Download - Revista Literatas nº 24 ano II
Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 30 de Março de 2012 | Ano II | N°24 | E-mail: [email protected]
Wole Soyinka homenageado na 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura
Luís Cardoso (considerado o primeiro autor timorense a
escrever em língua portuguesa ) entre pergunta e resposta
Cartografia do
Imaginário: a voz
de Abdulai Sila entre
Colonizadores e
Djambakus.
Por Sebastião Cardoso
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Literatura Africana em Festa no Brasil
Por incrível que pareça, a primeira Bienal do Livro e de Leitura do Brasil vai homenagear a Lite-ratura Africana, particularmente o primeiro escritor africano a receber o Prémio Nobel (1986), o Nigeriano Wole Sonyika.
Estará acompanhado por escritores de Moçambique (Paulina Chiziane), Angola (Ondjaki), Cabo Verde (Germano de Almeida), Guiné-Bissau (Abdulai Sila), Togo (Kangni Alem), e São Tomé e Príncipe (Conceição Lima).
É mesmo, para dizer que a Literatura Africana estará em festa no país de Jorge Amado. Isenta das guerrilhas linguísti-cas (Francofonia, Lusofonia, Anglo -saxónia), sendo estas, as mesmas que nos tornam muito distantes uns dos outros.
A título de Exemplo: quais são os nomes mais representativos da literatura zimbabweana?
Alguém de nós sabe que o Prémio Nobel de 1991, 2003, pertence aos nossos vizinhos, os escritores sul-africanos Nadine Gordimer, e J.M.Cotzee?
Ao prosseguir na esteira deste encontro entre irmãos que pouco se conhecem, outros que não se conhecem, o mesmo encontro que não se realiza na terra que os viu nascer, e que os vê crescer. É triste ser um dos olheiros desta realidade irreal que nos circunda, logo a priori vêem a memória as delícias das gloriosas décadas 70 e 80; cá em Moçambique o Instituto Nacional do Livro e do Disco (INLD) publicava uma colecção denominada Vozes de África onde desfilavam eternos nomes da literatura africana, sem cair na ambiguidade das guerrilhas linguísticas, como Sembene Ousmane (Senegal), B.B.Dadié (Costa do Marfim), Peter Abrahams (África do Sul), Ngugi Wa Thiong’o (Uganda), Achinua Achebe (Nigéria), só para citar alguns. E, é a despeito disto que pergunto:
- O que é que as pífias da SADC, CPLP, CEDEAO, UA, fazem para o fortalecimento do diálogo intercultural?
Desde já, aproveitar o espaço para parabenizar ao Brasil pelo carinho e atenção para com a literatura africana, e para rogar que este encontro seja um despertar de consciências adormecidas das grandes editoras deste país, que cingem suas publicações à favor de meia dúzia de nomes, e as pequenas editoras para que possam ver uma oportunidade de negócio, ao publicar escritores africanos uma vez que tem sido base de estudos nos cursos de literatura nas universida-des e dos povos africanos.
O editor da infindável revista Dimensão, o homem das artes e letras, Guido Bilharinho relata-nos em primeira mão a beleza do “projecto artístico-cinematográfico” da década 30, que ao seu ver é uma pura “transgressão do Real” reflecti-da no filme “O Sangue do Poeta”.
Do Brasil voltamos ao nosso Africo epicentro, na canoa do Sebastião Marques a remar na “ Cartografia do Imaginário” da Última Tragédia do escritor guineense Abdulai Sila.
De volta à casa Lucílio Manjate e Sangare Okapi deixaram na noite de ontem o seu terceiro testemunho, uma prova de que eles nunca estiveram e não estão de passagem neste território da palavra; a literatura moçambicana ganha duas grandes obras, que desde já tomam de assalto o seu prestigioso espólio. Será que existe?
E por último vamos a Timor-Leste ao encontro do escritor Luís Cardoso o considerado primeiro autor timorense a escrever em língua portuguesa. O que é que ele diz ao Saraivaconteudos? Será que ele aceita esta catalogação?
Boa leitura
Amosse Mucavele
Editori@l
Destaque S E X T A - F E I R A , 3 0 D E M A R Ç O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 3
Escritores africanos principais convidados
1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura
Considerado a principal voz da literatura africana contemporânea, o
dramaturgo, poeta, romancista e crítico nigeriano Wole Soyinka
será o grande homenageado da 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura. Primeiro negro a
receber o Prémio Nobel de Literatura, em 1986, Soyinka vai à Brasil de visita inédita para
lançar The Lion and the Jewel, seu primeiro texto teatral, publicado originalmente em
1963. Além de Soyinka, outros dentre os mais importantes nomes do universo literário do
continente africano virão participar do seminário ―A Literatura Africana Contemporânea‖.
Durante dois dias, eles em Brasília, num encontro que se configura histórico.
Além de Soyinka, estão confirmadas as
participações de Kangni Alem, premiado
autor togolês, Conceição Lima, considera-
da a maior poetisa viva de São Tomé e
Príncipe; Paulina Chiziane, de Moçambi-
que, com uma obra a favor dos direitos
humanos; Germano Almeida, cuja obra
desmascara a hipocrisia da vida pública e
privada da sociedade de Cabo Verde;
Abdulai Silá, autor do que é considerado o
primeiro romance da Guiné-bissau; e o
angolano Ondjaki, radicado no Brasil e
vencedor do Prémio Jabuti na categoria
Juvenil com o romance Avó Dezanove e o
Segredo do Soviético.
A participação de autores do continente
africano tem início no dia de abertura da
Bienal, com a homenagem a Wole Soyin-
ka, no Museu Nacional. O autor fará uma palestra às 20h30. E no estande da editora Gera-
ção Editorial estará a ser lançado o The Lion and the Jewel.
O seminário ―A Literatura Africana Contemporânea‖ acontece nos dias 15, às 18h, e 16 e
17 de Abril, das 10h às 12h30, no Auditório Nelson Rodrigues, do pavilhão montado para
o evento na Esplanada dos Ministérios. No dia 15, estarão na mesa de debate Conceição
Lima e Germano Almeida, com mediação de Regina Vecchia, professora de Literatura
Africanas de Língua Portuguesa da USP. E no último dia do seminário, participações da
moçambicana Paulina Chiziane, do angolano Ondjaki, Abdulai Sila, da Guiné-bissau, com
a mediação de Eduardo Assis Duarte, professor da Faculdade de Letras da UFMG.
PROGRAMAÇÃO
SÁBADO, DIA 14 20h30 – Homenagem e palestra
com Wole Soyinka – Museu
Nacional
DOMINGO, DIA 15
18h – Abertura do Seminário A
Literatura Africana Contemporâ-nea – Auditório. Nelson Rodrigues – Com Kangni Alem (República do Togo). Mediação: Zulu
Araújo (DF)
SEGUNDA, DIA 16
10h30 – Seminário A Literatura Africana Contemporânea – Auditório. Nelson Rodrigues
Com Conceição Lima (São Tomé e Príncipe) e Germano Almeida (Cabo Verde). Mediação: Reja-ne Vecchia (SP)
TERÇA, DIA 17 10h30 – Seminário A Literatura Africana Contemporânea – Auditório. Nelson Rodrigues
Com Paulina Chiziane (Moçambique), Ondjaki (Angola) e Abdulai Sila (Guiné-Bissau). Media-
ção: Eduardo Assis Duarte (MG)
A coordenação literária é do jornalista e escritor Luiz Fernando Emediato, coordenação geral de
Nilson Rodrigues e realização da Secretaria de Cultura e da Secretaria de Educação do Governo
do Distrito Federal, em parceria com o ITS – Instituto Terceiro Setor. O projecto é inserido no
Plano do Livro e da Leitura do Distrito Federal – Brasília Capital da Leitura. O evento acontecerá
na Esplanada dos Ministérios, num espaço de cerca de 50 mil metros quadra-
dos, com área coberta para receber 158 estandes.
SOYINKA Nascido em 1934, em Abeokuta, Nigéria,
Wole Soyinka participou activamente da
história política de seu país. Em 1967,
durante a guerra civil, foi preso acusado de
conspiração a favor dos rebeldes. Ao longo
de sua carreira literária, publicou em torno
de 20 obras.
KANGNI ALEM Romancista e dramaturgo nascido na cida-
de de Lomé, no Togo, é PhD em francês e
literatura africana e francesa e diplomado em semiologia teatral. Já publicou
mais de 10 livros e é professor de teatro e literatura na Universidade de Lomé.
PAULINA CHIZIANE Primeira mulher moçambicana a publicar um romance, Paulina Chiziane lan-çou o seu primeiro livro, A Balada de Amor ao Vento, em 1990. Ventos do
Apocalipse (1993), O Sétimo Juramento (2000) e Niketche: Uma História de
Poligamia (2002) são outros romances da autora.
GERMANO ALMEIDA Nascido na ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1945, estreou como contista no
início da década de 80. Foi co-fundador e colaborador da revista cabo-
verdiana Ponto & Vírgula. Apesar da importância de sua obra de ficção – que
abriu caminho para uma nova etapa na rica história literária de Cabo Verde –,
o romance O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo é seu único
título publicado no Brasil.
ABDULAI SILÁ Um dos mais importantes autores da literatura de Guiné-Bissau, Silá deu iní-
cio à chamada ―corrente ficcional original‖, ao escrever Eterna Paixão – con-
siderado o primeiro romance escrito naquele país.
CONCEIÇÃO LIMA Considerada a maior poeta viva de São Tomé, Conceição Lima tem seus tra-
balhos publicados há quase três décadas. Sua poesia tem servido de inspiração
para teses literárias em Portugal e no Brasil, no entanto, foi apenas em 2004
que O Útero da Casa, seu primeiro livro, foi publicado. Publicou em 2006 A
Dolorosa Raiz do Micondó e em 2011 O País de Akindenguê.
ONDJAKI Estudou em Luanda e fez sociologia em Lisboa. Em 2000, publi-ca o primeiro livro, Actu Sanguíneu.
