revista literatas nº 23 ano ii

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Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 23 de Março de 2012 | Ano II | N°21 | E-mail: [email protected] O poeta brasileiro Castro Alves e o moçambicano, Rui Nogar, foram o centro das comemorações do DIA MUNDIA DA POESIA (21 DE MARÇO) em Maputo, num evento levado a cabo pelo Movimento Literário Kuphaluxa. Rui Nogar, nasceu a 2 d Fevereiro de 1935, em Lourenço Marques (actual Maputo), Moçambique. Castro Alves nasceu a 14 de Março de 1847, na fazenda Cabaceiras, a sete léguas da vila de Curralinho, hoje cidade de Castro Alves. Amosse Mucavele na Academia de Letras de Teófilo Otoni - Minas Gerais O escritor moçambicano de 25 anos de idade, dá mais um importante passo no seu percurso pelas artes literárias. Amosse Mucavele que é membro fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, é primeiro moçam- bicano a fazer parte da Academia de Letras de Teófilo Otoni. Calane da Silva Prémio Carreira 2011 Em Angola Abriu a Bienal Inter- nacional da Poesia, Luanda 2012 Fernando Alvim, vice-presidente da Fundação Sindika Dokolo afirmou, no acto da abertura da Bienal Internacio nal da Poesia, em Luanda, que o evento vai permitir que a juventude conheça mais sobre a origem da poe sia e da literatura angolana. Rainer Maria Rilke manda carta aos poetas Tradição e trans- gressão em Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa

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Leia-nos na Pg 10.

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Page 1: Revista Literatas nº 23   ano II

Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 23 de Março de 2012 | Ano II | N°21 | E-mail: [email protected]

O poeta brasileiro Castro Alves e o moçambicano, Rui Nogar, foram o centro das

comemorações do DIA MUNDIA DA POESIA (21 DE MARÇO) em Maputo,

num evento levado a cabo pelo Movimento Literário Kuphaluxa.

Rui Nogar, nasceu a 2 de

Fevereiro de 1935, em

Lourenço Marques

(actual Maputo),

Moçambique.

Castro Alves nasceu a

14 de Março de 1847,

na fazenda Cabaceiras,

a sete léguas da vila de

Curralinho, hoje cidade

de Castro Alves.

Amosse Mucavele na Academia de Letras

de Teófilo Otoni - Minas Gerais O escritor moçambicano de 25 anos de idade, dá mais um importante passo no seu percurso pelas artes literárias. Amosse Mucavele que é membro fundador do Movimento Literário Kuphaluxa, é primeiro moçam-bicano a fazer parte da Academia de Letras de Teófilo Otoni.

Calane da Silva

Prémio

Carreira

2011

Em Angola

Abriu a Bienal Inter-

nacional da Poesia,

Luanda 2012

Fernando Alvim, vice-presidente da

Fundação Sindika Dokolo afirmou, no

acto da abertura da Bienal Internacio-

nal da Poesia, em Luanda, que o

evento vai permitir que a juventude

conheça mais sobre a origem da poe-

sia e da literatura angolana.

Rainer Maria Rilke

manda carta aos

poetas

Tradição e trans-

gressão em Ualalapi,

de Ungulani Ba Ka

Khosa

Page 2: Revista Literatas nº 23   ano II

S E X T A - F E I R A , 2 3 D E M A R Ç O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 2

Vénias a heróis vivos e mortos

R aul Alves Calane da Silva. Menino mulato de Mikokwene, nos afluentes

solos do bairro suburbano da Malanga, no orgulho dos ma-rongas de Sala-

manga.

Antes só orgulho dos meninos que hoje Malanga pariu, mas agora, homem de perfil

honrado. Calane da Silva é premiado pela sua carreira.

Felizmente, um prémio que não se concorre e que é dado a vivos. Escolhido por méri-

to pelos homens.

Mas poderão os 25.000 USD ser o brinde certo para tão grande carreira, deste homem que abarca déca-

das de jornalismo, docência e militância na escrita? Autor de importantes obras da literatura moçambi-

cana, desde a poesia, prosa ao ensaio. Quem pode dar o que realmente merece um homem de músculos

eruditos, com sangue a fervilhar nas veias como uma Xicandarinha na Lenha do Mundo, cheias de letras

e activismo cultural?

Com certeza a este tipo de homem, fica-se a dever por tempos seculares, honras e reconhecimentos.

Que a sua obra seja propagada por estas e próximas gerações. Mesmo a presenciar este momento em

que se faz uma homenagem a si, apraz-nos recordar que a história é feita pelos homens. Que não se dei-

xe obras como Xicandarinha na Lenha do Mundo e Dos Meninos de Malanga, deste autor, caírem no

desaparecimento nas prateleiras, tal como ocorre com o Nós Matamos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo

Honwana. Uma obra em que se obriga a sua leitura, mas não está disponível no mercado.

O maior presente que se pode dar a um artista da palavra é que a sua obra se preserve, se propague e se

valorize.

Na vez que é nossa, fica nesta edição o nosso ritual de Ku Phalha, evocando o nome e os feitos de Calane

da Silva, Rui Nogar e Castro Alves.

De Angola, chegam-nos boas notícias. Abriram-se as portas da primeira Bienal Internacional de Poesia

– Luanda 2012. Embora pouco atrasada a presença de alguns escritores convidados dos países da CPLP, o

evento tem estado no centro das atenções do mundo lusófono e a literatura angolana, está em festa.

Em quanto isso, Rainer Maria Rilke comunica com poetas através das suas cartas. Na presente edição

trazemos a primeira. Uma leitura tida como obrigatória para quem esculpe a palavra, principalmente

nos primeiros passos. Ainda sobre as cartas, Amosse Mucavele, recebeu uma por estes dias que o torna

primeiro cidadão moçambicano, a pertencer à Academia de Letras de Teófolo Otoni. Passo dado em

direcção certa e responsabilidade acrescida.

Eduardo Quive

[email protected]

Editori@l

Page 3: Revista Literatas nº 23   ano II

Vénias a heróis vivos e mortos

R aul Alves Calane da Silva. Menino mulato de Mikokwene, nos afluentes

solos do bairro suburbano da Malanga, no orgulho dos ma-rongas de Sala-

manga.

Antes só orgulho dos meninos que hoje Malanga pariu, mas agora, homem de perfil

honrado. Calane da Silva é premiado pela sua carreira.

Felizmente, um prémio que não se concorre e que é dado a vivos. Escolhido por méri-

to pelos homens.

Mas poderão os 25.000 USD ser o brinde certo para tão grande carreira, deste homem que abarca déca-

das de jornalismo, docência e militância na escrita? Autor de importantes obras da literatura moçambi-

cana, desde a poesia, prosa ao ensaio. Quem pode dar o que realmente merece um homem de músculos

eruditos, com sangue a fervilhar nas veias como uma Xicandarinha na Lenha do Mundo, cheias de letras

e activismo cultural?

Com certeza a este tipo de homem, fica-se a dever por tempos seculares, honras e reconhecimentos.

Que a sua obra seja propagada por estas e próximas gerações. Mesmo a presenciar este momento em

que se faz uma homenagem a si, apraz-nos recordar que a história é feita pelos homens. Que não se dei-

xe obras como Xicandarinha na Lenha do Mundo e Dos Meninos de Malanga, deste autor, caírem no

desaparecimento nas prateleiras, tal como ocorre com o Nós Matamos o Cão Tinhoso, de Luís Bernardo

Honwana. Uma obra em que se obriga a sua leitura, mas não está disponível no mercado.

O maior presente que se pode dar a um artista da palavra é que a sua obra se preserve, se propague e se

valorize.

Na vez que é nossa, fica nesta edição o nosso ritual de Ku Phalha, evocando o nome e os feitos de Calane

da Silva, Rui Nogar e Castro Alves.

De Angola, chegam-nos boas notícias. Abriram-se as portas da primeira Bienal Internacional de Poesia

– Luanda 2012. Embora pouco atrasada a presença de alguns escritores convidados dos países da CPLP, o

evento tem estado no centro das atenções do mundo lusófono e a literatura angolana, está em festa.

Em quanto isso, Rainer Maria Rilke comunica com poetas através das suas cartas. Na presente edição

trazemos a primeira. Uma leitura tida como obrigatória para quem esculpe a palavra, principalmente

nos primeiros passos. Ainda sobre as cartas, Amosse Mucavele, recebeu uma por estes dias que o torna

primeiro cidadão moçambicano, a pertencer à Academia de Letras de Teófolo Otoni. Passo dado em

direcção certa e responsabilidade acrescida.

Eduardo Quive

[email protected]

Destaque S E X T A - F E I R A , 2 3 D E M A R Ç O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 3

Da escrita à musicalidade da palavra dita

Bienal Internacional de Poesia, Luanda 2012

Fernando Alvim, vice-presidente da Fundação Sindika Dokolo afirmou, no acto da abertura da Bienal Internacional da Poesia, em Luanda, que o evento vai permitir que a juventude conheça mais sobre a origem da poesia e da literatura angolana.

T eve início nesta quarta-feira na capital

angolana, Luanda, a Primeira Bienal

Internacional de Poesia (BIP), evento

que vai decorrer até 21 de Abril próximo, com sessões de debates,

recitais e música.

O Centro de Formação de Jornalistas, é o espaço que acolhe este evento

que contou no acto de abertura, com a presença da Ministra da Cultura

angolana, Teresa Cruz e Silva, o vice-presidente da Fundação Sindika

Dokolo, Fernando Alvim, dirigentes da União dos Escritores Angolanos,

entre outras figuras do panorama sociocultural.

Fernando Alvim, no acto de abertura do BIP, afirmou que as actividades

da Bienal Internacional da Poesia vão permitir à juventude conhecer mais

sobre a origem da poesia e da literatura angolana, segundo indica o Jor-

nal de Angola.

“Com este evento, pretendemos aproximar os amantes da escrita à musi-

calidade da palavra dita”, disse Alvim.

Durante a bienal estão previstos fóruns de discussão, às terças-feiras e

domingos, a exposição de 25 poemas de autores angolanos e estrangei-

ros, e exibições de trovadores, que vão animar os encontros.

Do estrangeiro, integram as mesas de debates, os escritores dos países

falantes de língua portuguesa, tais como, Roderick Nehone, Jofre Rocha,

Manuel Rui, Costa Andrade, Ernesto Lara Filho, Camila Vardorac, Eduar-

do Bonavena, Eduardo Quive, Ruy Duarte de Carvalho, Filimone Meigos,

Dinís Muhai, Luís Cezerilo, Aires de Almeida Santos, Guido Bilharinho,

Cláudio Daniel, Nina Rizzi, Amosse Mucavele e Trajano Nancova Trajano.

Fernando Alvim acrescentou que há um palco aberto às artes cénicas,

onde qualquer grupo de teatro pode intervir durante um mês, período em

que decorre a Bienal, aberta até às 23 horas. A Bienal Internacional da

Poesia oferece um espaço de convergência artística e cultural, com vista

a criar um intercâmbio entre os artistas, as suas criações, o público e a

natureza. “A música e poesia auxiliam esta reconciliação”, disse Fernando

Alvim, que assume a parte criativa do projecto, com a curadoria de Abreu

Paxe, João Maimona e Jomo Fortunato.

Participam da primeira Bienal Internacional de Poesia, 75 escritores, em

representação de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São

Tomé e Príncipe, Timor-Leste, Portugal e Brasil. Contudo, alguns convida-

dos, como os de Moçambique e Brasil, poderão juntar-se ao evento ao

longo dos próximos dias.

Poesia em exposição Paralelamente ao evento, notícias que nos chegam da Angola, indicam

que cinquenta poemas de autores angolanos e estrangeiros estarão

expostos na Bienal Internacional de Poesia, ao público com o intuito de

promover a literatura e a escrita.

