revista literatas-61

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www.revistaliteratas.blogspot.com Conecte-nos no “Kuphaluxa” uma nova geração da Literatura Moçambicana? Professor Francisco Noa pág. 5 & 6 Director: Amosse Mucavele l Email: [email protected] l Maputo l Ano III l Edição: Nº. 61 l 02 Julho de 2014 “Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista” Entrevista a Ricardo Riso pág. 9 à 13 www.revistaliteratas.blogspot.com

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Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona

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Page 1: Revista Literatas-61

www.revistaliteratas.blogspot.com Conecte-nos no

“Kuphaluxa”

uma nova geração

da Literatura

Moçambicana? Professor Francisco Noa

pág. 5 & 6

Director: Amosse Mucavele l Email: [email protected] l Maputo l Ano III l Edição: Nº. 61 l 02 Julho de 2014

“Sou apenas mais um

negro ciente da

minha condição

enquanto negro em

uma sociedade

racista”

Entrevista a Ricardo Riso pág. 9 à 13

www.revistaliteratas.blogspot.com

Page 2: Revista Literatas-61

Sumário

Leia, leia, leia sempre a revista

Entrevista com Ricardo Riso|( …)

Sou apenas mais um negro ciente da minha condição (…)| Pág.. 10, 11, 12 e 13

“Kuphaluxa” uma geração da nova da Literatura Moçambicana? | Palestra com

o Professor Doutor Francisco Noa | Pág.. 3 & 4

Page 3: Revista Literatas-61

DIRECTOR Amosse Mucavele | [email protected] Cel: +258 82 57 03 750 | +228 84 07 46 603 EDITOR Japone Arijuane| [email protected] | [email protected] Cel: +258 82 35 63 201 CHEFE DA REDACÇÃO Nelson Lineu | [email protected] Cel: +258 82 27 61 184 CONSELHO EDITORIAL | Amosse Mucavele | Japone Arijuane | Mauro Brito | Nelson Lineu. REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula

COLABORADORES FIXOS Moçambique: Carlos dos Santos Matiangola Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa

Portugal: Victor Eustaquio Angola: Lopito Feijóo Cabo Verde: Filinto Elísio PAGINAÇÃO & FOTOGRAFIA Japone Arijuane PERIODICIDADE Mensal

Ficha técnica

COLABORAM NESTA

EDIÇÃO:

Angola João Tala Luís Kandjimbo Brasil Neide Medeiros Santos Rosana Piccolo Manoel de Barros

Ronaldo Cagiano Cabo Verde Mário Lúcio Sousa

Moçambique

Sara Jona Jacaré Fernanda Anguis Elcidio Bila Celles Leta Hirondina Joshua

Portugal Samuel Pimenta A revista Literatas é uma publicação electrónica ideal-izada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divul-gação da literatura moçambicana interagindo com as outras literaturas dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor do artigo.

Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: [email protected] | Tel. (+258): 82 35 63 201 | 84 51 03 474 | 84 57 03 750

Movimento Literário Kuphaluxa | www.kuphaluxa.blogspot.com | www.facebook.com/movimento.kuphaluxa

A cultura de desvalorizar a cultura

E u sou moçambicano, ou seja, um homem que não ama a sua cultura. Os meus patrícios, que não se zanguem. Todos

dizem que amam e não são capazes de revelar um simples gesto possível de amor.

A cultura, a arte em Moçambique, que nem deveria ser um elemento de adorno e ostentação, passou a ser uma simplicidade fútil

de adulação e um elo de junção entre fúteis e inúteis, a cargos e posições cujo status prevalece o nepotismo.

Como se pode chamar a um moçambicano um homem culto? Enquanto a literatura, sobrevive a um palmo e meio de leitores, que

mal podem comprar um livro, em que o maior número desses livros nascem e morrem no dia do seu lançamento? A música, que

para além de conteúdo fútil e de passagem provisória e, como isso não bastasse, é pirateada e vendida a preço de banana po-

dre; as artes plásticas sem rumos, em que as exposições, por mais tempo que permaneçam em nossas reles galerias, são

somente apreciadas às moscas? O teatro, o cinema, a fotografia, as danças e outras manifestações artístico-culturais, só coex-

istem em papel passado a rascunhos.

Como chamar os moçambicanos de um povo?, do povo moçambicano? Se bem se diz, e outorgo, que não há povo sem cultura?

Alguns, de espírito frágil, moçambicanos desprovidos de rácio, comprometidos pela causa do “povo”, dirão que estou a ser

demasiadamente antipatriota, e diriam mais: que existe cultura e que os moçambicanos são cultos. – Ainda bem que a opinião

significa posição individual. Mas que cultura seria essa? A cultura de ver a falsificação massiva de produtos culturais e deixar an-

dar?, a cultura de ter uma juventude inculta, aliás, reles juventude sem sensibilidade artística, que têm como cultura o indis-

pensável abuso e gozo excessivo do álcool?, a cultura de dizer que se ama e somente em palavras esse amor morrer?, ou essa

cultura de desvalorizar a própria cultura?

São várias e tantas as questões que me seriam desgastante faze-las, porque sei que ninguém, mas ninguém, pelo menos que eu

conheça neste país, que me poderia responde-las.

Assim vai a nossa cultura, a arte, sobretudo, sem crítica, que digam, - também a sociedade, exaltando um dogmatismo doentio

que torna a própria cultura elemento de alienação e uma indiferença colectiva. Dessa colectividade aculturada cujo presente es-

quiva o futuro e faz das massas um entulho de seres não pensantes, aliás, sem cultura.

Boa leitura e

Bem-haja a cultura!

www.revistaliteratas.blogspot.com

Editorial | Japone Arijuane

Page 4: Revista Literatas-61

Diálogos

04 | 02 de Julho de 2014

Às segundas-feiras saiba quem é a personagem da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com

O ntem Noite de inverno, re-

gurgita o vento norte, tem

saudades dos trópicos, quentes, las-

civos, afinal, para que ventar em

outras partes, se ensimesmado com

sua própria sorte, não sabe onde?

Cadeias o prendem, políticas do pe-

queno universo, em sua volta, quem é o ser?, e afinal,

para que, o sonho acompanhado de um sono, profundo

e à flor de uns lilases ao fundo e um pleito.

Temeria, agora,não encontrar-se no teu fundo de poço e

as orquídeas assim o sentem, olhares dormidos, sentir-

se entre balcãs, e longínquos continentes noite fria se

espalhando, muito além,e o próprio vento engasgado na

tua ilha,fãs dos primitivos instintos, e embalar da no-

ite,em refinado lamento, pelos cantos a palmeira não se

percebe, o homem esquecido,na cidade o beco, noite

de inverno, regurgita o vento norte. O arrepio das aves.

(Mário T. Saroka - Brasil)

S onho a lamparina acesa aos

trajectos tão jovens aos ve-

lhos destinos. Numa noite breve, o

norte dos sentidos perdidos no meio

do nada. No mesmo nada que faz da

vida pouca coisa. Sonho o antes de

todos os depois que o outro não precisou para não fazer da

vivência uma convivência, senão um abismo abismal, que

faz das aves apenas cinza a flora fumaça o homem o fogo.

Sonho invertido num verbo conjugado a sangue frio, na re-

ciprocidade ignorante de uma qualquer bala perdida no si-

lêncio da fala, de quem esperado não passa. Nas brilhantes

estrelas o além o comum a iluminar a mimica duma amné-

sia de consensos plenos. Sonho o sono que sonha o man-

cebo acordado no meio do nada a fazer mutuamente o na-

da. Sonho o antidoto à febre bélica que os miúdos ingenua-

mente propalam aos quatro ventos nas paredes do medo, o

alísio a fragrância desenhada à pólvora frenética dos mús-

culos da pedra engatilhados na mente urbana.

(Japone Arijuane - Moçambique)

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Page 5: Revista Literatas-61

05 | 02 de Julho de 2014

Questão de Fundo | Redacção

M ais uma vez o Movimento Literário Kuphaluxa mostrou ao seu jovem

público que tem capacidade e força de vontade, para apostar na cul-

tura e com a cultura desenvolver.

No dia 17 de Dezembro de 2013, esta a agremiação artístico-cultural de jovens lo-

tou a sala do centro cultural Brasil-Moçambique, com o evento Eu a e Leitura com

o Professor Francisco Noa, que foi a figura de cartaz.

Este evento, segundo o Momento Literário Kuphaluxa, na voz do coordena-

dor Nelson Lineu: “visa discutir assuntos ligados a literatura moçambicana e

juntar no mesmo espaço o escritor e seus leitores”.

Com o Professor Noa, as intervenções do público, os ensinamentos sábios

do Professor, foram bastante produtivas, aliás, assim são todos os debates

deste projecto. Motivo mais do que claro que o movimento deve continuar

mobilizando jovens, o que é difícil nos dias que correm, pior ainda quando

se trata de um sexta-feira, quando aconteceu o debate, aliás, isto revelou-

se bastante curioso nos olhos do Professor Noa, suas palavras inicias:

“Vocês se esqueceram que hoje é Sexta-feira?, o quê que estão aqui a fa-

zer?, não deveriam estar nas barracas?”

Na sua apresentação começou por afirmar que a cultura é uma forma de

elevação, ou seja, Auto elevação, por exercitar o espírito contra a corrente

de mediocridade e futilidade, que não se faz sentir apenas em Moçambi-

que. Tornando assim numa crise generalizada de referência, por causa da

ausência dos pais, professores, avós porque essas pessoas corporizam

valores.

Citando o Professor: “Nos últimos anos tivemos várias transformações de

todos os cantos do mundo, a globalização do mal é real, e em países como

Moçambique têm grandes contornos. Tendo uma relação umbilical com a

educação, não só a formal como a informal”.

Este foi mais longe ao afirmar que, para a mudança apela a responsabilida-

de individual.

O evento, bastante concorrido pelo público que, pela felicidade destes, o

projecto Eu e a Leitura tratar-se-á de ciclo de debates e Tertúlias Culturais,

que teve inicio no mês Julho com o escrito Suleimane Cassamo, seguiu-se

com o João Paulo Borges Coelho e agora o Professor Noa, e assim suces-

sivamente seguir-se-ão os outros, segundo o programa.

“Kuphaluxa” uma geração da nova da Literatura Moçambicana?

Participantes

Nelson Lineu e o Professor Francisco Noa

Page 6: Revista Literatas-61

06 | 02 de Julho de 2014

Questão de Fundo

Noa ainda partilho como o público ali presente que: “A partir da pesquisa de uma

professora da Pensilvânia, constata que os jovens que usam menos os audiovisuais

têm mais facilidade de ler o mundo em que estamos, ou melhor ler o outro.

Hoje, as pessoas não só, não tem hábitos de leitura como não gostam de ler, porque

lêem por um objectivo concreto, e quem assim o faz, não é por gostar de ler. Para

Noa, a leitura é transcendental a escrita.

A obsessão pela escrita faz-nos pensar que para saber ler é

preciso conhecer a escrita, pois acima de tudo, a leitura é

fundamental para a formação do cidadão”.

Quando questionado pela morte ou não da literatura moçam-

bicana, este lembro-se de um episódio, em que um grupo de

jovens, há alguns anos, escreveu uma carta, fazendo esse

anúncio, querendo que o professor assinasse a certidão de

óbito. O que não o fez, embora na altura, concordasse com

alguns pontos descritos na carta.

Para Noa, o que estava a acontecer eram sinais da morte da

qualidade. E hoje verifica-se alguns sinais de retorno, porque

segundo ele: “a literatura moçambicana nasce pela signo da

qualidade, com jovens como Noémia de Sousa, José Cravei-

rinha, Aníbal Aleluia entre outros; desde a qualidade estética,

tendo compromisso com a tradição literária universal; e quali-

dade temática”. E diz mais ao afirmar: “é em função dessa

génese que deve olhar-se a literatura moçambicana, pois, a

vitalidade de uma literatura está ligada a sua qualidade”.

O Professor, como sempre o é (o Professor), deixou um pu-

xão de orelhas aos jovens que estavam e gostariam que um dia fos-

sem escritores, e os novos autores, o desafio para estes, lessem por

prazer e que fosse essa leitura aos clássicos da sua literatura, e

mais do que ir a cenário de querelas com os mais velhos, trazerem

novas propostas.

E este fechou colocando a questão se estávamos perante a uma

nova geração: “A Geração Kuphaluxa?”

A nós, resta-nos: dizer que sabe? Só o tempo dirá.

Participantes

Page 7: Revista Literatas-61

07 | 02 de Julho de 2014

Ensaio www.revistaliteratas.blogspot.com

Lapidar a Palavra em

Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio*

Sara Jona - Moçambique

[…] O objecto pode ser: 1) criado como prosaico e percebido como poé-tico; 2) criado como poético e percebido como prosaico. Isto indica que o carácter estético de um objecto, o direito de relacioná-lo com a poe-

sia, é o resultado de nossa maneira de perceber; chamaremos objecto estético, no sentido próprio da palavra, os objectos criados através de

procedimentos particulares, cujo objectivo é assegurar para estes objec-tos uma percepção estética. Chklovski (1999:41)

M aior parte dos poemas em Dentro

da Pedra ou a Metamorfose do

Silêncio podem ser colocados na área dos Estudos

Literários que analisa o metapoema. Esses poemas

revelam a preocupação do autor em fazer da palavra a

sua matéria-prima, lapidando-a ou esculpindo-a a fim

de obter poesia. Neste labor, ele colocou um sujeito

poético que fala sobre a função da poesia; que fala

sobre a própria poesia e indaga-se sobre o seu pro-

cesso de criação. Em síntese, o autor: afinou, retocou,

envernizou, burilou a palavra a fim de compor os seus

poemas. O esmero nesse trabalho de “construir” a po-

esia, assemelha-se ao de moldar, lixar, alisar, polir,

uma pedra com intuito de a transformar.