Redacção
Germano Almeida, escritor cabo veriano
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Wole Soyinka, escritor nigeriano
Kangni Alem, escritor de Togo
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Destaque Livros & Leitores Amosse Mucavele
Ao nosso confrade e amigo, Calane da Silva
M inha mãe teve um filho de quem nunca falamos. Nasceu pelos pés.
O resultado foi que meu irmão, ainda criança, perdeu-se mal
começou a gatinhar. Crescia e nunca parava de andar. Todos os
dias perdia-se na vida. Dava à casa de vizinhos, parentes e amigos da família por um milagre do acaso, obra do destino. Depois de andar doze anos
perdido, tiveram que o amarrar a um embondeiro. Foi o fim: tanto imaginou ruas e
avenidas, prédios e lojas, que começou a cumprimentar as pessoas, a conversar com elas, a sorrir-lhes. A família reuniu e, na voz de meu pai, achou solução mais
acertada: chamaram um psiquiatra. Minha mãe, porém, sempre duvidou daquela
saída, aquele era assunto para o nhanga, dizia às cunhadas, na esperança de
encontrar alguma aliança, mas sua voz não ecoava, não fosse ela mulher. Levaram então meu irmão numa camisa-de-forças. No hospital, acometeu-lhe uma claustro-
fobia que o levou ao suicídio, e os médicos registaram em papel que segundos antes
de se evadir gritou pelo meu nome.
Este é o excerto do conto A SINA da obra ―Contador de Palavras‖ de Lucílio
Manjate, lançado ontem em Maputo, sob a chancela da Alcance Editores.
―Contador de Palavras‖ é a terceira obra do escritor moçambicano Lucílio Manjate.
Uma obra que não foge tanto da temática que tem o acompanhado no seu percurso
literário. Referimo-nos às vivências (sub)urbanas que são a marca identitária da
palavra que este escritor fabrica.
A despeito disto, Lucilio Manjate diz ―a questão do espaço não é o centro deste pro-
jecto. Mas estava preocupado com outras questões, talvez de cariz filosófico e exis-
tencialista.‖
―Uma das coisas que sempre acompanhou-me quando pensava neste livro é o facto
de que a palavra enquanto instrumento de trabalho como escritor, ela poder repre-
sentar sonhos desejos frustrações utopias. Ao olhar a palavra nesta perspectiva, ela
funciona como uma espécie de núcleo vital de toda obra. Um núcleo gravitacional.‖
O autor de ―Os Silêncios do Narrador‖ afirma que ao pensar na palavra, como a
alma do seu percurso naquela narrativa é porque as estórias que conta não são novas
e nem velhas, ―são as de sempre‖.
―De alguma forma, o que proponho é sobrepor as estórias que eventualmente cada
um pudesse contar. Sobrepor as estórias o espectro da própria palavra. Digamos com
muita modéstia, o trabalho com a palavra, enquanto me preocupava com a questão
do labor, do esculpir, da própria palavra eu senti que esse exercício da escrita, no
caso a minha, aspirava a posição de poesia.‖
Sendo assim, ―Contador de Palavras‖ que é uma colectânea de contos, histórias ins-
piradas no ambiente social moçambicano, no que ele tem do dilema existencial até à
loucura, são histórias que, em algum momento, aspiram visitar a memória colecti-
va nacional do pós-independência, mas também projectam, poeticamente, uma
utopia que fica por descortinar a morfologia.
Entretanto, Lucílio Manjate vai mais longe na sua explanação sobre o livro que
lançou ontem em Maputo, sob a chancela da Alcance Editores.
―Creio que esta é a marca provavelmente fundamental, não se trata de uma prosa
poética, mas o texto, o conjunto de textos que, embora retratem como se diz a nar-
rativa, é o retrato da realidade objectiva‖ Concluiu.
LUCÍLIO Orlando MANJATE é membro efectivo da AEMO. Publicou
Manifesto (contos), 2006, Os Silêncios do Narrador (romance), 2010 e O
Contador de Palavras (contos), 2012.
Outro livro publicado é a MAFONEMATOGRÁFICO TAMBÉM CÍRCULO
ABSTRACTO de poeisa, cujo autor já pretence ao mundo dos escribas.
Trata-se de um livro de poesia de Sangare Okapi. ―Mas não para os desavisados,
ou mesmo para eles. A poesia que Sangare Okapi agora nos apresenta desafia pela
forma ousada como se insinua e se manifesta, e disso o título é já sintomático. Por
isso, uma das grandes questões que Sangare Okapi agora discute é a própria noção
de poesia, porquanto a Estética, aqui, é, digamos abalada, questionada até à exaus-
tão, até à loucura. Nesse sentido, é, este livro, uma espécie de apoteose, onde a
relatividade do Ser da Poesia é o núcleo central”.
CARDOSO Lindo CHONGO (SANGARE OKAPI) é membro efectivo da
AEMO. Publicou a seguinte obra poética: Inventário de Angústias ou Apoteose do
Nada, 2005, Mesmos barcos ou Poemas de Revisitação do corpo, 2007, e Mafone-
matográfico também Círculo Abstracto, 2012. Está antologiado na revista brasilei-
ra Poesia Sempre, 2007.
Contador de Palavras e Mafonematográfico chegam ao mesmo tempo
Binga
raro
seio
caro
anseio
passeio
que receio
Sangare Okapi
Lucílio Manjate
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Livros & Leitores Ao nosso confrade e amigo, Calane da Silva
Sobre o livro: «Manuel Alegre volta, neste novo
livro, a confrontar a sua
poesia com as grandes
questões: o sentido da vida e as incertezas, interroga-
ções e angústias deste nosso
tempo. Uma poesia, nas palavras de Frederico Lou-
renço, que ―não esconde o
sofrimento e a dor da exis-tência humana, mas que
nunca aceita a resignação
ou o pessimismo‖. Um
novo poema de Manuel Alegre, diz Lourenço,
―afigura-se-nos sempre
como um fenómeno incrível de originalidade.‖»
Manuel Alegre regressa à poesia
com «Nada Está Escrito»
Nada Está Escrito, novo livro de poesia de
Manuel Alegre, será a lançado a 7 de Abril
pelas Publicações Dom Quixote.
Gostaria, com a per-
missão das excelsas
figuras aqui presentes,
de, em jeito de introito,
manifestar a minha ale-
gria em estar aqui,
como orador, na home-
nagem que ora se presta
ao escritor Calane da
Silva. Digo alegria por-
que o mundo literário é
povoado de ambivalên-
cias, de jogos de luzes e
sombras, de ficção e
realidade, de leituras
segundas. Mas aqui,
com a ajuda desta luz
artificial, e sem nada na
manga, as minhas pala-
vras querem-se livres de
outras leituras que não a
de alegria em homena-
gearmos o primeiro
escritor com o prémio carreira, prémio instituído pela Hidroeléctrica de Cabora
Bassa e a Associação dos Escritores Moçambicanos.
Calane da Silva é das raras personalidades em cujo percurso a linguagem se tornou
o alfa e o ómega da sua condição de cidadão e intelectual. Foi a linguagem, na ver-
tente jornalística, que ocupou um espaço privilegiado na sua carreira, catapultando
-o à galeria de insignes jornalistas que marcaram, com a pena, distintos momentos
na denúncia de actos iníquos antes e depois da independência; foi a linguagem, na
vertente poética, que moldou a personalidade rebelde deste poeta qua cantou a
nossa suburbana vida no epicentro da sua Malanga.
Quem não se recorda desse poema emblemático Dos Meninos da Malanga :
Mukhokweni/não é só lugar de cocos./ Mukhokweni tem história/ retida na íris/
dos meninos da Malanga./ Vivíamos a monte/ entre coqueiros, pamas e piteiras/ e
tínhamos tudo!/ Crianças sempre esfarrapadas/mulheres grávidas todos os anos/
xibalos-carregadores/ e magaízas endinheirados/ que os mabandido por vezes/
esfaqueavam./ A polícia também investia para metralhar corpos/ e efectuar pri-
sões/ mas em Mukhokweni/ sobretudo/ vivíamos entregues a nós mesmos./ Vinte e
quatro anos são passados/ sobre os coqueiros, pamas e piteiras/ de Mukhokweni
ora urbanizado./ Mas os gritos/ pragas e imagens continuaram/ doidamente con-
densados/ nos nossos corações já amadurecidos./ Jacinto, Fernanda, Madala/ e tu
Kadir?/Todos companheiros de infância/ que o regime implacável dividiu…1969;
Foi a linguagem, na vertente romanesca, que firmou Calane na galeria dos escrito-
res desta pátria com o romance Nyembete e o pendular livro de contos Xicandari-
nha na lenha do mundo;
É, por fim, no mundo do ensaio, nessa linguagem que obedece a outros códigos,
já como docente universitário, que Calane resolve enveredar pelos trabalhos
ensaísticos, ofertando-nos obras de grande gozo, como Gil Vicente, Folgazão
Racista? Estudos de Linguística sobre o português em Moçambique com ênfase
na interferência das línguas bantu no português e do português no bantu; ou
adentrando-se na obra poética do colega de letras, O Estiloso Craveirinha,
impelindo-nos, nesse irrepreensível texto, a reter, na obra do poeta, a função
estético-nacionalista dos lexemas bantu. Diz Calane: «os lexemas bantu e os
neologismos luso-rongas em Craveirinha se, de certa maneira e como analisá-
mos, desestruturam aquilo que seria uma linguagem poética em língua portu-
guesa, criando anomalias, por outro lado e também conforme verificámos, por-
que as tais anomalias fazem parte da poesia, eles criam a poeticidade, acabando
por reestruturar uma nova linguagem poética marcando o seu estilo. No seu
todo, no seu conjunto acabam por criar uma estética que se liga, tal como o esti-
lo, à cultura, à sociologia e a uma ideologia nacionalista moçambicana.»
Pergunto-me, com algum espanto, nesta diversidade de linguagens a que o
Calane se cometeu ao longo de uma vida não menos curta, onde ancorar a
minha homenagem? De que Calane devo falar?
