revista literatas ano ii - nº 33

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Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 08 de Junho de 2012 | Ano II | N°33 | E-mail: [email protected] Com apoio: Comissão Nacional de Moçambique Poema de Luís de Camões - considerado pai da Língua Portuguesa Do tradicional ao moderno passando pelo popular Entrevista a David Capelenguela Alma minha gentil, que te partiste Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no Céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma coisa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. 1ano

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Page 1: Revista Literatas Ano II - Nº 33

Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 08 de Junho de 2012 | Ano II | N°33 | E-mail: [email protected]

Com apoio:

Comissão Nacional de Moçambique

Poema de Luís de Camões - considerado

pai da Língua Portuguesa

Do tradicional ao moderno passando pelo popular

Entrevista a

David Capelenguela

Alma minha gentil, que te partiste

Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no Céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma coisa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou.

1ano

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Camões, o poeta que também já foi “marginalizado”! Quando se aproxima o 10 de Junho, os mais atentos recordam-se logo de Luís Vaz de Camões, esse enorme poeta, que já tinha morrido, quando os portugueses lhe elevaram o nome a herói nacional. Bem tardia e pos-tumamente chegou aonde era justo que chegasse. Diz-se que morreu pobre, aguentando os seus derradeiros dias a expensas de amigos e associações de beneficência. Sendo tão difícil dizer-se algo de novo sobre ele, melhor é guiarmo-nos por perguntas, apenas duas, cientes das escassas palavras exigidas nesta página. Então, vamos às duas: Quem foi Camões? E por que é que o maior prémio da literatura lusófona carrega o seu nome? Primeiro, não é muito o que se sabe da sua biografia. E a escassa informação existente é duvidosa, e até, por vezes, produto de conjecturas. E tudo talvez por causa da “marginalização”, a que o poeta e seus escritos foram inicialmente votados. À semelhan-ça de tantos outros escritores deste terráqueo planeta, que só depois da morte, vêem reconhecidos os seus trabalhos. Aliás, nem chegam a ver, dado que já terão cessado de respirar, definitivamente. Até parece que nós só conseguimos reconhecer e enaltecer os feitos dos falecidos, os trabalhos dos mortos! Estranha capacidade nossa! De qualquer modo, sabemos que Camões é português, de pai e mãe. A sua juventude chegou a ser turbulenta, dividida entre a “rebeldia”, a bravura militar e a escrita. E esta última é que o tornou no célebre poeta, que anualmente recordamos. A qualidade da escrita, do estilo e da profusão de citações eruditas, que engrandecem os seus textos, leva-nos à hipótese de ele ter frequentado um curso superior, na Universida-de de Coimbra. Mas, ao que parece, o seu nome não consta dos registos da universidade. Seja como for, ele teve grande instrução, institucional ou auto-instrucional. Nasceu talvez em 1524 e morreu a 10 de Junho de 1580. Foi militar das tropas portuguesas, na Índia e em África, onde provavelmente terá perdido o olho direito, em batalha. Foi em águas africanas que ele escapou de um naufrágio, e teve de nadar com um dos braços, enquanto, com o outro, segurava o precioso manuscrito de Os Lusíadas. A poesia não podia dissolver-se em águas! A poesia ultrapassa adversidades. Mia Couto ensina-nos que, na falta de outra tinta no mundo, o poeta usou o seu próprio sangue, e usou o seu próprio corpo, quando o papel inexistiu. Cada ano, a 10 de Junho, celebra-se o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. E é certo que a data está revestida de um carácter particular, nacional, des-de a sua instituição, mais ou menos, durante o Estado Novo de Salazar, em 1933, até à Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974. Exalta(va)-se o patriotismo de Camões, a sua entrega militar ao Estado português, bem como a valorização e exaltação dos ideais portugueses da época, tendentes à consubs-tanciação do nacionalismo. E esse patriotismo, essa valorização em demasia do povo lusitano, têm um privilegiado espaço n’Os Lusíadas. Esta Epopeia, uma das poucas na História Mundial, talvez tenha sido mesmo criada por encomenda, para contentar os reis portugueses da época. Mas esse carácter particular e particularista da data não interessa muito a outros povos dos países lusófonos. Interessa-lhes, sim, a qualidade da escrita, com que o autor d’Os Lusíadas abrilhanta os seus textos. Escrita, que não tem raça, não tem cor, não tem reli-gião nem região. Importa, sim, é a escrita que destrói fronteiras e galga terras. Até “Por mares nunca dantes navegados”, como diria o próprio Camões. Entretanto, demasiado tarde, ou seja, 408 anos após a sua morte (vejam só essa letargia, esse demorado esquecimento!), é instituído um prémio com seu nome. Por sinal o maior da lusofonia, produto de um protocolo entre os governos de Lisboa e Brasília, datado de 1988. E a quantia pecuniária dada anualmente ao vencedor do prémio é garan-tida pelas contribuições desses dois Estados. E o prémio desta edição, a 24.ª, foi para o escritor brasileiro Dalton Trevisan, autor do livro “Vampiro de Curitiba”. E desde já, e desde aqui, nós (Kuphaluxa) lhe endereçamos os nossos Parabéns.

Dany Wambire

[email protected]

Editori@l

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CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele

([email protected])

Cel: +258 82 57 03 750

REPRESENTANTES PROVINCIAIS

Dany Wambire - Sofala

Lino Sousa Mucuruza - Niassa

COLABORADORES FIXOS

Pedro Do Bois (Brasil), João Tala - Angola

Mauro Brito (Maputo)

Izidro Dimande

COLABORAM NESTA EDIÇÃO

Samuel da Costa - Brasil

Fernando Aguiar - Portugal

Frederico Ningi - Angola

José dos Remédios

COLUNISTA Marcelo Soriano (Brasil)

Nelson Lineu - Maputo

FOTOGRAFIA

Arquivo — Kuphaluxa

Eduardo Quive

ARTE E DESIGN

Eduardo Quive

PARCEIRO

Centro Cultural Brasil—Moçambique

FICHA TÉCNICA

Destaque

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Camões, o poeta que também já foi “marginalizado”! Quando se aproxima o 10 de Junho, os mais atentos recordam-se logo de Luís Vaz de Camões, esse enorme poeta, que já tinha morrido, quando os portugueses lhe elevaram o nome a herói nacional. Bem tardia e pos-tumamente chegou aonde era justo que chegasse. Diz-se que morreu pobre, aguentando os seus derradeiros dias a expensas de amigos e associações de beneficência. Sendo tão difícil dizer-se algo de novo sobre ele, melhor é guiarmo-nos por perguntas, apenas duas, cientes das escassas palavras exigidas nesta página. Então, vamos às duas: Quem foi Camões? E por que é que o maior prémio da literatura lusófona carrega o seu nome? Primeiro, não é muito o que se sabe da sua biografia. E a escassa informação existente é duvidosa, e até, por vezes, produto de conjecturas. E tudo talvez por causa da “marginalização”, a que o poeta e seus escritos foram inicialmente votados. À semelhan-ça de tantos outros escritores deste terráqueo planeta, que só depois da morte, vêem reconhecidos os seus trabalhos. Aliás, nem chegam a ver, dado que já terão cessado de respirar, definitivamente. Até parece que nós só conseguimos reconhecer e enaltecer os feitos dos falecidos, os trabalhos dos mortos! Estranha capacidade nossa! De qualquer modo, sabemos que Camões é português, de pai e mãe. A sua juventude chegou a ser turbulenta, dividida entre a “rebeldia”, a bravura militar e a escrita. E esta última é que o tornou no célebre poeta, que anualmente recordamos. A qualidade da escrita, do estilo e da profusão de citações eruditas, que engrandecem os seus textos, leva-nos à hipótese de ele ter frequentado um curso superior, na Universida-de de Coimbra. Mas, ao que parece, o seu nome não consta dos registos da universidade. Seja como for, ele teve grande instrução, institucional ou auto-instrucional. Nasceu talvez em 1524 e morreu a 10 de Junho de 1580. Foi militar das tropas portuguesas, na Índia e em África, onde provavelmente terá perdido o olho direito, em batalha. Foi em águas africanas que ele escapou de um naufrágio, e teve de nadar com um dos braços, enquanto, com o outro, segurava o precioso manuscrito de Os Lusíadas. A poesia não podia dissolver-se em águas! A poesia ultrapassa adversidades. Mia Couto ensina-nos que, na falta de outra tinta no mundo, o poeta usou o seu próprio sangue, e usou o seu próprio corpo, quando o papel inexistiu. Cada ano, a 10 de Junho, celebra-se o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. E é certo que a data está revestida de um carácter particular, nacional, des-de a sua instituição, mais ou menos, durante o Estado Novo de Salazar, em 1933, até à Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974. Exalta(va)-se o patriotismo de Camões, a sua entrega militar ao Estado português, bem como a valorização e exaltação dos ideais portugueses da época, tendentes à consubs-tanciação do nacionalismo. E esse patriotismo, essa valorização em demasia do povo lusitano, têm um privilegiado espaço n’Os Lusíadas. Esta Epopeia, uma das poucas na História Mundial, talvez tenha sido mesmo criada por encomenda, para contentar os reis portugueses da época. Mas esse carácter particular e particularista da data não interessa muito a outros povos dos países lusófonos. Interessa-lhes, sim, a qualidade da escrita, com que o autor d’Os Lusíadas abrilhanta os seus textos. Escrita, que não tem raça, não tem cor, não tem reli-gião nem região. Importa, sim, é a escrita que destrói fronteiras e galga terras. Até “Por mares nunca dantes navegados”, como diria o próprio Camões. Entretanto, demasiado tarde, ou seja, 408 anos após a sua morte (vejam só essa letargia, esse demorado esquecimento!), é instituído um prémio com seu nome. Por sinal o maior da lusofonia, produto de um protocolo entre os governos de Lisboa e Brasília, datado de 1988. E a quantia pecuniária dada anualmente ao vencedor do prémio é garan-tida pelas contribuições desses dois Estados. E o prémio desta edição, a 24.ª, foi para o escritor brasileiro Dalton Trevisan, autor do livro “Vampiro de Curitiba”. E desde já, e desde aqui, nós (Kuphaluxa) lhe endereçamos os nossos Parabéns.

Dany Wambire

[email protected]

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E se as musas de Luís de Camões fossem tripeiras?

No dia 10 de Junho, a Associação 10pt – Criação Lusófona no âmbito do proje-

to ai Maria vai levar o poeta à rua para cantar as Marias do Porto, num evento de

poesia, música e gastronomia lusófonas. Vamos enaltecer as mulheres e a cidade,

que é a diva inspiradora. Partimos da pena de Camões, antropólogo moderno, Poeta

maior, português do mundo, e que “em várias flamas variamente ardia”. Camões

possuía um dom único para cantar a mulher… não só a portuguesa, como também a

africana, a indiana, a chinesa, … imortalizando os humores e a beleza feminina, des-

de os “cabelos d‟ouro trançado” até à ”pretidão de amor”, que o próprio Camões

vivenciou com seu „saber experimentado‟.

Vamos fazer do espaço da 10pt uma ilha dos Amores, uma espécie de Olimpo

camoniano, na celebração do seu 2º aniversário. É poesia, é dança, é música, é boé-

mia, , na rua de São Dionísio, 17, perto do Jardim São Lázaro, no Porto.

DIA 10 às 00h. INAUGURAÇÃO D’ ”o Muro dos Amores”

O evento arranca à meia-noite de dia 10 na estação do metro do Bolhão, junto

à Exposição de Fotografia ai Maria. Convidamos os portuenses a declarar o seu amor

às suas maravilhosas mulheres (ou às 25 Marias expostas nas paredes), com mensa-

gens, desenhos, fotos, rabiscos, poesia, colagens, num mural apropriado para o evento).