Segundo Fernando Alvim, quem lidera a parte da criação no evento, de 21

de Março a 21 de Abril, estarão expostos poemas de Agostinho Neto,

Costa Andrade, Jorge Macedo, Roderik Nehone, Jofre Rocha, Arnaldo

Santo, Rui Duarte de Carvalho e Ernesto Lara filho.

A AngolaPress, noticia que estarão ainda patentes, poemas dos poe-

tas brasileiros como Aldemir Assunção, Guido Bilharinho, Nina Rizza,

Cláudio Daniel, Wilmar Silva. De Moçambique Dinís Muhai e Eduardo

Quive; Luís Costa e António Borges do Timor Leste; Corsino Fortes e

Elísio Gomes de Cabo Verde; Jerónimo Manuel e Conceição Lima de

São Tomé e Príncipe.

Fernando Alvim referiu que os presentes ouvirão ainda poesias de

Ernesto Castro e Fernando Aguiar, de Portugal, para além Odete

Semedo e Tony Tcheka, da Guine Bissau.

Redacção

Bienal Internacional de Poesia, declarada aberta.

Foto

: Jorn

al d

e An

gola

Amosse Mucavele é novo membro Correspondente da Academia de Letras de Teófilo Otoni - Minas Gerais, e o primeiro moçambicano a fazer parte da mesma. Fundada oficialmente em 20 de Dezembro de 2002,a Academia de Letras de Teófilo Otoni é composta por 30 membros titulares e efecti-

vos e tem um patrono, imutável, em homenagem a personalidades que tenham se notabilizado nas letras, nas ciências, nas artes, na política, na educação e na imprensa; conta ainda com um quadro social de mem-bros correspondentes, honorários, beneméritos e con-vidados de honra. A entidade tem dentre vários objectivos, congregar pessoas que se dediquem às actividades literárias e artísticas nas mais diversas formas de expressão; rea-lizar estudos e pesquisas na área da literatura local e regional; promover e incentivar a cultura através da realização de conferências, exposições, concursos, cursos e outras actividades de natureza cultural.

Amosse Mucavele, de 25 anos de idade, dá mais um

importante passo no seu percurso pelas artes literá-

rias, e è membro fundador do Movimento Literário

Kuphaluxa.

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Destaque Rainer Maria Rilke

Carta a um jovem poeta

Paris, 17 de fevereiro de 1903

P rezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e

amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca

da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada

menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre

resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas

tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos aconte-

cimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou.

Menos susceptíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, —

seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efémera.

Depois de feito este reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição pró-

pria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior

clareza no último poema Minha alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No

belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário

esteja apontando. No entanto, as poesias nada têm ainda de próprio e de independente,

nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompa-

nha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a

pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim,

depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com

outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro

redactor. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que dei-

xe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria

fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão

um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever;

examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a

si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si

mesmo na hora mais tranquila de sua noite: "Sou mesmo forçado a escrever?” Escave

dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela per-

gunta severa por um forte e simples "sou", então construa a sua vida de acordo com

esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-

se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se então da natureza. Depois procu-

re, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva

poesias de amor. Evite de início as formas usais e demasiado comuns: são essas as mais

difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de

pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que

deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência quotidiana lhe

oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em

qualquer beleza — relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se

exprimir, as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objectos de sua

lembrança. Se a própria existência quotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si

mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o

criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se

encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de che-

gar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, esta esplêndida e régia rique-

za, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensa-

ções submersas deste longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua soli-

dão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e fusco diante do

qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. Se depois desta volta para den-

tro, deste ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem

for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos,

pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida.

Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste carácter de origem está

o seu critério, — o único existente. Também, meu prezado Senhor, não lhe posso dar

outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra sua

vida; na fonte desta é que encontrará resposta à questão de saber se deve criar. Aceite

-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procurar interpretá-la. Talvez venha

significar que o Senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceite o destino e car-

regue-o com seu peso e a sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que

possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar

tudo em si e nessa natureza a que se aliou.

Mas talvez se dê o caso de, após essa decida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter

o Senhor de renunciar a se

tornar poeta. (Basta como já

disse, sentir que se poderia

viver sem escrever para não

mais se ter o direito de fazê-

lo). Mesmo assim, o exame de

sua consciência que lhe peço

não terá sido inútil. Sua vida,

a partir desse momento, há de

encontrar caminhos próprios.

Que sejam bons, ricos e lar-

gos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha.

Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição

e gravidade ao termo de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar

para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sen-

timento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.

Foi com alegria que encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo

por este amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale

-lhe, por favor, neste meu sentimento. É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e

eu sei apreciá-la.

Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agra-

deço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por

meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais

digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.

Com todo o devotamente e toda a simpatia,

Rainer Maria Rilke nasceu em Praga no dia 4 de dezembro de 1875. Depois de viver uma infância solitária e cheia de conflitos emocionais, estudou nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Suas primeiras obras publicadas foram poemas de amor, intitulados Vida e canções

(1894). Em 1897, Rilke conheceu Lou Andreas-Salomé, a filha de um general russo, e dois anos depois viajava com ela para seu país natal. Ins-pirado pelas dimensões e pela beleza da paisagem como também pela pro-fundidade espiritual das pessoas que conheceu, Rilke passou a acreditar que Deus estava presente em todas as coisas. Estes sentimentos encontra-ram expressão poética em Histórias do bom Deus (1900). Depois de 1900, Rilke eliminou de sua poesia o lirismo vago que em parte lhe haviam inspi-rado os simbolistas franceses, e, em seu lugar, adotou um estilo preciso e

concreto, que podemos perceber em O livro das horas (1905), que consta de três partes: O livro da vida monástica, O livro da peregrinação e O livro da pobreza e da morte. Esta obra o consolidou como um grande poeta por sua variedade e riqueza de metáforas, e por suas reflexões um pouco mís-ticas sobre as coisas. Em Paris, em 1902, Rilke conheceu o escultor Auguste Rodin e foi seu secretário de 1905 a 1906. Rodin ensinou o poeta a contemplar a obra de

arte como uma atividade religiosa e a fazer versos tão consistentes e com-pletos como se fossem esculturas. Os poemas deste período apareceram em Novos poemas (2 volumes, 1907-1908). Até o início da I Guerra Mun-dial, o autor viveu em Paris de onde realizou viagens pela Europa e pelo norte da África. De 1910 a 1912 viveu no castelo de Duíno, próximo a Trieste (agora na Itália), e ali escreveu os poemas que formam A vida de Maria (1913). Logo após iniciou a primeira redação das Elegias de Duíno (1923), obra esta em que já se percebe uma certa aproximação dos con-ceitos filosóficos existenciais de Soren Kierkegaard. Em sua obra em prosa mais importante, Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), novela iniciada em Roma no ano de 1904, empregou ima-gens corrosivas para transmitir as reações que a vida em Paris provocava em um jovem escritor muito parecido com ele mesmo.

(Primeira carta)

www.releituras.com

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Livros & Leitores

No âmbito da visita do Presidente da República de Portugal, Cavaco Silva, por ocasião da comemoração dos 10 anos da Independência de Timor, a União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) vai organizar uma exposição, em parceria com o Parla-mento Nacional de Timor. A exposição que será composta por três partes: as Cidades da UCCLA, acção da UCCLA e projectos da UCCLA em Timor, estará patente no Parlamento Timo-rense e o acto de inauguração, será presidido por Cavaco Silva, em Maio próximo.

“MAPUTO - Património Arquitectónico”

UCCLA organiza exposição em Díli

O Dicionário Changana-Português publicado pela Texto Editores é uma reedição revista e com acréscimos da versão publicada em 1996. A revisão foi realizada pelo autor com especial colaboração de Ezra Chambal Nhampoca, docente e investigadora da UEM. Nesta sua 2.ª edição, o dicionário comporta 14348 entradas, contra as 12000 da edição anterior. O dicionário pretende essencialmente fornecer ao falante de Changana os meios necessários para se exprimir em Português e fornecer ao falante de Português os meios necessários para compreender o que ouve ou lê em Changana. Para isto, o dicionário integra frases ilustrativas com a respectiva tradução e for-nece informação gramatical através de material ilustrativo que indica o género gramatical, a transitividade e o tipo de preposição que rege o verbo etc. Por outro lado, onde se achou que o equivalente em Português era difícil ou semanti-camente ambíguo quando isolado, o dicionário fornece sinónimos e/ou defini-ções complementares. Na referida edição, foi melhorado o sistema de remissões e cruzamento de infor-mação entre muitos verbetes. Isso ajudará o usuário a encontrar mais rapida-mente as palavras relacionadas. O dicionário apresenta em anexo os Elementos da Gramática Changana.

Bento Sitoe é docente e investigador na Universidade Eduardo Mondlane, no

Departamento de Linguística e Literatura. Ocupa-se das áreas de pesquisa e descrição das línguas bantu, lexicografia e tradução envolvendo línguas bantu. É autor de mais de 30 títulos em artigos e livros, dos quais se destaca: Dicionário Ronga-Português, Dicionário Escolar Inglês-Português (como co-autor). É ainda autor de quatro novelas em Changana e de peças teatrais na mesma língua.

Dicionário Changana-Português

T eve lugar na última quinta-feira, em Lisboa, o lança-

mento do livro “MAPUTO - Património arquitectónico”,

um presidido pelo Embaixador de Moçambique em

Portugal, Jacob Jeremias Nyambir, e que contou com a pre-

sença do Secretário-Geral da União das Cidades Capitais de

Língua Portuguesa (UCCLA), Miguel Anacoreta Correia.

A obra, a que UCCLA se associou, resulta de um trabalho de

investigação da Faculdade de Arquitectura da Universidade

Técnica de Lisboa, do seu Centro de Investigação C.I.A.U.D.,

tendo como autor o Professor Catedrático João Sousa Morais

(actualmente presidente do Conselho Científico), especialista

em Património Urbano da África Lusófona, e o professor Luís

Lage (actual director da Faculdade de Arquitectura e Planea-

mento Urbano da Universidade Eduardo Mondlane), a que

posteriormente se juntou o olhar da fotógrafa Joana Malheiro.

O objectivo desta obra é de registar e divulgar o valor patrimo-

nial da arquitectura da cidade de Maputo, possibilitando um

reconhecimento internacional, não só dos casos apresentados,

mas também abrindo outras possibilidades, como proporcio-

nando um roteiro de Arquitectura da capital moçambicana ao

leitor.

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Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa

Direcção e Redacção

Centro Cultural Brasil - Mocambique

Av. 25 de Setembro, N°1728,

C. Postal: 1167, Maputo

Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 07 46

603

Fax: +258 21 02 05 84

E-mail: [email protected]

Blogue: literatas.blogs.sapo.mz

DIRECTOR GERAL

Nelson Lineu

([email protected])

Cel: +258 82 27 61 184

DIRECTOR COMERCIAL

Japone Arijuane

([email protected])

Cel: +258 82 35 63 201

EDITOR

Eduardo Quive

([email protected])

Cel: +258 82 27 17 645

CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele

([email protected])

Cel: +258 82 57 03 750

REPRESENTANTES PROVINCIAIS

Dany Wambire—Sofala

Lino Sousa Mucuruza—Niassa

COLABORADORES FIXOS

Pedro Do Bois (Saranta Catarina-Brasil) , Victor Eustáquio (Lisboa — Portugal),

Mauro Brito.