Do cidadão, claro, do homem simples que está para além dos títulos e cargos
que teve e têm. O Calane que eu conheço hoje não difere daquele que em Junho
de 1992, disse, em entrevista, a respeito da censura e quejandos, ao estudioso
Michel Laban: «Aqui, havia uma censura oficial, no tempo colonial; depois da
independência houve uma espécie de auto censura ideológica. Havia colegas
nossos que tinham medo de dizer as coisas, faziam uma autocensura, porque
estavam convencidos que eram uns grandes marxistas-leninistas! Em nome de
um progresso, em nome de uma futura nação – sempre o futuro -, liquidavam o
presente! Não sabiam que era pondo a verdade que se podia discutir sobre ela e
depois avançar-se para esse futuro que eles queriam. Mas isto, quando um Esta-
do começa a ser mais policial, começa porque há resistência a esse Estado, as
pessoas começam a ficar também um bocado extremistas, ou calam-se um
bocado e vão escrevendo, tal como no tempo colonial, ou então aderem e dão
panegíricos ao governo: «Viva isto e Viva aquilo». Sempre que houve necessi-
dade de fazer uma coisa que estava bem, não tive problema nenhum em dizer
que estava bem e em fazer a reportagem. Sempre que havia algo que estava
mal, também não me coibia de o dizer. Paguei um bocado, apanhei uns bofe-
tões! Tive vários problemas de despedimento, de autodespedimento, empurrado
para fora dos jornais!»
Este é o Calane que nós conhecemos na aurora da nossa existência literária.
Um Calane que entre outros escritores de nomeada, soube-nos transmitir que o
valor supremo de um patriota é o saber dissentir, dizer não. A crítica, fazendo
minhas as palavras de um teórico, é mais do que um direito: é um acto de
patriotismo, uma forma de patriotismo superior aos rituais familiares da adula-
ção nacional. Em abstracto, celebramos a liberdade de expressão como parte da
nossa liturgia patriótica, mas na prática poucos de nós fazemos da dissensão um
dever nacional.
Não iria terminar esta breve e tosca prelecção em volta desta figura que bem
mereceu o prémio carreira ora instituído, sem me ater aos imponderáveis poe-
mas que emergiram, muitos deles, nos anos 80, anos de verdadeira boémia nesta
cidade que se descaracteriza a cada dia que passa. Calane, devo dizer, preenchia
as nossas noites com poemas que só ele, naquele instante, como que apossado
por esse estado de hierofania, sabia evocar. Da lírica do Imponderável e outros
Poemas do Ser e do Estar, escolho a que se refere a sua cultura ronga:
Maputo
Terra de Maputsu pela história miscigenada/ suor nas estradas, nos prédios, nos
milheirais/ dos rongas sua língua e sua cultura ameaçada/ mas na escrita literá-
ria fortes vozes nacionais./ Na baía outrora farta desaguam três rios de fome/
em três húmidos vales, ricos e mal aproveitados/ aqui deram nome à capital que
já tinha seu nome / ka Mpfumu cidade de governantes e governados./ Com por-
tos construídos para servir Transvaal/ terra assaz disputada entre Inglaterra e
Portugal/Maputo é hoje província e urbe de estranha gente./Os da terra olham
os passos dos que vêm de fora/ os de fora os passos imprecisos da gente de ago-
ra/ gente tão adversa, tão de medo, tão maldizente.
Saravá, Calane.
E obrigado
Ungulani Ba Ka Khosa
Texto apresentado na Homenagem ao escritor Calane da Silva, 23 deMarço
2012
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O espelho não reflecte os medos que encharcam o meu silêncio. Muito menos as alegrias que degolam o
meu sorriso.
As Vezes
O espelho mente a dizer verdades na inocência das incertezas que se amotinam na vista alegre das minhas
angústias.
A tocar flautas. Ao som do triste olhar da lupa
A atirar pedras. Para os olhos que se olham a procura da verdade das certezas pintadas a vermelho dos
semáforos.
Paragem! Miragem?
As 4 rodas roncam (a morte, a angústia, o silêncio, a memória) na abstracta estrada da ilusão, onde
F L O R E S
apodrecem no verão esburacado da objetiva da máquina fotográfica. Múltipla visão (ordem e caos, verda-
des e mentiras) de olhos bem abertos na fechadura da alma amedrontada pela doce aparição
do labirinto.
As flores atravessam a primavera (que há muito clama por elas) com sapatos de neve (cuidado o Verão é
eterno) chutam o silêncio que habita a escuridão. e lá lá e lá .
E lá do outro lado da margem, em pleno suar do inverno uma flor (esta) sem árvores nega de dar a voz as
pedras.
Insiste. Persiste em aprender a ética da memória das flores que se escondem na estação última do tempo (o
sono) com amarguras de alegrias e angústias. Deitadas no prato hasteado nas lágrimas da bandeira do
futuro.
E no presente? Vejo a minha face multiplicada por 2 no quadro dos olhos deste Deus da Carnificina
chamado espelho.
Os resultados das eleições já há muito eram conhecidos. E não estavam longe das previsões, confirmando as sondagens. E o presidente tomou posse ante os apoiantes eufóricos, muitos deles desejando de imediato recompensas do apoio de que eles prestaram ao recém-eleito presidente da autarquia. Acotovelam-se no partido de que presi-dente fazia parte, uns dizendo que eram mais membros que outros. Até uns chegavam a inter-pelar o presidente apenas para maldizer dos outros: ― Aqueles estão a aderir ao partido só para tirar partidos.
E diziam mais. Acusavam alguns que viram fula-nos metidos em conversa com sicranos do partido da posição ou oposição. Tristonho! Parece-me que custa ser dirigente numa autarquia como a nossa, a de Fim-de-Mundo. Pois, para além de satisfazer os interesses dos munícipes, deves recompensar com coisas imediatas aos seus par-tidários. E caso não o faças conspiram-te, até de te demitirem? Sei lá, respondam os que conhe-cem disciplina e indisciplina partidária. Sei, sim, que quando o genro de meu avô, Genró-nimo Comichão, entrou para a autarquia, a mes-ma tinha muitos problemas. Havia desordenadas construções de casas, construções sem as res-pectivas licenças. Até em valas de drenagens havia gigantes obras, edificadas ante o olhar e ouvir impávidos das predecessoras autoridades autárquicas. No resto, os vereadores do anterior governo, os que demoniacamente engendraram e permitiram a evolução dos supracitados problemas estavam no rente governo autárquico, não de pedra e cal, incumprindo as respectivas funções. Só o novo edil não os exonerou para uma boa imagem políti-ca. Pois, nos tempos que corriam soava bem para os doadores ouvir que um governo tem na sua
estrutura membros de partidos da Oposição ou da Posição. Entrementes, de imediato, o presidente quis atacar os problemas que encontrou, ordenar a destruição das infra-estruturas desordenadas e as edificadas nas antigas valas de drenagem e que em tempos de cheias os proprietários exigiam assistência humanitá-ria, curiosamente. De imediato, também, a ideia de presidente venceu adversão dos vereadores, encas-quetando-lhe: ― Não faça isso, sua excelência, se não perderás muitos votos nas próximas eleições.
O edil não desandou, a decisão manteve-se. E, logo que a decisão foi posta em voga pela mídia, as pes-
soas e outras visadas desataram a maldizer em surdi-na: queremos ver, vão morrer, isto é Fim-de-Mundo, que se coloquem a pau, vão avariar esses guindastes. No seguido, os guindastes, essas máquinas de levan-tamento de pesos, estavam no terreno a exercer o trabalho. Mas a dado momento, enquanto o trabalho se exercia, desatou a jorrar sangue através do chão da máquina. Vinha de onde? O combustível da máqui-na se convertera em sangue? Não. Soube-se instan-tes depois quando o proprietário do sangue, já enxuto, menos pesado que papagaio, não mais respirava. Estava morto, pés involuntariamente afundando os pedais. O presidente e os criminalistas entenderam aquilo como normal, de hemorragia externa se tratava. E foram a conduzir a máquina de destruição tantos outros maquinistas, num número de 20, tendo sido todos acometidos pelo igual azar: tremendas hemor-ragias. Enquanto isso, as pessoas visadas festejavam sem pompas, mas com circunstâncias. Foi, então, a partir deste momento que o edil decidiu criar um gabinete, que responderia prontamente aos problemas, o gabinete de assuntos tradicionais, depois passado para gabinete de Magia. Contratou os respectivos recursos humanos, quatros famigerados curandeiros, e orçamento, como ordenavam as intesti-nais regras autárquicas, aprovado pela respectiva Assembleia Municipal de Fim-de-Mundo (AMFM).
Croniconto
Dany Wambire - Beira [email protected]
O curandeiro contratado pelo meu edil
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Poesia A Ti
Fechemos as cloacas fétidas da cidade e deixemos inebriarem-se os ares de
recendidos perfumes estivais. É o preço da liberdade. Palmeiras ao sol e longas
longas praias de areia molhada a manterem desperto o fervilhar anímico das
paixões. A voz da líbido. Em toda a sua violência incontrolável.
No entanto sublimar é palavra d’ordem. Sublimar aqui e agora o desejo da
presença, da intimidade, do isolamento a dois. Mutilar a alma, sacrificar as
paixões em nome das convenções que nos fazem civilização e grandeza.
Sinto em mim, contudo, imperioso e dolente, o desejo da terra molhada, dos
corpos belos, o prazer físico da presença desejada, do frémito incontido ao roçar
leve da tua mão na minha.
Em nome da cultura e da civilização sacrifico-me. A minha coroa de glória quem
ma dará? E pergunto-me dilacerada se será civilização e grandeza ou mesquinhos
arremedos que a miopia colectiva endeusou.
Não ouso afrontá-los contudo.
E dentro de mim, censuradas e sedutoras, sucedem-se as imagens proibidas e as
sensações interditas.
Sublimar é palavra d’ordem. O amor e a paixão, a líbido e o prazer. No altar dos
valores supremos. Sublimar aqui e agora e manter estóica e estupidamente
secretos os diálogos que comigo mantenho contigo.
Convenho-me que a vida é feita de ironias.
Quereria contudo abraçar-te em meio à multidão, correr ao encontro de ti pelas
achadas imensas e juntos nos afogarmos nas ondas deste oceano que é nosso.
