revista literatas 60

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www.revistaliteratas.blogspot.com Conecte-nos no Director: Amosse Mucavelel Email: [email protected] l Maputo l Ano II l Edição: Nº. 60 l Setembro de 2013 A Neve das Palavras Por: Maria João Cantinho Pág: 8 à 13 www.revistaliteratas.blogspot.com A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua: o reen- cantamento do mundo” Por: Aurélio Ginja Pág: 20 à 21

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Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona

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Page 1: Revista Literatas 60

www.revistaliteratas.blogspot.com Conecte-nos no

Director: Amosse Mucavelel Email: [email protected] l Maputo l Ano II l Edição: Nº. 60 l Setembro de 2013

A Neve das Palavras Por: Maria João Cantinho Pág: 8 à 13

www.revistaliteratas.blogspot.com

“A Arqueologia da Palavra e a

Anatomia da Língua: o reen-

cantamento do mundo”

Por: Aurélio Ginja Pág: 20 à 21

Page 2: Revista Literatas 60

Receba às sextas-feiras Literatas em PDF e comenta sobre os assun-

tos retratados através do e-mail: [email protected]

Eventos

Comissão Organizadora:

Ana Cláudia da Silva Edvaldo A. Bergamo

Lucia Helena Marques Ribeiro

Apoio:

Auditório I - Instituto de Biologia

II SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA

PORTUGUESA:

A poesia em Língua Portuguesa, ontem e hoje

09 e 10 de setembro de 2013

PROGRAMAÇÃO

09/09/13 – Segunda-feira

Manhã

9h Abertura

João Pignatelli – Camões I. P.

Maria Isabel Edom Pires – Chefe do TEL

Piero Sylvia Cintrão – Vice-Coordenador do Pós-Lit

Edvaldo A. Bergamo – Coordenador da Cátedra Agostinho da Silva

10h Conferências I

Coordenação: Edvaldo A. Bergamo (UnB)

Rosa Martelo (Universidade do Porto - Portugal)

Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ)

Tarde

14h Mesa-redonda I: Às voltas

com Camões

Coordenação: Ana Cláudia da

Silva (UnB)

Adriana Araújo (UnB)

Alexandre Pilati (UnB)

Sylvia Cyntrão (UnB)

15h30 Coffee-break

16h Mesa-redonda II: A poesia

brasileira em diálogo

Coordenação: Ana Clara Magalhães

Medeiros (UnB)

Augusto Rodrigues (UnB)

Jamesson Buarque (UFG)

Julliany Mucury (UnB)

18h Encontro com o escritor

Amosse Mucavele (Poeta

Moçambicano)

Continuação Página 14

Page 3: Revista Literatas 60

DIRECTOR Amosse Mucavele | [email protected] Cel: +258 82 57 03 750 | +228 84 07 46 603 EDITOR Japone Arijuane| [email protected] | [email protected] Cel: +258 82 35 63 201 CHEFE DA REDACÇÃO Nelson Lineu | [email protected] Cel: +258 82 27 61 184 CONSELHO EDITORIAL Amosse Mucavele | Jorge Muianga| Japone Arijuane | Mauro Brito. REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula

COLABORADORES Moçambique: Carlos dos Santos, Matiangola Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa Portugal: Victor Eustaquio Angola: Lopito Feijóo Cabo Verde: Filinto Elísio PAGINAÇÃO & FOTOGRAFIA Eduardo Quive PERIODICIDADE Quinzenal

Ficha técnica

COLABORAM NESTA

EDIÇÃO:

Angola João Maimona, José Luís Mendonça Victor Burity da Silva Luísa Fresta Brasil Osmar Casagrande José Geraldo Neres Alexandre Guarnieri Geórigio Rios Cláudia Falluh Balduino Ferreira Portugal Maria João Cantinho Moçambique: Lily dos Amures

Paginação: Japone Arijuane & Amosse Mucavele A revista Literatas é uma publicação electrónica ideali-zada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divul-gação da literatura moçambicana interagindo com as outras literaturas dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor do artigo.

Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: [email protected] | Tel. (+258): 82 27 17 645 | 82 35 63 201 | 84 07 46 603

Movimento Literário Kuphaluxa | www.kuphaluxa.blogspot.com | www.facebook.com/movimento.kuphaluxa

Palavras nos faltam

Com palavras e por palavras nos entendemos, é óbvio!, Mas, antes que as mesmas palavras fujam-nos, queremos de

forma artística e poética agradecer a todos aqueles que, directa ou indirecta, poética ou não, contribuíram para o sonho

da antologia (A Arqueologia da palavra e Anatomia da Língua), tornar-se uma realidade.

E confessar-vos que este foi o dia pelo qual nós lutamos, e continuamos a lutar. Juramos a nós mesmo que o dia P, por

tão poético que foi o dia, nos faltaram as mesmas palavras para agradecer tanta gente que se fez presente no Centro

Cultural Brasil-Moçambique (CCBM), para testemunhar o nascimento da mais pura e nova saga de palavras poetica-

mente ricas que reúne e unem uma toda comunidade (CPLP) e não só, visto que há textos na antologia de outros qua-

drantes, mas tecidos pela essa mesma língua de Camões.

Nesta edição, bastante esperada e por nós sofrida, sofrida por problemas de várias ordens, desde a organizacional,

motivacional e com mais ênfase a tecnológicos; queremos, compartilhar alguns momentos do lançamento e como tam-

bém compartilhar com o nosso público, leitor exigente, o desabafo de uma geração que se faz a custa do nada. O nada

que é a cultura, a literatura particularmente, neste quadrante sul onde nos localizamos. Nada!

Meus confrades, nesta edição número 60, marca a fase de uma luta, luta contra o tempo e a tecnologia. Pois que não

podemos é negar que houve um atraso influenciado por estes dois motivos, e que além de agradecer, queremos nos

desculpar pelo mesmo tempo e a tecnologia que nos foge. Nesta edição, como já o disse, nos encontramos em momen-

to de reforma, e como sabem todos momentos de reforma podem muito bem ser momento de crise. Crise esta que nos

abalou e continua nos atormentando de forma exterior, pois interiormente continuamos os mesmos, os mesmos activis-

tas literários.

Para não ficar aqui a falar o que muitos podem não entender, convido-vos a ler e a partilhar a novíssima saga, nutrida

de dois grandes ensaios, um sobre a antologia, esse filho que cuja procriação nos responsabilizamos, na visão do Pro-

fessor Aurélio Ginja e outro da Professora Doutora Maria João Cantinho intitulada “A Neve das palavras”, sobre o Paul

Celan. E a sua poesia, como é óbvio.

Boa Leitura!

www.revistaliteratas.blogspot.com

Editorial | Japone Arijuane

Page 4: Revista Literatas 60

Personagem | Diálogos

04 | 19 de Setembro de 2013

É útil redizer as coisas as coisas que tu não viste no caminho das coisas no meio de teu caminho.

Fechaste os teus dois olhos ao bouquet de palavras que estava a arder na ponta do caminho o caminho que esplende os teus dois olhos.

Anuviste a linguagem de teus olhos diante da gramática da esperança escrita com as manchas de teus pés descalços ao percorrer o caminho das coisas.

Fechaste os teus dois olhos aos ombros do corpo do caminho

Às segundas-feiras saiba quem é a personagem da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com

Carlos Drummond de Andrade VIII No meio do caminho tinha uma pedra C.D.A

para Carlos Drummond de Andrade

No meio do caminho nunca houve uma só pedra As pedras nascem na boca e a boca é o seu caminho Das pedras que comemos as cidades ainda falam pelos cotovelos da noite Não eram pedras eram pedras com cabeça tronco e sexo Pariram fábricas de pedras montadas sobre língua E as pedras comeram

a pedra que restou no meio do caminho

POESIA VERDE

Amosse Mucavele-Moçambique

José Luis Mendonça-Angola

João Maimona-Angola

“No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra...”

Carlos Drummond de Andrade-Brasil

coloquei inúmeras pedras

no caminho

para esquivar do amor

sentei a beira do rio

sem o anzol

com os olhos pesquei toda a dor

escondida no corpo das pedras

Page 5: Revista Literatas 60

05 | 19 de Setembro de 2013

Personagem | Diálogos Questão de Fundo

Grupo de doutorandos da Universidade Federal de São Carlos-Brasil

Japone Arijuane e a mesa de honra

Juvenal Bucuane, Aurélio Furdela, Anna Rizzi e Nelson Lineu e outros

Convidados

Convidados Lucilio Manjate, Aurélio Ginja, Juvenal Bucuane e outros

Page 6: Revista Literatas 60

06 | 19 de Setembro de 2013

Questão de Fundo

Lilía Momplé , Emmy Xyx e outros Nelson Lineu

Mauro Brito e Convidados Japone Arijuane, Lilía Momplé e a Professora Dra. Lanie Millar da University Of Oregon-USA

Amosse Mucavele e a Professora Dra. Lanie Millar da University Of Oregon-USA

Convidados

Page 7: Revista Literatas 60

Questão de Fundo

07 | 19 de Setembro de 2013

Livros www.revistaliteratas.blogspot.com

Não sou crítico literário, pois admiro o que escreve o Escritor Hildeberto Barbosa Filho. Porém, ao fim da leitura de um livro, quando este arrebata as emoções, fazendo com que a circulação sanguínea alcance níveis que proporcionem a erupção vulcânica, materializada no suor que inunda o corpo, dando sensação térmica aparente de larva que consome tudo por onde passa, sinto uma necessidade extrema de externar, na escrita, o que senti com aquela leitura, eternizando o meu pensar. Ao ler “acaso caos” de Bruno Gaudêncio, poesias, onde prefiro extirpar esta conotação de “jovem poeta” ou de que “está maduro no exercício poético”, já que entendo que todos que escrevem são poetas, independente da idade, porque o sentir poético depende do olhar à escrita, do gosto por determinada leitura e, também, do momento em que o leitor está para ler. Augusto dos Anjos ao ter sua morte anunciada foi dito que nada havia se perdido, enquanto poeta. Quem o disse, para não exaltar seu nome, deve está revirando a cova! A intensidade do “acaso caos” começa pela sua inclusão em seis dos poemas apresentados, destacando-se o que atribui o título do livro, fls. 45, desta edição lida, onde a imagem do amor e seu conflito são permeados pelo relacionamento a dois, usando o autor “nós”. Esta reflexão nos conduz ao estudo numerológico do seis, onde é perceptível no citado poema que o autor se identifica muito mais com “nós” do que o “eu”, colocando a sua preocupação com o bem estar das pessoas, visivelmente percebido na relação exarada pelo autor.

O “acaso caos” em seis poemas do

autor condiz com o seu perfil pessoal

para o numerológico, por ser o número

indicado aos Mistérios Maiores, do

amor-sabedoria e da glória.

Cultura é algo que já não mais se questiona neste Campinense arretado! Ele vem aprimorando-a a cada dia; até mesmo pelo seu caráter, digno de uma personalidade humana integrado pelos veículos da matéria: físico, vital, emocional e mental. Aliado a isto, completa-se com o espírito. Algumas virtudes do número seis, tais como: Sentimentos de Amor, Fraternidade, Paz, a Incansável busca de Deus, responsabilidade, teimosia, disposição, dar e ser conselheiro, ser sonhador, magnetismo, atração, simpatia, amizade, beleza, pureza, sensibilidade, companheirismo, compaixão, acolhedor, são visivelmente encontradas na leitura de “acaso caos” e, até mesmo, no próprio ser Bruno Gaudêncio.

O autor confiou no “acaso” e venceu, sendo imprevisível, sem refletir pelas

conseqüências e que na probabilidade lançou o “caos” como forma de manejar as

palavras e fazer com que elas fossem ingeridas pelo leitor causando-lhe uma

revolução interna, reflexiva.

A intensidade do “acaso caos”

Ricardo Bezerra-Brazil

Bruno Gaudêncio surge como a natureza divina de “caos”, a primeira divindade a surgir no universo, de difícil entendimento, quando na verdade esta leitura é mudança de idéia.

O “Itinerário da desordem interna” é a própria estrutura da divindade. A mais antiga das divindades. Pai de Tártaro (abismo), Gaia (Terra) e Eros (cupido - o mais belo entre os deuses). Significa o vazio original do universo. O trajeto numerológico e divino do autor é um olhar diferente onde o poema é vida, vagando no vazio do caos, onde a “Retina” demonstra uma sensibilidade do poeta e sua pintura estética da poesia como a razão de tudo, onde tudo pode; até mesmo superar a razão. O abismo “bruniano”, nesta ótica e leitura pessoal, compreende uma sonoridade neste “ossos” que habita na casa eterna como um grande enigma da vida. Como tratar o tema? Sutilmente Bruno Gaudêncio nos transporta a uma nova leitura dos nossos ossos. E esta sonoridade tem leitura similar em “pequena canção do caos”, levando à Terra um propósito momento de que o vazio foi extirpado. A narrativa mística, divina, entendida na leitura ganha corpo em “geolírica” por entender a divindade Terra na sua essência de “alma”, possível de se livrar do caos humano, através da poesia. Ler Bruno Gaudêncio e colocar no papel a visão numerológica e mística da sua poesia, na noite de São João, onde a fogueira queima vida outrora, dando vazio ao universo, é de se ter “a urgência do vento” para que o nevoeiro exalado seja substituído pelo sonho do poeta em ter seus olhos coloridos por nuvens que não brincam de sol.

