populares desenha-

dores-autores da Guiné-Bissau. Há pelo

menos duas décadas que os seus cadernos

de banda desenhada circulam com êxito

generalizado tanto no país como na diáspora

guineense, graças ao traço apurado e ao

humor certeiro.

É com um enorme prazer e com uma ponti-

nha de orgulho que o Centro InterculturaCi-

dade apresenta agora em Lisboa, em estreia

absoluta em Portugal, uma exposição destes

dois notáveis e originais artistas da Guiné-

Bissau. Significativa e importante e em qual-

quer momento, esta é uma iniciativa que

gostaríamos também que fosse lida como um grande

abraço e uma mensagem calorosa de ânimo e con-

fiança ao povo da Guiné-Bissau nos dias complexos e

difíceis que hoje vive. (interculturacidade)

12 de Maio | Sábado

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 6

AMEI UM BICHEIRO: Ritmo e Planejamento

A o se assistir Amei Um Bicheiro

(1952), de Jorge Ileli (Rio de

Janeiro/RJ, 1925-) e Paulo

Vanderlei (Rio de Janeiro/RJ,

1903-1973), percebe-se que se

tem pelo menos quatro diretivas cinema-

tográficas no Brasil na década de 1950.

Além, pois, da chanchada e

das tendências realista e intimista que

predominaram no período, nitidifica-se,

perfeitamente caracterizada, a corrente

influenciada pela linguagem e visão cine-

matográfica estadunidense aplicáveis a

assuntos brasileiros.

A linha realista reporta-se ao

neo-realismo italiano, investigando e foca-

lizando deliberada e conscientemente a

situação social brasileira, com e a partir

principalmente de Rio, 40 Graus (1955),

de Nélson Pereira dos Santos, porém,

com a anterior tentativa de Agulha no

Palheiro (1953), de Alex Viani, e seu clí-

max nessa década com O Grande

Momento (1958), de Roberto Santos.

O perfil intimista é represen-

tado, notadamente, por Ravina (1958), de

Rubem Biáfora, do qual Floradas na Serra

(1954), de Luciano Salce, não está alheio,

devendo ser lembrada ainda a obra de

Válter Hugo Curi, iniciada justamente nes-

sa década.

A referida diretiva fílmica

que ainda se observa nesses anos, que tem como parâmetro o cinema

hollywoodiano, evidencia-se em O Cangaceiro (1953), de Vítor Lima Barre-

to, e antes, também muito nitidamente, em Amei Um Bicheiro, além de per-

mear inúmeras outras realizações do período.

Conquanto policial e centrado no brasileiríssimo jogo do bicho,

o esquema ficcional, a maneira de filmar e o ritmo imprimido à narrativa

sofrem a influência do cinema ianque, largamente consumido pelas plateias

brasileiras desde a mais tenra idade, por força de sua extensa produção e

imperativo domínio do mercado distribuidor e exibidor.

À evidência que, mercê da carência industrial brasileira, a infra

-instrutora cinematográfica posta à disposição dos realizadores é limitada,

quando não precária, o que se reflete em todos os pormenores do filme,

notadamente nos décors dos interiores.

Não por razão da aludida influência e menos ainda em decor-

rência das limitações orçamentárias e tecnológicas, o filme não é autoral,

não atingindo nível artístico-cultural.

É que não foram esses os objetivos dos realizadores e da pro-

dução. Modestamente, prentendeu-se apenas realizar película que tivesse

receptividade e curso ente os

espectadores, nesse fazer con-

tribuindo, porém, para o avanço

da cinematografia brasileira

com reflexos também, como

não poderia deixar de ser, no

segmento marcado por preocu-

pações artísticas.

Ma lgrado seu

esquematismo, é filme que pos-

sui ritmo célere, ação contínua

e até mesmo certas passagens

destacáveis por sua condução

e suspense, quando, por exem-

plo, Grande Otelo esconde-se

da batida policial na caixa de

gás.

Aliás, um dos

aspectos mais relevantes do

filme é a performance interpre-

tativa desse ator triangulino, um

dos maiores do cinema. Seu

desempenho é tão natural,

autêntico e espontâneo que, ao

contrário de todos os demais

atores de Amei Um Bicheiro,

transmite a impressão de não

estar representando, mas, de

estar vivendo as situações das

quais participa.

Do ponto de vista,

pois, da construção e futura

consolidação de cinematografia

brasileira, Amei Um Bicheiro,

pelas qualidades que possui,

mesmo no contexto limitativo que o orienta e o concretiza, é dos filmes

mais marcantes dos anos 50 no país.

Por força de seu planejamento, a estória se perfaz com-

pleta e lógica, seguindo desdobramentos pautados pelo desencadea-

mento contínuo de causas e efeitos, ao qual seletiva e apropriada mon-

tagem imprime cadenciamento ágil e atrativo, uma das normas mais

importantes do espetáculo cinematográfico, já que ele é isso e é disso

que se trata. Não ainda de arte.

*

(do livro O Cinema Brasileiro Nos Anos 50 e 60 editado pelo Instituto

T r i a n g u l i n o d e C u l t u r a e m 2 0 0 9 -

www.institutotriangulino.wordpress.com)

__________________________________

Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil e editor da

revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda

autor de livros de literatura, cinema e história regional e nacional.

(Publicação autorizada pelo autor)

Guido Bilharinho - Brasil

Cartas & Reflexões

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 7

Poesia O PERÍODO FEMININO

JOÃO TALA - Angola

estás húmida e m’esperas de nascentes insurrectas olhos dois espelhos em confronto dois rios me afundam porém posso respirar no moinho

de teu ventre pura ventania velocidade abso-luta da paciência dormida força teu beijo vulgar absoluta incorporação linfa e humores, o sangue monólogo em ciclo de chuva.

Do Poemário FORNO FEMININO

Homenagem à mãe África

Oh minha querida mãe

Fazes parte do velho mundo!

Continente místico...

De conhecimentos profundos

Teus filhos não esqueceram

Dos teus cultos sagrados

Entre eles a Umbanda

Pois são todos abençoados

Oh minha querida mãe...

Te falo de coração!

Ao ler a tua história

Que se passou há dois séculos

Me trás indagação

Pois muitos dos teus filhos queridos

Deixavam o teu seio amado

Forçados a trocarem à liberdade

Para aqui serem escravizados

Transportados em navios

Com fome e acorrentados

Muitos deles morriam

Por esse péssimo estado

Sem falar da saudade

Dos seus entes queridos

Filhos lembrando de mães

Mulheres de seus maridos

Para o nosso país

É uma mancha que esta sempre...

...presente!

Europeus endinheirados

Maltratando os inocentes

E brasileiros de mãos dadas

Com esse tipo de gente

Mãe África tu és pátria.

Minha pátria tão querida!

Enquanto vida eu tiver

Por mim...

...jamais serás esquecida!