A inauguração d‟o Muro dos Amores contará com a estreia daperformance de poesia,

drama e música “ardo Maria, ai”.

Fonte: www.10pt.org

Destaque 10 de Junho. FESTA CAMÕES/Portugal

Olimpíadas de Língua Portuguesa com poucos concorrentes na Beira

Dany Wambire - Beira

Texto & Foto

D ecorrem hoje, 8 de Junho de 2012, pelas 10 horas, no

Centro Universitário, Cultural e Artístico (CUCA) da

Universidade Pedagógica, Delegação da Beira (UP-

Beira), as Olimpíadas de Língua Portuguesa promovi-

das pelo Centro de Língua Portuguesa - Instituto Camões (CLP/IC)

Beira e a Universidade Pedagógica. Essas olimpíadas são organiza-

das no contexto da celebração do 10 de Junho, Dia de Camões, de

Portugal e das Comunidades Portuguesas.

As olimpíadas visam, como deu a conhecer à LITERATAS, a coorde-

nadora do centro, Mónica Bastos, impulsionar o desenvolvimento

das competências de expressão escrita na língua portuguesa, assim

como criar o gosto pela sua utilização correcta, tanto ao nível oral,

como ao nível escrito. “O concurso visa, no fundo, trazer à reflexão,

por parte dos estudantes, aspectos relativos à semântica, morfolo-

gia, sintaxe, ortografia, bem como aspectos sobre a vida e obra de

Camões”, ajuntou a coordenadora.

Vão concorrer a estas olimpíadas, todos estudantes universitários da cidade

da Beira, inscritos para tal, que não são muitos, o que deixa agastada a

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Destaque coordenadora do CLP/IC, que esperava um número considerável de estu-

dantes “tenho a lamentar que inscreveram-se às olimpíadas apenas vinte

(20) estudantes, não obstante eu ter andando por quase todas universi-

dades desta urbe para tornar público estas olimpíadas ”. E é, realmente,

de lastimar essa fraca adesão por parte dos estudantes, numa altura em

que se debatem com a escassez de concursos tanto literários como olim-

píadas de Língua portuguesa. Alias, lembrem-se que nesse país quando

decorrem olimpíadas, muitas delas, senão todas, são para as áreas das

ciências naturais ou matemáticas.

Para mais, a coordenadora, falou em exclusivo à LITERATAS, que a

questão de adesão aos concursos parece-lhe ser repetitivo, visto que, o

centro de Língua Portuguesa/instituto Camões, pólo na Beira, organizou há

alguns meses atrás “oficinas de língua” para estudantes dos diferentes anos

do curso de português. Criaram-se duas turmas de 20 alunos cada, mas que

cada uma acabou com apenas metade dos alunos. “Eram oficinas de oralida-

de e de escrita da língua portuguesa para dotar os alunos de capacidades de

discurso oral e escrito correcto, mas metade dos alunos é que chegaram ao

fim”, rematou Mónica Bastos. Depois, lembrou-nos que os resultados do con-

curso serão conhecidos no dia 30 de corrente mês de Junho, a partir dessa

data é que os três vencedores receberão os seus certificados de honra e

prémios. Ou seja, 1.500 meticais para o 1º classificado, 1.000 meticais para

o segundo, e 500 meticais para o terceiro classificado.

A Cia. Cinematográfica Vera Cruz, fundada em São Bernardo do Campo/SP, em 1949, consistiu em tentativa de industrialização do

cinema no Brasil. Não deu certo. Por uma série de razões, já bastante debatidas em livros, ensaios e artigos. A referência à produtora de cerca de 18 ou 19 filmes, entre eles Sinhá Moça (1953), co-

dirigido por Osvaldo Sampaio (São Paulo/SP, 1912-1996), e Tom Payne (Lomas de Zamora/Argentina, 1914-1996), é feita apenas para ressaltar o aspecto infraestrutural dessa realização. O filme, como todos os efetuados por grandes estúdios, visa principalmente o êxito de público como meio para obter retorno, remuneração e lucratividade do capital investido. Constitui tema à parte, examinar, analisar, discutir e avaliar a justeza ou não desse desiderato, que transforma possível objeto artístico e levantamento da realidade e da natureza humana em mero produto industrializado, agravado com o viés da conformação ideológica. Sinhá Moça, pois, não se destina e nem

almeja a realização artística, pautando-se por simples narrativa ficcional objetivando atingir amplo e variado público. Desse propósito não resulta qualidade estética. O problema, contudo, não se limita a essa questão. É mais sério, grave e profundo, visto questionar-se, antes de tudo, a própria finalidade do cometimento, com o que se cai no debate acima aludido, cujos pressupostos e condicionantes refogem à análise específica do filme. Não se pode, no entanto, deixar de enfocar ou ressaltar sua origem para poder entender porque existe, é desse modo e não de outro. É assim, e não diverso, justamente por sua gênese e finalidade, do que resulta tríplice característica. Plena base infraestrutural, de um lado; pífio tratamento ficcional e evidente convencionalismo formal, de outro. O filme é tecnicamente bem feito e, sob esse prisma, até supreendente para a época. Os décors ou cenários interiores são diversificados e apropriados. As

locações externas muito bem focalizadas em angulações e enquadramentos adequados. A direção e a interpretação de atores não fogem a padrões aceitáveis, alcançando até alto nível no que se refere à heroína, que transmite eficazmente nas expressões faciais o que lhe vai no íntimo, refletindo instantaneamente seu estado de espírito. O número e a movimentação dos figurantes apresentam-se avultado no primeiro caso e com boa e correta mobilidade no segundo. Assentada sobre essa base técnica-estrutural, ergue-se estória edificante, pela qual, no cruzamento das ações dos bons e dos maus, padece uma humanidade escravizada, vilipendiada e humilhada, transformada em simples animal de carga, os escravos negros. A trama segue a urdidura de eficaz receituário. Estruturada sobre as evidências dos fatos, a abordagem temática processa-se superficialmente, explorando, hábil e maniqueísticamente, bons e maus sentimentos e ações. De um lado, o idealismo, a bondade, as retas intenções. De outro, a exploração do ser humano elevada à máxima potência e toda a estrutura mental, comportamental e organizacional destinada a mantê-la a ferro e fogo.

Esse embate, de permeio à revelação da crueldade humana, do sofrimento do escravo, do amor entre o jovem casal de protagonistas, forma o esqueleto ou a espinha dorsal do filme. Como o tratamento temático visa apenas contar estória recheada dos

ingredientes necessários a torná-la palatável a amplas plateias, seu arcabouço ficcional é frágil e banal. Nele ressalta-se, contudo, como único aspecto positivo e válido, a reconstituição e amostragem da ignominiosa prática da escravidão do ser humano por seu semelhante. Além da crueldade ínsita nesse modo de produção pré-capitalista, sobrepõe-se a injustiça de organização social e do trabalho baseada na apropriação e usurpação violenta e coativa da capacidade de uns

em proveito de outros. Se até a exploração do trabalho dos animais ou o modo como é feita podem (e devem) ser questionados, o que não se dizer da escravização do próprio ser humano? O que se retira de uns (os escravos) transfere-se a outros (os senhores), do que resulta tudo faltar aos primeiros e tudo sobejar aos segundos, no maior exemplo possível de disparidade humana e social. Esse aspecto evidencia-se no filme, com força e ênfase, constituindo seu maior (e rigorosamente único) atributo. No mais, em sua essência, estrutura e desenvolvimento, a trama é esquemática, não superando o nível das novelas de rádio da época e da televisão de hoje, o que significa, em síntese, não preencher nenhum dos requisitos indispensáveis à configuração da obra de arte. Sob o ponto de vista da linguagem cinematográfica, também padece de igual sorte (ou falta de), dados seu convencionalismo e falta de inventividade, conquanto técnica e profissionalmente utilizada corretamente, virtude contudo não artística, conquanto indispensável para alcançar tal qualificação. Notando-se ainda a influência da linguagem comercial hollywoodiana de cinema, visível (no duplo sentido) também no tratamento temático.

* (do livro O Cinema Brasileiro Nos Anos 50 e 60, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2009-www.institutotriangulino.wordpress.com) Foto anexa de cena do filme.

__________________________________ * Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil e editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional. (Publicação autorizada pelo autor)

Cena do filme: Sinhá Moça

Guido Bilharinho* - Brasil

SINHÁ MOÇA: A Ignomínia Filmada

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Reflexão As intrusões do narrador no conto "Momento" de Guilherme Afonso

D e um modo geral, o conto "Momento" retrata a história

de um rapaz que é agredido fisicamente por um homem, por este julgar que o rapaz teria roubado um anel que lhe pertencia. No processo da narração, com o intento de descrever os eventos e, sobretudo, o prota-gonista da diegese, o narrador homodiegético, que é todo aquele que participa na história que narra como personagem, recorre, constante-mente no acto da enunciação do discurso a uma focalização externa. A focalização externa é, segundo Reis e Lopes (2000: 168), "constituída pela escrita representativa das características superficiais e material-mente observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas acções". Neste sentido, usando a focalização externa, o narrador descreve,

primeiro o rapaz que sofre a agressão e, posteriormente, tenta descrever a for-ma como a agressão se materializa. No entanto, das várias vezes que o narra-dor homodiegético esmera-se em narrar os eventos integrantes no universo diegético onde está inserido como personagem (daí o termo narrador homodie-gético), abandona a focalização externa e promove maquinalmente o que Reis e Lopes designam intrusões do narrador. Assim, as intrusões do narrador são "todas as manifestações da subjectividade do narrador projectada no enuncia-do,". Uma das passagens textuais em que se nota uma intrusão do narrador é a seguinte: "Naquele momento desejei ser escritor. Um grande escritor. Só uma dessas pessoas que dispõem de um vocabulário rico e são dotadas de capaci-dades para usá-la em toda a sua gama de combinações possíveis, assim con-seguindo obter a forma mais expressiva para a ideia ou sentimento que preten-dem exteriorizar, poderia fixar aquele momento" (p. 21). Mais adiante encontra-mos a seguinte passagem: "O escritor não veria mais nada. Só aquele momen-to. Mas o escritor não é apenas o homem de vocabulário e frases bonitas. É também o homem de imaginação, de fantasia" (p. 21). Nestes dois segmentos, tal como nos sugerem Reis e Lopes, o sujeito de enun-ciação do enredo proporciona ao conto, através das intrusões do narrador e a fim de revelar os seus desejos, os seus juízos de valor e as ideias que tem em relação aos escritores, um momento de pausa. Mas será que são estes os papéis das intrusões do narrador neste conto? Acreditamos que não, pois ainda que o narrador exprima os seus desejos circunstanciais, os seus juízos de valor e ideologias, nos parece que as razões das intrusões do narrador são outras, pois as suas funções não estão centradas de forma alguma no narrador, mas nos acontecimentos captados pelo narrador que a focalização externa não des-creve na íntegra. Neste recurso constante às intrusões, o narrador usa o seu poder criativo para imaginar e/ou sugerir como é que a história que "não consegue contar" poderia ter sido desenrolada por um escritor, o que revela a sua "incapacidade" de con-cretizar uma das suas funções, a enunciação do discurso. Há aqui uma antíte-se, pois à medida que o narrador sugere como um escritor iniciaria o relato da história do rapaz que é agredido, demonstra que mesmo não sendo escritor é capaz de iniciar a história como se de um escritor se tratasse. Vejamos a seguir algumas passagens que demonstram a ideia do narrador em relação à forma como um escritor iniciaria o relato dos eventos diegéticos: "Era uma vez um rapaz cuja força começou a ser aproveitada mal ele se equilibrava ainda de pé. Um rapaz a quem pouco foi permitido brincar, (…). Aos cinco anos já ajudava os pais. Ia buscar pequenas latas de água e a procura de lenha para o lume" (p. 21). Em função deste excerto, o narrador comenta: "este poderia ser para o escritor um dos princípios da história. Com outro estilo, está bem de ver, porque eu não sou escritor" (p. 21). Nestas passagens, enquanto, por um lado, o narrador contradiz a ideia de ser incapaz de narrar os eventos que se concretizam num momento que presencia (como fizemos referência há pouco), uma vez que sugere a forma que o escri-tor usaria para iniciar o relato da história, por outro, o narrador contradiz-se por-que ainda que o escritor seja dotado de capacidades de escrita, é ao narrador que cabe a tarefa de contar a história. Logo, quando o narrador na primeira passagem que citamos afirma que naquele momento desejou ser escritor, fazendo nos entender que só um escritor era capaz de contar o que presencia-va, na verdade pretende sugerir que não existem palavras que pudessem retra-tar exactamente a agressão que o rapaz, a quem chama Mateus, sofre. Esta ideia é evidenciada quando, a partir de uma outra intrusão, o narrador, a certa altura, afirma: "Mas aquele momento nem precisava de história. Quem nos diz que o escritor, depois de uma bela história, não falharia em transmitir ao leitor a emoção daquele momento?" (p. 25). E apresenta uma nova opinião a seguir: "Um poeta…Talvez um poeta. Os poetas têm o dom de dizer muito em poucas palavras" (p. 25). A opinião do narrador a esta altura da narrativa é de que só um poeta conseguiria dizer o que ele e o escritor, afinal, eram incapazes. Porém, muito rapidamente descarta o poeta, concluindo que apenas um pintor seria capaz de descrever o quadro que presenciou. Citamos:" Um poeta tam-bém não, porque não deve haver palavras que nos sejam capazes de dar aquele quadro. Quadro… pintura!... Achei! Um pintor, só um pintor" (p. 26).