Amanhã o dia será de glória.
Morte desenraizada
Sergui após a marca das tuas botas
Sobre as folhas mortas em terra húmida
Ignorava qual a fera terrivel que perseguias
Tal era o empenho e a atenção dos teus gestos
E vi na tabanca queimada devastada
As mesmas botas calcar o sangue, o corpo
[ a morte inocente
De crianças da tua cor, do teu credo perdido
E soube que na terra em pranto pela tua
[afronta
Tu terias uma morte desenraizada.
EXERCÍCIO POÉTICO 5
José Carlos – Guiné Bissau
Vera Duarte– Cabo Verde
Vejo: pés rápidos deslizam
passos convencionados.
O rosto preso no exemplo.
Mãos inertes ao contato.
Reflito a posição exigida
e lamento o acontecimento:
dançar é esquecer o que vejo.
Ativar as mãos
deslizar o rosto
reinventar o som
em movimento.
João Melo - Angola
Redonda lâmpada acesa
a amarela luz alastrando-se
por sobre o zinco das cubatas
Os fartos cabelos
das mulembeiras
Rapaigas cartando água
no chafariz
Meninos de barriga inchada
brincando com bola ou
tampas de garrafa
Sol No Muceque
Pedro Du Bois - Brasil
DANÇAR
A primeira vez que ousei escrever um verso, era um dia en-
solarado de onde aos poucos era parido uma noite de estre-
las de ventres de amor e saudade. Aprendia que o coração
também sabe bater para além de estar vivo, para além do
seu derradeiro pulsar, para além da mais aparta-da existên-
cia que a mente humana ousou alguma vez maquinar. Nesse
exacto momento, senti que ele, o verso, me segredava ver-
dades que nem a própria verdade acre-ditou que se tratasse
dela, a verdade. Dizia ele, o verso, todo ensopado numa es-
trofe, uma estrofe como uma estrofe qualquer, por ser um
conjunto de verso, porém como uma estrofe única por ser
uma estrofe que falava poesia: «Se não me vês como uma
obra-prima, como arte, tocando Malangatana ou Picasso,
então não sou poesia. Não preciso que me empanturres de
rimas. Não preciso que me engravides de versos anapésti-
cos, trocái-cos ou iâmbicos. Não preciso que me engrosse
até ao último balanço, ou me dar das bebidas de versos de-
cassí-labos heróicos, ou sáficos. Bastam o ritmo, a conota-
ção, e os recursos estilísticos, que já sou poesia. Que deixe-
mos os Camões saborearem o silêncio das sua tumbas poéti-
cas na poeira de uma poesia que renasce das cinzas do seu
labiríntico eu. Não só Pessoa tem o direito de fin-gir que é
dor.»
EU E OS MEUS VERSOS LIVRES
C. C. Cossa – Maputo
Desabotoam acidez da mente Há que descorar as blusas sem licença Pouco amigas Sem dizer que cospem venenos fluidos
Articulados com os corpos E copos desses seios Em autentica conformidade com Maus Modos Amorfo lógicos
Idades
Mauro Brito - Maputo
“-Solidão, cuida de mim...”
Feito um Patinho Feio a sonhar
Mergulhado em agulhas de tristices
Ressentimentos, saudades, jogos de
espelhos, azar
“-Solidão, cuida de mim...”
Porque ainda por cima, para piorar
O Patinho Feio é poeta e quer voar!
Silas Correa Leite - Brasil
Patinho Feio
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Entrevista Fonte: www.saraivaconteudos.com.br
N o Timor Leste o Tetun é o idioma oficial. Diante de tantos dialectos existentes no
Timor, por que você escolheu a língua portuguesa? E de onde surgiu seu interesse
por literatura?
Luís Cardoso - Por escrever em língua portuguesa desde a infância. Há um episódio muito interes-sante. Eu vivia numa ilha chamada Taurus, uma ilha mais pequena que o Timor, onde havia um des-
terrado político português - por oposição ao regime de [António de Oliveira] Salazar. Ele resolveu
fazer uma padaria, o filho dele era meu colega. Meus pais não tinham dinheiro para comprar pão por-
que era um objecto de luxo. Os nativos, nós, os timorenses, comíamos batata-doce, mandioca... São
essas coisas que faziam parte do nosso pequeno-almoço. Quando havia as redacções, que se fazem
nas escolas primárias, eu fazia sempre duas versões: uma versão para mim e outra para ele. Ele que
era filho de português, e eu timorense. E como recompensa ele me dava um pão com manteiga. Foi
assim, digamos, que passei a tomar o gosto de escrever em português. Como eu tinha que escrever
duas versões, isso fez com que eu tivesse uma imaginação maior. Porque todas as vezes tinha que
escrever uma versão para mim e outra para ele. Deu-me o gosto desde a infância. E depois, com o
tempo, fui me habituando, gostando de escrever em língua portuguesa. E foi assim que se iniciou a
minha relação afectiva com a língua portuguesa, mas só tive a oportunidade de escrever bem quando finalmente fui para Portugal, em 1975.
Você mora em Portugal até hoje...
Luís Cardoso -Estou lá até hoje. Quando estive em Portugal, começou a invasão do Timor pelos
indonésios. Nunca mais pude regressar ao Timor. Então, comecei a fazer parte da frente diplomática
da chamada Resistência Timorense. Como falava alguma coisa de inglês, os meus colegas decidiram
utilizar-me nessas andanças todas. Quase todo o resto da minha vida foi, precisamente, a fazer diplo-
macia pela Resistência Timorense.
Embora rejeite o título, você é tido como o primeiro escritor timorense. Como é a relação
desses conflitos étnicos e políticos do Timor Leste com o seu trabalho?
Luís Cardoso -O primeiro livro que escrevi chama-se Crónicas de uma travessia. O personagem
principal não está nomeado, muito gente diz que é uma autobiografia, posso citar como sendo, mas ao mesmo tempo podia ser a vida de qualquer outro timorense. O Timor é uma manta de retalhos
de vários grupos etnolinguísticos. Quase podemos afirmar que atravessamos de nação em nação
por todo o Timor. Tentei dizer mais ou menos em Crónicas de uma travessia, para as pessoas
conhecerem um pouco do Timor real, e não somente aquele que conhecem pelos jornais, pelo dra-
ma da Resistência Timorense. Depois da minha estreia, procurei me adentrar no universo timorense
através do segundo livro, que se chama Olhos de coruja, olhos de gato bravo. Olhos, portanto, um
olhar interior sobre o povo timorense, sobre seus ritos e mitos. E, sobretudo, um olhar feminino.
Todo o universo timorense é dominado pelo olhar feminino. As mulheres que leram o livro disse-
ram que é um texto mágico, mulheres timorenses e mulheres feministas portuguesas. Isso me deu
orgulho porque achei que eu tinha ganhado um desafio. O terceiro livro chama-se A última morte
do coronel Santiago, um título que se relaciona com a América Latina. Depois da libertação do
Timor, regressei ao Timor para acompanhar o Prémio Nobel de Literatura, José Saramago. Foi muito interessante descobrir que por trás do Prémio Nobel, do escritor, existe outra pessoa que
muita gente desconhece.
Quem é essa pessoa?
Luís Cardoso -É um grande contador de histórias, uma pessoa afável. O grande escritor, o escritor
que todos nós conhecemos, é diferente daquele que conheci nessa viagem ao Timor. Ele foi encan-
tador em Timor, atencioso com as pessoas... A última morte do coronel Santiago tem esse nome
porque nessa ocasião, em que estive no Timor acompanhando José Saramago, um tio meu que foi
tenente da segunda linha do exército colonial português me perguntou: "Quando os portugueses
Luís Cardoso
Entre o ser e não ser o primeiro
Luís Cardoso nasceu no Timor-Leste. É autor de quatro romances: Crónica de uma travessia (1997), Olhos de coruja olhos de gato bra-vo (2002), A última morte do coronel Santiago (2003) e Requiem para o navegador solitário (2007), seu primeiro livro publicado no Brasil. O Timor-Leste, país marcado por sucessivas invasões e conflitos intensos, é, como diz o próprio autor, “uma colcha de retalhos etnolinguísticos”. Além disso, há neste país forte tradição da cultura oral. Por isso, Luís Cardoso é considerado o primeiro autor timorense a escrever em língua portuguesa. O autor, entreta nto, rejeita o rótulo. Homem de gestos simples e delicados, Luís Cardoso fala, nesta entrevista, de sua relação com a língua portu-guesa e com o Brasil. E conta um pouco sobre os desafios de criar a partir de uma voz feminina. Como fez com Catarina, a personagem principal de Requiem para o navegador solitário.
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Entrevista www.saraivaconteudos.com.br regressam ao Timor?" ―Bom, os portugueses não vão regressar ao Timor‖, eu respondi, ―neste
momento estão as Nações Unidas em Timor, que farão a transição e o Timor vai ficar independen-
te. Portanto, os portugueses já não vêm ao Timor. Até podem vir, mas integrados com as Nações
Unidas.‖ Ele ficou magoado com minha resposta. Passado um tempo, ele voltou a perguntar:
"Quando os portugueses regressam ao Timor?" E só aí eu descobri o motivo da pergunta recorrente de meu tio: "Se os portugueses regressassem neste momento ao Timor, o meu posto seria coronel e
eu receberia os retroactivos todos." A resposta dele me fez lembrar um livro do Gabriel Garcia
Márquez, Ninguém escreve ao Coronel, em que estão à espera do vencimento que nunca chegava.
Por isso decidi dar aquele título ao romance.
Qual é a importância da língua portuguesa para os timorenses?
