revista literatas nº 24 ano ii

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Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 30 de Março de 2012 | Ano II | N°24 | E-mail: [email protected] Wole Soyinka homenageado na 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura Luís Cardoso (considerado o primeiro autor timorense a escrever em língua portuguesa ) entre pergunta e resposta Cartografia do Imaginário: a voz de Abdulai Sila entre Colonizadores e Djambakus. Por Sebastião Cardoso

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Page 1: Revista Literatas nº 24   ano II

Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 30 de Março de 2012 | Ano II | N°24 | E-mail: [email protected]

Wole Soyinka homenageado na 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura

Luís Cardoso (considerado o primeiro autor timorense a

escrever em língua portuguesa ) entre pergunta e resposta

Cartografia do

Imaginário: a voz

de Abdulai Sila entre

Colonizadores e

Djambakus.

Por Sebastião Cardoso

Page 2: Revista Literatas nº 24   ano II

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Literatura Africana em Festa no Brasil

Por incrível que pareça, a primeira Bienal do Livro e de Leitura do Brasil vai homenagear a Lite-ratura Africana, particularmente o primeiro escritor africano a receber o Prémio Nobel (1986), o Nigeriano Wole Sonyika.

Estará acompanhado por escritores de Moçambique (Paulina Chiziane), Angola (Ondjaki), Cabo Verde (Germano de Almeida), Guiné-Bissau (Abdulai Sila), Togo (Kangni Alem), e São Tomé e Príncipe (Conceição Lima).

É mesmo, para dizer que a Literatura Africana estará em festa no país de Jorge Amado. Isenta das guerrilhas linguísti-cas (Francofonia, Lusofonia, Anglo -saxónia), sendo estas, as mesmas que nos tornam muito distantes uns dos outros.

A título de Exemplo: quais são os nomes mais representativos da literatura zimbabweana?

Alguém de nós sabe que o Prémio Nobel de 1991, 2003, pertence aos nossos vizinhos, os escritores sul-africanos Nadine Gordimer, e J.M.Cotzee?

Ao prosseguir na esteira deste encontro entre irmãos que pouco se conhecem, outros que não se conhecem, o mesmo encontro que não se realiza na terra que os viu nascer, e que os vê crescer. É triste ser um dos olheiros desta realidade irreal que nos circunda, logo a priori vêem a memória as delícias das gloriosas décadas 70 e 80; cá em Moçambique o Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD) publicava uma colecção denominada Vozes de África onde desfilavam eternos nomes da literatura africana, sem cair na ambiguidade das guerrilhas linguísticas, como Sembene Ousmane (Senegal), B.B.Dadié (Costa do Marfim), Peter Abrahams (África do Sul), Ngugi Wa Thiong’o (Uganda), Achinua Achebe (Nigéria), só para citar alguns. E, é a despeito disto que pergunto:

- O que é que as pífias da SADC, CPLP, CEDEAO, UA, fazem para o fortalecimento do diálogo intercultural?

Desde já, aproveitar o espaço para parabenizar ao Brasil pelo carinho e atenção para com a literatura africana, e para rogar que este encontro seja um despertar de consciências adormecidas das grandes editoras deste país, que cingem suas publicações à favor de meia dúzia de nomes, e as pequenas editoras para que possam ver uma oportunidade de negócio, ao publicar escritores africanos uma vez que tem sido base de estudos nos cursos de literatura nas universida-des e dos povos africanos.

O editor da infindável revista Dimensão, o homem das artes e letras, Guido Bilharinho relata-nos em primeira mão a beleza do “projecto artístico-cinematográfico” da década 30, que ao seu ver é uma pura “transgressão do Real” reflecti-da no filme “O Sangue do Poeta”.

Do Brasil voltamos ao nosso Africo epicentro, na canoa do Sebastião Marques a remar na “ Cartografia do Imaginário” da Última Tragédia do escritor guineense Abdulai Sila.

De volta à casa Lucílio Manjate e Sangare Okapi deixaram na noite de ontem o seu terceiro testemunho, uma prova de que eles nunca estiveram e não estão de passagem neste território da palavra; a literatura moçambicana ganha duas grandes obras, que desde já tomam de assalto o seu prestigioso espólio. Será que existe?

E por último vamos a Timor-Leste ao encontro do escritor Luís Cardoso o considerado primeiro autor timorense a escrever em língua portuguesa. O que é que ele diz ao Saraivaconteudos? Será que ele aceita esta catalogação?

Boa leitura

Amosse Mucavele

[email protected]

Editori@l

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Destaque S E X T A - F E I R A , 3 0 D E M A R Ç O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 3

Escritores africanos principais convidados

1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura

Considerado a principal voz da literatura africana contemporânea, o

dramaturgo, poeta, romancista e crítico nigeriano Wole Soyinka

será o grande homenageado da 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura. Primeiro negro a

receber o Prémio Nobel de Literatura, em 1986, Soyinka vai à Brasil de visita inédita para

lançar The Lion and the Jewel, seu primeiro texto teatral, publicado originalmente em

1963. Além de Soyinka, outros dentre os mais importantes nomes do universo literário do

continente africano virão participar do seminário ―A Literatura Africana Contemporânea‖.

Durante dois dias, eles em Brasília, num encontro que se configura histórico.

Além de Soyinka, estão confirmadas as

participações de Kangni Alem, premiado

autor togolês, Conceição Lima, considera-

da a maior poetisa viva de São Tomé e

Príncipe; Paulina Chiziane, de Moçambi-

que, com uma obra a favor dos direitos

humanos; Germano Almeida, cuja obra

desmascara a hipocrisia da vida pública e

privada da sociedade de Cabo Verde;

Abdulai Silá, autor do que é considerado o

primeiro romance da Guiné-bissau; e o

angolano Ondjaki, radicado no Brasil e

vencedor do Prémio Jabuti na categoria

Juvenil com o romance Avó Dezanove e o

Segredo do Soviético.

A participação de autores do continente

africano tem início no dia de abertura da

Bienal, com a homenagem a Wole Soyin-

ka, no Museu Nacional. O autor fará uma palestra às 20h30. E no estande da editora Gera-

ção Editorial estará a ser lançado o The Lion and the Jewel.

O seminário ―A Literatura Africana Contemporânea‖ acontece nos dias 15, às 18h, e 16 e

17 de Abril, das 10h às 12h30, no Auditório Nelson Rodrigues, do pavilhão montado para

o evento na Esplanada dos Ministérios. No dia 15, estarão na mesa de debate Conceição

Lima e Germano Almeida, com mediação de Regina Vecchia, professora de Literatura

Africanas de Língua Portuguesa da USP. E no último dia do seminário, participações da

moçambicana Paulina Chiziane, do angolano Ondjaki, Abdulai Sila, da Guiné-bissau, com

a mediação de Eduardo Assis Duarte, professor da Faculdade de Letras da UFMG.

PROGRAMAÇÃO

SÁBADO, DIA 14 20h30 – Homenagem e palestra

com Wole Soyinka – Museu

Nacional

DOMINGO, DIA 15

18h – Abertura do Seminário A

Literatura Africana Contemporâ-nea – Auditório. Nelson Rodrigues – Com Kangni Alem (República do Togo). Mediação: Zulu

Araújo (DF)

SEGUNDA, DIA 16

10h30 – Seminário A Literatura Africana Contemporânea – Auditório. Nelson Rodrigues

Com Conceição Lima (São Tomé e Príncipe) e Germano Almeida (Cabo Verde). Mediação: Reja-ne Vecchia (SP)

TERÇA, DIA 17 10h30 – Seminário A Literatura Africana Contemporânea – Auditório. Nelson Rodrigues

Com Paulina Chiziane (Moçambique), Ondjaki (Angola) e Abdulai Sila (Guiné-Bissau). Media-

ção: Eduardo Assis Duarte (MG)

A coordenação literária é do jornalista e escritor Luiz Fernando Emediato, coordenação geral de

Nilson Rodrigues e realização da Secretaria de Cultura e da Secretaria de Educação do Governo

do Distrito Federal, em parceria com o ITS – Instituto Terceiro Setor. O projecto é inserido no

Plano do Livro e da Leitura do Distrito Federal – Brasília Capital da Leitura. O evento acontecerá

na Esplanada dos Ministérios, num espaço de cerca de 50 mil metros quadra-

dos, com área coberta para receber 158 estandes.

SOYINKA Nascido em 1934, em Abeokuta, Nigéria,

Wole Soyinka participou activamente da

história política de seu país. Em 1967,

durante a guerra civil, foi preso acusado de

conspiração a favor dos rebeldes. Ao longo

de sua carreira literária, publicou em torno

de 20 obras.

KANGNI ALEM Romancista e dramaturgo nascido na cida-

de de Lomé, no Togo, é PhD em francês e

literatura africana e francesa e diplomado em semiologia teatral. Já publicou

mais de 10 livros e é professor de teatro e literatura na Universidade de Lomé.

PAULINA CHIZIANE Primeira mulher moçambicana a publicar um romance, Paulina Chiziane lan-çou o seu primeiro livro, A Balada de Amor ao Vento, em 1990. Ventos do

Apocalipse (1993), O Sétimo Juramento (2000) e Niketche: Uma História de

Poligamia (2002) são outros romances da autora.

GERMANO ALMEIDA Nascido na ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1945, estreou como contista no

início da década de 80. Foi co-fundador e colaborador da revista cabo-

verdiana Ponto & Vírgula. Apesar da importância de sua obra de ficção – que

abriu caminho para uma nova etapa na rica história literária de Cabo Verde –,

o romance O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo é seu único

título publicado no Brasil.

ABDULAI SILÁ Um dos mais importantes autores da literatura de Guiné-Bissau, Silá deu iní-

cio à chamada ―corrente ficcional original‖, ao escrever Eterna Paixão – con-

siderado o primeiro romance escrito naquele país.

CONCEIÇÃO LIMA Considerada a maior poeta viva de São Tomé, Conceição Lima tem seus tra-

balhos publicados há quase três décadas. Sua poesia tem servido de inspiração

para teses literárias em Portugal e no Brasil, no entanto, foi apenas em 2004

que O Útero da Casa, seu primeiro livro, foi publicado. Publicou em 2006 A

Dolorosa Raiz do Micondó e em 2011 O País de Akindenguê.