Como pudemos notar, se o narrador nas suas intrusões enaltece as capacidades dos escritores e poetas como se fossem as mais ideais para retratar a história de Mateus, mas depois substituindo -lhes por um pintor, deve-se ao facto de as palavras não serem susceptíveis de representar a imagem que consegue captar. E como é através de uma imagem que o conto é construído, o narrador logo conclui que o pin-tor é a entidade ideal pelo facto de trabalhar com imagens. Mas qual é o papel das intrusões do narrador na enunciação do discurso? Não acreditamos que as intrusões do narrador no conto "Momento" tenham a função de exprimir os desejos, juízos de valor ou ideologias do narrador como tem aconteci-do em várias narrativas. Pelo contrário. As intrusões do narrador neste conto têm outros papéis. Dito de outro modo, as intrusões do narrador no conto em análise exercem o importante papel de revelar, ainda que de forma subjectiva, a gravidade da agressão que Mateus, rapaz indefeso, sofre por alegado roubo de um anel. Nesta ordem de ideia, o narrador, ao lado dos escritores e dos poetas, coloca-se na condi-ção de incapaz de descrever as pancadas que Mateus sofre sem reagir, pois o momento da agressão apenas as imagens de um quadro podem descrever com exactidão. Através das intrusões do narrador, o narrador garante que o seu discurso possua informações relevantes sobre o passado e condições familiares em que Mateus cresceu. Para o efeito, recorrendo à focalização omnisciente, que é a repre-sentação da narrativa a partir de um conhecimento transcendente do enunciador do discurso, o narrador recorre às suas capacidades criativas para conjecturar o que pode constituir o passado de Mateus. Apresentamos uma passagem que enfatiza a nossa posição: "Nada nos garante, contudo, que seria este o prosseguimento que o escritor daria à vida do Mateus. Poderia optar por fazer dele um menino nostálgico e então escrever, por exemplo: nos primeiros dias o Mateus foi bem tratado pelo senhor branco que o tinha arrancado da sua palhota" (p. 24). O narrador conjectura o que a certa altura acreditava que o escritor seria capaz de dizer e que ele, como sujeito de enunciação, não consegue. Todavia, esta mesma conjectura que se mate-rializa no conto a partir de uma intrusão, permite que o leitor idealize ou procure criar imagens relativas a Mateus. Ora, enquanto a focalização externa no conto "Momento" exerce o papel de caracte-rizar fisicamente a personagem Mateus, as intrusões do narrador exercem o papel de o caracterizar psicologicamente. Portanto, há intenção do narrador "transmitir ao leitor a emoção daquele momento". Por isso, o narrador intromete-se constantemen-te no acto da enunciação do discurso a fim de que a história cause um impacto emo-tivo muito maior no leitor. Finalizando, as intrusões do narrador no conto “momento”, de Guilherme Afonso, revelam, primeiro, que para além das intrusões terem a função de exprimir desejos, juízos de valor ou ideologias do narrador, também podem servir para preencher lacu-nas de informação que a história, como um universo diegético que precisa do discur-so para se fazer representar, não oferece; segundo, as intrusões do narrador podem constituir uma estratégia discursiva na medida em que a partir delas o narrador pode dialogar com o leitor, permitindo que este sinta-se integrado na história; terceiro, as intrusões do narrador podem constituir uma forma de o narrador consubstanciar o seu discurso, de modo a criar um impacto emotivo maior no leitor, e quarto, as intru-sões do narrador podem ter o papel de adiar as acções centrais da diegese e criar o suspense.

* Um dos contos que faz parte da obra “Circuito”, de Guilherme Afonso.

José dos Remédios - Maputo

Estudante de Literatura Moçambicana na UEM

O Prémio Camões 2012, o mais importante da literatura lusófona, foi

concedido ao escritor brasileiro Dalton Trevisan, anunciou o secre-

tário de Estado português de Cultura, Francisco José Viegas.

Nascido em 1925 em Curitiba, Dalton Trevisan é um autor enigmático conhe-

cido por seus relatos, em particular "O vampiro de Curitiba" (1965).

A decisão do júri representa "uma escolha radical em favor da literatura

como arte da palavra", explicou seu presidente, o escritor brasileiro Silviano

Santiago, destacando os "incessantes experimentos" do laureado com a lín-

gua portuguesa e sua "dedicação ao saber literário sem concessão às dis-

tracções da vida pessoal e social".

O Prémio Camões, de 100 mil euros, foi criado em 1989 por Portugal e pelo

Brasil para premiar autores que contribuam para o reconhecimento da língua

portuguesa.

O prémio, concedido no ano passado ao poeta português Manuel António

Pina, já foi entregue em edições anteriores aos portugueses António Lobo

Antunes (2007) e José Saramago (1995), ao brasileiro Jorge Amado (1994)

e ao angolano Pepetela (1997).

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Poesia MALANJINA JOÃO TALA - Angola

Vou de camuflado vou imune visitar a malanjina vou com a ciência dos amantes não posso esperar esperas criam cicatrizes e eu já estou ingurgitado ela engoliu-me a infância cabe ainda no cheiro procuro-a na sombra ou na pedra onde quer que haja um lugar de leite.

Do Poemário FORNO FEMININO

Um “b” de ban-

dolim a disposição

O barbeiro idoso

dorme como um

mufana burguês

no seu rasgado

banco de estar

espantosamente

embalado pelas

subtís sonatas

psicanalíticas e

estrangeiras. Epá quem

passa pela calçada junto

a sua barbearia, com causa

atesta um velhote speed, na

maior, a exibir seu estatuto

de proprietário com preguiça

enraizada aos novelos em seus

cabelos de luz. -Bang, bang

bate com raiva a porta

um cliente. Vai e abre

com despreso o velho

a porta, e mais de mil golpes mentais formam

um exército de núvens

em seu cérebro de cores. açoitam-no com rancor para se

deliberar e epá! Um clarão de

pérolas surge. –São horas de

fechar. E o cliente furioso

lá fora na calçada refila. O velho tranca-se e cochila.

Dia um Beijo tua mão de Pedra branca, Arestas douradas. Brilhantes. Frias. Uso um dedo Para provar tua alma de cinza. Dia dois

Eu te esperei a noite. Dormi Quando o sol Começou a estender seus dedos sobre a Terra.

Por quê você tarda tanto? Dia três

Rua. da Catedral. Uma palavra no papel. Eu não posso esquecer tua ausência. A rosa branca em frente de teu rosto desfolhei. Duas letras: E, C. Foram teus dedos? Dia quatro

Ontem, transportei Pinceladas transparentes. Agora no meu emprego: fabrico, Cores iguais, penso em atingir o algodão. Não há palavras – Mesmo elas são buracos. Dia cinco Eu sonhei, sonhei que sonhava-te. Teu nome Entre palavras de um idioma morto. Não vi-te, mas. Visto-te. Dia seis

Reencarnação: eu uso tua partida para escrever, lês-me? Podes perdoar-me? Dia sete

Morte de um dia, mudança de nome: dia do Vénus, dia da Estrela tardia cinquenta e dois lugares vazios no calendário, junto ao sábado. Dia oito

Tua voz de silêncio. Ouvidos sem tímpano. Pele de ar. Eu falo. Eu não escuto, muito menos toco. Beijo tua testa de pedra branca. Deixo-te voar. Dia nove Pergunta a Deus: porque, ao libertar seu corpo você silencia minha pulsação?

Por dote recebi-te à nascença

E conheço em minha voz a tua fala.

No teu âmago, como a semente na fruta

o verso no poema, existo.

Casa marinha, fonte não eleita!

A ti pertenço e chamo-te minha

como à mãe que não escolhi

e contudo amo.

Inegável

Conceição Lima - São Tomé

Novenario

Judith Castañeda Suarí - México

Dinis Muhai - Maputo

Prefiro as sobras do banquete o vinho quente na garrafa o azedo da salada o restante da carne junto ao osso o guardanapo usado com esforço guardo a rolha em confirmação: aguardo o retorno inserido na minha vontade.Prefiro as sobras do banquete o vinho quente na garrafa o azedo da salada o restante da carne junto ao osso o guardanapo usado com esforço guardo a rolha em confirmação: aguardo o retorno inserido na minha vontade.

SOBRAS

Pedro Du Bois - Brasil

Fernando Aguiar - Portugal

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Entrevista S E X T A - F E I R A , 0 8 D E J U N H O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 9

| Por Eduardo Quive

Antes de mais, como é que me dirijo a si? Digo Sr. Professor, Sr. Jornalista ou Poeta? R: Risos…aqui e agora estou nas vestes de poeta. Embora, transversalmente corra em mim o sangue de jornalista que até certo ponto tem andado na minha poesia, impulsionando, dando sugestões e até mesmo inspirando-me para o outros voos no mundo da poesia.

O que significa cada uma dessas profissões para si? Sei que já está também a entrar para Direito. R: como disse, elas todas fazem parte do percurso da minha vida. Com 17 anos de idade entrei para o Ministério da Educação concretamente na actividade de professorado, na brigada juvenil de ensino Cdte Dangereux na cidade do Namibe. Dei aulas de Língua portuguesa no ensino de base IIº e IIIºs níveis, durante 12 anos. Três anos depois de estar a trabalhar como professor entro para o jornalismo, na rádio local comecei por apresentar um programa romântico/relaxe, durante um ano, depois um outro programa virado para a juventude onde fiquei durante um ano também e por fim um programa cultural onde permaneci mais de cinco anos. Colaborei ainda no jornal de Angola e Angop (Agência Angola Press) durante quatro anos. Passei pela ainda rádio Huíla, e actualmente estou na Rádio Cunene onde apresento um programa cultural também. Quanto ao Direito, é a formação que estou a seguir, se tudo correr bem termino a minha licen-ciatura em Direito este ano de 2012. Estou muito entusiasmado, pois é o curso dos meus sonhos, embora antes tivesse ingressado no ISCED - Instituto Superior de Ciências de Educa-ção, onde fiz o primeiro ano de Linguística português. Relativamente a poesia, esta faz o meu mundo, é a razão do meu viver, a força e o compasso que me tem mantido firme e fiel comigo mesmo e com os meus próximos.