*Escritor/Poeta/Advogado

Instituto Histórico e Geográfico Paraibano

Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro- Núcleo da Paraíba Academia Paraibana de Poesia

Livro: ACASO CAOS - poesia Autor: Bruno Gaudêncio

Editora: Editora IDEIA - 2013

Page 8: Revista Literatas 60

08 | 19 de Setembro de 2013

Todos os dias em: www.revistaliteratas.blogspot.com

Ensaio

A Neve das Palavras Maria João Cantinho

Portugal

“O poema, sendo como é uma forma de aparição da linguagem, é por isso de essência dialógica, o poema pode ser uma garrafa lançada ao mar, abandonada à esperança - decerto muitas vezes ténue - de poder um dia ser recolhida numa qualquer praia, talvez na praia do coração. Também neste sentido os poemas são um caminho: encaminham-se para um destino (…) para um lugar aberto, para umtu intocável…” Paul Celan, “texto de agradecimento do primeiro prémio recebido, em Bremen”, 1958, in Arte Poética - Meridiano e outros textos, ed. Coto-via, Lisboa, 1996. “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhu-

ma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema”.

Paul Celan, “Carta a Hans Benderm”, in Arte Poética - Meridiano e

outros textos, ed. Cotovia, Lisboa, 1996.

O que mais nos impressiona, na abordagem da vida e obra de Paul Celan foi o modo trágico como o poeta assumiu a responsabilidade da sua época. Por isso, o fascínio de que se revestiu deve-se a essa dupla dimensão, entre o poeta que ele foi, no “limiar do emudecimento” e o ser humano, profundamente consciente da sua época e do seu tempo, tendo pago caro essa factura com os dissabores que isso lhe trouxe. Uma abordagem clara e rigorosa do homem, nas suas várias facetas, exige, por isso, a separação das “águas” entre a lenda em que ele se transformou e o homem (de uma fragilidade comovente) propriamente dito.

Edith Silbermann [1], amiga de juventude de Paul Pessakh [2]Antschel - nome

verdadeiro de Celan - , refere esses aspectos que foram desvirtuados na sua bio-

grafia. Paul Antschel nasceu em 23 de Novembro de 1920, em Czernowicz,

Bucovina (na Roménia). Filho único, Paul tem, desde cedo, o objectivo de ir para

França estudar. E, de facto, parte em 1938, mantendo-se dois anos em Tours, a

estudar medicina. É dessa data que nascem os primeiros poemas. Ela dá conta

de um jovem ávido e iconoclasta, que defende corajosamente os seus ideais. As

leituras de Marx e Nietszche, a par da poesia alemã, sobretudo Hölderlin e Rilke,

mas também Goethe e Schiller, Heine, Trakl, Kafka, Hofmannsthal, entre outros,

desenvolveram no poeta um gosto pela política e simultaneamente pela literatu-

ra. Para o grupo de jovens que acompanhavam Celan, a língua francesa “era a

mais bela língua do mundo” [3]. Liam Mallarmé, Valéry, Apollinaire, Baudelaire.

Paul traduziu também sonetos de Shakespeare, poemas de Yeats, Apollinaire,

entre muitos outros. Foi por este caminho que ele chegou à poesia.

Em 1940, começou a estudar russo e, nessa altura, começa a traduzir Sergeï-Lessenine. A armada vermelha ocupa, entretanto, a sua cidade. Durante esse período, que vai de 1940 a 1941 (aquando das ofensivas de Hitler e recuo dos russos), os judeus não ousavam mostrar-se e revelar a sua religião, os seus cos-tumes. Todavia, o irreverente Paul Antschel não se escondia e afrontava corajo-samente esse medo. Como o relata Edith Silbermann, Paul adorava chamar a atenção sobre si próprio, o que lhe traria grandes desilusões. É a partir de 1941 que os judeus são “empurrados” para o gueto, pelos alemães. Num dia em que ele sai miraculosamente de casa, antecipando o perigo e refugia-se, graças à sua amiga Ruth Lackner, numa fábrica de cosméticos, aguardando a chegada dos seus pais. Porém, a mãe de Paul negou-se, dizendo-lhe: “Não podemos escapar ao nosso destino”. Nesse ano de 1942, os alemães prenderam os seus pais, que foram levados para um campo de concentração e, no espaço de alguns meses, ambos assassinados. Pouco tempo depois, o próprio Celan alista-se num campo, em Tabaresti, na

Roménia, onde se sente mais seguro do que na sua cidade. O trabalho duro que

aí realizava deixava-lhe tempo, porém, para ler e escrever, para traduzir, viven-

ciando a miséria, o desastre e a destruição, à sua volta. Temas como “a morte na

neve” serão um dos mais recorrentes da sua obra poética, testemunhando a tra-

gédia dos judeus e, sobretudo, a dor da morte dos seus pais. O frio glacial, as

pegadas e vestígios que se dissipam na neve são essas tantas formas metafóri-

cas de exprimir a morte, metáforas que se apresentam de modo constante na

sua poesia.

A derrota dos alemães, em 1943, estava, todavia, tão próxima que se permitiu

aos residentes de Tabaresti o regresso às suas cidades e Paul regressou, então,

a Czernowitz. Na Primavera, os soviéticos entravam, pela segunda vez, na sua

cidade. Paul avistava um novo período menos cruel. Evitou, por essa altura, a

entrada no exército russo, com alguma ajuda, pois a guerra ainda não havia ter-

minado. Em compensação, trabalhou como ajudante numa clínica psiquiátrica,

onde se encarregava de tratar os soldados soviéticos com feridas na cabeça e

em estado de choque.

Para ganhar dinheiro, realizava traduções para ucraniano, num periódico local.

Reuniu, nessa época, um conjunto de 93 poemas dactilografados e entregou

uma outra colecção escrita à mão à sua amiga Ruth Lackner, para que ela os

fizesse chegar a Bucareste e os entregasse ao poeta Alfred Magul-Sperber. No

Outono de 1944 retoma os seus estudos de inglês, na universidade que foi rea-

berta pelos soviéticos e entregou-se à leitura de escritores hebreus.

Após o término da guerra, alguns deportados voltaram dos campos e, entre eles,

encontrava-se o seu amigo, o poeta Immanuel Weiglass [4]. Nessa época, Paul

supunha que o seu tio, Bruno Schrager, tinha ficado em Paris, mas veio a consta-

tar que o seu nome constava dos desaparecidos em Auschwitz, o que veio rea-

cender o seu trauma. Começou, então, a escrever a primeira versão do poema

“Fuga da Morte”, o poema que o celebrizou e que tantos dissabores lhe traria,

numa polémica questão levantada por Theodor Adorno.

Teve uma primeira publicação, em língua romena, no número de Maio de

1947, numa revista de Bucareste, Agora, graças à tradução do seu amigo Petre

Solomon. Paul Antschel muda, então, o seu nome de Antschel para o anagrama

Celan, que viria a conservar ao longo de toda a sua vida.

Felstiner dá conta do acontecimento terrível que parece estar relacionado com o poema, de forma mais directa. Num panfleto escrito por KonstantinSimonov, datado de 29 de Agosto de 1944, sobre o campo de extermínio de Lublin, o autor contava que durante os trabalhos no campo eram tocados tangos e fox-trots. Na revista romena, onde foi publicada a primeira tradução do poema, sob o título “Tango de Morte”, um ano antes da publicação do original, uma nota de apresen-tação dizia que o poema publicado era construído a partir da evocação de um facto real. Um grupo de prisioneiros, nesse campo, era obrigado a cantar can-ções nostálgicas enquanto os outros abriam valas comuns. Mas existe, ainda, uma outra fonte de informação, a qual dizia que, num campo próximo de Czerno-witz (a cidade de Paul Celan), um comandante das SS obrigava violinistas judeus a tocar um tango, enquanto eram cavados túmulos e decorriam marchas, torturas e execuções. Um dia, o comandante disparou contra toda a orquestra. Música e morte entretecem-se, na poesia de Celan, evocando a atmosfera lírica

de Schubert - A Morte e a Donzela - ou de Mahler, de Brahms e do Requiem Ale-

mão, numa tentativa de harmonizar a mais dolorosa e insustentável vivência.

Celebração, não da morte, mas daqueles que pereceram nos campos de morte,

sob as condições mais desumanas que é possível imaginar-se e a dilaceração

surge, de forma sublime, no poema “Fuga da Morte”:

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite

bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite

bebemos e bebemos

cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados

Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve

escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete

escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham

assobia e vêm os seus cães

assobia e saem os judeus manda abrir uma vala na terra

ordena-nos agora toquem para começar a danço

O tema da “dança da morte”, a atentar nas palavras de E. Silbermann [5], já o

havia preocupado antes. Celan conhecia bem os “Simulacros da Morte” de Hans

Holbein e a tradição da dança macabra, nos poetas alemães e no imaginário

medieval, onde a vida é de tal forma precária que o tema da “dança com a morte”

assume uma visibilidade que o homem contemporâneo consideraria insuportável.

Por outro lado, a questão prende-se igualmente ao problema da língua alemã. A

língua em que Celan escrevia era a alemã, a mesma que os “mestres da morte”

usavam. Essa terrível contradição - a de escrever numa língua que era a da sua

mãe e também a dos seus carrascos - ocupava-lhe permanentemente o espírito

e transformou-se numa das suas obsessões fundamentais e que se exprime da

forma mais intensa na sua poesia, introduzindo nela uma profunda crispação:

Page 9: Revista Literatas 60

09 | 19 de Setembro de 2013

Ensaio Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista da semana por e-mail: [email protected]

Ensaio

(…) Mãe, eles escre-

vem poemas.

Oh,

mãe, quanto

chão do mais estranho dá

o teu fruto!

Dá esse fruto e alimenta

os que matam! (…)[6]

Quando Derrida [7], fala da expe-

riência da morte em Celan, refere

-se, também, ao aspecto da mor-

te, tal como ela é vivida na expe-

riência da língua: “Parece-me, a

cada instante, que ele deve ter

vivido esta morte. De muitas

maneiras. Deve tê-la vivido por

toda a parte onde sentiu que a

língua alemã era morta duma

certa maneira, por exemplo pelos

sujeitos da língua alemã que fizeram um certo uso dela: ela é assassinada,

morta (…) A experiência do nazismo é um crime contra a língua alemã. O que

foi dito em alemão sob o nazismo, isso é uma morte. Há outra morte que é a

simples banalização, a trivialização da língua alemã, não importa quando ou

onde. E, depois, há uma outra morte que é aquela que não pode chegar à lín-

gua por causa daquilo que ela é, isto é: posta em letargia, mecanizada, etc.

O acto poético constitui, então, uma espécie de ressurreição: o poeta é

alguém que tem a tarefa permanente, numa língua que nasce e ressuscita,

não de lhe dar um aspecto triunfante, mas despertando-a como se desperta

um fantasma: ele desperta a língua e para tornar viva a experiência do des-

pertar, do retorno à vida da língua [sublinhado meu], é necessário estar próxi-

mo do seu cadáver.”

Ele, igualmente, a tarefa da rememoração enquanto alvo da sua escrita. Esta

experiência do limite da linguagem, de que tão bem falam Steiner

(LangageetSilence) e Agamben (v. LeLangageet la Mort), Blanchot (sobretudo

no livro que é dedicado a Celan, LeDernier à Parler) aproxima Celan da expe-

riência poética de Hölderlin [8], também ele no limiar do perigo. A visão corro-

siva de Celan está próxima, igualmente, da visão benjaminiana do perigo que

sofre, a cada instante, aquele que lida com a linguagem e a tarefa alegórica.

Mais ainda, ela aproxima-se de Benjamin, no que se refere à tarefa da reme-

moração, tema por excelência do pensamento hebraico, tomado na sua mais

ampla dimensão e que se articula com a da temporalidade do poema. Ambos

comungaram da questão da cesura e do limite do dizer, com Ainda que esse

alvo se colocasse, no caso de Celan, no cerne do paradoxo da insustentável

experiência dos campos. Alegoria e rememoração são pólos constitutivos da

poesia de Celan, no sentido em que a única experiência possível de rememo-

ração e de luta contra o esquecimento só pode ser levada a cabo pelo gesto

redentor da escrita. No caso de Celan, é na e pela linguagem poética que ela

se opera.

Ainda a esse propósito, cito o notável estudo de António Guerreiro, consagra-

do a Celan, “Paul Celan e o Testemunho Impossível” [9]. António Guerreiro

fala na tarefa trágica da poesia, no autor, definindo-a como o “limiar do emu-

decimento” [10]. No texto Arte Poética, Meridiano e outros textos, Paul Celan

cruza o seu pensamento com o de Heidegger e Lévinas, numa tentativa de

(re)definição do “ser do poema”, que nos remete para a dificuldade do poeta.

“O poema mostra, e isso é indesmentível, uma forte tendência para o emude-

cimento.” Nesse texto extraordinário, pela sua clareza, Celan dá conta da

natureza da poesia. O poeta é dominado por esse pathos que é a experiência

da linguagem, naquilo que nela confina - e com ela se entrelaça, obviamente -

com a existência da realidade. António Guerreiro sublinha-o, dizendo: “E por-

que essa língua não está disponível desde logo, não existe senão através da

experiência que leva o poeta ao encontro dela, ela é única.” Celan recusa,

aqui, a ideia de uma correspondência poema-realidade, o que nos conduziria,

aos seus olhos, a uma visão mimética e empobrecida da realidade.