COLABORAM NESTA EDIÇÃO

Silas Correa Leite

Kha Tembe

Dinis Muhai

Rita Dahl

Eliseu Armando

Ana Lúcia Gomes da Silva Rabecchi1

COLUNISTA Marcelo Soriano (Brasil)

FOTOGRAFIA

Arquivo — Kuphaluxa

PARCEIROS

Centro Cultural Brasil—Mocambique

Portal Cronopios www.cronopios.com.br

Revista Blecaute

Revista Culturas & Afectos Lusofonos

culturaseafectoslusofonos.blogspot.com

FICHA TÉCNICA

Cartas Espaço aberto para debate e comentários sobre assun-

tos literários. Mande-nos uma carta pelo e-mail: [email protected]

A vendedeira das frutas do Cemitério

Croniconto

Dany Wambire [email protected]

E u nem conhecia perfeitamente a Generosa Sentimento, esta que conseguia vida nos cor-

redores de um histórico cemitério da minha cidade. Dizia-se que a sua idade era igual a

do cemitério, que ela mesmo contribuíra para sua utilização. E como? Diz-se que a mãe

de Generosa Sentimento, a dona Derrota Mávida era de reconhecível mérito pela sua respectiva profis-

são, a prostituição. Reza a história: a mais antiga profissão da humanidade.

Sabe-se que nenhum homem aguentava com os encantos da Dona, ou melhor da meretriz Derro-

ta Mávida. Na verdade, ela era esguia mais que o eucalipto, era cheirosa mais que a roseira, ancas a se

arredondarem amiúde e nádegas bem calcadas pelas cabeceiras das calças, justas, de que ela dispunha.

Enfim, era bonita e partilhável como a melancia grande. Afinal, era o meu avô quem isto dizia: mulher

bonita é como melancia grande, ninguém a come sozinho.

Outrossim, sabe-se que Derrota Mávida exerceu com esmero a sua não diplomada profissão de

prostiputa faz quase duas décadas, antes do trágico acidente. Falo do acidente que deixou o seu rebento

― até então sem própria identificação ― livre dos devidos cuidados maternos. É verdade que Derrota

Mávida, tinha se decidido a nunca se engravidar, a não ser acometida por um de percurso acidente. A

querença, porém, não frutificou: ela chegou mesmo a anichar um feto pelo ventre adentro. E, desafiada

pelo destino, a prostiputa Mávida esperou por nove meses para que encovasse a sua própria sepultura.

Foi, no resto, numa tarde dominical em que a prostiputa era acometida por dores fortes de cortar à

faca. De instantâneo, ela entendeu que se tratava de dores perinatais, o bebé digladiando, quem sabe,

com os guardas ventrais para sair dessa reclusão que o amadureceu por nove meses. Bebé ingrato,

nem?!

Nesse momento, a Derrota Mávida se arremessou para um dos recantos da casa, agora cemitério,

e com os dedos foi encovando a sua sepultura antes do parto. Nunca continuava a tirar terra quando

durante a labuta de coveira avistava raiz de árvore qualquer, pois avisada ela estava: toda raiz é sombra

de um morto de perto ou longínqua distância temporal.

Terminada a lida de coveira, ela se colocou na imediação da sepultura, esperando pela vinda da

petiza, sem ajuda de qualquer parteira, cortando pessoalmente o umbilical cordão. No seguido, se lançou

à já feita sepultura, sendo tapada pelos movimentos involuntários dos membros da recém-chegada peti-

za.

Nas seguintes horas, pessoas muitas saíram a socorrer a bebé. Em vão. Pois a bebé já tinha alon-

gando os membros inferiores e superiores, já tinha apurado a fala, autorizando, para o espanto de todos,

aquele espaço a ser utilizado como cemitério. E não houve tardança para que o cemitério ficasse quase

empanturrado. As frutíferas árvores se multiplicaram, sombreando o chão todo, e nascia assim o negócio,

o ganha-pão da Generosa Sentimento. Não raras vezes saía a vender as frutas no maior supermercado

da zona. E, também, não raras vezes vinham pessoas a comprar as polposas frutas, mas mal viam a ven-

dedeira, a filha do cemitério, de imediato fingiam apenas apreciar as apetitosas frutas das árvores do

cemitério, bem estrumadas pelos abundantes mortos.

Mas era a própria Generosa Sentimento que encontrava astúcias para o avanço do negócio,

inventando discursos que deixavam os dissimulados compradores sem jeito.

― Vocês não podem deixar de comprar essas lindas frutas!

― Não, apenas estávamos apreciando! ― Retrucavam os fregueses, dissimulando vontades.

― Vocês não têm defuntos aqui no cemitério da zona?

― Temos, sim! Porquê?

― Então vocês devem comprar as frutas! São eles que me pediram para vender essas frutas, eles

é que estão necessitando de dinheiro.

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Poesia

Há um anseio em mim por noites sem noite, pelo dia

que nasce tardio, pelos imensos sóis nascidos em simultâneo, há um anseio por chuva, caindo

como véu. Há um anseio em mim, mas

não vontade, eu uso ferramentas simples, a voz do martelo e do

machado na noite mais escura. Como se martelando

eu pudesse tocar algo, uma noite escorregando pelo negro muro, os caracteres únicos, quem sabe um nome.

Momento perfeito

No subúrbio

um velho vulnerável

descansa na sua sombra

canta notas surdas

tenta não se atrapalhar

porque sua alma gesticula alto.

No fundo da rua

uma donzela encantadora

tilinta seios em turgescência

e pássaros de rapina

esforçam os músculos lisos

para conter a baba.

Cá por dentro

reina a fria dor

de descrever este momento perfeito.

Há um anseio em mim

Eliseu Armando - Lichinga

Rita Dahl — Finlândia

trançar para nós uma casa de lua no redondo silêncio da maresia e então só então enfeitar as carícias com a forma dos rostos deixar o licor da noite ensopar a nossa pele e depois só depois acordar embriagados de estrelas e com gotas de azul nas mãos

Dinis Muhai - Maputo

Os cabritos da brigada

não são cabritos

São cabritos humanos

que descobriram a mina no alcatrão

Maria que é mulher religiosa fica

embaraçada

quando é coagida a falar como homem

E o refresco sai disfarçado

por baixo da carta de condução.

Elegia desregrada para

a polícia Kha Tembe - Maputo

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Entrevista Thalles Gomes - Brasil de Fato

―Nós viemos de um continente onde se falam mais de mil línguas. Só no nosso país, temos 23

línguas. Cada uma dessas línguas vincula e mostra uma realidade cultural diferente. A pergunta

que vocês vão fazer é: como vocês tratam esse manancial todo?‖ É assim que o escritor moçam-

bicano Ungulani Ba Ka Khosa inicia sua intervenção sobre os rumos da Literatura Africana

durante a 2ª Flimar [Feira Literária de Marechal Deodoro], ocorrida entre os dias 7 a 11 de

Setembro de 2011.

Sentado ao seu lado, o também moçambicano Calane da Silva completa o quadro: ―Fala-se que

nós, em África, somos antagónicos, conflituosos. É mentira. As fronteiras dos estados, e nós

somos dezenas de países diferentes, foram demarcadas pelas potências coloniais. Isto quer dizer

que, em Moçambique, por exemplo, povos e etnias foram divididos ao meio. E nós temos de

construir nações a partir de territórios divididos. Esta é a prova fundamental da luta política e

cultural: aceitar as diferenças e construir uma única nação.‖

Em entrevista ao Brasil de Fato, os escritores moçambicanos abordam os principais desafios da

literatura africana hoje.

Brasil de Fato – É possível falar em uma literatura africana, com uma diversidade linguística,

étnica e cultural tão grande?

Calane da Silva – Nós podemos, partindo do ponto de vista geográfico, falar de uma literatura

asiática, europeia, norte-americana. É uma maneira de encaixar as coisas e depende de como nós,

teóricos, gostamos de compartimentar. Mas, na verdade, só existe uma única literatura, que é a

literatura humana, escrita pelos homens. Nós podemos compartimentar, generalizar, mas isso às

vezes é prejudicial, porque metemos todos no mesmo saco. Há singularidades, há diversidades.

No entanto, é bom que a gente mantenha um pouco esse sabor local, porque a globalização

está a fazer o contrário, está a vir lá de cima o original. Então eu prefiro que nós falemos de

uma literatura universal, e dentro da literatura universal nós localizemos as literaturas que se

fazem em diversos países do mundo.

E como se localiza a literatura moçambicana neste quadro?

Calane da Silva – A nossa literatura é fruto da oratura. É uma literatura de carácter oral, onde

também temos contos, temos poesia, temos os adivinhos, temos os dramas, os teatros, mas

tudo em nível oral. Porque era uma sociedade de iliteracia. Quem trouxe os alfabetos para

África, em específico Moçambique, foram os árabes, mais tarde apareceram os portugueses.

Isso para dizer que Moçambique tem a matriz cultural banto, que é a maioria, e tem aporte

culturais da Pérsia, da índia, da Arábia e da própria China. Então a nossa literatura é riquíssi-

ma. A literatura moçambicana é fruto dessa herança tradicional oral, mas também surge em

contraponto contra uma literatura colonial, que foi de carácter exótico até os anos de 1930, de

carácter doutrinário até os anos de 1960 e, até 1975, antes da independência, foi de carácter

urbano, onde os protagonistas eram sempre o branco, o português, o colono. Nossa literatura é

riquíssima porque temos aqui, por exemplo, o Khosa, de origem banto, o Mia Couto, de ori-

gem portuguesa, um Calane mestiço e depois aparece um [Suleiman] Cassamo, negro e islâmi-

co. Nossa literatura é riquíssima porque engloba a realidade específica de nosso país, a diversi-

dade cultural de nosso país.

Dentro dessa diversidade, qual o papel exercido pela língua portuguesa em Moçambi-

que?

“Precisamos

traduzir a

nós mesmos” Os escritores

moçambicanos

Ungulani Ba Ka

Khosa e Calane

da Silva falam

sobre os desafios

da literatura

Africana.

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Entrevista Thalles Gomes - Brasil de Fato Ungulani Ba Ka Khosa – A língua portuguesa funciona como um manto aglutinador, essa

própria língua também contribui para a existência das outras línguas. Vocês têm 23 línguas,

como é que vocês fazem? Aí é que está a língua portuguesa a servir de suporte e a transportar

essa diversidade. Por exemplo, quando chegamos aqui e vimos um ônibus, nós dissemos: ―epa,

está a vir um machimbombo‖. E nós temos muitas dessas palavras que transportamos para a

língua portuguesa. O importante aqui é que essas línguas não morram, não desapareçam. A

língua portuguesa, ela própria, vai ganhando uma certa soberania e autonomia porque vai aglu-

tinar todos esses elementos provenientes do banto. Tudo isso enriquece a língua portuguesa e

faz com que nós olhemos a língua e digamos: ―epa, isso aqui vem daqui, essa outra palavra

dali‖.

Calane da Silva – Outro ponto é a questão da unidade nacional e da diversidade linguística.

Será que a diversidade linguística nos pode fazer rachar o país? Qual o papel da língua portu-

guesa? É um papel aglutinante e unificador, onde todas as etnias através do português podem

se comunicar. Mas isto não significa que, por termos escolhido o português como língua ofi-

cial, desprezemos as línguas locais. Pelo contrário. Em grande parte da zona do interior do

país, há uma escolarização na língua materna de origem banto. Quando chega ao secundário,

começa a usar português como língua de comunicação, mas já tem sua base na língua materna.

Isso quer dizer que vocês tomaram o português para vocês e o transformaram numa lín-

gua que também é moçambicana?

Ungulani Ba Ka Khosa – É verdade.

Calane da Silva – Todas as línguas do mundo vivem de empréstimos. As nossas línguas ban-

tas também foram influenciadas por outras línguas. As línguas são dinâmicas, inventivas. Nas-

cem, crescem e também morrem. Então o português, felizmente, é tão dinâmico, recebe sem-

pre tantos empréstimos que é sempre uma língua em evolução.