Como foi o seu inicio na carreira poética? Teve alguma formação específica? Foi influen-ciado por algum autor para despertar a sua atenção para o fazer poesia? Por que você escolheu ser poeta? R: Eu entro para a poesia de forma implícita. Como disse a instante, o primeiro programa que

começo a apresentar na rádio Namibe foi romântico. Tinha eu um chefe de progra-mas muito exigente, no bom sentido, foi uma pessoa muito organizada e gostava de ver as coisas nos seus devidos lugares, estou a falar de uma grande figura do jor-nalismo Angolano, o Sr. Alves António que é actualmente o director Provincial da Rádio Huíla. E como é obvio em qualquer programa de rádio, antes do programa ir ao ar, deve-se fazer a realização do mesmo, coordenar os temas e as músicas. Foi então que paulatinamente comecei a sentir o pulsar no meu lado poético-romântico. Na verdade não tive uma formação específica como tal, mas através de uma entre-vista que eu fiz, já enquanto realizador e apresentador do programa cultural, a um grande poeta, cineasta e antropólogo angolano, estou a falar de Ruy Duarte de Car-valho, daí partiu uma amizade com este grande homem de cultura e, muito cedo comecei a tomar contacto com as suas obras, convivemos muitos anos, viajamos e fez-me conhecer o Namibe a dentro, os seus povos e culturas, formas de estar e ser, danças, adágios, provérbios, máximas, adivinhas, cantos, ritos de puberdade, formas de choro, sinais do rugir do leão e gestos até do ruminar do boi comum e do boi grado e mais. Foi então que fui-me forjando, vou sendo forjado para esta coisa de fazer poesia e devo mesmo dizer que é o grande ganho dos meus últimos 23 anos, pois faço da poesia a legítima confidência para o meu quer ser, para as coi-sas animadas e inanimadas, o belo, o ruim, as sensibilidades, os sinais visíveis e inexplicáveis, mas procurando dar um rosto próprio e característico a poesia que tenho tentado ilustrar no quotidiano. Tenho tido ainda um grande apoio de aconse-lhamento poético, conversa e ensinamento de técnicas e outras formas de se cami-nhar na poesia por parte de outros grandes nomes da poesia angolana. Falo por exemplo do poeta e crítico literário Lopito Feijóo, uma pessoa que está sempre por perto e fazendo com que a minha poesia antes de sair ao público seja lida por ele e outras pessoas. Tem sido muito gratificante. Embora poucas vezes mas vou con-versando ainda sempre que possível e nos encontramos em Angola ou em Lisboa

D avid Capelenguesa, poeta angolano, de expressão meramente contemporânea ape-sar de ele próprio considerar-se dos anos oitenta, é um contador/cantador de canções

populares através da poesia. A oralidade trás para este poeta a bilha e a àgua da sua criação poética. Os seus sujeitos poéticos não são fantasmas, estão de forma física e são a sua gente, a história popular e outros inig-mas sociais. Quaria descreve-lo com mais exactidão. Queria dizer no meu pacato e possível modo da escrever que ele é um entre vários poetas que fazem o emblemá-tico esquema literário angolano. Aliás, ele próprio faz questão de citar essas vedetas que são dentre vários: Ana Paula Tavares, Lopito Feijóo, José Luís Mendonça, João Maimona, Luís Kandjimbo, Frederico Ningi, Antó-nio Panguila. Mas eu, para além de ter comparado a sua escrita com a de Ana Paula Tavares, de um lado, mas de outro, idênti-ca a de Aires de Almeida Santos (autor de “Meu Amor da Rua Onze”), outro emblemático escritor contador de oralidades. Talvez encontremos em Capelenguela o reflexo do seu eixo de vivência e convivência, ao nascer no Huíla, naturalizar-se no Namibe atraído pelo deserto de Kalahari e constantemente deslocando-se de provín-cia em província, cidadela a cidadela, levando consigo as estórias dos povos, os hábitos e costumes, dizeres e cantares. Eis o composto da sua poesia que o torna inconfundivelmente mwangolé. Nada melhor que o poe-ta na sua viva voz para sabermos quem ele é.

“A tradição oral exige não só

plena adesão interior, mas a

perfeita exteriorização”

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com o crítico literário Luís Kandjimbo, que me recomenda, aconselha e desperta-me para muita leitura e consulta bibliográfica não só da poesia mas da literatura no geral, como deves saber, Luís Kandjimbo não é crítico e poeta vulgar, é artista de manga comprida, é académico, homem que ama profundamente a cultura, exigente, e pautado de um rigor e disciplina. E orgulho-me profundamente por isso, embora consciente de muito caminho por fazer e, lá vou indo. O ser poeta, mas cantando as canções do povo, nas suas línguas, hábitos e costumes, como é que surge em si?

R: Este estilo da elaboração poética, começa concretamente quando passo a apresentar o programa cultural na rádio Namibe e, como vês mais uma vez o nome da rádio e o Namibe, …risos…aí comecei a sentir a verdadeira responsabilidade do trabalho jornalístico, com o agravante de ser um jornalismo quase investigativo, pois estava perante um programa que se chamava “ Frente Cultural”. Começo a sair para reportagens dentro e fora da circunscrição do Namibe, não só enquanto cidade mas também enquanto Província, pois a abrangência cultural da região se impunha. Foi desta forma que seguindo as normas tradicionais da nossa gente, muitas vezes tive de sentar-me no otyoto, ou para ser recebido enquanto jornalista visitante ou para a partir mesmo destes lugares, entrevistar, assistir cerimónias, conversar, julgamentos tradicionais, ou mesmo uma simples sentada ao anoite-cer a volta da lareira enquanto a noite se faz adulta. Ouvi canções ao anoite-cer, recados e assobios de aviso no percurso da vida em busca da vida. A tradição oral exige não só plena adesão interior, mas a perfeita exteriorização. A “memória muscu-lar” é exercida nas festas, pois mobiliza e prescreve regras res-tritas de comportamento. São os ritos e as regras que regem a nossa gente…, estar e ser humilde deve ser sempre sagrado e bem visível aos olhos dos mais velhos, pois com a realização escrupulo-sa dos ritos os homens atin-gem o mundo do ser. A forma de se sentar para mulheres e homens, a maneira de fazer parte da conversa e tomar a palavra, saudar, o coro do canto e o gesto da dança quando chamado a fazer parte, o penteado feminino e masculino, o traje tudo, tudo é feito com rigor e pormenoriza-damente. Foi então que a questões da orali-dade, começa a ganhar corpo na minha poesia, assim mesmo podes ver o poema “rito de puberdade”, da página 40 do meu segundo livro de poesia “ O enigma da Wel-witschia” editado pela brigada jovem de lite-ratura de Angola do Namibe em Abril de 1997. Como é reconciliar essa maneira de fazer a poesia com as barreiras linguísti-cas que separam os povos e às próprias exigências da poesia?

R: Tudo quanto tenho tentado fazer é na verdade uma demonstração e valorização cultural, que infelizmente o etnocentrismo europeu negou, descuidou e deturpou, fazendo-se de esquecido que esta é a ver-dadeira realidade cultural negro-africana. E fruto disso mesmo, assistimos hoje, um processo de secularização da cultura tradi-cional, sobretudo nos meios urbanos, con-tradizendo-se com evidências de que a cul-tura tradicional oral informa e motiva princí- pios, valores, reflexões e estruturas que não se devem ignorar isto, pois constituem a especificidade da nossa identidade. Nunca perdi de vista que todo o exercício cultural e não só, obedece normas e regras, mas mesmo assim ainda, julgo que as exigências que a poesia impõe fazem parte de um todo percurso e etapas que tenho trilhado ao longo destes anos. A quando da apre-sentação da minha mais recente obra poética no passado mês de Maio em Lisboa, a Dra. Ana Mafalda Leite, Professora de Literaturas Africanas de expressão Portuguesa disse-me uma coisa que parece simples mais muito profunda, onde para ela, eram feli-zes aqueles poetas que tiveram o privilégio de passar de um século para o outro, no caso do 20 ao 21. Esta afirmação levou-me a fazer uma reflexão a respeito da velha discussão sobre o conceito de geração. Para mim, e perante uma realidade diferente, onde Angola caminha a passos largos para diferentes tendências, queira cultural social ou político, uma geração, literária neste caso, pressupõe ser uma integridade social de homens selectos, irmanados dos mesmos ideais e estratégias, pensamentos, possuido-ra de uma linguagem característica, com alinhamento e desagregação da geração ante-rior. Embora não seja tanto esse o meu caso, aliás porque eu identifico-me até certo ponto um pouco com a geração de 80, caso haja a posterior a esta, a minha forma de encarar as barreiras linguísticas que separam os povos é a de valorizar as línguas maternas ou nacionais como temos chamado cá em Angola, para a partir delas procu-rarmos formar um juízo valorativo da sua cultura, personalidade, valores e identidades evidenciando-as de diversas formas até a este nível poético como tenho tentado fazer. É nesta senda que, ao contrário da dicção mais discursiva, retórica, de conteúdo político directo, que esteve em evidência nos anos 60 e 70, a minha poesia procura mover-se

em outro sentido, buscando uma reinvenção da sintaxe e a força mântrica das palavras. A linguagem poética, tenta ser uma leitura crítica ou expoente descritiva da realidade cultural angolana ou africana e não só, onde a transmissão oral ganha um espaço e transmite ener-gia procurando coexistir com outras formas de realização poética.

Sente que a sua poesia, nos moldes que a faz (juntando estórias populares, línguas

locais) é entendida? Isso o tem preocupado?

R: Sinto que é realmente entendida, embora por um público por vezes restrito e sobretudo àquela camada de leitores mais atentos. Por estes anos de exercício poético baseado na cultura tradicional oral, eu tenho chegado cada vez mais a con-clusão de que tudo o que existe provém de uma origem, mas a oralidade é mãe da sua própria existência, pois para mim, a civilização negro-africana baseia-se na palavra; é essencialmente oral, aliais, na tradição africana, o mundo é dominado

pela palavra. A oralidade é completada por ritos e símbolos. Mas este sem a palavra, sem a tradição torna-se ineficaz. A palavra ocupa o primeiro lugar nas manifestações

artísticas, no culto religioso, na magia e na vida social para além do seu grande valor dinâmico e vital, é praticamente o único meio de conservar e transmitir o património cultu-

ral. Embora esta palavra deva ser interpretada de diversas formas, julgo ser um elemento que nos identifica. A minha preocupação não é de estar a ser ou não entendido, porque estou seguro que tenho sido entendido, pelo contrário a minha preocupação é servir e trans-mitir a realidade ao nível destes povos. De chamar atenção a sociedade de que na condição africana, não há centros urbanos sólidos sem uma origem cultural ou tradicional assente

verdadeiramente nas suas raízes. Mas também é importante lembra aqui que, John Nacy, citado por Jorge Macedo in “ ... Texto Literário” diz que” a literatura tende a criar para si uma gíria a que insufla um ideal estético”. Isto para dizer que, a “gíria literária” de hoje traduz fielmente os esforços de toda uma geração de escritores que primam por exprimir-se com a arte, sobretudo na sua dimensão estético-subjectiva. A palavra, para estes poetas inovadores, é um mero símbolo que, no entanto, encerra uma plu-ralidade inesgotável de sentidos ao ponto de o seu significado contextual afigurar-se ambíguo. Logo, para apreender a palavra poética e, por extensão à própria poesia produzida nos nossos dias, é preciso vencer a tentação da aderência imediata e, ultrapassar o sentido literal da palavra para, lá dela recriar a criação do poeta. Esta recomendação e gestos verbais apontam para a necessidade de se corrigir o mito

de que a poesia é uma leitura fácil, pois instado ao consumo da produ-ção poético diga-se de passagem, requer, como toda a arte que se preza

como tal, um esforço de interpretação, no desejo de andar próximo da con-vivência poética. Aliais “ao poeta pergunta-se como canta, não se lhe per-gunta o que canta”. A propósito, qual é a razão para a sua cumplicidade com as tradi-