O poeta é o que luta por ir, com os meios de que dispõe, ao encontro da reali-

dade, através da linguagem. Assim, a ideia de um correlato entre a palavra

poética e o real é algo que não existe como um dado previamente estabeleci-

do. Este correlato pode existir ao nível da linguagem enquanto forma de

comunicação (e isto não passa de uma hipótese), mas nunca ao nível do

“dizer poético, onde persiste inevitavelmente uma irredutibilidade entre a

palavra e o real. A concepção mimética (e aristotélica) da poesia e da lingua-

gem é, assim, repudiada por Celan.

Por outro lado, a ideia de univocidade do poema caminha, par a par, com a

afirmação anterior. Tal é essa ideia da univocidade do poema, quando o poe-

ta afirma: “O poema é solitário. É solitário e vai a caminho. Quem o

escreve torna-se parte integrante dele.”[11] Aquele que o escreve e o

poema, embora sejam realidades díspares, na sua essência, confundem-se

numa outra realidade, que é a do poema. Celan, não apenas recusa o mime-

tismo, como recusa igualmente o bilinguismo da língua [12], reafirmando a

sua univocidade.

Deste modo, tempo e poesia encontram a sua articulação no topos do poema

e essa temporalidade é, na sua expressão mais vívida, a experiência da lin-

guagem, no sentido em que o poeta “vai ao encontro da língua com a

sua existência, ferido de realidade e em busca de realidade.”[13]

Como quem lança uma mensagem numa garrafa, dirigindo-se essencialmen-

te a um “tu apostrofável”, o tempo do poema confunde-se com aquele que o

escreve, como o afirma Celan, absorvendo-o [14], mas sustenta-se na frágil

linha que se liga ao Outro, lugar onde o Eu se dissipa, libertando-se de si pró-

prio.

Neste modo de pensar reconhecemos o próprio pensamento de Lèvinas,

entendendo-se o poema, não apenas como o tempo da “respiração” [15],

como também o da direcção, o pôr-se a caminho do Outro, “falar em nome de

um Outro, quem sabe se em nome de um radicalmente Outro.”(p. 55). No vai-

vém do Eu para o Outro, o poema auto-sustenta-se na velocidade da respira-

ção ou caminho, através da linguagem. Peter Szondi, amigo de Celan, com-

preendeu bem essa tripla e essencial função do poema, que ele tão bem ana-

lisou em vários dos seus poemas: “linguagem como figura, direcção e respira-

ção.”

Esta caminhada para o Outro corresponde a um reconhecimento do instante

desse encontro e as ressonâncias que, aqui, se ouvem, além de Adorno, evo-

cam, também, Schleiermacher, Lèvinas, Martin Buber e Rosenzweig [16]. E

nesse instante do encontro não há a mínima certeza nem qualquer apoteose,

mas o que João Barrento designa por uma “imperceptível mudança de respi-

ração”, o que atesta uma escuta do Outro e do mundo, dando-se num lugar

que é já um impossível caminho, para parafrasear a expressão de Celan [17],

onde as utopias se transformam em tal:

“(…) encontro alguma coisa que me consola um pouco por, na

vossa presença, ter percorrido este caminho do impossível, este

impossível caminho.

Encontro aquilo que une e como que conduz o poema ao encontro. “O impossível caminho de encontro ao outro” constitui-se como o paradoxo -

e, enquanto tal, é condição alegórica da poesia - sobre o qual assenta toda a

poesia de Celan. J. Barrento [18] defende que a ancoragem da sua poética já

não é o romantismo nem a ontologia de Heidegger, “em que a figura do

«Autêntico» tem ainda um papel central.” Quando, nesse contexto da relação

com o Outro e na caminhada para ele, Celan fala do poema autêntico, ele

afirma: “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo

nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema.” [19] O

poema, de acordo com Celan, na sua obscuridade e complexidade, é autênti-

co. O ofício do poeta constitui-se, como o afirma Celan na Carta a Hans Ben-

der, de acordo com a condição necessária da verdade e do caminho para o

Outro. A relação que Celan, nessa carta, estabelece entre “ofício de mãos” e

“construção do poema” revela, também, a íntima articulação entre a realidade

e a poesia.

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Ensaio

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A construção do poema obedece à sequência dialógica do Eu com o Outro, do poeta

com a Verdade. Porém, essa caminhada, do poema impossível que “fala em nome

do outro” é, na sua contradição íntima, uma caminhada na direcção do abismo.

Transforma-se no “poema absoluto” que não existe ou na “magestade do absur-

do” [20]. E este absurdo é a lei do poema, tal como o é da tragédia, na desmedida

que é a paradoxal fonte de criação poética. Somos levados à conclusão de que a

configuração do encontro com o Outro é necessária, na poética de Celan e, para tal,

evoque-se aqui a forma do des-inter-esse de que João Barrento [21] nos fala, de for-

ma pertinente. Corresponde essa caminhada impossível a uma superação das poéti-

cas do “hermetismo mais puro”, assim como Lèvinas a efectua da fenomenologia e

da ontologia. A sua poética não é da “simples ordem de compreensão com os meios

da linguagem, é antes anterior a todas as formas de compreensão imediatamente

humanas (do verdadeiro humano): o encontro com o Outro” [22]. Procura uma outra

linguagem, que se construa como a verdadeira língua, capaz de ultrapassar os limi-

tes da linguagem. Poderíamos aí perceber a busca de Celan por uma ideia da cria-

ção da “nova” palavra ou palavra poética, a partir de uma relação intensificada entre

o hermetismo e a cabala. Todavia, se é possível falar da magia da palavra em Celan,

esta magia, no dizer de Yvette Centeno [23], é uma “magia de inversão” [24], pois “a

palavra não cria, a palavra reduz ou aniquila”.

Como em Lèvinas (e também em Buber), a presença incontornável do Outro é o pon-

to arquimediano da sua poética que, embora não se lhe dirigindo, o contém. Daí que

exista e, sobretudo, preexista uma dimensão ética que lhe é inegável. Como Barren-

to o assinala [25], será possível colocar a poética de Celan sob a forma de uma

“poesia das vítimas”? Ou, para utilizar a expressão benjaminiana, como “salvação

dos vencidos da história”? É justamente por isso que nos encontramos no limiar da

mudez. “É impossível resistir ao apelo, à convocação imperativa do rosto do Outro,

rosto sem rosto, porque, para Lèvinas, ele está para além das formas plásticas.

Então, o poema enquanto acontecimento não é um acto da vontade que parte do

sujeito, mas, antes, qualquer coisa a que o seu autor se submeteu, como que convo-

cado por um chamamento. “O apelo do outro é irresistível, avassalador”[26], algo

que se abate sobre o poeta que, assim, se vê absorvido pelo poema, tornando-se

“parte integrante dele.”

Esta é a dimensão ética [27], na qual enraíza profundamente Celan, tomando Lèvi-

nas como seu mestre de pensamento, ainda que não fale dele. Por isso, emergindo

da fissura da linguagem, o poema corresponde à abertura do caminho por entre os

limites da linguagem, no limiar da experiência do emudecimento.

No magnífico prefácio que João Barrento faz à sua tradução de Sete Rosas mais

Tarde, estabelece uma relação íntima e indissociável entre uma poética que - para-

doxalmente - se alimenta dessa “relação constante com o Outro” e, em si mesma,

tende para o emudecimento radical, que é da ordem de uma poética do inefável, a

que preside uma simultânea sacralização e violentação [28] da palavra poética. Esta

dupla dimensão opera sobre a poesia de Celan uma tensão que se manifesta no

modo como a antinomia a dilacera. Os poemas de Celan querem dizer o horror

extremo e o desabar da esperança através do silêncio. Por isso, o seu conteúdo,

como o nota A.Guerreiro [29], citando Adorno, “torna-se negativo”.

Esse niilismo cósmico de que Yvette Centeno [30] dá conta, um niilismo que “anula o tempo e as suas fracturas”, que faz cessar toda a capacidade de nomear e recuar a existência “para o abismo da essência não-diferenciada” parece converter-se na for-ça motriz do poema, numa proximidade com a mística da negação de Jacob Böhme. Como a autora o afirma, “Não há salvação possível na obra de Celan, que não apon-ta caminhos, não filosofa, apenas lambe feridas que não cicatrizam mais.” Não existe qualquer apaziguamento nessa poesia de um hermetismo que revela um mundo irre-versivelmente contaminado, destruído. O hermetismo - e o cabalismo - da sua poesia reforça, através das suas imagens, esse esvaziamento do mundo e, ao mesmo tem-po, permite a acentuação da intensidade dramática do real. Veja-se, por exemplo, no paradigmático poema “Cristal”:

Não busques nos meus lábios a tua boca,

Nem diante do portão o forasteiro, Nem no olho a lágrima.

Sete noites mais alto muda o vermelho para vermelho,

sete corações mais fundo bate a mão à porta, sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.

De uma forma admirável, Yvette Centeno analisa os elementos herméticos e cifra-dos, nesta poesia. Tudo, nesta combinação dos elementos sete, noite, rosa e cora-ção, remete para a morte, alegorizando-a. E a morte que, aqui, é alegorizada é a de Israel, pois a rosa representa o estado de Israel. Podemos dizer que, embora exista uma alquimia entre a cabala e o hermetismo,

porém, a palavra poética é, na sua poesia, uma aniquilação ou uma negação que apenas o silêncio liberta.[31]

Como o afirma, ainda, a autora, “Com Paul Celan habitamos o silên-cio. O silêncio do tempo, o silêncio do espaço entre as pala-vras” [32]. Mas este silêncio não se situa no coração da plenitude e sim no domínio do exílio, do fragmento, da impotência. É um mundo de desespero e ausência de amor, da redenção, que aí ressuma. Mesmo quando uma fímbria de luz persiste debilmente, ela não faz senão acentuar o negrume e o caos do seu universo. Uma irreversível fractura [33] persiste, contaminando tudo. E a poesia de Celan é o lamento ou o requiem por esse mundo que se sabe irremediavelmente destruído. O que nos sobra são as testemunhas impassí-veis e silenciosas, que se exprimem nas metáforas recorrentes: as árvores, a neve, onde se dissipam as pegadas dos que nela pereceram, um olho (o olho do tempo) cego e que nada vê nem reflecte nada, o cabelo que sobrou, as cinzas. Na sua demanda de silêncio, a palavra poética sofre a erosão e a degradação, desarticula-se, torna-se inerte e o sentido morre, dando lugar ao absurdo. Perde, assim, a sua organicidade, numa implosão da linguagem que a desintegra. O desespero fala mais alto e não existe para o homem, neste mundo, qualquer redenção possível nem nenhuma lei salvadora [34]. Ainda que Celan tenha consciência de que o regresso à teologia hebraica poderia fornecer-lhe a âncora salvadora e, assim, poderia proteger-se e aco-lher-se no abrigo dessas categorias, ele não crê e afasta-se voluntariamente, atestando o mais virulento pessimismo e exprimindo a vertigem niilista. Tal como em Lèvinas, também o rosto e o poema - no caso de Lèvinas é o

discurso filosófico - estão ligados entre si. É na representação simbólica do

rosto que se “diz” o poema. O rosto não é “visto”, o rosto fala. “O sentido é o

rosto de Outrem e todo o recurso à palavra se coloca no frente a frente origi-

nal da linguagem” [35]. É este confronto com o Outro que fundamenta a lin-

guagem e que lhe confere a significação. Por isso, o discurso (no seu caso,

a poesia) não pode deixar de ser dialógico, postulando o encontro o “lugar”

da linguagem poética. Nesta medida, Celan rejeita a postura hermética e

também o formalismo. “Discurso é «resposta» e «responsabilidade», e esta

é para o filósofo e o poeta, o fundamento da «relação autêntica»” [36]. Esta

comunidade entre Lèvinas e Celan [37], a de um discurso da «relação» ou -

no caso de Celan - de uma poética da «relação», revela-se de forma admirá-

vel no verso “Sou tu quando sou eu”.

Como A. Guerreiro afirma, “a situação da poesia de Paul Celan é a de

pós-catástrofe, palavra de sobrevivente que luta contra a ameaça

do emudecimento” [38], transportando consigo a experiência da dor,

entendida como experiência do choque (Erlebnis). Não por acaso Celan vê

em OssipMandelstam (poeta vencido pela história, morto nos campos gela-

dos da Sibéria) uma profunda coincidência com a sua poética. Por essa

mesma razão, ele saiu profundamente ferido pela afirmação de Adorno.

Numa carta que Celan escreve a familiares, residentes em Israel, datada de

1948 e citada por John Felstiner, Celan afirma: “Não há nada no mundo

que possa levar um poeta a deixar de escrever, nem mesmo o

facto de ser judeu e o alemão a língua dos seus poemas.”

A coragem do poeta reside, precisamente, no modo como assume em si a

configuração desse paradoxo: se, por um lado, ele vai à procura do Outro e

caminha para ele, nada recusando (tal como o herói trágico se sabe impedi-

do de recusar o destino); por outro, tem de lutar contra os limites que lhe são

impostos pela linguagem. Não se conforma com a mudez que pesa sobre a

História como uma maldição, mas “morde o destino” e a dor de dizer o insus-

tentável. Ele é tomado por um imperativo ético de dizer o “indizível” e é nes-

sa medida que o lirismo (falo de lirismo no sentido em que Philippe Lacoue-

Labarth o tomou) de Celan atinge os seus contornos mais pungentes.

A Noite das Palavras Noite das palavras - vedor no silêncio!

Um passo e outro, ainda, um terceiro, cujo vestígio a tua sombra não apaga:

O Rosto do Poema: ares de família e responsabili-

dade da poesia face ao Outro

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Ensaio Ensaio

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a cicatriz do tempo

abre-se

e afoga a terra em sangue -

os dogues da noite das palavras, os

dogues

atacam agora

bem dentro de ti:

celebram a mais selvagem sede,

a mais selvagem fome…

Paul Celan, “Noite das Palavras”, in De

Limiar em Limiar.