Luís Cardoso -A língua portuguesa teve um papel muito importante durante o tempo da Resistên-
cia. Porque os documentos que nós recebíamos do interior do Timor, que a Resistência fazia circu-
lar, eram em língua portuguesa. O que significava que a língua oficial da Resistência era o portu-
guês. Só que a maioria dos falantes de português foi morta durante a ocupação. Diante disso,
depois da independência há a necessidade de fazer uma reintrodução da língua portuguesa em Timor. E, neste momento, há países que colaboram: professores portugueses, professores brasilei-
ros, angolanos, da Guiné... Portanto, a lusofonia. Mas isso levará algum tempo, porque as Nações
Unidas, mesmo estando em Timor, não vêem com bons olhos, acham que é uma utopia a reintrodu-
ção do português em Timor. Pensam que é mais fácil utilizar o inglês. Motivados por essa pressão
das Nações Unidas, muitas vezes parece que não temos vontade de acelerar o processo de reintro-
dução da língua portuguesa em Timor. Também por causa da instabilidade política em Timor, mui-
tas das questões fundamentais são relegadas para um segundo plano. Acredito que uma vez politi-
camente mais estável o Timor terá a possibilidade de fazer uma reintrodução mais rápida do portu-
guês.
No final dos anos 1980 você veio ao Brasil e se encontrou com o Lula. Actualmente você lança
Requiem para o navegador solitário (Língua Geral). Como é lançar seu livro no Brasil neste
contexto político?
Luís Cardoso -É uma alegria. É bom que um país como o Brasil possa ler o livro de um autor lá do
fim do mundo. Muitos brasileiros não sabem onde fica o Timor. Espero que os brasileiros gostem
do livro, sei que têm bom gosto. Espero que seja bem aceito. É uma honra para o Timor. Fico mui-
to satisfeito. Qualquer dia a minha filha, que hoje tem seis meses, quando crescer vai poder dizer:
"Meu pai foi editado no Brasil." É uma honra para mim também.
Catarina. Quem é essa personagem do livro Requiem para o navegador solitário? Seria
sua terra natal, o Timor?
Luís Cardoso -Ah Catarina... [pausa] Depois desse livro ganhei uma afeição especial por escrever a partir do universo feminino. Há escritores que fazem isso de uma forma magnífica,
como é o caso de António Lobo Antunes, cujas personagens femininas são excelentes. Eu tam-
bém decidi aventurar-me por isso. Acho que falo melhor assim, não me travestindo como
mulher, mas julgo que através de uma voz de mulher consigo expressar-me melhor. Decidi
contar uma história sobre a Segunda Guerra Mundial em Timor através de uma personagem
feminina muito forte, que é a Catarina. Timor sempre foi um ponto de encontro de várias pes-
soas, desde aventureiros, negociantes, desterrados políticos do regime de Salazar... E também
uma terra marcada pelas invasões. Durante a Segunda Guerra Mundial, Timor teve duas inva-
sões. A primeira pelos Aliados e a segunda invasão pelos japoneses, que durou mais tempo.
Sempre tive uma afeição muito grande pelos navegadores solitários, pelas pessoas solitárias, e
por todos aqueles, alguns mais desesperados que outros, que passavam por Timor: viajantes.
Há um viajante que passou por Timor, Alain Gerbault, um navegador solitário francês que fez uma viagem de circunavegação e escreveu um livro que se chama À la Porsuite du Soleil. E,
por uma terrível coincidência, ele morre em Timor - que nós, os timorenses, chamamos de "a
terra onde nasce o Sol". A partir desse fato desenvolvi toda a trama do livro Requiem para o
navegador solitário. É a história de Catarina, uma pessoa que vai a procura do amor e, ao mes-
mo tempo, tem reveses. São pessoas que perante reveses contornam as situações. E isso acon-
teceu com Timor, teve um revés tremendo em toda sua história e deu a volta por cima. E hoje
Timor é um país independente.
Você se considera um homem solitário?
Luís Cardoso - Acho que nós todos somos solitários em algum momento de nossas vidas. Ser solitário implica estarmos sós, estarmos com o mundo. Quando estamos solitários o que nos
vem à cabeça são os momentos que estamos com toda a gente, mas não estamos com ninguém.
O ato de estar solitário não é de desespero, mas o ato de estarmos também com os outros.
Quando você pensa no Timor, qual a primeira imagem que aparece?
Luís Cardoso -A infância. Fui muito feliz na infância em Timor. [silêncio]
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Colunistas Filosofonias
Marcelo Soriano — Brasil [email protected]
Comentário: Na Minha Agenda, Hoje, Escrevi
- Amanhecer: regar flores que amanheceram murchas. - Meia manhã: rabiscar excertos de amor. - Entardecer: mostrar a ela que flores e corações se regen-eram. ....................................................................
Mini crônica: Tríade a Porto Alegre
Em um sebo da Rua Riachuelo, deparei-me com minha obra favorita. - Que livro seria este? - Ora, a minha velha e mal tratada Ópera Existencial. ***** Dos meus fantasmas cotidianos, restaram os lenços, que, sequer, conseguem flutuar em assombros de vento. ***** Gavetas tristes, estas, que não nos devolvem os alfarrábios que ainda ontem as confiávamos.
....................................................................
Poema: Das Minhas Gavetas
("Nenhum", em 14/11/2010)
Entre mortos e feridos ricos e falidos lembrados e esquecidos achados e perdidos tarados e traídos sobramos ninguém
....................................................................
O passo certo
no caminho errado
Nelson Lineu - Maputo
É segunda-feira, Abílio toma banho, veste-se, passa
pelos olhos da mulher e dá volta para ela ver se o
cinto passou em todas casas, além do seu salário essa
era a sua grande dor de cabeça. Sai sem pôr nada na boca
porque não lhe cairia bem, não criaria efeito à causa. Como
ele podia beber naquele dia que se tem como sagrado? A
mulher não conseguia entender, não por causa da religião,
segundo ela, era por um motivo mais sério, é que no dia
seguinte tinha que ir ao emprego, e ele sabia muito bem, o
que é viver desempregado. Acordou cedo porque tinha que
passar na dona Felismina, a sopeira, dedicava-se a venda de
sopa, que servia para matar babalaza, termo usado para
significar ressaca.
Nesse país de desculpeiros, como ela dizia, por as descul-
pas serem mais graves que os próprios erros, e cá por nós
como temos o hábito de sofisticar as coisas ou fazer uma
analogia chamamos por inquérito. Hoje elas também ser-
vem para negócios, por isso a Felismina vê na sopa a for-ma
de se dar bem, e o mais difícil nessa pátria que ama mais do
que é amada, é igualmente estar a fazer um bem.
Agora encontra-se no seu trabalho, é um bibliotecário. Ver
os estudantes empenhados a cultivar a ciência, embora haja
tendência de afirmar que não somos produtivos, por esses
momentos, ele punha interrogações a esse dogmatismo,
sentia-se bem, quando os slogans, propagandas, discursos
não entravam na sua vida. De certeza os putos não seriam
como os actuais condutores do país. Pensava. Os que con-duzem
e fazem a regra desse trânsito mais parecem que se esforçam
para justificar do que para trabalharem propria-mente. Nunca
damos mão a palmatória, como se fossemos os únicos que
não sabem errar. Num dos miaquotidianos vivi que não
tínhamos que ter vergonha de não saber, o que tínhamos
recear é não ter a inquietação para tal. É assusta-dor como
ficamos confortáveis na sombra das desculpas, que acaba
sendo o mesmo que fugir a luz do conhecimento e o seu
consequente progresso. Todos dias testemunhando aquele
acto de amor aos livros, Abílio fazia-se crer que o cenário
actual tinha dias contados. Contados até ao minuto em que
um dos estudantes, sonecava claramente, ele o amparou
quando estava quase a cair. Amigavelmente cha-mou-lhe
por seiva da nação, o mesmo que juventude por aqui, disse-
lhe que ali não era local para dormir, sempre com sorriso no
rosto como as secretárias, ofereceu-lhe água para lavar cara,
se quisesse ele mesmo aquecia, e ain-da faria um café.
A seiva da nação foi respondendo aos berros, dizendo que
ele não estava a dormir, e o funcionariozinho não era nin-
guém para lhe dizer como estudar, porque cada um tinha
seus métodos.
O país das desculpas
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Guido Bilharinho - Brasil
Em Agosto de 2012
Maputo será a capital da Literatura
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Em geral, tanto o leitor como o espectador querem usufruir de uma
estória, em livro, filme ou peça teatral. Não uma estória qualquer,
mas, a que se submeta, quanto à forma, à narração convencional e
comportada e, no que tange ao conteúdo, à linearidade e superficiali-
dade que a recheiem com aspectos espetaculosos, intrigantes, super-
ficiais.
Todavia, é possível fazer-se filme de ficção que não contenha nenhu-
ma dessas características.
É o que ocorre, por exemplo, com O Sangue de Um Poeta (Le Sang
d’Un Poète, França, 1930), de Jean Cocteau (1889-1963).
Seu tema concreto resume-se a ferimento acidental ocorrido na mão
de artista plástico.
Só isso, contudo, vincula a narrativa à realidade. A partir daí e do
próprio acidente desconecta-se a ação do contexto real para adentrar
o mundo maravilhoso e ilimitado da imaginação alógica e irracional.
Nada mais prende ou enleia a personagem numa teia ordenada de
relações, porque desde então está-se mergulhado no mundo do mito e
do imprevisível.
Não havendo restrição alguma ao poder do imaginário, tudo é possí-
vel, todas as opções são válidas, repousando o valor do filme na utili-
zação consciente e estética de recursos cinemáticos e picturais.
No caso, uns e outros apresentam-se articulados em alto nível de
concretização formal e temática, facetas que se conjugam e intera-
gem como síntese de projeto artístico-cinematográfico meditado e
ousadamente elaborado, em que se aplicam os preceitos surrealistas,
que não se conformam nem se atêm aos lindes da materialidade,
extrapolando suas fronteiras, conquistando e incorporando novas
dimensões estruturais, criando outro universo, no qual acontece jus-
tamente o que é impraticável ou impossível ocorrer no mundo real.
O projeto surrealista, no entanto, não tem como dispensar os elemen-
tos corpóreos e palpáveis que compõem a realidade.
Todo o insólito e extravagante que consti-
tui o conteúdo da proposição é, pois, cons-
truído com o material existente, comum e prosaico, no caso, a estátua,
a parede, o espelho, a porta, a fechadura, o teto, o desenho.