ONDJAKI Estudou em Luanda e fez sociologia em Lisboa. Em 2000, publi-ca o primeiro livro, Actu Sanguíneu.

Redacção

Germano Almeida, escritor cabo veriano

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Wole Soyinka, escritor nigeriano

Kangni Alem, escritor de Togo

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Destaque Livros & Leitores Amosse Mucavele

Ao nosso confrade e amigo, Calane da Silva

M inha mãe teve um filho de quem nunca falamos. Nasceu pelos pés.

O resultado foi que meu irmão, ainda criança, perdeu-se mal

começou a gatinhar. Crescia e nunca parava de andar. Todos os

dias perdia-se na vida. Dava à casa de vizinhos, parentes e amigos da família por um milagre do acaso, obra do destino. Depois de andar doze anos

perdido, tiveram que o amarrar a um embondeiro. Foi o fim: tanto imaginou ruas e

avenidas, prédios e lojas, que começou a cumprimentar as pessoas, a conversar com elas, a sorrir-lhes. A família reuniu e, na voz de meu pai, achou solução mais

acertada: chamaram um psiquiatra. Minha mãe, porém, sempre duvidou daquela

saída, aquele era assunto para o nhanga, dizia às cunhadas, na esperança de

encontrar alguma aliança, mas sua voz não ecoava, não fosse ela mulher. Levaram então meu irmão numa camisa-de-forças. No hospital, acometeu-lhe uma claustro-

fobia que o levou ao suicídio, e os médicos registaram em papel que segundos antes

de se evadir gritou pelo meu nome.

Este é o excerto do conto A SINA da obra ―Contador de Palavras‖ de Lucílio

Manjate, lançado ontem em Maputo, sob a chancela da Alcance Editores.

―Contador de Palavras‖ é a terceira obra do escritor moçambicano Lucílio Manjate.

Uma obra que não foge tanto da temática que tem o acompanhado no seu percurso

literário. Referimo-nos às vivências (sub)urbanas que são a marca identitária da

palavra que este escritor fabrica.

A despeito disto, Lucilio Manjate diz ―a questão do espaço não é o centro deste pro-

jecto. Mas estava preocupado com outras questões, talvez de cariz filosófico e exis-

tencialista.‖

―Uma das coisas que sempre acompanhou-me quando pensava neste livro é o facto

de que a palavra enquanto instrumento de trabalho como escritor, ela poder repre-

sentar sonhos desejos frustrações utopias. Ao olhar a palavra nesta perspectiva, ela

funciona como uma espécie de núcleo vital de toda obra. Um núcleo gravitacional.‖

O autor de ―Os Silêncios do Narrador‖ afirma que ao pensar na palavra, como a

alma do seu percurso naquela narrativa é porque as estórias que conta não são novas

e nem velhas, ―são as de sempre‖.

―De alguma forma, o que proponho é sobrepor as estórias que eventualmente cada

um pudesse contar. Sobrepor as estórias o espectro da própria palavra. Digamos com

muita modéstia, o trabalho com a palavra, enquanto me preocupava com a questão

do labor, do esculpir, da própria palavra eu senti que esse exercício da escrita, no

caso a minha, aspirava a posição de poesia.‖

Sendo assim, ―Contador de Palavras‖ que é uma colectânea de contos, histórias ins-

piradas no ambiente social moçambicano, no que ele tem do dilema existencial até à

loucura, são histórias que, em algum momento, aspiram visitar a memória colecti-

va nacional do pós-independência, mas também projectam, poeticamente, uma

utopia que fica por descortinar a morfologia.

Entretanto, Lucílio Manjate vai mais longe na sua explanação sobre o livro que

lançou ontem em Maputo, sob a chancela da Alcance Editores.

―Creio que esta é a marca provavelmente fundamental, não se trata de uma prosa

poética, mas o texto, o conjunto de textos que, embora retratem como se diz a nar-

rativa, é o retrato da realidade objectiva‖ Concluiu.

LUCÍLIO Orlando MANJATE é membro efectivo da AEMO. Publicou

Manifesto (contos), 2006, Os Silêncios do Narrador (romance), 2010 e O

Contador de Palavras (contos), 2012.

Outro livro publicado é a MAFONEMATOGRÁFICO TAMBÉM CÍRCULO

ABSTRACTO de poeisa, cujo autor já pretence ao mundo dos escribas.

Trata-se de um livro de poesia de Sangare Okapi. ―Mas não para os desavisados,

ou mesmo para eles. A poesia que Sangare Okapi agora nos apresenta desafia pela

forma ousada como se insinua e se manifesta, e disso o título é já sintomático. Por

isso, uma das grandes questões que Sangare Okapi agora discute é a própria noção

de poesia, porquanto a Estética, aqui, é, digamos abalada, questionada até à exaus-

tão, até à loucura. Nesse sentido, é, este livro, uma espécie de apoteose, onde a

relatividade do Ser da Poesia é o núcleo central”.

CARDOSO Lindo CHONGO (SANGARE OKAPI) é membro efectivo da

AEMO. Publicou a seguinte obra poética: Inventário de Angústias ou Apoteose do

Nada, 2005, Mesmos barcos ou Poemas de Revisitação do corpo, 2007, e Mafone-

matográfico também Círculo Abstracto, 2012. Está antologiado na revista brasilei-

ra Poesia Sempre, 2007.

Contador de Palavras e Mafonematográfico chegam ao mesmo tempo

Binga

raro

seio

caro

anseio

passeio

que receio

Sangare Okapi

Lucílio Manjate

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Livros & Leitores Ao nosso confrade e amigo, Calane da Silva

Sobre o livro: «Manuel Alegre volta, neste novo

livro, a confrontar a sua

poesia com as grandes

questões: o sentido da vida e as incertezas, interroga-

ções e angústias deste nosso

tempo. Uma poesia, nas palavras de Frederico Lou-

renço, que ―não esconde o

sofrimento e a dor da exis-tência humana, mas que

nunca aceita a resignação

ou o pessimismo‖. Um

novo poema de Manuel Alegre, diz Lourenço,

―afigura-se-nos sempre

como um fenómeno incrível de originalidade.‖»

Manuel Alegre regressa à poesia

com «Nada Está Escrito»

Nada Está Escrito, novo livro de poesia de

Manuel Alegre, será a lançado a 7 de Abril

pelas Publicações Dom Quixote.

Gostaria, com a per-

missão das excelsas

figuras aqui presentes,

de, em jeito de introito,

manifestar a minha ale-

gria em estar aqui,

como orador, na home-

nagem que ora se presta

ao escritor Calane da

Silva. Digo alegria por-

que o mundo literário é

povoado de ambivalên-

cias, de jogos de luzes e

sombras, de ficção e

realidade, de leituras

segundas. Mas aqui,

com a ajuda desta luz

artificial, e sem nada na

manga, as minhas pala-

vras querem-se livres de

outras leituras que não a

de alegria em homena-

gearmos o primeiro

escritor com o prémio carreira, prémio instituído pela Hidroeléctrica de Cabora

Bassa e a Associação dos Escritores Moçambicanos.

Calane da Silva é das raras personalidades em cujo percurso a linguagem se tornou

o alfa e o ómega da sua condição de cidadão e intelectual. Foi a linguagem, na ver-

tente jornalística, que ocupou um espaço privilegiado na sua carreira, catapultando

-o à galeria de insignes jornalistas que marcaram, com a pena, distintos momentos

na denúncia de actos iníquos antes e depois da independência; foi a linguagem, na

vertente poética, que moldou a personalidade rebelde deste poeta qua cantou a

nossa suburbana vida no epicentro da sua Malanga.

Quem não se recorda desse poema emblemático Dos Meninos da Malanga :

Mukhokweni/não é só lugar de cocos./ Mukhokweni tem história/ retida na íris/

dos meninos da Malanga./ Vivíamos a monte/ entre coqueiros, pamas e piteiras/ e

tínhamos tudo!/ Crianças sempre esfarrapadas/mulheres grávidas todos os anos/

xibalos-carregadores/ e magaízas endinheirados/ que os mabandido por vezes/

esfaqueavam./ A polícia também investia para metralhar corpos/ e efectuar pri-

sões/ mas em Mukhokweni/ sobretudo/ vivíamos entregues a nós mesmos./ Vinte e

quatro anos são passados/ sobre os coqueiros, pamas e piteiras/ de Mukhokweni

ora urbanizado./ Mas os gritos/ pragas e imagens continuaram/ doidamente con-

densados/ nos nossos corações já amadurecidos./ Jacinto, Fernanda, Madala/ e tu

Kadir?/Todos companheiros de infância/ que o regime implacável dividiu…1969;

Foi a linguagem, na vertente romanesca, que firmou Calane na galeria dos escrito-

res desta pátria com o romance Nyembete e o pendular livro de contos Xicandari-

nha na lenha do mundo;

É, por fim, no mundo do ensaio, nessa linguagem que obedece a outros códigos,

já como docente universitário, que Calane resolve enveredar pelos trabalhos

ensaísticos, ofertando-nos obras de grande gozo, como Gil Vicente, Folgazão

Racista? Estudos de Linguística sobre o português em Moçambique com ênfase

na interferência das línguas bantu no português e do português no bantu; ou

adentrando-se na obra poética do colega de letras, O Estiloso Craveirinha,

impelindo-nos, nesse irrepreensível texto, a reter, na obra do poeta, a função

estético-nacionalista dos lexemas bantu. Diz Calane: «os lexemas bantu e os

neologismos luso-rongas em Craveirinha se, de certa maneira e como analisá-

mos, desestruturam aquilo que seria uma linguagem poética em língua portu-

guesa, criando anomalias, por outro lado e também conforme verificámos, por-

que as tais anomalias fazem parte da poesia, eles criam a poeticidade, acabando

por reestruturar uma nova linguagem poética marcando o seu estilo. No seu

todo, no seu conjunto acabam por criar uma estética que se liga, tal como o esti-

lo, à cultura, à sociologia e a uma ideologia nacionalista moçambicana.»

Pergunto-me, com algum espanto, nesta diversidade de linguagens a que o

Calane se cometeu ao longo de uma vida não menos curta, onde ancorar a

minha homenagem? De que Calane devo falar?

