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1 MESTRADO EM LETRAS ANA PAULA CECATO DE OLIVEIRA LITERATURA INFANTIL E O PENSAMENTO POR IMAGENS: a experiência sensível da linguagem na infância Porto Alegre 2013

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MESTRADO EM LETRAS

ANA PAULA CECATO DE OLIVEIRA

LITERATURA INFANTIL E O PENSAMENTO POR IMAGENS: a experiência sensível da linguagem na infância

Porto Alegre 2013

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ANA PAULA CECATO DE OLIVEIRA

LITERATURA INFANTIL E O PENSAMENTO POR IMAGENS: a experiência sensível da linguagem na infância

Dissertação apesentada à banca examinadora como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profª Drª Rejane Pivetta de Oliveira

Porto Alegre 2013

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ANA PAULA CECATO DE OLVEIRA

LITERATURA INFANTIL E O PENSAMENTO POR IMAGENS: a experiência sensível da linguagem na infância

Dissertação apesentada à banca examinadora como requisito para obtenção do título de Mestre em Letras. Data: __________/___________/___________

Orientadora:

Profª Drª Rejane Pivetta de Oliveira

_________________________________________

Banca Examinadora:

Profª Drª Cláudia Caimi

_________________________________________

Profª Drª Noeli Reck Maggi

_________________________________________

Porto Alegre 2013

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Este trabalho é dedicado à minha família, Eugênio, Sueli, Flávia e Augusto; ao meu amor, Rodrigo; e a meus alunos, que me fazem perceber o mundo com olhos de

criança.

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AGRADECIMENTOS

Ao Uniritter, sobretudo ao Programa de Pós-Graduação em Letras, pela excelência

na formação acadêmica;

À minha orientadora, Rejane Pivetta de Oliveira, que acolheu a minha pergunta e

suscitou tantas outras;

Aos componentes da banca examinadora, Professoras Cláudia e Noeli, pelo aceite

ao convite e pelas sugestões de leitura deste trabalho;

Aos colegas do curso de Mestrado, pela possibilidade de troca de experiências e

pela amizade construída;

À EMEF Papa João XXIII, pelas imagens da infância que foram reanimadas neste

retorno;

Aos alunos Bruno Ebertz, Bruno da Rosa, Luciana, Matheus Eduardo e Sofya,

colaboradores deste trabalho, que me instigaram a compreender a experiência

sensível da linguagem na infância;

Ao Matheus Eduardo e sua família, por terem permitido a publicação de seu poema;

Aos colegas de trabalho e alunos do CMEB Edwiges Fogaça, em Esteio, espaço de

acolhimento e de compartilhamento de ideias e de projetos no âmbito da leitura

literária;

Aos colegas e alunos dos CMEB Camilo Alves e Eva Karnal Johann, em Esteio,

cujas produções também inspiraram esse trabalho;

Aos colegas da Câmara Rio-Grandense do Livro, em especial Sônia Zanchetta,

Valdeci C. de Souza, Maria da Graça Artioli, Roze Paz, Rafael Cardoso, onde dei

meus primeiros passos como mediadora de leitura e me apaixonei pela Literatura

Infantil;

À Gláucia de Souza, pela amizade, pela parceria na realização do Tessituras e pela

generosidade;

À Aurea Brusco, pelos empréstimos e dicas sobre livros de Neil Gaiman;

À minha família, pelo apoio, amor e compreensão de cada dia;

Ao meu namorado, Rodrigo, por me fazer cada dia mais feliz;

Aos demais familiares e amigos, gente que deixa meu coração acalentado.

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Pássaro

Sou como pássaro Que voa livre

Sem saber O que me espera Da vida tão bela

Noite de primavera Toca minha vida

O vento me leva

Para linda floresta Onde o futuro me espera

Matheus Eduardo de Matos, 11 anos

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RESUMO

Este trabalho busca compreender o modo como a linguagem do livro infantil

manifesta um pensamento sensível, identificado à experiência da infância. Para

tanto, parte da imagem como categoria de análise, pois ela é o meio privilegiado do

pensar e do sentir poéticos, como um modo de conhecimento que não separa razão

e sensibilidade. A imagem é, antes de mais nada, uma construção da linguagem

que, por sua vez, articula-se à experiência. Assim, desejamos compreender os

termos em que crianças leitoras elaboram simbolicamente a sua experiência de

leitura, a partir do acesso mediado a imagens literariamente construídas. O primeiro

capítulo apresenta a discussão dos conceitos de imagem, infância e experiência,

articulados à manifestação de um pensamento sensível, com base principalmente

nas reflexões de Walter Benjamin, recorrendo ainda a ideias de Italo Calvino e

Otávio Paz sobre a imagem literária. O segundo capítulo propõe a análise da obra

Os lobos dentro das paredes, de Neil Gaiman e Dave McKean, buscando explicitar a

construção de imagens verbais e visuais como uma “cifra do mundo”, reveladoras de

uma experiência sensível que se comunica com seu leitor através do despertar da

observação e da intuição. A trajetória se completa, no terceiro capítulo, com uma

proposta de prática de leitura com leitores criança, a fim de verificarmos as formas

de comunicação que se estabelecem entre esses leitores e as imagens da obra

infantil, com base nas quais foi possível concluir que o trabalho com as imagens

densas da obra estimulou a participação do leitor na atividade de leitura,

favorecendo que seus repertórios de leituras e experiências pessoais fossem

trazidos à tona, com isso alimentando suas produções imaginativas.

Palavras-chave: imagem - infância – experiência – leitura – Neil Gaiman.

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ABSTRACT

This work seeks to understand how the language of the children's book expresses a

sensitive thought, identified to the experience of childhood. Therefore, part of the

image as a category of analysis, since it is the privileged way of poetic thinking and

feeling, as a mode of knowledge that does not separate reason and sensibility. The

image is, before anything else, construction of language that, in turn, articulates the

experience. Thus, we wish to understand the terms in which children readers

elaborate symbolically your reading experience, from the mediated access to images

constructed literarily. The first chapter presents a discussion of the concepts of

image, and childhood experience, linked to the manifestation of a sensible thinking,

mainly based on the reflections of Walter Benjamin, still using the ideas of Italo

Calvino and Octavio Paz on the literary image. The second chapter proposes the

analysis of the work within The Wolves in the walls, from Neil Gaiman and Dave

McKean, seeking to explain the construction of verbal and visual images as a "figure

of the world", revealing a sensory experience that communicates with your reader

through the awakening of observation and intuition. The trajectory is completed, in

the third chapter, with a proposed practice reading with child readers, so as to check

the forms of communication established between these readers and images of child

labor, under which it was concluded that the working with dense images of the work

stimulated the participation of the reader in the activity of reading, favoring their

repertoires of readings and personal experiences were brought up with this nurturing

their imaginative productions.

Keywords: image - children - experience - reading - Neil Gaiman.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO …………………………………………………………10

2. CAPÍTULO 1

O que chove dentro da imagem? ..................................................13

3. CAPÍTULO 2

Uma cifra do mundo dentro das paredes ......................................39

4. CAPÍTULO 3

Lendo para além das paredes ......................................................50

5. CONCLUSÃO ...............................................................................68

6. REFERÊNCIAS ............................................................................72

7. ANEXO A

Entrevista Semi-estruturada .........................................................75

8. ANEXO B

Atividades de leitura dos alunos ...................................................76

9. ANEXO C

Termos de consentimento livre e esclarecido ...............................80

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INTRODUÇÃO

A motivação de escrita deste trabalho sucede, principalmente, da atuação da

autora como mediadora de leitura no espaço escolar, com alunos dos anos finais do

Ensino Fundamental, na disciplina de Língua Portuguesa, e, de outro modo, com

professores e outros mediadores, como Coordenadora de Programas de Leitura na

Câmara Rio-Grandense do Livro. Em ambos os espaços de atuação, o contato com

autores e obras da Literatura Infantil fomentou as primeiras ideias de escrita, que, de

alguma forma, estavam relacionadas com a construção híbrida do livro infantil, em

texto e imagens. Logo, o livro escolhido para análise não poderia ser outro que não

estabelecesse esse diálogo no próprio objeto, constituindo-se no fundamento da

relação com seus leitores. Além disso, este trabalho decorre, também, de um apreço

pela obra do filósofo Walter Benjamin, desde os tempos de estudante de graduação,

motivada pelo olhar sensível do teórico acerca da infância, tema já instigante

naquela época, e reanimado nos estudos de Mestrado na disciplina de Teorias da

Linguagem.

A pergunta que norteia este trabalho intenta responder a uma inquietação da

autora: de que modo a linguagem do livro infantil manifesta um pensamento

sensível, identificado à experiência da infância? Para acercarmo-nos do problema,

partimos da imagem como categoria de análise, pois ela é o meio privilegiado do

pensar e do sentir poéticos, como um modo de conhecimento que não separa razão

e sensibilidade. A imagem é, antes de mais nada, uma construção da linguagem

que, por sua vez, articula-se à experiência. Assim, desejamos saber de que modo

crianças leitoras elaboram simbolicamente a sua experiência de leitura, a partir do

acesso mediado a imagens literariamente construídas na obra infantil Os lobos

dentro das paredes, de Neil Gaiman e Dave McKean.

