orley mesquita: quando o verbo se faz revelação

12
poesia e prosa • 5 ORLEY MESQUITA: QUANDO O VERBO SE FAZ REVELAçãO Anco Márcio Tenório Vieira Se Orley Mesquita (1933-2006) era um homem generoso com a vida e com os amigos, capaz de recolher um livro da sua biblioteca, uma peça decorativa ou mesmo um quadro da pa- rede da sua sala e, sem muitas palavras, presentear a quem ele tinha apreço, por outro lado ele era avaro quando se tratava da sua produção poética: seja pelos pouquíssimos livros que publicou, seja, aparentemente, por nunca manifestar interesse em republicá-los. No caso, três livros e uma coletânea. A cole- tânea foi publicada em 1965. Foram seis poemas no primeiro e único número da revista Clave. Ainda nesta mesma década, em 1967, o poeta lançou o livro Orley, composto por “Oito fragmentos do livro da fera”. Doze anos depois, em 1979, co- nhecemos O vocábulo das horas, obra que escrevera nos anos 1960 e que até então permanecia inédita. Por fim, em 1981, publicou Poemas em preto e branco. Afora os livros aqui cita- dos, teve pouco mais de três dezenas de versos espalhados em antologias, revistas literárias e jornais do Recife e da Paraíba, particularmente no Diario de Pernambuco e no Correio das Artes. Em contrapartida, guardava, em seu “baú”, dois livros inéditos — Os exercícios da solidão, datado de 1980, e Os passos da morte (relatos), livro de contos de 1995 —, quase uma centena de poemas inéditos e uns tantos outros poemas e contos que, infelizmente, não foram concluídos; são apenas rascunhos que trazem a rubrica “a trabalhar”. Assim, os pou- cos livros publicados e as suas tiragens diminutas fazem da sua obra artigo raro nas estantes particulares, nas bibliotecas públicas e, principalmente, nos sebos.

Upload: cepe-companhia-editora-de-pernambuco

Post on 27-Mar-2016

223 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação por Anco Márcio Tenório Vieira.

TRANSCRIPT

Page 1: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

poesia e prosa • 5

Orley Mesquita: quandO O verbO se faz revelaçãO

Anco Márcio Tenório Vieira

Se Orley Mesquita (1933-2006) era um homem generoso com a vida e com os amigos, capaz de recolher um livro da sua biblioteca, uma peça decorativa ou mesmo um quadro da pa-rede da sua sala e, sem muitas palavras, presentear a quem ele tinha apreço, por outro lado ele era avaro quando se tratava da sua produção poética: seja pelos pouquíssimos livros que publicou, seja, aparentemente, por nunca manifestar interesse em republicá-los. No caso, três livros e uma coletânea. A cole-tânea foi publicada em 1965. Foram seis poemas no primeiro e único número da revista Clave. Ainda nesta mesma década, em 1967, o poeta lançou o livro Orley, composto por “Oito fragmentos do livro da fera”. Doze anos depois, em 1979, co-nhecemos O vocábulo das horas, obra que escrevera nos anos 1960 e que até então permanecia inédita. Por fim, em 1981, publicou Poemas em preto e branco. Afora os livros aqui cita-dos, teve pouco mais de três dezenas de versos espalhados em antologias, revistas literárias e jornais do Recife e da Paraíba, particularmente no Diario de Pernambuco e no Correio das Artes. Em contrapartida, guardava, em seu “baú”, dois livros inéditos — Os exercícios da solidão, datado de 1980, e Os passos da morte (relatos), livro de contos de 1995 —, quase uma centena de poemas inéditos e uns tantos outros poemas e contos que, infelizmente, não foram concluídos; são apenas rascunhos que trazem a rubrica “a trabalhar”. Assim, os pou-cos livros publicados e as suas tiragens diminutas fazem da sua obra artigo raro nas estantes particulares, nas bibliotecas públicas e, principalmente, nos sebos.