ções? R: Porque acho é de lá onde viemos, onde estão as nossas raízes, onde

teremos que regressar um dia…risos…

Será também, essa, uma marca que quer deixar sendo um poeta fora da cidade capital? R: O mestre Ruy Duarte de Carvalho é assim como sempre o chamei e o continuarei a chamar, viveu em Luanda capital de Angola, conviveu intensamente com o interior do País e não só, mas manteve-se fiel a sua forma de pensar e encarar a realidade poéti-ca. Como em toda história da poesia, eu também inspiro-me do canto, mas canto puro, suave e de transmissão cultural, não canto em forma de gritaria como repúdio a um assaltante de telemóvel ou carteiras das senhoras em pleno dia e em plena capital do

país, embora esta forma de canto me possa propor e inspirar algo para escrever, só não sei se seria poesia ou não! Mas, como digo, estar na capital ou não, não faz-me muita diferença, aliais, eu vivo no Lubango, Província da Huíla, trabalho em Ondjiva, Província do Cunene todas cidades e Províncias do interior e sou estudan-te Universitário em Luanda capital do País, onde passo muito tempo também. Mas a convivência com este meio extra interior, ou melhor, “o choque de culturas” não deve deixar-me desenraizado dos meus princípios, valores, reflexões, formas de

pensar e pontos de vistas, interpretar e entender a estruturação e estra-tificação dos meios urbanos e rurais, pois as raízes de um povo consti-tuem a herança e o património sagrado que cada indivíduo e cada comunidade recebem dos antepassados, contextualizando este mesmo

testemunho para ser o seu alimento e razão profunda da sua existência.

Isso tem influenciado na sua carreira literária e dos outros poetas do Namibe? R: Não, eu encaro o país no seu todo, transmito valores, desperto cons-ciências, critico, e deixo-me criticar, sou forjado por outros e muitos for-jam-se da minha poesia. Penso que o ser social pressupõe-nos deveres/obrigações e direitos. Relativamente a poesia de outros poetas do Nami-

be, julgo que não foge muito da realidade geral, embora a forma de pensar e trabalhar a poesia varia de poeta para poeta.

O que Namibe significa para si?

R: Risos…o Namibe é o meu ponto de partida, onde um dia encontrei o sentido das almas na teimosia das paragens impacientes, sem que a virgindade do vasto deserto do Kalahari e a impressão do gesto firme na fineza dos actos tivesse-me negado o alcance do que preten-dia. O Namibe enquanto interior é excessivamente denso na sua vastidão de arte, ternura, adágios, contos e saberes. E fica-se com a sensação de que a corrente fria de Benguela ainda nada levou e por desbravar é do que há de mais, pois a mobilidade do espaço-tempo-ser aguarda-nos na continuidade de outros partos. Sempre que vou ao Namibe, ao regres-sar volto com visões reelaboradas, comprometido com o seguimento do querer que nos con-some na azáfama da seiva do verbo. O Namibe aguarda-me sempre guardando as mais belas notas para serem cantadas em forma de poesia. Como disse, no princípio da minha entrevista, foi ali onde comecei com as minhas profissões e conheci o Mestre Ruy Duarte de Carvalho, que me apelou a riqueza do solo, falou-me da expressão do sapatear na dança Kuvale, afinou-me a sensibilidade para as diversas formas e mensagens vindas do som do batuque, mostrou-me a legenda das ondas do mar e descreveu-me o interior até a fronteira com a vizinha República da Namíbia.

Qual tem sido o movimento da literatura nessa região?

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S E X T A - F E I R A , 0 8 D E J U N H O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 1 1 R: O movimento literário nesta região tem sido mais baseado da gente que vem de fora, digo de autores que socorrendo-se da frescura, da beleza da pequena cidade, vão até lá com finalidade de apresentação pública das suas obras. Existe um pequeno núcleo da bri-gada jovem de literatura, onde com alguma periodicidade, realizam-se encontros, palestras e debates a volta de um dado tema literário, e assim vai indo a vida literária por aquelas paragens.

Poetas como Aires de Almeida Santos e Ana Paula Tavares o que lhe dizem? Aliás, acho a sua poesia um pouco semelhante á de Aires de Almeida Santos, onde o povo é objecto da vossa criação. Comenta.

R: São poetas de grande dimensão, sobretudo a poesia da Paula Tavares, aquém eu mais leio, já que tenho lido muito pouco a poesia de Aires de Almeida Santos. Leio muito tam-bém a poesia do Lopito Feijóo, José Luís Mendonça, João Maimona, Luís Kandjimbo, Fre-derico Ningi, António Panguila e outros mais, todos poetas de grande valor e julgo que con-quistam o seu espaço, cada um tem a sua forma de encarar e elaboração poética. Todavia, o povo está sempre presente na poesia, não só na minha, mas como na de todos autores, pois quando escrevemos não só estamos a exercitar a nossa capacidade intelectual, mas também nos comunicando com outros através do texto. Isto pressupõe a existência de dois pólos de comunicação, onde o emissor transmite a mensagem para o receptor ou até vice-versa, como muitas vezes acontece na minha poesia, em que recebo, concebo, reelaboro e volto a transmitir.

As suas duas últimas obras: “GRAVURAS D’OUTRO SENTIDO” e “TIPO-GRAFIA LAVRADA” são no meu entender, um símbolo da qualidade da sua poesia, mas no entanto, nelas há sinais de transformação da sua escrita poética, quando comparado com a obra “VOZES AMBÍGUAS”. Comente esta interpretação, tecendo igualmente, comentários sobre o que norteia a escrita dessas obras?

R: Eu estruturo a minha poesia da seguinte maneira: 1 – compasso da reelaboração da alma, onde incluo as obras “Planta da sede, O enigma da Welwitschia, Rugir do crivo”, 2 – compasso da travessia, onde incluo as obras “Vozes ambíguas e Acordanua”, 3 – compas-so do silêncio e tacto, onde incluo as três últimas obras, neste caso, “Gravuras d`outro sen-tido, Tipo-grafia lavrada e Véu do Vento”, esta última que vamos apresentar ao público no

dia 08 de Junho de 2012. Como dizeres e confirmo, depois de um período de reflexão, análise e maturação dos meus feitos poéticos, neste último compasso tenho procurado manifestar-me na poesia de uma forma mais profunda e interventiva, olhando as ques-tões que desde sempre me preocuparam, procurando aqui e de viva voz, sempre que posso e assim o entender deixar bem patente o dizer da minha gente. Eu me sinto bem representá-los como tenho feito, sobretudo porque eles aceitam-me e cada vez mais ins-piram e fornecem-me subsídios para estes feitos. A obra “Gravuras D‟outro sentido, pro-cura” descrever vários estilos e formas de representação poética direccionados ao Nami-be, sobretudo, não fugindo a regra de sempre. Já a obra “Tipo- Grafia lavrada, é um pou-co mais solta, mais geral, na sua forma de estruturação e apresentação, embora, sejam todas obras de uma mesma linha de orientação e do mesmo autor, com as mesmas pre-tensões, visões e formas de pensamento. Esta pergunta já lhe tinha feito noutras conversas, mas ela ainda me incomoda a dentro. Qual poderá ser o destino da sua poesia, tendo em conta a distancia que a sociedade vai tendo com as suas raízes identitárias? Teme alguma falta de espa-ço? R: Pelo contrário, o espaço é conquistado pelo homem e, a poesia tem e terá sempre espaço em qualquer parte do mundo. Um dia o escritor Angolano Abreu Paxe ao ser per-guntado sobre a sua forma de fazer poesia, respondeu belamente dizendo, “penso que a poesia, como ato de criação, para mim não deve de forma objectiva nomear as coisas tal qual como elas acontecem no cosmos, tal como se movem, tal como o cosmos as regula, vistas, à vista desarmada ou macroscopicamente. A poesia deve constituir-se no mundo alternativo, este funcionando como mundo não codificado ou convencionado numa visão globalizante, senão como codificação singular do criador e do leitor. Ao serviço da arte, a poesia deve-se construir com certa erudição, ou seja, a partir do que já existe, do que já foi proposto nos matizes artísticos. A poesia deve convidar-nos a mergulhar no escuro, como dizia Gastão Cruz, não para o iluminar, mas para aprender a conhecê-lo, evocando todos os sentidos.” Eu estou perfeitamente de acordo com este poeta, e é nesta forma de encarar os desafios da caminhada poética que o mestre Lopito Feijóo sempre diz, poesia é um mundo onde quando mais se caminha mais caminho há para se fazer, aliais, o poe-ta, não tem fronteiras e nem se circunscreve só na sua pátria, e assim, mais uma vez voltando ao poeta Lopito Feijóo, dizia: “é sem fronteira a pátria do poeta/ minha pátria é a nossa casa/ É a minha campa (é dizer), m´bila iami! /chamar-se-ia Lucrécia, Mundo/ou poesia, não fosse eu um apátrida!”.

A escritora angolana Isabel Ferreira estará presente no Salão Internacional do Livro do Piaui SALIPI) nos

dias 10 a 17 de Junho no Complexo C.Praça de Pedro II no Nordeste do Brasil. A escritora Isabel Ferreira levará uma diversidade de material cultural e para além da sua comunicação sobre o percurso do teatro universi-tário angolano, terá encontros com fundações culturais nordestinas. Isabel Ferreira que é docente da cadeira de Cinema e Literatura no Instituto Superior Metropolitano de

Angola estará presente no encontro onde também participaram os escritores brasileiros Adriano Lobão, Antônio Noronha, Bárbara Olímpio, Cineas San-tos, Graça Targino, Paulo José Cunha, Arimatan Martins. Os palestrantes brasileiros são Ignácio de Loyola Brandão, Cristovão Tezza, José Castello, Sônia Rodrigues, José de Nicola, Marcelino Freire e Sérgio Sant‟Anna. Outros palestrantes internacionais são, a cubana Roxana Pineda e a portuguesa Ana Luisa Amaral. O evento será em homenagem aos escritores Luiz Gonzaga, Jorge Amado, e o jornalista Nelson Rodrigues Refira-se que a escritora tem tido uma participação cultural muito frequente no exterior do país nomeadamente: Brasil, Canadá, Chile, Portugal, Moçam-bique, Cabo Verde.

Isabel Ferreira é membro da União dos Escritores Angolanos. U.E.A. É Mem-

bro da Ordem dos Advogados de Angola (O.A.A.) e da União Nacional dos

Artistas e Compositores Angolanos, (U.N.A.P.). É também membro da Socie-

dade Portuguesa de Autores. (S.P.A.).

Cinco autores portugueses, 54 brasileiros e uma san-tomense compõem a lista dos 60 nomeados para o Prémio PT de Literatura em Língua Portuguesa.