Rejeitando a “mística” de Auschwitz e defendendo Celan, Giorgio Agam-

ben[39] recusa a “indizibilidade” que lhe é conferida por Adorno [40]. Agam-

ben reconheceu, contra a brutalidade da afirmação de Adorno, a poesia de

Celan como a mais “poderosa refutação” das teses contra a indizibilidade

do extermínio. Mesmo quando ela se configura de forma pungente no poe-

ma “Uma canção do Deserto”: “Pois mortos estão os anjos e cego ficou o

Senhor na região de Acra”.

Curiosamente, Peter Szondi, amigo de Paul Celan, revelou [41] que Ador-

no projectava, até ao final da sua vida, escrever um ensaio sobre Celan, o

que permite deduzir que Adorno retrocedeu no seu veredicto sobre a poesia

e acreditava, mesmo, que Celan derrubava o seu enunciado. Via-se, assim,

obrigado a reformulá-lo, dizendo que “os autênticos artistas do presente são

aqueles em cujas obras se repercute o extremo horror” [42]. Contornando a

questão e abrindo a possibilidade de uma estética da pós-catástrofe, Ador-

no parece, não ter negado, mas antes superado o que dissera antes, levan-

tando o interdito que lançara sobre a arte e a poesia. Adorno compreendeu,

então, claramente que o sofrimento não suporta o esquecimento. Ainda que

esse ensaio não tivesse existido, Adorno consagrou uma parte da

sua Teoria Estética ao que ele considera “o mais significativo representante

do hermetismo da lírica contemporânea” [43] (tema que, desde o início da

recepção crítica de Celan, sempre esteve presente). Porém, Adorno retoma

o tema do hermetismo em Celan, de forma diversa e, como o afirma este

autor [44], a “opacidade” da poesia de Celan adquire uma transparência

que tem a sua génese na vergonha da dor e na impossibilidade de dizer o

horror. O silêncio dos poemas de Celan, na sua óptica, atinge o seu paro-

xismo precisamente porque eles querem dizer o horror extremo e que se

aproxima, também, do “afundamento da aura” de que Benjamin dá conta na

experiência baudelaireana, ao referir a distinção entre Erfahrung

(experiência autêntica) e Erlebnis (experiência vivida do choque). A abissal

diferença entre a autenticidade do Aqui e Agora do acontecimento dissipa-

se sob o efeito da repetição do tempo e da mecanicização. Tal como em

Baudelaire, o lirismo de Celan é um lirismo sem aura e que desconhece as

correspondências do lirismo romântico.

Se a primeira versão do poema “Fuga da Morte”, que apareceu no primei-

ro livro (A Areia das Urnas), ainda trazia em si o selo de uma transfiguração

lírica, no entanto, Celan tentará, posteriormente travar a sua circulação. A

declaração, feita por ele, numa entrevista, em Bremen, por altura da ceri-

mónia da entrega do prémio, dá a compreender a sua reserva: “No meu pri-

meiro livro (…)estava ainda a transfigurar as coisas - algo que não voltarei

a fazer.” [45]

No ano seguinte, em 1949, era publicado o livro Grelha de Linguagem,

que terminava com o poema “Stretto”, que, de acordo com Szondi, era o

exemplo mais acabado da via para a qual Celan se tinha, desde sempre,

orientado. Considerado, por muitos estudiosos, como uma nova versão de

“Fuga da Morte”, não existe nele qualquer concessão à mimesis, nenhuma

concessão ao que se entendia, anteriormente, por transfiguração lírica da

realidade. A atentar nas palavras de Szondi, a este respeito, “a poesia

deixa de ser mimesis, representação: ela torna-se realidade” [46].

A ideia de “paisagem-texto”, como o refere Szondi, “para onde o leitor

é transposto sem possibilidade de sair porque deixou de haver

um fora e um dentro, um antes e um depois, é da maior impor-

tância para avaliar o alcance deste poema de Celan”. A realidade

configura-se como algo a ser conquistado[47] e “o lugar a partir

do qual o poeta se orienta e projecta a realidade é a própria lin-

guagem”.

A análise acutilante de A. Guerreiro dá-nos a compreender que estamos diante de

uma reinversão do suposto aristotélico da mimese e que coloca questões fundamen-

tais com as quais se debate a literatura contemporânea. O poema, para Celan, “não

transfigura, não poetiza”. É necessário, para entrar neste universo, onde as palavras

mordem o insustentável horror sem o embelezar, fazer um exercício de abstracção

sobre a poética de Celan, fechada sobre si. Szondi, não apenas um crítico admirável,

mas profundo conhecedor da poesia de Celan e seu amigo próximo, refere um fecha-

mento no “universo hermético do simbolismo”, que se vai acentuando a par desse

percurso para um silêncio cada vez mais obstinado e irreversível.

Estudos realizados como os de Szondi, em particular, vieram iluminar a poesia de

Celan, mostrando que, apesar do seu contexto histórico e político - circunscrevendo-

se à sua época - não deixa de lado uma dimensão fundamental e reflexiva, que susci-

ta contornos interessantes e questões pertinentes no quadro das poéticas contempo-

râneas.

O facto de Celan ter traduzido poetas importantes e marcantes, na sua época, parece

ter-se convertido num ponto a favor para a prática reflexiva e estética. Saliente-se o

texto O Meridiano como aquele que mostra, na sua essência, o que pensa Celan

acerca da poesia e da arte em geral. Trata-se de uma experiência de confronto consi-

go própria. É precisamente nesse estatuto que ela obriga a “uma revisão de todas as

aporias e interditos”[48]. Saliente-se, como já foi referido, a experiência da poesia

como um “compromisso com a verdade”, tão irrefutavelmente expressa na sua afirma-

ção de que “poemas verdadeiros se escrevem com mãos verdadeiras”. E, desse pon-

to de vista, parece-me ser fundamental a compreensão da poesia de Celan, na sua

autenticidade: enquanto tarefa de luta contra o esquecimento, como rememoração ou

salvação dos “vencidos da história”.

Como outros sobreviventes do Holocausto, a questão da rememoração coloca-se

como o eixo fundamental da obra. E, nesse sentido, mais do que matéria de reflexão

estética, a poesia de Celan coloca-se no centro das questões éticas do século XX.

Trata-se de questionar a impossibilidade de esquecimento do mal, na sua banalidade,

para parafrasear Hanna Arendt, tal como ele ocorreu, nos seus contornos mais insus-

tentáveis. Uma tarefa que se constitui como um baluarte contra o silêncio da história.

Confinando, na sua radicalidade, com a loucura e o emudecimento. Tome-se o poe-

ma “Argumentum e Silentio”:

Acorrentada entre o ouro e o esquecimento: a noite. Ambos a desejaram. A ambos se ofereceu.

Põe

põe tu também ali o que amanhecerá com os dias: a palavra sobrevoada de estrelas, submersa pelo mar.

A cada qual a sua palavra.

A cada qual a palavra que cantou para ele, quando a matilha o atacou pelas costas - A cada qual a palavra que cantou para ele, petrificando.

A ela, a noite,

sobrevoada de estrelas, submersa pelo mar, a ela, ganha pelo silêncio, a quem não gelou o sangue quando o dente venenoso atravessou as sílabas.

A ela a palavra ganha pelo silêncio.

Contra as outras que breve

prostituídas pelos ouvidos dos verdugos

também escalarão o tempo e os tempos

dá por fim testemunho (…)

O estilhaçamento da palavra nasce desse confronto persistente com o silêncio que

confina com ela. Como o afirma A. Guerreiro, a poesia de Celan, não apenas confina

com o emudecimento, no seu limite, como igualmente se confronta com a ausência

de ilusão e de esperança. Nesse sentido, ela “é remetida para a pura imanência das

palavras sem garantia, isto é, para a própria matéria da língua” que fez a travessia

dos acontecimentos e que renasceu disso. O facto de confinar com o silêncio, numa

poética do inefável, faz com que muitos estudiosos aproximassem Celan de Hölderlin,

esse poeta extraordinário e paradigmático, que atravessou a noite da loucura com a

frágil luz das palavras. Porém, Celan rejeitava o formalismo de Hölderlin, em que o

queriam encerrar. Afirmava a Solomon a convicção de que todos os poemas haviam

sido escritos numa relação directa com a realidade, de acordo com as palavras de

Felstiner.

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Ensaio

12 | 19 de Setembro de 2013

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Todavia, se os seus poemas se suportam nesta relação directa com a realidade,

não é possível lê-los [49] como se lê, em geral, a literatura que testemunha, de

acordo com o modelo da chamada “literatura dos campos”. Há uma componente

de subjectividade que é anulada, atenuada e não é possível reconhecer-se um

lirismo confessional, de que Celan se afasta com veemência. Esse mesmo liris-

mo que Adorno condena no seu veredicto, daí que a interdição tenha ferido

sobremaneira Celan.

A poesia não se limita à descrição dos factos e a testemunhá-los, ainda que haja

(como o defende Celan) uma relação directa com os acontecimentos. Ela opera

sobre a matéria um efeito criativo, que faz nascer uma outra realidade. Uma

autonomia subsiste no coração desta transformação, que permite os elementos

conheçam uma nova ordem, uma ordem de pertença, num outro contexto, na

linguagem. Esse modo de operar exige uma reinversão da própria linguagem,

uma “ruptura” com a linguagem, “que tem de ser vista na sua relação com o

abismo, aberto pelos acontecimentos da história”, como o refere A. Guerrei-

ro [50]. Daí que esta reinversão se faça na direcção do hermetismo, como

salienta, a este propósito, Adorno: “No representante mais importante da poesia

hermética da lírica alemã contemporânea, Paul Celan, o conteúdo experimental

do hermetismo inverteu-se. Os poemas de Celan querem exprimir o horror extre-

mo através do silêncio. O seu próprio conteúdo torna-se negativo. Imitam uma

linguagem aquém da linguagem impotente dos homens, e até de toda a lingua-

gem orgânica, a linguagem do que está morto nas pedras e nas estre-

las.” [51] Esta linguagem que privilegia o inanimado e que caminha do horror ao

silêncio, Adorno reconhece uma transformação a que chama a “transição para o

anorgânico”. Como já o referimos, o processo está próximo daquele que Benja-

min identifica em Baudelaire, reconhecendo o “afundamento da aura” e das cor-

respondências entre os seres. Tudo aparece, assim, morto e destituído de senti-

do, nesta linguagem, que se configura como um balbuciar emergente [52], numa

nova ordem da realidade linguística.

Esse radicalismo de Celan é, sem dúvida, a principal característica da sua poe-sia, levado ao seu extremo, na perda total do último reduto do homem: a sua humanidade, no confronto com a ausência de Deus. Leia-se o poema “Salmo”, em A Rosa de Ninguém [53]:

Ninguém nos moldará de novo em terra e barro, ninguém animará pela palavra o nosso pó. Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém. Por amor de ti queremos Florir. Em direcção a ti.

Um Nada

fomos, somos, continuaremos

a ser, florescendo:

a rosa do Nada, a

de Ninguém (…)

O caminho de Paul Celan é de uma radicalidade assombrosa, se compararmos

o seu percurso a outros poetas como OssipMandelstam ou René Char, a Henri

Michaux, Yves Bonnefoy ou, ainda, tantos outros poetas contemporâneos, que

viveram igualmente a tragédia dos campos de extermínio. E este trilho amaldi-

çoado pela mudez aparece cada vez mais pejado de escombros e ruínas, num

crescendo que atinge o desespero dos seus últimos poemas. Talvez nenhum

poeta tenha encarnado a tragédia da linguagem como Celan, nem mesmo Höl-

derlin (apesar da loucura, a luminosidade persiste na sua poesia). A vida de

Celan mediu-se pela areia da linguagem, que lhe escorria entre os dedos, intan-

gível realidade ou devastada paisagem, para sempre perdida. A sua recusa do

lirismo (que Adorno não terá compreendido, inicialmente) está relacionada com

a recusa da ilusão, com o imperativo ético de fincar a poesia na realidade.

Ironicamente, para aquele que recusava o lirismo, a sua única forma de habitar a linguagem radicava na experiência poética e, por isso mesmo, recusava a nar-rativa e a ficção, que considerava como uma espécie de degradação da lingua-gem. Aqui, a contradição atinge o seu clímax. A poesia é o espelho cego de uma experiência insustentável, mas que se deseja na sua pureza, na transparência e na dizibilidade possível da linguagem. Ela, poesia, é vivida como “experiência-limite”, à qual Celan sucumbirá. Leia-se o seu último poema:

Vinhateiros escavam o relógio das horas sombrias cada vez mais fundo,

tu lês, o Invisível

desafia o vento,

tu lês, os Abertos trazem

a pedra atrás do olho,

ela te reconhecerá,

no dia do Sabbath.

A Rememoração Possível Este é o olho do tempo:

Olha de través sob um sobrolho de sete cores. A sua pálpebra é lavada com fogo, a sua lágrima é vapor.

A estrela cega voa para ele

e derrete na pestana mais ardente:

o mundo aquece

e os mortos

brotam e florescem.