O Leopardo.indd 5 20/11/12 14:02

Page 2: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

6 • orley mesquita

No entanto, se, por um lado, o seu acanhamento intelectual pode ser visto como um defeito — e, de fato, era —, por ou-tro, logo esquecemos esse traço da sua personalidade quando temos acesso aos seus livros e aos seus poemas em publicações esparsas; livros e poemas que mostram o quanto Orley fora, por subtração, também generoso com o seu leitor. Generosida-de que pode ser entendida em uma dupla acepção. A primeira é que, diverso de muitos escritores que carregam a marca da prolificidade, sem que esta se traduza em qualidade de página e de verso, Orley poupou o seu leitor com poemas que fossem apenas repetições de temas já tratados; poemas apenas retóri-cos (no sentido pejorativo que essa palavra encerra), como, não raras vezes, encontramos em poetas que fingem, com seus su-postos “poemas herméticos”, uma postiça profundidade ou ver-ticalidade. A segunda generosidade se dava no modo cauteloso com que lidava e perseguia as palavras exatas: escrevendo e reescrevendo o mesmo verso, o mesmo poema: “As vogais redu-zem/ As consoantes aturdem/ Sou mais pela palavra/ Pensada”. O conjunto da sua obra poética é a prova substantiva do que defendia Stéphane Mallarmé: poesia se faz com palavras e não com ideias, isto é, ideias todos têm, mas o que poucos dominam é a capacidade de traduzir essas ideias em palavras, em lingua-gem sensível que dilate e plasme o mundo e os homens. Logo, o poema é um objeto que se explica a partir de si e por si mesmo, e não por ideias, pois um poema não diz — como diz, por exem-plo, uma tese, um tratado filosófico ou um livro de economia —, um poema apenas revela. E se revela, revela por meio da palavra e com a palavra, que termina por condensar mais significados do que os significados que semanticamente encontramos nos di-cionários. Ideias pressupõem referentes (palavras que denotam elementos do mundo extralinguístico), enquanto a poesia cria o seu próprio referente (palavras que conotam).

Sendo versos constituídos por imagens, sintaxes, padrões de ritmo e sons que se combinam delicadamente para desfamilia-rizar o que poderia ser um referente previsível, alargando nosso horizonte mental ao criar novos referentes imaginários, do que falam, então, os versos de Orley Mesquita?

O Leopardo.indd 6 20/11/12 14:02

Page 3: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

poesia e prosa • 7

Eis a pergunta que fiz em ensaio publicado há cerca de quatro anos: “Orley Mesquita: memória, fé e morte”.1 A resposta dada neste texto, e que aqui novamente subscrevemos, é que seus ver-sos falam, grosso modo, da memória — como registro do que o poeta viveu, a exemplo da infância, dos amores vividos, das separações, da incapacidade de entender o mistério de Deus — e da morte — como condição denunciadora da própria efemeri-dade daquilo que ele vivenciou: ora as pessoas que conhecera, mas que tiveram sua vida subtraída do seu convívio; ora os ritos e as paisagens que definharam. Afinal, pergunta o poeta: “Que sabe o homem/ Além da morte e do nome?” (“Meu nome é um só”). Afinando um pouco mais a ponta do lápis, podemos notar que Orley acatava a memória como um procedimento de singularização, como um meio entre o que ele existenciou e a posterior transformação dessa experiência em linguagem poé-tica. E transformar a memória dos fatos em linguagem poética é subsumir aquela nesta. Ou seja, para ele, a vida vivida (a efe-meridade do existir, a vida como um acúmulo de repertórios e de perdas, em um contínuo entrecruzar) era a matéria da sua poesia, e não da sua memória. Assim, o poeta contemplou os homens e as coisas, reteve na memória o que testemunhou, e depois transformou tudo em versos. Se há uma memória do vivido, essa reside apenas nos seus versos; versos que obliteram e sepultam a memória, e que revelam que o essencial dessa me-mória está fixado para todo o sempre no papel: “É o salto por cima/ Da palavra/ Que engendra o poema./ A fluidez do grafite,/ No gesto luminoso,/ No corpo do papel./ O desenho que vive/ E não se nota/ Na íris das vogais/ Nos membros retesados/ Das consoantes”. O resto — e o que resta — é o descarte dessa me-mória. O que ficou para o poeta, o que se revelou digno de ser lembrado, é o que ele transformou em linguagem. Concluído

1 Texto publicado em VIEIRA, Anco Márcio Tenório. 2009. Adultérios, biombos e demônios: ensaios sobre literatura, teatro e cinema. Recife: Bagaço; Programa de Pós-Graduação em Letras/UFPE, p. 117-126. Este texto também foi publicado em Simetria e convívio: coletânea de textos. 2007. Apresentação e org. de Esman Dias. Recife: Editora Universitária/UFPE, p. 39-46, e no site Interpoética: <http://www.interpoetica.com/site/index.php?/Table/artigos/>

O Leopardo.indd 7 20/11/12 14:02

Page 4: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

8 • orley mesquita

esse processo, o fato — e a memória deste fato assistido — pode ser agora olvidado. A memória do fato não se calça mais em um referente extralinguístico (na realidade empírica), mas em um referente puramente linguístico, imaginário, que só existe agora no poema. Daí o modo como Orley particulariza cada verso, singulariza-o, tensiona cada palavra e tenta tirar dela o máximo de informação e de sentimento, pois cada poema é um transubstanciar de um fato que fora retido pela memória e não mais o reconhecimento puro e simples desse fato.