Do cidadão, claro, do homem simples que está para além dos títulos e cargos

que teve e têm. O Calane que eu conheço hoje não difere daquele que em Junho

de 1992, disse, em entrevista, a respeito da censura e quejandos, ao estudioso

Michel Laban: «Aqui, havia uma censura oficial, no tempo colonial; depois da

independência houve uma espécie de auto censura ideológica. Havia colegas

nossos que tinham medo de dizer as coisas, faziam uma autocensura, porque

estavam convencidos que eram uns grandes marxistas-leninistas! Em nome de

um progresso, em nome de uma futura nação – sempre o futuro -, liquidavam o

presente! Não sabiam que era pondo a verdade que se podia discutir sobre ela e

depois avançar-se para esse futuro que eles queriam. Mas isto, quando um Esta-

do começa a ser mais policial, começa porque há resistência a esse Estado, as

pessoas começam a ficar também um bocado extremistas, ou calam-se um

bocado e vão escrevendo, tal como no tempo colonial, ou então aderem e dão

panegíricos ao governo: «Viva isto e Viva aquilo». Sempre que houve necessi-

dade de fazer uma coisa que estava bem, não tive problema nenhum em dizer

que estava bem e em fazer a reportagem. Sempre que havia algo que estava

mal, também não me coibia de o dizer. Paguei um bocado, apanhei uns bofe-

tões! Tive vários problemas de despedimento, de autodespedimento, empurrado

para fora dos jornais!»

Este é o Calane que nós conhecemos na aurora da nossa existência literária.

Um Calane que entre outros escritores de nomeada, soube-nos transmitir que o

valor supremo de um patriota é o saber dissentir, dizer não. A crítica, fazendo

minhas as palavras de um teórico, é mais do que um direito: é um acto de

patriotismo, uma forma de patriotismo superior aos rituais familiares da adula-

ção nacional. Em abstracto, celebramos a liberdade de expressão como parte da

nossa liturgia patriótica, mas na prática poucos de nós fazemos da dissensão um

dever nacional.

Não iria terminar esta breve e tosca prelecção em volta desta figura que bem

mereceu o prémio carreira ora instituído, sem me ater aos imponderáveis poe-

mas que emergiram, muitos deles, nos anos 80, anos de verdadeira boémia nesta

cidade que se descaracteriza a cada dia que passa. Calane, devo dizer, preenchia

as nossas noites com poemas que só ele, naquele instante, como que apossado

por esse estado de hierofania, sabia evocar. Da lírica do Imponderável e outros

Poemas do Ser e do Estar, escolho a que se refere a sua cultura ronga:

Maputo

Terra de Maputsu pela história miscigenada/ suor nas estradas, nos prédios, nos

milheirais/ dos rongas sua língua e sua cultura ameaçada/ mas na escrita literá-

ria fortes vozes nacionais./ Na baía outrora farta desaguam três rios de fome/

em três húmidos vales, ricos e mal aproveitados/ aqui deram nome à capital que

já tinha seu nome / ka Mpfumu cidade de governantes e governados./ Com por-

tos construídos para servir Transvaal/ terra assaz disputada entre Inglaterra e

Portugal/Maputo é hoje província e urbe de estranha gente./Os da terra olham

os passos dos que vêm de fora/ os de fora os passos imprecisos da gente de ago-

ra/ gente tão adversa, tão de medo, tão maldizente.

Saravá, Calane.

E obrigado

Ungulani Ba Ka Khosa

Texto apresentado na Homenagem ao escritor Calane da Silva, 23 deMarço

2012

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Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa

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Victor Eustáquio (Lisboa — Portugal),

Mauro Brito, Japone Arijuane.

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Sebastião Marques Cardoso

João Melo

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Vera Duarte

Guido Bilharinho

Ungulani Ba Ka Khosa

COLUNISTA

Marcelo Soriano (Brasil)

FOTOGRAFIA

Arquivo — Kuphaluxa

PARCEIROS

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Revista Blecaute

Revista Culturas & Afectos Lusofonos

culturaseafectoslusofonos.blogspot.com

FICHA TÉCNICA

ILUSÃO Amosse Mucavele [email protected]

O espelho não reflecte os medos que encharcam o meu silêncio. Muito menos as alegrias que degolam o

meu sorriso.

As Vezes

O espelho mente a dizer verdades na inocência das incertezas que se amotinam na vista alegre das minhas

angústias.

A tocar flautas. Ao som do triste olhar da lupa

A atirar pedras. Para os olhos que se olham a procura da verdade das certezas pintadas a vermelho dos

semáforos.

Paragem! Miragem?

As 4 rodas roncam (a morte, a angústia, o silêncio, a memória) na abstracta estrada da ilusão, onde

F L O R E S

apodrecem no verão esburacado da objetiva da máquina fotográfica. Múltipla visão (ordem e caos, verda-

des e mentiras) de olhos bem abertos na fechadura da alma amedrontada pela doce aparição

do labirinto.

As flores atravessam a primavera (que há muito clama por elas) com sapatos de neve (cuidado o Verão é

eterno) chutam o silêncio que habita a escuridão. e lá lá e lá .

E lá do outro lado da margem, em pleno suar do inverno uma flor (esta) sem árvores nega de dar a voz as

pedras.

Insiste. Persiste em aprender a ética da memória das flores que se escondem na estação última do tempo (o

sono) com amarguras de alegrias e angústias. Deitadas no prato hasteado nas lágrimas da bandeira do

futuro.

E no presente? Vejo a minha face multiplicada por 2 no quadro dos olhos deste Deus da Carnificina

chamado espelho.

Os resultados das eleições já há muito eram conhecidos. E não estavam longe das previsões, confirmando as sondagens. E o presidente tomou posse ante os apoiantes eufóricos, muitos deles desejando de imediato recompensas do apoio de que eles prestaram ao recém-eleito presidente da autarquia. Acotovelam-se no partido de que presi-dente fazia parte, uns dizendo que eram mais membros que outros. Até uns chegavam a inter-pelar o presidente apenas para maldizer dos outros: ― Aqueles estão a aderir ao partido só para tirar partidos.

E diziam mais. Acusavam alguns que viram fula-nos metidos em conversa com sicranos do partido da posição ou oposição. Tristonho! Parece-me que custa ser dirigente numa autarquia como a nossa, a de Fim-de-Mundo. Pois, para além de satisfazer os interesses dos munícipes, deves recompensar com coisas imediatas aos seus par-tidários. E caso não o faças conspiram-te, até de te demitirem? Sei lá, respondam os que conhe-cem disciplina e indisciplina partidária. Sei, sim, que quando o genro de meu avô, Genró-nimo Comichão, entrou para a autarquia, a mes-ma tinha muitos problemas. Havia desordenadas construções de casas, construções sem as res-pectivas licenças. Até em valas de drenagens havia gigantes obras, edificadas ante o olhar e ouvir impávidos das predecessoras autoridades autárquicas. No resto, os vereadores do anterior governo, os que demoniacamente engendraram e permitiram a evolução dos supracitados problemas estavam no rente governo autárquico, não de pedra e cal, incumprindo as respectivas funções. Só o novo edil não os exonerou para uma boa imagem políti-ca. Pois, nos tempos que corriam soava bem para os doadores ouvir que um governo tem na sua

estrutura membros de partidos da Oposição ou da Posição. Entrementes, de imediato, o presidente quis atacar os problemas que encontrou, ordenar a destruição das infra-estruturas desordenadas e as edificadas nas antigas valas de drenagem e que em tempos de cheias os proprietários exigiam assistência humanitá-ria, curiosamente. De imediato, também, a ideia de presidente venceu adversão dos vereadores, encas-quetando-lhe: ― Não faça isso, sua excelência, se não perderás muitos votos nas próximas eleições.

O edil não desandou, a decisão manteve-se. E, logo que a decisão foi posta em voga pela mídia, as pes-

soas e outras visadas desataram a maldizer em surdi-na: queremos ver, vão morrer, isto é Fim-de-Mundo, que se coloquem a pau, vão avariar esses guindastes. No seguido, os guindastes, essas máquinas de levan-tamento de pesos, estavam no terreno a exercer o trabalho. Mas a dado momento, enquanto o trabalho se exercia, desatou a jorrar sangue através do chão da máquina. Vinha de onde? O combustível da máqui-na se convertera em sangue? Não. Soube-se instan-tes depois quando o proprietário do sangue, já enxuto, menos pesado que papagaio, não mais respirava. Estava morto, pés involuntariamente afundando os pedais. O presidente e os criminalistas entenderam aquilo como normal, de hemorragia externa se tratava. E foram a conduzir a máquina de destruição tantos outros maquinistas, num número de 20, tendo sido todos acometidos pelo igual azar: tremendas hemor-ragias. Enquanto isso, as pessoas visadas festejavam sem pompas, mas com circunstâncias. Foi, então, a partir deste momento que o edil decidiu criar um gabinete, que responderia prontamente aos problemas, o gabinete de assuntos tradicionais, depois passado para gabinete de Magia. Contratou os respectivos recursos humanos, quatros famigerados curandeiros, e orçamento, como ordenavam as intesti-nais regras autárquicas, aprovado pela respectiva Assembleia Municipal de Fim-de-Mundo (AMFM).

Croniconto

Dany Wambire - Beira [email protected]

O curandeiro contratado pelo meu edil

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Poesia A Ti

Fechemos as cloacas fétidas da cidade e deixemos inebriarem-se os ares de

recendidos perfumes estivais. É o preço da liberdade. Palmeiras ao sol e longas

longas praias de areia molhada a manterem desperto o fervilhar anímico das

paixões. A voz da líbido. Em toda a sua violência incontrolável.

No entanto sublimar é palavra d’ordem. Sublimar aqui e agora o desejo da

presença, da intimidade, do isolamento a dois. Mutilar a alma, sacrificar as

paixões em nome das convenções que nos fazem civilização e grandeza.

Sinto em mim, contudo, imperioso e dolente, o desejo da terra molhada, dos

corpos belos, o prazer físico da presença desejada, do frémito incontido ao roçar

leve da tua mão na minha.

Em nome da cultura e da civilização sacrifico-me. A minha coroa de glória quem

ma dará? E pergunto-me dilacerada se será civilização e grandeza ou mesquinhos

arremedos que a miopia colectiva endeusou.