O percurso inicia com a discussão dos conceitos de imagem, infância e

experiência, articulados à manifestação de um pensamento sensível, que buscamos

explicitar, no passo seguinte, na construção imagética da obra que serve de corpus

a este trabalho. A trajetória se completa com uma proposta de prática de leitura com

leitores infantis, a fim de compreender os termos em que as imagens da obra infantil,

sendo a manifestação de um pensamento sensível, atuam sobre o leitor criança,

favorecendo que este elabore uma percepção pessoal e sensível acerca do mundo.

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Assim, no primeiro capítulo, encontra-se a fundamentação teórica, a partir de

uma pergunta “O que chove dentro da imagem?”, cuja resposta está debruçada na

obra de três autores: Ítalo Calvino, Octavio Paz e, sobretudo, Walter Benjamin. Os

dois primeiros apresentam concepções sobre a imagem e a criação literária, e

Benjamin, a imagem como uma ideia filosófica. Na intersecção da obra desses

autores, encontramos a imagem como um elemento supremo de composição da

palavra literária, uma vez que tem o poder de expressar e condensar a infinita

imaginação do homem. Por isso, a imagem consegue transmitir, ao longo de toda a

existência, mundos possíveis dentro de sua própria origem, como é o caso dos

mitos. A consciência original do homem também se relaciona com a infância,

entendida não apenas como uma fase etária, porém como um modo singular de

percepção das imagens do mundo. As crianças experimentam, como no

pensamento mítico, o “alumbramento” da imagem, ou seja, uma visão encantada

das coisas.

No segundo capítulo, analisamos a obra Os lobos dentro das paredes, de Neil

Gaiman e Dave Mc Kean. A análise consiste numa leitura atenta da forma como o

projeto estético de Gaiman compõe-se na obra, enfatizando a construção de

imagens verbais e visuais. Além disso, almeja-se também apresentar a obra como

uma “cifra do mundo”, ou, em termos benjaminianos, uma “descrição dessa imagem

abreviada do mundo”. (BENJAMIN, 1984, p.70), uma vez que as imagens do livro,

tecidas pelo fio da linguagem, revelam uma experiência sensível que se comunica

com seu leitor através do despertar da observação e da intuição.

No terceiro capítulo, apresenta-se o trabalho realizado com três alunos de

uma escola pública localizada no município de Cachoeirinha, região metropolitana

de Porto Alegre, durante cinco encontros semanais de 1h30min cada. Dois

procedimentos foram utilizados nas atividades de leitura: uma entrevista semi-

estruturada (ANEXO A), realizada no primeiro encontro, que procurou conhecer a

relação dos participantes com práticas de leitura dentro e fora da escola e sua

relação com o objeto livro, e as atividades de leitura propostas nos encontros

seguintes (ANEXO B), que constaram de produções nos âmbitos oral, visual e

escrito. Nosso trabalho não tem preocupação estatística; desejamos tão somente

verificar as elaborações de significados feitas por leitores específicos, a partir de

atividades de mediação de leitura. Portanto, não se trata da confirmação ou não de

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hipóteses, nem de oferecer explicações para os processos de recepção. O interesse

está em compreender as significações da experiência de cada leitor em particular,

através de suas construções simbólicas, resultantes do trabalho de leitura.

Assim como a motivação de sua concepção, esta pesquisa, que culmina com

o término desta dissertação - abertura para novos recomeços -, tomou rumos que

levaram a autora do trabalho a refletir sobre sua prática docente, agregando e

reafirmando convicções acerca do trabalho com a leitura literária em sala de aula.

Agrega no sentido de conhecer e poder compartilhar novos referenciais de leitura, e

reafirma quando propõe que a educação deve comprometer-se com a experiência

sensível da linguagem na infância, procurando fazê-la matéria fecunda de expressão

criativa dos alunos. Além disso, o trabalho contribuiu para o amadurecimento da

reflexão teórica, sua essencial vinculação à prática e, principalmente, para o

exercício de produção escrita, por meio da qual foi elaborada a experiência de leitora

e mediadora de leitura aqui apresentada.

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CAPÍTULO 1: O QUE CHOVE DENTRO DA IMAGEM?

1.1 Imagem e criação literária: Italo Calvino e Octavio Paz

O título deste primeiro capítulo dialoga com o início de uma das conferências

de Italo Calvino, publicada no livro Seis propostas para o próximo milênio. Trata-se

de uma passagem da Divina Comédia, de Dante Aligheri, na parte do “Purgatório”:

Poi piovve dentro a l’alta fantasia1 (ALIGHERI, apud CALVINO, 2010, p.97).

No referido texto, Calvino analisa os processos imaginativos e o conceito de

imaginação, procurando vinculá-lo a abordagens apresentadas ao longo da

conferência. Para tratar desse problema, Calvino discorre sobre seu processo

criativo, sobretudo ao escrever narrativas fantásticas, cujo ponto de partida é “uma

imagem que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado”

(CALVINO, 2010, p.104). A imagem se expande a ponto de explodir, produzindo

outras imagens que antes estavam ocultas; “forma-se um campo de analogias,

simetrias e contraposições” (CALVINO, 2010, p.104). A partir de então, sua

organização é feita e tem início a estruturação do enredo da história, e, nesta etapa

do processo criativo, é a palavra quem ditará o rumo da narrativa, cabendo à

imagem um papel coadjuvante, o de acompanhar a escrita.

Entretanto, quando escreve os contos das Cosmicômicas, sua proposta de

escrita é de “demonstrar como o discurso por imagens, característico do mito, pode

brotar de qualquer tipo de terreno, até mesmo da linguagem mais afastada de

qualquer imagem visual, como é o caso da ciência hodierna” (CALVINO, 2010,

p.105). Sendo assim, do conceito surge o jogo de imagens. Essa mesma proposta é

acolhida na série da emissora de comunicação mexicana Televisa, intitulada

“Imaginantes”2, que evidencia a importância da imaginação nos processos artísticos

e nas descobertas científicas, retomando a natureza humana de “seres

imaginantes”. Trata-se de pequenos programas, de 1min30s, veiculados na

1 Tradução: Chove dentro da alta fantasia. Resolvi manter a frase no idioma original,

excepcionalmente, a fim de demonstrar a força da imagem e sua musicalidade.

2 A série completa, composta de 28 vídeos, pode ser encontrada em

http://www.youtube.com/view_play_list?p=9A736F4BF68E8F59.

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programação do canal de televisão, em que é retratado o universo criativo de

grandes mestres do pensamento, como escritores, artistas plásticos e cientistas,

através de animações originais. Ao todo, são 28 vídeos da série, sendo que um

deles trata de uma das cosmicômicas de Calvino, considerada pelo autor, na

conferência referida, a mais surrealista de todo o livro, (CALVINO, 2010, p.105): a

distância da lua.

A narração do herói do livro das Cosmicômicas, Qfwfq, é rica em detalhes e

carrega um tom nostálgico. Em tempos passados, a Terra e a Lua mantinham

distâncias mínimas, tanto que os homens, inclusive sua família, costumavam ir até o

mar e, com uma escada portátil, conseguiam tocá-la, retirando de suas escamas um

leite encorpado, uma espécie de ricota. Após essa apresentação, o relato do

protagonista se concentra em uma das idas do grupo à Lua, quando a mulher do

capitão Vdh Vdh decidiu subir para encontrar o primo surdo do protagonista, por

quem ela se sentia atraída. O surdo mantinha uma relação mística com a lua, que

desperta a curiosidade do narrador. Naquela noite, porém, a Lua se afastou

consideravelmente da Terra, e todos que ali estavam para recolher o leite lunar

desceram, inclusive o primo surdo, ficando apenas a senhora. Qfwfq decidiu subir

para resgatá-la, pois ele a amava. Os dois permaneceram na superfície lunar por um

tempo, até o grupo encontrar uma corda comprida o suficiente. Qfwfq desceu, porém

a mulher, desiludida pelo amor não correspondido do surdo, ali deixou-se ficar,

tocando sua harpa. Tempos depois, o protagonista, ainda enamorado pela senhora,

procurou encontrá-la, todas as noites, ao olhar para o céu: “ela que faz da Lua a Luz

e que faz a cada plenilúnio os cães ladrarem a noite inteira e eu com eles”

(CALVINO, 1992, p.22).

A fábula de Calvino ilustra um acontecimento do cosmos, descrito pela

ciência, neste caso, por Darwin, ao afirmar que, em algum tempo, a Lua esteve

próxima da Terra, e que as marés seriam os fenômenos causadores de seu

afastamento. A partir desse pequeno parágrafo introdutório, a palavra é concedida à

Qfwfq, cuja apurada memória resgata as histórias que presenciou. O destaque é

concedido a uma voz contadora de histórias, entidade cuja natureza se modifica ao

longo dos relatos (às vezes é um homem, noutra, um dinossauro) e cuja existência é

atemporal. Através dele, Calvino retoma aspectos próprios da literatura oral que, por

sua vez, constitui a origem da literatura. Dentre os gêneros da literatura oral, o

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principal deles é o mito, cujo discurso é orientado pela explicação de fatos naturais

que impressionavam os homens primitivos, através da fabulação. A narrativa ilustra

– no sentido imagético – o que depois a ciência e a filosofia vão racionalizar em seus

discursos. Dessa forma, Calvino apresenta que, sem a força imaginativa do homem,

a ciência não poderia existir.