Um bom exemplo de como a memória — signo denotativo do tempo, da coisa que é agora apenas um nome — precisa ser obliterada para se transformar em linguagem poética e conota-tiva, encontramos neste verso de “Memorial do nome”: “tem-po;/ leve traço em riste/ ligando o nome do que foi”. Ou no “Poema 3”, quando o autor lembra que tanto o verão quanto o sol que o calcinam serão sempre os mesmos; o que não serão mais os mesmos é aquele verão e aquele sol que o levaram a fixá-los em linguagem poética. Tudo porque os pelos de um gal-go — isto é, os pelos de um cão ágil, ou de algo desejado — fo-ram manchados pelas cinzas desses dias: “este verão perdura o que sabemos/ e o sol de hoje/ é o mesmo que veremos amanhã/ nem nos aflige a praia ser sozinha,/ nem o vento é mais bran-do/ por faltar./ Lépidos, amamos;/ galgos cujos pelos/ a cinza desses dias manchará”. Ou ainda no “Poema 4”, quando o eu lírico toma consciência que a solidão (a sua) não seria menos solidão se houvesse naquele momento uma companhia, pois o estar só é um modo do Ser estar no mundo: “Sinto estar só; / Mas, se alguém / Ao lado houvesse, / Também seria / O que se esquece.” E como se fosse um testamento de tudo que o poeta amou e perdeu ao longo da existência, o “Poema fácil”, que se situa entre os seus primeiros poemas, se revela como uma espé-cie de súmula de toda a sua memória, súmula de todos os seus versos e de todas as coisas que se foram, morreram, mas que são compensadas por um amor transcendente, pelo amor de um anjo da guarda que velou e continua a velar os seus passos: São Francisco, aquele que “Amou-me a mim..”. Neste poema cada coisa é uma coisa, cada amor foi um amor, cada dia bom foi

O Leopardo.indd 8 20/11/12 14:02

Page 5: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

poesia e prosa • 9

um dia bom. Todos são singularizados, não se confundem; cada palavra é usada cirurgicamente para falar de cada um desses momentos, momentos que o poeta resume nestes versos: “Não quero nada/ Do que passado,/ Guarde memória/ De insensa-tez”, pois o que ele deseja não é o que passou (isso tudo ele já transformou em poemas, em linguagem, daí ele não querer guardar memória, nem o referente dessa memória), mas “mor-rer/ De haver amado/ O que ainda/ Não conheci.” O futuro é a memória daquilo que ainda não ocorreu, é o poema que ainda está por se materializar em palavras; caso venha a existir na vida do poeta o futuro, o dia seguinte, o amanhã.

Mas a leitura dos poemas de Orley revela outras facetas, ou-tras sutilezas no que diz respeito às relações entre memória e morte, entre a memória e o verbo que a fixará em versos. Seus poemas também denotam que o seu tempo (que é também o nosso) é o da efemeridade das coisas, e que a memória desse tempo — esgotada por um turbilhão de fatos pedestres, imagens, eventos e sugestões — termina por ser tão transitória quanto os signos que denotam o seu (e o nosso) tempo: “A vida com sua magra/ Mas constante bizarria/ De vestir com muito luxo/ O ossário branco dos dias” (“Oito fragmentos do livro da fera”). Contra um mundo fundado no espetáculo e uma memória que sucumbe a essa realidade, a poesia luta para subverter essa ló-gica. Assim, o poeta, ao compor os seus versos, não somente transforma a matéria da sua memória em poesia, mas também a própria memória do seu tempo. Procedendo dessa maneira, Orley subverte a lógica de um tempo calçado na espetaculosi-dade, pois é com a poesia que ele tenta enganar a memória fugi-dia dos fatos vivenciados. Porém, mesmo se valendo da poesia como um meio de fixar as coisas e os fatos vistos e vividos que lhe pareceram imprescindíveis, o poeta não perde a consciência de que memória, tempo e morte são sinonímias, e que, ao se entrelaçarem, enganam os homens e os nossos sentidos: “Mal saiba o dia/ O vocábulo das horas/ — Lápide de esquecimento —/ Trabalhando, constante,/ Nosso engano”. Daí ele atentar permanentemente para que se algo pode transcender a si e ao tempo, esse algo são os versos fixados no papel; mesmo tendo