Vive em Muipiti

A nossa história Decorada em Muralha

Vive em Muipite A nossa lenda Conservada em mobília clássica

Parte da história Do povo lusitano Encontra-se aqui conservada

Ilha dos Xpicos Que deixaram ao mundo Seus fragmentos Em poesia ou mesmo em versos

Ilha que inspirou Camões Nelson Saúte e Rui Knophlili Que inspirou o tufo E que guarda até a cultura islâmica

Ilha dos Jesuitas Ilha dos portugueses Ilha de Moçambique Ilha de África e do Mundo

Onde o pescador Parte ao alto mar E o poeta Casa com as letras

As mulheres de N’sunki E mussiro na face Os homens de cofió Circulam debaixo do sol de Muipite

O adine é o relógio Alah aki baru É hora de despertar

Ilha de Moçambique Onde embarcaram nossos parentes Para Açores, São Tomé e não sei aonde E acreditamos que haverão de voltar

Ilha da poesia Que me inspira sempre que a visito Aqui vai por ela o meu louvor

Prefácio: apresento a obra na delicadeza da palavra escrita a obra: fechada em si lamenta a entonação cortante nos desvios sobrepostos ao texto glossário: alego insanidade em sorrisos e nada explico além dos signos traduzidos.

OBRA

Pedro Du Bois - Brasil

A Ilha da Poesia

Jessemusse Cacinda - Nampula Vivaldo Terres - Brasil

INTELIGÊNCIA

A inteligência é como bílis faz-nos vomitar pelos neurónios, A verde da esperança. A inteligência faz-nos levitar aos cosmos; Aos cosmos da ciência; Torna-nos astronautas dos demais cérebros; Cérebros rotantes e lunáticos. A verde da esperança uniovula-nos à natureza gêmea Os cosmos da ciência excitam-nos a violar a mulher tecnologia Porquê astronautas? Hum! Já foi dito. A inteligência namora o pensamento e a imaginação E as ideias cruzam-se com a mente Oh! Doce mente que age docemente! Os nossos lábios berram o suor da tua existência.

Chomane Cossa - Maputo

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 8

Entrevista S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 9

Texto: Eduardo Quive | Foto: Frederico Ningi

E stivemos sentados a mesma mesa no seu quin-

tal a beira-mar, no bairro nobre chamado Binfi-

ca, em Luanda no dia 22 de Abril. Era domingo

de churrasco composto por uma boa Moamba,

Caldo, Fungi, Batata-doce pratos típicos de Angola e poesia

por si proporcionados a propósito da ida dos escritores

moçambicanos para Angola.

“Escrevi muita poesia

no parlamento” Hoje, tempo depois da realização

desta entrevista que foi em Mapu-

to, no restaurante Escorpião, sen-

tados ele acompanhado de um

vinho e eu, de uma coca-cola com

gelo e limão a gravar o seu discur-

so que era sempre interrompido

por mim, que colocava sempre as

perguntas. Mas publico só agora

esta conversa porque fiz uma

grande descoberta. Descobri que

J.A.S. Lopito Feijóo K ou João

André da Silva Feijó ou ainda, Lopi-

to Feijóo é resultado da condensa-

ção dos tempos em que a literatu-

ra precisava duma “circuncisão”.

Tempos de rotura entre a literatu-

ra de combate ao colonialismo e

de conquista da independência em

Angola e a necessidade de se criar

“uma nova e outra literatura”

como ele próprio diz. Aí, cria, com

outros jovens, a Brigada Jovem de

Literatura de Luanda (BJLL), agora

liderada por poeta/militar Kudid-

jimbe, para trazer essa escrita

“renascentista”. E depois? Depois,

Lopito Feijóo se evidencia como

poeta ao lançar Doutrina (1987). É

reconhecido como representativo

pela política e levado para a

Assembleia Nacional da Angola –

fica deputado. Na altura se

nomeou ex-poeta, mas convulsio-

na-se nesta entrevista confessan-

do que “escrevi muita poesia no

parlamento”. Ainda diz “Enquanto

os políticos faziam o blá, blá, blá,

eu fazia os meus apontamentos de ver-

sos.” É caso para dizer, ex-deputado e

definitivamente, poeta, com a sua relutan-

te expressão a registar-se no seu Lex &

Cal Doutrina, lançado no princípio deste

ano em Maputo.

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 8 S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 9

Entrevista Texto: Eduardo Quive | Foto: Frederico Ningi

Lopito Feijóo (L.P) - Quando surge a Charrua em Moçambique, em Angola, surge a revista Aspiração, pertencente a Brigada Jovem de Literatura de Luanda, em que

eu sou membro fundador. Em 19980. Nós mantivemos um intercâmbio acesso, entre os escritores Moçambicanos e Angolanos, em que os daqui iam a Angola e os de Angola, vinham para cá, isso com outros países africanos de língua portuguesa, através da LEC – Liga dos Escritores dos Cinco, uma associação de escritores de cinco países de língua portuguesa. Faziam reuniões em cada um dos países mem-bros. A LEC, em Angola era presidida por Luandino Vieira, em Moçambique, por Rui Nogar, em São Tomé e Príncipe por Alda Espírito Santo, na Guiné-bissau era o Vasco Cabral e esses congregava as associações de escritores desses cinco paí-ses africanos. Assim, era possível a interacção dos escritores e os livros dos escritores desses países eram lançados nos países dos cinco e as vezes simultaneamente. Eu mes-mo em 1987 lancei o livro No Caminho Doloroso das Coisas que nem se quer foi lançado em Angola, em primeira mão, foi em Cabo Verde numa reunião dos escrito-res dos 5, que eu me lembro até o Calane da Silva esteve presente. Literatas (L)- Atendendo que estava-se em tempos difíceis economicamente para os países, com que recurso era possível manter esse intercâmbio?

L.F - Era possível porque os nossos estados e governos dos nossos países tinham

regras mais ou menos uniformes. O sistema do partido único tinha herdado algumas reminiscências do governo colonial. Mas também nessa altura, ainda não havia a questão do negócio da cultura. A cultura era como se fosse um jogo de futebol, pra-ticava-se por amor a camisola, por amor a arte. Hoje em dia, já ouvimos que há cul-tura comercial, músicos comerciais, escritores comerciais, hoje os escritores já escrevem porque tem editoras por onde entregar livros todos anos. Hoje a cultura é feita em função comercial, enquanto naquela altura era tudo em função dos interes-ses da nação e do patriotismo e em função da própria arte. A grande diferença é essa. Então interessava aos que estavam no atlântico saber o que se faz no indico e ao do indico saber o que fazem os do atlântico. Que diz que havia uma ponte que depois de 20 anos, o instituto Camões de Portugal, tentou revitalizar ou reconstruir essa ponte, fazendo as correntes lusófonas. As pontes de escritas ou pontes lusófo-nas, era um encontro em que os escritores dos cinco se reuniam. E esses encontros aconteceram, primeiro em 1997 e em Lisboa depois em Maputo e depois pararam. Mas isso deve-se, se calhar a questões políticas e elas vão se destruindo, depois revitalizam-se e reconstroem-se. Mas as novas gerações a mais recente da literatu-ra moçambicana e angolana devem fazer, que seria, restabelecer e reconstruir uma ponte, uma ligação que sempre existiu entre as nossas literaturas. L - Estamos a falar dos anos 80 tempos em que tanto Angola, assim como Moçambi-que saiam da colonização. Como era fazer a literatura nessa altura?