Que influência exerceu o processo de independência moçambicano para o desenvolvi-

mento da literatura no país?

Calane da Silva – Depois da independência [1975], havia de nossa parte uma utopia de cons-

truir um mundo igualitário um mundo mais igual, sem assimetrias. E esse projecto foi, diga-

mos, torpedeado pelo imperialismo da época. Nos bombardearam, nos invadiram e criaram um

grupo de desestabilização armado por eles, financiado por eles, que criaram um problema gra-

víssimo. Os alvos fundamentais deles eram destruir as escolas e os hospitais, ou seja, os alicer-

ces para o novo país que estava a nascer. A guerra civil e de desestabilização, com 1,5 milhões

de mortos, atrasou esse processo de integração por dezasseis anos. Nos dias de hoje já temos

cinco a sete nomes internacionalizados em nossa cultura. Ela é forte e dinâmica. Deixe-nos

respirar. Estamos a ganhar fogo. Não tínhamos no ensino superior nenhum professor doutor.

Passados esses trinta anos, já podemos contar com 40 professores doutores, formados em

várias universidades do mundo, incluindo Brasil, Portugal, França, Itália, Inglaterra, Espanha,

EUA. Não só na área técnica, mas também na área cultural. E isso vai enriquecendo cada vez

mais e possibilitando a investigação daquilo que é nosso.

Como vocês enxergam a relação entre as literaturas africana e brasileira?

Calane da Silva – O Jorge Amado, para nós dos países africanos de língua portuguesa, foi

fundamental no despertar de muitas coisas que estavam lá, em nossa volta, mas não percebía-

mos. Os Subterrâneos da Liberdade, Capitães de Areia foram fundamentais para que nós des-

pertássemos para o que estava a nossa volta. E quem levou esses livros, que eram proibidos na

época colonial pela Polícia Política de Moçambique, foram os marinheiros brasileiros que

aportavam no porto de Maputo. Foram pelas mãos desses marinheiros que esses livros chega-

ram até nós e circulavam, apesar de proibidos. Ferreira Gullar disse certa vez que quando os

artistas e intelectuais brasileiros fugiram para o mundo, também trouxeram o mundo para o

Brasil. É o que acontece connosco. A luta armada de libertação nacional contra o colonialismo

português abriu-nos novos horizontes. Durante a luta armada nós víamos o governo militar

brasileiro como nosso inimigo, porque ele apoiava o colonialismo português. Eu fui designado

pelo governo moçambicano para vir aqui em 1981 para conhecer o outro Brasil que estava a

mudar com a Amnistia. Eu entrevistei o Lula ainda como sindicalista metalúrgico em São Pau-

lo, o Chico Buarque, o Jorge Amado, aquela gente toda que estava a despontar para uma nova

realidade política, económica e também cultural. Houve então um certo descongelamento de

relações entre Brasil e Moçambique. A guerra de desestabilização atrasou esse processo e só

agora esse intercâmbio ganhou força outra vez.

Ungulani Ba Ka Khosa – Eu acho que há um novo patamar que está a se abrir, porque já está

havendo um intercâmbio muito grande. Primeiro, nas universidades. Já há intercâmbio entre as

universidades africanas e universidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Pará, Maranhão, Bahia,

Pernambuco, Paraná, Alagoas. Eu acho que esse é o primeiro patamar de intercâmbio. O

segundo é o próprio mercado livreiro, que é outro ponto, outros interesses económicos, edito-

riais, de marketing. Nesse momento, com o novo acordo ortográfico, vai se permitir que a cir-

culação de livros seja maior. Nossa saída para o exterior não terá de passar pelo crivo portu-

guês. E nem vocês precisarão passar por Portugal para chegar a nós. Isso vai permitir com que

nós não tenhamos mais o atravessador. Há um grande desconhecimento entre as literaturas de

língua portuguesa. Um desconhecimento completo, costas voltadas. O importante para nós que

escrevemos em português é implementarmos um conhecimento mútuo e sem complexos.

E como está esse diálogo dentro do próprio território africano?

Ungulani Ba Ka Khosa – A nossa capital, Maputo, está a cerca de 500 km da capital econó-

mica da África do Sul, Johanesburgo. Mas se fores perguntar a nós ou aos sul-africanos se

conhecemos a literatura um do outro, não conhecemos nada. Nada. Hoje, na África do Sul, a

literatura é vasta e riquíssima, mas não é conhecida. E mesmo assim, aquilo que os sul-

africanos exportam da literatura deles é aquilo que os próprios europeus querem conhecer.

Vocês aqui na América Latina provavelmente encontram com alguns vizinhos da Argentina ou

Paraguai. Talvez com algumas traduções. Mas nós dificilmente conhecemos um escritor do

Malawi, da Zâmbia, do Congo, da Tanzânia. E não é só uma barreira de língua. Mesmo entre

os de língua inglesa, os zimbabueanos não conhecem o escritor tanzaniano ou queniano. Mas

tu vais para Alemanha, és convidado, e encontras lá os escritores africanos. Não há intercâm-

bio, não nos conhecemos.

Calane da Silva – É um problema de base sociopolítica e económica. Nós temos de nos jun-

tar, nós temos de olhar para nós mesmos. A Europa está falida. Estou a falar do ponto de vista

ecológico e cultural. Já faliu, já deram tudo. O que é que está acontecendo é a emergência dos

antigos países colonizados – a China, a Índia, a África do Sul, o Brasil. Porque nós já temos

independência tecnológica. Fabricamos o chip e fabricamos o satélite, feito por nós e enviado

por nós. Então é tempo de nós trocarmos as nossas literaturas. Não precisamos deles para

nada! É urgente que a América Latina, que a África, que a Ásia se juntem e somem esforços.

Que eles não nos traduzam, vamos nós traduzir a nós mesmos. Isso só vai depender de nós.

Temos de nos conhecer a nós mesmos. Juntemos esforços e eles que nos engulam!

<QUEM SÃO>

Calane da Silva foi jornalista durante 25 anos e participou activamente do processo de inde-

pendência do país. É autor de livros de poesia e ensaios literários, além de professor universi-

tário e director do Centro Cultural Brasil - Moçambique em Maputo.

Ungulani Ba Ka Khosa é director do Instituto do Livro de Moçambique. Sua obra Ualalapi

venceu o Grande Prémio de Ficção Moçambicana e foi considerada um dos cem melhores

romances africanos do século 20.

www.brasildefato.com.br

Errata Na ediçào número 22 da Revista Literatas, foi publicada uma entrevista intitulada “Viagem expansiva para o lugar inabitado”, cuja assinatura na página 8, indicava correctamente a fonte (REVISTA ZUNAI). No entanto, na página seguinte (9), vem erradamente no topo assinado pelo nome de Eduardo Quive. À revista Zunai, que é a verdadeira fonte em que foi retirada a entrevista, e aos leitores, a direcção editorial da Revista Literatas, endereça os pedidos de desculpas.

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Colunistas Filosofonias

Marcelo Soriano — Brasil [email protected]

I

Comentário: O Canto do Rouxinol

Ouça o canto do rouxinol, solitário, a cantar escondido... Há mais vir-tude ali, que o coro de todos nós, a lamentar em comunhão. ....................................................................

Mini crônica: O Mestre das Palavras

O Mestre das Palavras não é o que as apanha em sua rede de pe-sca. O Mestre das Palavras também não deve ser aquele que trama a rede com dedos de velho sabedor. O Mestre das Palavras deve ser aquele que mergulha em meio ao cardume. E beija o brilho prateado das letras que enfeitam a correnteza do mundo. O Mestre deve ser um velho de longas vivências brancas, como se fosse barbas grisalhas. E que respira embaixo d'água... E beija e ama todo o brilho que encontra... E depois retorna à superfície... Alimentado... E ao ponto de nos dar o que comer.

....................................................................

Poema: Das Minhas Gavetas

(A Incisão, em 09/05/2010)

Caneta é bisturi. Incisão na alva folha... Carne pálida... Sangue azul... Aos borbotões, esvaem-se as palavras...

....................................................................

- E tenho dito!

Impotente é o anjo que não voa porque é incapaz de sonhar.

O passo certo

no caminho errado

Nelson Lineu - Maputo

S omos pobres

Não porque assim nascemos

Fomos adquirindo

Quando aceitamos a vida nos dizer

Que tinhamos que seguir o ocidente caminho

Para o mundo, em muitos casos para nós mesmos.

Chegamos a um ponto incorruptivel, contra a própria

soberania de estado ou nossos próprios instintos.

Temos que dar um basta! Eu, Magubede não vou permitir esse auto enterro nessa vala.Enterramos os

nossos nomes para em troca sermos outros, até como

nos fornicamos recebemos receita a ser ontologico para

ele chegava a ser ontologico, é urgente sairmos dessa

caverna, que pela mesma pobreza que nos torna

destacaveis, não esta coberta, por isso há como sair.

As gordas para nós sinonimizavam formousura, bem-estar, bons tratos. Essa não significação dos nossos dias

deixa-me atordoado, não falo do passado ou presente

deixa-me sem futuro. A última forma de tratar era a

medida do amor à esposa. As minhas mãos sendo

acariciada pelo corpo dela, ela devolvendo pela mesma

moeda, mas com valor diferente. Nos seus braços me

escondo do frio, as vezes me protejo de mim. Hoje

tenho que desenredar-me, aceitar que nela vive uma falta de auto estima, e de cuidados? Envergonhar-me

domeu amor? Tudo isso foi por plantarem a televisão,

com tanto por plantar por esse país todo, preferem

fazer a miséria engordar e na minha mulher colherem

desatributos como: gulosice, falta de cuidados,

desleixo. A beleza, elegância, elógios estão na

magreza. Assim como naquela imagens de pessoas

paúperimas quase sem barriga. Eu acho que eles querem nos tornar assim. Somos doados vidas em

canais de televisão estrangeiros, os nacionais e o s

telespectadores em corro dizem yes we can say yes.

Como em tudo que tem a ver com eles, eu não acho

que seja doação, quem doa não quer nada em troca.

Como é que podemos aceitar a redefinição da nossa

beleza, podemos até ver com os olhos alheios, falar com voz alheia, mas o coração e os sentimentos são

nossos.

[email protected]

Telecegueira

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Eduardo Quive [email protected]

Em Agosto de 2012

Maputo será a capital da Literatura

Festival Literário de Maputo

Saiba como participar em:

http://festivalliterariodemaputo.blogspot.com

[email protected]

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N ikotile já não era donzela nenhuma. Não era mais

mulher pura que pudesse sagrar as terras que ficaram para os Nkomanes.

Chega a casa. Nos seus olhos, um brilho irónico,

sem esperança, mas com certeza, cheia de promessas que não precisaram de palavras para se fazerem sentir. Nikoti-

le ainda cheirava à espinhosa.

A verdade estava iminente para o coração duma mãe que um dia sentiu a dor e o arre-

pendimento de ter acreditado nas promessas que se fazem na rua. Na astúcia da carne sob o pecado. Promessas sem massingucates nem madodas para testemunhar.

Marculino Jonasse, que seria seu esposo, fez a mesma coisa com sigo. Foram promessas

sem cumprimento, quando a sugou a inocência e foi casar-se com cidades desconheci-das, depois de ter garantido, com forças predadoras, um casamento que não acontecerá

nunca. Nunca, é isso mesmo. A vila recebera anúncios da sua morte em tempos pouco

passados. Como terá acontecido a sua morte? A bocalheirada zona explica:

“Marcolino era um homem adúltero. Invergonhosamente pousara em vivências com

mulheres de outros nas redondezas. A muito se comportara de tal modo.