Na conferência sobre a visibilidade, no livro Seis propostas para o próximo

milênio, Calvino propõe-se a pensar o conceito de imaginação a partir das ideias do

crítico literário suíço Jean Starobinski, no ensaio “O império do imaginário”, em que

percorre algumas concepções de imaginação, segundo o pensamento de diferentes

épocas e de diferentes áreas do conhecimento: a imaginação como instrumento do

saber, corrente mais próxima do pensamento científico e teosófico, e a imaginação

como identificação e comunicação com a alma do mundo, que advém “da magia

renascentista de origem neoplatônica, (...), mais tarde retomada pelo Romantismo e

pelo Surrealismo” (CALVINO, 2010, p.103). Calvino vincula-se à última concepção:

“sempre busquei na imaginação um meio para atingir um conhecimento extra-

individual, extraobjetivo” (CALVINO, 2010, p.106). Porém, o autor avança as ideias

de Starobinski, propondo uma nova definição: “a da imaginação como repertório do

potencial, do hipotético, de tudo quanto não é, nem foi e talvez não seja, mas que

poderia ter sido” (CALVINO, 2010, p.106). Tal ideia volta-se ao indivíduo

“imaginante”, àquele que dá ordem a este conjunto de imagens esparsas, a fim de

produzir algum tipo de conhecimento.

Nesse momento da conferência, comunicadas na Universidade de Harvard

em 1984, Calvino alerta para o bombardeio de imagens pelos meios de

comunicação (predominantemente a televisão) e de uma possível incapacidade do

homem de “pensar por imagens”. Calvino relata, com certo tom nostálgico, sua

experiência como alguém que nasceu numa época de transição do que chama de

“civilização da imagem”, em que a imagem, nas ilustrações de livros e jornais como

o Corrieri dei Piccoli, e os brinquedos tiveram suma importância. Inclusive, evidencia

que as imagens foram uma “escola de fabulação, de estilização, de composição da

imagem” (CALVINO, 2010, p.109), e que esse exercício infantil fora fundamental

para a construção de obras ficcionais como O castelo dos destinos cruzados.

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Neste livro, o narrador-personagem, um viajante que passava por um bosque,

procurou abrigo em um castelo localizado no meio do caminho, onde encontrou

outros passageiros por quem havia passado durante sua viagem. Um pouco

surpreendido pelo desleixo e marasmo em que se encontrava o lugar e os homens

que ali estavam, o narrador saudou a todos. No entanto, de sua boca não foi emitido

nenhum som. Concluiu, então, que o marasmo declarado fora explicado pela mudez

dos homens, consequência da travessia do bosque. Depois de terminarem a

refeição, surgiu à mesa um baralho de tarô. Sem ninguém iniciar uma partida de

jogo ou uma previsão astrológica, um dos comensais recolheu algumas das cartas

viradas e colocou uma delas diante de si. Todos reconheceram que começaria, a

partir de então, um relato de sua história através das imagens. O narrador deixa

evidente ao leitor que as histórias registradas são fruto da livre interpretação das

cartas, gestos e olhares da personagem que conta a história. Esse é o mote que

desenvolverá as histórias do livro, originalmente escrito em duas partes, Castelo e

Taverna, que se encerra com a narrativa que conta a trajetória (mais literária do que

geográfica) de seu narrador.

Porém, ao chegar à segunda parte da narrativa, observamos uma

transformação do ambiente onde se contam as histórias, agora uma taverna. No

entanto, o fio narrativo é o mesmo: viajantes reunidos à mesa e, por razão

desconhecida, encontravam-se emudecidos. Nessa parte, o jogo combinatório das

cartas é mais intenso, os contadores se digladiam pelas cartas e procuram compor

um mosaico com as cartas de todas as histórias. O narrador mostra-se mais

reflexivo, comentando sobre a construção das narrativas e o jogo interpretativo que

executa ao ler, nas cartas, as histórias dos viajantes. Quando chega a hora de

contar a sua história, o narrador aproveita as imagens das cartas para interpretá-las

como elementos de seu trabalho literário, colocando-se como um artífice da palavra

através da imagem. Ao final, ele conta, pelas cartas do tarô, a história de

personagens literários como Hamlet e Édipo.

O papel da imagem na construção deste texto é o de “máquina narrativa

combinatória” (CALVINO, 2008, p.152), ou seja, Calvino parte de um sistema

semiótico, o baralho de tarô, para encadeá-lo nas histórias contadas pelas

personagens. Não se trata de resgatar a atividade da cartomancia, mas de

interpretar as cartas de acordo com uma “iconologia imaginária” (CALVINO, 2008,

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p.153). Além disso, a imagem é a única possibilidade de comunicação entre as

personagens da história, o que a evidencia como matéria de linguagem. Calvino

reverencia a imagem com um texto literário que brinca com a verdade garantida

através da palavra, colocando diante de seu leitor inúmeras possibilidades

narrativas.

Na parte final da conferência sobre a “Visibilidade”, Calvino conta sua

experiência como organizador de uma antologia do conto fantástico do séc. XIX3,

gênero esse exemplar para se “enxergar” elementos da imaginação visual na

literatura, e se pergunta: “A literatura fantástica será possível no ano 2000,

submetido a uma crescente inflação de imagens pré-fabricadas?” (CALVINO, 2010,

p.111). O tom temeroso de sua fala se tranquiliza ao enunciar dois caminhos

possíveis: o de reciclar imagens usadas, utilizando-se de recursos como a ironia, ou

apagar tudo e recomeçar do zero, a exemplo do que fez Beckett (CALVINO, 2010,

p.111), em peças como Esperando Godot, cujo enredo concentra-se na

impossibilidade de realização de sua ação central. Por fim, debruça-se sobre o conto

A obra de arte ignorada, de Balzac, para dizer que o conto pode ser interpretado

como uma fábula sobre a incapacidade do escritor em tornar visível através das

palavras tudo o que brota de sua imaginação. O parágrafo que encerra a

conferência é uma aula prática sobre visibilidade na arte literária:

Seja como for, todas as "realidades" e as "fantasias" só podem tomar forma através da escrita, na qual exterioridade e interioridade, mundo e ego, experiência e fantasia aparecem compostos pela mesma matéria verbal; as visões polimorfas obtidas através dos olhos e da alma encontram-se contidas nas linhas uniformes de caracteres minúsculos e maiúsculos, de pontos, vírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia, representando o espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e sempre diversa, com dunas impelidas pelo vento do deserto. (CALVINO, 2010, p.114)

O texto de Calvino nos é oportuno para pensar que a imagem é o recurso da

linguagem literária que reconcilia a capacidade imaginativa do escritor com sua

expressão escrita. Como exemplos, podemos citar as revelações que o narrador de

O Castelo dos destinos cruzados faz quando trata de seu fazer literário: “A palavra

escrita apascenta paixões? Ou submete as forças da natureza? Ou se encontra em

harmonia com a desumanidade do universo? Ou gera uma violência contida mas

3 Referência da edição brasileira: CALVINO, Ítalo. (Org.) Contos fantásticos do séc. XIX. São Paulo:

Cia das Letras, 2004.

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sempre pronta a arremessar-se, a dilacerar?” (CALVINO, 2008, p.132). A imagem é

o recurso da sugestão, do que não está totalmente explícito. Ela mantém um espaço

para que a subjetividade do leitor se comunique com ela através de sua experiência.

Porém o que chove dentro da imagem literária? Podemos nos aventurar por

entre esta tempestade chuvosa, embarcando no texto “A imagem”, de Octavio Paz,

do livro O arco e a lira, um tratado sobre a linguagem poética, que, igualmente ao

texto de Calvino, é tecido por construções imagéticas.

A imagem constitui-se um elemento primordial para a existência da poesia,

por concentrar “realidades opostas, indiferentes ou distanciadas entre si” (PAZ,

1982, p.120). No ensaio de Paz, a analogia é feita através dos referenciais tidos

como antônimos, “plumas leves” e “pedras pesadas”, que, na linguagem poética,

podem ser transformados em outras unidades de significação, para que provoquem

a ordem e o pensamento racional das coisas. Dessa forma, a imagem poética não

pode comprometer-se com a verdade: “O poema não diz o que é e sim o que

poderia ser. Seu reino não é o do ser, mas o do ‘impossível verossímil’ de

Aristóteles.” (PAZ, 1982, p.120-121). O “impossível verossímil” de que Aristóteles

(1990) trata em sua Poética, nos diz da forma como o autor deve “sustentar” uma

coerência ao longo do texto estético. Essa coerência ou verdade inerente ao próprio

texto é a verossimilhança, raras vezes pensada nos limites da poesia. Na “entrada”

de sua obra Poesia completa, Manoel de Barros evoca o termo aristotélico para

justificar a coerência de seus “desenhos verbais”.