Paul Celan, “Olho do Tempo”

Poderemos definir a poesia de Celan como um cântico de

redenção? Se existe, na sua poesia, uma réstea de luz, ela exprime

-se nesse desejo, profundamente alegórico, de tentar “restaurar” o

sentido, numa ordem diversa do plano dos factos vivenciais e insustentáveis

do extermínio. Redenção, também, da língua, essa língua que é a da sua mãe

e, simultaneamente, dos “mestres da morte”. Redenção como rememoração,

naquele sentido em que se toma a rememoração, não como memória, mas

(re)construção da memória, no sentido em que Benjamin o toma, na análise

sobre o texto proustiano e a alegoria de Baudelaire:

“a rememoração representa esse gesto (…) do poeta que leva a cabo a cabo

a alegoria, como bem o nota Walter Benjamin, distinguindo claramen-

te rememoração de memória quanto às funções respectivas de cada uma,

seguindo as pisadas da teoria psicanalítica e, em especial, de Theodor Reik: a

memória (…) «tem por função proteger as impressões, a rememoração visa

desintegrá-las. A memória é essencialmente conservadora, a rememoração é

destrutiva»” [54]. O tema da rememoração é essencialmente uma das ques-

tões judaicas mais profundas e pertinentes. Lembro apenas, entre muitos

outros, os notáveis estudos de Michael Löwy, GershomScholem.[55]

Se tomarmos como ponto de partida as investigações freudianas e,

sobretudo, o tema do recalcamento, é possível estabelecer claramente a dis-

tinção entre o que é da ordem da memória (a memória inconsciente) e a estru-

tura que assenta na base do procedimento alegórico e que, no seu essencial,

o explica: a rememoração [Eingedenken]. Rememorar a experiência vivida

deve ser entendido como o gesto que simultaneamente leva a cabo a destrui-

ção dos elos orgânicos e, contrariamente, encerra em si uma pretensão reden-

tora, essa a verdadeira finalidade da poesia de Celan. Daí, tornam-se claras

as palavras de J. Barrento quando fala, no que se refere à sua poesia, de uma

concomitante sacralização e violentação da palavra poética. Este gesto é, por

excelência, correspondente ao olhar alegórico, que nasce do (re)

conhecimento dessa violência dilaceradora que habita o cerne das coisas, da

visão terrível do dente da morte roendo o vivo. No poema “A morte é uma flor”,

Celan alegoriza a morte através da imagem de uma flor, uma flor que “só abre

uma vez”. Trata-se de um mundo de uma beleza terrível, onde os mortos

“brotam e florescem”. Morrem para a vida, florescendo para a linguagem poéti-

ca, a única capaz de resgatar a experiência do horror, pela via da rememora-

ção.

Um arrepio de assombro percorre-nos diante dessa imagem de irre-

versibilidade e impotência alegórica. O contraste do belíssimo verso “E vem,

grande mariposa, adornando caules ondulantes” com a iminência da morte

confere-lhe um tom profundamente pungente e dilacerador. É nesta violência

lírica da palavra que cintila o esplendor da poesia de Celan, mesmo se turvada

pelo negro sol da melancolia.

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Ensaio Ensaio

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Notas:

[1] «Rencontre avec Paul Celan», in Revue Europe, nº 861-862, Janvier, Fevrier, Paris, 2001. [2] «Pessakh», o seu prenome, em hebreu significa «a boca que relata». [3] Ibidem, p. 10. [4] Edith Silbermann, no seu artigo « Rencontreavec Paul Celan», in Europe, pp. 12, 13, refere que o poema “Fuga da Morte” se relaciona intimamente com as descrições que Weiglass fazia a Celan das condições de vida dos campos. [5] Op. Cit., p. 13.

[6] A Morte é uma Flor, p. 33. O “fruto” aqui simbolizado é a língua alemã que, por sua vez, é a língua dos carcereiros. [7] Entrevista concedida a EvelyneGrossman, a 29 de Junho de 2000, in Europe, p. 90. [8] NellySachs apelidou-o de Hölderlin contemporâneo. [9] Guerreiro, António, O Acento Agudo do Presente, edições Cotovia, Lisboa, 2000. [10] P. 31. [11] Meridiano, p. 57. [12] Idem, v. p. 69: “Não acredito que haja bilinguismo na poesia. Falar com lín-gua bífide - isso sim, existe, também em diversas artes ou artifícios da palavra e dos nossos dias, especialmente naqueles que, numa feliz concordância com o respectivo consumo cultural, sabem estabelecer-se, de forma tanto poliglota como policroma. Poesia - essa é a inelutável unicidade da língua.” [13] Idem. P.34. [14] Idem, p. 57.

[15] P. 54, “Poesia: é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respi-ração.” [16] Martin Buber e Rosenzweig constituem os sistemas mais aceites do pensa-mento judaico contemporâneo que Celan conheceu bem. Essa ligação à tradi-ção judaica é cada vez mais profunda na sua obra, o que conduz a poética de Celan à dificuldade da interpretação, onde o pensamento judaico aparece cifra-do e metaforizado. [17] V. Meridiano, p. 63. [18] V. Meridiano, posfácio, p. 80. [19] V. Meridiano, p. 66. [20] V. op. cit., p. 79. [21] Op. Cit., p. 80, “relação necessária na ordem do ente e de saída da ordem do Ser, da ontologia abstracta e neutra. [22] Idem. [23] Sete Rosas mais Tarde, p. XXI. [24] Esta magia de inversão é tematizada por Adorno, em Teoria Estética, p. 354. [25] Meridiano, p. 81. [26] Ibidem, p. 82. [27] Numa passagem do Meridiano, Celan escreve: “Vivemos sob céus sombrios e…existem poucos seres humanos. Talvez por isso existam tão poucos poe-mas”. Esta passagem estabelece uma relação imediata entre a dimensão ética e a poesia, de que Celan tinha uma verdadeira consciência. [28] Como o afirma Barrento, na p. XXXII, citando o texto Meridiano, “A esta uto-pia da linguagem, que num mesmo lance sacraliza e violenta a palavra poética, chamará Celan o «poema absoluto», o poema que não existe nem pode existir, o lugar onde todos os tropos e metáforas são levados ad absurdum” [29] Op. Cit., p. 47, 48. [30] Prefácio à tradução de Sete Rosas mais Tarde, ed. Cotovia, p.XIX. [31] A ideia de um silêncio como “elemento místico fundamental de toda a reve-lação possível” parece constituir-se como uma ideia subjacente à poética de Celan. Esta concepção não é nova e conhece o seu pleno desenvolvimento na mística da Antiguidade tardia, com os gnósticos e o cristianismo. Ver, a este pro-pósito, a obra de Agamben, LeLangageet la Mort, pp. 115/117. Podemos encon-trar o desenvolvimento deste tema na obra de Steiner, A Torre de Babel, ed. Relógio d’Água, Lisboa, 2004, no capítulo consagrado ao gnosticismo. [32] V. p. XXV. [33] E que é também a fractura da linguagem, exprimindo essa irreconciliação. [34] E aqui podemos remeter o leitor para a questão do absurdo da lei em Kafka, também ele tentado pela teologia hebraica, mas, ao mesmo tempo, reconhecen-do a impossibilidade da salvação humana, neste mundo, dominado pelo absur-do das leis e convenções. [35] V. Totalidade e Infinito, ed.70, Lisboa, 1988, p. 185.

[36] Meridiano, p. 83.

[37] Refira-se a presença do pensamento de Martin Buber, também, no modo como Celan o incorpora na sua poética. [38] P. 36. [39] Na sua obra O que resta de Auschwitz. [40] É preciso que se entenda bem a posição de Adorno, que rejeita o facto de que o horror se transfigure em princípio de prazer estético. [41] V. O Acento Agudo da Actualidade, ed. Cotovia, Lisboa, 2000, p. 44. [42] Ibidem, citado por A. Guerreiro, p.44. [43] P. 44. [44] Teoria Estética, p. 354. [45] O Acento Agudo da Actualidade, p. 51. [46] Ibidem, p.51. [47] Arte Poética, p. 34: “O poema(…)vai ao encontro da língua com a sua exis-tência, ferido de realidade e em busca de realidade.” [48] A.G., op. Cit., p. 57. [49] Veja-se, a este propósito, as notáveis considerações de A. Guerreiro sobre a “ilegibilidade” da poesia de Celan, em que se tecem comparações com o pensa-mento da “legibilidade”, no pensamento hassídico de Martin Buber e a poesia de Hölderlin. [50] Op. Cit., p. 65. [51] Teoria Estética, edições 70, Lisboa, s/d, p. 354. [52] É nesta medida que se coloca, também, o problema da “ilegibilidade” da poe-sia de Celan, onde a morte da aura e das correspondências entre os seres e a sua organicidade dá lugar ao estilhaçamento e à fragmentação da linguagem, colocando como prementes a questão da afasia e do emudecimento. [53] A Morte é uma Flor, p. 103. [54] Cantinho, Maria João, O Anjo Melancólico, ed Angelus Novus, Coimbra, 2002, p. 105. [55] Tema que tem por fundamento uma raíz teológica tradicional, no pensamento

judaico. Veja-se as obras de Michael Löwy, L’Avertissement de l’Incendie, Revolu-

ção e Utopia.

______________________________________________________________

Bibliografia: Adorno, Theodor, Teoria Estética, edições 70, Lisboa, s/d. Adorno, Theodor, Notes sur la Littérature, ed. Flammarion, Paris, 1984. Agamben, Giorgio, Quel che resta di Auschwitz, Turim, BollatiBoringhieri. Blanchot, Maurice, Le Dernier à Parler, Montpellier, Fata Morgana. Celan, Paul, Arte Poética. O Meridiano e Outros Textos, tradução de João Barren-to, ed. Cotovia, Lisboa, 1996. Celan, Paul, Sete Rosas mais Tarde, tradução de Yvette Centeno e João Barren-to, edições cotovia, Lisboa, 1993. Celan, Paul, A Morte é uma Flor, tradução de João Barrento, edições cotovia, Lis-boa, 1998. Derrida, Jacques, Schibboleth pour Paul Celan, ed. Galilée, Paris, 1986. Felstiner, John, Paul Celan. Poet, Survivor, Jew, Yale, Yale University Press, N.Y., 1995. Lacoue-Labarthe, Phillippe, La poésie comme Expérience, Paris, Christian Bour-gois, 1986. Estudos colectivos: RevueEurope, nº Janvier- Février, Paris, 2001.

Ler, ler, ler e sempre ler...

Ler com amor a leitura

Page 14: Revista Literatas 60

14 | 19 de Setembro de 2013

Espaço dedicado a divulgação de escritoires emergentes. Envie os seus textos (poesia, conto, romance)

para análise através do e-mail: [email protected]

10/09/13 – Terça-feira Manhã

10h Conferências II Coordenação: Lúcia Helena Marques Ribeiro (UnB)

Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa - Portugal)

Carmen Lúcia Tindó Secco (UFRJ)

Tarde

14h Mesa-redonda III: Grandes poetas portugueses

Coordenação: Sylvia Cyntrão (UnB)

Alexandre Bonafim Felizardo (UEG)

Ana Laura dos Reis Corrêa (UnB) Hermenegildo Bastos (UnB)

15h30 Coffee-break

16h Mesa-redonda IV: Traduzir-se: línguas e paisagens

Coordenação: Junia Barreto (UnB)

Cláudia Falluh (UnB)

Henryk Siewierski (UnB)

Lucia Helena Marques Ribeiro (UnB)

18h Encontro com o escritor

Comissão Organizadora: Ana Cláudia da Silva Edvaldo A. Bergamo

Lucia Helena Marques Ribeiro

Apoio:

Page 15: Revista Literatas 60

Poesia

15 | 19 de Setembro de 2013

Leia os poemas da semana às terças feiras em: www.revistaliteratas.blogspot.com

Você também pode publicar. Envie-nos o seu poema pelo e-mail: [email protected]

Georgio Rios - Brasil

Além, a movimentação dos olhos panorâmica adentrando casa, gaiola habitada por cactos trino de pássaros na sala, gastas, pequenas patas em pegadas anunciam o gato ido, a pouco proliferação de telhados folhas infestando as orbitas, vazio singular.

/[ todo corpo ]\

Sid Summers - Brasil

Cresço nas noites (Des) cresço quando não tenho Desisto.

Alexandre Guarnieri - Brasil

VAZIO SINGULAR

das treze articulações primárias, sete expandem da linha

dos ombros (braços abaixo/ a cabeça acima do pescoço), há

outras seis partindo dos quadris (pernas/ sexo sob o degrau

da cintura), nas vértebras, onde, invariavelmente

haverá hérnia, pilhas de anéis lhe atravessam

na transversal (do crânio ao cóxi, pelo meio), encapsulam

ageléia eletrificada na medula, feita desde o feto

no eixo estrutural deste esqueleto; (no hinduísmo, cada

chakra receberia na coluna, a chave-mestra de sua própria

fechadura); esse homem-móbile suspende, em trânsito, carnal

o óbice de sua própria transitoriedade; se livre, seu

complicado equilíbrio é dinâmico, há dispositivos anti-

pânico, simetrias (são contra-pesos os ossos por dentro,

as câmaras hiperbáricas onde o sangue se tranca, em

caixas outro fluido chacoalha, o que os músculos ocultam

sob o couro exterior, e como JavacheffChristo faria noutra

escala, seus embrulhos com cordas e tecido, de Botero a

Giacometti, há um aspecto familiar e reconhecidamente humano

recobrindo tudo); no cerne de cada complexa célula cabe o germe,

desta moradia viva com endereço fixo: o corpo como logradouro

CORPO DE FESTIM ( lançamento em 2014)

1. Porque a sua beleza nos ofusca, escavemos a terra – lá, onde ninguém nos veja. − Que seja aberta uma cova, mais funda que o mais alto de nós. − Que se jogue para dentro uma agulha, um machado precioso. − Que alguém (ele, cuja beleza nos ofusca) os vá resgatar. Porque a sua beleza nos ofusca, escavemos a terra – lá, onde ninguém nos veja. 2. − Ó Escorreito, a nossa agulha caiu na cova. − Caiu na cova, ó Escorreito, o nosso precioso machado. Temos que os resgatar, ó Escorreito, temos que os resgatar − a nossa agulha, o nosso precioso machado, ó Escorreito −, antes de voltar para casa, com nossos feixes de lenha à cabeça!... In: Rio sem margem: Poesia da tradição oral, 2011

Zetho Cunha Gonçalves - Angola

Lily dos Amures - Moçambique

MALDIÇÕES DE MORTE [Tradição oral Umbundu, Angola]

Page 16: Revista Literatas 60

16| 19 de Setembro de 2013

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Poesia

Traz nos olhos: um beija-flor, e no outro: o vazio mais profundo que um homem pode acreditar.