O título do livro remete-nos a esse tipo de leitu-

ra. O poema da pg. 35, por exemplo, contém significa-

dos que o condensam. É como se as palavras, depois

de esculpidas, saíssem da pedra a desfilar. São pala-

vras que resultam de uma exaustiva lavra que as adorna, a fim de serem capa-

zes de transmitir significados:

Aprumadas as palavras/ acordadas no sono da pedra/ relíquia reinven-

tada em sonhos/ gestos inauditos em vozes/ desfilam lento o som/ pela

vaidade do silêncio/ a palavra aprumada/ a dizer o nada, pg. 25.

Até porque, as expressões repetidas em trocadilho: aprumadas as pala-

vras, palavra aprumada e o verso relíquia reinventada em sonhos reforçam es-

sa imagem de retocar.

O mais espantoso nesse esforço de burilar é que, mesmo depois de tan-

to trabalho, a palavra não atinge a sua plenitude para comunicar. Ela transporta

consigo algumas limitações, uma vez que, o sujeito poético refere, no poema

acima, que dada a força do silêncio, essas palavras nada dizem. O verso: “a

dizer o nada” permite-nos chegar á essa constatação.

Há nisso uma contradição, porque as palavras, nunca são de silêncio.

Isto faz-nos colocar este tipo de poesia no niilismo, corrente filosófica centrada

na busca do ideal, negando o que é facilmente perceptível.

Nos poemas desta obra, a pedra, não é apenas um objecto prosaico,

não tem o valor de um objecto morto ou que sufoca. Não é em objecto comum,

corriqueiro que, por vezes, é percebido como banal. Ela ganha o lugar de dese-

jo, de objecto vital e estético e de busca do si mesmo. É dentro da pedra que o

sujeito poético procura alcançar o seu mundo ideal, o do silêncio. Da adoração

do silêncio temos como exemplo:

[…] quem se vê ao espelho/ não vê senão o espelho…/ É no silêncio da pedra/ que espelho a alma, pg 12.

Sou professor do silêncio/ensino o nada sei/ a faculdade das minhas sensibilidades/a tornar-se pedra/sangue e suor/flor e fogo/[…], pg 81.

A homenagem ao silêncio pode ser realçada através da ideia de recolhi-

mento nos versos que seguem:

Para mim volto/nas mãos acesas do avesso/naquilo que me é essência/à intrínseca introspecção […] ilumino o destino em mim ancorado […] que me traz a mim, pg 23.

[…] a morte não é o fim/ […] é a indiferença das coisas/à espera do no-vo dia, pg. 42.

O silêncio de que se fala não é só o de ausência de companhia ou de

ruído. É também o das palavras; o que é reforçado pelo poema da pg. 22, no

qual vemos afirmado:

Das palavras/sinto o inexplicável amor/pela ineficácia que te-

nho/em descrevê-las/com amor/o que por elas sou/Nunca me

eduquei para amar/qualquer que fosse o silêncio/senão o das

palavras.

O procedimento a partir do qual a pedra é tratada permite

atribuir-lhe diferentes valores, nomeadamente:

Valor de espelho:

É no silêncio da pedra/ que espelho a alma, pg. 10.

Valor de silêncio: um universo de silêncio/

metamorfoseado/em pedra, pg.11 e 31.

Valor estético: Lavo a cara nas pedras do medo/vejo

sangue na maciez da pedra/[…] vivo colhendo o pó-

len das pedras. Um outro exemplo desta categoria pode

ser encontrado na pg. 14.

Valor de pessoa (personificação):

A/ cidade/um pássaro / mastiga a felicidade da pedra, pg. 39.

Quanto ao metapoema importa referirmo-nos a reflexão

que o sujeito poético faz acerca do poema utilizando três critérios:

O primeiro - para que serve o poema, de onde podem ser apontados os

seguintes exemplos:

Quando/ escrevo um poema/tento compreender-me à vida./ Se escrevo

um poema/vivo/ e/ vivo-me, pg. 15.

Navego-me/ a poesia me aconchega ao cais/meu destino é encontrar-

me/comigo à deriva/na imanente vastidão do mar. /(incrédulas certezas/

se esboçam na fé/ de me tornar espécie/ de coisa alguma)/ pinto no vão

o cão vadio/ que encontra na escuridão/ a felicidade de não ser visto/

por si…/ , pg. 27.

Ao Nhambaro/da minha poesia,/só os surdos/ancorados/à sombra do

silêncio/saberão dançar/no ritmo quente de Junho/saberão sonhar, pg.

57.

Um outro exemplo desta categoria de poemas pode ser encontrado na

pg. 81.

Acerca da segunda dimensão de análise - poema em que o sujeito poé-

tico fala sobre o próprio poema encontramos os seguintes exemplos:

Lavo as faces do vento/ como quem rasga a emoção do poema/ as fa-

ces do vento não me são excitantes/ como o papel em branco onde

cabe da/ caneta o cio/ a pureza do papel não e emociona/ poderia fazer

barcos de papel/ poderia fazer barcos de poema/ barcos de papel fi-los

na infância/ os de poema fazem-nos os poetas/ Eu…/ lavo as faces do

vento como quem rasga a emoção do poema, pg. 31.

Page 8: Revista Literatas-61

08 | 02 de Julho de 2014

Todos os dias em: www.revistaliteratas.blogspot.com

Ensaio

LEITURA:

UM UNIVERSO MÚLTIPLO

Neide Medeiros Santos – Brasil

A leitura guarda espaço para o leitor imaginar sua própria humanidade e apropriar-se de

sua fragilidade, com seus sonhos, seus devaneios e sua experiência. A leitura acorda no

sujeito dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus entendimentos.

(Bartolomeu Campos de Queirós. Sobre ler, escrever e outros diálogos).

A reflexão sobre leitura e o ato de ler nos conduz, inicialmente, o livro de

Maria Helena Martins (1984) – O que é leitura. Neste livro, a autora

estabelece três níveis básicos de leitura: sensorial, emocional e racional.

O primeiro nível de leitura é sensorial, fase da descoberta do mundo; a

visão, a audição, o olfato e o gosto são os referenciais desse nível.

Paulo Freire (1995), quando fala da leitura da “palavra-mundo”, da leitura do

quintal e dos quartos de sua casa, refere-se a uma leitura sensorial, a uma leitura

presa aos órgãos do sentido.

A respeito da leitura sensorial, Alberto Manguell (1997)

estabelece uma relação íntima, física entre o ato de ler e os sentidos

quando diz que os olhos colhem as palavras; os ouvidos escutam os

sons que estão sendo lidos; o nariz inala o cheiro familiar de papel, cola,

tinta, papelão ou couro; o tato acaricia a página áspera ou suave, a

encadernação macia ou dura; e até mesmo o paladar pode participar da

leitura, quando os dedos do leitor são umedecidos na língua.

Consideramos que o paladar pode ser também despertado pelas

referências gastronômicas. Eça de Queirós, em seus romances,

inúmeras vezes, faz o leitor sentir vontade de saborear as delícias da

cozinha portuguesa.

O mesmo ocorre com Jorge Amado, especialmente, no livro Gabriela,

cravo e canela. A decantada comida baiana parece adquirir um gosto

peculiar quando preparada pelas mãos de Gabriela. O escritor

Bartolomeu Campos de Queirós (2012), criador do projeto “Por um Brasil

Literário”, no artigo Entre silêncios e diálogos, fala sobre seu primeiro

livro de leitura.

A leitura que nos deixa alegres ou deprimidos, que desperta a

curiosidade, estimula a fantasia, provoca descobertas e lembranças, é a

leitura emocional. Maria Helena Martins afirma que na leitura emocional

não importa perguntarmos sobre o que o texto trata, mas sim o que ele

provoca em nós. É a leitura da paixão, das emoções, lida com os

sentimentos, com o subjetivismo, é a leitura que foge do controle do

leitor.

Ensaio

Nesta classe podemos ainda incluir os poemas das pgs. 22 e 27.

O terceiro critério - o processo de criação do poema pode ser demonstrado a

partir dos poemas das pgs. 35, 48, 50 e 79.

Gostava ainda de me referir a dois aspectos referentes á caracterização do

sujeito poético desta obra:

Num momento ele revela-nos a sua essência, ou seja de que é feito - e é to-

do poesia, tal como o revela no poema da pg. 54:

Não tenho senão/essa vontade/de me reinventar/em palavras./ Meu mundo/

é esse pedaço/de papel. /Imortal pedaço/riscado/de silêncios./O que não

sou/só termina/onde neste espaço/me começo./(ser poeta é isto/extinguir-se

num papel estreado de silêncios)

No outro momento revela-nos a sua essência multifacetada. Isso é-nos demonstra-

do a partir de um poema que não segue as características dos que acabei de menci-

onar, pois não louva a pedra, não se venera o silêncio, não se indaga sobre a poe-

sia, nem sobre a sua função e processos de elaboração; apenas, diz-nos quem é o

sujeito poético da obra, alguém com múltipla identidade, tal como o seria uma ima-

gem de Moçambique, um país multicultural.

Essa ideia é espelhada através da representação dos seus diferentes grupos étni-

cos: machuabo, machangana, makonde, ndau, macua, chewa, nyungues, yaos, no

poema da pg 58:

O machuabo em mim/não é senão um/matchangana disfarçado/a sonhar-se

makonde/com engenho da sua arte/se esculpir ndau/m´siro na fé/pintar a

crença makua/adormecida nos chewas/, nyungues e yaos/à minha diáspora.

Do ponto de vista do labor poético podemos colocar Japone Arijuane em pa-ralelo com outros poetas que se dedicam a escrever sobre a poesia, nomea-damente:

os moçambicanos Armando Artur, Eduardo White, Filimone Meigos e

Jorge Viegas; os brasileiros: Carlos Drummond de Andrade e José

Cabral de Melo Neto.

E outros que devolvem à pedra o grande valor que ela tem para a hu-

manidade, homenageando-a, tal como o fizeram Carlos Drummond e

os angolanos Ana Paula Tavares e Ruy Duarte de Carvalho.

Os poemas do livro acabado de apresentar demonstram a bus-

ca do si mesmo, por parte do sujeito poético, uma vez que a maioria

encontra-se na primeira pessoa. E utilizar a primeira pessoa contra-

posta a multi-identidade reforça a ideia de busca de sentido para a al-

ma, para a identidade própria e a pedra acaba por ser essa entidade

ôntica.

Um estudo da poesia de Japone Arijuane poderia fazer o levan-

tamento das diferentes contradições propositadamente elaboradas por

este autor.

___________________

BIBLIOGRAFIA

ARIJUANE, Japone. Dentro da Pedra ou a Metamorfose do Silêncio.

Maputo: Revista Literatas. 2014.

PAZ, Olegário; António Moniz. Dicionário Breve de Termos Literários.

Lisboa: Editorial Presesença. 1997.

*Notas para apresentação da obra Dentro da Pedra ou a Meta-

morfose do Silêncio de Japone Arijuane. Junho de 2014.

Page 9: Revista Literatas-61

09 | 02 de Julho de 2014

Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista da semana por e-mail: [email protected]

Ensaio

Na leitura racional, destaca-se o aspecto reflexivo, o leitor quer

compreender o texto, dialogar com ele. Para Martins, a leitura racional

acrescenta à sensorial e à emocional o fato de estabelecer uma ponte entre o

leitor e o conhecimento. A leitura racional questiona tanto o mundo individual

como o universo das relações sociais, amplia as possibilidades de leitura do

texto. [...] que oásis! Abrir minha estante e senti-los um por um nos seus

couros, carneiras, pergaminhos, papéis, percalinas – como quem passa a

mão, sente e palpa a pela da mulher amada. (1987: p. 51)

Cabe lembrar aqui Roland Barthes (1988), que, em O Prazer do texto,

estabelece distinções entre o “prazer do texto” e o “texto de fruição”. Para o

semiólogo francês, o texto que provoca prazer é o que contenta, enche, dá

euforia, é aquele que vem da cultura, não rompe com ela e está ligado a uma

prática confortável da leitura. O texto do prazer corresponde à prática

bachelardiana – “ler-sonhar”. O texto de “fruição” é aquele que desconforta,

que faz vacilar as bases históricas, culturais e psicológicas do leitor, a

consistência dos seus gostos, valores e recordações. Barthes ainda afirma

que a fruição não implica o prazer, pode até, aparentemente, causar

aborrecimentos. “O texto de fruição é absolutamente intransitivo”

Ele aprendeu a ler na cartilha O livro de Lili, de Anita Fonseca e, neste artigo,

reverencia a professora que lhe ensinou a decifrar as letras e as somas. A

palavra foi a grande mestra, através da palavra aprendeu a encurtar

distâncias, alcançar a fantasia, ultrapassar a linha do horizonte. Cada página

virada, cada folha passada era uma esquina dobrada, uma montanha

escalada. O livro passou a ser o porto e a porta, o cais e a sua rota. O

escritor e memorialista Pedro Nava (1987) expressou muito bem a sua visão

de leitor no livro Galo-das-Trevas. Ao olhar as estantes que continha os livros

de que mais gostava, ele revela:

E mais adiante, prossegue:

Vejo-os nas letras de que se enfeitam: caracteres

góticos, os das impressões com capitais livrescas,

minúsculas carolinas, maiúsculas insulares, itálicos, caixas

altas, baixas, versais e versaletes contemporâneos. (p.51)

Pedro Nava revela um amor material pelo livro, um amor tocado pelos

sentidos, principalmente pelo tato. O ver se associa ao sentir. Passar a mão

pelos livros amados, ver as letras que enfeitam as capas lhe dá uma

sensação de posse, de ser dono de um tesouro precioso – muitos livros.