E ste ano, o prémio conta, pela primeira vez, com três cate-gorias: Poesia, Romance e Conto/Crónica. Nesta fase, estão nomeados os autores portugueses António Cabrita, “A maldição de Ondina” e Valter Hugo Mãe, “A máquina de

fazer espanhóis”, na categoria Romace; Alberto Xavier, “O escandi-navo deslumbrado”, na categoria Conto/Crónica; Gastão Cruz, “Escarpas”, e João Rasteiro, “Triptico da súplica”, na categoria Poe-sia. Simultaneamente, os 274 jurados revelaram os nomes dos seis jura-dos que seleccionarão os 12 finalistas da etapa intermediária e os grandes vencedores, que serão conhecidos em Novembro. Este Júri será formado por: Alcides Villaça, Antonio Carlos Secchin, Benjamin Abdala Júnior, Leyla Perrone Moisés, Manuel da Costa Pinto e Maria Esther Maciel. No ano em que se assinala o 10º aniversário do prémio, a primeira etapa contou com 502 livros inscritos: 165 obras na categoria Poe-sia, 139 em Conto/Crónica e 198 em Romance. Todas foram publi-cadas no Brasil, no ano de 2011. Dos três vencedores, um por cate-goria, será escolhido o vencedor do Grande Prémio de 2012. A edição de 2012 conta com uma curadoria formada pela curadora-

coordenadora Selma Caetano, pelos especialistas José Castello

(literatura brasileira) e Madalena Vaz Pinto (literatura portuguesa),

além da perita em literatura africana Tânia Celestino de Macedo. A

curadoria responde pelos resultados de todas as etapas do Prémio e

participa da composição de todos os júris.

Salão Internacional

do Livro do Piaui

Informar é uma arte Literatas

1ano

Prémio PT de Literatura

em Língua Portuguesa

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Quem sabe, "talvez"? - Análise de uma palavra indefinida

A palavra "talvez" é um coringa. Serve como sim, ou como não. Talvez sim; talvez não. É a certeza sem convicção. A afirmação da incerteza. O grande lance da palavra "talvez", é que ela é universal e hipotética, tal como as grandes teorias da humanidade: o Big-

Bang, a Evolução das Espécies, as Leis de Murphy... Ela é o casamento su-jeito a divórcio entre o "Tal" (pron. adj. Semelhante, parecido, análogo) e a "Vez" (s. f. Ocasião; ensejo, tempo, época). O "talvez" não assume, em hipótese alguma, a responsabilidade sobre um futuro (breve, óbvio, possível, porém, irrevogavelmente desconhecido). O talvez pode perfeita-mente se contradizer. É a dúvida sobre o porvir. Sequer os dicionários são capazes de precisar esta palavra, a colocando como sinônimo de "porventura", "quiçá", "provavelmente"... Pensando nisso, decidi adotar o "talvez" como palavra de ordem. Assim como o "ou não" é o Princípio da Incerteza de Heisenberg (e não do Caetano Veloso - composi-tor e cantor brasileiro, como muitos gostariam que fosse), o "talvez" pode ser mais abrangente e global, envolvendo, além do "ou não", o "ou sim". Bom, não tenho certeza sobre a validade desta análise da palavra "talvez", mas isto, "talvez" seja algo a ser avaliado mais adiante. Quem sabe valha à pena? Quiçá?! É bem possível. Provavelmente. Quem seria tolo ao ponto de limitar ou pré julgar um "talvez"?! -------------------------------------------------------

De Profundis Velório: momento solene em que, enfim, seremos oferecidos ao povo como um banquete frio, à luz de velas... E seremos gentilmente recusados pelos mel-ancólicos mortos de fome. ------------------------------------

no caminho errado

Nelson Lineu - Maputo

V eio mesmo a calhar a visita da avó

Margarida, Eugénio estava empolgado

para dar a notícia segundo a qual era

o motivo do seu sorriso nos últimos

dias, mal entrasse de férias arrumava a mochila e bazava para a

localidade onde vivia a avó e nasceram os seus pais, visto que mais

tarde migraram para o local onde hoje inventam vidas, para ele era

isso e não se discutia mais, tinha como justificação o facto da criati-

vidade africana. Acontecera nas últimas semanas, viu no noticiário a

edição de um livro de estórias, as mesmas que ouvia na fogueira da

sua avó e deixava-se embalar ou seja futurar nela, o seu maior

medo é que elas morressem com o tempo, vendo a sua camada

marimbando para elas ou quem de direito, seguir o mesmo itinerá-

rio.

Com edição desses livros tinha com que se orgulhar, não nos per-

deríamos num enredo que vem sendo traçado há séculos. Contando

a avó sobre a boa nova, respondeu com as seguintes palavras:

- Meu neto, eu também gostaria de estar a sorrir como você, fazen-

do isso parece-me que estaria a rindo-me de mim mesmo. Olha que

fiquem bem claro, não me oponho a isso, ainda me chamam de

ultrapassada como vocês adoram fazer. Com a edição dessas estó-

rias que não aparecem como iniciativas nossas, como sempre, per-

deremos o que mais significativo para nós tem nelas. Ora vejamos,

elas acompanham-nos há séculos, cada um vai contando a sua

maneira adequando-se ao seu tempo e desafios. Com a escrita elas

estariam estáticas, contaremos apenas o que estiver lá escrito, esta-

remos presos as letras e as significações de quem conta. Se quere-

mos preservar essas estórias, não era melhor cada um dar-se a

missão de contar passando de geração em geração como temos

feito até agora? Mas é esse nosso dilema africano diário conviver

com esses dois mundos, mas escolha meu neto, não tem que ser

sempre feita a partir de conveniências.

A oralidade na escrita

O passo certo Filosofonias Marcelo Soriano - Brasil

E duardo Quive, meu confrade que me deu o direito de o chamar simplesmen-te Quive, jovem de tenra idade que nem chega a minha, jovem das noites de palavras ao som de um cântico de se ouvir. Quive do seu jeito frugal que atrapalhou Angélica, filha do falecido manhembana.

Já estou inerte de tanto ler suas prosas e nada poder dizer em oito parágrafos sobre este meu amigo do meio, Xiguiane da Luz. Ou Quive, que apresenta-nos agora o seu inédito, cujo titulo pedi emprestado para este pensamento, e me pergunto com tanta idade, depois de eu ter lido todos os seus escritos, como consegue ele colocar-me em sintonia a uma vida de becos e ruelas do antigamente. Será que esta frase celebre ´´Quando a palavra cala-se o silêncio é o meu abrigo preferido. Em mim, um fim, um mundo subjectivo! A Palavra com o poder de dizer o que sinto, o que acho. SOU EU, ESTOU AQUI, CONSIGO E COM NINGUÉM``, dele é suficiente para o conhecermos. Quive vive no Patríce Lumumba como ele descreve em suas prosas e poemas (não sei como consegues fugir da prosa ao poema, fumas mban-gue?) mas este Lumumba não viu-o nascer nem ele viu-o crescer, o que Quive faz na sua escrita é a interpretação daquilo que seu pai, seu irmão (que a alma descansa junto dos outros familiares e amigos), sua mãe, e, outras pessoas da minha idade viveram no pós-colonial neste bairro e outros. O Xiguiana da Luz escreve o Lumumba da pós-paz. Quive vive em todos os bairros, Às tardes passava da Escola Industrial primeiro de Maio, na capital de Maputo, não estudava ali, mas gostava daquela esquina, é porrei-ra. Havia um jovem, cujo nome ainda vou consultar, vendia rosas, talvez de todas as cores, será possível? Bem se é possível ou não, deixo de saber ou melhor não dava para perceber, porque sempre que olhava para aquele lado, coincidia com o olhar de uma mulher, bonita e elegante, na verdade parecia uma sereia que um simples peixe, uma mulher que cativa qualquer olhar atento, com uma voz suave, um olhar bastante firme, com um tom de inocência, em fim, um cativeiro que cativa a todos, in a Assas-sina das Rosas, não só neste, vive, conhece as vicissitudes de cada esquina em

cada bairro e de cada pessoa em cada bairro, desculpem a redundância, o Quive percebe. Reconta as pessoas e as acções e constrói-as para nós que nos esquecemos, Quive sai e entra nas Literaturas Africanas Pós-Colonial que Ana Mafalda Leite titularizou para os nos-sos escritos, do quotidiano. Quive não brinca com as palavras, escreve-as como são no seu verdadeiro sentido e aperce-bemos que a escrita literária tem vida, tem construção, tem acção, tem moçambicanidade e não tem separação de acção, espaço. Nas suas obras por vezes Quive assusta-me quando entra na rua das miúdas, Era sexta-feira. Dia 13. Dia das bruxas. Bruxas femininas. Os machos são bruxos, por isso aparecerá um só homem. Agora é assim mesmo. É emancipação até na bruxaria. Nos corredores daquela rua, pisavam-se as lágrimas silenciosas da Kotile, circulava com mine saias, cujo tamanho não era digno de se chamar de mine saia. Parecia uma pura roupa interior. Pura porque era mesmo quase que um espelho lambido pelo orvalho. Se via tudo. Tudo mesmo. In O primeiro cliente, a quem disse-me que o escritor escreve o que vive (não vamos confusionar este alguém), dei-xe-me escrever o que penso desse alguém se fosse para o Quive, que na idade que ele tem seria um atirador das ruas da prostituição, porque Quive vive nestas ruas na sua escrita. Ima-ginem o Quive, magro, acabado pela escrita no seu escritório do Kuphaluxa, pensando como juntar os seus membros e o povo em geral, sem um tostão porque a escrita não lhe dá dinhei-ro em Moçambique e sem um almoço energético, para ter de ir a rua das miúdas viver. Não precisa o escritor viver algo para escrever. Basta pensar e juntar o enredo. Ó Quive! O que achas que a sua escrita pode mais ensinar-me. Se já sei como vivíamos no antigamente. Achas que eu sou teu confrade com capacidades de falar de ti. Ou devo ler mais suas obras e viver mais consigo. Aos meus leitores, leiam o Quive sempre que o zénite literário vos chegar. Porque o jornal do Quive é de pouca tiragem para aqui até próxima edição.

*Titulo da prosa de Eduardo Quive

Angélica, minha esposa * Izidro Dimande - Maputo

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Ensaio S E X T A - F E I R A , 0 8 D E J U N H O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 1 2

Frederico Ningi

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Ensaio

Nota ao leitor

E ste trabalho não se pre-tende exaustivo. Ele ape-nas indica referências que poderão ser o ponto

de partida para um estudo mais completo e actualizado, uma vez que se refere unicamente ao panorama literário guineense até 2000. A limitação das fontes que foi possível consultar, explicará a parcialidade da abordagem e desde já as minhas desculpas pelas omissões invo-luntárias. Com a preocupação de ampliar a estas insuficiências, não deixarei de completar este trabalho à medida que for tendo acesso a mais informações. Por outro lado, o desafio fica aqui lançado a eventuais colaboradores interessados em aprofundar e completar o tema. Introdução Dentre as antigas colónias portuguesas, a Guiné-Bissau é o país onde mais tardia-mente a literatura se desenvolveu devido ao atraso do aparecimento de condições socio-culturais propícias ao surgimento de vocações literárias. Esse atraso deveu-se sobretudo ao facto da Guiné ser uma colónia de exploração e não de povoamento, tendo estado por um longo período sob a tutela do governo geral da colónia de Cabo Verde. São vários os elementos que explicam essa situação, dos quais cito alguns. Primei-ramente, uma política educativa colonial restritiva e tardia. Com efeito, o primeiro estabelecimento de ensino secundário só foi aberto em 1958, enquanto que, por exemplo, em Cabo Verde o primeiro liceu foi inaugurado na Praia em 1860 [i] O aces-so ao ensino era bastante restrito, estando dele excluída a maioria da população (99,7% em 1961) abrangida pelo Estatuto do Indigenato. A imprensa também che-gou tardiamente à colónia, em 1879, enquanto que nas demais colónias ela foi ins-talada entre 1842 e 1857. Os Boletins Oficiais, que possuíam secções reservadas a colaborações literárias, só apareceram em 1880, na medida em que entre 1843 (data em que apareceram os boletins nas outras colónias) e 1879 havia um boletim comum à Guiné e Cabo Verde, editado na Praia. A primeira editora pública, a Edito-ra Nimbo, só aprareceu depois da independência em 1987, tendo tido uma duração efémera, fechando alguns anos depois. A estas causas remotas, associam-se outras mais recentes que têm a ver com o pouco (ou quase nenhum ) apoio que as autoridades do país têm prestado à promo-ção da cultura nacional em geral e à literatura em particular. A inexistência de biblio-tecas, de uma casa de edições, a falta de dinamismo da própria União Nacional de Artistas e Escritores são alguns dos factores que têm travado o desenvolvimento do movimento literário nacional. Abdulai Silá, o primeiro romancista contemporâneo do país, teve que fundar a sua própria casa de edições em 1994... Poderemos distinguir quatro fases na literatura da Guiné em função do seu conteú-do: uma primeira fase anterior a 1945, uma segunda entre 1945 e 1970, uma outra entre 1970 e o fim dos anos 1980 e finalmente a fase iniciada na década de 1990. I. A fase anterior a 1945