Nunca se depara com pedras ou conhece o cheiro do concreto. Às vezes, sentado. Às vezes

caminha com a elegância dos dias escuros. Chamam-no: Morte. Nunca sorri para uma criança,

jamais deseja-lhes má sorte. Sem saberem: cria peças de orvalho, esconde pelo caminho. Às vezes

há manchas vermelhas pelo corpo. Nada pede a ninguém.

Um pássaro se aloja no olho, vazio, dois dias: penas marrons levadas pelo vento. Ele trabalha a

madeira, dá brilho no metal. Às vezes a rua dá-lhe teto. Às vezes o frio e a chuva curvam-lhe o

corpo. O orvalho trabalha. Nome nenhum. Nada. Na madeira não há descanso. As pedras e as

pequenas peças caminham pelo vento.

O beija-flor entra no outro olho.

Inédito, do livro “Um pedaço de chuva no bolso”.

José Geraldo Neres-Brasil

PALAVRAS CAMINHAM SOBRE A

ÁGUA

Meu poema

não se ouve

nem se faz ouvir

cabisbaixa passa

despercebido

sem cor nem

amor só na dor

dor de não ser.

Meu poema

não se vê

nem se faz ver

é vazio e esquecimento

desfeito de coisas

lembradas no final lustro

Meu poema

não se vê

vazio e silêncio consorciado.

Meu poema

Fede e fere

no sonho abortado de um invisível futuro cidadão.

In ʺA Metafísica da Vertingem Diáriaʺ

Meu poema

Japone Arijuane-Moçambique

Page 17: Revista Literatas 60

17 | 19 de Setembro de 2013

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Conto

E ma, uma menina morena, pequena, não usa tranças sem nelas colo-car uma rosa que brilhe, ao longe, quase parecendo no seu rosto exis-

tir o sol, robusta e coxas gordinhas. A menina é triste, não sabe da mãe e chora todos os dias. Vive com a madrinha que desde quando ainda só tinha meses de idade, que passou a ser a mãe, pela manhã bem cedo, vai acordá-la para a levar à escola e ela, sem um sorriso, levanta-se, vai para o quarto de banho lavar o rosto, e ver-se ao espelho. Dirige-se depois à cozinha onde tem já o pequeno-almoço pronto, toma o seu leitinho, não muito quente, pois ela não gosta do leite quente, vive numa cidade quente, saboreia com apetite o leite e mastiga lentamente um pão com manteiga, os seus olhos fundos, negros, na vastidão do rosto, os lábios car-nudos, mastiga. - Quem fez este pão madrinha? Pergunta a Ema com uma voz distante, muito fininha. - Foi o padeiro Ema. Respondeu a madrinha. - O padeiro? Quem é ele? De novo a menina. - O padeiro é um senhor, que usa uma bata branca, que se levanta sem-pre muito cedo, muito cedo mesmo, aliás, ele levanta-se quando nós nos dei-tamos, para pudermos ter a esta hora, todos os dias, um pãozinho para comer, para todas as pessoas no seu pequeno-almoço terem como nós, um pão. Tentou a madrinha explicar-lhe. - E ele fica triste madrinha? Pergunta a menina. - Não Ema, ele fica feliz por puder fazer uma coisa tão importante para as pessoas todas, para as crianças todas, isso já o faz sentir-se feliz, sabes? De mãos dadas com a sua madrinha Ema segue agora a caminho da escola, que fica do outro lado do bairro onde vive. Nem sempre o dia está como hoje, onde se sente a despontar um belo sol, ao fundo, pelas frinchas dos edifícios que dividem o espaço disponível, até conseguir ver-se o sol, a abrir, a abrir pequeno como as pessoas, que quando nascem são também pequenas e vão depois crescendo, até ficarem grandes como o sol da hora do almoço. - Assim gosto mais madrinha, com sol, porque com a chuva o meu laço iria estragar-se, e eu chorava. Diz entretanto a Ema, depois de uma pausa em que observava o sol que nascia lentamente, na caminhada que faz, longa, pela manhã, ter que atra-vessar tantas ruas e por baixo de imensos prédios, e ela, com passos de gen-te pequena segue, de mãos dadas com a madrinha, as duas caminham no meio de conversas que sempre têm, atravessam pelas passadeiras das ruas, pela manhã que acaba de nascer também. - Quando eu for grande vens comigo à escola também, madrinha? - Quando fores grande vais sozinha Ema. - Não madrinha. Quero que vás sempre comigo, prometes? - Quando fores mais crescida, sabes, já a madrinha é muito velhinha, e não vai ter forças para ir contigo… - Oh… então vou deixar de ir a escola madrinha, vou ter muito medo de andar sozinha… - Não vais ter não! Vais ser uma menina muito forte, sabes? - Esta escola é para os meninos pequenos, madrinha, sabes? E quando eu crescer vou para outra escola, de meninos grandes, os meninos grandes vão sozinhos? - Sim, os meninos grandes vão sozinhos.

- Então não quero ser crescida madrinha, quero ser pequenina sempre, para ires comigo todos os dias, depois ficas cá fora a espera que o sino toque, eu venho a cor-rer para te abraçar e irmos as duas para casa, almoçar, comer a sopinha, posso, não posso madrinha? - Olha Ema, vou contar-te uma coisa, verdadeira, de quando era pequena tam-bém, assim como tu: Na aldeia onde a madrinha nasceu e cresceu, não tinha pai, a minha mãe era muito pobre e tinha de sair cedo de casa todos os dias, e eu, ia com as outras meninas, assim pequenas também, para a escola, quer chovesse muito, quer chovesse pouco, e lá íamos todas juntas, fizesse frio ou calor, e a sala onde a madrinha tinha aulas, não uma sala assim como a tua, era em baixo das arvores, sentados no chão, e a professora ficava em pé a ensinar os meninos todos daquele tempo, a ler e a escre-ver, não podíamos ter medo porque éramos fortes, não tinha quem me levasse à escola e tinha de ir mesmo assim, sabes Ema, e depois, a madrinha cresceu e mudou de escola, e na mesma, ia sozinha ou com as outras meninas, colegas da escola, da nossa escola onde o tecto eram as copas das arvores, não tinha medo Ema, era forte, tinha que ser forte. - Eu também sou forte madrinha, mas tenho medo sabes porquê? A madrinha de Ema fechou os olhos enquanto caminhavam, iam as duas numa passada meio acelerada, escutava a menina que tinha uns olhos fundos e tristes, cabelinho preso por duas transas, uma de cada lado da cabeça, e em cada uma das transas, uma rosa pequena, que por um elástico se prende ao cabelo, num brilhante colorido, que balouçam, que bamboleiam a cada passada, como quem se agita sob um vento forte, e para dentro a madrinha sentia o suor, esperava sempre uma per-gunta mais forte de Ema, que, como todas as crianças desta idade, a frescura mental surpreende, ilumina como um sol que nos abrilhanta a vida, o dia, a tarde, conta-nos como se os seus raios nos tocassem e dessem também a mão, seguissem connosco este caminho de todos os dias, pela manhã, a caminho da escola, depois, à hora do almoço até casa, almoçar, conversar, e depois juntas brincar ao esconde-esconde. - Sabes madrinha, os outros meninos, quem vai buscá-los é sempre a mãe, e a mim és sempre tu, não é? Mas escuta, és a minha madrinha e não és minha mãe por-quê? - Sabes Ema, todas as pessoas nascem, crescem, mas um dia, todas as pessoas partem para o céu, para junto de Deus, a mamã foi para o céu e fiquei eu contigo, depois da guerra, sabes, as coisas feias e más da guerra, levaram muitas pessoas desta vida, e a mamã foi uma delas, está no céu e continua a gostar muito de ti. Sou tua amiga, madrinha, mãe, e sou tão forte como tu és, brincamos juntas, saltamos a corda, comemos e dormimos juntas, é muito bom não é? Os pequenos olhos da menina viraram-se para o céu, o seu rosto, abria suave-mente os lábios como que a querer perguntar alguma coisa, a madrinha disfarçava não estar a aperceber-se e pelo canto do olho, via o ar triste de Ema, que quase pare-cia estar a chorar, tentando no céu ver se estaria ali a sua mãe, lembrando-se do que a madrinha dissera, tinha que estar ali, numa janela no céu, logo os seus olhos iriam alcançá-la, pensava para dentro a menina pequena. E foram as duas, entraram na escola e a menina ficou na sala, um beijo uma na outra, até tocar o sino e irem depois as duas, em direcção a casa para almoçarem.

Victor Burity da Silva -Angola

Poesia

EMA, A MENINA QUE ANDAVA TRISTE

Page 18: Revista Literatas 60

18 | 19 de Setembro de 2013

Conto

- Esperas aqui por mim, madrinha? Esperas? - Sim Ema, espero até se ouvir tocar o sino e tu chegares, vai lá. E a Ema foi, com o seu rosto triste, escutar com atenção as coisas das aulas, aprender as letras, as palavras, o que lhe dizia a professora, sentou-se e lá ficou, até o sino para a saída tocar. O sino para a saída tocou, as crianças correm felizes, para o braço dos pais, das mães, e Ema, encontra os braços da madrinha, os mesmos de todos os outros dias, num abraço enorme, quente, feliz também, como o abra-ço da Yara em sua mãe, do Pedro em seu pai, o da Ema em sua madrinha, a madrinha que é sua mãe, quando não se tem mãe, e Ema sabe que não tem mãe, como os outros meninos, por isso é triste, mas sabe que amar é bom e termos quem nos ame é muito bom. Ema tem a madrinha que passou a ser a mãe que ela perdeu desde que a guerra de si a tirou. As duas seguem rumo a casa, debaixo de um sol imenso, no calor da cidade linda onde Ema vive com a madrinha que é a mãe, e Ema entende a cada dia que passa que não tem mãe mas tem a madrinha, que é a mãe, e cresce, e vai ser feliz, a menina que não tem mãe. - Sabes madrinha, a professora disse que há muitos meninos que ficaram sem mãe, como eu, como tu disseste, sabes, a guerra é uma coisa muito má, mata as pessoas e as crianças ficam sozinhas, sem pai, sem mãe, como eu fiquei, sabes madrinha?

E eu disse-lhe: não tenho a mama que foi para o céu e fiquei com a minha madrinha, que a mamã pediu para cuidar de mim, e ela gosta de mim. A professo-ra disse que a vida anda muito depressa, sabes, sempre, e eu vou ficar crescida como tu madrinha, e ser uma senhora e não vou ter medo de nada, vou estudar muito, e ser uma menina linda, e sou, não sou madrinha?

- Sim meu amor, esta é a nossa terra, onde nascemos, onde nasceste, onde a guerra matou muitas mamãs, papás, há mui-tos meninos como tu sabes Ema? E vão ser como tu, muito for-tes para crescer e serem um dia pessoas importantes, pessoas que vão governar, ensinar, educar, e não vamos ter guerra nunca mais, e não vemos ter medo nunca mais. A madrinha ouviu tudo o que a menina dizia, sentiu tudo como se fosse ela a viver toda a dor de uma menina pequena, de transas, uma de cada lado da cabeça, não muito longas, mas muito lindas, ela gostava tanto das suas transas como a madrinha gostava dela. A Ema ia crescendo, estava a ficar uma menina grande, obediente, fazia tudo o que a madrinha lhe pedia, estudava, fazia os deveres, ajudava a madrinha a arrumar a cozinha depois do jantar, brincava um bocadinho até o sono chegar, pois, ia levantar-se muito cedo no dia seguinte, para ver de novo o sol brilhante, o céu azul, onde dorme em paz a mama, que a guerra tirou de Ema.

- Vamos fazer um soninho Ema, vamos? - Sim madrinha, vamos. E foram, até de novo o novo dia. A menina que andava sempre triste, não mais é uma menina triste, sabe que a mamã está no céu e olha sempre por ela, a madrinha está sempre perto. A menina cresceu e entendeu. Não mais a menina é triste.