L.F - Fazer poesia era acima de tudo, criar e trocar o produto da nossa criação e

partilhar, com outros autores da nossa geração. Hoje em dia, até tenho conversado com novos escritores em Angola, uns tem receio de mostrar o seu trabalho, se calhar por causa da crítica e bom que assim aconteça também, e outros não o fazem porque não querem aprender, porque não vejo problema em alguém escre-ver e ir ter com outro para mostrar a sua produção. É preciso saber ouvir a opinião do outro. Naquela altura era assim. Nós escrevíamos e íamos ter com um amigo para mostrar de modo que não ficávamos fechados. Não precisamos mostrar um crítico literário, mesmo um leitor atento, que lê muito que tem uma capacidade crítica e esse dá a sua opinião sobre o que escrevemos. Nos nossos tempos até era normal receber sugestões de palavras do outro. A poesia no fundo anda em nossa volta. É só olhar em tudo que nos rodeia e vamos achar a poesia. Agora ver é uma coisa e escrever é muito outra, porque escrever já implica o exercício de escrita e para que se tenha esse exercício é preciso praticar, tem que cultivar diariamente.

Da necessidade de se fazer uma nova e outra literatura

L - Nessa altura em Moçambique surgia a nova poesia com a criação da revista Char-rua, que hoje é nome duma geração. Um dos objectivos dessa revista era trazer as novas formas de exercer a arte de escrita. E disse que surgia nesse momento em Luanda a Brigada Jovem que objectivos norteavam esse movimento?

L.F - Nós descobrimos, por volta dos anos 80 a 83, que as reminiscências de luta

de libertação nacional, estavam a propiciar a criação ou a efectivação de uma poéti-ca cantalonitista, ou seja, que era feita através de palavras de ordem e que apoia-vam o partido no poder, de vivas ao sistema e que daí não passavam. Claro que esse tipo de poesia também trás uma artisticidade. Também de grau de literariedade, mas estava a margem e longe de reflectir a real vivencia do povo. Então eu e outros jovens, como António Panguila, Luís Kandjimbo, Frederico Ningi, decidimos criarmos no seio da brigada uma corrente chamada OHANDAJI, a apar-tar do qual criamos um colectivo de trabalhos literários com mesmo nome que visa-va fazer uma espécie de investigação da cultura local para fazer poesia com uma dose acentuada de teorismo falando das coisas da terra e do povo que nos identifi-cavam, porque afinal, antes falava-se na poesia, do partido dos vivas daqui dos camaradas etc, enquanto tínhamos uma cultura e uma tradição, uma terra com motivos da angolanidade que nos permitia fazer coisas novas. Uma nova e outra

literatura. Porque não é só fazer uma nova literatura tinha que ser uma outra literatura, diferente daquela que vinha da lá. L - Então queriam substituir os Agostinho Neto… L.F - Em termos literários não há insubstituíveis e também não se substitui nin-

guém. Cada um de nós a seu tempo e tem seu espaço. Há espaço para todos. Dentro duma literatura há espaço para todos, o que deve haver é criatividade autoral. Porque se quiserem, para o caso dos jovens, podem ir a procura do novo e conquistam o seu espaço. Posso dar o exemplo de um jogo de futebol. Cada equipa tem 11 jogadores e cada um tem a sua posição em campo. E sabes o que é jogar bem? Jogar bem é procurar espaços vazios e jogar a bola por esses espaços e assim fazem o show nesse espaço. Assim fazemos o nosso sucesso. Substituir Agostinho Neto, António Jacinto, Ângelo Almeida Santos, Mendes de Carvalho ou Uanhanga-xitu, José Craveirinha, Rui Knopfli, Eugénio de Lisboa, eu lhe digo, esses são insubstituíveis. Esses conquistaram seu espaço, fizeram a sua literatura no seu devido tempo e espaço. O que temos que fazer é criar a nossa literatura no nosso espaço. O que vocês devem fazer é criar a vossa literatura no vosso próprio tempo e não pensarem em substituir algo ou alguém. Porque os processos são dinâmicos e se rejuve-nescem. Cada tempo com seu contexto e cada contexto com seu texto. Tem um texto para cada contexto, agora o contexto que vocês vivem hoje não é o contexto que eu vivi que era o contexto da guerra interna ou da destabilização. O contexto que Agostinho Neto e José Craveirinha viveram, era o do naciona-lismo e da conquista da independência, esse era o contexto deles e o texto deles estava de acordo a esse contexto. O nosso texto foi de acordo com o nosso contexto por isso que escrevi As Marcas da Guerra. Vocês também escrevam o vosso texto no vosso contexto. L - Mas vocês também viveram uma guerra (a guerra de destabilização) e você veio a escrever As Marcas da Guerra, não seria esse o regresso aos tempos do Agostinho Neto e Craveirinha ou nunca se saiu da lá?

L.F - Não. Em primeiro lugar os poetas não relatam nada. Os poetas são cria-

dores por excelência. Os poetas são “deuses”. Eles criam tal como Deus criou a humanidade. Eles criam o texto poético. Quem relata são os locutores e jornalistas. Os poetas não relatam. O que nós fizemos é expressar por via da palavra poética uma realidade em nossa volta. O fazemos por via da palavra poética e essa palavra implica o poder simbólico que depois se revê no próprio criador, que é o poeta.

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 1 0

“Tenho três mesmos que nada”

L - Estamos a falar do poeta como um criador. Fale-nos do seu processo de criação poética.

L.F - É muito exigente. Um processo de criação que tem princípio e não tem fim. É

um processo difícil e complicado que chego a chamar de processo experimentalista e concretista. É concreto porque faço uma junção entre a realidade concreta mais os exercícios de todos os dias. Por isso que sempre digo que, a poesia é o pão de cada dia. Nós temos que comer pão todos dias. Para nós isto é poesia. Porque todos dias nós lemos poesia em voz alta, que é um bom exercício. Escrever por dia um verso e pensar poesia diariamente. Isso implica um exercício experimentalista que por via da língua ou da linguagem, que são coisas diferentes, nos levam a um apuramento estético que resultam em textos que de manhã escreve, a tarde ré lê ou rescreve e de noite, deita fora ou arquiva, para que no dia seguinte volte a ler, reler e arquivar e noutro dia, ler ler e arquivar. Mas cada leitura e releitura implicam reescritas, ou seja, implica um exercí-cio de escrita até chegar aquele ponto da insaciedade total. Até chegar num momen-to em que me parece que um pássaro sai da garganta e quer voar. Quando é assim, é porque o poema acha-se pronto para sair e mostrar-se ao leitor. Mas também costumo dizer que eu, como autor, se faço um trabalho exigente da escrita, que consiste na elaboração e reelaboração da língua e exijo que os meus leitores o façam quando lêem os meus poemas. L - O Lopito Feijóo chega a lançar três livros no mesmo ano, mas diz-se não ser escri-tor consagrado. Como é que chega a essa conclusão? L.F - Eu aprendi que para quem quer-se verdadeiramente artista, numa vertente