Desse condicionamento, no entanto, não se pode nem se consegue
fugir. A diferença, pois, é de se ter ou não liberdade, audácia e criati-
vidade em seu uso, para, além da matéria, seus limites e convenções,
abusar-se de suas propriedades e possibilidades.
O uso é sempre convencional, comportado e acanhado. O abuso é
liberação, criação, invenção, quebra dos grilhões impostos pela con-
cretude do real.
À evidência, que proposta desse jaez encerra riscos e exige, além de
destemor, fundamentação teórica e conhecimento da natureza e da
finalidade da arte, sem o que toda produção não passará de tentativa
canhestra de fazer o diferente quando não se estará fazendo mais do
que o despropositado.
Cocteau, em seu filme, domina e utiliza com conhecimento de causas
e efeitos os fatores condicionais (a materialidade das coisas) e incon-
dicionais (a imaterialidade do pensamento e a imponderabilidade da
imaginação) para fundamentar e realizar bela aventura artística, pro-
duto de razão, inventividade, arrojo e liberdade criativa. Um artista
sem medo de errar.
Conquanto o filme tecnicamente não seja mudo (com esparsas narra-
ções do próprio cineasta), é estruturado como se o fosse, com privile-
giamento e realce da postura e dos movimentos dos atores integrados
em décors artisticamente elaborados, compondo imagens estetica-
mente construídas, dispensada a dialogação.
(do livro O Filme Dramático Europeu, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2010-www.institutotriangulino.wordpress.com)
__________________________________
Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil, foi candidato ao Senado Federal e
editor da revista internacional de poesia Dimensão, sendo autor de livros de literatura, cinema e
história regional.
(Publicação autorizada pelo autor)
O SANGUE DE UM POETA A Transgressão do Real
Ensaio
N ina Rizzi (São Paulo, 1983), é poeta, historiadora e arte-educadora. Vive em Fortaleza/ CE. Participa de saraus, festivais de arte, eventos literários e
palestra sobre poesia, literatura, género e artes, e é engajada em movimentos sociais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e o Movimento Arrastão. Publicou o livro de poesias tambores pra n’zinga
(Editora Multioco, 2012). Participa com poemas e
posfácio em Maria Clara: UniVersos femininos
(LivroPronto, 2010); Faz parte das Escritoras
Suicidas e de Dedo de moça - uma antologia das
escritoras suicidas (São Paulo: Terracota Editora,
2009). Tem textos, contos e poemas publicados
em diversas antologias, suplementos literários e
nas revistas VacaTussa (Recife/ Pe), La Papa
Ruchada (Argentina), Nova Águia (Portugal),
Revista Germina Literatura, Garganta da
Serpente, Zunai Revista de poesia & debates e
Portal Cronópios. Edita os blogues Ellenismos
D i á l o g o s c o m a A r t e H T T P : / /
ellenismos.blogspot.com], e seus textos literários
no quandos, [HTTP://ninaarizzi.blogspot.com].
abortei os hifens que me separam de você.
para o afundamento agarro comigo as plantas mortas
sem cuidado, sem espinhos.
não tenho créditos pra fazer uma ligação.
minha vista é enferrujada do container de lixo.
vão trocando seus títeres, se mudando títere. ao mesmo passo
à uma suave distância, pareço um sem-fim de verbetes
1. microfísica do confessionalismo
2. egocêntrismo, atrevimento e invenção
... [entrementes]
o claustro é tão real quanto a execução de kadafi
e os cem mil anônimos que morrem de fome a cada dia
o meu desejo de ser esfaqueada e lambida;
estas súplicas escondidas na mandíbula
têm a dimensão da tristeza dos que não se sabem
do desespero do homem que costura minha carne a
lágrimas
tudo o que viram nas máscaras do homem da tabacaria.
agora me olha de novo. o pequeno mundo.
olha, até que se esgote todo o amor
sim, um rasgo, o peso do mundo.
era noite de bafo quente.
a rigor, madrugada.
o calor batido fê-lo carne voar longe.
um estampido.
feito tiro, finalizando tudo:
o semáforo verdevermelho,
a rua de passantes apressados,
o coletivo cheio de curiosos.
uma batida quente e escura inundou o asfalto de sangue e carne fraca
e fê-lo findar.
era noite de bafo quente
o dia que experimentou ser
livre.
inundação
sepia clouds: crepúsculo e antiplatonismo na rua oliveira filho
Nina Rizzi
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Sebastião Marques Cardoso (UERN-Brasil) Texto apresentado, com o título ―Dramas do Imaginário na literatura Bissau-Guineense‖, no XII Encontro Interna-
cional da ABRALIC (2011), Curitiba Brasil. Ensaio
R esumo: Iremos, neste artigo, abordar A última tragédia (1995), romance de Abdulai Sila,
escritor de Guiné-Bissau. Nosso maior interesse será refletir sobre duas formações
tensas do imaginário, que percorrem a narrativa do princípio ao fim. São elas: a
presença do sujeito local, negro e nativo, e a força estrangeira, representada pela
inscrição do homem branco e de suas instituições. Avaliaremos, assim, como essa
relação dicotômica se estabelece na narrativa e como o conflito decorrente dessa polarização contribui para um desenlace trágico, que evidencia a crueza da empresa colonizadora sobre uma
população de diferentes matizes étnicos. Ao final, indagaremos se a forma narrativa empregada, o
romance, foi, para o escritor, o melhor caminho para a exposição do trauma da colonização e até
que ponto a narrativa figura uma forma de testemunho válido e de signo para a ultrapassagem da
experiência vivida.
Palavras-chave: Literatura Comparada, Literaturas de Língua Portuguesa, Pós-
Colonialismo, Abdulai Sila.
1 Introdução Faz-nos, a atmosfera narrativa de Abdulai Sila, tomar consciência de um mundo que pouco
conhecemos. A nova literatura do ocidente desde fins do século XIX habitou-nos a reconhecê-la
dentro do contexto da ―vivência de choque‖ (BENJAMIN, 1997), resultado da ascensão da técnica e
da informação em detrimento do declínio da experiência e da narração. Inóspita na época da
modernidade, essa experiência foi, por outro lado, reproduzida artificialmente por um conjunto
significativo de escritores que se seguiram ao longo dos tempos. Marcel Proust, por exemplo, pelo
mecanismo da mémoire involontaire traz à nossa consciência uma lembrança que não foi expressa ou que não foi empiricamente vivida. Seus personagens são densos psicologicamente, agem em
contraposição à ordem do mundo e ao tempo cronológico.
Ora, não vemos isso em Sila. Seus principais personagens não se apresentam com profundidade em
função de traumas vividos durante a colonização. Nesse sentido, o registro do romancista bissau-
guineense recupera a literatura da ―vivência de choque‖ no contexto africano, o que o insere numa
tradição literária do ocidente, mas essa inscrição não se dá em oposição à tecnização propriamente–
como uma espécie de contraposição entre campo/cidade–, e sim em relação à cadeia formatada do
imaginário técnico-místico do ocidente, num atrito entre culturas autóctones e assimétricas. Em
outras palavras, o conflito que se instaura no romance de Sila ocorre na difícil passagem entre a
representação do mundo dos ―pretos‖, imaginário imaginado da cultura africana, e do mundo dos
―brancos‖, imaginário imaginado do ocidente. Logo, a ―vivência de choque‖ em Silá opera nas
fronteiras entre o legado do ocidente, carregado de seus ―orientalismos‖ (SAID, 1990), e o espaço cultural do africano fraturado, carregado ainda de sua sabedoria simbólica acerca da realidade.
2 Fraturas da cultura e da recepção literária Duas forças centrífugas agem no romance: a experiência africana e a experiência ocidental. Esta
procura reduzir a primeira num evento doméstico; e a primeira entende o próprio conflito cultural
como decorrente da perda inevitável, em seu meio, da proteção divina. A personagem Ndani é, em
face disso, extremamente emblemática. Marcada por sua condição cultural e social, ela age com
cordialidade diante de situações de violência simbólica, buscando compulsoriamente um envolvimento maior com a cultura dos colonizadores. Através de conselhos da madrasta, uma das
esposas de seu pai, que conviveu com brancos, Ndani procura assimilar o imaginário dos brancos
que viviam na Guiné Portuguesa (hoje, Guiné-Bissau): /.../ ela começara a ver as coisas de uma maneira diferente, qualquer coisa
estranha instigava-a a rejeitar a vida que levava na sua tabanca e movia-a impetuosamente à procura do mundo dos brancos que, disso entretanto também se convencera, era muito diferente daquele que tinham dito ser o seu. (SILA, 2006, p. 22).
O mundo imaginado do imaginário dos brancos é o mundo representado pelos portugueses. Estes,
durante o processo de colonização, foram gradativamente ocupando os espaços da vida social na
cidade, constituindo-se numa comunidade fechada dentro de um território aberto, rico pelas várias
etnias presentes, com padrões culturais seculares e, em muitos casos, divergentes à cultura do ocidente.
Apesar de propor uma problemática de cunho mais social do que estritamente cultural, podemos
encontrar, na nascente literatura bissau-guineense, alguma correspondência com a literatura
brasileira. Os sertanejos de Euclides da Cunha, os mestiços de Lima Barreto e mesmo os miseráveis
de Graciliano Ramos e os marginais de João Antonio trazem choques culturais intensos. Em Sila,
podemos perceber esses choques, apesar de um cenário bem diverso. Em Euclides da Cunha, o
fundamentalismo religioso– cultura local– é contraposição ao racionalismo– cultura da metrópole–,
sendo o trágico a completa liquidação do pensamento local perpetrado pela República; em Lima
Barreto, a cultura de elite, diga-se ―branca‖, é elemento de pressão sobre indivíduos mestiços ou de
origem africana, tendo desenlaces moralmente condenáveis e trágicos; em Graciliano Ramos, a
pressão social é tão contundente que somos levados a pensar que existe uma cultura que caracteriza
sujeitos analfabetos e miseráveis– os retirantes– paralelamente à cultura letrada, bem alimentada, suplantada pelo latifúndio, que se beneficia do sistema instituído; e, por fim, João Antonio, cuja
literatura aponta para um gueto cultural que, para sobreviver, adaptou formas culturais impostas,
criando mecanismo de ação e um subsistema de identificação social. O que torna os brasileiros
próximos de Sila é, para além da dimensão trágica dos principais personagens, uma certa atitude
―anti-heróica‖ (CARDOSO, 2010) frente à vida.