Eu queria que as garças me sonhassem. Eu queria que as palavras me gorjeassem. Então comecei a fazer desenhos verbais de imagens. Me dei bem. Perdoem-me os leitores desta entrada mas vou copiar de mim alguns desenhos verbais que fiz para este livro. Acho-os como os impossíveis verossímeis de nosso mestre Aristóteles. Dou quatro exemplos. 1) É nos loucos que grassam luarais; 2) Eu queria crescer pra passarinho; 3) Sapo é um pedaço de chão que pula; 4) Poesia é a infância da língua. Sei que meus desenhos verbais nada significam. Nada. Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. Eu sei. Sobre o nada eu tenho profundidades. (BARROS, 2010, p.7)

Dessa forma, podemos dizer que, primeiramente, chove dentro da imagem a

capacidade de ilustrar um mundo impossível dentro dos limites da razão, pois se

trata de um diálogo com a experiência humana, que abrange outras formas de

compreensão do mundo. Quando lemos os desenhos visuais de Barros,

reconhecemos que existe uma lógica própria e interna dentro das imagens

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oferecidas no poema, construída por uma inversão de sentidos, estranhos e

surpreendentes em relação aos que estamos acostumados. A partir da ideia do

“impossível verossímil”, as imagens vão nos despertar sensações agradáveis ou

não. Dessa maneira, vamos ao encontro das palavras de Octavio Paz, ao dizer que

“o poeta faz algo mais do que dizer a verdade”, pois sua criação se constitui como

verdade dentro dela mesma. Ainda que a imagem poética nos revele como algo

nonsense, ela nos comunica alguma coisa: ela diz o que somos. (PAZ, 1982, p.131)

A seguir, Paz busca compreender o sentido da imagem poética,

diferenciando-a de outras operações de escrita, como a de descrever um objeto ou

elaborar um argumento. A especificidade do poema está em apresentar o objeto ao

leitor, fazendo com que ele acione sua experiência a fim de significá-lo. Pela

imagem, ocorre uma dupla operação: a palavra expõe seu caráter plural e reconcilia

o nome e o objeto. (PAZ, 1982, p.133)

Porém, o autor adverte que ainda não completara a tarefa empreendida, a de

encontrar o sentido da imagem poética. Para isso, mais uma vez confronta a palavra

com a imagem, afirmando que as palavras podem ser explicadas por outras, em

operações como a paráfrase, o verbete do dicionário, todas elas amparadas por um

“querer dizer”. Contudo, a imagem explica-se a si mesma, só ela pode dizer o que

quer dizer. O que chove dentro da imagem é a própria imagem.

Em um poema, as palavras se transformam e, por isso, são únicas,

insubstituíveis. Por isso, o poema não é passível de interpretações ou de

explicações, apenas na experiência poética (tida como revelação, em um dos

capítulos seguintes do livro, intitulado “A revelação poética”) está conferida sua

verdade. A autonomia do poema faz com que ele supere a própria linguagem, pois

nele as palavras não podem ser deslocadas em sua sintaxe ou explicadas por

outras, sob risco de perderem sua força poética. Ainda que só possa ser expressa

por palavras, é a imagem quem comunica a experiência poética ao leitor: “O poema

é linguagem em tensão: em extremo de ser e em ser até o extremo.” (PAZ, 1982,

p.135)

No senso comum, propaga-se a ideia de que a poesia é o gênero literário em

que são expressas as emoções do ser. O texto de Paz pode nos dar pistas das

razões pelas quais nos filiamos a esta ideia, posto que o autor afirma que a poesia

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desloca o homem de si mesmo e o faz retornar ao seu ser original. Pela experiência

poética, acionamos lembranças vividas ou inventadas: Poesia é a infância da língua,

nos desenhos visuais de Manoel de Barros; poesia é entrar no ser, no término do

ensaio de Paz. (PAZ, 1982, p.138)

Em muitos aspectos, os textos de Calvino e de Paz dialogam com as ideias

de Walter Benjamin, autor cuja produção revela a imagem como elemento central de

sua discussão. Nos textos aqui já apresentados, evidenciamos que ambos os

autores oferecem ao leitor, além de sua análise teórica sobre a imagem poética,

bons exemplos do que significa pensar por imagens. Como já apresentado, a

escritura desses textos é tecida poeticamente, seja pelo uso de citações de obras

estéticas, pela referência de outras produções culturais, pelo recurso da metáfora

empreendido por Paz ao falar de plumas e pedras, pelo percurso das memórias

infantis de Calvino. Essas recorrências apontam para o que Calvino chega a propor,

em seu ensaio, como uma “possível pedagogia da imaginação” (CALVINO, 2010,

p.108), em que o indivíduo criador consiga “dominar” o fluxo mental de imagens e

traduzi-las verbalmente, como nos “desenhos verbais” de Barros. Mas deixemos, por

ora, as afinidades imagéticas de Benjamin com estes autores para compreendermos

alguns aspectos de sua vida e obra que nos conduzirão de volta à imagem.

1.2 – Imagem e filosofia: Walter Benjamin

Walter Benjamin é um autor cuja biografia não pode ser desconsiderada, a fim

de pensarmos nas condições de produção de seus textos e no modo peculiar como

ele percebia e entendia o mundo. É recorrente encontrarmos, em obras sobre o

autor episódios de sua vida dolorosa, definida por Hannah Arendt como alguém

“com falta de jeito e má sorte” (ARENDT, 2010, p.173). Arendt, em brilhante ensaio

do livro Homens em tempos sombrios, conta que Benjamin obteve reconhecimento

de sua produção quinze anos depois de sua morte, ocorrida em 1940, quando foi

publicada uma edição de dois volumes de seus escritos (ARENDT, 2010, p.165). Em

vida, Benjamin era conhecido, pois viajava bastante e mantinha alguns amigos,

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devido às suas incursões em movimentos como o sionismo4, na juventude, e mais

tarde o marxismo. Entretanto, a obra de Benjamin nunca se vinculou de todo a essas

correntes, fazendo com que sua produção fosse pouco acolhida nos meios

acadêmicos, como quando, em 1923, ao tentar apresentar sua tese de livre-

docência na Universidade de Frankfurt, a clássica obra Origem do drama barroco

alemão, foi desaconselhado a fazê-lo. Arendt diz que “O problema com tudo o que

escreveu Benjamin é que sempre demonstrava ser sui generis” (ARENDT, 2010,

p.167).

Oriundo de uma típica família burguesa judia assimilada na Alemanha, Walter

Benjamin nasceu em 15 de julho de 1892, em Berlim. A teologia teve influência em

seus escritos, especialmente nos primeiros, em que trata da questão da origem da

linguagem humana. No entanto, não se pode dizer que Benjamin era um religioso,

interessava-lhe o método interpretativo da cabala judaica, corrente mística do

judaísmo que presta ensinamentos sobre questões metafísicas, oriundas da tradição

(a palavra “cabala” tem esse significado). Seu método consiste em reaver os escritos

e os valores da tradição a fim de ressignificá-los nos dias atuais: “A cabala

reverencia o passado para romper com ele.” (BUCK-MORSS apud KANGUSSU,

2010, p.5). Sua escrita é tecida através de metáforas interpretativas, que exigem

uma leitura atenta às muitas camadas de sentido, que nos conduzem sempre aos

desvios, às margens, aos abismos de onde a interpretação emerge renovada.

Desde cedo, Benjamin era um grande leitor, frequentou o melhor colégio de

Berlim, a escola humanista Kaiser Friedrich-Wilhelm, porém, em 1904, por conta de

problemas de saúde, foi para uma escola de campo, retornando em 1907 para a

escola Kaiser Friedrich, onde terminou seus estudos em 1912. Ao estudar por um

semestre na Universidade Albert Ludwig, de Freiburg, manteve contato com o

sionismo. Pensava o movimento enquanto patrimônio cultural dos valores judaicos,

que deveria conservar seu caráter esotérico, cabalístico. Durante o período da

universidade, que se completaria na Suíça, uma vez que Benjamin fugira do

ingresso no exército alemão, o autor perambulou por diversos países e cidades,

destacando-se sua primeira viagem a Paris, em 1913, local que lhe serviu de exílio

4 O sionismo foi um movimento histórico do fim do séc. XIX, visando estabelecer um Estado judaico

na Palestina, o que se concretizou em maio de 1948, teve sua ideia oriunda nas escrituras, onde diziam que o monte Sion, local onde ficava o Templo de Salomão, em Jerusalém, era o centro histórico do povo judeu e patrimônio histórico do Ocidente.

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anos depois. Em 1917, ainda na Alemanha, casou-se com Dora Pollak, e, no mesmo

ano, o casal partiu para Berna, onde, em 1918, nasceu seu único filho, Stephan. No

ano seguinte, Benjamin defendeu seu Doutorado na Universidade de Berna, cuja

tese era O conceito de crítica de arte no romantismo alemão5.