O poeta Elias José (1997), em um texto-depoimento – Leitura: prazer, saber e

poder, publicado na revista Leitura: teoria e prática, ao falar sobre sua

experiência com a leitura, assim se expressa:

Somos capazes de sentir no texto, os cheiros, os gostos, os sons, as

cores e as formas do mundo, quando tocados pela magia das palavras. Os

bons leitores também são artistas. Artistas recebedores, recriadores do texto.

Eles enriquecem o jogo com suas vivências. Acrescentam sonhos aos

sonhos, mistérios aos mistérios. Completam ou modificam o que lhes foi

proposto. Na soma de experiências entre o que vivi e a porção diferente de

vida que o poema e a ficção me trazem, como autor ou leitor, está o prazer do

texto. É um prazer sensual, uma fruição. (1997: p. 69)

Se tudo é leitura no universo, talvez a melhor postura a ser adotada seja a do

fenomenólogo, que examina cada coisa minuciosamente, que procura tirar os

véus que encobrem as palavras. Essa atitude fenomenológica conduz o leitor

ao encontro de Gaston Bachelard (1994).

No livro La Poétique de L´Espace, ao analisar a imagem poética, o

filósofo estabelece diferenças entre o fenomenólogo e o crítico literário que

merecem registro.

O crítico literário ou o professor de retórica julga uma obra que não poderia fazer

ou que não desejava fazer. “O crítico literário é um leitor necessariamente

severo”. Distanciamento, não envolvimento, imparcialidade são marcas do

crítico literário.

Atitude diferente é a do fenomenólogo, ele cria a ilusão de participar do

livro, é um coautor. Essa atitude de coparticipante não é assumida na primeira

leitura, geralmente esta se faz com excessiva passividade. Se o livro nos

agrada, devemos fazer uma segunda, uma terceira leitura e, pouco a pouco,

vamos sendo envolvidos a tal ponto que chegamos à conclusão de que

“devíamos ter escrito isso”. A releitura apaixonada alimenta e recalca o desejo, o

sonho de ser escritor. Quando o leitor ascende a esse matiz, ele se aproxima do

fenomenólogo.

A vivência de um escritor muitas vezes condiz com a do leitor. Se vivemos em

uma mesma época, se participamos do mesmo espaço geográfico, se falamos a

mesma língua, se ouvimos e lemos as mesmas histórias que falam do nosso

povo e da nossa cultura, não obstante as diversidades individuais, os nossos

sonhos, nossos devaneios se aproximam.

Após essas observações de escritores e de teóricos da leitura, concluímos que

ler significa ver, sentir e refletir sobre o objeto da leitura. A boa leitura é aquela

que apaixona, que leva o leitor ao devaneio. A leitura que não é sentida, que

não proporciona uma reflexão, é incompleta.

O bom leitor complementa, recria, acrescenta sonhos, enriquece o texto-mãe.

Ele participa do livro, é um coautor, sente o sabor do texto, identifica-se com ele.

A professora Eliana Yunes (2012), discorrendo sobre o conceito de leitura, no

texto Leitura e ética ou a ética da leitura, assegura que:

A consequência maior do aprendizado da leitura reside na ampliação dos

horizontes de mundo e da capacidade neurológica de pensar. A leitura é, pois,

instrumento para tornar-nos efetivamente humanos, mais racionais, uma vez

que a sensibilidade animal e vegetal que nos habita também precisa de

refinamento e apuro. (2012: p. 13)

Depreendemos, através das palavras de Eliane Yunes, que a leitura nos torna

mais humanos, mais sensíveis e refinados, além de ampliar nossos horizontes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BACHELARD, Gaston. La Poétique de L´Espace. 4 ed. Paris: Quadrige, 1994.

BARTHES. Roland. O prazer do texto. Trad. Eduardo de Prado Coelho. Lisboa: Edições

70, 1988.

JOSÉ, Elias. Leitura: prazer, saber e poder. In: Leitura: Teoria & Prática. Associação de

Leitura do Brasil. No. 29. Campinas: São Paulo: ABL: Porto Alegre: Mercado Aberto,

1997.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. Campinas: Mercado de Letras, 1995.

MANGUELL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:

Companhia das Letras, 1997.

MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

NAVA, Pedro. Galo-das-Trevas. (Memórias). 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Sobre ler, escrever e outros diálogos. Belo

Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

YUNES, Eliana et al. Manual de reflexões sobre boas práticas de leitura. São Paulo:

Editora UNESP: Rio de Janeiro: Cátedra UNESCO de Leitura PUC-RIO, 2012.

Page 10: Revista Literatas-61

Entrevista | Pombal Maria

12 | 02 de Julho de 2014

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Entrevista com Ricado Riso Fonte: Jornal o País– Angola

U rge a cura do complexo de papagaio residente na maioria dos jovens

doutores e mestres de literaturas africanas no Brasil.

Importante frisar que a questão de gênero de certa maneira é melhor resolvida.

Temos Paulina Chiziane, Paula Tavares, Isabel Ferreira, Vera Duarte, Dina Sa-

lústio, Odete Costa Semedo, Conceição Lima, entre as contemporâneas... no-

mes restritos, mas, e pa-

ra não me acusarem de

essencialista, destaco as

ausências de Maria Hele-

na Sato e Carlota de Bar-

ros, duas escritoras cabo-

verdianas de grande va-

lor. Porém, e o negro es-

critor?

P:- Ricardo Riso é um

grande activista de

luta contra o racismo

na cultura, especifica-

mente na literatura,

há racismo na litera-

tura brasileira e como

vocês combatem es-

se fenómeno?

Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro em uma sociedade racista como a brasileira, que conseguiu não se tornar mais um dado estatístico do genocídio que afeta a juventude negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido pelos olhares sociais que vêm em mim os atributos físicos e se-xuais, jamais o intelecutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o míni-mo de reflexão; ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das dificul-dades dessa condição de ser negro nos bancos escolares; ciente dos entraves de ser um pesquisador negro com temática negra no território hostil que é a uni-versidade brasileira, da ousadia de deslocar-me de objeto para sujeito, a todo instante sendo chamado atenção por ostentar um discurso militante, como se essa violenta censura epistêmica não fosse militante; um negro atento às violên-cias no campo do simbólico nos meios de comunicação; e, desde sempre, teme-roso com a próxima blitz policial, já que minha cor representa a marca da sus-peita. Conforme o poema de Éle Semog, “Do Ser”: “Sou universalmente negro/ Na ponta deste lápis/ No âmago desta alma// Sou universalmente livre/ Em cada canto/ Desta raça/ Em cada labirinto desta prisão”. Essas são algumas das questões que passam pelo cotidiano de um negro inserido na farsa da democra-cia racial. Sendo assim, quando você me pergunta se há racismo na literatura brasileira, eu preciso dizer que o Brasil republicano, desde sua proclamação, não preocu-pou-se em inserir os negros na sociedade, mas sim em como resolver o proble-ma dos negros, tanto que “intelectuais” da época apostavam em diferentes for-mas de embranquecimento da população: pela entrada de imigrantes europeus, pelos cruzamentos inter-raciais em que o fenótipo do europeu prevaleceria, pela esterilização compulsória e permanente, pelo abandono à própria sorte dos ne-gros e sem condições de emprego ou acesso à saúde, ou educação. Os respon-sáveis atuaram em múltiplas áreas e até hoje são “nomes respeitáveis do pen-samento nacional”, dentre outros, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Renato Kehl, Monteiro Lobato, Belizário Penna... A doença psíquica do racismo é tão forte que Joaquim Batista Lacerda representou o país como “delegado oficial do Brasil” durante o Universal Races Congress, dentre outros presentes estavam Franz Boas e W. E. B. Du Bois, em Londres, em 1911, e te-ve o disparate de dizer que em menos de um século negros e mestiços desapa-receriam da população brasileira. Bom, essa ideia é tão forte e tão presente en-tre a nossa elite que basta olhar para as novelas brasileiras e veremos que esse ideal ainda é almejado. Ou seja, a literatura brasileira, elitista como é da sua na-tureza, não pode ter negros no seu cânone. E assim, embraquecem Machado de Assis. Sendo assim, a questão é: o que o leitor angolano conhece da literatura brasilei-ra engloba algum escritor negro-brasileiro? O que o leitor angolano conhece da literatura produzida por negros brasileiros? Mudando um pouco o prisma: o pes-quisador brasileiro que estuda a literatura angolana propõe o comparativo com a literatura negro-brasileira? Ou seja, se dependermos daquilo que é reconhecido

As escritoras e os escritores negros para quebrar esse círculo ininterrup-

to e fechado de exclusão atuam com meios próprios para divulgação, distribuição

e formas de atingir o seu público leitor, em sua maioria formado por negros. Sim,

existe um leitor negro que a literatura canônica sempre ignorou, pois não percebe

o negro como consumidor de literatura nem como escritor.

A literatura negro-brasileira visualiza um leitor negro, algo que o cânone jamais

conseguiu, por isso, a insistência de personagens negros subalternizados e este-

reotipados nos textos nacionais, o que reflete as posições étnico-raciais no país.

Os autores negros divulgam suas obras nas redes formadas pelos movimentos

sociais negros, na internet através de blogs e redes sociais e assim “traficamos”

esses livros. Hoje temos editoras próprias, mas boa parte das obras ainda são

financiadas pelos próprios autores, as famosas edições de autor. Com o livro

pronto, o escritor vende de forma “artesanal”, ou em espaços específicos como a

“Kitabu – Livraria Negra”, de Heloísa Marconde e Drª Fernanda Felisberto, no Rio

de Janeiro.

Outro dado importante para a constituição dessa rede é a publicação coletiva,

frisando que a opção

pelo coletivo é oriun-

da da dificuldade de

aceitação pelas gran-

des editoras que não

querem ter nos seus

catálogos títulos que

demonstrem as ten-

sões raciais no Bra-

sil, assim como os

altos custos gráficos

que são extrema-

mente pesados para

boa parte dos escri-

tores negros. Nesse

sentido, a série

“Cadernos Negros”

ocupa lugar de des-

taque. Desde 1978

que esta série publica negras e negros intercalando poesia em um ano e no se-

guinte, contos. Cadernos Negros é um referencial obrigatório para o escritor e o

leitor negro; em Cadernos Negros deparamo-nos com a diversidade da literatura

brasileira. Contudo, apesar de atingir neste ano a 36ª edição, a série ainda en-

frenta problemas com a divulgação e distribuição de seus exemplares, contando

com as diferentes redes negras do país e no estrangeiro. Uma outra ação que

merece destaque é o site “Ogum’s Toques”, coordenado por Guellwaarr Adún e

que sou colaborador. A proposta de Ogum’s Toques é divulgar as literaturas ne-

gras no mundo, em qualquer língua. Literatura que expõe as dificuldades da mu-

lher negra, do homem negro na diáspora ou em África, estará na Ogum’s To-

ques. Por um humanismo que contemple as diferenças conforme proclamava

Aimé Césaire, pela pluriversalidade contra as restrições da universalidade do sul-

africano Mogobe Ramose, Ogum’s Toques representa tudo isso. De suma impor-

tância e que não poderia ficar de fora é o portal “Literafro”, organizado pelo Dr.

Eduardo de Assis Duarte (UFMG). Neste portal estão catalogados mais de du-

zentos autores negro-brasileiros com biobibliografias, textos críticos e excertos

de textos literários.

P:- Quer dizer que o Canone literário no Brasil é escolhido com base na pigmentação da pele? Quais os grandes autores negros brasilei-ros? Você sabia que Machado de Assis era negro? Os autores negros não são inseri-

dos no cânone da literatura brasileira. Os poucos que são aceitos, casos de Ma-

chado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto, têm suas vivências de negros

completamente excluídas das análises literárias. São embranquecidos. Convive-

mos com absurdos de que Machado não tocava na questão racial e olhava com

desdém o processo abolicionista. Pura mentira e injúria! O olhar atento de Ma-

chado ao problema do negro está presente nos seus romances, contos, crônicas

e poemas. O Dr. Eduardo de Assis Duarte fez uma brilhante pesquisa que redun-

dou no livro “Machado afro-descendente”, de 2007. Este livro é ignorado pelas

universidades brasileiras. Nele, Duarte demonstra com perspicácia como Macha-

do estava atento aos problemas do negro antes e depois da abolição. Além dis-

so, há uma incapacidade da intelectualidade e dos meios de comunicação de ad-

mitirem o nosso maior escritor como negro. No que diz respeito à representação

de Machado, recentemente, a Caixa Econômica Federal divulgou um comercial

televiso que o ator que representava o escritor era branco, quase um caucasiano.