No romance de Abdulai Sila, há dois enredos que correm em paralelo. O primeiro deles, que dá
início ao livro, ocorre com Ndani, personagem já citada. O segundo, com o episódio do Régulo.
Esses enredos estão unidos através da presença do Professor, que participa tanto do enredo do
Régulo quanto do enredo de Ndani. Em síntese, percebemos que, antes de um romance, a narrativa A
última tragédia, por recuperar um mosaico histórico da vida social, lembra uma crônica sobre a
colonização portuguesa em Guiné-Bissau. O livro pode ser até comparado com Memórias de um sargento de milícias, romance de Manuel Antonio de Almeida. Contudo, num confronto com a obra
do brasileiro, inexiste o caráter despojado da escrita e, também, a variedade de cenários da vida
social. A crônica de Sila é séria, comprometida com o desejo de construir uma literatura de língua
portuguesa da áfrica ocidental e de (re)desenhar o mapa histórico do período colonial na tentativa de
a f i r m a r a
identidade dos
bissau-guineenses.
Em contrapartida,
o caráter engajado do livro acaba
restr ingindo a
potencialidade do
mesmo em muitos
aspectos. Toda a
vida social e
cultural dos bissau
-guineenses é
s u b va l o r i z a d a .
Sabemos que nas
ruas de Bissau, a
variedade de etnias e de falas é
abundante, que
todo o povo
c a r r e g a u m a
e s p i r i t ua l i da d e
pujante, que as
artes populares
(música, dança,
festas e costumes
diversos) são um
dado orgânico, vivo e fervilhante
na vida dos
indivíduos. Na
cidade de Bissau
ou mesmo em
outros sítios do
país a mescla
c u l t u r a l é
f l a g r a n t e .
Entretanto, essas
marcas, em função
da intenção ideológica do autor, foram solapadas no romance. Sila limpa toda natureza espontânea dos bissau-guineenses para se concentrar no ―choque‖ entre ―pretos‖ e ―brancos‖.
Com Sila, podemos dizer que existe uma literatura moderna bissau-guineense? O romance de
Sila está inscrito no contexto das literaturas pós-coloniais, dialogando com Pepetela, Luandino
Vieira, Mia Couto, José Eduardo Agualusa, Lobo Antunes (exceção portuguesa) e outros.
Todos esses autores tomam a literatura como arma contra o discurso da colonização,
reapropriam-se da língua portuguesa, projetando a cultura e as identidades africanas a partir de
dentro, ou seja, a partir do interior da própria cultura e da centralidade que as define. Com isso,
Sila pode ser lido numa ―plataforma ibero-afro-americana‖ em vias de ascensão: Uma comunidade ibero-afro-americana assim imaginada em termos de futuro /.../ não se voltaria para os símbolos do passado, mas permitiria reimaginar a nação, cada uma das nações, numa relação mais estreita e aberta. (JUNIOR ABDALA, 2002, p. 74).
Poderá haver, nessa comunidade, um público cada vez mais crescente de leitores e críticos
interessados.
Se, por um lado, podemos imaginar uma recepção de Sila por brasileiros, portugueses e
africanos de outras nacionalidades, fica difícil pensarmos a recepção da literatura do autor em
sua própria nação. Faltam, em Guiné-bissau, instituições nacionais que possam garantir o
acesso da literatura à comunidade, como bibliotecas bem aparelhadas, uma circulação social de
livros mais intensa por meio de editoras e livrarias, instituições superiores de relevância na
produção de conhecimento crítico e acadêmico nas áreas humanas. Falta, sobretudo, uma
política agressiva do Estado para promover e difundir a nascente literatura moderna nacional. A vida cultural do país, em face das conturbações políticas e sociais, fica a cargo, muitas
vezes, de órgãos internacionais e de embaixadas de nações amigas.
Sem o público leitor de sua própria terra, essa literatura, desterritorializada, pois sua recepção
ocorre num contexto mais amplo, deixa de exercer sua força transformadora na consciência
dos leitores autóctones. Ora, a ausência da comunicação convertida em temas e imagens de
uma cultura que se reconhece nos faz rejeitar a idéia de que há, de fato, uma literatura
estritamente nacional. Esse fenômeno pode ser comparado à literatura produzida no Brasil do
período colonial, considerada por Antonio Candido– crítico brasileiro– como ―manifestações
literárias‖ (CANDIDO, 1997). Em outras palavras, notamos que há um conjunto de escritores
empenhados na Guiné-Bissau, sugerindo novos temas e imagens literárias, mas essa ―nova
linguagem‖ auferida ainda não foi absorvida pelos leitores a ponto de produzir um ―efeito‖ crítico de reconhecível impacto na vida cultural e literária do país.
3 Notas sobre a representação romanesca O que surpreende na leitura que fazemos de Sila é, na verdade, o ponto de vista adotado pelo
autor, ao pôr-se no mesmo foco do narrador. Sila, além de inaugurar a forma romanesca no
ainda recém liberto país natal, conta a história sob um olhar diverso e complexo. Sua visão
acerca do evento da colonização, embora parta da ótica dos colonizados, recupera sombras do
pensamento dos ―residentes‖ (burocratas, funcionários públicos, religiosos cristãos e militares
engajados na campanha colonial). Seu ponto de vista se estabelece num entre-lugar do discurso, num cruzamento de culturas onde a negociação é cara e arriscada. Logo, as
inervações do romance expressarão igualmente essa fronteira que interpreta a história da
colonização.
Isso posto, quando percorremos as linhas do livro, percebemos que o narrador nos recorda de
Cartografia do Imaginário: a voz de Abdulai Sila
entre Colonizadores e Djambakus
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Ensaio Conto uma série de outras tragédias anteriores, menores mas não menos graves, até se concentrar na tragédia
de Ndani. A última tragédia? Na seqüência de páginas do romance, há uma espécie de potenciação da
tragédia. Por outro lado, a narrativa, paralelamente, parece desejar um fim adverso, propondo cortar o
fluxo da violência da colonização. Assim, uma clareira utópica é paulatinamente aberta, indicando, ao
final, um ―fim‖ de hostilidades sem hostilidades. Nisso, o narrador de Sila expressa sem disfarces sua postura rizomática ou anti-heróica em relação ao evento da colonização portuguesa. Vejamos, agora,
as principais personagens destacadas por esse narrador.
3.1 Nanki: mestiço pelo status quo Mesmo não fixando uma data precisa, A última tragédia abrange um momento histórico do tempo da
ditadura de António Salazar (1889-1970). Como Presidente do Conselho, Salazar governou Portugal
de 1933 a 1968, sem nunca ter reconhecido os movimentos independentistas dos povos africanos.
Nesse período, a Guiné Portuguesa era considerada Província de Portugal, organizada,
hierarquicamente, através do Governador da Província, do Administrador e do Chefe de Posto. Essa
administração política da colônia procurou manter o poder tradicional dos ―Régulos‖. Inicialmente,
estes, juntamente com os Chefes, ficaram com a responsabilidade pela cobrança de impostos e tinham
imunidade judiciária: ―Conforme a Carta Orgânica de 1917, tanto os régulos como os chefes de
povoação, passaram a ser definidos como ―delegados‖ dos administradores‖. (HERNANDEZ, 2008, p.
537). Entretanto, a cobrança de impostos, bem como a maneira de cobrá-los, foi uma das causas mais comuns de revoltas populares. (Cf. PELISSIER, 1987, p. 167).
No romance de Sila, o Chefe do Posto cobra os impostos e o Régulo, para um melhor desempenho na
comunidade, é auxiliado por três conselheiros. Mesmo assim, essa divisão de poder é problemática do
início ao fim da narrativa. Quanto à economia, o romance indica que o cultivo de amendoim
(“mancarra”) e a extração de óleo de dendê (“coconote”) eram fontes importantes de renda para a
população. Além desses itens, a borracha tinha um grande peso na economia, sendo, juntamente com o amendoim, exportados para Portugal. Apesar disso, a situação econômica de Guiné-
Bissau, no período colonial, era precária e bastante rudimentar.
A posição do Régulo na hierarquia de poder colonial era extremamente delicada, pois sua
imagem, soldada à comunidade, devia expressar uma ―naturalidade‖ na manutenção do status
quo social sob jurisdição do poder colonial. No romance de Sila, essa norma é rompida a
partir do momento em que o Chefe do Posto, por arrogância, tenta desmoralizar a posição de
Bsum Nanki, Régulo de Quinhamel. O conflito entre os dois, ou seja, entre Nanki e Cabrita, o Chefe do Posto, terá, como pano de fundo, o contato mais próximo entre o poder
administrativo da colonização, na figura de Cabrita, e da população, na figura do Nanki.
Para salvar sua condição de Régulo, Nanki se sente obrigado a associar-se à administração
colonial, e para manter-se no poder vê também a necessidade em adotar estratégias que, na comunidade, são tidas como características de ―brancos‖:
O branco pensa em tudo, mas a cabeça do branco não é mais grande que a cabeça do preto. Têm a mesma coisa lá dentro, foi o mesmo Deus que fez. O branco
trabalha pouco, mas pensa muito; o preto trabalha muito, mas pensa pouco. Tudo ao contrário. (SILA, 2006, p. 69).
E, mais adiante: ―No dia em que os pretos começarem todos a pensar, os brancos vão pôr-se
fora da terra, disso estava certo‖. (SILA, 2006, p. 82). Para o Régulo, a arrogância do poder
colonial só poderá ser vencida por meio do pensamento, através de um plano que possa
devolver aos ―pretos‖ a soberania tomada sem recorrer à guerra ou à expulsão dos ―brancos‖ já instalados no seu território. Nesse sentido, cremos que Nanki é mestiço, na acepção de
Serge Gruzinski (2001), na medida em que, desejando manter seu status quo, mostra-se
portador de uma cultura compósita.