Autores marcados pelo cunho colonial

Os primeiros escritos no território guineense foram produzidos por escritores esta-belecidos ou que viveram muitos anos na Guiné, muitos deles de origem cabo-verdiana. A maior parte das suas obras têm um caracter histórico, com a excepção da de Fausto Duarte (1903-1955), que se destacou como romancista[ii], Juvenal Cabral e Fernando Pais Figueiredo, ambos ensaístas, Maria Archer, poetisa do exo-tismo, Fernanda de Castro, cuja obra dá conta das transformações sociais da coló-nia na época e João Augusto Silva, que recebeu o primeiro prémio de literatura colonial. Porém a maior parte destes autores caracterizam-se por uma abordagem paternalista e/ou próxima do discurso colonial. Durante este período apenas uma figura guineense se destaca : o Cónego Marceli-no Marques de Barros que deixou trabalhos no domínio da etnografia, nomeada-mente “A literatura dos negros” e uma colaboração com carácter literário dispersa em obras diversas. A ele se deve a recolha e a tradução de contos e canções gui-neenses em diferentes publicações e numa obra editada em Lisboa em 1900, intitu-lada “Contos, Canções e Parábolas”. II. O período entre 1945 e 1970

Uma poesia de combate

É neste período que surgem os pri-meiros poetas guineenses: Vasco Cabral e António Baticã Ferreira. Amilcar Cabral, com uma dupla liga-ção à Guiné e Cabo Verde, faz tam-bém parte desta geração de escrito-res nacionalistas. A literatura deste período caracteriza-se pelo surgimen-to da poesia de combate que denun-cia a dominação, a miséria e o sofri-mento, incitando à luta de libertação. Embora os primeiros poemas de Amilcar Cabral revelem um autor cabo-verdiano, a maior parte da sua obra literária é dominada por um

cunho universalista, marcada pela contestação e incitação à luta: « Ah meu grito de revolta que percorreu o mundo que não transpôs o mundo o Mundo que sou eu ! Ah ! meu grito de revolta que feneceu lá longe Muito longe Na minha garganta ! Na garganta mundo de todos os Homens »[iii]

Vasco Cabral é certamente o escritor desta geração com a maior produção poé-tica e o poeta guineense que maior número de temas abordou. A sua pluma passa do oprimido à luta, da miséria à esperança, do amor à paz e à criança.... Inicialmente com uma abordagem universalista, a sua obra se orienta, a partir dos anos 1960 para a realidade guineense[iv]. Em 1981, publicou o seu primeiro livro de poemas intitulado “A luta é a minha primavera”, obra que reúne 23 anos de criação poética entre 1951 e 1974. Esta obra foi ulteriormente publicada pela União Latina numa versão trilingue português, francês e romeno. Citação: « Mãe África Vexada Pisada calcada até às lágrimas confia e luta e um dia a África será nossa… »[v] « …Ah ! Comme il me plairait d’embrasser sur la bouche l’aurore et de promener mes doigts dans la chevelure de l’avenir pour que paix et liberté soient universelles. »[vi]

III. Dos anos 1970 ao fim dos anos 1980

Uma literatura exclusivamente poética: da poesia de combate à poesia intimista

Com a independência do país, surge uma vaga de jovens poetas, cujas obras impregnadas de um espírito revolucionário, manifestam um carácter social. Os autores mais representativos são: Agnelo Regalla, António Soares Lopes (Tony Tcheca), José Carlos Schwartz, Helder Proença, Francisco Conduto de Pina, Félix Sigá. O colonialismo, a escravatura e a repressão são denunciados por esses autores que, no pós independência imediato apelam para a construção da Nação e invo-cam a liberdade e a esperança num futuro melhor. O tema da identidade é abor-dado através de diferentes situações: a humilhação do colonizado, a alienação ou assimilação e a necessidade de afirmação da identidade nacional. Note-se porém que a questão de identidade não é apresentada como um factor de oposição entre o indivíduo e a sociedade na qual este evolui. Ela é analisada como um conflito pessoal do indivíduo, que consciente do seu desfasamento cultural em relação à sociedade de origem, procura identificar-se com as suas raízes, da qual foi afastado pela assimilação colonial. Por conseguinte, nesta abordagem não se põe em causa a pertença do indivíduo à sociedade em ques-tão. Embora o recurso ao crioulo seja marginal, os autores afirmam-se como cida-dãos africanos Vejamos : Agnelo Regalla (tema do assimilado) Fui levado a conhecer a nona sinfonia Beethoven e Mozart na música

Filomena Embaló

FONTE: www.didinho.com.br

Breve historial da literatura guineense*

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Dante, Petrarca e Bocácio na literatura … Mas de ti mãe África ? Que conheço eu de ti ? a não ser o que me impingiram o tribalismo, o subdesenvolvimento e a fome e a miséria como complementos…/[vii]

Helder Proença (temas: reconstrução e esperança) « …É assim que vamos tecendo as nossas manhãs de ferro e terra batida são as cores da nossa vida onde a juventude se forja

- ardente e gloriosa no peito palpitante do futuro - … »[viii]

As primeiras publicações poéticas surgem em 1977 com a edição da primeira antologia « Mantenhas para quem luta », editada pelo Conselho Nacional da Cultura. No ano seguinte, é publicada a “Antologia dos novos poetas / primeiros momentos da construção”. Estas duas obras consagram uma poesia que instiga à reconstrução do jovem país. Ainda em 1978, Francisco Conduto de Pina publicou o seu primeiro livro de poe-mas “Garandessa di nô tchon” e Pascoal D‟Artagnan Aurigema editou „Djarama”. Helder Proença publicou em 1982 « Não posso adiar a palavra » com duas obras poéticas. Em 1990, surgiu uma nova colectânea poética, a “Antologia Poética da Guiné-Bissau” editada em Lisboa pela Editorial Inquérito, reunindo obras de quinze poe-tas, dos quais a maioria produz ainda uma poesia característica desta época. IV. A partir da década de 1990 Uma poesia mais intimista.

O desencantamento dos sonhos do pós-independência imediato fez com que a euforia revolucionária desse lugar a uma poesia que se tornou mais pessoal, mais intimista, com a deslocaçao dos temas Povo-Nação para o Indivíduo. Outros temas passaram a inspirar a criação literária, tais como o amor. De entre os seus autores citemos: Helder Proença, Tony Tcheca, Félix Sigá, Carlos Vieira, Odete Semedo. « Quisera nesta vida … afagar teus cabelos sugar o doce dos teus olhos transportar em arco-íris o néctar da tua boca e juntos caminharmos ante a ânsia e o sonho … »[ix] « A vida nasce de gotas de Amor - a morte acontece no tempo entre mim e a vida paira um vácuo - com sorriso aguardo o destino[x].

Embora o português continue a ser a língua dominante na poesia guineense, o recurso ao crioulo tornou-se mais frequente, quer pela escrita em crioulo, quer pela utilização de termos e expressões crioulas em textos em português. Empregando o crioulo, os autores põem em evidencia a riqueza metafórica dessa língua, profun-damente enraizada na cultura popular. Odete Semedo, que utiliza tanto o português como o crioulo, reivindica pertencer a duas culturas: « Em que língua escrever as declarações de amor ? em que língua contar as histórias que ouvi contar ? … Falarei em crioulo ? Falarei em crioulo ! mas que sinais deixar aos netos deste século ? ou terei que falar nesta língua lusa e eu sem arte nem musa mas assim terei palavras para deixar.. . »[xi]

Várias são as publicações que dão conta destas inovações na literatura bissau – guineense: « O Eco do Pranto » de Tony Tcheca em 1992, uma antologia temática sobre a criança, editada pela Editorial Inquérito em Lisboa ; « O silêncio das gaivo-tas » em 1996, o segundo livro de poemas de Francisco Conduto de Pina ; « Kebur – Barkafon di poesia na kriol », uma recolha de poemas em crioulo, editada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) em 1996 ; « Entre o Ser e o Amar », uma recolha bilingue português-crioulo de poemas de Odete Semedo, publicada também pelo INEP em 1996 « Noites de insónia em terra adormecida », um outro livro de poemas de Tony Tcheka publicado também em 1996 e « Um Cabaz de Amores - Une corbeille d‟amours”, recolha bilingue português-francês de poemas de Carlos Edmilson Vieira, publiacada em 1998 pelas Editions Nouvelles du Sud em Paris. As primeiras bandas desenhadas de Fernando Júlio, exclusivamente em crioulo, apareceram na década de oitenta. Trata-se essencialmente de sátiras sociais que tiveram um grande sucesso. A música, onde a poesia crioula tem quase a exclusi-vidade, foi também marcada pela exultação da reconstrução nacional.

Finalmente a prosa! Foi apenas em 1993 que a prosa aparece na literatura contemporânea bissau-guineense. Foi Domingas Sami que inaugurou este estilo com uma recolha de contos « A escola » sobre a condição feminina na sociedade nacional. Em 1994, surge o primeiro romance de Abdulai Silá, « Eterna Paixão , que publi-cou outros dois romances: « A última tragédia », traduzido para francês e « Mistida » em 1997. Na sua obra Silá põe em destaque a coabitação na socie-dade colonial das duas comunidades presentes, a colonizadora e a colonizada. A transição para uma sociedade pós-colonial onde uma nova elite saída da luta de libertação se instala no poder, fazendo contrastar o seu discurso revolucioná-rio com uma prática desastrosa na governação do país, é visitada pela pluma atenta do escritor. O seu romance “Mistida” publicado um ano antes do início da guerra civil de 1998/1999 é considerada pelos críticos literários como uma obra profética. Em 1997, Carlos Lopes, autor de numerosas obras de caracter histórico, socio-lógico e político, inaugura a sua incursão na literatura nacional com a publica-ção de “Corte Geral”, uma recolha de crónicas, na qual, com muito humor, des-creve situações reveladoras do surrealismo que caracteriza a sociedade gui-neense de todos os tempos. Um outro escritor se impõe em 1998 na cena literária : Filinto Barros, com o seu primeiro romance “Kikia Matcho », que mergulha o leitor no mundo mágico e místico africano, abordando a vida decadente da capital nos anos 1990 e o sonho falhado que representa a emigração. Em 1999, Filomena Embaló publicou também o seu primeiro romance, “Tiara”, que levanta o véu do delicado tema da integração familiar e social no seio da própria sociedade africana. Carlos Edmilson Vieira, em 2000, editou « Contos de N‟Nori », uma recolha de contos que evocam lendas e costumes populares, recordações de brincadeiras da juventude e as vicissitudes sociais e políticas da sociedade guineense. Constata-se que a literatura contemporânea bissau-guineense, nas suas diver-sas formas, tem uma constante : pela pluma dos seus escritores, ela retrata as desilusões, os medos e as aspirações da população perante a situação política, social e económica que prevalece no país. Notas:

i Aristides Pereira, « Guiné-Bissau e Cabo Verde – Uma Luta, um Partdido, Dois Países », Notí-

cias Editorial, Lisboa, 2002

[ii] « Aua », 1934 ; « O negro uma alma », 1935 ; « Rumo ao degredo », 1939 e « A revolta », 1945.