Antes de escalar o leito da D. Destina, ficara com Nessi, irmã mais adulta da mãe da Kotile. Tivera consigo sete filhos, fruto de dois anos de envolvimento sexual. Um sexo

escabroso e imparável. Eram filhos atrás de filhos. A mulher chegara a morrer no oita-

vo parto. Coitada, suportara com tamanho sofrimento as sete cesarianas. Como supor-tar mais uma? Como continuar viva para receber dores duma tesoura, a rasgar a barri-

ga, por onde sairia mais um filho de sacana? Como? Não resistiu. Ficara atraída pelos

deuses profundos. Rebentou

as vivências e entregou-se a morte. Marcolino não dignara seu padecimento nem se quer o falecimento. Usurpara-se de

outras mulheres em pleno antes do oitavo dia. Teve mais três bastardos.

Desta vez foi com Mabiana, a do lado. Depois imigrara para D. Destina a quem já foi mbuia nos tempos da falecida. Mas na Destina só deixara uma filha, a Kotile.

Depois alongou-se para Melita, essa já fora a última. Vivera apenas dias de filhação de

mais três. Mbuiava com Ndezi. Mas Melita não deixou aos baratos e vingou-se. Matou-o a facadas. A matança sucedeu-se em pleno acto sexual.

Marcolino Jonasse morreu em estado de ejaculação, quando não era mais ele, incumbi-

do em missões masculinas.”

Cuidar duma donzela em Nkomane, já foi tarefa de humanos, agora nem os soberanos o

podem fazer. Apenas os que habitam as profundezas divinas.

Deuses. Uma virgem é sagrada. E a sua consagração vem do horizonte. Do poente onde muitas almas redundam em noites sem luar.

Antes, todas donzelas eram reservadas aos rituais e cultos tradicionais de invocamento

de espíritos, em que tinha que se escolher as mais humildes para o casamento. Um outro

ritual satânico, onde envolve-se sangue e outras insanidades. Impurezas que purificam o rei e, mantém vivas, as almas de defuntos mulherengos.

E D. Destina que não vivera com homem para lhe ajudar em tais cuidados sob os manda-

mentos...

Os gastos que a Nikotile representava, vingavam-se da verdade oculta e esta aparecia de forma mais ou menos, deixando em algumas vezes, clara a impressão de ter crescido do

dia para noite.

Depois de ter, entrado em casa a passos mudos, entregou-se a um banho longo e quente, cheia de lágrimas que revelam uma satisfação intimidada, cobiçandose a si mesma.

Enquanto a água escorre com pressa o seu corpo, Nikotile pensa.

“A minha primeira noite seria escolhida pelos meus pais, ou então, se eu fosse a

escolhida nos ritos da noite de luar, entregar-me-iam ao homem mais macho

destas terras. Faria o primeiro amor com um desamor e desconhecido. Ainda me

obrigaria a chamar-lhe de nkata, como se de marido se tratasse. Mas nem morta podia aceitar qualquer mussatanhoko para este meu corpo que só a água

conhece o sabor. Este meu corpo que se mbunya só para os meus olhos. Estas

pernas que cobiço de mim mesmo, decalcando cada sonho destes homens sexuados. E de mim não teriam qualquer fio de cabelo. Fosse apenas o manguço

da minha escolha. Maldito seja o tal deus que me faria mulher de qualquer

mufana.”

Pensamentos grandes. Nikotile esfregava na cara dos deuses tradicionalistas do Nkoma-

ne a valentia da mulher que ainda sonha em viver a emancipação.

- Nikotile. És tu? – Pergunta tia Destina – quem está aí? Nikotile? De imediato, a água deixa de derramar-se e a chuva de lágrimas ganha espaço, ilustrando

um ressentimento não sentido. Uma lenda se invade nos olhos da D.Destina que se

espanta. - Nikotile!

- mamã...

- Algum problema? Está tudo bem?

- Sim mamã. Não há problema. E continuou a banhar-se esquivando-se de si mesma. A água libertava a fumaça que bas-

tava um simples cheiro para a D. Destina se queimar. Em terras Nkomanes tal coisa é de

se estranhar na pequeneza. - Mas você está bem, Nikotile? – Volta a perguntar receosa de estar a ser vítima de men-

tira. Mas Nikotile, não liberta as verdades que as desconhece.

- Estou bem mamã. Agora me vou dormir. E se ia calada dominado o único chão que a conhecia. Era o ir de uma escuridão em que

se vivera muitos sonhos duma só vez. Até antes, Nikotile fora mulher só dos deuses da

terra. Fora virgem. Agora é mulher. Mulhereza trazida por um homem chamado Muzon-

de. Muzonde vem de zondar. zondar é perseguição, traição e sinónimo de manhoso. E tal como são as tradições, um

nome possui fortes presenças na vida de quem o recebe. Se é Muzonde, só pode ter

manias de zondar. Fora assim com os seus antepassados.

Ex-virgem Por onde a água escorre, fica o vazio

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Conto Calane da Silva - Moçambique

Xicandarinha na Lenha do Mundo

Ensaio

Rodopio grande nas areias de Minkhokweni. Nós e a vida. Ladeira enorme coberta de pamas (8) e pitei-

ras (9) onde, depois das chuvas de Novembro, também despontavam malmequeres. Rodopio nosso e da

mamã. Madrugada nas bancas do bazar, em casa venda de xicalabiça e ximantana até altas horas.

Naquele dia dois dos mabandido mais famosos em todo o Minkhokweni bebiam. N'Wa-manarro e

Julião. O primeiro, grande e musculoso, recém-saído do calabouço, ganhara a alcunha pêlos costumados e certeiros três socos que derrubavam qualquer gigante. O segundo, Julião de seu nome próprio, mais

baixo e magro, era esguio e rapidíssimo no contra-ataque. Músculos de aço, cabeçada demoníaca.

Chuvisca. No arejado barracão construído ao fundo do quintal, os bebedores intrépidos provocam direc-

ta e indirectamente os dois inevitáveis contendores. O ceptro de maior brigão e a quem as mulheres

temiam e se entregavam continuava nas mãos de NTWa-manarro.

Rodopiou um desejo de violência nas mãos nervosas dos dois mabandido. Mamã advertiu que não que-

ria confusão dentro de casa. Pancadaria só lá fora. Em vão. O álcool não res-peita palavras. Entretanto,

no meio do barracão, em lume brando, a xicandarinha. Agora, o seu corpo enorme e enegrecido, apesar

da cinza e areia da lavagem quotidiana, ostenta já uma asa desengonçada pelo uso. Arquejante naquela

madrugada fria de Junho, a xicandarinha ferve a sua água indiferente ao fogo humano mais forte que a

circunda.

— Ha I Kine Júlio (10) — disse N'Wamanarro, quando Dindinde, viola querido em todo o bairro, desa-fiava uma marrabenta, ritmo recente e alucinante a dardejar caniços acesos de desejo nas ancas volup-

tuosas das mulheres.

Foi o pretexto para Julião, nervoso e espectante. Júlia era bonita. Seu corpo ainda jovem devia ser mais

saboroso que massala (11) madura. Rodopiou um impulso irresistível no peito do Julião. "Quem dança

com ela sou eu!". Com o seu braço de aço afasta a reboliça anca de Júlia que ondulava provocantemente

em N'Wamanarro.

Violento, o grande combate começava.

A mamã, força e coragem memoráveis, antevê o perigo de uma morte violenta acontecida em casa.

Empurra demolidora os dois brigões, exigindo aos berros que larguem os sinistros canivetes de ponta-e-

mola. Consegue, ninguém sabe como.

Mas o combate a soco e cabeçada continua para durar. Duas joelhadas tremendas de Julião derrubam o gigante que cai estrepitosamente sobre a nossa xicandarinha. Mas água quente não queima corpo a fer-

ver.

Gritámos e incitámos os nossos fregueses a ajudarem-nos a empurrar os dois belicosos para fora do

quintal. Sacudidos pelo recente exemplo da mamã, xibalos e djimizanas (12) uniram-se no esforço para

os tirar.

Quando a claridade começou a despontar por detrás dos eucaliptos do "compound" de magaízas "Mann

Jorge" e já quase a 100 metros da nossa casa, N'Wamanarro caiu desfalecido junto a uma enorme pama.

Julião, bem esmurrado mas feliz, olha vitorioso para a pequena multidão que o admira. A partir daquele

momento os mabandido tinham outro chefe.

No quintal da nossa casa, no meio do barracão, a xicandarinha não ficou incólume desta noite de rodo-

pio. Mais amolgada, tinha a asa solta. O funileiro ficava longe e era caro. Arames grossos, bem virados

a alicate, recolocaram a asa partida. Muleta feia, mas funcional. Ósculos de fogo em nós. Viajámos sonâmbulos entre o trabalho e os livros. Eduardo, o mais velho, alei-

jado de uma perna por uma injecção mal dada em criança, é atacado pela zona, nome estranho a rotular

uma doença provocada por sono a menos e "stress" (13), conforme afirmavam alguns médicos da época.

Pouco depois é a mamã que cai de cama com a mesma doença.

Agora são os nossos olhos que ardem mesmo sem o fumo subindo do fogão da xicandarinha. Coitada da

nossa chaleira! Corpo marcado, sofrido, mas sempre imprescindível. Ah! Grande tio Dinasse, pouco

durou para saborear de novo o chá da sua oferta.

Morávamos em nova casa. Desta vez nossa, nossa mesmo, construída em frente à da maravilhosa tia

Gumende. Para a erguer, tivemos de abrir à catanada um terreno então impenetrável de piteiras e

micaias. Piores foram as cobras, bem venenosas, a disputar o espaço. Uma até mordeu a mamã. Apavo-

rados e estupefactos vimos a nossa velha apenas a espremer a mão mordida e ir lavá-la com sabão. Nada lhe aconteceu. Estava vacinada contra os ofídios. Poderosos e milenares antídotos, estas vacinas fabrica-

das pêlos nossos nhangas (14)!

Infalíveis contra cobras, doenças várias e até espíritos malignos da nossa ancestralidade ronga.

Depois da zona veio o tifo. Só a mamã é que apanhou e sobreviveu. Em casa a vida não parou neste

intervalo de corpos doentes. Apenas uma vez abrandámos, remoídos de angústia. Tinham-nos roubado a

xicandarinha!

Desengonçada, já velha mas sempre operacional, ela ainda causava inveja pelo seu tamanho e resistên-

cia. Quem nos roubara?

Metade de Minkhokweni conhecia a xicandarinha. O alerta foi geral. Fregueses habituais, vizinhos,

prostitutas e mabandido prometeram averiguar. Nossos amigos das futeboladas de fím-de-tarde, desde o

Babá, mulherengo mas sempre prestável, até aos Leong, filhos do cantineiro chinês do bairro, foram devidamente avisados.

Ao fim do terceiro dia a boa nova chegou. A xicandarinha fora finalmente descoberta. Júlia, a incansá-

vel Júlia, rosto já a enrugar prematuramente, boca queimada a álcool e mulala, descobriu a xicandarinha

em casa de Ximatana. Assim chamado por preferir esta bebida mais reservada a mulheres, Ximatana era

estivador-carregador nas horas vagas, pois em tempo inteiro ocupava-se especialmente da visita às

"barras" (15), copo na mão, sempre sequioso, roubando amiúde para sustentar o vício.

O pessoal queria castigá-lo severamente. Não deixámos. Dois meses sem poder beber em nossa casa era

um bom castigo. Castigo grande para Ximatana que deixaria de saborear uma bebida melhor fabricada e,

sobretudo, a possibilidade de beber fiado quando na bolsa lhe escasseassem as quinhentas.

(...)

Tal como a xicandarinha, resistente mas envelhecida, a mamã buscava mais forças no próprio trabalho

depois de cada internamento no hospital ou dos últimos recursos dos nossos nhangas. A Guida começou a namorar às escondidas. Com um maguerre, como diziam os vizinhos, referindo-se

ao operário branco rondando o quintal e procurando espaço para meter a mão na mulata jeitosa.