Óbvio que as organizações que formam o movimento social negro protestaram e

o comercial precisou ser refeito e foi novamente ao ar com um Machado negro.

Precisava disso?

Sou apenas mais um negro ciente da minha condição enquanto negro

em uma sociedade racista como a brasileira, que conseguiu não se

tornar mais um dado estatístico do genocídio que afeta a juventude

negra; ciente do corpo-natureza pré-concebido pelos olhares soci-

ais que vêm em mim os atributos físicos e sexuais, jamais o intele-

cutal ou relacionado a qualquer atividade que exija o mínimo de re-

flexão; ciente dos entraves no mercado de trabalho; ciente das di-

ficuldades dessa condição de ser negro nos bancos escolares; cien-

te dos entraves de ser um pesquisador negro com temática negra

no território hostil que é a universidade brasileira, (...)

Page 11: Revista Literatas-61

Entrevista

13 | 02 de Julho de 2014

Envie-nos os seus comentários sobre a entrevista por e-mail: [email protected]

O que motiva o embranquecimento do escritor? Já Cruz e Sousa sofre(u) com a

doença psíquica do racismo dos críticos literários que insistem na brancura de

sua poesia e ignoram os seus diversos poemas que denunciam o racismo e o

problema do negro. “Emparedado”, “Caveira” estão entre esses poemas. Chega

a ser desonestidade com a obra de Cruz e Sousa falar essas verdadeiras boba-

gens. Enquanto Lima Barreto muitas vezes é tratado como o louco, o bêbado

que não sabia escrever. Todas as características do modernismo brasileiro já

estão presentes em sua obra, e ele é considerado um pré-modernista. Por quê?

Mas, Lima Barreto denunciou a hipocrisia da elite carioca, e a denúncia do racis-

mo é central em textos como “Clara dos Anjos” e “Recordações do escrivão Isaí-

as Caminha”. Os angolanos conhecem a obra de Lima Barreto?

Necessário destacar que o véu branco à frente da crítica brasileira impediu-a de analisar a ausência do escritor negro e de como a personagem negra era repre-sentada na nossa literatura. Somente a partir da análise de brasilianistas que essas ausências na literatura brasileira vieram à tona, casos dos pioneiros tra-balhos de Roger Bastide (A poesia afro-brasileira, 1944), Raymond Sayers (O negro na literatura brasileira, 1958), Gregory Rabassa (O negro na ficção brasi-leira, 1965) e David Brookshaw apresenta “Raça e Cor na literatura brasileira” em 1983. Por causa desse silenciamento da crítica brasileira, os escritores ne-gros, principalmente a partir da geração dos anos 1970, passaram a desenvol-ver ensaios questionando o cânone literário e a defender a existência de uma literatura negra no Brasil. Desde então, vários autores sentiram a necessidade de entrar para a Academia e realizar esse debate nesse espaço de poder. Con-ceição Evaristo e Cuti são exemplos de escritores negros que se tornaram dou-tores em literatura, aquela na UFF, este na UNICAMP, como forma de “legitimar” os seus discursos. Alguns nomes que posso destacar são os de Luiz Gama, que foi vendido como

escravo por seu pai branco, depois tornou-se poeta, advogado e abolicionista.

Ele sim o verdadeiro “Poeta dos Escravos”. Momentos pioneiros da literatura

brasileira vieram de autores negros: o primeiro romance escrito no Brasil veio de

um negro, Teixeira e Sousa, assim como a primeira mulher a escrever um ro-

mance foi Maria Firmina dos Reis em 1858. Outros nomes marcantes no decor-

rer do século XX foram Lino Guedes, Solano Trindade, Eduardo de Oliveira,

Oswaldo de Camargo, o fenômeno Carolina Maria de Jesus que vendeu cem mil

exemplares da primeira edição de “Quarto de despejo” em 1960, posteriormente

traduzido para mais de uma dezena de idiomas. Os angolanos conhecem Caro-

lina Maria de Jesus? Porém, é a partir dos anos 1970, durante a ditadura e lem-

brando que abordar o racismo enquadrava a pessoa na Lei de Segurança Naci-

onal, e no decorrer dos anos 1980 que coletivos negros começam a se rearticu-

lar e destacar seus escritores, caso do Grupo Palmares (Porto Alegre/RS), Gens

(Salvador/BA), Garra Suburbana e Negrícia (Rio de Janeiro), Cadernos Negros

e Quilombhoje (São Paulo/SP). Literatura e movimento social negro atuam lado

a lado e na distensão da ditadura fortalecem organizações como CECAN,

MNUCDR, IPCN, SINBA, GTAR e jornais como Árvore da Palavra, do MNU, Ti-

ção, entre outros. Os 90 anos da Abolição, em 1978, foi uma data marcante nes-

se processo. Também temos que considerar as influências e contatos externos:

as lutas pelos direitos civis nos EUA e a descolonização dos países africanos,

principalmente os de língua portugesa, foram eventos motivadores para os ne-

gros brasileiros. Há uma aura de solidariedade negra no Atlântico negro. Assim,

nomes como José Craveirinha e Agostinho Neto influenciaram os autores ne-

gros brasileiros e contribuíram no resgate de África como capital simbólico para

nós. Autores marcantes desse processo são Éle Semog, José Carlos Limeira,

Cuti, Jamu Minka, Oliveira Silveira, Adão Ventura, Paulo Colina, Abelardo Rodri-

gues, Márcio Barbosa, Jônatas Conceição, Geni Guimarães, Miriam Alves, Es-

meralda Ribeiro, Arnaldo Xavier, Edimilson de Almeida Pereira, Lia Vieira, Ro-

nald Augusto... a partir dos anos 90 consolidam-se Conceição Evaristo, Lande

Onawale, Lepê Correia, Cristiane Sobral, Cidinha da Silva...

P:- Um dos principais produtos da relação África- Brasil devia ser a

cultura. Acha que o Brasil dá a África em igual proporção ao que a

África e países como Angola deram ao Brasil durante séculos, cultu-

ralmente?

Dentro do nosso processo de rejeição ao passado africano e ao negro brasileiro,

tanto que por aqui transforma-se o que é oriundo da cultura negra em mestiço e

assim vira identidade nacional, caso do samba, e assim naturaliza-se certo des-

prezo das políticas culturais voltadas para os países africanos. Quando aconte-

cem, tendem para a valorização do exótico e das representações estereotipa-

das. Mas, o que os angolanos conhecem da cultura negro-brasileira? Há interes-

se desse intercâmbio por parte dos angolanos?

P:-Como a África no geral, e Angola em particular, é vista hoje no

Brasil, principalmente pelas Meios de Difusão Massiva, depois do lon-

go tempo de guerra civil?

A visão de África de uma forma geral, e de Angola não foge da extrema estereoti-

pia, da África selvagem que aparece sempre no “Globo Repórter”. Nas escolas

temos que começar pontuando que Angola e outros países falam português, que

passaram por uma guerra de independência, depois civil... é tudo muito raso por

aqui. Exceto os pesquisadores, para a população em geral falar de África ainda é

falar de miséria, fome, guerra...

P:- Porquê que os mídias africanos têm dificuldade de penetração no

Brasil?

Creio que pelo apontado anteriormente. Não há interesse do Brasil em aproximar-

se dos países africanos. E a maioria dos canais que buscam esse contato com os

africanos são os que lidam com a cultura negra,

P:-Na relação com as antigas colónias portuguesas, o Brasil supera

Portugal, pela influência dos mídias e produtos culturais como a mú-

sica, cinema, literatura e televisão, além do poder económico. Acha

que o Brasil tem aproveitado essa hegemonia e superioridade da me-

lhor forma?

Percebo práticas neocoloniais que em nada favorecem Angola e Moçambique, por exemplo. Para além da nefasta ideologia dos canais de televisão que levam os seus péssimos produtos. Tenham cuidado!

P:- O mundo vive o fenómeno das manifestações anti-governamentais. Na sua observação o que se está passar? No caso brasileiro, vejo sobretudo a explosão de uma profunda crise de represen-tação partidária e de movimentos sindicais. Após longo silenciamento, o Padrão Fifa estimulou a população a analisar a falta desse padrão nos transportes, na sa-úde, na educação, nos serviços como saneamento... percebeu o excesso de or-dem ao qual estamos submetidos e quase nada em troca. Um pouco de desordem faz bem à saúde democrática, ainda tão fragilizada no país. Chama atenção a he-terogeneidade de reivindicações, cenário normal diante de tantos absurdos e go-vernança voltada para a elite. E as pautas negras estão inseridas nesse processo, dentre tantas necessidades urgentes, temos como maior preocupação o genocídio da juventude negra. Os índices só aumentam com o passar dos anos e vários me-ninos são mortos pela Polícia Militar sem nenhum motivo aparente. A triste reali-dade dos negrotérios, neologismo de Éle Semog, é algo que precisa terminar. Po-rém, matar negros não causa indignação à população nem vira notícia de televi-são ou primeira capa de jornal. É algo natural.

P:-Esta é apenas uma questão de desigualdade social. Ou uma mu-dança progressiva na relação social ao nível do mundo? No Brasil é um problema racial que a esquerda política jamais quis participar. Em relação ao mundo, o modelo neoliberal já mostrou o seu esgotamento e a amplia-ção descarada das desigualdades. Por isso, a urgência dos conflitos e manifesta-ções.

P:- Quando restam grandes desigualdades sociais e desafios culturais dos países lusófonos, como caracteriza a sociedade brasileira hoje? Com uma dificuldade imensa de encarar os seus problemas e em apresentar solu-cões. Reina a histeria e a hipocrisia na defesa de privilégios enraizados desde o tempo colonial. Ações afirmativas para negros, bolsas-família, novos direitos tra-balhistas para empregadas domésticas são alvos de intensa campanha contrária e insatisfação das classes abastadas.

P:- Ricardo Riso, tanto quanto soubemos os negros no Brasil e Améri-ca tem sido descriminados e até hoje há grandes dificuldades de in-serção social. Quais as estratégias que vocês tem para inverter a situ-ação? Pode nos falar das ideias pan-americanistas hoje? O que a Áfri-ca precisa de ouvir de vós? W. E. B. Du Bois no sermão “Sobre as nossas lutas espirituais”, no seu imprescin-

dível “As almas da gente negra”, aponta para o problema de “ser negro e america-

no sem ser amaldiçoado e cuspido por seus camaradas, sem ter as portas da

Oportunidade brutalmente batidas na cara”. Nós, afro-americanos, ainda avança-

mos para a construção de um diálogo pan-americano. O problema do racismo é

mundial, atravessa espaços e o tempo, por isso, é pertinente quando o historiador

cubano Carlos Moore fala do protorracismo, das origens dos enfrentamentos raci-

ais entre melanodermos e leucodermos na antiguidade e como isso foi crescendo

no decorrer dos séculos. Não sinto-me confortável para dizer algo aos angolanos

e/ou africanos no sentido de soluções. O que precisamos é de aproximação, de

cooperação, do resgate e atualização de uma luta pan-africana antirracista.

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Page 12: Revista Literatas-61

Entrevista

10 | 02 de Julho de 2014

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Pergunta:- O ministro da Educação de Angola, Pinda Simão, disse, no dia 10 do corrente mês, na sede da União dos escritores Angola-nos, que Angola ainda está aprofundar a reflexão sobre o acordo or-tográfico que considera positivo, mas que pensa haver aspectos dos povos de Angola que devem ser tidos em conta e que o acordo poria de parte. O que tem a comentar sobre este facto? O novo acordo ortográfico gerou enorme polêmica aqui no Brasil, muito pela sua ineficiência e que em nada contribui para solucionar o problema da educação no país. Trata-se de algo menor diante de tantas carências que temos e que preci-sam de soluções emergenciais nas áreas de saúde e educação. Creio que em Angola seja assim também. Isto é apenas mais um dado que reflete o total descom-passo do brancocentrismo da elite com o restante da popu-lação, assim como a manu-tenção da dominação pela língua; a língua como proces-so de seleção e exclusão. Além disso, há o agravante dos gastos estratosféricos com as reedições de livros didáticos para que estejam conforme as novas regras. Enquanto isso, escolas per-manecem desaparelhadas e os professores precisam usar a criatividade para ter condi-ções mínimas de trabalho.

P:- Será que podemos

estar diante de uma crise

sobre a ratificação e im-

plementação do acordo

ortográfico na lusofonia?

Precisamos sim questionar este acordo. Por que temos que falar e escrever da mes-ma maneira? Por que a refe-rência/submissão a Portugal? O que é lusofonia? Há espa-ço para o negro na lusofonia? A quem interessa? Para que precisamos de um novo acor-do? Não estamos nos comu-nicando? Precisamos de me-nos ordens, normas, obediên-cias e afins.