Em 1920, a família Benjamin voltou para Berlim. O retorno do recém-doutor

era um projeto profícuo, mas que não deu certo devido à “falta de jeito” de Benjamin

e a fatores políticos, de uma Alemanha no entremeio das guerras mundiais e de uma

resistência da academia aos seus escritos. Durante este período, enfrentou graves

problemas financeiros, tendo sido sustentado pelos pais e depois por sua então ex-

esposa, Dora. A partir de 1925, depois da recusa de seu trabalho por parte da

universidade, Benjamin tornou-se um “freelancer” da escrita, traduzindo autores

franceses como Proust e Baudelaire, produzindo artigos e viajando bastante. Em

1933, Benjamin exilou-se em Paris, onde permaneceu até o fim da vida, com idas e

vindas em outros lugares, como a casa do também refugiado Brecht na Dinamarca,

na pensão de Dora, em San Remo, e em Ibiza, onde o custo de vida era menor do

que na capital francesa. Em 1934, começou a ser bolsista do Instituto de Pesquisa

Social, onde funcionara o núcleo da Escola de Frankfurt, mas, a partir de 1935, não

conseguiu mais ter seus escritos aceitos pelas publicações alemãs, o que o levou

quase à miséria tempos depois. Em 1939, ficou sabendo pela Embaixada Alemã em

Paris que não era mais cidadão alemão, e suas tentativas de naturalização francesa

foram fracassadas.

Com a entrada da França na guerra contra a Alemanha, os alemães

refugiados em Paris foram ordenados à internação em estádios olímpicos, vivendo

em condições precárias. Benjamin foi libertado de um desses campos, graças a

amigos, e, quando esteve prestes a ser entregue às autoridades alemãs, decidiu

fugir ilegalmente pela fronteira da França com a Espanha, uma vez que não obteve

visto para esta passagem, somente para chegar à Portugal pela Espanha, para

então seguir para os Estados Unidos. O relato desse trajeto, feito por Lisa Fittko,

senhora que comandava o grupo de fugitivos, revelava que Benjamin atravessara o

caminho bastante fatigado, devido à obesidade e aos problemas cardíacos que lhe

acompanharam durante toda a sua vida. Quando o grupo chegou ao posto policial

5 Tradução brasileira de Márcio Seligmann-Silva Ed. Iluminuras, 1993.

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da fronteira, foram avisados de que deveriam voltar à França, o que significaria

serem entregues aos alemães. No entanto, ainda lhes foi permitido passar a noite

em um hotel, e, nesta madrugada, Benjamin tomou a dose letal de morfina que tinha

consigo. Agonizou o dia todo, para, às dez da noite, falecer de “hemorragia

cerebral”. Seu infortúnio maior foi que o restante do grupo conseguiu, no dia da

morte de Benjamin, passar a fronteira, por ordem de um chefe da polícia local.

Em meio a tantos reveses de sua vida, a obra de Benjamin não revela um

olhar pessimista. Sua peculiaridade está em trazer à tona o passado e a tradição, a

fim de que o homem encontre caminhos para a renovação do presente, como faz na

apresentação do conceito de experiência ao longo de seus escritos. Na sua

juventude, mais exatamente em 1913, Benjamin escrevera o ensaio “Experiência” 6,

quando a chama de “máscara do adulto”. Ao dirigirem-se aos jovens, os adultos

usam a experiência como discurso de autoridade e de arrogância perante a vida.

Importa observar que Benjamin se coloca como portador de uma voz

universal dos jovens, escrevendo na primeira pessoa do plural, em oposição a

“eles”, os adultos, que se personalizam na figura do filisteu, aquele que se agarra no

pragmatismo em favor próprio: “uma vez que o filisteu jamais levanta os olhos para

as coisas grandiosas e plenas de sentido, a experiência transformou-se em seu

evangelho” (BENJAMIN, 2011, p.22). Benjamin revela, ainda, que o filisteu é alguém

desprovido de espírito e que repugna sua própria juventude. No fim do ensaio,

apresenta o que seria uma “outra experiência”, daquele ser experiente cujo espírito

permanece jovem e generoso. A primeira ideia de Benjamin acerca da experiência

converge com a de seus escritos posteriores, no sentido de que, em ambas as

recorrências, ela consiste numa comunicação oral que sucede à ação e vincula-se

ao saber compartilhado pelos mais velhos aos jovens. Em nota de rodapé do ensaio

de 1913, lemos o comentário de Benjamin em 1929 sobre este texto:

Num de meus primeiros ensaios mobilizei todas as forças rebeldes da juventude contra a palavra ‘experiência’. E eis que agora essa palavra tornou-se um elemento de sustentação em muitas de minhas coisas. Apesar disso, permaneci fiel a mim mesmo. Pois o meu ataque cindiu a palavra sem a aniquilar. O ataque penetrou até o âmago da coisa. (BENJAMIN, 2011, p.21)

6 Este ensaio encontra-se no livro Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, em que

estão reunidos escritos da juventude do autor e outros que versam sobre o universo infantil. O título do ensaio, no livro, encontra-se entre aspas.

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Posteriormente, Benjamin desconstrói essa “força rebelde” do jovem de 19

anos e amplia o conceito para o universo de narrativas oriundas da cultura popular

que compõem (e unem) o imaginário de jovens e adultos, no ensaio Experiência e

pobreza, de 1933:

Sabia-se também exatamente o que era a experiência: ela sempre fora comunicada pelos mais velhos aos mais jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com sua loquacidade, em histórias; às vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a filhos e netos. (BENJAMIN, 2012, p.123).

Escrito no período entre guerras, o ensaio lança a ideia da crise da

experiência, uma vez que a narrativa da barbárie não é passível de ser contada de

boca em boca. A experiência, entendida como um evento que singulariza o homem

e que precisa ser vivenciada pelo seu corpo, não poderia vincular-se às imagens da

guerra, nas quais o corpo e a vida dos combatentes são objetos de crueldades.

Além da guerra, outro fato que empobrece a experiência é o “monstruoso

desenvolvimento da técnica”, uma vez que a difusão da informação está pautada em

valores superficiais, imediatos – que se sobrepõem à subjetividade humana.

Buscar um entendimento sobre o conceito de experiência é fundamental para

se compreender o pensamento filosófico benjaminiano. Não é à toa que sua

discussão se reproduz em outros de seus escritos e sua importância repercute na

releitura de grande parte de seus estudiosos. Por se tratar de uma obra crítica

essencialmente interdisciplinar, os textos de Benjamin despertam interesse de

muitas áreas afins à filosofia, como educação, letras e comunicação social.

Benjamin elaborou uma discussão que amplia a ideia de experiência para além do

campo científico (orientado pelo conhecimento racional) e, mais ainda, que rejeita a

supremacia desse tipo de conhecimento (logos) em detrimento ao conhecimento

sensível (mythos). Dessa maneira, Benjamin “constrói uma reconciliação entre

‘verdade’ e ‘beleza’” (LOBATO, 2011, p.1), à medida que coloca a linguagem como o

lugar onde se encontram “os juízos que enunciam o conhecimento verdadeiro

produzido pela experiência” (LOBATO, 2011, p.11). Os conhecimentos oriundos da

filosofia, arte e religião existem enquanto verdades históricas, à medida que

trabalham com ideias que não se perdem na abstração dos conceitos, mas

encarnam-se no “sangue vivo” da experiência.

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Nas palavras de Jorge Larrosa (2002), a experiência é um evento único,

passional:

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, url*)

O sujeito da experiência inclina-se para produzir sentidos para a própria

existência, através da sensibilidade que lhe faz perceber e comunicar o que lhe

acontece. Em O Castelo dos destinos cruzados, as personagens reunidas ao redor

da mesa, que contemplam, olham, gesticulam, estão lidando com aquilo que lhes é

mais precioso, sua experiência. Conhecemos, através da voz do narrador, uma

narrativa construída a partir da experiência, que, na voz de outro, poderia ter um

enredo completamente diferente.

A ideia do abalo da experiência é abordada em outros textos de Benjamin,

como em O narrador. Aqui, Benjamin encaminha a discussão para o fazer literário,

tratando da oposição entre os gêneros da narrativa oral e do romance. O romance

se originou a partir de transformações sociais, como a ascensão burguesa e a

invenção da imprensa, e provém de uma voz uníssona, a do autor (noção

profissionalizante que é estabelecida no período renascentista), e do suporte em

livro. Enquanto isso, a narrativa deriva da experiência coletiva da tradição oral,

portanto, de um texto inacabado, revisitado a cada momento em que o saber da

experiência é ativado.