O Leopardo.indd 9 20/11/12 14:02

Page 6: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

10 • orley mesquita

consciência de que eles também podem sucumbir ao próprio tempo que o poeta tentou aprisionar: “Se não me engano,/ Poe-sia é fogo-fátuo./ Se me enganas,/ É fogo-morto./ Se a escrevo,/ É sofrimento, gozo/ Orgasmo.” (“Fogo-fátuo”).

Por fim, faz-se necessário ainda observar um tema constante na poesia de Orley: o amor, aquele que foi amado, aqueles que o amaram, e a própria transitoriedade desse sentimento na vida dos homens e das mulheres. Na sua poesia, o desejo e o amor são os mesmos, menos o amar. Poucos foram os amados, mas todos aqueles que passaram por sua vida passaram porque nele se manifestou o desejo e o amor, por mais que esse tenha sido um desejo e um amor de poucas horas, de poucos dias, como o “fogo-fátuo”. Mas o que restou desse desejo, desse amor e des-se amar? No primeiro momento, a memória; em um segundo momento, a lembrança sentimental traduzida em palavras: “Ao amante,/ Minha estima./ Minha poesia./ Minha poesia” (“Ofer-tório”). Ao batizar esses versos com o nome de “ofertório”, o poeta ressignifica aquele momento da missa em que o sacerdote oferece a Deus o pão e o vinho. Ora, se o tempo cristão é linear, contínuo e finito, como queria Santo Agostinho, o instante da consagração do pão e do vinho é o único momento em que a temporalidade linear é suspensa. Ou melhor, é espiralada, pois durante um breve intervalo, o tempo premente se faz circular: a liturgia do ofertório se faz coetânea do evento da Última Ceia.2 Orley também sacraliza o amor, o desejo e o amar. Mesmo que cada desejo tenha sido naquele instante apenas “o desejo”, cada amor tenha sido “o amor”, e cada amar tenha se revelado “o amar” — cada um ao seu modo e distintos —, todos se perfa-zem apenas em um: o momento em que se transubstanciaram em palavras, em verbo — “A tudo quanto amei,/ íntegro, servi./ Dei carne à carne/ poesia ao verso dei” (“Confissão”).

Em linhas gerais, creio que esse é o modo como Orley Mes-quita tratou os temas e as questões que ele existenciou ao longo

2 Sobre o tempo espiralado, ver FRANCO JÚNIOR, Hilário. 2010. “O conceito de tempo da Epístola de Preste João”. In: Os três dedos de Adão: ensaios de mitolo-gia medieval. São Paulo: Edusp, p. 134-135.

O Leopardo.indd 10 20/11/12 14:02

Page 7: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

poesia e prosa • 11

de mais de sete décadas de vida. Ao lermos linearmente este livro, verso após verso, descobrimos ou nos é revelado um mun-do próprio, cheio de imagens, de pulsões da vida, de medos, de amores frustrados, de desejos saciados, de afeto pelas coisas, pe-los homens e, principalmente, por uma certa saudade ou mesmo ansiedade pelo carinho de Deus. Esse Deus que ora é evocado como o Deus único da tradição judaico-cristã, ora como uma entidade pagã, uma manifestação da Natureza: deuses.