P:- Como classifica as literaturas africanas de língua portuguesa? Toda classificação é arbitrária e a maneira vaga como foi colocada a pergunta deixa-me em difícil posição. Penso que podemos problematizar esse grande guarda-chuva denominado literaturas africanas de língua portugue-sa. Ser “tudólogo” em literaturas africanas exige que escolhas sejam feitas. Sen-do assim, começamos a perceber as exclusões. As literaturas de Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe são as maiores prejudicadas nesse processo. Pensando na Academia, no caso a brasileira, por que não podemos estudar a

literatura angolana, a cabo-verdiana, a moçambicana, a guineense ou a são-

tomense, e a partir daí nos aprofundarmos em cada uma delas? Outra questão:

por que somente as literaturas produzidas em língua portuguesa? Por que esse

neocolonialismo acadêmico? Já que por exigência acadêmica somos obrigados a

saber inglês, francês, espanhol, entre outras línguas europeias, seria interessan-

te que o pesquisador das literaturas de cada país incorporasse a literatura ango-

lana em quimbundo, a literatura cabo-verdiana crioula e assim em diante. No ca-

so de Cabo Verde há uma vasta produção em crioulo que é ignorada pela crítica

brasileira. Por que isto? Penso que é urgente rever esta posição, até como res-

peito ao pluralismo linguístico desses países africanos.

P:- Acha que elas estão no mesmo nível de concepção estético-discursiva, divulgação de livros e autores no Brasil? Se é que existe essa divulgação na terra do rei pelé? Dentro das suas especificidades temporais e históricas, elas têm o seu valor no plano estético, basta partir para o texto literário. Creio ser desnecessária a com-paração. A respeito da divulgação, muito já foi feito e a Lei 10.639/2003 (obriga o ensino de História e culturas africanas e afro-brasileira em todo a educação bási-

ca) foi um grande estímulo e incentivador para o mercado editorial, assim como para os professores que passaram a se interessar por essas temáticas. Há dez anos, chegávamos às livrarias e encontrávamos os livros de autores africanos em lugares pouco privilegiados. Hoje, temos bancadas ou estantes sobre assun-tos africanos e alguns autores luso-descendentes ocupam posições de destaque nas vitrines. Importante frisar o trabalho crítico desenvolvido nos cursos de pós-graduação ao longo dos anos que contribuíram para o desenvolvimento desse processo. Porém, ainda estamos distantes do que seria uma boa divulgação de autores africanos, muito em razão da restrição ao reconhecido cânone luso-descendente do mercado editorial e das universidades. E no caso angolano, is-so é gritante. A pluralidade de autores está longe de ser atingida, levando em consideração critérios como raça e gênero. Para conhecer outros autores, é pre-

ciso que o pesquisador saia da inércia e se transfi-gure em um arqueólogo. Hoje temos o Facebook, revistas como a Literatas e blogs como o de minha autoria. Buscar outros au-tores que não constam no cânone estabelecido, pode trazer surpresas agradá-veis.

P: Quais os nomes que

mais lhe ressalvam

nesta literatura, tanto

na velha como nova

gerações?

Creio que sua pergunta

esteja direcionada à litera-

tura angolana. Bom, é im-

portante para o pesquisa-

dor conhecer o sistema

literário em sua plenitude.

Hoje vejo nos congressos

que participo poucos traba-

lhos a respeito dos textos

fundacionais da literatura

angolana, sinto falta de

Cordeiro da Mata, Castro

Soromenho... Necessário

olharmos para o passado e

resgatarmos nomes que

foram ostracizados e não

ficarmos dependentes do

cânone. Isso é um ponto

essencial para o investiga-

dor. Avançando um pouco

no tempo, deparamo-nos

com a pouca referência ao

nome de Viriato da Cruz,

por exemplo. Lembrando

que falo daqui do Brasil. A

geração dos anos 40/50 é essencial. Não falar de literaturas africanas sem men-

cionar essa época, em particular, a antologia “Poesia negra de expressão portu-

guesa”, organizada por Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro é um

erro gravíssimo. Tenho especial carinho por esse período. Um texto que gosto

de lembrar e divulgar é o “Mestre Tamoda”, de Uanhenga Xitu. Um personagem

fascinante!

Com receio de esquecer algum dos autores atuais, mas já como uma longa tra-

jetória, aprecio muito e vejo como nomes incontornáveis da poesia Trajanno

Nankhova Trajanno, Lopito Feijoó, João Tala, João Maimona, Conceição Cris-

tóvão, José Luis Mendonça... na prosa, os contos de Tala, Roderick Nehone, o

Carmo Neto de “Degravata”... dos mais novos, gosto particularmente de Abreu

Paxe, inclusive as análises críticas deste, Akiz Neto, Antonio Pompílio, Pombal

Maria, Nok Nogueira... mas, vejo muita pretensão em outros nomes que não

atingem o conseguimento estético almejado, tornando suas poéticas exausti-

vas... agora, o gênero é que fica comprometido na literatura angolana... houve

Alda Lara, agora a Paula Tavares, a Isabel Ferreira... a pouca visibilidade da

escrita feminina angolana é algo que precisa ser tensionado, principalmente na

constituição de seu cânone e de antologias angolanas recentes. Do publicado

aqui não preciso dizer, muitos brasileiros já dizem – ou só dizem – sobre essas

obras e autores.

Page 13: Revista Literatas-61

Entrevista

11 | 02 de Julho de 2014

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P:- Falando das novas gerações, acredita que as novas gerações

tem pouco ou nada a oferecer a literatura angolana? Até que ponto

está afirmação serve de incentivo aos novos autores angolanos?

Toda nova geração tem algo a oferecer e o tempo é o melhor filtro. Caso contrá-rio, pararemos no tempo. O que é necessário é que os jovens literatos leiam, leiam muito dos grandes nomes espalhados pelo mundo e também conheçam os grandes autores angolanos. Mas, uma leitura concentrada, assim como o ato da escrita... sem pressa, estudada... vejo como o maior problema entre os jo-vens é a rapidez em publicar. Talvez pela facilidade da internet, o “curtir” do Fa-cebook, necessidade de visibilidade, status... é um caminho perigoso. A palavra poética precisa ser lapidada com calma e é essencial a troca com outros auto-res.

P:- Em Angola temos estado a assistir um forte conflito de gerações. Até

que ponto esse conflito é prejudicial e/ou ajuda os novos autores?

A literatura é um espaço de poder, não podemos perder isto de vista. Sendo as-sim, os conflitos sempre existirão e serão múltiplos: de tendências literárias, gê-nero, classe, raça, etário. Temos que estar atentos às reivindicações dos mais novos. Há o ímpeto da juventude, que pode ser bom ou ruim, e inserido nisso podem estar alguns problemas da máquina literária, tais como a dificuldade em publicar, os prêmios literários viciados, invisibilidade nas tertúlias e cadernos literários...

P:- Que responsabilidade tem os escritores de gerações consolida-das na afirmação de novos autores e/ou gerações? A responsabilidade desses autores está presente nas suas obras, nos desafios com a linguagem e o compromisso com a palavra depurada que cada um se comprometeu; é responsabilidade sim dos mais novos conhecerem essas obras. É claro que o contato e o incentivo aos mais novos é sempre um fator relevante, de apoio e fortalecimento para os mais novos. Penso que é sempre frutífero o convívio entre os escritores de diversas gerações. Não se deve separá-los ou alimentar inimizades.

P:- Enquanto isso, cada vez é mais visível a promoção de autores

africanos luso-descendentes. O que se passa? será que há descrimi-

nação na promoção das nossas literaturas a nível de Portugal e Bra-

sil?

Em 2012, eu e a pesquisadora Geny Ferreira Guimarães (doutoranda em Geo-

grafia/UFBA) apresentamos, na UFOP/Minas Gerais, um exaustivo levantamen-

to de autores africanos de língua portuguesa publicados no Brasil, intitulado:

“Mercado editorial brasileiro: seus entraves para a aplicação da lei 10.639/2003

e o permanente não reconhecimento do negro escritor”. Nosso levantamento

reuniu 115 livros das literaturas africanas de língua portuguesa (romance, con-

tos, poesia e infantil) lançados de 1962 a outubro de 2012. Da literatura angola-

na levantamos 62 livros, sendo que 48 obras são do cânone luso-descendente

(Pepetela, Ruy Duarte de Carvalho, José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira e

Ondjaki). Ou seja, 77% da literatura angolana publicada no Brasil durante o perí-

odo pesquisado resume-se a cinco autores, quadro ainda mais agravante após

2003, ano da lei 10.639. E não há como se estranhar este dado? Onde está o

escritor negro angolano? Nos catálogos das editoras brasileiras é que ele não

se encontra. Quem racializa a questão? E a situação só não atinge algo perto do

zero porque editoras especializadas em temáticas afro-brasileiras se preocupam

com essa disparidade, casos da Mazza, Nandyala e Pallas. Por outro lado, hoje

temos editoras com forte suporte financeiro, de divulgação e obras com qualida-

de gráfica invejável que se escoram no conceito da lusofonia. Entretanto, a luso-

fonia nada mais é que a renovação da discriminação ao negro escritor. Enquan-

to elas tentam fugir da estigmatização de autores africanos, eliminam as repre-

sentações nacionais e continentais e incorporam um discurso diluído na lusofo-

nia.

Essas novas editoras mantêm a discriminação de raça e de gênero, fato já de-

nunciado anteriormente pela Drª Laura Cavalcante Padilha (UFF) no seu bri-

lhante artigo “A diferença interroga o cânone” que, ao se referir à constituição do

cânone das literaturas africanas, cita as antologias “No reino de Caliban” (1975),

de Manuel Ferreira, e “Entrevistas com Escritores” (1991), de Michel Laban, diz

o seguinte: “Lembrando o fato de que o acervo crítico dessas literaturas se ter

forjado inicialmente fora da África – na Europa e nas Américas, com Portugal e

Brasil à frente –, começo a questionar até que ponto, o cânone ‘consagrado’ por

outras vozes que não as africanas, submeteu-se aos mesmos mecanismos de

dominação e poder que sempre tiveram como meta elidir as diferenças, sobretu-

do se o objeto recortado são questões como de gênero e raça” (2002, p. 164).

Mudamos nesse sentido? De maneira nenhuma e só vamos fortalecendo a ex-

clusão. E se analisarmos teses, dissertações e comunicações nas universidades

e congressos de literaturas africanas, o que constataremos?

P:- As nossas literaturas africanas de língua portuguesa, francófo-

nas são estudadas nas universidades brasileiras?

Infelizmente, desconheço a respeito das francófonas. De uma maneira geral, es-

critores e/ou pensadores negros não são traduzidos pelo mercado editorial brasi-

leiro. E quando não são traduzidos, a circulação desses textos é excessivamente

restrita. Nesse ponto, considero importante a relação mercado editorial/

universidade como forma de práticas de biopoder, o que dificulta a inserção de

novos autores e outras bases epistemológicas nas universidades. Quando muito,

temos casos isolados como o de Chinua Achebe. Um nome reconhecido no mun-

do como Wole Soyinka somente teve a sua primeira obra aqui publicada no ano

passado. A íntegra de “Cahiers d’un retour au pays natal” de Aimé Césaire so-

mente ano passado ganhou uma edição brasileira. Temos uma obra de Patrick

Chamoiseau, de outros negros, mas dispersas nos catálogos das editoras... No-

mes consagrados da luta antirracista nos EUA, do Harlem Renaissance, da Negri-

tude, afro-americanos de línguas espanhola, inglesa ou francesa são raríssimos

por aqui, assim como de outros países africanos. Até textos de líderes africanos

como Amílcar Cabral, Stevie Biko e Samora Machel não são reeditados há anos.

Ou seja, essas ausências não são gratuitas. No caso angolano, o livro “Sagrada

Esperança”, de Agostinho Neto, foi lançado em comemoração ao primeiro decênio

de Angola independente. Desde então...

No que diz respeito às universidades, muito já foi feito nas públicas graças aos esforços e competência dos nossos professores consagrados que todos nós sa-bemos seus nomes. Entretanto, há uma realidade entre os grandes centros uni-versitários de literaturas africanas de língua portuguesa e outras universidades públicas e particulares, distantes do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizon-te. Ainda ocorre certa rejeição às literaturas africanas, quando muito são encaixa-das em “literaturas de expressão portuguesa”. Importante frisar que são raras as disciplinas de literaturas africanas nas grades de graduação dos cursos de Letras espalhados pelo país; nos cursos de pós-graduação a situação é um pouco me-lhor. Ou seja, já avançamos bastante nesse sentido. Entretanto, há outro problema no que diz respeito à circulação da crítica literária produzida nos países africanos de língua portuguesa. Sinto falta de maior contato de ensaios críticos de angolanos como Luis Kandjimbo, Francisco Soares e Abreu Paxe, dos moçambicanos Francisco Noa e Lucilio Manjate, do cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada e das epístolas de Timóteo Tio Tiofe. Esse estranho distanci-amento reflete-se na crítica produzida no Brasil. Quais serão os seus motivos?