artístico literário, um dia não existe, um ano não conta e 10 são mesmo que nada. Agora eu tenho 30 anos de prática literária e de publicação, 10 vezes 3 dá 30 e trinta a dividir por 10 dá 3, quer dizer que tenho três mesmos que nada. O que significa dizer que quanto mais eu caminho, quanto mais o tempo anda, eu vou aprendendo e descobrindo que tenho mais caminho a andar. Em literatura não se pode dizer que já cheguei. Nunca se chega porque não há meta. A única meta é aprender todos os dias, escreve todos dias. Por isso eu digo que não me sinto realizado, sinto-me satisfeito, porque hoje poderei fazer algo que não possa agradar. Apenas sinto-me satisfeito. Em literatura nunca se deve desafiar o mais velho porque cada qual com a sua expe-riência. É como se diz, a antiguidade é um posto. Nunca se deve duvidar da capacidade e da experiência dos que nasceram primeiro que nós. Por uma razão muito simples. A minha experiência não é só a minha expe-riência, é aquilo que eu vivi, mais o que os da minha geração viveram, mais o que a vossa geração está a viver. Eu já vivi a minha experiencia, já ouvi falar da experiencia duma outra pessoa e ain-da vivo a vossa experiência. O que significa que quanto mais caminho a gente cami-nha mais caminho temos para caminhar. L - E os livros que já publicou, dentre eles, Doutrina, Rosa Cor-de-rosa, As Marcas da Guerra e este último, Lex & Cal Doutrina, o que li dizem? L.F - Dizem-me que ao longo desses 33 anos das publicações poéticas cresci.

Conheci gente desta África toda, principalmente a chamada África negra. Desde a Nigéria, Senegal… tenho amigos poetas de toda África negra. Partilho experiências com poetas doutros continentes, na Europa e na América onde temos oportunidade de editar livros. Temos editoras muito interessadas em literaturas africanas e acredi-tam nelas. Poetas não se fazem de cinco em cinco anos. Fazem-se todos dias L - Acha que a sua poesia é compreendida?

L.F - Eu não quero ser compreendido. Não quero ser compreendido e nem

espero ser compreendido hoje. Há autores que não foram compreendidos no seu tempo, mas que hoje são chamados autores clássicos. E mesmo nas nos-sas literaturas, um Craveirinha durante o seu tempo não foi compreendido, no seu próprio país e eu gosto muito duma expressão que os meus amigos do Kuphaluxa têm sempre usado. A escrita, as vezes é como uma lâmina e uma lâmina fere e fere mesmo, e geralmente os poderes constituídos, não gostam das lâminas, porque os ferem e José Craveirinha e outros autores que não con-vém agora cita-los o que escreviam, eram autênticas lâminas que feriam e que eram várias vezes inconvenientes, politicamente e socialmente. Mas fizeram a sua arte e é isso que hoje vamos bebendo. O problema é que nós nunca podemos nos assumir como escritores dum deter-minado sistema e de um determinado poder. Contextualmente hoje a literatura se faz de quatro em quatro anos ou de cinco em cinco anos, conforme as cons-tituições. Mas não se faz a literatura nessa periodicidade. Poetas não se fazem de cinco em cinco anos. Fazem-se todos dias. Eu mesmo tenho uma experiência parlamentar. Fiquei 16 anos como deputado da Assembleia Nacional da Angola, e sou agora reformado. Tenho a vida razoavelmente realizada, recebo a minha mísera reforma e vivo da poesia. Eu não vivo de sistema e nem do Estado. L - E mesmo falando do compreender e não compreender a poesia, vamos falar do seu novo livro que lança em Maputo, Lex & Cal Doutrina. Traz-nos aqui o que não habituamos da sua escrita. Será esta uma nova forma de escrever sua?

L.F - Uma nova e outra poesia. Não vale a pena ser nova, tem que ser outra e não vale a pena ser outra sem ser nova. Não podemos fazer o que já foi feito. Eu tenho um grande problema no meu país que é o de ser chamado mestre. Dizem que sou mestre da poesia angolana embora eu me chame de aprendiz, mas isso porque cada livro meu é uma proposta de literatura. Se você ler As Marcas da Guerra é uma proposta, ler o Lex & Cal Doutrina é uma outra pro-posta e ao ir mesmo ao encontro da própria obra Doutrina, verá que é uma

outra proposta. Isso eu chamo de poesia angolana com influência de poesia chinesa, o que me levou 10 anos para fazer um livro com 50 textos. Cada livro meu é um livro. É uma experiência nova, o que vou a procura todos dias. E quando faço sempre uma nova proposta, a juventude vem e decide seguir e vem a traz de mim chamando-me de mestre. A perspectiva do Lex & Cal Doutrina é nova e lanço o livro aqui em Maputo em

primeira mão, acabando de sair da gráfica. Em Angola ninguém conhece nem se quer a capa. Quando eu chegar lá com certeza serei perguntado, como é que você fez esta poesia, mas a poesia não se explica. A realidade dessa poesia tem a ver com coisas locais, isto são tem símbolos da angolanidade e foi feito conscientemente. A poesia tem 10 porcento de inspiração, que é o Dom dado por Deus e mais 90 porcento de transpiração. Quer dizer que tem que escrever a palavra certa, ou a fórmula certa e outros elementos, num processo contínuo que vem a poste-rior. A poesia se escreve em qualquer lugar. Eu escrevi muita poesia no parlamento. Enquanto os políticos faziam o blá, blá, blá, eu fazia os meus apontamentos de versos. Escrevia a minha poesia. Mas o labor artístico literário solicita um escri-tor, já bem sentado. L - A que se inspira o Lex & Cal Doutrina?

L.F - Há um segredo que não lhe vou contar. Para além de tudo que nos rodeia como as cores da África. Então são essas coisas que nos rodeiam que inspi-ram os poetas. Nós temos muita coisa boa que nos deve inspirar. Nós não somos filhos do além, somos do aquém e é aqui na terra onde encon-tramos o que nos inspira e temos que nos revelar e não depois de partir para o além. L - Disse que enquanto os políticos faziam o seu blá, blá, blá, na Assembleia Nacional escrevia os seus poemas. Estava a ser deputado ou poeta no seu man-dato?

L.F - Devo dizer que eu só cheguei à Assembleia Nacional graças a represen-

tatividade poética e se não tivesse essa representatividade lá não estaria. Por-que não tenho representatividade política, mas mesmo assim, como poeta, foi escolhido porque tinha representatividade suficiente por ser entendido pela juventude. Então se hoje eu sou este reformado deputado e tenho o meu salário como aposentado, é graças ao ser poeta. Se não tivesse sido poeta não teria sido deputado. E se assim não fosse, não teria a reforma que me sustenta até hoje.