[iii] Poema : « Poema », Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990, pág. 39

[iv] Fernando J. B. Martinho, no Prefácio da primeira edição de « A luta é a minha primavera »

[v] Poema : « África ! Ergue-te e caminha » Antologia Poética da Guiné-Bissau, Lisboa, op. c. pág. 49.

[vi] Poema « Desabafo » (Confidence), extrait de « A luta é a minha primavera », version trilingue, pág. 236

[vii] Poema : « Poema de um assimilado », Antolologia poética da Guiné-Bissau, op. c. Pág. 118

[viii] Poema : « Assim respira a minha Pátria » Antologia Poética da Guiné-Bissau, op c. page 84

[ix] Tony Tcheca, « Ânsia e sonho », 1981, Antologia poética da Guiné-Bissau, op.c. pág. 151 [x] Francisco Conduto de Pina, « A vida », 1996, O Silêncio das Gaivotas, Bissau, Centro Cultural

Português, 1996 [xi] Odete Semedo, « Em que Língua Escrever ? », Entre o Ser e o Amar, INEP, Bissau 1996, pág. 11

BIBLIOGRAFIA

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(*) Título da nossa autoria

Page 15: Revista Literatas Ano II - Nº 33

S E X T A - F E I R A , 0 8 D E J U N H O D E 2 0 1 2 | L I T E R A T A S | L I T E R A T A S . B L O G S . S A P O . M Z | 1 5

Para as crianças do Patrice Lumumba, meu bairro e dos suburbanos bairros do meu país.

E ra criança quando nos casamos. Foi no verão de 1999 quando casei-me com Angélica, a filha do tio Fernando, o falecido carpinteiro manhem-bana da zona, chato que até roía os dentes enquanto raspava a madeira que lhe dava o sustento.

Na rua, andava a fama de que tio Fernando era apenas chato para a esposa, tia Isaura, também de Inhambane e filhas, mas de homem não tinha bravura. As grandes bocas espalharam que já entrou um ladrão na sua casa e que para logra-rem seus intentos, usavam uma pistola de brinquedo. Conta-se que os mesmos ao invadir a casa que tinha o murro de espinhosas, direccionaram-se ao quarto em que o falecido dormia com a sua esposa. Apercebendo-se da presença dos larápios, levantou-se e abriu a janela dando de caras com os mabandido, estes que com a pistola apontada ao seu rosto, disseram: “não se mexe”. O homem ficou seco. Pegou uma paralisia instantaneamente, dando assim, o acesso livre aos ladrões que foram roubando ao seu bel-prazer. De resto, muito não se falava dele, além do nome que lhe atribuíram de Tche-lomba, pelo seu sotaque misturando Changana e Bitonga. Mas tio Fernando era pai da Angélica, a minha esposa de infância. Lembro-me muito bem do dia em que foi o nosso casamento eu com oito anos de idade. A Rassi, filha do tio Jonas e da tia Amélia e irmã de Nando, Pedrito, Ntone, Vitorino e Handzul. Pedrito, depois de ter ficado muito tempo na África do Sul, decidiu voltar ao país e para casa dos pais. Mas como tio Jonas ganhou na rifa, tinha decidido comprar um terreno lá para São Dâmaso e fez uma barraca com o nome “Quinta da Lua”, por onde marrara cuidando dos negócios do pai. Já o Nando ou Nandix como é, em jeito de gozo, tratado, enquanto apostava também pelo djône, investia nas mulheres. Lembro-me daquela que terá sido a sua primeira esposa, a mana Alzi-ra, a vendedora de tomate no bazar do bairro e ainda lobolou depois a Belinha, uma encantadora jovem, com uma cintura conquistadora de olhares nos homens da zona, incluindo as crianças das quais não me excluo. Com a Belinha, pareceu que as coisas seriam boas, mas nada. Voltou da África do Sul num desses natais como era habitual dos madjonidjonis, embebedou-se e encheu de chutes, bofeta-das e cabeçadas a Belinha. Rachou-a quase todo o rosto com a porrada começa-da no quintal de casa para rua sob o olhar de todos. Eu vi cada cacetada que levou a mana Belinha, senti muita pena e muito medo do Nandix, aquele que se parecia mais sério dos filhos do tio Jonas. O pai do Manuelito. E foi sendo assim com a mana Dionora e outras miúdas com que viveu maritalmente. Ntone ou My Bro, como se afamou pela sua mistura do inglês que já tinha habi-tuado pelas andanças pelo djône, é o penúltimo. Esse aventurava-se pelos carros e motos, investia mais na luxúria.

Handzul é o que mais fama ganhou pela zona porque era de conduta duvido-sa, alguns chamaram-no de ladrão, fumava e bebia, sustentando a vaidade do tempo. São incontáveis as vezes que a polícia fora lá para a rua a sua procura, para leva-lo aos calabouços. Terá até chegado à cadeia de máxima segurança. Este fora o mais problemático entre os sul-africanados filhos do tio Djona. Mas no entanto, o que também se converteu a bom homem. Vitorino também deu alguns problemas. Era amigo do Gabito, o filho da vovó Eva e do vovô Ubisse. Eram verdadeiros amigos, bebiam e fumavam juntos, mas o problema era um e único: quando se embriagavam lutavam entre si. Espancavam-se. Partiam-se. Era uma tremenda violência. Lutavam na rua e se alguém os acudisse, tal como fazia a tia Vitória, a esposa do tio Manhiça, cada um entrava para a sua casa e buscava um instrumento contundente. Tudo servia, afinal, já se viam como inimigos mortais. O Gabito, amavelmen-te tratado por Mugabe, pela sua mãe, quando entrava para sua casa, saía no mínimo com uma garrava, partia-a na cabeça do Vitorino, este mais raivoso ainda, ganhava forças sobrenaturais, ia para sua casa e levava uma pá bem cumprida e afiadíssima, atirava-a contra Gabito. Instalava-se o pânico total enquanto os menos atrevidos para acudir comentavam “i vangano”, são ami-gos eis o significado dos dizeres. Depois de acudidos, aceitavam dormir, os pais simulavam uma conversa para apaziguarem-se enquanto os filhos já dor-mem. Dia seguinte, eram novamente amigos. Eu admirava a tão forte amiza-de desses dois! Gabito era mesmo um homem do álcool, uma vez, bebeu até às tintas, aze-

Angélica, minha esposa Eduardo Quive

dou o cérebro e ficou agressivo. Ninguém segurava-o. Nem ele próprio. Entrou na sua casa gritando e partindo tudo que encontrava a sua frente. Abanou árvo-res e partiu ramos; Estrangulou a cozinha feita de madeira e zinco; deu o pontapé nas panelas que levaram para o chão o alimento do dia; Esmagou a areia que o sus-tentava em terra. Entrou para dentro onde descansava a sua mãe, pegou nela e encheu de porrada. Nesse momento todos vizinhos já tinham invadido a casa para acudir, incluindo, a tia Vitória que sempre fez questão de presenciar esses momen-tos de lufa-lufa. Mas só o meu irmão, o mano Victor, conseguiu derruba-lo e deu-lhe uma tareia também. Onde já se viu na educação tão suburbana que nós temos, um filho bater na própria mãe? Era o fim do mundo! O meu irmão amarrou-o na árvore por onde repousou a sua fúria até o amanhecer. Por fim, decidiu seguir o caminho do seu irmão Txône, foi para África do Sul, não optando, portanto, em ir a Lesoto onde se encontrava o seu mais velho irmão, o mano Evaristo e pela Suazi-lândia, por onde andara Lindo, ou Xicadjuana, como eu li tratava, para depois ele me chamar de Xicaroce. Por meio desse cenário consumou-se o meu amor com Angélica, até o anúncio da decisão e da data de casamento às nossas famílias. Já no dia de casamento, estava toda a rua e ruas vizinhas, informados sobre a fes-ta. Tudo era de verdade. A Rassi e Dinoca, esta última filha da tia Sandrinha e neta da vovó Sambo que vivia enfrente da minha casa, foram as que prepararam o bolo do casamento e outros doces. A festa, contrariamente ao que acontece nos tradi-cionais casamentos, foi apenas na casa da tia Isaura, nessa altura, já viúva do fale-cido tio Fernando. Tudo esteve lindo até ao mínimo detalhe. As folhas dos coquei-ros cortadas e através delas feita a decoração da entrada que usariam os noivos de modo a dar a devida sorte, a farda de capulanas nas mulheres bem ensaiadas nas vozes que entoavam as canções típicas da ocasião. A minha mãe tinha comprado um fatinho de treino novo e sapatilhas para usar no dia do casamento. Comprou-me também uma nova escova de dentes e fez ques-tão de me fiscalizar no banho. Fez os devidos arranjos para que o seu filho não se parecesse marginal diante dos familiares da noiva. E era mesmo um príncipe, Angélica, a princesa. Ela estava linda, de capulana e uma blusa garrida. Uma autêntica noiva como a das novelas com as respectivas biqueiras. Estávamos pre-parados para nos casar perante os nossos pais e vizinhos. Tudo apostos. Num verdadeiro acto de anunciação desse matrimónio, fizemos um desfile pela rua toda na companhia do corro de homens e mulheres que cantavam na maior emoção. Deliravam de alegria em ver um casamento do príncipe e da princesa. E nós assumindo a postura dos noivos, como os nobres do dia, longe da pobreza e das desigualdades, caminhávamos aos passos lentos. Abraçados entre braços cru-zados. Sorriamos civilizadamente, quase sem abrir a boca enquanto todos vinham à nossa trás, os nossos amigos e admiradores provenientes doutras ruas iam estendendo esteiras por onde rigorosamente passávamos. Ah! Angélica, tu és a mulher mais linda do mundo! Amo-te muito. Ah! Dodoca, eu te amo muito, você és amor da minha vida! Eram esses nossos suspiros no silêncio.

Chegados à casa da Angélica, onde tudo e mais gente nos esperavam, incluindo as nossas mães que passaram a se chamar de masseves por nossa causa, esta-vam lá, a espera dos noivos que éramos nós. Fomos recebidos com os devidos nkulunguanas e outros ululus dos presentes. A mutchato i lembe wanê! Canta-vam todos. A Marcinha também estava, o Netinho, o Simone. Todos estavam. E eu lindo perante a Angélica que até pintou batom naqueles magros lábios. Com o auxílio das madrinhas, Rassi e Dinoca, cortamos o bolo que nos demos de comer e demos aos presentes. Depois demo-nos de beber a fanta. De segui-da, foi o que mais irradiou o momento, o beijo. Todos cantavam o kissananane. E nos beijamos. Demo-nos o beijo de amor, na vontade de imitar os beijos das novelas brasileiras. Ah! O beijo da Angélica era tão doce. Lembrava-me o mel que o meu pai usava para a ferida, das colheradas que dei para me deliciar daquele açúcar natural. Depois foi a vez da festa. Comemos e dançamos os cânticos tradicionais saindo das bocas fartas de alegria que nos iam abraçando. Foi uma festa inesquecível, a do meu casamento. Ao entardecer, nos debatemos com a questão da lua-de-mel. Haverá lua-de-mel como acontece no casamento da novela? Onde seria? Faria eu, sexo com Angéli-ca? Como o faria? E debatíamo-nos cada um no seu habitual silêncio. E nem se quer nos demos tempo do adeus. A Angélica e seus irmãos já com a situação crítica depois do falecimento do seu pai rumaram com a sua mãe par parte incerta. Anda-ram por um tempo para algures, perto do patrice. Até cheguei a ver a sua mãe e a Cecília, sua irmã por uns tempos. Ah! Sentia muita nostalgia sempre que visse a minha sogra Isaura, sem poder a perguntar sobre a minha esposa, Angélica. Hoje mulher que já deve ser Angélica, se quer lembrar-se-ia de mim, o Dodoca, seu marido de infância.

Inédito