Assim, ao concluirmos a leitura linear deste livro alargamos o nosso Eu e dilatamos o mundo e a nossa humanidade. Apesar de Orley ter consciência de que a poesia pode florescer e disper-sar — “Se não me engano,/ Poesia é fogo-fátuo./ Se me enga-nas,/ É fogo-morto” —, resta-nos, enquanto “testemunhantes” da sua existência, da sua generosidade — seja enquanto amigo, seja enquanto poeta —, tentar perpetuar a sua voz; com ela, a memória e o tempo que ele fixou em palavras. Editar e conti-nuar a transmitir de forma duradoura os versos do poeta de Alagoa Grande (Paraíba), de um dos animadores da “Geração 59” e da “Geração 65”, é reconhecer que o nosso tempo pode ser tão perene quanto são os demais tempos fixados por outros poetas, escritores e artistas em geral; é reconhecer que o nos-so tempo, nada obstante a espetaculosidade é, como qualquer outro tempo, rico de sugestões e imagens; basta saber vê-las; resta saber como transformá-las em versos que dignifiquem as vozes poéticas que nos antecederam, irmanando-as em um só círculo: aquele que partindo da experiência com o real empí-rico, transubstancia-o em verbo e alarga a nossa existência, a nossa miséria. Pois o poeta é aquele que fala o que já sabemos. Ou melhor, revela o que já sabemos. Não há nada na literatura que não saibamos. O que nós, pobres mortais, não sabíamos e não sabemos é como dizer o que sentimos e o que pensamos daquele modo específico, com aquelas palavras, com aquelas imagens, com aquele sentimento. Daí o porquê de o poeta não dizer, mas apenas revelar. É desse modo que Orley alarga o nosso saber, alarga a nossa humanidade, dilata o universo além dos seis dias em que ele foi criado e fixado por Deus. Pois o po-eta é aquele que, diverso de Deus, não descansou no sétimo dia.

O Leopardo.indd 11 20/11/12 14:02

Page 8: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

12 • orley mesquita

Pelo contrário, o sétimo dia é o que lhe foi dado para expandir, por meio da palavra, a obra do Criador, de modo que existe o mundo de Deus, o mundo dos homens e o mundo lúdico dos poetas. O que diferencia este daqueles, é que o mundo dos po-etas só se substantiva entre nós quando tomamos contato com ele. Se esquecemos a sua obra na estante ou em algum depósito de biblioteca, ou pior, se esquecemos de mantê-la perene para os contemporâneos e os pósteros, assassinamos um pouco a nós mesmos, pois não apenas calamos o verbo, mas negamos a nós mesmos o direito de sonharmos o sonho sonhado pelo poeta e, com ele, entendermos, um tanto que terapeuticamente, os sentimentos que nos estimulam, mas que não sabemos como expressá-los.

Lembro ainda ao leitor que neste livro ele irá encontrar fi-dedignamente todos os versos que o poeta publicou em livro e mais umas três dezenas que saíram em antologias, revistas e jornais. Afora esse material que veio a lume ao longo de quase quarenta anos, o poeta, como dissemos no início desta apresentação, guardava, em seu “baú”, quase uma centena de versos e de textos em prosa. Resgatar este material não foi ta-refa fácil. Como o poeta tinha o hábito de guardar alguns dos seus versos dentro dos livros que possuía, certamente ainda pode existir algum poema “perdido” em algum dos livros que formaram a sua biblioteca (hoje dispersa em sebos). Provavel-mente não serão tantos os versos “perdidos”. Espero um dia encontrá-los (se é que eles existem) e, quem sabe, na próxima edição deste volume, poder presentear o leitor com um ou ou-tro Orley Mesquita inédito. Afinal, publicar Orley Mesquita é dar a ele o direito de permanecer entre nós, entre os pósteros; é lembrarmos que a generosidade ainda é possível em nos-so tempo, pois é ela que dá a medida da nossa humanidade, que nos leva a acreditar que continuaremos a existir depois de cumprirmos o tempo que nos foi destinado pela natureza. Que o poeta descanse ao lado do “Amor que move o Sol e as mais estrelas”, mas não os seus versos.

O Leopardo.indd 12 20/11/12 14:02

Page 9: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

poesia e prosa • 13

II

Não poderia concluir esta breve apresentação sem prestar al-guns esclarecimentos e agradecimentos e, por fim, declinar uma pequena confissão. Primeiro, os esclarecimentos.