L - O que acha sobre a interacção literária entre os países da CPLP.

L.F - A cultura nos nossos países não pode ser tida como enteada do Estado.

A cultura deve ser promovida cabalmente. Tratada com maior investimento

possível porque podemos exportar, vender e arrecadar divisas para o melhora-

mento da condição dos fazedores da cultura, que na verdade é o povo. A cultu-

ra vem do povo e quem a faz é o povo. Se o povo quer viver bem, principal-

mente nos países africanos de língua portuguesa os governos devem fazer

alguma coisa. O José Craveirinha dizia que se os nossos dirigentes fossem

poetas do que políticos não poderíamos viver no contexto em que estávamos.

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 1 1

O Sobrado de Kafka

Dei-me ao luxo de chegar até aquele lugar comum... E tocar nas paredes sólidas do

sobrado concreto... Sensação de lápide abstraída... Aqui e ali... Praga... Onde

vivemos... E escrevemos... Ou vice versa... Kafka e todos nós que o evocamos

enquanto o lemos...

Amém.

Pensei em escrever...

Na esquina torta,

sobrou-me sombra,

faltou-me altura.

Escrever não creio

seja coisa deste,

talvez vício de um outro,

extremo mundo.

Sobrou-lhe um sobrado.

E uma sombra assombra,

em plena luz do dia,

com sua frieza cotidiana.

Imagens: Registro fotográfico coletado pessoalmente por este que vos escreve, em Praga - República Tcheca.

E Tenho Dito!

no caminho errado

Nelson Lineu - Maputo

P assaram-se dois anos depois da burocracia que vai nos

caracterizando, hoje 1 de Maio, pela primeira Gomes tem a

oportunidade de desfilar como os outros, vestido de inquieta-

ções caprichando na sua indumentária (necessidades), tem

consciência que a sua empresa tem mais número de pessoas nessa mar-

cha. Sente-se orgulhoso por ser ele a dar essa dignidade a ele e ainda

mais aos outros.

No igual número de anos atrás, estava ele vendo os outros a fazerem a

manifestação, dum lado triste por não poder entregar curriculum vitae

numa empresa por ser feriado, e do outro embora com muitos motivos

para se manifestar, fazer-se ouvir, por coisas que segundo ele não o bene-

ficiariam apenas, não o podia fazer, porque todos manifestantes eram

empregados. Ele nem esse direito tinha, era preciso subir alguns degraus

para ter necessidades como a dos outros, as que tem direito de ser ouvi-

das.

Ficou assistindo toda a cerimonia, lendo cada rosto, inclusive a dos gover-

nantes, em muitos casos parecia que entre eles e marchantes vivia-se

momentos diferentes, assim como os locais.

Naquele 1 de Maio foi o último a sair, muito cansado, mas com vontade de

trabalhar não só com o corpo também com o pensamento, porque segun-

do ele poucos faziam isso, remetendo essa função a barriga.

Chegado a casa um abraço na mulher, beijo na filha, e um olhar no espe-

lho para ver se era ele mesmo, pós nesses dias duvidava de tudo, vivia de

Zé-fastudice, o número de anos da sua formação era o mesmo que anda-

va desempregado até surgir a sua ideia magnífica, associação. Via todos

os dias surgirem independentemente da pertinência do motivo, foi perce-

bendo como elas funcionavam, assim como as legalizar. Era peremptório

sublinhar que não tinha fins lucrativos, para ele se calhar o nosso estado

era assim também, o resultado via-se nos nossos os dias.

Foi conversando com algumas pessoas da sua situação, falando da sua

ideia, que começara com os do seu maxaquenado bairro, a nível do distri-

to, município, depois de tantas lutas, conseguiram legaliza-la graças ao

apoio de empresas de cidadãos que saem dos seus países só para nos

ajudarem, sabemos que algumas dessas nações vivem a mesma situação

que nós. São tão generosos que não vem os seus compatriotas, é isso

mesmo Moçambique é um país especial, sem dizer maningue nice.

Nessa era que os discursos nos dizem ser de empreendedorismo, o deles

chamou-se: associação dos desempregados de Moçambique.

Claro, ele foi eleito o presidente, quando uma empresa quisesse recrutar

algum pessoal, eles é quem intermediavam, tratavam de receber currículos

e escolher os adequados consoante as vagas.

Era verdade que nem todos se beneficiavam, mas como sempre ouviu nos

discursos calmava-os dizendo: é um processo. Assim hoje pelas cidades

todas do país eles estão a manifestar-se, uns formalmente outros nem por

isso. O importante é que já tem direito por serem membros dessa associa-

ção, que também como noutras áreas não é para qualquer um, é preciso

seguir alguns requisitos, alegam que é assim para ter mais credibilidade.

[email protected]

Penduras no dia dos

trabalhadores?

O passo certo FILOSOFONIAS Marcelo Soriano - Brasil

Ensaio NOVA VAGA DE POESIA MOÇAMBICANA

CARREGADA DE CRÍTICA

Vida

Herberto Hélder de Oliveira nasceu no Funchal,

ilha da Madeira, a 23 de Novembro de 1930, no

seio de uma família de origem judaica.

Frequentou a Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa, tendo trabalhado em

Lisboa como jornalista, bibliotecário, tradutor e

apresentador de programas de rádio. Viajou por

diversos países da Europa realizando trabalhos

corriqueiros, sem nenhuma relação com a

literatura.

Colaborou em diversas revistas (Graal, Cadernos

de Poesia, Búzio, Poesia Experimental 1 e 2, entre

outras). Ligado ao movimento da poesia

concretista (ou experimental), é conhecida a sua

aversão a aparições públicas ou manifestações de

reconhecimento da sua notoriedade.

Considerado um dos grandes escritores

portugueses contemporâneos, a sua poesia tem

uma densa imagética, frequentemente associada

a temas ligados ao questionamento do eu, à presença de medos,

ao conhecimento do humano, temas ligados por vezes a um

certo misticismo, servidos por uma linguagem original e de

grande riqueza metafórica.

Herberto Hélder

Poesia:

Poesia - O Amor em Visita (1958)

A Colher na Boca (1961)

Poemacto (1961)

Retrato em Movimento (1967)

O Bebedor Nocturno (1968)

Vocação Animal (1971)

Cobra & etc. (1977)

O Corpo o Luxo a Obra (1978)

Photomaton & Vox (1979)

Flash (1980)

A Cabeça entre as Mãos (1982)

As Magias (1987)

Última Ciência (1988)

Do Mundo, (1994)

Poesia Toda (1º vol. de 1953 a 1966; 2º vol. de

1963 a 1971) (1973)

Poesia Toda (1ª ed. em 1981)

Ficção:

Os Passos em Volta (1963).

Fo

to: internet

Afrodite Formosa

Esses peitos pequenos, cheios.