Não ouso afrontá-los contudo.

E dentro de mim, censuradas e sedutoras, sucedem-se as imagens proibidas e as

sensações interditas.

Sublimar é palavra d’ordem. O amor e a paixão, a líbido e o prazer. No altar dos

valores supremos. Sublimar aqui e agora e manter estóica e estupidamente

secretos os diálogos que comigo mantenho contigo.

Convenho-me que a vida é feita de ironias.

Quereria contudo abraçar-te em meio à multidão, correr ao encontro de ti pelas

achadas imensas e juntos nos afogarmos nas ondas deste oceano que é nosso.

Amanhã o dia será de glória.

Morte desenraizada

Sergui após a marca das tuas botas

Sobre as folhas mortas em terra húmida

Ignorava qual a fera terrivel que perseguias

Tal era o empenho e a atenção dos teus gestos

E vi na tabanca queimada devastada

As mesmas botas calcar o sangue, o corpo

[ a morte inocente

De crianças da tua cor, do teu credo perdido

E soube que na terra em pranto pela tua

[afronta

Tu terias uma morte desenraizada.

EXERCÍCIO POÉTICO 5

José Carlos – Guiné Bissau

Vera Duarte– Cabo Verde

Vejo: pés rápidos deslizam

passos convencionados.

O rosto preso no exemplo.

Mãos inertes ao contato.

Reflito a posição exigida

e lamento o acontecimento:

dançar é esquecer o que vejo.

Ativar as mãos

deslizar o rosto

reinventar o som

em movimento.

João Melo - Angola

Redonda lâmpada acesa

a amarela luz alastrando-se

por sobre o zinco das cubatas

Os fartos cabelos

das mulembeiras

Rapaigas cartando água

no chafariz

Meninos de barriga inchada

brincando com bola ou

tampas de garrafa

Sol No Muceque

Pedro Du Bois - Brasil

DANÇAR

A primeira vez que ousei escrever um verso, era um dia en-

solarado de onde aos poucos era parido uma noite de estre-

las de ventres de amor e saudade. Aprendia que o coração

também sabe bater para além de estar vivo, para além do

seu derradeiro pulsar, para além da mais aparta-da existên-

cia que a mente humana ousou alguma vez maquinar. Nesse

exacto momento, senti que ele, o verso, me segredava ver-

dades que nem a própria verdade acre-ditou que se tratasse

dela, a verdade. Dizia ele, o verso, todo ensopado numa es-

trofe, uma estrofe como uma estrofe qualquer, por ser um

conjunto de verso, porém como uma estrofe única por ser

uma estrofe que falava poesia: «Se não me vês como uma

obra-prima, como arte, tocando Malangatana ou Picasso,

então não sou poesia. Não preciso que me empanturres de

rimas. Não preciso que me engravides de versos anapésti-

cos, trocái-cos ou iâmbicos. Não preciso que me engrosse

até ao último balanço, ou me dar das bebidas de versos de-

cassí-labos heróicos, ou sáficos. Bastam o ritmo, a conota-

ção, e os recursos estilísticos, que já sou poesia. Que deixe-

mos os Camões saborearem o silêncio das sua tumbas poéti-

cas na poeira de uma poesia que renasce das cinzas do seu

labiríntico eu. Não só Pessoa tem o direito de fin-gir que é

dor.»

EU E OS MEUS VERSOS LIVRES

C. C. Cossa – Maputo

Desabotoam acidez da mente Há que descorar as blusas sem licença Pouco amigas Sem dizer que cospem venenos fluidos

Articulados com os corpos E copos desses seios Em autentica conformidade com Maus Modos Amorfo lógicos

Idades

Mauro Brito - Maputo

“-Solidão, cuida de mim...”

Feito um Patinho Feio a sonhar

Mergulhado em agulhas de tristices

Ressentimentos, saudades, jogos de

espelhos, azar

“-Solidão, cuida de mim...”

Porque ainda por cima, para piorar

O Patinho Feio é poeta e quer voar!

Silas Correa Leite - Brasil

Patinho Feio

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Entrevista Fonte: www.saraivaconteudos.com.br

N o Timor Leste o Tetun é o idioma oficial. Diante de tantos dialectos existentes no

Timor, por que você escolheu a língua portuguesa? E de onde surgiu seu interesse

por literatura?

Luís Cardoso - Por escrever em língua portuguesa desde a infância. Há um episódio muito interes-sante. Eu vivia numa ilha chamada Taurus, uma ilha mais pequena que o Timor, onde havia um des-

terrado político português - por oposição ao regime de [António de Oliveira] Salazar. Ele resolveu

fazer uma padaria, o filho dele era meu colega. Meus pais não tinham dinheiro para comprar pão por-

que era um objecto de luxo. Os nativos, nós, os timorenses, comíamos batata-doce, mandioca... São

essas coisas que faziam parte do nosso pequeno-almoço. Quando havia as redacções, que se fazem

nas escolas primárias, eu fazia sempre duas versões: uma versão para mim e outra para ele. Ele que

era filho de português, e eu timorense. E como recompensa ele me dava um pão com manteiga. Foi

assim, digamos, que passei a tomar o gosto de escrever em português. Como eu tinha que escrever

duas versões, isso fez com que eu tivesse uma imaginação maior. Porque todas as vezes tinha que

escrever uma versão para mim e outra para ele. Deu-me o gosto desde a infância. E depois, com o

tempo, fui me habituando, gostando de escrever em língua portuguesa. E foi assim que se iniciou a

minha relação afectiva com a língua portuguesa, mas só tive a oportunidade de escrever bem quando finalmente fui para Portugal, em 1975.

Você mora em Portugal até hoje...

Luís Cardoso -Estou lá até hoje. Quando estive em Portugal, começou a invasão do Timor pelos

indonésios. Nunca mais pude regressar ao Timor. Então, comecei a fazer parte da frente diplomática

da chamada Resistência Timorense. Como falava alguma coisa de inglês, os meus colegas decidiram

utilizar-me nessas andanças todas. Quase todo o resto da minha vida foi, precisamente, a fazer diplo-

macia pela Resistência Timorense.

Embora rejeite o título, você é tido como o primeiro escritor timorense. Como é a relação

desses conflitos étnicos e políticos do Timor Leste com o seu trabalho?

Luís Cardoso -O primeiro livro que escrevi chama-se Crónicas de uma travessia. O personagem

principal não está nomeado, muito gente diz que é uma autobiografia, posso citar como sendo, mas ao mesmo tempo podia ser a vida de qualquer outro timorense. O Timor é uma manta de retalhos

de vários grupos etnolinguísticos. Quase podemos afirmar que atravessamos de nação em nação

por todo o Timor. Tentei dizer mais ou menos em Crónicas de uma travessia, para as pessoas

conhecerem um pouco do Timor real, e não somente aquele que conhecem pelos jornais, pelo dra-

ma da Resistência Timorense. Depois da minha estreia, procurei me adentrar no universo timorense

através do segundo livro, que se chama Olhos de coruja, olhos de gato bravo. Olhos, portanto, um

olhar interior sobre o povo timorense, sobre seus ritos e mitos. E, sobretudo, um olhar feminino.

Todo o universo timorense é dominado pelo olhar feminino. As mulheres que leram o livro disse-

ram que é um texto mágico, mulheres timorenses e mulheres feministas portuguesas. Isso me deu

orgulho porque achei que eu tinha ganhado um desafio. O terceiro livro chama-se A última morte

do coronel Santiago, um título que se relaciona com a América Latina. Depois da libertação do

Timor, regressei ao Timor para acompanhar o Prémio Nobel de Literatura, José Saramago. Foi muito interessante descobrir que por trás do Prémio Nobel, do escritor, existe outra pessoa que

muita gente desconhece.

Quem é essa pessoa?

Luís Cardoso -É um grande contador de histórias, uma pessoa afável. O grande escritor, o escritor

que todos nós conhecemos, é diferente daquele que conheci nessa viagem ao Timor. Ele foi encan-

tador em Timor, atencioso com as pessoas... A última morte do coronel Santiago tem esse nome

porque nessa ocasião, em que estive no Timor acompanhando José Saramago, um tio meu que foi

tenente da segunda linha do exército colonial português me perguntou: "Quando os portugueses

Luís Cardoso

Entre o ser e não ser o primeiro

Luís Cardoso nasceu no Timor-Leste. É autor de quatro romances: Crónica de uma travessia (1997), Olhos de coruja olhos de gato bra-vo (2002), A última morte do coronel Santiago (2003) e Requiem para o navegador solitário (2007), seu primeiro livro publicado no Brasil. O Timor-Leste, país marcado por sucessivas invasões e conflitos intensos, é, como diz o próprio autor, “uma colcha de retalhos etnolinguísticos”. Além disso, há neste país forte tradição da cultura oral. Por isso, Luís Cardoso é considerado o primeiro autor timorense a escrever em língua portuguesa. O autor, entreta nto, rejeita o rótulo. Homem de gestos simples e delicados, Luís Cardoso fala, nesta entrevista, de sua relação com a língua portu-guesa e com o Brasil. E conta um pouco sobre os desafios de criar a partir de uma voz feminina. Como fez com Catarina, a personagem principal de Requiem para o navegador solitário.

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Entrevista www.saraivaconteudos.com.br regressam ao Timor?" ―Bom, os portugueses não vão regressar ao Timor‖, eu respondi, ―neste

momento estão as Nações Unidas em Timor, que farão a transição e o Timor vai ficar independen-

te. Portanto, os portugueses já não vêm ao Timor. Até podem vir, mas integrados com as Nações

Unidas.‖ Ele ficou magoado com minha resposta. Passado um tempo, ele voltou a perguntar:

"Quando os portugueses regressam ao Timor?" E só aí eu descobri o motivo da pergunta recorrente de meu tio: "Se os portugueses regressassem neste momento ao Timor, o meu posto seria coronel e

eu receberia os retroactivos todos." A resposta dele me fez lembrar um livro do Gabriel Garcia

Márquez, Ninguém escreve ao Coronel, em que estão à espera do vencimento que nunca chegava.

Por isso decidi dar aquele título ao romance.

Qual é a importância da língua portuguesa para os timorenses?