A persistência de Orley Mesquita por encontrar a palavra que expressasse de forma exata a sua visão de mundo levou-o, com frequência, a reescrever, quase que obsessivamente, muitos dos seus versos. Ao tomarmos conhecimento do seu arquivo parti-cular, carinhosamente guardado por sua sobrinha Josie Campe-lo, descobrimos que muitos dos livros e dos poemas publicados pelo poeta tinham sido alterados por ele. No caso dos livros, os poemas foram modificados visando uma segunda edição, que nunca ocorreu. No caso dos poemas que saíram em revistas, jornais e antologias, o poeta buscava corrigir as gralhas tipográ-ficas que, porventura, tinham vitimado os seus versos. Assim, seguindo o seu último desejo, optamos por publicar sempre a versão final que nos foi legada. Também tomamos a decisão de oferecer ao leitor a versão príncipe do poema. Para tal, valemo--nos das notas de rodapé. Nelas, o leitor encontrará tanto o verso que foi alterado (uma palavra, uma vírgula) quanto o po-ema que passou por uma reformulação quase completa. Desse modo, o livro pode ser lido de duas maneiras. Numa, ele, o leitor, pode se ater apenas ao que está no corpo do livro. Nou-tra, ele pode realizar o que os estudos da literatura chamam de crítica genética. Isto é, ficar com um olho no corpo do livro e outro nos rodapés. Ou, como diz o ditado, um olho no padre e outro na missa. Para os amantes da palavra, é um exercício bas-tante gratificante, pois eles irão se familiarizar com o processo de criação do poeta, com as suas obsessões com a palavra exata, com a palavra “pensada”, como ele próprio afirma em um dos seus versos.

Outro ponto a observar é que organizamos os livros de Orley Mesquita pela ordem de publicação. Depois, inserimos as obras inéditas que aguardavam edição: Os exercícios da solidão, pu-blicado em 1980 e Os passos da morte (relatos), datado de 1995. Por fim, fechando este volume, inserimos os seus poemas

O Leopardo.indd 13 20/11/12 14:02

Page 10: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

14 • orley mesquita

inéditos e dispersos. Organizamos esses versos seguindo o cri-tério cronológico: pela ordem em que eles foram escritos. Al-guns desses versos foram, inclusive, confeccionados na década de 1960, mas só foram impressos 20 ou 30 anos depois. Neste caso, seguimos a data da redação, e não o ano em que foi pu-blicado. O ano da publicação foi inserido em notas de rodapé. Ainda na secção de “inéditos e dispersos”, o leitor irá encontrar algumas dezenas de poemas sem datas. Estes foram separados dos que foram datados pelo poeta e distribuídos após o último poema com registro de dia, mês e ano de nascimento.

Agora, os agradecimentos.Este livro não seria possível sem o acolhimento do Conselho

Editorial da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe): o po-eta Everardo Norões (presidente), o jornalista Antônio Portela, o professor e crítico literário Lourival Holanda, a professora e linguista Nelly Medeiros de Carvalho e o poeta e escritor Pedro Américo de Farias. A todos, meus agradecimentos e gratidão. Para a organização deste livro um nome foi imprescindível: Josie Campello, a amiga e sobrinha querida do poeta. Ela é a guardiã do seu espólio; guardiã zelosa, registre-se. O acesso ir-restrito aos livros e poemas do poeta permitiu que tomássemos contato não apenas com a sua obra completa, mas também que pudéssemos saber a data exata em que cada livro, cada verso e cada conto veio a lume. A Josie o meu mais largo agradecimen-to. Sou grato também ao poeta Everardo Norões por suas ob-servações e sugestões quando da escritura desta obra. Gratidão que estendo ao poeta Alberto Lins Caldas — que não mediu es-forços para localizar poemas que estavam publicados na revista Caderno de Criação, da Universidade Federal de Rondônia — e ao amigo e poeta José Almino, da Fundação Casa de Rui Barbo-sa, que, sempre solícito, localizou poemas de Orley que estavam no acervo daquela instituição carioca. A todos, renovo meus agradecimentos.

Findando, a confissão. Este volume é fruto de um pedido que, certo dia, fiz ao poeta e

amigo: o de organizar e publicar a sua obra completa. Durante anos ele relutou: seja por parecer um tanto que cansado com a

O Leopardo.indd 14 20/11/12 14:02

Page 11: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

poesia e prosa • 15

vida, seja por acreditar que os seus versos ainda não perfaziam a forma definitiva que ele acreditava poder atingir. Finalmente, em fevereiro de 2006, ele entregou os primeiros poemas para que eu os digitalizasse e começasse a organização da obra. Não tive tempo de lhe mostrar o resultado do empreendimento. Uma semana depois que recebi de suas mãos aqueles versos, ele se encantou. Este livro é mais do que o cumprimento de um dese-jo, é, antes de tudo, o cumprimento de uma promessa. Estamos todos em paz — eu e o poeta — e que a paz nos acompanhe. Saudades, muitas saudades.

O Leopardo.indd 15 20/11/12 14:02

Page 12: Orley Mesquita: quando o verbo se faz revelação

O Leopardo.indd 16 20/11/12 14:02