Esse ventre, o seu redondo espraiado!

O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido

das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,

as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,

o coto de um braço, o tronco robusto, a linha

cariciosa do ombro...

Afrodite, não chorei quando te descobri?

Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia

e de Roma!

Tantas figuras graves, de gestos nobres e de

frontes tranquilas, abstractas...

Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.

Era uma assembleia de amáveis espíritos, divaga-

dores, ente si trocando serenas, eternas e nunca

desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...

O descanso desse teu gesto!

A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.

A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.

E um fumo, uma impressão tão subtil e tão pro-

vocante de pudor, de volúpia, de reserva, de

abandono...

Já passaram sobre ti dois mil anos?

Estranha obra de um homem!

Que doçura espalhas e que grandeza...

És o equilíbrio e a harmonia e não és senão

corpo.

Não és mística, não exacerbas, não

angústias.

Geras o sonho do amor.

Praxíteles.

Como pudeste criar Afrodite?

E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de

a vencer, gozar!

Tinha de assim ser.

Eternizaste-a!

A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne... ...

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 1 3

Ensaio

A ntes de discutirmos a poe-

sia de Ruy Ligeiro e Hélder

Faife, importa fazer um

exercício de abstracção ao

redor desta magna arte de comunicar que é a poesia. Quanto a nós, cremos

somente existir possibilidade de avançar com proposições criativas quando o

poeta adquire consciência sobre as contradições que em primeira linha, são-

lhe intrínsecas e em segunda, apreensão dos fenómenos extrínsecos.

Tendo consciência desta dinâmica da vida, “ter consciência duma coisa não

é pensar nela, mas senti-la” (Narciso Irala, 1968), e estando reunidas as pre-

missas intelectiva, volitiva, afectiva e orgânica como o Irala muito bem

desenvolve no livro “Controle cerebral e emocional”, o poeta aparece fecun-

do de verbo, que mais são palavras com propriedade de gerar emoções, inci-

tar a reflexão e, por conseguinte, ser uma força motriz para uma compreen-

são e por que não, mudança.

É por isso, que o poeta assume a posição privilegiada ou não, dum interlocu-

tor, que ao lançar os dados e revelar seus desígnios, as suas palavras tem

um poder transfigurado de criar-recriar-modificar a vida; como aliás, a poesia

ou texto poético é o testemunho do mesmo poder anímico. Então, nesta

asserção o poeta é um mago; detém habilidades superiores sobre o conheci-

mento-sentimento. As palavras são poções mágicas e os seus versos feiti-

ços.

Não importa a reflexão teórica sobre o que é bom ou mau; portanto, o valor

ético de que o poeta é enfermo. Interessa-nos sim, analisar a validade artísti-

ca da sua obra dentro duma ambiente social, económico, político e cultural.

Uma tarefa que revela-se ingrata em virtude de o crítico colocar-se quase

sempre, na posição de intérprete, mais ainda embaraçosa quando trata-se

de descortinar os sentimentos dissimulados pela estética das palavras. Não

é por acaso que Henriques Marcelino diz “A crítica literária é uma análise

concreta de uma determinada obra ou assunto literário. Criticar uma obra de

arte é penetrar no estado de espírito do autor, ou melhor interpretar os sig-

nos utilizados na feitura da obra e desvendar o sentimento do autor”1

Começamos, desde já, por abordar, o nosso ponto de vista, em relação a

poética do Ruy Ligeiro, pseudónimo de Carlos Maurício que em 2001 estreia

com o livro “País do Medo”, com poemas inéditos e alguns publicados de for-

ma dispersa pelos vários jornais e revistas literárias (Oásis, 2007).

Oriundo do bairro do Chamanculo, fecundo em manifestações culturais e até actividades políticas, Ruy Ligeiro na sua primeira “aparição”, não consegue fugir aos cheiros, cores e azáfama do local em que nasceu e cresceu. É assim que quando a sociologia geral informa-nos “o Homem é o produto do seu meio social” encontramos algum conforto nesta factualidade. Existe uma simbologia em todo discurso poético de Ruy Ligeiro “um símbolo não signifi-ca”: “evoca e focaliza, reúne e concentra, de forma analogicamente poliva-lente, uma multiplicidade de sentidos que não se reduzem a um único signifi-cado, nem apenas a alguns.”2 O poeta brinca com os símbolos que aprendeu a respeitar, por isso, em jeito de homenagem ao jornalista Carlos Cardoso, que morre em Maputo no ano de 2000, vítima de assassinato; no poema “Drácula Negro” junto ao título coloca “receita para uma morte atenuada” e depois discursa:

… Agora que a morte chegou

vá tú sozinho na sua bolei

Não perguntarei se vais ao céu Com esses teus olhos de santo E ironicamente adverte: …E não te esqueças, Carlos que no céu Também há estradas nocturnas sem semáforos reduza a velocidade Porque ainda não fugiste do tráfego Urbano e nem do congestionamento das auroras Fugiste apenas do silêncio ardente do mundo…(LIGEIRO, 2003, p.31)

É aqui importante referir que o jornalista Carlos Cardoso, morre investi-gando a corrupção que acontecia em algumas instituições bancárias par-ticipadas pelo estado moçambicano.3 Tal é a dimensão sociopolítica a qual o Ruy Ligeiro, não consegue fechar os olhos e imbuído de “uma mistura subtil de crença, de sabedoria e de imaginação constrói diante dos nossos olhos a imagem constantemente modificada do possível” (Jacob 1982, p. 10). Dizemos ainda que o tema morte, permeia outros poemas do Ruy Ligeiro tais como: “Ode Liberti-na” (p.10), “Cemitério das Aves” (p.15), “Galileu Galilei” (17), “Paralelo 76” (p.27); mas nem só da morte vive o sujeito poético personificado na figura do Ruy Ligeiro. Um dos poemas que não podemos deixa de trazer para esta análise é o “Pauta Quotidiana” Este poema É para ser vendido Numa banca do Mercado Central Como se vende Tomate Cenoura Ou cebola (….) Comprem-lhe este poema Sem graça Que é desgraça para a sua vida Poema lindo Poeminha barato Mesmo que seja um só verso para sustentar a sua vida …(LIGEIRO, 2003, p.43) É assim que o autor, com a sua mania de dizer as coisas, como quem faz troça do que não disse, mas quer dizer, mostra que por detrás do sujeito poético, existe um homem com todo o universo de necessidades. Quanto a nós, a dúvida que ocorre é saber como o poeta consegue ven-der o poema no Mercado, num país em que a oralidade norteia a cons-ciência colectiva? é aqui que a nosso ver, o pensamento do Ruy Ligeiro pretende chegar; ou seja, a necessidade de as autoridades que tutelam a cultura participarem de forma pró-activa nos destinos da literatura. A necessidade de valoração da arte da escrita e sua massificação. Não é fruto do acaso, que o poeta quer vender o seu poema num grande cen-tro de comércio. É deste “País do Medo” como o autor intitula a sua obra, que tem medo o sujeito poético; onde as dificuldade sociais crescem “os homens mur-cham nas ruas (p.3)”, a liberdade de imprensa pode significar a morte “…agora a morte chegou” (p.31), onde existe uma corrida para o enriqueci-mento ilícito e pode-se ser “atropelado por um cardume de ambi-ção” (p.28). Enquanto este e outros propósitos não acontecem o Ruy Ligeiro, com