Luís Cardoso -A língua portuguesa teve um papel muito importante durante o tempo da Resistên-

cia. Porque os documentos que nós recebíamos do interior do Timor, que a Resistência fazia circu-

lar, eram em língua portuguesa. O que significava que a língua oficial da Resistência era o portu-

guês. Só que a maioria dos falantes de português foi morta durante a ocupação. Diante disso,

depois da independência há a necessidade de fazer uma reintrodução da língua portuguesa em Timor. E, neste momento, há países que colaboram: professores portugueses, professores brasilei-

ros, angolanos, da Guiné... Portanto, a lusofonia. Mas isso levará algum tempo, porque as Nações

Unidas, mesmo estando em Timor, não vêem com bons olhos, acham que é uma utopia a reintrodu-

ção do português em Timor. Pensam que é mais fácil utilizar o inglês. Motivados por essa pressão

das Nações Unidas, muitas vezes parece que não temos vontade de acelerar o processo de reintro-

dução da língua portuguesa em Timor. Também por causa da instabilidade política em Timor, mui-

tas das questões fundamentais são relegadas para um segundo plano. Acredito que uma vez politi-

camente mais estável o Timor terá a possibilidade de fazer uma reintrodução mais rápida do portu-

guês.

No final dos anos 1980 você veio ao Brasil e se encontrou com o Lula. Actualmente você lança

Requiem para o navegador solitário (Língua Geral). Como é lançar seu livro no Brasil neste

contexto político?

Luís Cardoso -É uma alegria. É bom que um país como o Brasil possa ler o livro de um autor lá do

fim do mundo. Muitos brasileiros não sabem onde fica o Timor. Espero que os brasileiros gostem

do livro, sei que têm bom gosto. Espero que seja bem aceito. É uma honra para o Timor. Fico mui-

to satisfeito. Qualquer dia a minha filha, que hoje tem seis meses, quando crescer vai poder dizer:

"Meu pai foi editado no Brasil." É uma honra para mim também.

Catarina. Quem é essa personagem do livro Requiem para o navegador solitário? Seria

sua terra natal, o Timor?

Luís Cardoso -Ah Catarina... [pausa] Depois desse livro ganhei uma afeição especial por escrever a partir do universo feminino. Há escritores que fazem isso de uma forma magnífica,

como é o caso de António Lobo Antunes, cujas personagens femininas são excelentes. Eu tam-

bém decidi aventurar-me por isso. Acho que falo melhor assim, não me travestindo como

mulher, mas julgo que através de uma voz de mulher consigo expressar-me melhor. Decidi

contar uma história sobre a Segunda Guerra Mundial em Timor através de uma personagem

feminina muito forte, que é a Catarina. Timor sempre foi um ponto de encontro de várias pes-

soas, desde aventureiros, negociantes, desterrados políticos do regime de Salazar... E também

uma terra marcada pelas invasões. Durante a Segunda Guerra Mundial, Timor teve duas inva-

sões. A primeira pelos Aliados e a segunda invasão pelos japoneses, que durou mais tempo.

Sempre tive uma afeição muito grande pelos navegadores solitários, pelas pessoas solitárias, e

por todos aqueles, alguns mais desesperados que outros, que passavam por Timor: viajantes.

Há um viajante que passou por Timor, Alain Gerbault, um navegador solitário francês que fez uma viagem de circunavegação e escreveu um livro que se chama À la Porsuite du Soleil. E,

por uma terrível coincidência, ele morre em Timor - que nós, os timorenses, chamamos de "a

terra onde nasce o Sol". A partir desse fato desenvolvi toda a trama do livro Requiem para o

navegador solitário. É a história de Catarina, uma pessoa que vai a procura do amor e, ao mes-

mo tempo, tem reveses. São pessoas que perante reveses contornam as situações. E isso acon-

teceu com Timor, teve um revés tremendo em toda sua história e deu a volta por cima. E hoje

Timor é um país independente.

Você se considera um homem solitário?

Luís Cardoso - Acho que nós todos somos solitários em algum momento de nossas vidas. Ser solitário implica estarmos sós, estarmos com o mundo. Quando estamos solitários o que nos

vem à cabeça são os momentos que estamos com toda a gente, mas não estamos com ninguém.

O ato de estar solitário não é de desespero, mas o ato de estarmos também com os outros.

Quando você pensa no Timor, qual a primeira imagem que aparece?

Luís Cardoso -A infância. Fui muito feliz na infância em Timor. [silêncio]

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Colunistas Filosofonias

Marcelo Soriano — Brasil [email protected]

Comentário: Na Minha Agenda, Hoje, Escrevi

- Amanhecer: regar flores que amanheceram murchas. - Meia manhã: rabiscar excertos de amor. - Entardecer: mostrar a ela que flores e corações se regen-eram. ....................................................................

Mini crônica: Tríade a Porto Alegre

Em um sebo da Rua Riachuelo, deparei-me com minha obra favorita. - Que livro seria este? - Ora, a minha velha e mal tratada Ópera Existencial. ***** Dos meus fantasmas cotidianos, restaram os lenços, que, sequer, conseguem flutuar em assombros de vento. ***** Gavetas tristes, estas, que não nos devolvem os alfarrábios que ainda ontem as confiávamos.

....................................................................

Poema: Das Minhas Gavetas

("Nenhum", em 14/11/2010)

Entre mortos e feridos ricos e falidos lembrados e esquecidos achados e perdidos tarados e traídos sobramos ninguém

....................................................................

O passo certo

no caminho errado

Nelson Lineu - Maputo

É segunda-feira, Abílio toma banho, veste-se, passa

pelos olhos da mulher e dá volta para ela ver se o

cinto passou em todas casas, além do seu salário essa

era a sua grande dor de cabeça. Sai sem pôr nada na boca

porque não lhe cairia bem, não criaria efeito à causa. Como

ele podia beber naquele dia que se tem como sagrado? A

mulher não conseguia entender, não por causa da religião,

segundo ela, era por um motivo mais sério, é que no dia

seguinte tinha que ir ao emprego, e ele sabia muito bem, o

que é viver desempregado. Acordou cedo porque tinha que

passar na dona Felismina, a sopeira, dedicava-se a venda de

sopa, que servia para matar babalaza, termo usado para

significar ressaca.

Nesse país de desculpeiros, como ela dizia, por as descul-

pas serem mais graves que os próprios erros, e cá por nós

como temos o hábito de sofisticar as coisas ou fazer uma

analogia chamamos por inquérito. Hoje elas também ser-

vem para negócios, por isso a Felismina vê na sopa a for-ma

de se dar bem, e o mais difícil nessa pátria que ama mais do

que é amada, é igualmente estar a fazer um bem.

Agora encontra-se no seu trabalho, é um bibliotecário. Ver

os estudantes empenhados a cultivar a ciência, embora haja

tendência de afirmar que não somos produtivos, por esses

momentos, ele punha interrogações a esse dogmatismo,

sentia-se bem, quando os slogans, propagandas, discursos

não entravam na sua vida. De certeza os putos não seriam

como os actuais condutores do país. Pensava. Os que con-duzem

e fazem a regra desse trânsito mais parecem que se esforçam

para justificar do que para trabalharem propria-mente. Nunca

damos mão a palmatória, como se fossemos os únicos que

não sabem errar. Num dos miaquotidianos vivi que não

tínhamos que ter vergonha de não saber, o que tínhamos

recear é não ter a inquietação para tal. É assusta-dor como

ficamos confortáveis na sombra das desculpas, que acaba

sendo o mesmo que fugir a luz do conhecimento e o seu

consequente progresso. Todos dias testemunhando aquele

acto de amor aos livros, Abílio fazia-se crer que o cenário

actual tinha dias contados. Contados até ao minuto em que

um dos estudantes, sonecava claramente, ele o amparou

quando estava quase a cair. Amigavelmente cha-mou-lhe

por seiva da nação, o mesmo que juventude por aqui, disse-

lhe que ali não era local para dormir, sempre com sorriso no

rosto como as secretárias, ofereceu-lhe água para lavar cara,

se quisesse ele mesmo aquecia, e ain-da faria um café.

A seiva da nação foi respondendo aos berros, dizendo que

ele não estava a dormir, e o funcionariozinho não era nin-

guém para lhe dizer como estudar, porque cada um tinha

seus métodos.

[email protected]

O país das desculpas

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Guido Bilharinho - Brasil

Em Agosto de 2012

Maputo será a capital da Literatura

Festival Literário de Maputo

Saiba como participar em:

http://festivalliterariodemaputo.blogspot.com

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Em geral, tanto o leitor como o espectador querem usufruir de uma

estória, em livro, filme ou peça teatral. Não uma estória qualquer,

mas, a que se submeta, quanto à forma, à narração convencional e

comportada e, no que tange ao conteúdo, à linearidade e superficiali-

dade que a recheiem com aspectos espetaculosos, intrigantes, super-

ficiais.

Todavia, é possível fazer-se filme de ficção que não contenha nenhu-

ma dessas características.

É o que ocorre, por exemplo, com O Sangue de Um Poeta (Le Sang

d’Un Poète, França, 1930), de Jean Cocteau (1889-1963).

Seu tema concreto resume-se a ferimento acidental ocorrido na mão

de artista plástico.

Só isso, contudo, vincula a narrativa à realidade. A partir daí e do

próprio acidente desconecta-se a ação do contexto real para adentrar

o mundo maravilhoso e ilimitado da imaginação alógica e irracional.

Nada mais prende ou enleia a personagem numa teia ordenada de

relações, porque desde então está-se mergulhado no mundo do mito e

do imprevisível.

Não havendo restrição alguma ao poder do imaginário, tudo é possí-

vel, todas as opções são válidas, repousando o valor do filme na utili-

zação consciente e estética de recursos cinemáticos e picturais.

No caso, uns e outros apresentam-se articulados em alto nível de

concretização formal e temática, facetas que se conjugam e intera-

gem como síntese de projeto artístico-cinematográfico meditado e

ousadamente elaborado, em que se aplicam os preceitos surrealistas,

que não se conformam nem se atêm aos lindes da materialidade,

extrapolando suas fronteiras, conquistando e incorporando novas

dimensões estruturais, criando outro universo, no qual acontece jus-

tamente o que é impraticável ou impossível ocorrer no mundo real.

O projeto surrealista, no entanto, não tem como dispensar os elemen-

tos corpóreos e palpáveis que compõem a realidade.