H á quem diga que a violência é o cerne do huma-no. E tem razão. Pobre de quem duvida: será

sua próxima vítima. Essa violência alça graus tão intensos, a fúria encontra um eco de tal modo tonitruante dentro dos corações e das mentes que inflama as ambições, que por sua vez trans-formam-se em vapores de mercúrio e colam-se a todos sem exceção. As ambições e a cupidez, por sua vez, saem ao encontro dos altos-fornos da expressão violenta, a qual se vê refletida nas chamas saborosas da cobiça e da mentira e o resultado é o festim da ignomínia, regado a cálices ferventes de ódio, baixelas de maldade onde estão servidas crianças chamuscadas e finos guardanapos bordados a sangue civil. Está servido o ban-quete da injúria, ao som da orquestração vampiresca mundial onuesca que ignora verdades e aplaude mentiras, não sem salivar diante do butim que se oferece às ambições ancestrais que circundam sua vítima servida nos samova-res da infelicidade: a própria Síria. E se a violência está no cerne, ela exigirá sua vítima sacrificial, e é o que a Síria representa neste momento. Incrustada que está no seio do oriente médio ela surge como vítima expiatória, mas resta perguntar já sabendo a resposta, ( portanto está estabelecida a antinomia) a quem interessa? Desviam-se os olhares da caldeirada fervente egípcia, à moda da casa, onde

primavera e ditadores borbulham misturados às vísceras faraônicas do desejo

de dominação, e explode em um sem número e sem sentido para ocidente e

oriente de expressões violentíssimas, envolvendo milhões de pessoas calcina-

das pelo ódio e pela revolta, pela esculhambação e pela desorientação que

parece reinar neste momento no Egito. Está servido a makluba da violência,

acompanhada de bolinhos de falafel amassados pela mão dos ditadores revisi-

tados, re-instalados e revividos. Porém a Síria e o que acontece por lá atual-

mente, apesar da ira e da fúria reinantes, destoa, e sempre destoou do contex-

to da primavera árabe, hoje, inferno árabe.

O paradoxo do ressurgimento da ditadura do Egito, da libertação de seu velhíssimo ditador dos cabelos negros como a asa da graúna, parece ser mais uma manco-munação de múmias em um formidável sabah. Ela não invalidaria a própria desti-tuição de Assad, agora, já que destoa dos sentidos primeiros desta infame prima-vera? Já a literatura síria, esta antiquíssima senhora, vestal onipresente apesar dos pesares, sempre foi uma literatura de resistência. Convido a todos a lerem a entre-vista do poeta sírio Adonis, em http://www.france24.com/fr/20130220-syrie-regime-baas-assad-poesie-adonis-opposition-revolution Adonis, de son vrai nom Ali

Ahmad Saïd Esber, déplore en outre que l’opposition soit si divi-sée et n’ait pas de projet pour le pays. Enfin, il dénonce l’in-fluence des puissances étrangères sur le mouvement. "Je suis contre la destruction du pays que soutiennent certains pays ara-bes et européens, sans oublier Israël", affirme-t-il. "J’appelle l’opposition à adopter un projet clair basé sur le prin-cipe de laïcité" "Une vraie révolution porte le pays, embrasse le peuple. En Syrie, on ne voit que meurtres et destructions. Ceux qui se disent révolutionnaires détruisent aussi le pays", se désole le poète, longtemps exilé au Liban, qui vit en France depuis 1985. "Depuis 1956, je n’ai eu de cesse de me battre contre ce régime du parti unique qui, pour moi, s'apparente à une forme de reli-gion, rappelle-t-il. Mais mon combat est toujours resté démocra-tique et non-violent", souligne-t-il encore.

O fato é que não se consegue nada, ou quase nada sobre estes escritores. Muitos estão exilados, mas não mudos. É o caso de Khaled Khalifa que grita a altos brados: "o mundo inteiro é cúmplice deste sangue derramado"... Exageros à parte, o tom de revolta e aflição é presente na literatura e nos escritores, principalmente neste autor de "Eloge de la hai-ne" (Elogio ao ódio). Ele diz em carta aberta. http://www.huffingtonpost.com/khaled-khalifa/syrian-revolution_b_1265563.html "Chers amis, écrivains et journalistes du monde entier, notamment en Chine et en Russie, je tiens à vous informer que mon peuple est exposé à un génocide. Depuis une semaine les forces du régime syrien intensifient les attaques contre les villes rebelles en particulier Homs, Zabadani, les banlieues de Damas, Rastan, Madaya, Wadi Barada, Figeh, Idlib et dans les villages de la montagne de Zawiya. Depuis une semaine et jusqu’au moment où j’écris ces lignes, plus de mille martyrs sont tombés, dont beaucoup d’enfants, et des centaines de maisons ont été détrui-tes sur les têtes de leurs habitants." É isso, caros leitores, o desabafo e a tristeza desta que vos escreve diante das fatalidades que envolvem o mundo sírio. Para onde irão os cristãos sírios? Esta é outra história cruel de um trânsito e de uma diáspora milenar que parece não ter fim, entre povos irmãos e infinitamente intolerantes.

Brasília, 24 de agosto de 2013. Cláudia Falluh Balduino Ferreira.

Literatura síria mortificada pelas

bombas. A violência como essên-

cia do humano.

Damasco, Bab Tuma.

Fonte:http://literaturamagrebinafrancofona.blogspot.com/

Page 19: Revista Literatas 60

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19 | 19 de Setembro de 2013

Luísa Fresta—Angola C ruzei-me com o homem, de fato e gravata criteriosamente escolhidos, sapatos Hugo Boss, cabelo cuidadosamente cortado a máquina zero.

Inadvertidamente deu-me um ligeiro encontrão pelo qual se desculpou amavel-mente e no instante seguinte ofereceu-me gentilmente uma bebida para se retra-tar. Parecia-me um cliché de comédia romântica e senti-me algo desconfortável, pelo que decidi recusar, educadamente, e sentar-me na esplanada esperando o casal de amigos que me tinha proposto jantar no Zodabar, numa noite de música ao vivo. Não voltei a prestar-lhe atenção para além do que o seu aparente estatuto mere-cia, mas fiquei alerta pelo rasto do seu Jean-Paul Gaultier. Escassos minutos depois chegaram os meus amigos, obcessivamente pontuais em encontros pro-fissionais ou meramente sociais, em contraste evidente com o costume da terra. Cumprimentámo-nos efusivamente após o que, para minha grande surpresa, se aproximaram do elegante desconhecido que me sorriu, matreiro, e se antecipou: - Deixe-me apresentar-me- disse, num tom divertido- sou o Nilton, Nilton Fernan-des. Fui colega do Gabriel, nos tempos da guerra, agora dedico-me aos negó-cios. Recompus-me em menos de um ai e iniciei uma conversa que foi fluindo agrada-

velmente entre todos os presentes. O jantar decorreu num tom ameno ao som da

música ambiente e da cumplicidade que se foi estabelecendo. Tínhamos expe-

riências parecidas, algumas vivências comuns, atitudes moldadas por uma edu-

cação baseada em princípios equivalentes. O Nilton revelou-se um cavalheiro ao

oferecer o jantar e acompanhar o casal ao carro. Em seguida levou-me a casa no

seu poderoso jeep, impecavelmente mantido e arejado. Um homem de suces-

so, pensei, não há a menor dúvida.

Durante alguns meses mantivemo-nos afastados por contingências de trabalho de

parte a parte. As notícias eram escassas e irregulares, mas soube que o Nilton tinha

perdido grande parte do seu património e preferia manter-se isolado dos olhares de

comiseração. Entre outras preocupações e ocupações, acabou o meu recente amigo

por ficar semi-esquecido num lugar recôndito da memória até ao dia em que, anos

depois, o encontrei, expondo a sua arte, numa feira de artesanato da ilha de Luan-

da. Estava envelhecido e claramente mais magro e tinha-se livrado, com vantagem,

da sua aparência sofisticada e estereotipada de executivo bem-sucedido. A camisa

de seda com que o tinha conhecido fora substituída por uma colorida camisa de

mangas curtas, fresca e inspiradora, com motivos africanos, da qual nasciam, liber-

tos, os seus braços magros e os seus dedos finos de artista. Os seus quadros revela-

vam uma personalidade inquieta e irreverente, o que chocava com a imagem que

ostentava tempos atrás. Abraçámo-nos longamente e tomámos algum tempo para

nós, durante o qual um colega se prontificou a tratar da venda dos quadros.

- Quanto tempo, Nilton… - comecei, hesitante - Aposto que não me reconhecias,

se não visses o meu nome na placa- brincou. Expliquei-lhe que tinha a impressão

de conhecê-lo de novo. Que gostava do seu ar feliz e descomprometido, que o sen-

tia com sangue novo. Curiosa, pedi-lhe que me explicasse a razão de tal metamor-

fose. Detalhou-me então todas as peripécias por que tinha passado durante o nosso

afastamento: negócios ruinosos, sócios mal-intencionados, e a consequente queda

financeira; a indiferença dos amigos, que deixaram de lhe telefonar, para logo a

seguir passarem a não lhe atender as chamadas. O divórcio, que o tinha deixado

sem casa, os dias em que dormiu no carro até que um antigo cliente se apiedou

dele e o ajudou a reerguer-se, providenciando-lhe alojamento num anexo da sua

casa, a troco de auxílio no atelier de pintura que mantinha a custo no Morro Bento.

Disse-me então que tinha descoberto uma nova vocação e que tinha trocado a vida

de homem de negócios pela de pintor e fotógrafo.

- E rende?- perguntei- Consegues viver da tua arte?

Sorriu-me bondosamente, passeou o seu olhar pelo mar azul até que me fixou e me

respondeu com segurança – Como achas que eu vivia, quando me conheceste?

Percebi que era uma pergunta de retórica e dei-lhe tempo para prosseguir o racio-

cínio ao seu ritmo.

- Quanto tempo, Nilton… - comecei, hesitante - Aposto que não me reconhecias,

se não visses o meu nome na placa- brincou. Expliquei-lhe que tinha a impressão

de conhecê-lo de novo. Que gostava do seu ar feliz e descomprometido, que o sen-

tia com sangue novo. Curiosa, pedi-lhe que me explicasse a razão de tal metamor-

fose. Detalhou-me então todas as peripécias por que tinha passado durante o nosso

afastamento: negócios ruinosos, sócios mal-intencionados, e a consequente queda

financeira; a indiferença dos amigos, que deixaram de lhe telefonar, para logo a

seguir passarem a não lhe atender as chamadas. O divórcio, que o tinha deixado

sem casa, os dias em que dormiu no carro até que um antigo cliente se apiedou

dele e o ajudou a reerguer-se, providenciando-lhe alojamento num anexo da sua

casa, a troco de auxílio no atelier de pintura que mantinha a custo no Morro Bento.

Disse-me então que tinha descoberto uma nova vocação e que tinha trocado a vida

de homem de negócios pela de pintor e

fotógrafo.

- E rende?- perguntei- Consegues viver da tua arte?

Sorriu-me bondosamente, passeou o seu olhar pelo mar azul até que me fixou e

me respondeu com segurança – Como achas que eu vivia, quando me conheceste?

Percebi que era uma pergunta de retórica e dei-lhe tempo para prosseguir o racio-

cínio ao seu ritmo.

- Vivia atolado em dívidas, em negócios arriscados, que não chegavam para ali-

mentar nem um décimo das extravagâncias da minha mulher. Não consegui man-

ter o casamento, nem a casa, e aqueles que tinha na conta de amigos desaparece-

ram assim que deixei de poder pagar-lhes jantares.

Engoli em seco pensando que em algum momento aquela descrição também me

poderia ter servido.

- Não falo de ti, é claro…- sossegou-me, sorrindo – Tu procuraste-me e nunca te

afastaste verdadeiramente de mim, sempre te interessaste, eu é que me isolei, pre-

cisava disso- A verdade é que todo aquele sucesso era apenas aparente: o dinhei-

ro, as amizades, as gravatas…

- E agora- perguntei- Sentes-te feliz com as tuas escolhas?

- Tenho a vida que quero- retorquiu sem hesitar. Pinto 14h00 por dia, viajo dentro

de Angola, exponho, vendo, fotografo. Percebi quem são os meus amigos, recon-

quistei o respeito dos meus.

Limpou as mãos sujas de tinta a um pano antes de agarrar o copo com que brindá-

mos.

- Acho que sou finalmente um homem de sucesso.

Não voltei a vê-lo. Soube, muito tempo depois, que tinha fundado uma escola de

artes para crianças e que as suas obras eram disputadas pelas mais influentes gale-

rias de arte e colecionadores particulares.

Um homem de sucesso

Page 20: Revista Literatas 60

Livros/leituras

T enho diante de mim, um livro nave, por onde se viaja por

espaços sem fronteiras demarcadas, porque não há frontei-

ras, para o espírito humano. Faz bem receber entre as mãos uma antologia

de poesia, que nos ajude a penetrar no que fica além, no que a linguagem

humana quotidiana não logra penetrar directamente, porque a poesia é

aquela arte que na palavra deixa grandes vazios de silêncio . Com a leitura

de cada poema deste livro sabe bem sentir que a todos nós(pessoas, paí-

ses , comunidades) somos um símbolo para significar algo que nós mesmos

não sabemos o que seja como diria Guimarães Rosa. Sabe bem ter entre

as mãos um livro , que nos convida à redescoberta da poesia , para educar e

despertar a razão, a sensibilidade, a imaginação. Um livro que nos educa

para as linhas e para as entrelinhas., para a dimensão realista e para a

dimensão visionária, para o que se evidencia e para o que se oculta, na nos-

sa existência . Um livro com poesia que nos leva a redescoberta daqueles

delicados fios( invisíveis ao olho nu da razão) que nos ligam a nós mesmos

e aos outros. Este livro , que leva a nossa razão ao reencontro do mistério,

do inefável, do indizível, do sagrado. Na sua diversidade de textos aqui cada

poema é uma central de energia . Com alto nível deconcentração e irradia-

ção , que se manifesta com ritmos e imagens carregadas de energia afecti-

va , que despertam profundas ressonâncias. Por isso não é de espantar que

o autor desta antologia confesse quão difícil foi para ele, fazer uma sinop-

se desta viagem na qual o leitor é o principal passageiro, quão difícilfoi reunir

estes poetas de terras distantes que juntos residem nesta pátria que se cha-

ma língua portuguesa.