P:- Quais são os autores mais referenciados e porque?

As duas últimas edições do Encontro Internacional de Professores de Literaturas

Africanas (UFRJ, 2007 e UFOP-PUC/MG, 2010) oferecem um bom parâmetro pa-

ra percebermos o que vem sendo estudado pelo país. O cânone luso-

descendente, e acrescento o moçambicano Mia Couto, foi predominante nas co-

municações. Por isso, insisto na relação universidades/mercado editorial. A justifi-

cativa cômoda diz que são os autores publicados aqui. Mas, não causa estranhe-

za as análises críticas concentradas nos escritores luso-descendentes? Estamos

falando de literaturas africanas, e até quando o escritor luso-descendente será o

porta-voz dessas literaturas? O que essa ausência quer dizer? Como há um des-

prezo das universidades brasileiras por nossa literatura negra, será que o nosso

pesquisador carrega o seu olhar brancocêntrico para as literaturas africanas e isso

o impede de investigar os textos de autores negros africanos? Com a doença psí-

quica do racismo, o pesquisador branco, instruído desde os bancos escolares a

não reconhecer o negro como escritor, ao lidar com as literaturas africanas perce-

be-se diante de um dilema que tem dificuldade de resolver, logo, escora-se na-

queles que lhe são fenotipicamente parecidos e ideologicamente próximos. Talvez

por isso o discurso da mestiçagem constante na obra de Mia Couto ofereça o con-

forto necessário e seja ovacionado por aqui. A internet facilitou o contato entre os

pesquisadores e os escritores africanos. Podemos ser independentes ao mercado

editorial. Hoje nos relacionamos diretamente com os autores. Minha trajetória é

um exemplo disso. Entre livros e arquivos em pdf, tenho um pouco mais de duas

centenas de títulos de prosa e poesia graças a generosidade dos escritores, que

agradeço a todos. Quem presta um excelente trabalho para o deslocamento do

cânone é a revista moçambicana “Literatas”, idealizada por jovens autores que

perceberam essas restrições e decidiram encarar a ordem vigente. No que diz

respeito às pesquisas nas universidades, acompanho com muito interesse as in-

vestigações da Drª Lívia Natália, Dr. Jesiel Oliveira e Dr. José Henrique Freitas,

todos da UFBA, assim como o Dr. Amarino Queiróz (UFRN) e a Drª Ana Lucia Sil-

va Souza (UNILAB). Esses competentíssimos pesquisadores encontram-se à mar-

gem dos grandes centros e propõem linhas investigativas “incomuns” e comparati-

vos não estimulados no Sudeste como entre as literaturas africanas e a literatura

negro-brasileira. Além disso, ampliam as discussões ao apresentarem outras ba-

ses epistemológicas, oxigenando as literaturas africanas. Também não posso es-

quecer da trajetória pioneira da relação das literaturas africanas com demais lite-

raturas negras realizadas pela Drª Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC-MG) e

Drª Florentina Silva Souza (UFBA). Vejo como a melhor maneira de homenagear-

mos nossos principais pesquisadores é com a expansão e a diversidade nas li-

nhas investigativas, e não a cômoda reprodução do que já é/foi feito com excelên-

cia por eles.

Page 14: Revista Literatas-61

14 | 02 de Julho de 2014

Espaço dedicado a divulgação de escritoires emergentes. Envie os seus textos (poesia, conto, romance)

para análise através do e-mail: [email protected]

“33 SEGUNDOS DE SILÊNCIO” (*)

Celles Leta - Moçambique

É a segunda vez que me faço a este palanque. E olhá-los cá de ci-

ma, a sensação que tenho é que estou num avião prestes a cair

aos vossos pés. O medo de meter os pés pelas mãos aperta-me a alma.

O nervosismo é um frio que me corre a espinha dorsal. Serpentes de suor

já se fazem aos meus poros excitados. É um turbilhão de sentimentos

que, mais do que me fazerem chorar, fazem-me morrer a cada segundo

que confirmo, através do acto de respirar, que estou vivo e, com certeza,

há outras mortes que me esperam, para além daquela que me levará di-

recto à minha última morada. E a sensação de estar prestes a cair aos

vossos pés traz-me à memória o fatídico acidente aéreo de mais um avião

das linhas áreas de Moçambique: O VOO MT 470, no dia 29 de Novembro

de 2013, no Parque Nacional de Bwabwata, em Namíbia.

Ter em memória um luto nacional que chora 33 almas que se foram para

o outro lado da existência, estando cá em cima, neste palanque que mais

se parece ao pináculo do “Binga”, agora que me revisto da tarefa de de-

clamar alguns poemas, vejo-me na condição de uma rainha em xeque-

mate no infinito tabuleiro da poesia, eu que nada mais posso fazer, a não

ser insuflar-me de “eus” poéticos no leve mexer dos lábios deste declama-

dor que (penso) sou, este declamador que declama a dor dos que ficam,

assim que o Voo MT 470 trocou Luanda pelo céu que a todos espera.

O sensato seria que eu declamasse 33 poemas, posto que foram 33 al-

mas que pereceram neste acidente. Mas, se, por um lado, não se mani-

festa aqui dispor de tempo para tanto, por outro, se os 33 poemas do pri-

meiro livro (VOO MT 470) da colectânea poética intitulada 33 POEMAS

SOBRE UMA AVE MORTA (obra inédita) fossem declamados hoje,

possivelmente, ninguém mais a compraria quando este fosse parar às

prateleiras. Por isso, sendo que o número 33 é composto por dois dígitos

do número 3, números que se ladeiam como duas almas abraçadas, irei

aqui declamar apenas 3 poemas.

Contudo, antes que eu os declame, devo dizer: além da sensatez que

acabo de mencionar nas linhas anteriores, existe uma outra, que é melhor

que eu a aduza imediatamente, sob pena de que eu passe por distraído

ou algo a isso transversal: seria totalmente justificável que, em cumpri-

mento da praxe, perante fatalidades como a presença da morte, com vo-

tos de que as almas perecidas na queda do Voo MT 470 alcancem em

paz o reino dos céus, a minha declamação fosse antecedida por um pedi-

do de “1 Minuto de silêncio”. Mas não irei fazê-lo. Por uma razão muito

simples.

O 1 de um minuto nada tem a ver com a queda do VOO MT 470, o qual

vitimou 33 pessoas. 1 minuto equivale a 60 segundos. Não morreram 60

pessoas neste acidente. Tão-pouco podemos chamar aqui a equivalência

do 1 minuto com as horas, pois encontraríamos menos que uma pessoa

perecida. Restou-nos, portanto, duas opções: “33 minutos de silêncio” ou

“33 segundos de silêncios”.

33 minutos até era bom. Dava para que algumas pessoas dormitassem

aconchegados a um pseudo conforto nos seus lugares, aqui neste ven-

tre de poesia, enquanto voam pelos mundos que não conseguem che-

gar usando apenas os seus pés que pisam a sua última morada.

No entanto, é melhor que se pergunte: como é que as coisas ficariam,

se pudéssemos pensar, por hipótese, que haja aqui alguém conversan-

do com os seus botões, a si mesmo perguntando “quando é que este

chato irá abandonar o palanque?”

Seja como for, em memória às 33 vítimas da queda do VOO MT 470,

concedamos ao momento “33 segundos de silêncio”.

VOO TM-470

(Em memória de Carlinhos,

Yumala, Laisa e Jeinia Sambo)

o pedaço de papel

foi amassado na coberta do punho serrado

nada se sabe das palavras ali escritas:

vida, feridos, ou morte encontrada;

prosa, poesia, ou um papel em branco

nada! nada de nada! nada!

VOAR SEM ASAS

conforto?

que conforto?

que conforto

no confronto

de ser ave sem asas

e ter que voar?

COMUNICADO A BORDO

“Caros passageiros,

pedimos as nossas sinceras desculpas

pelos embaraços que possamos causar

pelo sucedido

mas temos a informar

que o voo MT470

terá de efectuar três aterragens

de emergência:

1º Parque Nacional Bwabwata;

2º Cemitério de Lhanguene;

3º Cemitério de Michafutene.”

(*) Texto lido no Instituto Cultural Moçambique-Alemanha – ICMA, a 23

de Maio

Page 15: Revista Literatas-61

Poesia

15 | 02 de Julho de 2014

Leia os poemas da semana às terças feiras em: www.revistaliteratas.blogspot.com

Você também pode publicar. Envie-nos o seu poema pelo e-mail: [email protected]

Arco e flecha

Samuel Pimenta - Portugal

De boa vontade...!

João Tala- Angola

Jacaré - Moçambique

CORES DO CORPO E DA AL-MA

O Sol, ordem de todas as manhãs

A Lua, que não nos viu ontem

O dia, que não sabe de nós

O Mundo, sem saber de nada

marcam suas presenças na nossa mente

mente que criou o Sol, a Lua, os dias e as manhãs

No meu coração

cheio de tudo, porque sabe tudo, tudo

espera para ser

tão cedo apareças.

De raspão povoamos a língua do nada

escritos, escrevências nada mais

do que escrevivendo o costume

alma cheia o texto é pão escrevi

vendo a multidão, a fonética. Multiforme.

Da multiplicação do sonho bandeiras.

Arde um hospício de corpo e alma

Poemas da ausência

Dos ricos corações;

Das belas emoções... África!

Foste tu que despertavas o coração dos homens forasteiros...

Transformando o teu continente de naikuros e tu mesmo os atavas... África!

África dos tempos de marfim;

África dos tempos de ouro;

África dos tempos de escravidão sem fim...

Dos teus homens conscientes;

Dos teus homens pacientes;

Oh! África!

Onde estão aqueles homens “naikuros” que navegavam mares e oceanos,

Que abriram estes caminhos duros – ao mar iam lançados – alguns levados e nunca alcançados?

Oh! África! Teus caminhos por onde homens passavam,

Com os seus barcos e canoas navegavam,

Navegavam, remavam e iam...

Iam... contra a brisa do frio,

Iam... contra a fome e porradas,

Iam... vestidos a maneira – marcados como mais um boi importado,

Iam... jamais voltaram - só você sabe confessar…

Por onde os homens que saíram e não voltaram... donde sonegam!

África!

04/04/03

A recta que verga ao galho firme, forma trespassada pela força elástica do impulso que caça e domina a morte.

Mário Lúcio Sousa– Cabo Verde

Tapete Persa

Ovelhas contínuas fervem o leite da constelação. À margem flores de lótus ou

ânforas de Júpiter. A seda derrama o zodíaco na areia. Derrama fornalhas, rígido

fio de luar. Cidades bordam o centro: crisântemo explosivo – princípio do outro,

caríssimo também. Azul não faltará de tinteiro tombado, pavão noturno e

inacessível e tão difícil de pisar, tão fácil com ele todavia voar.

Rosana Piccolo - Brasil

Page 16: Revista Literatas-61

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16| 02 de Julho de 2014

Você também pode publicar. Envie-nos o seu conto por e-mail: [email protected]

Poesia

morri no mar

e ressuscitei no rio

tenho saudades do sal

Amosse Mucavele-Moçambique

No rosto da minha vida

a beleza nunca foi o fim

é sempre um dos meios

por onde as possibilidades

se encontram em mim

em vez de rugas

em cada encontro

um novo toque desponta

e se escreve no belo

A estética da minha vida

Nelson Lineu-Moçambique

Vento?

só subindo no alto da árvore

que a gente pela ele pelo rabo…

in DE COMPÊNDIO PARA USO

DOS PÁSSAROS, 1961

Manoel de Barros– Brasil

A lua traz no halo meses e calendários

Das mulheres amáveis na curta medida

Das sementes magníficas

Do nascer e da morte

A lua desaparece na nebulosa malha

Da noite resignada

A lua perde o centro

Na noite com meses e calendários

Ficam estrelas para mulheres solitárias

E saudosas aguardam sementes magníficas

Do nascer e da noite

Luís Kandjimbo-Angola

Sob a Lua

Pretendo chegar a Deus

Sílaba a sílaba

Com sangue puro

Como quem luta

E nunca soube o que é lutar

Sou inerme

Na carne da substância pura:

Matéria do trabalho cósmico,

Fenómeno do fogo

“Strictu sensu”.

Chamo a Deus

No semblante amorfo da música.

Hirondina Joshua-Moçambique

As vezes a minha poesia

sou eu mesmo,

Meu corpo

Minha alma

E cada palavra

Que nasce

sobre a minha nudez...

Sou cada palavras

Que bebo

Para minha sede

Em cada livro

Naufragar...

Zekeene Chichava - Moçambique

"IGNOTO DEO"

Page 17: Revista Literatas-61

17 | 02 de Julho de 2014

Você também pode publicar. Envie-nos o seu conto por e-mail: [email protected]

Cronica

H oje senti-me muito infeliz ao recordar a minha família perdida e ten-

tei recordar todos os que ficaram ao meu lado quando os momentos

maus me tocaram e abateram. E foram muitos os de longe e poucos os de per-

to... Será que os de longe, se estivessem estado perto, continuariam a ser mui-

tos?... Agora que estou longe, sinto que sou muito mais perto dos que deixei

longe... E penso na minha irmã e nas minhas sobrinhas, no meu cunhado de

Portugal, nos meus cunhados e sobrinhos no Brasil...