Todo o insólito e extravagante que consti-

tui o conteúdo da proposição é, pois, cons-

truído com o material existente, comum e prosaico, no caso, a estátua,

a parede, o espelho, a porta, a fechadura, o teto, o desenho.

Desse condicionamento, no entanto, não se pode nem se consegue

fugir. A diferença, pois, é de se ter ou não liberdade, audácia e criati-

vidade em seu uso, para, além da matéria, seus limites e convenções,

abusar-se de suas propriedades e possibilidades.

O uso é sempre convencional, comportado e acanhado. O abuso é

liberação, criação, invenção, quebra dos grilhões impostos pela con-

cretude do real.

À evidência, que proposta desse jaez encerra riscos e exige, além de

destemor, fundamentação teórica e conhecimento da natureza e da

finalidade da arte, sem o que toda produção não passará de tentativa

canhestra de fazer o diferente quando não se estará fazendo mais do

que o despropositado.

Cocteau, em seu filme, domina e utiliza com conhecimento de causas

e efeitos os fatores condicionais (a materialidade das coisas) e incon-

dicionais (a imaterialidade do pensamento e a imponderabilidade da

imaginação) para fundamentar e realizar bela aventura artística, pro-

duto de razão, inventividade, arrojo e liberdade criativa. Um artista

sem medo de errar.

Conquanto o filme tecnicamente não seja mudo (com esparsas narra-

ções do próprio cineasta), é estruturado como se o fosse, com privile-

giamento e realce da postura e dos movimentos dos atores integrados

em décors artisticamente elaborados, compondo imagens estetica-

mente construídas, dispensada a dialogação.

(do livro O Filme Dramático Europeu, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2010-www.institutotriangulino.wordpress.com)

__________________________________

Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil, foi candidato ao Senado Federal e

editor da revista internacional de poesia Dimensão, sendo autor de livros de literatura, cinema e

história regional.

(Publicação autorizada pelo autor)

O SANGUE DE UM POETA A Transgressão do Real

Page 12: Revista Literatas nº 24   ano II

Ensaio

N ina Rizzi (São Paulo, 1983), é poeta, historiadora e arte-educadora. Vive em Fortaleza/ CE. Participa de saraus, festivais de arte, eventos literários e

palestra sobre poesia, literatura, género e artes, e é engajada em movimentos sociais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e o Movimento Arrastão. Publicou o livro de poesias tambores pra n’zinga

(Editora Multioco, 2012). Participa com poemas e

posfácio em Maria Clara: UniVersos femininos

(LivroPronto, 2010); Faz parte das Escritoras

Suicidas e de Dedo de moça - uma antologia das

escritoras suicidas (São Paulo: Terracota Editora,

2009). Tem textos, contos e poemas publicados

em diversas antologias, suplementos literários e

nas revistas VacaTussa (Recife/ Pe), La Papa

Ruchada (Argentina), Nova Águia (Portugal),

Revista Germina Literatura, Garganta da

Serpente, Zunai Revista de poesia & debates e

Portal Cronópios. Edita os blogues Ellenismos

D i á l o g o s c o m a A r t e H T T P : / /

ellenismos.blogspot.com], e seus textos literários

no quandos, [HTTP://ninaarizzi.blogspot.com].

abortei os hifens que me separam de você.

para o afundamento agarro comigo as plantas mortas

sem cuidado, sem espinhos.

não tenho créditos pra fazer uma ligação.

minha vista é enferrujada do container de lixo.

vão trocando seus títeres, se mudando títere. ao mesmo passo

à uma suave distância, pareço um sem-fim de verbetes

1. microfísica do confessionalismo

2. egocêntrismo, atrevimento e invenção

... [entrementes]

o claustro é tão real quanto a execução de kadafi

e os cem mil anônimos que morrem de fome a cada dia

o meu desejo de ser esfaqueada e lambida;

estas súplicas escondidas na mandíbula

têm a dimensão da tristeza dos que não se sabem

do desespero do homem que costura minha carne a

lágrimas

tudo o que viram nas máscaras do homem da tabacaria.

agora me olha de novo. o pequeno mundo.

olha, até que se esgote todo o amor

sim, um rasgo, o peso do mundo.

era noite de bafo quente.

a rigor, madrugada.

o calor batido fê-lo carne voar longe.

um estampido.

feito tiro, finalizando tudo:

o semáforo verdevermelho,

a rua de passantes apressados,

o coletivo cheio de curiosos.

uma batida quente e escura inundou o asfalto de sangue e carne fraca

e fê-lo findar.

era noite de bafo quente

o dia que experimentou ser

livre.

inundação

sepia clouds: crepúsculo e antiplatonismo na rua oliveira filho

Nina Rizzi

Page 13: Revista Literatas nº 24   ano II

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Sebastião Marques Cardoso (UERN-Brasil) Texto apresentado, com o título ―Dramas do Imaginário na literatura Bissau-Guineense‖, no XII Encontro Interna-

cional da ABRALIC (2011), Curitiba Brasil. Ensaio

R esumo: Iremos, neste artigo, abordar A última tragédia (1995), romance de Abdulai Sila,

escritor de Guiné-Bissau. Nosso maior interesse será refletir sobre duas formações

tensas do imaginário, que percorrem a narrativa do princípio ao fim. São elas: a

presença do sujeito local, negro e nativo, e a força estrangeira, representada pela

inscrição do homem branco e de suas instituições. Avaliaremos, assim, como essa

relação dicotômica se estabelece na narrativa e como o conflito decorrente dessa polarização contribui para um desenlace trágico, que evidencia a crueza da empresa colonizadora sobre uma

população de diferentes matizes étnicos. Ao final, indagaremos se a forma narrativa empregada, o

romance, foi, para o escritor, o melhor caminho para a exposição do trauma da colonização e até

que ponto a narrativa figura uma forma de testemunho válido e de signo para a ultrapassagem da

experiência vivida.

Palavras-chave: Literatura Comparada, Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-

Colonialismo, Abdulai Sila.

1 Introdução Faz-nos, a atmosfera narrativa de Abdulai Sila, tomar consciência de um mundo que pouco

conhecemos. A nova literatura do ocidente desde fins do século XIX habitou-nos a reconhecê-la

dentro do contexto da ―vivência de choque‖ (BENJAMIN, 1997), resultado da ascensão da técnica e

da informação em detrimento do declínio da experiência e da narração. Inóspita na época da

modernidade, essa experiência foi, por outro lado, reproduzida artificialmente por um conjunto

significativo de escritores que se seguiram ao longo dos tempos. Marcel Proust, por exemplo, pelo

mecanismo da mémoire involontaire traz à nossa consciência uma lembrança que não foi expressa ou que não foi empiricamente vivida. Seus personagens são densos psicologicamente, agem em

contraposição à ordem do mundo e ao tempo cronológico.

Ora, não vemos isso em Sila. Seus principais personagens não se apresentam com profundidade em

função de traumas vividos durante a colonização. Nesse sentido, o registro do romancista bissau-

guineense recupera a literatura da ―vivência de choque‖ no contexto africano, o que o insere numa

tradição literária do ocidente, mas essa inscrição não se dá em oposição à tecnização propriamente–

como uma espécie de contraposição entre campo/cidade–, e sim em relação à cadeia formatada do

imaginário técnico-místico do ocidente, num atrito entre culturas autóctones e assimétricas. Em

outras palavras, o conflito que se instaura no romance de Sila ocorre na difícil passagem entre a

representação do mundo dos ―pretos‖, imaginário imaginado da cultura africana, e do mundo dos

―brancos‖, imaginário imaginado do ocidente. Logo, a ―vivência de choque‖ em Silá opera nas

fronteiras entre o legado do ocidente, carregado de seus ―orientalismos‖ (SAID, 1990), e o espaço cultural do africano fraturado, carregado ainda de sua sabedoria simbólica acerca da realidade.

2 Fraturas da cultura e da recepção literária Duas forças centrífugas agem no romance: a experiência africana e a experiência ocidental. Esta

procura reduzir a primeira num evento doméstico; e a primeira entende o próprio conflito cultural

como decorrente da perda inevitável, em seu meio, da proteção divina. A personagem Ndani é, em

face disso, extremamente emblemática. Marcada por sua condição cultural e social, ela age com

cordialidade diante de situações de violência simbólica, buscando compulsoriamente um envolvimento maior com a cultura dos colonizadores. Através de conselhos da madrasta, uma das

esposas de seu pai, que conviveu com brancos, Ndani procura assimilar o imaginário dos brancos

que viviam na Guiné Portuguesa (hoje, Guiné-Bissau): /.../ ela começara a ver as coisas de uma maneira diferente, qualquer coisa

estranha instigava-a a rejeitar a vida que levava na sua tabanca e movia-a impetuosamente à procura do mundo dos brancos que, disso entretanto também se convencera, era muito diferente daquele que tinham dito ser o seu. (SILA, 2006, p. 22).

O mundo imaginado do imaginário dos brancos é o mundo representado pelos portugueses. Estes,

durante o processo de colonização, foram gradativamente ocupando os espaços da vida social na

cidade, constituindo-se numa comunidade fechada dentro de um território aberto, rico pelas várias

etnias presentes, com padrões culturais seculares e, em muitos casos, divergentes à cultura do ocidente.

Apesar de propor uma problemática de cunho mais social do que estritamente cultural, podemos

encontrar, na nascente literatura bissau-guineense, alguma correspondência com a literatura

brasileira. Os sertanejos de Euclides da Cunha, os mestiços de Lima Barreto e mesmo os miseráveis

de Graciliano Ramos e os marginais de João Antonio trazem choques culturais intensos. Em Sila,

podemos perceber esses choques, apesar de um cenário bem diverso. Em Euclides da Cunha, o

fundamentalismo religioso– cultura local– é contraposição ao racionalismo– cultura da metrópole–,

sendo o trágico a completa liquidação do pensamento local perpetrado pela República; em Lima

Barreto, a cultura de elite, diga-se ―branca‖, é elemento de pressão sobre indivíduos mestiços ou de

origem africana, tendo desenlaces moralmente condenáveis e trágicos; em Graciliano Ramos, a

pressão social é tão contundente que somos levados a pensar que existe uma cultura que caracteriza

sujeitos analfabetos e miseráveis– os retirantes– paralelamente à cultura letrada, bem alimentada, suplantada pelo latifúndio, que se beneficia do sistema instituído; e, por fim, João Antonio, cuja

literatura aponta para um gueto cultural que, para sobreviver, adaptou formas culturais impostas,

criando mecanismo de ação e um subsistema de identificação social. O que torna os brasileiros

próximos de Sila é, para além da dimensão trágica dos principais personagens, uma certa atitude

―anti-heróica‖ (CARDOSO, 2010) frente à vida.