Talvez ao tecer este projecto Amosse se interrogasse, como o

arqueólogo Mário Lúcio Sousa : Quando e que uma asa sozinha/ fará uma

borboleta, quando? Quando é que um lobo/ só pele/ fará o medo de toda a

selva? A palavra não é apenas coisa que se diz, neste livro a palavra surge

como uma liturgia que se celebra, um rito invocativo que se vive. Para se

tecer a ponte na mesma viagem de ida e volta rumo à ventura de ummesmo

milagre: fazer com que o sentido e o sentimento circulem entre as pessoas,

entre as nações e no caso vertente a escala global. Por isso temos neste

livro uma espécie de constelação, a escala global, de imagens, de sonhos,

de afectos, que se movem, de ideias em balanço de dança, no palco em que

o papel se converte.

De uns autores podemos colher os frutos maduros de uma árvore

enraizada na tradição literária comum com as suas linhas de continuidade e

as suas rupturas , de outros a evidencia de que a língua feita um rio, vagou

de casa em casa, de paisagem em paisagem, de latitude em latitude e se

deixou atravessar no seu leito da diversidade de sabores,

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20 | 19 de Setembro de 2013

“A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da

Língua: o reencantamento do mundo”

Aurélio Ginja-Moçambique

temperos , vivências, que colheu dos vários lugares onde se entranhou.

Em uns o leitor como nos alerta Paulo Seben encontrará a intrincadíssima

sintaxe dos poetas livrescos e em outros a sabedoria e a linearidade da literatura

oral, aliando o som e o sentido .

Em uns a certeza de um percurso já firmado,em outros a surpresa de um pri-

meiro contacto, a novidade de um novo arrojo formal ou temático. Esta proposta se

revela importante porque vivemos num tempo de esquecimento da palavra, um tem-

poem que a linguagem se faz tão fragmentária nos telemóveis , nos ecrãs de televi-

são nos diálogos do dia a dia , que é um apelo a fim de pararmos , para que?Para

lermos com inteireza, para testemunharmos o milagre da palavra encarnada na sua

totalidade, na sua inteireza, no planeta da poesia. Importante, porque uma antologia

de poesia põe-nos em contacto com novos autores nos faz descobrir ou redescobrir

outros. Importante, porque nos ajuda a refazer a relação lúdica, com a palavra encan-

tada. Importante, porque pode reorientar a nossa sensibilidade, para campos nunca

antes aflorados ou no mínimo esquecidos.

Importante pelo exercício de sedução, com que a poesia subverte a razão.

Importante pelo cultivo da imaginação inventiva. Esta antologia assume importância

didáctica também, pois serve para convocar os leitores a assumirem a mais urgente

das tarefas o sentido inteiro do milagre da palavra. Como dizia o poeta Armando Artur

na poesia a as palavras deixam de ser apenas sinais convencionais , para participa-

rem , para se converterem elas próprias nas próprias coisas nomeadas. Esta antolo-

gia na sua diversidade (Moçambique, Angola, Cabo- Verde, Timor Leste, Finlândia,

Portugal, Brasil , México, São Tomé, Guine- Bissau) convoca um outro tempo. Um

tempo para que devagar , se possa fazer interiormente esse exercício de escavação

arqueológica da palavra e de anatomia da língua , porque como dizia um grande pro-

fessor: um grande poema não se lê aos fragmentos. Exige um tempo para se ler com

reverência. Porque a descoberta de um grande poema surpreende, converte. Revolve

-nos a vida. Fulmina-nos de beleza. Este livro convoca-nos, desafiando-nos a

viver a vida e as palavras que a traduzem em estado de poesia. É um livro em

cujos textos ocorrem variadíssimaso perações no corpus da língua o que

requer lê-los com amorosa atenção, a fim de se fazer a captura inteligente das

nossas razões e das motivações com que o jovem Amosse Mucavele os

implantou nas páginas deste livro, a fim de descortinar as motivações por

detrás do modo como os entrelaça .

Page 21: Revista Literatas 60

Livros/leituras Livros/leituras

21 | 19 de Setembro de 2013

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Ao lê-lo, em pouco tempo, na diversidade temática e estilística depressa

verificamos que não há assunto que não constitua um desafio tão antigo, quan-

to a própria vida. Tão prenhe deactualidade quanto os dilemas que enfrenta-

mos aqui e agora. Com efeito,todos eles- cada um a seu modo-fazem jus a

necessidade de recriar a vida através da palavra densa na sua forma e conteú-

do , através da reinvenção criativa dos sentidos e dos sentimentos e pensa-

mentos . É assim que, com o arqueólogo Marcelino Freire reconheço nele um

verdadeiro inventário. Sonoro. Um testamento. Nada que se explique , pois

como dizia outra dos arqueólogos (Delmar Gonçalves) a poesia não precisa

de eco, pois ela própria é eco com a sua miraculosa melodia.

Nós , leitores , viajantes desta nau podemos entrar nele com um navio

na língua , buscando dentro dele( com White) por exemplo,a natureza estimu-

lante da paisagem que temos dentro, nele podemos seguir ao encontro de um

mundo (com Ana Mafalda Leite) que se quer particular sem fronteiras pois nin-

guém sabe: onde terá começado a fronteira do dia com a noite? A fronteira da

água com a terra? A do azul com o lilás? Um livro onde o leitor possa (com Leo

Sidónio),cartar poemas de sal e sol e onde possa (com Danny Spinola) fechar

os olhos/ e abri-los por dentro/para não nos perdermos/ no labirinto que

somos.ou até (com Luís Ferreira) ser um pássaro alado/ que viaja no manto

azul celeste/ até onde a face do céu/ levar o meu ser. Um livro onde( com Il

Bonde) possamos sonhar outro dilúvio trazendo o resto da espécie salva na

canoa de Noé. Um livro onde (com José luís Mendonça) possamos conceber a

Teoria Económica do Afecto e dizer : O meu olhar comemora a acumulação

primitiva / do capital afectivo quando desvenda / o potencial maritimo / da tua

bunda onde se agitam, deuses instrumentais. Um livro onde nas horas de espe-

ra possamos (com Mia Couto) ter a tentação constante de relê-lo com a mes-

ma saudade/ que a semente sente do chão .

Um livro onde possamos ouvir o alerta profético de um arqueólogo (Guita.)

segundo o qual iremos prestando conta ao destino ao rumo que traçamos/seguindo o

curso do rio que escavamos à foz que encontramos. Um livro onde a viagem seja

sempre como nos sugere outra arqueóloga ( Filipa Isabel) a da existência.

Neste tempo em que pairam algumas sombras cinzentas, sobre as nossas mentes e

o espectro do trovão belicista nos assombra , em boa hora, uma antologia de vozes

múltiplas assim, ajuda-nos a assumir que não basta navegar num mar deinforma-

ções indistintas, não basta exercitar a arte de pensar com discernimento , é preciso

reconhecer o outro ,aprender a viver com o outro, respeitar a sua diferença. Reco-

nhecer nele o direito à existência, à voz, ao pensamento autónomo. Reconhecer

como o demostram estes textos, que partilhamos, como humanidade, sofrimentos e

sonhos, signos esangue em comum. Unidade na diversidade.

E necessário assumir,que para uma ética de reverência pela vida, a educação dos

sentidos é necessária, o pensamento simbólico é incontornável, e a poesia é vital-

mente imprescindível Parabéns, alfaiate- mor, meu caro Amosse, por teres lutado

contra hordas de vírus e piratas virtuais no teu computador batendo , rebatendo

arrumando estes mais de cinquenta autores, ordenando-os amorosamente nesta

arqueologia e costurando com a anestesia do verbo esta língua.

Já agora inspirando-me no arqueólogo Marcelino Freire, desejo a todos os futuros

leitores, náufragos como eu,a embarcar nesta mesma nau:Uma boa leitura. Uma boa

expedição arqueológica. Uma feliz operação no corpo da língua. Uma boa viagem.

12 de Julho de 2013

Page 22: Revista Literatas 60

Última Estação

22 | 19 de Setembro de 2013

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Osmar Casagrande-Brasil

Milhares de anos-luz (em

termos de cultura) nos separam de povos que sequer adentraram o portal tecnológico

do cavalo-vapor e muitos mais ainda daqueles que sequer adentraram a idade dos

metais.

O hoje é uma realidade produzida por nós, humanos, em todos os setores de ação

humana e em todos os quadrantes do planeta. É muito claro, portanto, que nós

fazemos cultura. Produzimos cultura ao produzir o pensar; produzimos cultura ao

avançar em técnicas; produzimos cultura quando inventamosmoda(o), coisa ou caso.

Tudo isso é cultura. E precisa ser objeto do olhar dos responsáveis pelo

desenvolvimento cultural deste bolsão cultural que agora é mais amplo e muitíssimo

mais diverso, com o nome de Estado do Tocantins. Aqueles bolsões culturais, antes

isolados pela realidade bárbara que se lhes impunha, agora se interconectam.

Mais que isso: se plugam. E não apenas entre si, mas se plugam no contexto

geral, na cultura do mundo, realidade muito mais ampla e complexa que o nosso quin-

tal. Portanto, a cultura dohoje precisa tanto quanto a do ontem, de apoio e cuidado.

Falta-nos ainda considerar o futuro nessa equação cultural do fator tempo ou

equação temporal do fator cultura. Façamos isso. Quando nos detemos a considerar

o futuro, damo-nos conta de que futuro é o que haverá de vir. Isto é o que a cultura de

antanho nos sedimentou na compreensão, junto com outra assertiva, decorrente da

ideologia da primeira: o futuro a Deus pertence. Mas não é assim. A segunda asserti-

va é nula porque a primeira é falsa, pois o futuro está sendo moldado, plantado, cons-

truído agora! E o fazer culturalno agora é nosso, do homem, como demonstramos ao

observar o fator tempo na modalidade “hoje”.

Colocar a metas de desenvolvimento cultural nas mãos de Deus é muito pró-

prio dos dirigentes irresponsáveis para com o resultado do trabalho que têm a obriga-

ção (moral, inclusive) de realizar. Além de dirigente, quem exerça tais funções há que

ser diligente e minimamente observar, com acuidade e amplitude (é uma dicotomia

real) o que é mesmo que significa cultura.

Construamos, pois, nossa cultura, com a consciência de que somos todos res-

ponsáveis por ela e por nossos atos e suas decorrências. Lembremo-nos que nosso

hoje é o futuro do ontem e se esse hoje traz as marcas da irresponsabilidade (com o

planeta, com a flora, com a fauna, com o fogo, com o homem) é porque os povos que

o construíram não tinham a devida responsabilidade com a construção de si mesmos.

T enho ouvido e visto tantos desencontros em termos de conceito de cultura, principalmente emitidos por gestores culturais, que resolvi me

deter em suas considerações. E inicio essas considerações pelo âmbito mais amplo, considerando a amplitude das dimensões: temos a realidade “cultura” aplicada a várias dimensões, das quais pinço um elemento interdimensional, o “tempo” para observá-lo com maior acuidade. Desde a palestra Identidade cultural em um cenário pós-moderno, que proferi por primeira vez no Salão do Livro em 2011, na cidade de Palmas-TO, Brasil, venho afirmando que cultura é tudo o que engloba os saberes e fazeres do homem (e aqui estão todas as dimensões: a física, a mental, a emocional), no presente, no passado e nofuturo. Não abrirei considerações sobre os campos de aplicação da cultura (tecnologia, educação, arte, moral, lei e todo o cabedal deconhecimento e ação humana) para referir-me tão somente à problemática do tempo, pois esse é um ponto básico de engasgo na compreensão do significado de cultura. O olhar que observa tão somente pela estreita frincha do passado costuma

observar como cultura, para o nosso gasto diário de política cultural, as

realizações artísticas e/ou religiosas ocorridas há tempo suficientemente

distante do hoje e que tenham conseguido permanecer como costume. Cá no

Estado do Tocantins, Brasil, vemos essas expressões culturais reconhecidas

nas cavalhadas, nos caretas de Lizarda, nas festas do divino com suas

bandeiras, nos artesanatos indígenas, nos toques dos tambores, na sucia, nas

construções em estilo de época em cidades mais antigas como Natividade e

Monte do Carmo etc. São valores identitários de bolsões culturais que temos o

dever de preservar para que tenhamos viva a memória.

O grande problema é que significativa parte dos operadores da coisa da

cultura só enxerga a cultura por esse ângulo e nessa dimensão. Decorre daí

um estrabismo temporal onde só se vê, como elemento de cultura, as práticas

cabíveis nas possibilidades de expressão de um bolsão cultural circunscrito no

espaço e no tempo. Os que observam por essa vertente estreita do passado

surpreendem-se (e mesmo escandalizam-se!) quando se considera cultura

uma ação humana com função no presente. Em sua compreensão estreita e

estrábica a um só tempo, as ações culturais no presente devem ser uma

repetição das afirmações culturais do passado. Não admitem o novo que

comporta o novo; tão somente admitem o novo que comporta o antigo, como

um filme feito na tecnologia das 3 dimensões, cujo tema e enredo sejam

obrigatoriamente dos usos e costumes do tempo da onça.

O presente é o agir cultural no agora, no hodierno; é o saber e o fazer com as

técnicas apuradas até o presente, sejam em quaisquer campos da ação

humana, desde a tecnologia instrumental até a tecnologia de controle social.

Da cultura do nosso quintal