Dinis Muhai - Maputo

NOVA VAGA DE POESIA MOÇAMBICANA

CARREGADA DE CRÍTICA

O Texto Poético e suas Transfigurações – Análise de Alguns Casos

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 1 4

Ensaio alguma desilusão no penúltimo poema conclui: “Antes ser homem – depois poeta”. Do Hélder Faife, existe alguns aspectos que logo a partida importa reter: a simplicidade e simbolismo. Felizmente, tanto na poesia de Ruy Ligeiro quanto a do Hélder Faife, pouco há para depurar. Temos alguma dificuldade em rotular as gerações literá-rias, preferimos sim, deixar o tempo enunciar esse postulado, aliás é essa a sua vocação. Hélder Faife, também com publicação de poemas na revista Oásis4, estreia de forma airosa com um livro de contos “Contos de fuga” e de poesia “Poemas em sacos vazios que ficam de pé”. Porque propusemo-nos falar do texto poético, é sobre a poesia que con-centramos a nossa atenção. Assim, a simplicidade na poesia deste autor cheia de artifícios, críticas ao sector formal, num jogo de sentidos duplos: …dumbanengue é Mercado com muita acção sem venda e compra de acções não cota na bolsa de valores mas conta em muito para os valores nos bolsos (FAIFE, 2010, p.45) E essa simplicidade também é revelada pela maneira como o autor escolhe os títulos dos seus poemas, palavras que povoam no universo social do povo “mola”(p.13), “velhice”(p.15), “pagamento” (p.25), “amendoins torra-dos” (p.27), “puto” (p.29), “barraca” (p.39). Podemos arriscar em afirmar que, a poesia do Hélder Faife é preenchida de detalhes e só apreendidos quando se tem o necessário distanciamento para colher o essencial, em cada acto de olhar as coisas que existem a vol-ta. Também é um poeta de símbolos; na página 22 o poema tem como título “capulana” crepúsculo pano sofrido na cor motriz a vida embrulha ancas veste trouxas nina crias e montra no chão alimentos informais (FAIFE, 2010, p.22)

Para Gilberto Durand “o símbolo revela-nos, portanto, um mundo” (1963, p.13). De facto, Hélder Faife, fulminado por uma luz suprema demonstra que ela, a capulana não é um pedaço de pano…está presente na vida, como, o meio social que o rodeia está impregnado na sua consciência. A capulana dá dinâmica a vida! e portanto, revela uma cultura, um símbolo e um mundo. Tal é a transfiguração do verbo, os sacos vazios são homens e mulheres que diariamente sustentam o peso da miséria e, até, são heróis da vida porque como o autor coloca “… a dureza da vida subverte o provérbio / sacos vazios ficam de pé…”(p.8). Só a transfiguração logra trazer esta complexa realidade; não é por acaso que Joanne Kathleen Rowling nas aventuras fantásticas – Harry Potter, afirma “Transfiguração é uma das formas mais complexas e perigosas formas de magia”. Por fim, a magia que o Hélder Faife quer aqui colocar, está eivada de esteticismos pró-prios do exercício poético, ao transformar as pessoas em sacos e vice-versa. Esta é uma crítica ou quiçá uma representação anímica do seu universo social. ____________________________________ 1 Seminário de Maputo, 4º, 2002, Maputo. LUSOGRAFIA. Maputo: Imprensa Universitá-ria, 2002, p. 15 2 RODRIGUES, M. da Conceição. Arqueologia, Análise do Simbólico, Odivelas: Editores e distribuidores de puplicações, Lda, 1991, p. 13 3 SOROKOBI, Yves. O Assassinato de Carlos Cardoso, New York, http://www.cpj.org 4 OÁSIS. Maputo: Publicação regional Maputo, Gaza e Inhambane, 1997, p. 21

Referências

Seminário de Maputo, 4º, 2002, Maputo. LUSOGRAFIA. Maputo: Imprensa Universi-tária, 2002, p. 15

RODRIGUES, Maria da Conceição. Arqueologia, Análise do Simbólico, Odivelas: Editores e distribuidores de puplicações, Lda, 1991. SOROKOBI, Yves. O Assassinato de Carlos Cardoso, New York, http://www.cpj.org OÁSIS. Maputo: Publicação regional Maputo, Gaza e Inhambane, 1997. IRALA, Narciso: Controle cerebral e emocional, São Paulo, Edições Loyola, 1968. FAIFE, Hélder. Poemas em sacos vazios que ficam de pé, Maputo: Edição Gráfica A2 Design, Lda. 2010. LIGEIRO, RUY. O País de Medo, Maputo: Edição AEMO, 2003.

S E X T A - F E I R A , 1 1 D E M A I O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 1 5

N inguém imagina quanto me custou

esta foto. Foram apenas 10 meti-

cais. 10, só!

A partir do tão baixo preço tive a oportunidade de

experimentar este prazer que já nem sei onde encon-

trar. Este prazer de um cantador da rua. Tocador de

sons que relevaram a minha nostalgia. Ah! Sinto meus

antepassados nas canções deste velho poeta, canta-

dor e tocador das ruas. Algo me uniu a este artista

anónimo que canta também para alegrar os deuses.

Foi na noite de quarta-feira na Av. Karl Marx na baixa

da cidade de Maputo. Fazia a minha Marcha desde a

Av. Da Malhangalane, de onde buscara entrevista do

músico José Manuel Luís, ou JOMALU como é cari-

nhosamente tratado, a propósito dos seus 20 anos de

carreira. Uma entrevista que já mais publicarei porque

o gravador me fintou. Desgravou sem que eu me aper-

cebesse. Algo que já mais me acontecera. Nunca, na

minha profissão que aprendi em linhas tortas e que a

amo como a mim próprio. Em fim…

Caminhei enquanto observava as margens, as gentes,

atento aos veículos que intercalam as ruas e às vitrinas

por onde se expõem electrodomésticos e vestuários.

Confesso que sou louco por manequins. É verdade,

principalmente do sexo feminino. Vejo nelas uma ter-

nura vital. Respiram como eu, tão silenciosamente

como se não vivessem. E continuava a caminhada.

Pela segunda vez ganhei a coragem de andar pelo

lado do cemitério da ronil. Lá onde defuntos repousam

desde tenra idade. Lá onde os mortos partilham espa-

ço com amorfo, ladrões, cobras, ratazanas, capim e

degradação. Uma degradação que vai para além do

social, atingiu a moral do homem urbano. Vida dura

essa dos mortos, pois não?