No romance de Abdulai Sila, há dois enredos que correm em paralelo. O primeiro deles, que dá

início ao livro, ocorre com Ndani, personagem já citada. O segundo, com o episódio do Régulo.

Esses enredos estão unidos através da presença do Professor, que participa tanto do enredo do

Régulo quanto do enredo de Ndani. Em síntese, percebemos que, antes de um romance, a narrativa A

última tragédia, por recuperar um mosaico histórico da vida social, lembra uma crônica sobre a

colonização portuguesa em Guiné-Bissau. O livro pode ser até comparado com Memórias de um sargento de milícias, romance de Manuel Antonio de Almeida. Contudo, num confronto com a obra

do brasileiro, inexiste o caráter despojado da escrita e, também, a variedade de cenários da vida

social. A crônica de Sila é séria, comprometida com o desejo de construir uma literatura de língua

portuguesa da áfrica ocidental e de (re)desenhar o mapa histórico do período colonial na tentativa de

a f i r m a r a

identidade dos

bissau-guineenses.

Em contrapartida,

o caráter engajado do livro acaba

restr ingindo a

potencialidade do

mesmo em muitos

aspectos. Toda a

vida social e

cultural dos bissau

-guineenses é

s u b va l o r i z a d a .

Sabemos que nas

ruas de Bissau, a

variedade de etnias e de falas é

abundante, que

todo o povo

c a r r e g a u m a

e s p i r i t ua l i da d e

pujante, que as

artes populares

(música, dança,

festas e costumes

diversos) são um

dado orgânico, vivo e fervilhante

na vida dos

indivíduos. Na

cidade de Bissau

ou mesmo em

outros sítios do

país a mescla

c u l t u r a l é

f l a g r a n t e .

Entretanto, essas

marcas, em função

da intenção ideológica do autor, foram solapadas no romance. Sila limpa toda natureza espontânea dos bissau-guineenses para se concentrar no ―choque‖ entre ―pretos‖ e ―brancos‖.

Com Sila, podemos dizer que existe uma literatura moderna bissau-guineense? O romance de

Sila está inscrito no contexto das literaturas pós-coloniais, dialogando com Pepetela, Luandino

Vieira, Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Lobo Antunes (exceção portuguesa) e outros.

Todos esses autores tomam a literatura como arma contra o discurso da colonização,

reapropriam-se da língua portuguesa, projetando a cultura e as identidades africanas a partir de

dentro, ou seja, a partir do interior da própria cultura e da centralidade que as define. Com isso,

Sila pode ser lido numa ―plataforma ibero-afro-americana‖ em vias de ascensão: Uma comunidade ibero-afro-americana assim imaginada em termos de futuro /.../ não se voltaria para os símbolos do passado, mas permitiria reimaginar a nação, cada uma das nações, numa relação mais estreita e aberta. (JUNIOR ABDALA, 2002, p. 74).

Poderá haver, nessa comunidade, um público cada vez mais crescente de leitores e críticos

interessados.

Se, por um lado, podemos imaginar uma recepção de Sila por brasileiros, portugueses e

africanos de outras nacionalidades, fica difícil pensarmos a recepção da literatura do autor em

sua própria nação. Faltam, em Guiné-bissau, instituições nacionais que possam garantir o

acesso da literatura à comunidade, como bibliotecas bem aparelhadas, uma circulação social de

livros mais intensa por meio de editoras e livrarias, instituições superiores de relevância na

produção de conhecimento crítico e acadêmico nas áreas humanas. Falta, sobretudo, uma

política agressiva do Estado para promover e difundir a nascente literatura moderna nacional. A vida cultural do país, em face das conturbações políticas e sociais, fica a cargo, muitas

vezes, de órgãos internacionais e de embaixadas de nações amigas.

Sem o público leitor de sua própria terra, essa literatura, desterritorializada, pois sua recepção

ocorre num contexto mais amplo, deixa de exercer sua força transformadora na consciência

dos leitores autóctones. Ora, a ausência da comunicação convertida em temas e imagens de

uma cultura que se reconhece nos faz rejeitar a idéia de que há, de fato, uma literatura

estritamente nacional. Esse fenômeno pode ser comparado à literatura produzida no Brasil do

período colonial, considerada por Antonio Candido– crítico brasileiro– como ―manifestações

literárias‖ (CANDIDO, 1997). Em outras palavras, notamos que há um conjunto de escritores

empenhados na Guiné-Bissau, sugerindo novos temas e imagens literárias, mas essa ―nova

linguagem‖ auferida ainda não foi absorvida pelos leitores a ponto de produzir um ―efeito‖ crítico de reconhecível impacto na vida cultural e literária do país.

3 Notas sobre a representação romanesca O que surpreende na leitura que fazemos de Sila é, na verdade, o ponto de vista adotado pelo

autor, ao pôr-se no mesmo foco do narrador. Sila, além de inaugurar a forma romanesca no

ainda recém liberto país natal, conta a história sob um olhar diverso e complexo. Sua visão

acerca do evento da colonização, embora parta da ótica dos colonizados, recupera sombras do

pensamento dos ―residentes‖ (burocratas, funcionários públicos, religiosos cristãos e militares

engajados na campanha colonial). Seu ponto de vista se estabelece num entre-lugar do discurso, num cruzamento de culturas onde a negociação é cara e arriscada. Logo, as

inervações do romance expressarão igualmente essa fronteira que interpreta a história da

colonização.

Isso posto, quando percorremos as linhas do livro, percebemos que o narrador nos recorda de

Cartografia do Imaginário: a voz de Abdulai Sila

entre Colonizadores e Djambakus

Page 14: Revista Literatas nº 24   ano II

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Ensaio Conto uma série de outras tragédias anteriores, menores mas não menos graves, até se concentrar na tragédia

de Ndani. A última tragédia? Na seqüência de páginas do romance, há uma espécie de potenciação da

tragédia. Por outro lado, a narrativa, paralelamente, parece desejar um fim adverso, propondo cortar o

fluxo da violência da colonização. Assim, uma clareira utópica é paulatinamente aberta, indicando, ao

final, um ―fim‖ de hostilidades sem hostilidades. Nisso, o narrador de Sila expressa sem disfarces sua postura rizomática ou anti-heróica em relação ao evento da colonização portuguesa. Vejamos, agora,

as principais personagens destacadas por esse narrador.

3.1 Nanki: mestiço pelo status quo Mesmo não fixando uma data precisa, A última tragédia abrange um momento histórico do tempo da

ditadura de António Salazar (1889-1970). Como Presidente do Conselho, Salazar governou Portugal

de 1933 a 1968, sem nunca ter reconhecido os movimentos independentistas dos povos africanos.

Nesse período, a Guiné Portuguesa era considerada Província de Portugal, organizada,

hierarquicamente, através do Governador da Província, do Administrador e do Chefe de Posto. Essa

administração política da colônia procurou manter o poder tradicional dos ―Régulos‖. Inicialmente,

estes, juntamente com os Chefes, ficaram com a responsabilidade pela cobrança de impostos e tinham

imunidade judiciária: ―Conforme a Carta Orgânica de 1917, tanto os régulos como os chefes de

povoação, passaram a ser definidos como ―delegados‖ dos administradores‖. (HERNANDEZ, 2008, p.

537). Entretanto, a cobrança de impostos, bem como a maneira de cobrá-los, foi uma das causas mais comuns de revoltas populares. (Cf. PELISSIER, 1987, p. 167).

No romance de Sila, o Chefe do Posto cobra os impostos e o Régulo, para um melhor desempenho na

comunidade, é auxiliado por três conselheiros. Mesmo assim, essa divisão de poder é problemática do

início ao fim da narrativa. Quanto à economia, o romance indica que o cultivo de amendoim

(“mancarra”) e a extração de óleo de dendê (“coconote”) eram fontes importantes de renda para a

população. Além desses itens, a borracha tinha um grande peso na economia, sendo, juntamente com o amendoim, exportados para Portugal. Apesar disso, a situação econômica de Guiné-

Bissau, no período colonial, era precária e bastante rudimentar.

A posição do Régulo na hierarquia de poder colonial era extremamente delicada, pois sua

imagem, soldada à comunidade, devia expressar uma ―naturalidade‖ na manutenção do status

quo social sob jurisdição do poder colonial. No romance de Sila, essa norma é rompida a

partir do momento em que o Chefe do Posto, por arrogância, tenta desmoralizar a posição de

Bsum Nanki, Régulo de Quinhamel. O conflito entre os dois, ou seja, entre Nanki e Cabrita, o Chefe do Posto, terá, como pano de fundo, o contato mais próximo entre o poder

administrativo da colonização, na figura de Cabrita, e da população, na figura do Nanki.

Para salvar sua condição de Régulo, Nanki se sente obrigado a associar-se à administração

colonial, e para manter-se no poder vê também a necessidade em adotar estratégias que, na comunidade, são tidas como características de ―brancos‖:

O branco pensa em tudo, mas a cabeça do branco não é mais grande que a cabeça do preto. Têm a mesma coisa lá dentro, foi o mesmo Deus que fez. O branco

trabalha pouco, mas pensa muito; o preto trabalha muito, mas pensa pouco. Tudo ao contrário. (SILA, 2006, p. 69).

E, mais adiante: ―No dia em que os pretos começarem todos a pensar, os brancos vão pôr-se

fora da terra, disso estava certo‖. (SILA, 2006, p. 82). Para o Régulo, a arrogância do poder

colonial só poderá ser vencida por meio do pensamento, através de um plano que possa

devolver aos ―pretos‖ a soberania tomada sem recorrer à guerra ou à expulsão dos ―brancos‖ já instalados no seu território. Nesse sentido, cremos que Nanki é mestiço, na acepção de

Serge Gruzinski (2001), na medida em que, desejando manter seu status quo, mostra-se

portador de uma cultura compósita.