3.2 Ndani: mestiça por coerção
Deslocada dentro de seu território próximo, de Biombo para Bissau, a personagem percebe
uma cidade dividida, onde brancos moram em locais mais prósperos, e que se pode encontrar
negros a viver nas praças, comportando-se como os ―civilizados‖. Mas o que levou a personagem à procura de um mundo diferente não foi o flagelo da fome ou a ânsia em ter
uma vida de ―branco‖ simplesmente. A personagem, sem o abrigo da tabanca, encontra-se na
margem tanto da cultura de sua comunidade quanto da cultura do colonizador. O exílio da
personagem em seu próprio meio decorre de uma profecia dita por um dos líderes religiosos do local:
Toda a gente acreditara numa profecia de um maldito Djambakus [Feiticeiro] que afirmara ser ela portadora de um mau espírito, da alma de um defunto mau, e lhe
vaticinara consequentemente uma existência turbulenta, uma vida de desgraça, de tragédias até o fim... (SILA, 2006, p. 27).
Daí o exílio em seu próprio território, a personagem se sentia rejeitada, e buscava então outro
mundo, um mudo que a acolhesse, o mundo para sua vingança, o mundo dos brancos. Nesse
caso, Ndani é mestiça por coerção.
No convívio do lar de uma família portuguesa em Bissau, a personagem percebe, de fato, a diferença cultural. Os negros bissau-guineenses são chamados de ―indígenas‖, a família se
mostra injustiçada pelos esforços que têm sido feitos e demonstra um postura claramente
anticomunista no discurso: Até nas florestas há agora agentes do comunismo! Mas que desgraça, meu Deus! Como é que vocês conseguem ser tão ingratos? Como? Sim, isso não é outra coisa senão ingratidão. Ingratidão e estupidez! A gente vem para este inferno para civilizar-vos e vocês a criarem confusão... (SILA, 2006, p. 31).
A personagem passa a ter outro nome, um nome imposto pela família de colonizadores.
Agora Ndani, jovem bissau-guineense de 15 anos, é, também, Maria Daniela. Daniela tinha como patrões Dona Linda e José Leitão, ambos vindos para Bissau para fazer fortuna,
embora tivessem antes preferido Angola e Moçambique.
No contexto da colônia, a esposa, Dona Linda, queria ver o marido como Administrador. Por outro lado, traz uma mística cristã profunda, a crença de que os europeus chegaram à África
para salvar os africanos: O Padre disse que dantes esta salvação consistia em levar os negros para longe, lá para as Américas, onde não teriam nem as máscaras, nem as estátuas que veneravam, e muito menos as árvores sagradas... Mas então viu-se que este não era
o melhor método e então tivemos nós os europeus que vir para a África ensinar a religião cristã e salvar as vossas almas. (SILA, 2006, pp. 40-41).
Com base nisso, decide engajar-se numa campanha missionária a começar pela empregada– Ndani–, exigindo que fosse junto à igreja. Ao receber um crucifixo,
lembra-se do colar perdido, que a protegia dos espíritos maus. Uma maldição é
trocada por outra, o crucifixo agora é justificativa atávica para a dominação
colonial.
3.3 Professor: mestiço por formação O professor, outra personagem emblemática do livro, traz, do passado, o estigma
da violência colonial. Mestiço de formação, ele passou seis anos com padres
italianos para, depois de uma conjuntura envolvendo Dona Linda e o Régulo, tomar o posto de professor na recém inaugurada escola de Quinhamel. Mais
esclarecido, o Professor conhece tanto a realidade da vida cultural dos ―brancos‖ e
―mestiços‖ (por condição) quanto a dos ―assimilados‖ e ―indígenas‖. A posição do Professor é a de um sujeito híbrido, pois seu cargo, além de exigir conhecimentos
humanísticos ocidentais, o que o distancia de sua tradição, é visto com
desconfiança pela comunidade: Era preto, o que não agradou a muita gente. Um professor
preto? Por que não um branco, como nas outras terras? O
branco sabe mais, pode ensinar mais. Agora, o que é que um professor preto sabe? (SILA, 2006, p. 103).
Sobre o imaginário imaginado acerca do próprio habitante negro, a comunidade
não crê na força de seu pensamento. A tarefa do Professor, no possível plano do
Régulo, é fazer ver que ―preto‖ pensa tanto quanto um ―branco‖.
Conclusão Como vimos, Sila traz ao romance a experiência de choque, ou seja, o momento
em que a consciência do indivíduo autóctone se depara diante de um outro, forasteiro e fechado no próprio continente cultural. A última tragédia relata a
experiência da colonização na sua tipicidade extrema. Como num conto de Primo
Levi, mas sem os exageros do recurso ao fantástico, o autor narra o trauma da colonização através de uma forma romanesca essencial, sob a perspectiva dos que
sofreram, daqueles que tiveram o curso de suas vidas retraçado compulsoriamente.
A história– enredo do livro e da colonização–, como explica o próprio narrador,
poderá ter outras versões/traduções e até desfechos diferentes, mas deseja, sobretudo, ser testemunho válido de uma condição da experiência bissau-guineense
no tempo da colonização tardia. Enfim, se fôssemos apontar um dos elementos da
narrativa de Sila como signo do romance ou da vida nele representada, nós elegeríamos a figura do narrador. É o narrador, e não a existência precária dos
personagens, que exerce uma função desestabilizadora na narrativa e no
imaginário. Ele é problemático na acepção de Georges Lukács (2000), porque busca, aqui e ali, compreender-se na medida em que procura compreender a
história (―passada‖) que recupera, e que não quer deixar jamais esquecer.
Referências bibliográficas: BENJAMIN, W. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1997. CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira. 8. ed. Belo Horizonte- Rio de Janeiro:
Editora Itatiaia Limitada, 1997.
CARDOSO, S. M. Oswald de Andrade: anti-heroísmo, literatura e crítica. Curitiba: Editora
CRV, 2010.
GRUZINSKI, S. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
HERNANDEZ, L. L. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. 2. ed. São
Paulo: Selo Negro, 2008.
JUNIOR ABDALA, B. Fronteiras múltiplas, identidades plurais. Um ensaio sobre
mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC, 2002.
LUKÁCS, G. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
PELISSIER, R. História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia (1841-1936). Lisboa: Estampa, 1987.
SAID, E. W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
SILA, A. A última tragédia. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
Sebastião Marques Cardoso. Autor de “Oswald de Andrade: anti-heroísmo, literatura e crítica” (Curitiba: CRV, 2010) e “João do Rio: espaço, técnica e imaginação literária” (Curitiba: CRV, 2011), é professor universitário, pesquisador e crítico literário. Atualmente, trabalha como docente permanente do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
E-mail: [email protected]
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3ª Feira Literária de Boqueirão De 21 a 25 de Março de 2012
Programa de Palestras
A Fronteira entre o Vazio e o Nada
Fífias
Conto
(…) Não é da verdade que se vive
neste mundo, não apelo mentiras.
Entre dúvidas e incertezas só me
sobravam perguntas. Vence-se antes na ideia de lutar? Difícil é vencer a nós
mesmos. A maior luta acontece dentro de nós. Quanto mais ganhamo-nos,
mais percebemos que nunca fomos donos de nós próprios.
A imaginação transcende as metas invisíveis do pensamento. Imaginava-me
num lugar paradisíaco onde as flores eram borboletas voando em forma de luz
e cor. Uma cascata azulada de águas límpidas de purificar qualquer alma. O
sol sem a quentura dos seus raios, brilhando e iluminando. Despertei. O bairro
estava tão escuro que nem a mim próprio conseguia ver. Lembrei-me que a
luz eléctrica era uma realidade de pouca gente por ali. Naquela mistura desa-
gradável entre a escuridão e a incansável canção dos grilos, soube que temia a
escuridão, não propriamente a escuridão, mas as forças ocultas que poderiam
existir nela. Procurei refúgio na iluminação que a lâmpada da casa do Muenhê
Alimo gerava. Sentei-me.
Instantes depois, vi Quito e a sua namorada andando de forma tortuosa. Volta-
vam da discoteca. Parece que a lição da morte da moça que fora envenenada
na penúltima vez que foram a discoteca, não fizera efeito algum.
- Será que ele perdeu o domínio dos pés? – Suspeitei. Mas ele estava tão
embriagado que confundia o bairro com o céu. Julgava-se no além, entre
nuvens e estrelas. Talvez, o álcool inventara um outro mundo nos olhos dele.
A sua namorada incansavelmente sustentava-o em
veias e forças, apoiava-o nos passos mal andados.
Aquele gesto fez-me entender que o amor suporta
tudo. O amor ama até nos defeitos, ajuda, o amor vence as curvas da vida.
Depois de entrarem no quintal ouvi uma voz ecoando de tal forma que dava a per-
ceber que boa coisa não era. Era o Muenhê Alimo ditando o quão importante era
não chegar tarde em sua casa, e, pior ainda com uma mulher que mal apresentara
a sua família. Ele recordava as regras da sua casa ao seu sobrinho: Quito, estava
em total silêncio, se respondia era apenas para ele mesmo.
- A noite tem donos – Repetia o Muenhê Alimo: Nas noites sacrificam-se almas e
bens. Não procurem viver atraindo à morte. Vocês jovens de agora confundem
muito o conceito ―diversão‖ com fumar; beber e se prostituir. Mas eu não quero
condenar a ninguém porquê o mais importante é sermos felizes naquilo que faze-
mos. É pena que há gente que é feliz de forma errada. – Dizia destacando todo o
olhar ao seu sobrinho. O frio da noite nem sequer impedia as falas dele. Queria
que aquele fosse um momento último para falar daquele assunto.
- A felicidade não se busca nos lugares, ela está dentro de cada um de nós. –
Olhando no seu sobrinho continuamente, deixou sobrar uma tristeza e pena dele.
Porquê as pessoas se enganam a si próprias? – Pensou. Infelizmente o errado
tornou-se opcional, e o juízo dos actos, cada um faz por si, desde que não envolva
segundos e terceiros!
- Porquê é que se matam antes de morrerem? (…)
Izidine Jaime - Maputo