E não é que andar me agrada mesmo? Caminhava e

descia pela Karl Marx. Para minha atenção, lá do longe

vinha um som. Já passavam das seis da noite. Eram

praticamente sete. Ouvi de longe o som da viola com percussão de gaita ao fundo. Quem

será o músico? Algum espectáculo por perto? E qual é a banda que o acompanha? …os

bailarinos? Quanto custa a entrada?

E ia que não ia. Ia me aproximando do local onde vinha aquele som que embaraçou os

meus paços já mendigos daquele cantar. Ainda de longe, vi um grupo de crianças de

mãos na cintura a remexer na vontade do dedilhar da guitarra daquele homem. Como

gesto de agradecimento o músico soprava ainda a gaita que o acompanha. Cansado? A

voz não fica, decide cansar. Era canção de Abílio Mandlase, Juro Palavra D’ora Sincera-

mente vou Morrer Assim, diz a letra. Cantava enquanto a plateia delirava e fazia o coro:

vou morrer assim. Ah, nostalgia sinto, ao som desta marrabenta que arrebenta com a

minha vontade. Sinto que é urgente aproximar-me. É caso de vida ou morte. Ou vou ou

morro ainda peando por este alcatrão intercalado de acácias que se extinguem. Ando

mais depressa. Corro. Chego. Paro de olhos fechados a respirar fundo. Agora sinto que

vai se recuperando em mim a vida que ia para o além sem esta música. Foi mesmo

supremo ter chegado a tempo naquele Show-miss. A tempo não se assiste espectáculo

de boa marrabenta nesta cidade. As novas formas de fazer a música, o tal de música

comercial, roubou o espírito arrabentista deste ritmo. Agora não se faz boa e pura marra-

benta neste país. Faz-se Pandza, Dzukuta e reticências (…). Moçambique, o país da

Marrabenta?

De repente a música pára! Ele precisa de 10 meticais para cantar, se queres ouvir, paga.

Me era já cobrado o bilhete. Custa 10 meticais. E o que é 10? Uma moeda de ferro e

bronze. E o que compra? Um pão e um copo de sumo na pastelaria ao noutro lado, na

Av. Samora Machel. Eu que o diga, sei muito bem o quão essa refeição é divina para

estas barrigas negras de pobreza que se mantém absoluta. Ao meio dia vou para lá e

alimento do trigo sagrado.

Não me custou pagar essa nota. Era urgente que ouvisse aquele músico que agora é

meu ídolo. Quando levei a moeda em sua direcção, uma descoberta…é um cego. Verda-

de. Os mais cautelosos chamam de deficiência física. E é,

não é?

Então quer dizer que o meu marrabentista é cego? Canta e

nem se quer tem a felicidade de ver gente a sofrer com o seu

talento! Isso me enche de comoção. Sinto que vem uma dor e

frio pela espinha dorsal. Nada disso. Nada de pena porque

pena só tem galinha. Música é os seus olhos. E este menino

sofre como eu. Sofre que até chora. Sucumbe. Este cantador

não tem piedade!

Deixo a moeda de 10 na sua mão. O homem a roça enquanto

a leva para o bolso. Alegre volta para sua guitarra acústica.

Dedilha profundamente. Navega com ternura pela melodia

que ele mesmo é quem escolhe. E canta. Ai ngoma ya ma

kanjôôô! Do Makandza. Ah, essa música mexe com minha

alma! Mexe com o meu esqueleto. Vibro. Canto. É urgente

que me movimente. É de vital importância, caso ainda me

queira vivo. Danço com os pés secos de admiração. É mesmo

fantástico. Um cantador pelas ruas do Ka Mpfumo retornado,

que pretende ser Maputo. Isso lembra-me os Fanny Mpfumo

com sua bandolina nos quintais da Matola Gare a cantarolar

em troca de Aguardente. Cachaça. Três palavrinhas: ton-ton-

to. Ni Tchelelani ni ta tsaka. Cantava tocando e dançando

Fanny Mpfumo que tanto admiro. Dr. Honoris Causa da Mar-

rabenta.

E lembro-me do Dilon Djindji que se quer Rei da Marrabenta

quando diz “swi ni nyika usiwana, loko ni vona va tsonguana,

va nyenya marrabenta” (me entristece ver crianças a odiar

marrabenta). Mas esta criança não. Sofre cada vez mais. Esta

e várias crianças. Então volto a pensar, será mesmo que a

marrabenta, originalmente feita é má para esta geração?

Ah, este cantador de ruas é mesmo bom. Tiro as fotos

enquanto persisto em ouvi-lo. Agora toca a dobrar. Toca a

viola e a gaita que se encontra pendurada por cima da viola.

Ele é mesmo bom. Ritima o ar que se expande por toda a par-

te. Vem mais gente. E, apesar de não ver, sente que é um

herói. Herói das ruas. Um artista anónimo mas guardado por

todos. Castidade é o que se tem quando de si fala-se. Mas não o conheço. Nem sei

quem é. Pergunto as crianças enquanto faço o registo fotográfico. Nada, elas não sabem.

Pergunto à vendedeira que também aplaude com outros adultos. Nada, eles não sabem.

Meu Deus é urgente saber quem é este homem. Mas de que importam os nomes na

metáfora da vida. Da arte? Em nada vale. Viro-me. Dou as costas ao meu novo ídolo.

Ícone que vem das ruas, está nelas e delas vive.

A hipocrisia de um homem honesto aí está: vive de pão seco porque a ninguém rouba. Mas este

homem tem o pão da vida nas mãos, na voz e no coração. Há riqueza maior?

Termino o dia feliz. É mesmo incrível essa coisa de ser cidadão nenhum como sou. Não

temer o esgoto, as águas negras, os ladrões, mendigos e as grandes bocas. Nada de

preservação de imagem como figuras públicas. Nada de chiliques. Sou cidadão comum e

futuro poeta. Mas o futuro é incerto, amigos. Prevê-lo é mesmo um exercício de loucos. O

importante é preparar a morte a cada um desses Deus que imprevisivelmente amanhece

enquanto respiramos, afinal, vivos estamos reféns da morte e, o justo, seria mesmo que

vivêssemos preparados para morrer. Aquele cantador das ruas está preparado. Plantou a

ternura na terra que não conhece a cor. Alegrou gente e proporcionou derradeiros

momentos de masturbação para os bons ouvidos.

Continuo pela mesma avenida que me leva até às entranhas da Rua de Bagamoyo,

outrora designada Rua Araújo. Caminho enquanto aprecio prostitutas. Mulheres expostas

noutras vitrinas. Vitrinas da vida que satisfaz os homens. Entro pelo bar ao lado, tomo

umas quantas tantas cervejas enquanto prevejo o horário do TPM, Transportes Públicos

de Maputo, esse companheiro de todos dias para o meu dormitório que fica na Matola.

Quanto à vida, faço-a aqui, pelas ruas de Maputo, andando, errante ou com destino, mas

sempre encontrando o que poço.

O Cantador da Rua ANDANDO Cruz Salazar - Maputo

[email protected]