3.2 Ndani: mestiça por coerção

Deslocada dentro de seu território próximo, de Biombo para Bissau, a personagem percebe

uma cidade dividida, onde brancos moram em locais mais prósperos, e que se pode encontrar

negros a viver nas praças, comportando-se como os ―civilizados‖. Mas o que levou a personagem à procura de um mundo diferente não foi o flagelo da fome ou a ânsia em ter

uma vida de ―branco‖ simplesmente. A personagem, sem o abrigo da tabanca, encontra-se na

margem tanto da cultura de sua comunidade quanto da cultura do colonizador. O exílio da

personagem em seu próprio meio decorre de uma profecia dita por um dos líderes religiosos do local:

Toda a gente acreditara numa profecia de um maldito Djambakus [Feiticeiro] que afirmara ser ela portadora de um mau espírito, da alma de um defunto mau, e lhe

vaticinara consequentemente uma existência turbulenta, uma vida de desgraça, de tragédias até o fim... (SILA, 2006, p. 27).

Daí o exílio em seu próprio território, a personagem se sentia rejeitada, e buscava então outro

mundo, um mudo que a acolhesse, o mundo para sua vingança, o mundo dos brancos. Nesse

caso, Ndani é mestiça por coerção.

No convívio do lar de uma família portuguesa em Bissau, a personagem percebe, de fato, a diferença cultural. Os negros bissau-guineenses são chamados de ―indígenas‖, a família se

mostra injustiçada pelos esforços que têm sido feitos e demonstra um postura claramente

anticomunista no discurso: Até nas florestas há agora agentes do comunismo! Mas que desgraça, meu Deus! Como é que vocês conseguem ser tão ingratos? Como? Sim, isso não é outra coisa senão ingratidão. Ingratidão e estupidez! A gente vem para este inferno para civilizar-vos e vocês a criarem confusão... (SILA, 2006, p. 31).

A personagem passa a ter outro nome, um nome imposto pela família de colonizadores.

Agora Ndani, jovem bissau-guineense de 15 anos, é, também, Maria Daniela. Daniela tinha como patrões Dona Linda e José Leitão, ambos vindos para Bissau para fazer fortuna,

embora tivessem antes preferido Angola e Moçambique.

No contexto da colônia, a esposa, Dona Linda, queria ver o marido como Administrador. Por outro lado, traz uma mística cristã profunda, a crença de que os europeus chegaram à África

para salvar os africanos: O Padre disse que dantes esta salvação consistia em levar os negros para longe, lá para as Américas, onde não teriam nem as máscaras, nem as estátuas que veneravam, e muito menos as árvores sagradas... Mas então viu-se que este não era

o melhor método e então tivemos nós os europeus que vir para a África ensinar a religião cristã e salvar as vossas almas. (SILA, 2006, pp. 40-41).

Com base nisso, decide engajar-se numa campanha missionária a começar pela empregada– Ndani–, exigindo que fosse junto à igreja. Ao receber um crucifixo,

lembra-se do colar perdido, que a protegia dos espíritos maus. Uma maldição é

trocada por outra, o crucifixo agora é justificativa atávica para a dominação

colonial.

3.3 Professor: mestiço por formação O professor, outra personagem emblemática do livro, traz, do passado, o estigma

da violência colonial. Mestiço de formação, ele passou seis anos com padres

italianos para, depois de uma conjuntura envolvendo Dona Linda e o Régulo, tomar o posto de professor na recém inaugurada escola de Quinhamel. Mais

esclarecido, o Professor conhece tanto a realidade da vida cultural dos ―brancos‖ e

―mestiços‖ (por condição) quanto a dos ―assimilados‖ e ―indígenas‖. A posição do Professor é a de um sujeito híbrido, pois seu cargo, além de exigir conhecimentos

humanísticos ocidentais, o que o distancia de sua tradição, é visto com

desconfiança pela comunidade: Era preto, o que não agradou a muita gente. Um professor

preto? Por que não um branco, como nas outras terras? O

branco sabe mais, pode ensinar mais. Agora, o que é que um professor preto sabe? (SILA, 2006, p. 103).

Sobre o imaginário imaginado acerca do próprio habitante negro, a comunidade

não crê na força de seu pensamento. A tarefa do Professor, no possível plano do

Régulo, é fazer ver que ―preto‖ pensa tanto quanto um ―branco‖.

Conclusão Como vimos, Sila traz ao romance a experiência de choque, ou seja, o momento

em que a consciência do indivíduo autóctone se depara diante de um outro, forasteiro e fechado no próprio continente cultural. A última tragédia relata a

experiência da colonização na sua tipicidade extrema. Como num conto de Primo

Levi, mas sem os exageros do recurso ao fantástico, o autor narra o trauma da colonização através de uma forma romanesca essencial, sob a perspectiva dos que

sofreram, daqueles que tiveram o curso de suas vidas retraçado compulsoriamente.

A história– enredo do livro e da colonização–, como explica o próprio narrador,

poderá ter outras versões/traduções e até desfechos diferentes, mas deseja, sobretudo, ser testemunho válido de uma condição da experiência bissau-guineense

no tempo da colonização tardia. Enfim, se fôssemos apontar um dos elementos da

narrativa de Sila como signo do romance ou da vida nele representada, nós elegeríamos a figura do narrador. É o narrador, e não a existência precária dos

personagens, que exerce uma função desestabilizadora na narrativa e no

imaginário. Ele é problemático na acepção de Georges Lukács (2000), porque busca, aqui e ali, compreender-se na medida em que procura compreender a

história (―passada‖) que recupera, e que não quer deixar jamais esquecer.

Referências bibliográficas: BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. São Paulo:

Brasiliense, 1997. CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira. 8. ed. Belo Horizonte- Rio de Janeiro:

Editora Itatiaia Limitada, 1997.

CARDOSO, S. M. Oswald de Andrade: anti-heroísmo, literatura e crítica. Curitiba: Editora

CRV, 2010.

GRUZINSKI, S. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

HERNANDEZ, L. L. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. 2. ed. São

Paulo: Selo Negro, 2008.

JUNIOR ABDALA, B. Fronteiras múltiplas, identidades plurais. Um ensaio sobre

mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC, 2002.

LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.

PELISSIER, R. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia (1841-1936). Lisboa: Estampa, 1987.

SAID, E. W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia

das Letras, 1990.

SILA, A. A última tragédia. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

Sebastião Marques Cardoso. Autor de “Oswald de Andrade: anti-heroísmo, literatura e crítica” (Curitiba: CRV, 2010) e “João do Rio: espaço, técnica e imaginação literária” (Curitiba: CRV, 2011), é professor universitário, pesquisador e crítico literário. Atualmente, trabalha como docente permanente do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

E-mail: [email protected]

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3ª Feira Literária de Boqueirão De 21 a 25 de Março de 2012

Programa de Palestras

A Fronteira entre o Vazio e o Nada

Fífias

Conto

(…) Não é da verdade que se vive

neste mundo, não apelo mentiras.

Entre dúvidas e incertezas só me

sobravam perguntas. Vence-se antes na ideia de lutar? Difícil é vencer a nós

mesmos. A maior luta acontece dentro de nós. Quanto mais ganhamo-nos,

mais percebemos que nunca fomos donos de nós próprios.

A imaginação transcende as metas invisíveis do pensamento. Imaginava-me

num lugar paradisíaco onde as flores eram borboletas voando em forma de luz

e cor. Uma cascata azulada de águas límpidas de purificar qualquer alma. O

sol sem a quentura dos seus raios, brilhando e iluminando. Despertei. O bairro

estava tão escuro que nem a mim próprio conseguia ver. Lembrei-me que a

luz eléctrica era uma realidade de pouca gente por ali. Naquela mistura desa-

gradável entre a escuridão e a incansável canção dos grilos, soube que temia a

escuridão, não propriamente a escuridão, mas as forças ocultas que poderiam

existir nela. Procurei refúgio na iluminação que a lâmpada da casa do Muenhê

Alimo gerava. Sentei-me.

Instantes depois, vi Quito e a sua namorada andando de forma tortuosa. Volta-

vam da discoteca. Parece que a lição da morte da moça que fora envenenada

na penúltima vez que foram a discoteca, não fizera efeito algum.

- Será que ele perdeu o domínio dos pés? – Suspeitei. Mas ele estava tão

embriagado que confundia o bairro com o céu. Julgava-se no além, entre

nuvens e estrelas. Talvez, o álcool inventara um outro mundo nos olhos dele.

A sua namorada incansavelmente sustentava-o em

veias e forças, apoiava-o nos passos mal andados.

Aquele gesto fez-me entender que o amor suporta

tudo. O amor ama até nos defeitos, ajuda, o amor vence as curvas da vida.

Depois de entrarem no quintal ouvi uma voz ecoando de tal forma que dava a per-

ceber que boa coisa não era. Era o Muenhê Alimo ditando o quão importante era

não chegar tarde em sua casa, e, pior ainda com uma mulher que mal apresentara

a sua família. Ele recordava as regras da sua casa ao seu sobrinho: Quito, estava

em total silêncio, se respondia era apenas para ele mesmo.

- A noite tem donos – Repetia o Muenhê Alimo: Nas noites sacrificam-se almas e

bens. Não procurem viver atraindo à morte. Vocês jovens de agora confundem

muito o conceito ―diversão‖ com fumar; beber e se prostituir. Mas eu não quero

condenar a ninguém porquê o mais importante é sermos felizes naquilo que faze-

mos. É pena que há gente que é feliz de forma errada. – Dizia destacando todo o

olhar ao seu sobrinho. O frio da noite nem sequer impedia as falas dele. Queria

que aquele fosse um momento último para falar daquele assunto.

- A felicidade não se busca nos lugares, ela está dentro de cada um de nós. –

Olhando no seu sobrinho continuamente, deixou sobrar uma tristeza e pena dele.

Porquê as pessoas se enganam a si próprias? – Pensou. Infelizmente o errado

tornou-se opcional, e o juízo dos actos, cada um faz por si, desde que não envolva

segundos e terceiros!

- Porquê é que se matam antes de morrerem? (…)

Izidine Jaime - Maputo

[email protected]