Retomemos a ideia que nos conduziu ao excurso sobre a experiência, a de

que Benjamin não ostentava uma visão pessimista, porém, inventiva sobre o futuro

da narrativa. Ao dedicar ensaios sobre autores modernos como Kafka, Benjamin

encontra na obra destes autores o que, para ele, seria um “alento” para a narrativa:

catar os detritos que nos restaram do imaginário das narrativas primitivas e dar-lhes

uma nova configuração. Assim como o catador de lixo, o narrador moderno

procurará no descarte algo que lhe seja útil e impedirá seu esquecimento. Benjamin

sugere que a experiência passe por um processo de renovação, e que faça de sua

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impossibilidade a sua matéria de criação. A imagem do catador de detritos também

aparece na relação que as crianças estabelecem com os objetos, quando, através

da brincadeira, concede-lhes expressividade pela linguagem:

É que as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas se volta exatamente para elas, e somente para elas. (BENJAMIN, 2011, p.57)

O ato de brincar vincula-se ao mundo da narrativa oral, matéria na qual se

constitui a experiência benjaminiana. Quando as crianças se reúnem para ouvir uma

história, quando entoam uma ciranda de roda ou uma parlenda, ou mesmo quando

representam uma personagem, no seu “faz de conta que eu sou...”, cultivam valores

da coletividade e tornam viva a expressão mimética da linguagem. Em A doutrina

das semelhanças, Benjamin coloca a brincadeira infantil como uma “escola de

muitos aspectos dessa faculdade (mimética)” (BENJAMIN, 2012, p.117), pois essa

atividade envolve um processo de aprendizado, fazendo com que haja “uma

dinâmica contínua entre experiência mimética e experimentação científica”, muito

mais que uma evolução de uma para outra” (GAGNEBIN, 2011, p.359). Neste

excerto, encontramos uma fagulha do que seria o modo como Benjamin empreendia

sua discussão filosófica: a apresentação de uma nova forma de compreensão do

conhecimento e a tarefa de desmistificar o prestígio e a valoração do conhecimento

racional em detrimento do conhecimento sensível.

Mas qual método Benjamin utiliza para realizar esta tarefa? Qualquer tentativa

de resposta passa por igual tentativa de desvendar o modo de leitura e de escritura

de suas produções, assim definido pelo próprio:

“Método é caminho indireto, é desvio. A representação como desvio é portanto a característica metodológica do tratado. Sua renúncia à intenção, em seu movimento contínuo: nisso consiste a natureza básica do tratado. Incansável, o pensamento começa sempre de novo, e volta sempre, minuciosamente, às próprias coisas. Esse fôlego infatigável é a mais autêntica forma de ser da contemplação” (BENJAMIN, 1984, p.50)

Um dos descaminhos de Benjamin foi o de propor uma filosofia da linguagem

em grande parte influenciada pela teologia, mais precisamente, pelo método

hermenêutico da cabala judaica, encontrada no texto Sobre a linguagem em geral e

sobre a linguagem humana, de 1916. Podemos dizer, em linhas gerais, que a

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concepção da linguagem benjaminiana é construída pelos seguintes aspectos: 1) a

linguagem humana como um dom divino; 2) a linguagem como gesto, som e caráter

imitativo; 3) a linguagem humana como busca da tradutibilidade da essência

espiritual das coisas e na conversão de sua linguagem muda em nomeadora.

Benjamin retoma o relato do livro do Gênesis para justificar a relação entre o

ato de criação e a língua, afirmando que, ao criar o homem, Deus lhe concedeu a

faculdade de traduzir a linguagem muda das coisas em nome, conhecida como

função nomeadora: “A linguagem é, pois, a criadora e a que completa é palavra e

nome. Em Deus o nome é criador porque é palavra, e a palavra de Deus é

cognoscível porque é nome.” (BENJAMIN, 1992, p.186). Através da narrativa bíblica,

mais precisamente quando Deus penetra por meio do sopro da vida, o espírito e a

língua no homem, sua aliança é eternizada e conhecida na linguagem: “O homem

está ligado à linguagem das coisas através da palavra. A palavra humana é o nome

das coisas.” (BENJAMIN, 1992, p.188).

O homem estabelece uma relação de comunicabilidade com a linguagem,

tendo seus limites demarcados por sua essência espiritual e não pelo seu conteúdo

verbal. Para Benjamin, a linguagem é o conjunto de expressões que constituem a

vida intelectual do homem, e não simplesmente uma de suas formas. Apenas na

linguagem, e não através dela, o homem pode conferir sentido à realidade das

coisas. “Não há acontecimento ou coisa, seja na natureza animada, ou na inanimada

que, de certa forma, não participe na linguagem, porque a todos é essencial a

comunicação do seu conteúdo espiritual” (BENJAMIN, 1992, p.177).

Ao investigar uma possível origem da linguagem, Benjamin faz um percurso

por diversas teorias da sociologia e da linguística no texto Problemas da Sociologia

da Linguagem. Encontramos, já no fim do ensaio, uma assertiva de Benjamin sobre

o tema a que se propõe discutir: a linguagem falada é “o instinto de um movimento

expressivo mimético através do corpo” (PAGET, apud BENJAMIN, 1992, p.226). Isso

se confirma quando pensarmos que, ao desconhecermos uma língua estrangeira,

utilizamos a linguagem do gesto ou do desenho para nos comunicarmos com

alguém, como as personagens do livro O Castelo dos destinos cruzados. A partir da

expressão por gestos, a articulação do som pela voz foi se desenhando, como

mímica, para, depois, se estabelecer como uma linguagem autônoma.

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A discussão de Benjamin sobre a linguagem se concentra na ideia de que a

linguagem funciona como mediadora da relação do homem com seu mundo: “O

nome que o homem dá à coisa assenta no modo como ela se lhe transmite.”

(BENJAMIN, 1992, p.189). Antes de serem nomeadas, as coisas mantêm uma

linguagem muda, sem som e sem nome, cuja magia se traduz na linguagem do

homem. Além do saber da experiência, essa dimensão mística da linguagem

conferida por Benjamin tem sido suprimida por um pensar a linguagem meramente

no seu caráter instrumental e comunicativo, fenômeno que pode ser observado na

substituição do gênero das narrativas orais pelo texto informativo, característico do

jornalismo, conforme expõe no ensaio “O narrador”.

A proposta de Benjamin é de que o homem resgate sua ligação com a

essência espiritual das coisas, a fim de que na linguagem consiga conferir “um olhar

sensível sobre o mundo, procurando o lugar do refúgio do sagrado, ou seja, aquilo

que faz um rosto, uma paisagem ou um objeto nos falar. Ir em busca do invisível que

se esconde e se presentifica na linguagem-imagem das coisas” (SOUZA, 2008, p.

144). Será na infância que Benjamin encontrará espaço para demonstrar este

encontro com a experiência sensível da linguagem, através de uma forma de

pensamento que se constitui por imagens: “para elas (as crianças) palavras ainda

são como cavernas, entre as quais conhecem curiosas linhas de comunicação.”

(BENJAMIN, 2011, p. 272) Aventuremo-nos pelo seu próximo descaminho.

1.3 – Imagem e infância

Solange Jobim e Souza (2008) afirma que, para Benjamin, a imaginação e a

infância funcionam como mediadores entre a experiência sensível e a racionalidade

possível, uma vez que, ao brincarem, as crianças não o fazem gratuitamente ou por

mera diversão, mas organizam e criam representações da realidade, atividades que

levam muito a sério:

A criança, ao inventar uma história, retira os elementos de sua fabulação de experiências reais vividas anteriormente, mas a combinação desses elementos constitui algo novo. A novidade pertence à criança sem que seja mera repetição de coisas vistas ou ouvidas. Essa faculdade de compor e combinar o antigo com o novo, tão facilmente observada nas brincadeiras

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infantis, é a base da atividade criadora no homem. (SOUZA, 2008, p. 147-148)

Benjamin entende que a relação que a criança estabelece com a linguagem

seria a mais pura expressão da experiência original nomeadora, uma vez que ela

mantém uma ligação fiel com a linguagem muda das coisas e procura, através da

brincadeira, dar vida a elas, ou, como queira, conceder-lhes expressividade pela

linguagem. Benjamin considera essa percepção lúdica um modo privilegiado de ver

o mundo, pois a linguagem manifesta-se de forma subversiva em relação ao sentido

das palavras. Podemos perceber em produções literárias voltadas para essa faixa

etária o deslocamento do sentido dicionarizado das palavras em favor de uma

brincadeira com seu significante e significado, como observamos no poema abaixo:

A invenção do cinto Chegar ao cinto foi simples. Antes dele, muita gente sentava e quando ia levantar a calça caía. “Sinto muito, sinto muito” é o que todos diziam. Até que uma criatura inventou de botar uma corda na cintura. Daí em diante, sempre que perguntavam por que sua calça não caía, ela respondia: “Muito cinto, muito cinto”. (SILVESTRIN, 2003, p.14)

O livro É tudo invenção, de Ricardo Silvestrin, apresenta divertidas

explicações para a invenção de assuntos e objetos cotidianos, como o futebol, a

canção, a dança, o amigo. Neste poema, no qual é explicada a origem do cinto, as

duas situações apresentadas emergem do jogo de linguagem entre as palavras

homófonas sinto/cinto, ligação que chama a atenção do leitor sobre a palavra e seu

uso lúdico. A leitura do poema e dos outros desta obra nos convida ao exercício da

inventividade com a palavra, operação essa também proposta por Benjamin: “Ao

elaborar histórias, crianças são cenógrafos que não se deixam censurar pelo

‘sentido’.” (BENJAMIN, 2011, p.70). No entendimento benjaminiano, a leitura e a

escrita são tidas como práticas que devem conduzir o sujeito a produzir a partir do

que lê, sejam palavras ou imagens. Dessa forma, entendemos que, quando está

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lendo, a criança toma parte das imagens que as palavras e as ilustrações lhe

possibilitam e cria para além delas:

Fantasiada com todas as cores que capta lendo e contemplando, a criança se vê em meio a uma mascarada e participa dela. Lendo – pois se encontraram as palavras apropriadas a esse baile de máscaras, palavras que revolteiam confusamente no meio da brincadeira como sonoros flocos de neve. (BENJAMIN, 2011, p.70)

A leitura não é um processo passivo, porém de envolvimento com o texto e,

mais ainda, com a experiência. No excerto acima, as palavras de Benjamin revelam

o que chamaremos aqui de experiência sensível da linguagem, cuja elaboração

discursiva só pode acontecer com e por imagens. Imagens essas que não são

meramente ilustração ou exemplificação do que está sendo exposto, mas que

compõem o pensamento benjaminiano. Como nos apresenta Pernisa Júnior ,

Furtado e Alvarenga (2010), “Transformada em palavra – ou até feita das próprias

palavras -, a imagem torna-se integrante de uma maneira de Benjamin compreender

o mundo.” (PERNISA JR. & FURTADO & ALVARENGA, 2010, p.29). A imagem é o

descaminho (certamente seu principal) para pensarmos a forma como Benjamin

elabora sua discussão filosófica, que pretende, conforme afirmam Pernisa Júnior ,

Furtado e Alvarenga (2010), aproximar “a filosofia e a arte, (através das quais) ideias

e pensamentos vão ganhando movimento” (PERNISA JR. & FURTADO &

ALVARENGA, 2010, p.28). Um dos seus movimentos de escrita é o retorno à

infância, não como uma rememoração autobiográfica de um paraíso perdido

(conceito amplamente difundido ao longo dos tempos acerca da infância), porém

como uma experiência crítica da infância, conforme nos diz Gagnebin (1997), ao

descrever acertadamente o projeto estético-filosófico dessas “memórias”:

Essa experiência é dupla: primeiro, ela remete sempre à reflexão do adulto que, ao lembrar o passado, não o lembra tal como realmente foi, mas, sim, somente através do prisma do presente projetado sobre ele. Essa reflexão sobre o passado visto através do presente descobre na infância perdida signos, sinais que o presente deve decifrar caminhos e sendas que ele pode retomar, apelos aos quais deve responder, pois, justamente, não se realizaram, foram pistas abandonadas, trilhas não percorridas. Nesse sentido, a lembrança da infância não é idealização, mas, sim, realização do possível esquecido ou recalcado. A experiência da infância é a experiência daquilo que poderia ter sido diferente, isto é, releitura crítica do presente da vida adulta. (GAGNEBIN, 1997, p.181)

Outros aspectos abordados por Gagnebin são o da desorientação das

crianças em relação ao mundo “seguro” dos adultos e o do olhar sensível para as

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miudezas e as margens do mundo, o que muitas vezes passa despercebido pelos

mais velhos:

A incapacidade infantil de entender direito certas palavras, ou de manusear direito certos objetos, também recorda que, fundamentalmente, nem os objetos nem as palavras estão aí somente à disposição para nos obedecer, mas que nos escapam, nos questionam, podem ser outra coisa que nossos instrumentos dóceis. (GAGNEBIN, 1997, p.182)

No livro Rua de mão única, estão reunidos os textos nos quais Benjamin

exercita sua experiência crítica da infância. Marcio Selligman-Silva (2010), diz que

“Benjamin ruminou ao longo de sua vida essas lembranças de infância e sobretudo o

universo corpóreo e de imagens dessa fase da vida” (SELLIGMAN-SILVA, 2010, p.

17) Essa citação é aqui necessária para simbolizarmos a experiência cinestésica de

leitura de Rua de mão única. Impossível não nos sensibilizarmos com as reflexões

imagéticas de Benjamin nessa obra que, muito mais que reportar o leitor à sua

infância, possibilita-lhe o encontro com uma experiência sensível da linguagem, o

modo como o universo infantil se relaciona com a linguagem, operacionalizado

através da imagem. Portanto, a imagem para Benjamin, assim como o é para Calvino

e Paz, é uma categoria imbuída de significação autônoma, que só consegue operar

seu sentido a partir dela mesma, pois “seu acabamento estético é a condição de sua

significação” (GAGNEBIN, 2011, p.80). Porém, Benjamin agrega à discussão o

elemento cultural da imagem, vinculando-a ao “contexto em que foi criada e do

contexto mental de quem a frui – seus gostos, instrução, cultura, opiniões,

preconceitos, em suma, sua história” (SALLES, 2008, p. 39). No último relato de

Infância em Berlim por volta de 1900, encontramos a imagem do Concundinha,

personagem de um conto popular recolhido pelos Irmãos Grimm, a quem a mãe de

Benjamin atribuía a falta de destreza do menino Walter, tendo em vista que o “sem

jeito” (Benjamin só descobriu o nome da personagem tempos depois) sempre estava

à espreita, quando o menino quebrava ou deixava cair alguma coisa. Tal imagem,

assim como outras que perpassam a escritura benjaminiana, ultrapassa os limites

fornecidos pela cultura e pela experiência pessoal do filósofo, ao encontrar seu leitor

na poeticidade e na “surpreendência” pregnantes em seus textos.

Benjamin é um pensador poético, um poeta do pensamento por imagens,

exercitando um método cuja lógica e rigor não são externos aos movimentos da

própria escrita. Para ele, a imagem é passível de interpretação a partir de seu

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contexto, e, assim, está imbuída de ambiguidades, de sentidos possíveis e

imprevistos, tal como caracteristicamente constitui-se o discurso literário.

Em seus escritos, Benjamin não sistematizou uma definição para a arte e a

literatura, porém em grande parte de sua produção encontramos uma reflexão sobre

os objetos literários e artísticos, cuja finalidade está em propor linhas de pensamento

que compreendam esses objetos como formas de escrever, ilustrar, encenar, viver a

história da humanidade. Como já afirmado anteriormente, a escritura benjaminiana é

tecida por citações e menções a objetos artísticos de diferentes naturezas, o que a

leva a compor um abrangente mosaico de referências intertextuais. Desse mosaico,

emerge a força da imagem, entendida por muitos de seus estudiosos como o

elemento central da filosofia de Benjamin.

No prefácio de Origem do Drama Barroco Alemão, Benjamin esclarece

questões introdutórias da crítica do conhecimento, e aí encontramos alguns

fundamentos de sua discussão filosófica. A principal delas é a aproximação que

Benjamin propõe, a partir da filosofia platônica, da verdade filosófica com o conteúdo

essencial do belo, o reino das ideias. A tarefa do filósofo está em “praticar uma

descrição do mundo das ideias, de tal modo que o mundo empírico nele penetre e

se dissolva” (BENJAMIN, 1984, p.54), colocando-se como um mediador entre o

trabalho do artista, com quem compartilha o ato da representação, e o do

investigador, com quem divide o interesse em restringir-se ao empirismo.

No âmbito da representação das ideias, Benjamin lembra que elas não “se

representam em si mesmas, mas unicamente através de um ordenamento de

elementos materiais no conceito, de uma configuração desses elementos”

(BENJAMIN, 1984, p.56), ou seja, a ideia é uma categoria que carrega em si os

fenômenos, que, igualmente, contém elementos históricos. A ideia seria uma

interpretação objetiva desses fenômenos, entendida por Benjamin como um

exercício de aprendizagem ascética (BENJAMIN, 1984, p.79)., uma aprendizagem

que visa ao aperfeiçoamento espiritual. No entanto, para a ideia atingir os

fenômenos, é necessária sua representação, acontecida sempre no plano da

linguagem, uma vez que “a tarefa do filósofo é restaurar em sua primazia, pela

representação, o caráter simbólico da palavra, no qual a ideia chega à consciência

de si” (BENJAMIN, 1984, p. 59). A essa altura, a palavra recupera sua dimensão

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nomeadora, pois se liberta de seu caráter significativo. Para Benjamin, o pai de toda

a filosofia é Adão, pois nele a verdade filosófica se constitui como realidade

linguística.

Para Benjamin, a estruturação da ideia filosófica é monadológica,

configuração essa que propõe, como afirmou Leibniz, filósofo que estudou o

conceito, “em cada mônada estão indistintamente presentes todas as demais”

(LEIBNIZ apud BENJAMIN, 1984, p.70). A mônada se constitui de uma unidade

composta por vários corpos, um todo dentro de si mesma, indivisível e não

retroativa. Dessa forma, Benjamin aponta que, nessa estrutura, encontra-se “a

imagem do mundo” (BENJAMIN, 1984, p.70) e que a representação da ideia

consiste na “descrição dessa imagem abreviada do mundo”. (BENJAMIN, 1984,

p.70).