Nos amigos que em Portugal, na Espanha, França, Itália, Alemanha e em todas

as terras por onde passei e deixei amor!... E estou certa de não ter o direito de

me sentir infeliz se os que mais amo e sempre amarei me maltrataram, incom-

preenderam e esqueceram. Um dia saberão que o amor que se despreza cedo

se revolta contra quem o maltrata e se faz pagar em infelicidade e amargura que

o arrependimento não remedeia; porque quem renuncia ao amor perde o direito

à felicidade. Ora eu nunca renunciei ao amor...

Então, não devo sentir-me infeliz!... Penso que o dia de hoje foi, apenas, muito

fatigante: todo o dia no Banco para conseguir levantar os euros que pedi a Lis-

boa para poder, daqui, pagar parte das dívidas contraídas a quando do roubo de

que fui vítima em Itália. O dia todo! E só amanhã poderei ir enviar o que devo! É

aqui que eu sinto que a Europa está muito mais rica, não porque tenha mais di-

nheiro, mas porque tem mais meios de comunicação E MAIS eficazes...

Se para levantar dinheiro de uma conta é preciso um dia, imagine-se para regu-

larizar um negócio em que é preciso pensar na forma de ganhar mais do que se

pode manifestar que se ganhou...

E começo a compreender o funcionamento do país que está para além da Lite-

ratura; o país que passa mais perto de mim, agora que estou neste bairro perifé-

rico, mas ainda muito encostado à cidade "branca" de outrora. Ainda não tenho

o meu alojamento no bairro da Polana, perto da Embaixada de Portugal, e estou

em casa de uma amiga que me acolheu na sua casa de MÃE grande, onde me

sinto irmã dela e avó dos seus filhos e netos... E no bairro da Malhangalene já

não há cafés, nem Centros Comerciais elegantes... só existem os grandes Ara-

mazéns Shoprite e Premier. De resto, as ruas e pracetas, que um tempo foram

lindas, hoje apenas conservam os sinais dessa beleza antiga, quase apagados,

nas acácias e jacarandás maltratados e nas abundantes mangueiras cheias de

frutos pendentes, oferecendo-se em promessa de abundância a qualquer pas-

sante. E eu olho-as com gula, lamentando o facto de ainda estarem tão verdes e

tão longe da sua cor doirada ou rosa sangue!

Dentro do carro da Lena, enquanto a espero, à nossa porta, observo a abaca-

teira quase sem folhas e cheia de flores prestes a se transformarem em frutos.

Num dos seus ramos nus, poisa um pássaro lindo! É multicor e iridiado! O seu

tamanho é o de uma rola, a cabeça redondinha e azul, a cauda muito longa e

mais escura. Fico presa à sua beleza e desejaria ter uma máquina fotográfica.

Recordo os pássaros da Inez Paes e gostava e lhe perguntar se sabe o nome

deste. E O MEU DIA TORNA-SE MENOS TRISTE...

Na machamba da Lena, a minha amiga advogada que adora trabalhar a terra e

ver desabrochar seus frutos, há muitas mangas, muitas papaias, abacates, bana-

nas, ananases e atá morangos! Além da couve, do feijão, pimentos, alface, piripi-

ri e mandioca. E o que se come em casa vem quase tudo da machamba que fica

junto ao Umbeluzi, um rio lindo onde alguns hipopótamos vêm morar e que de-

vem ser protegidos para que a população os não mate. As contradições de um

país a crescer, tão diferentes e tão iguais às de um país, o meu, a envelhecer e a

deixar morrer o que de mais belo sempre o caracterizou: o sonho de ser maior!

A viagem a Inhambane

Regressei há pouco de Inhambane, a "Terra da boa gente”.É, acima de tudo, ter-

ra de belas águas e lindas praias! Foram 3 dias de encanto, a partilhar uma casa

fantástica, junto ao mar. Rever o Calane da Silva e a Mila, ouvir as "novelas" lo-

cais, e, sobretudo, projectar a nova Oficina de Escrita Literária para Inhambane

foi bom! Será uma operação muito interessante a que me voltará a fazer traba-

lhar com os alunos da escola primária. Julgo que a ideia terá muitos adeptos e

dos resultados prometo dar conta a partir do próximo mês de Maio de 2014.

Até lá, sonho e trabalho! A corrosiva mesquinhez de quem se preocupa com os

galões a mim não afecta. Tentarei passar por cima e provar aos que ignoram a

medida da sóbria apreciação do néctar que o belo do que se saboreia está na

capacidade de reter o sabor na boca e não na pressa de engolir...

De Inhembane, além do gosto a mar, trouxe a esperança de retomar a literatura

infanto-juvenil nas escolas primárias. Recordo as minhas queridas Angelina Ne-

ves, a Amélia Russo e a Samima que tanto se bateram comigo para levar para a

frente o projecto que o Camões fez abortar porque me obrigou a regressar a Por-

tugal (indiferente aos pedidos do próprio vice-ministro da Educação moçambica-

no), dado que já estava há mais de 8 anos em Moçambique e os Leitores não

podiam exceder 6! É fantástico como certas regras tão rigorosas, em determina-

dos momentos, se tornam permissivas e ligeiras em momentos seguintes. Neste

momento, já há quem conte 17 anos no mesmo lugar!... Mas o projecto que en-

volvia o Ministério da Educação, a UNICEF e financiado pelo Banco Mundial, co-

ordenado por mim e pelo INDE, sem custos para Portugal além do meu venci-

mento, CAIU!!! E que importância tem isso? Perguntarão... De facto teve muita!

Embora hoje tenha aprendido que tudo aquilo com que a vida nos magoa nos

deixa sempre uma lição importante. Julgo que a aproveitei e hoje estou a reco-

meçar um sonho que já encontra mais vozes que o irão tornar mais real. Sei que

Inhambane é a "terra dos bons sinais" e aquela onde as "mangas verdes com

sal" se oferecem aos bons paladares...

Fernada Angius –Moçambique

Fragmentos de

um Diário

Este espaço pode ser seu envie seus

textos para:

[email protected]

Page 18: Revista Literatas-61

18 | 02 de Julho de 2014

Art&factos

Page 19: Revista Literatas-61

Resenha Envie-nos os seus comentários sobre este assunto por e-mail: [email protected]

19 | 02 de Julho de 2014

F ruto de uma incursão crítica em sua vida e obra, o poeta To-

más Antônio Gonzaga acaba de merecer um justo resgate em

publicação da Academia Brasileira de Letras, que em sua coleção “Série

Essencial” convida um especialista para discorrer sobre autores que

inauguraram as cadeiras da Casa de Machado de Assis.

Coube ao professor, crítico e ensaísta Adelto Gonçalves, um os

grandes estudiosos da bibliografia do patrono da Cadeira 37, mergulhar

no universo gonzaguiano (nascido no Porto em 1744), buscando nas

suas raízes históricas a gênese estética de sua poesia, a partir de sua

vida e de seus estudos, divididos entre a infância/juventude na Bahia,

Recife e Rio de Janeiro e seu bacharelado em Coimbra.

Nesse livro, que tem a chancela editorial da Imprensa Oficial do

Estado de São Paulo, o professor Adelto colige alguns de seus melho-

res poemas, com estudos e comentários que situam a produção do au-

tor do antológico “Marília de Dirceu” no contexto histórico em foram pro-

duzidos, na esteira do que já havia publicado em seu Gonzaga, um Poe-

ta do Iluminismo (Ed. Nova Fronteira, Rio, 1999), resultando de sua tese

de doutorado na USP. As publicações da ABL sobre seus patronos

constituem pequenas preciosidades que alcançam não apenas a leito-

res e estudiosos, mas também àqueles que se interessam de um modo

geral pelo conhecimento de nossa ancestralidade literária, naquilo que

de fundamental a produção dos nossos antepassados têm para a forma-

ção de nossa identidade cultural e na constituição de um autêntico câ-

none brasileiro.

Ensaio crítico

resgata Gonzaga

Ronaldo Cagiano (*)

Embora os volumes contenham pouco mais de sessenta páginas,

as informações contidas e o juízo crítico dos autores convidados para a

confecção da obra rastreiam o essencial, fornecendo, de forma sucinta,

mas analítica e reflexiva – como no enfoque de Adelto sobre Gonzaga –,

informações básicas, seguidas de um breviário de poesias ou excertos do

homenageado.

Sobre Gonzaga, o professor Adelto mapeou trajetória pessoal e lite-

rária, palmilhando aspectos políticos, sociais, afetivos e culturais dominan-

tes naquele período, como as conspirações na época da Inconfidência, as

paixões, as cobiças, o movimento da Derrama, o degredo na África e sua

morte em Moçambique em 1810.

Com essa edição, a ABL deixa o registro e firma a memória definiti-

va, por meio desse breve, mas lúcido e detido estudo, daquele que foi al-

çado à condição de um dos poetas mais líricos e populares no arcabouço

da literatura lusófona. Um poeta que, apesar das vicissitudes por que pas-

sou, em razão da detenção e exílio após a Inconfidência Mineira, deixou

uma obra de dimensão épica, humanista e universal, um canto de exalta-

ção ao amor e à liberdade, que nos inspiram nesses tempos vigentes, em

que experimentamos um dilacerante e veloz de escalonamento de valores

morais, políticos e culturais.

Adelto Gonçalves, autor de vasta e premiada obra - entre as

quais Mariela Morta, Os Vira-Latas da Madrugada, O ideal político de Fer-

nando Pessoa, Barcelona Brasileira, Bocage – o Perfil Perdido, Direito e

Justiça em Terras d´El Rei: ouvidores, juízes de fora, juízes ordinários e

vereadores em São Paulo colonial (1709-1822) – faz justiça a Gonzaga e

reforça a consolidação de uma obra basilar de nossa literatura.

_________________________

(*) Ronaldo Cagiano, escritor, é autor de Concerto para arranha-céus (contos,

LGE, Brasília, 2004, Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio,

2006) ,O sol nas feridas (poesia, Dobra Ideias, SP, 2011) e Moenda de silên-

cios (novela em parceria com Whisner Fraga, Dobra Ideias, SP, 2012), entre ou-

tros.

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internacionalize sua marca e contribua para desenvolver a cultura.

Page 20: Revista Literatas-61

Conto

C omeçou por comprar caniço, de luxo, pouco adquirido na aldeia que

só compram individualidades de vulto, até tinha direito de pinceladas

de verniz para resistir ao mau agoiro de aves e outros animalejos.

Quando o caniço conquistou volume, amontoado no quintal, a aquisição de ou-

tros materiais não atrasou. Em poucos dias a casa de Tchaúque marcava dife-

rença e era digna de virtuosos comentários.

A partir do período em que a casa terminou, o muro de arrames e bambu e o

poço marcaram a nova época da vida do camponês. Ele já se distanciava dos

atributos preconceituosos e olhares inferiorizantes da vizinhança. Mesmo discri-

minado outrora não impedia que tirassem a água no seu quintal e afiançava a

quem necessitassede dinheiro, mesmo que não se encontrasse em apuros.

Tchaúque nasceu na aldeia. Fugindo as rédeas da sua dinastia não emigrou à

África do Sul, preferiu as minas de plantação. Todos condenavam-no pela op-

ção, pois, bastava ser homem, com idade de se casar, para não escapar a fron-

teira de Ressano Garcia. Ninguém concordava com a escolha feminina – ir às

plantações – embora bons frutos sua enxada produzisse.

Na rua, os rapazes de sua idade disfarçavam não o ver e quando o dirigissem a

palavra era para o menoscabar por causa da sua actividade. De tanto ser crucifi-

cado, acreditava-se ser homossexual porque nunca se tinha casado e não era

do seu agrado conversar com mulheres, mesmo que fossem solteiras. Tal boato

só teve fim quando, finalmente, se casou.

Nos rapazes de sua geração, Tchaúque foi o último a se casar, numa altura em

que já não se vislumbrava esperança. Pois, os seus três irmãos, todos mais no-

vos, haviam se casado faz tempo e trabalhavam na terra do rand.

A felizarda é uma moça que já se instalou em vários lares. Por causa do seu

comportamento atormentado vezes sem conta foi corrida. Chamava-se Isabel,

bonita e caprichada no visual. Vestia-se como as moças da cidade, já que vivera

nos prédios em tempos remotos a convite da sua irmã mais velha. Tal mordomia

fugiu-a quando foi flagrada no quarto da irmã com o seu próprio marido – a his-

tória gerou muita intriga -, mas, a pedido da mãe, foi perdoada.

Quando se casou não era tão jovem como as que listavam o número de lobolos

na altura. Mas porque Tchaúque também perdera a fase gloriosa preferiu con-

tentar-se com ela, sem atender os chamamentos do passado deficiente dela.

A festa teve pouca gente mas muita comida. Os mais velhos condenaram a uni-

ão, justificando o atropelamento das normas impostas pela tradição – o lobolo é

mais do que um casamento, é um ritual – é a cantiga dos mais esclarecidos que

soava para os petizes –, para que não se descurassemna altura de seguir na

mesma aventura.