Certo dia mamã não esteve com contemplações. Avisada das investidas do intruso, mandou encher a

xícandarinha. Retirando a tampa larga quando fervia e segurando firme a chaleira pelo gargalo e base

com um saco de serapilheira sincronizou bem a passagem do conquistador. A água saltou e ouviu-se um

grito surpreso e dolorido do outro lado do quintal. Alvo atingido. A xicandarinha mais uma vez funcio-

nara em pleno. Também era uma arma, estava provado.

Mas de nada valeu esta guerra particular da mamã. A água quente da xicandarinha só fez ferver mais o

coração apaixonado do operário que após dois anos de muitas peripécias acabou por casar com a

mana mulata dos seus olhos.

Em casa as noites continuavam agitadas. Num sábado luarento a situação explodiu a ferro e fogo.

O quintal estava apinhado de gente bebendo. Num canto xibalos entoavam canções e danças de

Inhambane ao compasso de um bandilhado com dedos exímios por um velho tocador. Mais próxi-mo do zinco da casa, um gira-discos a pilha lançava para o ar o som trepidante de um novo ritmo, a

madjuba.

De repente uma patrulha a cavalo irrompe pela porta derrubando parte do quintal de caniço. Gera-

se, confusão, susto e ódio entre aquela centena de farristas bêbados de sábado.

Nas mãos da policia montada brilham espadas. Tentam arregimentar as pessoas num canto para

depois as prender. Já passava das nove horas. Começa uma luta encarniçada pela fuga. Homens e

cavalos engalfinham-se furando o caniço à cabeçada e coice. Alguns polícias caem dos cavalos

mas, temerários, aventuram-se a pé em perseguição dos fugi-tivos. Azar. Vários foram atirados de

repente para o meio das piteiras.

Dentro do quintal a batalha continuava. Um dos cavalos, esporeado à toa por um polícia enraiveci-

do, derruba a cozinha. Os cascos ferrados da besta rebentam panelas de barro, quebram tachos e

amolgam a nossa xicandarinha. Stefana, pequeno gigante empurra-zorras do C. F. M., escoiceado, sevícia o cavalo que o maltratou.

O polícia estatela-se. Ouvem-se dois tiros. A batalha ganha sangue. Stefana escapa de uma morte

certa por milagre, aliás, por nervosismo do polícia desvairado. Mas uma das balas ainda lhe furou

de raspão um dos braços.

As pessoas, mesmo espadeiradas, não se queriam deixar prender. De cerca de uma cen-tena que

eram, a polícia só conseguiu arrebanhar umas quinze. Foi com elas que fomos parar à esquadra.

A situação desta vez era grave. Houvera confronto, inadmissível para os polícias. Todavia, uma

boa estrela brilhou bem na altura na esquadra da polícia montada. Já de madrugada e quando os

processos estavam a crescer na mesa dos guardas de serviço, apareceu um velho comissário da

polícia que era um antigo amigo do papá. Noutros tempos houve qualquer favor que o pai lhe fez

aquando funcionário da Alfândega, recordou-se depois a mamã. O comissário lá nos safou de apu-ros em memória do velho. A nós e aos restantes presos. Afinal... Todos trabalhavam e não tinham

sido presos na rua depois das nove...! Quando se quer, as leis moldam-se ao sabor dos chefes...

De regresso a casa, já manhã alta, o dia revelou cruamente os estragos. Quintal e cozi-nha derruba-

dos, animais mortos na capoeira escangalhada. Quando erguemos as chapas derrubadas da cozinha

os nossos olhos pararam. No meio dos tachos destruídos, a nossa escoiceada xicandarinha mostrava

bem visíveis, ao meio do seu bojo enegrecido, dois furos de bala. Um grande silêncio cresceu em

nós. Agora também as balas.

A xicandarinha só poderia ferver água com menos de metade da sua capacidade. Osculada por

outro fogo que não o da lenha, não a quisemos contudo pôr fora de combate. Continuaria a funcio-

nar. Era preciso moderar, mas não parar.

Há dois dias que as chuvas não paravam. Torrenciais, pareciam uma cortina de chumbo líquido

caindo devastadoras. Chuvas de fome, estas de Dezembro a Janeiro, meses que em casa sempre pressagiaram doenças e morte.

As águas, em correntes impetuosas, juntavam-se na zona alta da Malanga e galgavam medonhas

até Minkhokweni. Iniciámos um dique protector à volta da casa. Suor e sangue estavam ali naque-

las paredes de madeira e zinco. Não deixaríamos que fossem engolidas de qualquer maneira!

No terceiro dia a situação agravou-se. A rádio anunciou que se tratava de uma depressão denomi-

nada "Claude". Um vazio opressivo pairava em toda a casa, agora silente de fre-gueses. Aliás, des-

de as últimas confusões, moderámos as vendas, ao mesmo tempo que adoptámos uma táctica de

vigilância de modo a despovoarmos o quintal ao primeiro alerta, refreando assim o ímpeto policial.

Mas a água caindo violenta sobre o telhado, que rangia aos golpes de vento, aumentava-nos a ten-

são pela impotência perante a natureza.

— Nhandayeyoooô...! (16) Nhandayeyoooô...! gritavam vozes pedindo socorro no meio da noite. Também cercados, nada podíamos fazer. Já sobre o caniço do nosso quintal e do outro lado das

piteiras, as águas em fúria rasgavam a terra mole, abrindo gretas de vários metros de profundidade,

arrastando toneladas de lodo e areia para lá da ladeira, cobrindo a Rua das Estâncias, saltando sobre

o longo muro gradeado dos C.F.M., assoreando, inundando e inutilizando as linhas férreas.

A chuva continuava a cair sobre o nosso silêncio. A rádio falava já em grandes catástrofes no cam-

po. Os gritos de "Nhandayeyô! Nhandayeyô!" tolhiam-nos de angústia.

Finalmente no quinto dia as chuvas amainaram. Investigando cautelosamente, respirámos de alívio

ao ver a sapata de cimento da casa incólume, mas à beira do abismo cavado pelas águas. Igual sorte

não teve o quintal e a enorme cozinha com despensa que tínhamos construído em substituição da

outra. Desapareceram engolidas pela enchurrada na noite do último dia da depressão tropical. A

desgraça tocou a todos. Vizinhos nossos tiveram pior sorte, perdendo tecto e haveres. Os velhos do lugar, abanando as cabeças de carapinha alva, afirmavam condoídos que era uma

grande desgraça, para logo a seguir pressagiar convictos:

— A natureza veio avisar que muito sangue e fogo vão correr na nossa terra, muita gente vai mor-

rer!

Solidariedade foi enorme entre os pobres e remediados de Minkhokweni na reparação dos estragos.

Porém, os tractores da Câmara Municipal apenas apareceram na Rua das Estâncias para desasso-

rear a estrada. Para os nossos lados só surgiram meses depois, mas sob a pressão e mando dos abu-

tres das negociatas com terrenos e prédios de ren-dimento, unhas afiadas para novos espaços.

— Mas onde ficou a xicandarinha? — perguntou o Carlitos, já a tentar abrir um caminho de traves-

sia pela enorme vala pluvial.

Guardada num canto da nova cozinha acabou também por ser devorada pelas águas em convulsão.

Ninguém mais a viu. Mesmo depois de os tractores terem terraplanado toda aquela zona, ela não apareceu.

As águas sepultaram definitivamente a nossa xicandarinha no chão revolto de Minkhok-weni.

Xicandarinha de fumo e fogo, xicandarinha de água e vida, xicandarinha pássaro e arma, xicandari-

nha de sangue e balas, a nossa xicandarinha libertou-se da lenha do mundo oxidando-se nas mes-

mas areias onde apodrecem os homens.

Olhámo-nos apreensivos. A mamã, meditativa, apenas nos disse o mesmo que meses depois nos

lembraria quando um senhor de fato e gravata, título de propriedade numa mão e autorização cama-

rária noutra, nos intimava a desmantelar a nossa casa do seu terreno.

— A xicandarinha não tinha braços nem cabeça para se defender e lutar. Nós temos, meus filhos.

Coragem. Amanhã começaremos nova vida.

Excerto …. Obra de Calane da Silva

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Profa. Dra. Ana Lúcia Gomes da Silva Rabecchi1 (UNEMAT) Texto apresentado no XII Congresso Internacional da ABRALIC / Curitiba, Brasil Ensaio

RESUMO: Através da subversão histórica, examinamos a obra Ualalapi, de Ungulani Ba Ka

Khosa, nas suas várias narrativas, evidenciando a dinâmica de fronteira e ambigüidade que

modela a técnica de Khosa ao recuperar os valores culturais moçambicanos. Com ironia

transgride a noção do ―herói‖ através de uma tessitura que opera entre tradição e modernidade. Nesse sentido, este trabalho constitui-se como um espaço de reflexão acerca

das formas de poder e resistência que operam na escrita a contrapelo do documento oficial.

Palavras-chave: releitura histórica, Ualalapi, tradição e

modernidade.

Neste espaço de reflexão tomamos a obra Ualalapi (1990), de Ungulani Ba Ka Khosa como objeto

simbólico do imaginário cultural moçambicano e veículo para a releitura da História, não como uma

recordação nostálgica mas como uma interlocução com distanciamento crítico, já que o texto

literário tem sido um objeto simbólico muito importante na (re)construção da sociedade, sobretudo em espaços políticos emergentes, que vivem de forma ambígua e tensa a sua póscolonialidade, como

afirma Mata (2002, p. 29).

Ligado profundamente à história de sua sociedade Ba Ka Khosa reatualiza na obra Ualalapi a figura

de um mito moçambicano num presente sempre em interação com o passado e o futuro. O que

parece estar em foco para Khosa nessa obra é o jogo entre construção identitária nacional e seu

questionamento, suas conseqüências e idealizações como ―patrimônio herdado do passado‖,

evidenciando as formas de resistência e violência que caracterizam esse passado. Vemos, portanto,

que Khosa cumpre aqui o preceito de Inocência Mata de que, ―O que importa hoje estudar são os

efeitos das relações de poder, seja entre entidades diferentes externas, seja entre entidades que

participam do mesmo espaço interno‖ (MATA, 2007, p.40). Assim, o que faz Khosa é um diálogo

entre o discurso histórico enquanto representante oficial da verdade dos fatos e a ficção questionando

a impossibilidade de acesso a uma verdade única, através da incorporação de motivos míticos. A obra é um conjunto de seis contos, aparentemente independentes, porém interdependentes quanto

ao elo que constitui a releitura da personagem do imperador nguni – Ngungunhane, enquanto

representação de poder, da etnia dos nguni, vindo do sul da África, que invadiu e colonizou os

tsongas, no sul de Moçambique, em confronto com o exército português no fim do século XIX. Cada

conto nos abre uma perspectiva diferente sob a qual se podem visualizar os feitos e o caráter desse

imperador que vai se construindo ao longo das narrativas num conjunto do qual se entrevê

acontecimentos históricos até à captura de Ngungunhane, que se dá no último conto. Cada uma das

narrativas é precedida de um pequeno texto italizado designado Fragmentos do fim com o qual

mantém diálogo numa desconstrução/reconstrução de Histórias em Estórias.

Opiniões favoráveis e contrárias ao hosi (nomeação em língua tsonga de rei) criam uma linha de

alteridade no discurso histórico da obra que leva o leitor a questionar as ―verdades‖ moçambicanas, a começar pelo seu título Ualalapi que já denota uma falsa referência ao leitor, uma vez que este é o

nome de um guerreiro nguni a quem é destinada a missão de matar Mafemame, irmão de Mudungazi

(depois chamado Ngungunhane-Gungunhana). Este guerreiro dá o título ao conjunto de relato,

porém sua passagem se dá apenas no primeiro conto.