Aquele era o terceiro casamento de Isabel. Mas o que agravava o descontenta-

mento dos familiares do marido eram os três filhos que trouxera da cidade. Nes-

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20 | 02 de Julho de 2014

O Mistério do Tesouro

Elcidio Bila - Moçambique

se trio há rumores de que num deles possa correr o sangue do cunhado.

Todos queriam saber a fonte da riqueza repentina. Os mais achegados garantiam

não se revelar o mistério nem a esposa.

Tchaúque sempre foi à machamba. Lá não só trabalhava como também comia o

tempo.

A machamba era grande, somavam-se inúmeros hectares. Era a mais extensa da

aldeia. Quando a família cresceu – as mulheres casaram-se e os homens emigra-

ram outros faleceram – Tchaúque herdou o património e fez dele o seu ganha-

vida.

Certa manhã, como era de costume, começava a labuta do humilde camponês. A

enxada de cabo curto perfurava a terra, o tronco negro, nu recebia os primeiros

raios de sol; trazia na cabeça a camisa amarrada para protege-lo do brilho que

ainda se erguia na nascente e calções jeans que foram calças um dia. O suor go-

tejante anunciava tamanho esforço que a terra seca e pálida investia nos seus

músculos minúsculos.

No decorrer do trabalho, certo momento a enxada não foi fundo. Repetiu o movi-

mento, dessa vez com mais pujança, mas o obstáculo limitava o percurso da in-

vestida. Tchaúque largou o objecto que dormiu à meio-metro e perfurou o local

com as garras. Nesse gesto indiscreto sentia um objecto a coçar-lhe os dedos, por

isso curvou o corpo comprido alargando mais o buraco. Desse exercício nasceu

uma caixa de madeira que pelo aspecto data há séculos. Puxou-a para debaixo

da única árvore que doa sombra à machamba e abriu-a com cautela, medos e cu-

riosidades cruzavam-se. O recipiente continha barras de ouro.

Desde aquele dia a sua vida seguiu novos hemisférios. Constantemente ia ao

mercado onde trocava a sorte em dinheiro.

Quem comprava a fortuna era o monhê. Conheciam-se desde a tenra idade, foi

amigo dos avós e dos pais. Foi dele que soube que as barras outrora encontradas

eram de ouro e que valiam os olhos da cara a vida toda. E só monhê sabia do si-

gilo.

O monhê era o maior comerciante do mercado, importava e exportava quase tudo.

Era conhecedor de vasta complexidade de minerais. Era ourives no oriente, sua

primeira moradia, também vendia jóias e tecidos diversos em grandes proporções.

Enquanto Tchaúque prosperava o Régulo reclamava o constante roubo do seu

enorme gado. O curral era vandalizado todas as madrugadas, pouco a pouco min-

guava sua herança. Ele era o maior criador de gado na aldeia e quem tinha muitas

mulheres e uma multiplicação de filhos. Não vendia seu rebanho, nem com dinhei-

ros avultados, somente esfolava sempre que um dos trinta netos o visitava.

O único desconfiado na rotina dos assaltos era Tchaúque, por ter progredido de

forma substancial em tão insuficiente tempo.

Ao Régulo e a aldeia, embora soubessem da sua boa índole, não sobraram dúvi-

das.

Certo dia, depois da explanação do Régulo sobre os assaltos no posto policial fo-

ram ao encontro do indiciado no seu sítio de sempre.

Encontraram-lhe inclinado, golpeando a terra como de costume enquanto a ca-

nhenha mão afastava o capim desencharcado. Os polícias interromperam-lhe com

um mandato de prisão. Sem nenhum minuto para interrogar as causas foi levado

ao posto.

Esteve preso cinco dias. Aguardava o interrogatório. Quem lhe incumbia a missão

era o comandante que não se encontrava na aldeia. Diziam estar a participar em

simpósios policiais na capital. Mas se sabia, sem claros testemunhos, que se em-

briagava na companhia de prostitutas em lugares modestos, para que não o vis-

sem.

- Tchaúque, como explica tanta riqueza em pouco tempo?

Olhou para sala onde se encontrava.

Page 21: Revista Literatas-61

Conto

21 | 02 de Julho de 2014

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A palhota era enorme mas degradada, numa das paredes estava afixado a

fotografia do presidente da república; tinha uma secretáriaempoeirada,

com um molho de papéis sobre a mesma e beatas de cigarros que fugiam

do cinzeiro; tinha também duas cadeiras plásticas, de cores confusas –

numa ele estava sentado e noutra o comandante –, um dos polícias estava

de pé com um chamboco numa mão e noutra par de algemas enferruja-

das. O outro polícia tinha se ausentado. O ofendido – o Régulo – não esta-

va no interrogatório, porém alguém o viu logo cedo, acredita-se que ia ex-

torquir o chefe.

- Tchaúque não respondes? Não temos todo o tempo!

Enquanto descrevia o cenário com a vista dissimulada pensava se devia

ou não desvendar o mistério. Ocorriam reacções no seu gordo pensamen-

to. Até que o desvendou:

- Fiquei rico porque encontrei ouro na machamba.

Lá foram, para certificar, com as algemas cravadas nos pulsos. O coman-

dante tomava a dianteira, Tchaúque no centro seguido pelo polícia, quem

todo o trajecto batia na sua própria palma com chamboco num gesto de

engolir a longa distância.

Chegados à machamba, Tchaúque dirigiu-se à cova. Curvou-se, ajoelhou,

já com as mãos soltas, escavou a terra. Escavou fundo, mais fundo do que

o costume, escavou com mais força que noutros dias, escavou até se can-

sar, até dar-se conta que não mais existia a caixa.

O comandante, perante aquela desilusão, ordenou ao polícia que o algemasse no-

vamente e prometeu:

- Hoje mesmo levo-te à cadeia da cidade, sacana!

- Espera Senhor comandante, vamos perguntar a minha esposa, talvez saiba.

Isabel, desde que o marido ficou preso nenhum dia o visitou, alegando o trauma

que passara desde que o pai morreu na cela da cadeia.

Quando chegaram à sua residência, o aspecto arejado do quintal mostrava ausên-

cia de gente há dias. Ninguém sabia do seu paradeiro e desde o cárcere de

Tchaúque nunca mais foi vista.

Antes de abandonarem o local, a vizinha do lado revelou que Isabel encontrava-se

às escondidas com Samuel, amigo de infância de Tchaúque, todas as noites na

mata.

Admitia-se que os dois se escapuliram com o tesouro, sem se indagar com que es-

pertezas o ouro foi descoberto.

Na noite do mesmo dia, Tchaúque recebeu no posto a visita do amigo monhê,

quem levava a fortuna de volta. Não consentiu compra-la das mãos de Isabel, pois

sabia que até ela desconhecia o segredo.

No lugar do camponês, Isabel e Samuel ficaram encarcerados e transferidos à ca-

deia da capital também indiciados de roubo de gado, com testemunhas até de so-

bra.

Quando a arte

interessa

a vida vale

a pena

Leia a revista

Page 22: Revista Literatas-61

22 | 02 de Julho de 2014

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Lobolo

-Ligou-me agora o meu advogado a dizer-me que ele se recusa em

assinar a papelada do divórcio.

-Deverias é estar feliz, pelo menos continuas casada, ainda que seja

no papel. Sabes quantas mulheres sonham e lutam, vida toda para

um dia se casarem…?

-Tantas mulheres sonham e lutam porque ainda não se casaram.

-A tua experiência faz de ti insensível à esta ordem social…

-Não interessa a ordem , para mim foram dois e últimos meses de

agonia!

-Só dois para tanta certeza?, dá-me arrepios ouvir isso de uma mulher

a jorrar juventude!...

-Tempo suficiente para entender o tamanho da aberração que isso é:

viver a dois para a vida toda. Ora bolas…

O meu espírito caçador ia se nutrindo de chances, nada há de melhor

que uma presa fragilizada. Animal ferido requer bons cuidados e con-

solos. Mas, mantive-me no meu lugar, esperando iniciativa dela, afi-

nal, “puxa a manta quem o frio sente”...

Dei sinal ao barman para trazer-me outra cerveja. O mesmo gesto fez

ela.

-Desculpa, como que te chamas?

-Bete.

-Betinha… ofereço-te o meu peito e um lenço para enxugar as lágri-

mas…

-Enxugo as lágrimas num copo de cerveja bem gelada!... Respondeu

ela num tom cómico.

Confesso que as palavras a seguir me foram difíceis de as pronunciar,

mas como o difícil é sempre possível, lá vieram elas:

-Aposto que os dois meses de casamento foram dois meses de muita

cerveja bem gelada…

-Não é bem assim, mas é quase isso, excluindo duas semanas de lua-

de-mel passadas no Zalala Lounge.

Parecia voltar a magia, naquele rosto de linda mulher. Em seguida en-

trou um homem baixo, fazendo abdómen apresar-se antes dele, um

protótipo ideal dos frequentadores do bar. Vimo-nos impedidos de

continuar com o papo, a presença do barrigana criara uma muralha. O

que me parecia negativo revelou-se, contudo, bastante positivo: para

minha alegria, ela veio juntar-se a mim.

Já na terceira cerveja, falámos de tudo e de nada, aliás, até do nada

falamos.

Na manhã seguinte, bem ao meu lado, uma mulher de curvas que pa-

ralisam qualquer transito, estavam bem estacionadas na minha cama.

Corpos totalmente nus. Eu que já havia acordado, fui direito a geleira,

bebi uma água e trouxe-lhe, como mandam as regras do cavalheiris-

mo. Deitada, enquanto bebia eu a contempla, corpo claro, cabelos

compridos que me pareciam ser de uma outra raça humana. E disse

para mim: Como é que um homem é capaz de esperdiçar uma festa

dessas?

Depois de ter bebido, eu ainda admirando-a. Conversámos, conversá-

mos tanto! Que o tempo passou sem nos darmos conta do mesmo!

Um dia…

Duas semanas… Três meses…

E… já tínhamos encomendado as alianças e falávamos do Lobolo!

Japone Arijuane - Moçambique

O casamento é a maior causa do divórcio.

Groucho Marx

N o interior de mim, a alegria convertia-se numa tristeza que o exterior

não mostrava. Mantive o aparente aspecto. Enquanto isso, vi-a, a Be-

te, na sua gloriosa entrada. Trajada a rigor para o momento. Mãos dadas ao pai.

Dois petizes com a indumentária caprichada. Nas suas ingénuas mãos, vasos ar-

tisticamente trabalhados a verterem de pétalas de rosas.

Todos se levantaram. Olhei a Bete, como se da primeira vez a visse, não a reco-

nhecia. Esbelta e alegre, fixava os olhares em mim.

Meu corpo estremeceu de um sentimento que recuso descrever; foi quando meu

padrinho mo disse: ―esta aí a mulher que irá viver contigo para o resto da tua

vida.

Foi num sábado, estava eu sentado numa mesa de bar. Um copo de cerveja ia

fazendo o que de bom sabe fazer. Assistia ao vaivém da espuma no copo, o es-

petáculo único que esta faz com mestria própria. Pensava absolutamente em na-

da. O tempo corria a passos galopantes, persegui-lo é correr atrás de prejuízo, e

a minha espécie de homem evita, ao máximo, ter prejuízos.

Estava no segundo gole, quando uma mulher feita em pouco tempo se sentou.

Disfarcei, logrei esse intento com mais outro gole na então bem gelada Dois

Emmy ali na minha frente.

Chegou o barman, depois do “faz favor minha senhora”, na mesa oposta a minha,

já lá estava uma cerveja. Um copo semicheio, um tange de batom nas extremida-

des do mesmo.

Um vibrar de telefone estancou o silêncio nos ares. Curta e discreta. Ao tirar o

aparelho dos ouvidos, pareceu-me perder toda alegria que ostentara.

- Pelos vistos o telefonema não te fez bem… Lá vim eu, que não via hora de

abordá-la.

-Por favor…? Disse ela, da forma mais melódica possível e como se não ouvisse

o que eu dissera.

-Suponho que o telefonema te arrancou a alegria do dia…?

-E como…!

-Sem querer intrometer-me, mesmo estando a fazer. já li numa destas revistas de

auto-ajuda que o desabafo é uma das melhores terapia … Juro que o meu espíri-

to de homem caçador estava em alta naquele sábado. Antes mesmo de dar-lhe

tempo para pensar, capacidade rara nas mulheres, pior as que frequente aqueles

lugar, continuei:

-Problemas, todo mundo diz que os têm, mas na verdade somos nós os proble-

mas de nós mesmos. Espero que sejas uma excepção.

-Claro que não!, senão não estava aqui a afogá-los.

Discordei, embora não mostrasse nenhum sentimento de discórdia no rosto. Pois,

contrariamente ao que outros pensam, o bar é o pior dos lugar para afogar os pro-

blemas; pelo contrário, é o bar quem afoga as suas vítimas no fundo do abismo.

Mas, como é próprio dos homens da minha espécie (quiçá em vias de extinção),

quando se está para conquistar não se pode mostrar, à prior, qualquer oposição;

nada melhor que a indiferença, o que no fundo é o mesmo.

Entretanto, ela continuou:

-Tenho problemas com meu ex.

-Este géneros de problemas, até onde eu sei, só os dois podem resolver…

Conto(s) Contigo