Em uma das passagens do romance Ualalapi há um discurso premonitória que identifica, na

realidade, esses conflitos sangrentos:

Estou com medo, Ualalapi. Estou com medo. Vejo muito sangue, sangue que vem dos

nossos avós que entraram nestas terras matando e os seus filhos e netos mantêm-se nela

matando também. Sangue Ualalapi, sangue!

Vivemos do sangue destes inocentes. Porquê, Ualalapi? -É necessário, mulher. Nós somos um povo eleito pelos espíritos para espalhar a ordem por

estas terras. E é por isso que caminhamos de vitória em vitória. E antes que o verde floresça

é necessário que o sangue regue a terra (KHOSA, 1990, p. 32).

O diálogo entre história e ficção é a marca predominante na obra que se abre com uma nota

do autor a expor o tema a desenvolver, nomeadamente a figura de Ngungunhane enquanto

representação de poder, porém alertando-nos para a utilização propositada e anárquica das palavras

imperador, rei e hosi, constatadas, então, página depois, pelas citações históricas de Ayres de

Ornelas e do missionário protestante George Liengme, ambos contraditórios na configuração do

perfil de Ngungunhane, ora como um homem de certo ar de grandeza e superioridade, ora de

expressão bestial, diabólica, horrenda. Entre luz e sombra, grandeza e pequenez, Khosa dramatiza

em seis episódios a desmistificação das versões diferentes da história desse imperador. Além de entretecer por fios ficcionais e históricos a relação de poder e opressão em que o sujeito tanto pode

ser o português quanto o próprio africano, reflete, simultaneamente sobre o conceito de nação e de

identidade cultural, não plenamente aclarados e estabelecidos.

Então, o que se nota no projeto de Khosa é a reconstrução da noção de herói – peça estruturante da

tradição -, com que o imperador já foi associado, rebaixando a figura do herói em opressor do povo

Tsonga, aquele que não só aterrorizou como silenciou esse povo, contextualizado principalmente em

―O último discurso de Ngungunhane‖, em que a personagem é apresentada com um poder oculto e

aterrador de vaticinar o futuro de Moçambique.

E por todo lado, como uma doença, começarão a nascer crianças com a pele da cor do mijo

que expelis com agrado nas manhãs [...] e haverá homens com vestes de mulher que percorrerão campos e aldeias, obrigando-vos a confessar males cometidos e não cometidos,

convencendo-vos que os espíritos nada fazem [...] E aí o mundo terá mudado para sempre

[...] Anossa história e os nossos hábitos serão vituperados nas escolas sob o olhar

atento dos homens com vestes de mulher que obrigarão as crianças a falar

da minha morte e chamarem-me criminoso e canibal (KHOSA, 1990, pp. 119-121).

Durante todas as narrativas, porém, não temos um delineamento convicto de quem foi

Ngungunhane, parecendo constatar que as leituras da história serão sempre dúbias, e a imagem da

personagem deslizante entre ficção e história, pois como bem afirma a epígrafe que abre a narrativa,

de Agustina Bessa Luís ―A História é uma ficção controlada‖, podendo ser lida e interpretada

dependendo das circunstâncias e relações de poder que a sobredeterminam.

A releitura do passado pela literatura incorpora o senso histórico através das lacunas que os

discursos já formulados não conseguem preencher, intervenção deliberada no modo como se

reconstroem os fatos que ganham consistência, tenham ou não ocorrido. Retomar o passado

com

intenções diferentes e dentro de modelos variados se torna uma prática recorrente na prosa de

ficção contemporânea nos países africanos de língua portuguesa. É dessa forma que Ba Ka Khosa recupera aspectos intrigantes de Ngungunhane, famoso pela resistência que opôs aos

portugueses nos finais do século XIX. Tanto quanto estes aquele provocou a destruição do

império de Gaza (sul de Moçambique), deixando um rastro de miséria, crueldade, sofrimento

para o povo tsonga.

O romance, outra designação de gênero que toma a obra, dá-nos a idéia de como os

portugueses foram invadindo essa parte da África, um ponto de vista que contrasta com os

fragmentos históricos oficiais portugueses, que representam a história da perspectiva do

colonizador, dando uma pincelada sobretudo no andamento da campanha militar e a ocupação

do território com um tom de heroicidade para o colonizador. Mas a obra também não poupa o

colonizado, responsabilizando-o de certa forma pela sua própria tragédia.

Se no passado os nguni eram uma força invasora e Ngungunhane o último rei de um estado

colonizador e opressor, a narrativa institucional é hoje bem diferente, segundo Fernando Bessa Ribeiro (2005), afirmando que na literatura Khosa é um dos poucos escritores moçambicanos

contemporâneos a assumir uma posição inequivocamente contra-a-corrente. O próprio mito de

Ngungunhane é explorado em vários momentos políticos, segundo Bessa, como visão positiva

e apologética, de importante papel histórico, até ser bloqueado em outro momento e,

finalmente, em 1982 tomado como figura heróica da nação moçambicana por Samora Machel,

imposto pela urgência de reforçar a identidade e a coesão nacionais num contexto de guerra

civil e agressão externa.

Para Bessa, é manifesto que a elite dirigente tentou fazer de Ngungunhane um símbolo

coletivo que pudesse ser apropriado pelas populações como o primeiro dos grandes heróis do

Estado moçambicano, o herói por assim dizer clássico, em perfeita compatibilidade com os

interesses da liderança do regime, num contexto político de conflito. A invenção de heróis é um processo fortemente enraizado na história e nas lutas políticas e sociais em torno dos

processos de construção da memória e da identidade nacionais.

Voltando aos contos, os assuntos e personagens marginalizados ou ex-cêntricos dão a tônica

da narrativa, cujos quadros históricos realçam um romance de temática histórica, utilizando os

novos paradigmas da historiografia e da visão pós-moderna. Assim se cria a outra visão da

História ―de baixo‖, diferentemente da oficial ―de cima‖. A margem ou o território de fronteira

faz-se, então, lugar propício para novas possibilidades e explorações não só da história, mas do

caudal cultural de um povo. É nessa fronteira porosa entre história e ficção que se desloca com

propriedade Ba Ka Khosa.

Os feitos das personagens fictícias não são fixados pelos documentos históricos, mas, na

maioria dos casos, o autor se acautela para que não os contradigam, não se preocupando no

entanto com a veracidade ou não dos fatos, respondendo com isso ao projeto da história nova de que não há uma verdade única para os fatos mas muitas versões sobre, de acordo com os

interesses ideológicos, deixando-nos entrever como a própria forma da narrativa histórica

serve para os interesses do poder e da dominação, como vimos enfatizando, na esteira dos

estudos críticos de Inocência Mata.

Com traços etnográficos da oralidade africana e do realismo mágico sul-americano, com quem

Khosa confessa ter afinidades, visto a realidade ser extremamente semelhante à africana, pois

é uma realidade preocupada em ―contar histórias‖ (A escrita está em mim), a obra goza de uma

indeterminação genológica, segundo Leite em Literatura moçambicana: Herança e

eformulação, que constata ser ―uma constante nas narrativas pós coloniais, que partilham a

autobiografia, a narrativa mítica, e utilizam recursos a procedimentos e formas orais‖. Leite diz

que, em África a arte de narrar oral faz parte do cotidiano africano. ―Conversar não é apenas trocar idéias, antes contar histórias que exemplificam as ideias‖ (2003, p. 89) e acrescenta: ―

Estes novos narradores, repõem na escrita a arte griótica, o maravilhoso do era uma vez e,

refrânica e encantatoriamente, vêm contar a forma como se conta, na sua terra, encenando as

estratégias narrativas, em simultâneo à narração‖ (idem, p.92).

Em cada conto o autor concedeu-nos uma nova vista sobre a História para traçar o perfil de

Ngungunhane e o seu tempo e deixou a nós leitores a tarefa de compor os fragmentos desse

mosaico. Dessa maneira, Khosa questiona a verdade por um gesto pulverizado por críticas e

isso através de estratégias que recorrem a vários procedimentos, com principal destaque para o

processo paródico, que sugere uma distância crítica que permite a indicação irônica da

diferença no próprio âmago da semelhança (HUTCHEON, 1991:47), numa interlocução com o

texto histórico que se pretende transgredir para ultrapassar. Esse procedimento perpassa todo o texto, a exemplo, o terceiro Fragmento do fim que se diz

mostrar o início do relatório à posteridade do coronel Galhardo. Assim descreve a ocupação de

Manjacase, onde os portugueses foram buscar Ngungunhane, mas só encontraram a cidade

vazia e barbaramente a incendiaram. Pelas rasuras do texto oficial, o narrador acrescenta com

ironia o que para ele é importante:

- O facto de ter profanado com um ímpio o lhambelo, urinando com algum

esforço sobre o estrado onde o Ngungunhne se dirigia na época dos rituais

(...).

- O roubo de cinco peles de leão que ostentou na metrópole, como resultado

duma caçada perigosa em terras africanas.

- O facto de ter, pessoalmente esventrado, cinco negros com o intuito de se certeificar da dimensão do coração dos pretos (...) (KHOSA, 1990, p. 56)

O enfoque voltado para o interesse do autor revela bem o que vimos falando, das relações de

poder e interesse em favor dos que escrevem os documentos históricos e dos que os escolhem

para trabalhá-los. Ordenar fragmentos históricos em imagens que signifiquem realmente o fato

é uma tentativa ilusória, pois um erro na escolha ou na interpretação pode redundar em versão

diferente da História. Esta problemática parece estar ressalvada na estória O diário de Manua

em que o narrador nos conta a história de um diário encontrado nos escombros da capital de

Gaza, com uma letra ―tremida, imprecisa e tímida‖ que foi atribuído a Manua, filho de Ngungunhane e se

encontra já roto e carcomido pelos ratos. ―As letras que restaram estão soltas.

Tradição e transgressão em Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa

Page 14: Revista Literatas nº 23   ano II

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Ensaio Juntando as cinco letras tem-se a palavra morte. Ou temor. Ou tremo‖ (KHOSA, 1990, p.105). O que se

nota são imprecisões que sofrem interpretações, exemplo provável de como o historiador constrói os

fatos, não tão diferente de como o ficcionista imagina a cena.

No mesmo conto há uma inversão paródica quando o narrador registra a partida de Manua num paquete

de Moçambique a Lourenço Marques comparando às testemunhas orais ―do viajante zarolho que por estas terras aportou com um volumoso manuscrito entre as mãos e que mais versos fez

cantando esta ilha enquanto saciava a sede e a fome que o atormentava...‖ que Leite considera uma

―inversão parodicamente exagerada da retórica da representação histórica‖ (1998, p.87). O ―volumoso

manuscrito‖ se trata d’Os Lusíadas, inscrito na memória coletiva portuguesa como um monumento

nacional. Neste conto seu autor serviu de ―espanto e comiseração das negras islamizadas em verem um

branco esquálito, longe de saberem que aquele homem magro e famélico relançaria ao

mundo...‖ (KHOSA, 1990, p. 97-98) uma obra de tamanha grandeza, diminuída aqui simbolicamente

pela descrição da miséria do viajante português.

Da mesma forma que a narrativa desmistifica o mito camoniano também o faz com o mito

criado em redor de Ngungunhane, transmitido de geração em geração como se percebe no final da

narrativa em que um griot reconta a história do mito ao redor da fogueira, a partir de sua

mundividência africana. Assim, letra e voz são no romance de Ba Ka Khosa fontes deslizantes que oferecem elementos não só estruturantes para essa narrativa como elementos mágicos para a

imaginação. A forma da escrita, legado europeu, é apropriada transgressivamente por Khosa com a

ajuda da oralidade, pois como diz Manuel Rui, poeta e ficcionista angolano.

Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Interfiro, desescrevo

para que conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu da minha identidade (RUI apud CHAVES, 2004).

―Interferir, desescrever, inventar‖ apresentam-se como palavras de ordem nesse processo de

revitalização do território possível. A recuperação integral do passado é inviável, mas pode ser

reinventada com aquilo que o presente oferece (CHAVES, 2004).

O caráter sagrado do passado como explica Leite, detecta-se numa atmosfera cujo equilíbrio precário depende da observância das normas,

tornado-se a sua explicação ou caracterização inacessíveis, pelo menos aos iniciados. A escolha de um cenário histórico, que se orienta para uma época longínqua e de contornos imprecisos, relembra a sacralidade da origem e da fundação (1998, p. 91).

O uso desta ―cronologia mítico-histórica‖, que é muito freqüente nas literaturas africanas

Contemporâneas pretende prolongar no presente o registo da Memória dos tempos antigos, e este caminho retrospectivo mais do que resultante de uma preocupação nostálgica, é uma forma de confronto com um presente histórico, muitas vezes crítico e problemático (LEITE – Revista Sarará).

É dessa forma que Ungulani Ba Ka Khosa através da releitura do passado desloca a narrativa

da História para a estória, da visão do centro para a visão da periferia, descentralizando as

estratégias discursivas eurocêntricas numa atitude de ruptura e carnavalização (Bakhtin), mas

também reivindicando uma reposição de valores próprios, incorporando processos da cultura oral, subjugada pela hegemonia da escrita. Como afirma Gilberto Matusse ao definir a

construção de uma imagem da moçambicanidade:

Como uma prática deliberada através da qual os autores moçambicanos, inseridos num

sistema primariamente gerado numa tradição literária portuguesa em contexto de semiose

colonial, movidos por um desejo de afirmar uma identidade própria, produzem estratégias

textuais que representam uma atitude de ruptura com essa referência. Esta imagem consuma-se

fundamentalmente na forma como se processa a recepção, adaptação, transformação,

prolongamento e contestação de modelos e influências literárias (1997: 76).

Na esteira de Matusse, podemos afirmar que Ungulani Ba Ka Khosa relê e reescreve a

empresa histórica e ficcional com manobras transgressivas, fazendo uma ligação entre o tempo

do império Gaza e os acontecimentos do pós-independência em Moçambique, filtrando,

desfigurando e reconfigurando um mundo que nunca mais seria o mesmo após a colonização, traduzindo, assim, a transformação irrevogável, como resume o discurso premonitório de

Ngungunhane ―E aí o mundo terá mudado para sempre‖ (Khosa, 1990, p.121).

Referências bibliográficas

CHAVES, Rita. ―O passado presente na literatura africana‖, in Via Atlântica – Departamento de

Letras Clássicas e Vernáculas – FFLCH – Universidade do Estado de São Paulo – nº 7, 2004.

HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz, Riode Janeiro: Imago

Ed., 1991.

LEITE, Ana Mafalda. Literaturas Africanas e Formulações Pós-coloniais. Lisboa: Edições Colibri,2003.

____________. Oralidades & Escritas nas literatura africanas. Lisboa: Edições Colibri, 1998.

__. “Modelos críticos e representações da oralidade africana”, in Via Atlântica –

Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas – FFLCH - Universidade de São Paulo – nº 8, 2005.

________________.“Literatura Moçambicana: Herança e Reformulação”, in Sarará – Revista

eletrônica de literatura e de língua portuguesa. Disponível em:

http://www.revistasarara.com/int_pente_finoTexto02.html

KHOSA, Ungulani, Ba Ka. Ualalapi. Lisboa: Caminho, 1990.

____________________. A escrita está em mim. Entrevista concedida a Rogério Mangane.

Disponível em:

http://www.maderazinco.tropical.co.mz/entrevista/ungula.htm

MATA, Inocência. A literatura africana e a crítica pós-colonial – Reconversões. Luanda: Editora

Nzila, 2007. Coleção Ensaio -37.

MATUSSE, Gilberto. A construção da imagem da moçambicanidade em José Craveirinha, Mia

Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 1998. RIBEIRO, Fernando Bessa. A invenção dos heróis: Nação, história e discursos de identidade em

Moçambique. Departamento de Economia e Sociologia/ Centro de Estudos Transdisciplinares

para o Desenvolvimento/ Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - Vila Real, 2005.

Fífias

Era sábado em Xai-xai. Fazia calor de encurtar as calças. Lineu, este sentado a direita, ex-residente de Quelimane, província da Zambé-zia, reconheceu um amigo de infância, Nelson., homem que marcou o seu percurso existencial. Aliás, as grandes bocas falam “Lineu é Nelson Lineu em memó-ria desse seu amigo, ora sentado a esquerda.” Bocas famintas de falar dos outros. Uma intromissão à realidade alheia. Este homem, se quer encontra-se em Quelimane. É um louco em plena Praça do Município de Xai-xai. Se bem que, prestando aten-ção neste retrato histórico, parece que ele, o Nelson, amigo do Lineu, apesar de vítima de doença de juízo, sabia muito bem o que fazia. No entanto, algo há de inquietan-te: De facto, Lineu, é Nelson Lineu, mas o que falta sabermos é se terá nascido e vivido parte da sua infância em Xai-xai? Ou se Nelson, o louco, é o que nasceu em terras Zambezianas? Bom, fica-nos o soluço, ninguém pode negar a amizade fraterna destes dois. As imagens falam por si! Pura Fífia

Page 15: Revista Literatas nº 23   ano II

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23/03/2012, sexta-feira

PALESTRAS

(CEFAR)

14h - 15h

O Medo, o livro e o leitor, com Jairo César (PB) 15h - 16h

Literatura de Entretenimento: A conquista do Leitor, com Mabel Amorim (PB)

16h - 17h Tempo de reinventar: Um escritor descoberto aos 62

anos, com Carlito Lima (AL) 17h - 18h

A nova Poesia da Bahia e do Nordeste, com José Inácio Vieira de Melo (BA)

19h - 20h O Teatro de Lourdes Ramalho e os dramas da cultura

popular, com Vanusa Silva (PB) 20h - 21h

Afinal, o que você sabe do Lula? com José Neumanne Pinto (SP)

24/03/2012, sábado

PALESTRAS

(CEFAR)

14h - 15h

Como se forma um Crítico Literário, com Hildeberto Bar-bosa Filho (PB)

15h - 16h

Literatura Contemporânea e as novas mídias de comuni-cação, com Wander Shirukaya (PB)

16h - 17h Jornalismo Cultural na contemporaneidade, com Aluízio

Guimarães (PB) 17h - 18h

Os Planos Estaduais e Municipais do livro e da leitura, com Roberto Azoubel (PE) e Rosália Guedes (DF)

3ª Feira Literária de Boqueirão De 21 a 25 de Março de 2012

Programa de Palestras

Raul: Assim Seixas!

Trombadinha é a fome (Pichado Num Muro in Sampa)

-A última vez que o vi, estava saindo da sede do então Diário Popular, o mesmo jeitão alumbrado, então o cumprimentei por educação – não sou do tipo fã histérico ou baba-ovo - mas o Raul Seixas simplesmente apertou a minha mão demoradamente e me deu um abraço, como se eu fosse da familia. Familia Contra Ataca? -Pensei, discriminando, claro, com os meus botões: deve estar pirado, entrou numas. Ora, isso ele sempre foi em todos os sentidos e insurgências. Já pensou? Depois ouvi o blues lindo que ele fez quando internado numa clínica periferia s/a da vida. Correm as lendas. -E vai uma: depois de procurar o que tomar, viu embaixo da pia de casa um litro meio que escondido de vinho. Mamou direto. Alguém da casa che-gou e, vendo o caso vazio, reclamou na bucha: o vinho tava azedado, tinham guardado pra usar como vinagre. Ele, o Seixas Raul tomou o livro de vinagre inteirinho. -Canções com letras-mantras. Com letras-protesto. Com letras-crônicas. Com letras que mesmo aqui e ali tachadas de birutas, davam sentido a voos músico-letrais. Ou lítero-musicais. Todo ele uma espécie mestiço tropical-latino de Zimermam-Dylan na fase woodstock. Será o impossível? -A metamorfose ambulante que bagunçava as opiniões formadas sobre tudo, escamoteando os ouros de tolos. E os tolos de ouro da vida mumifi-cada em regras, modismos e hipocrisias gerais... Era o roqueiro daqueles anos festivais-vernizes, típico mochileiro, maconheiro, festeiro e criticador de peso e quilate. Na veia. -Raul Seixas criticou igrejinhas, teve a tchurma toda a favor, porque ele criticando no fazer arte era um, no dia-a-dia era uma flor, uma moça. Qual-quer musica dele cantada por qualquer um, vira sucesso. Porque ele foi único no que fazia de rock pauleira para ser comestível entre pizzas e crushs. Pois é. -Pouca voz e muita letra. Se surgisse hoje, estouraria. Pra época era vanguarda. O Brasil tem nele o melhor roqueiro, melhor que Rita Lee (que de ovelha negra pintou global, argh!), pré Cazuza, pré Legião, uma espécie adiantada de Cássia Eller de blue-jeans. Já pensou? -Se fizesse teatro, seria Plinio Marcos. Se fosse poeta, seria Glauco Matoso. Se fosse fêmeo seria Elis da fase pimentinha ao deus-dará. Mas era único no gênero, figurinha carimbada. -Sentado no trono de seu apartamento, tinha idéias, corria compor, tava escrita a letramusica. Amigão, tinha momentos de recolhimentos, encuca-va essas e outras estações, mas, pan-arteiro, sabia que em tudo havia arte e ele tinha um seu próprio filão. Sorte da MPB que com ele foi muito mais que MPB. Foi Música Popular Parabólica. Parabolizado. No entanto, muito mais do que parcialmente fervido, no frever dos ovos. -Agora, mais do que nunca, o andam cantando em verso e prosa pelaí. Deve ser alguma coisa datada. Mas se você cansar da nova música popu-lar brasileira, que não é nova, não é música, não é popular, não é brasileira, ouça o Raul. Se você penou com a fase neobossa nova das novelas globais, saque o Raul. Ou mãos ao álcool. Pior, se você cansou desses novos roqueiros b ana nas que viçam bigs brothers por aí, ouça o Raul e que o Raul seja, quero dizer, trocadilhando, Raul Seixas! -Pra ser um puta roqueiro, tem que ouvir Raul Seixas primeiro. Dá saudades. Para não dizer que não falei de flores, como é que pode morrer tão cedo? Por essas e outras, perdemos a cabeça estrambólica dele que dava o que falar, o que não falar, o que assinar embaixo, cantando refrões e letras diferenciadas.A Mosca da sopa das brasileiranças ufanistas pra curtume -Um saradíssimo porra-louca, fazendo carnavales com guitarras e algo entre Hawai e Índia. Hawaíndia? Como cabeças & mentes marcam, fazem falta, ele ainda será cantado por tantas gerações futuras. Da que veio geração tubaína, passou pela geração coca cola, e agora cai no diapasão da Geração Teflon, que esquenta mas não quer realmente aderência. Tensão para exatidão, diria Paul Valery. -O Maluco Beleza era só luz e Rock. Raul Seixas se foi pra ficar

-Assim Seixas! -0-

Metamorfoses

Silas Correa Leite* - Brasil

*Silas Correa Leite, Letrista-compositor de rocks, blues e baladas inéditas

E-mail: [email protected] - Blogue: www.portas-lapsos.zip.net

Autor de O HOMEM QUE VIROU CERVEJA, Crônicas Hilárias de um Poeta Boêmio – Giz Editorial,

SP, no prelo, Prêmio Valdeck Almeida de Jesus , Salvador Bahia 2009