A imagem é produzida pelo artista como uma cifra do mundo das ideias, que,

ao mesmo tempo, é completa, devido ao seu valor universal. Isso se dá,

primordialmente, pela natureza da linguagem literária (e filosófica), que se aproxima

do estatuto da linguagem mítica, cuja força encontra-se na sua imanência e

expressão linguística das coisas:

A imagem possibilita o acesso a um saber arcaico e a formas primitivas de conhecimento, às quais a literatura sempre esteve ligada, em virtude de sua qualidade mágica e mítica. Por meio de imagens – no limiar entre a consciência e o inconsciente – é possível ler a mentalidade de uma época

(BOLLE, 2000, p.43).

As imagens ganham contornos e voz através da arte de narrar, tão cara ao

conceito de experiência desenvolvido por Benjamin. No ensaio O narrador, Benjamin

recupera o “saber arcaico e as formas primitivas do conhecimento” através da figura

do narrador oral, cuja experiência e técnica qualificam as narrativas transcritas para

o papel: “entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem

das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN,

2012, p.214). Para ele, existem dois tipos de narradores orais: o camponês

sedentário e o marinheiro comerciante. Enquanto o primeiro é um profundo

conhecedor do repertório de narrativas tradicionais do lugar onde vive, o segundo se

lança a viajar e traz, em seu retorno, histórias de lugares distantes. O narrador é um

homem sábio e generoso. Ele toca a experiência de seus ouvintes compartilhando

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com eles as histórias que emergiram da experiência por ele vivida ou de quem lhe

confiou os atentos ouvidos.

Na literatura infantil, existem fartos exemplos da presença nos textos da

tradição oral. Tal é o caso do livro O alvo, escrito por Ilan Brenman e ilustrado por

Renato Moriconi, cujo protagonista apresenta grandes semelhanças com o narrador

oral de Benjamin. Neste conto de origem judaico-europeia – vale lembrar, as

mesmas de Benjamin e do autor Ilan Brenman-, há uma personagem, um professor,

que era procurado pelos membros da comunidade onde lecionava para aconselhá-

los, a partir de situações que lhe eram contadas. Toda vez que isso acontecia, o

professor “respondia” às pessoas com uma narrativa que sempre ia ao encontro do

problema. Numa de suas aulas, certo dia, um aluno perguntou ao professor a

maneira como ele conseguia encontrar sempre uma história reveladora para o

problema de quem a escutava. Eis que o professor se lembra de uma história (a

turma inteira vai às gargalhadas) que começa assim:

Há alguns anos, na nossa capital Varsóvia, existia um jovem apaixonado pela arte do arco e flecha. Ele convenceu os pais a lhe pagarem um curso de arqueiro numa renomada escola da cidade. (BRENMAN, 2012, p.17).

O jovem treinou com perseverança e estudou teorias físicas e matemáticas

por mais de quatro anos, até atingir uma técnica apurada. Lançou-se, então, a

participar de competições, uma delas, na cidade de Lublin. Chegando lá, o jovem

deparou-se, perplexo, com um cercado de madeira comprido pintado com mais de

cem alvos marcados no seu centro, na pontuação máxima. Depois de averiguar, de

perto, os alvos, disse em voz alta: “Quem seria capaz de tamanha perfeição, atirar

mais de cem vezes e acertar todas na pontuação máxima?” (BRENMAN, 2012,

p.22). Um menino, de mais ou menos dez anos, ao ouvir a pergunta, lhe respondeu

“Fui eu”, e, mesmo duvidando da resposta, o arqueiro escutou a maneira como o

menino empreendera o feito: “Foi fácil, moço. Primeiro eu atirei todas as flechas e

depois só foi pintar todos os alvos em volta” (BRENMAN, 2012, p.29). Ao final da

narrativa, o professor voltou-se à turma que novamente gargalhava com a resposta

do menino para lhes responder:

Meus estimados alunos, eu sou assim, um pouco do arqueiro e um pouco do menino. Sempre amei estudar, sempre ouvi e contei muitas histórias. Então, as pessoas vêm até mim, me contam suas dificuldades, seus problemas, e eu apenas pinto as histórias em volta

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delas, assim como o menino da história fez. (BRENMAN, 2012, p.31).

Assim como o sábio professor do conto, o narrador oral de Benjamin é

alguém que sabe ouvir e dar conselhos, uma vez que essas práticas reforçam a

natureza mítica proveniente da literatura oral como fator preponderante para

inserção das narrativas no imaginário. Isso remonta à imagem do arqueiro, um

técnico preciso e eficiente em seus resultados, que, depois de muito estudo, domina

a teoria e a prática. A sua sabedoria se constitui, igualmente, da ardileza do menino,

a quem surpreende o arqueiro. O menino representa a experiência sensível da

infância, aquilo que é novo e surpreendente na narrativa e que provoca efeitos ao

ouvinte, como a risada da turma do professor. Ambas as personagens estão

interconectadas na construção ficcional, tecida, como trata Benjamin, como “uma

forma artesanal de comunicação”, uma vez que “ela mergulha a coisa na vida do

narrador para em seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 2012, p.221).

Podemos dizer que, para Benjamin, a narrativa é a mediadora entre a

memória coletiva do povo, o imaginário, e o trabalho manual do narrador. Através da

narrativa, podemos conhecer, na palavra do narrador, a forma como determinado

grupo percebe o mundo. Daí provém a diversidade cultural apresentada nas

narrativas orais, que explicam um mesmo fenômeno natural de diferentes formas,

“suas histórias remetem à história natural” (BENJAMIN, 2012, p.224). Certos

fenômenos, os quais despertam mais curiosidade do homem, como a criação do

mundo e a morte, são mais recorrentes nas diversas mitologias. Além das

indagações do humano em relação à natureza das coisas, percebemos que existem

matrizes de histórias que se repetem em diferentes locais com diferentes

caracterizações da região onde é narrada, como é o caso dos contos populares.

É nesse aspecto matricial dos contos populares, mais precisamente dos

contos de fadas, que Benjamin defende a ideia de que essas narrativas foram os

primeiros conselheiros da humanidade e perduram como as primeiras narrativas

oferecidas às crianças, por recuperarem o tempo da “poesia ingênua”, época na qual

“o homem podia sentir-se em harmonia com a natureza” (BENJAMIN, 2012, p.227),

como a coexistência e a atuação de personagens humanas e animais, em contos

como A Gata Borralheira, quando duas pombinhas brancas e uma árvore ajudam a

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protagonista a ir ao baile oferecido pelo rei para encontrar uma pretendente para seu

filho.

Benjamin revela que essa aproximação do homem com a natureza para

atingir seus objetivos, que presencia o maravilhoso dessas histórias, foi uma forma

encontrada pelo homem de se “defender” das forças impostas pelo mito.

Encontramos episódios do maravilhoso em sequências narrativas primordiais, como

as epopeias gregas, como afirma Marcus Mazzari no prefácio da edição de Contos

maravilhosos infantis e domésticos dos Irmãos Grimm:

“Tempo (o da poesia ingênua), ainda, em que Odisseu percorre a sequência dos desafios narrados por Homero, como o encontro com a feiticeira Circe ou o ciclope Polifemo, episódios que não por acaso revelam fundas afinidades com a esfera do maravilhoso, o que pode ser exemplificado com a astúcia que o menino João põe à prova para, aliado à sua irmã Maria, derrotar a bruxa devoradora de criancinhas (...)” (GRIMM, 2012, p.17).

A relação acima também é estabelecida pelos próprios Irmãos Grimm, no

prefácio do segundo tomo da edição dos contos, publicada posteriormente, em 1815

(a anterior é de 1812). Os autores afirmam que os contos maravilhosos mantêm a

base épica dos mitos, quando comparam, por exemplo, o episódio do

adormecimento, que aparece em A Bela Adormecida, em que a personagem espeta

o dedo no fuso, e no mito da divindade nórdica Brunhilde, que adormece por conta

de um espinho. E continuam: “A base épica da poesia popular assemelha-se ao

verde que se espalha por toda a natureza em múltiplas graduações, que satisfaz e

acalma, sem nunca cansar” (GRIMM, 2012, p.11).

Os Irmãos Grimm acreditavam que a aproximação e a recorrência desses

episódios em diferentes textos (contos maravilhosos e narrativas mitológicas)

serviriam como estudo para remontar cientificamente às origens da poesia popular

alemã. Contudo, expõem que sua proposta de trabalho é de que a própria poesia

dos contos produza efeitos nos seus leitores “que torne alegres aqueles que ela

puder alegrar” (GRIMM, 2012, p.12) e que seus livros sejam destinados à educação

das crianças. Quanto a isso, Jacob e Wilhelm esclarecem (aos pais) que não há

motivos para preocupação quanto à seleção de cenas supostamente impróprias aos

infantes, uma vez que “tudo o que é natural é frutífero” (GRIMM, 2012, p.13) e que

os contos, retomando a ideia da poesia ingênua advinda da natureza, são “um

testemunho do nosso coração. As crianças apontam sem medo para as estrelas;

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outros, seguindo a crença popular, veem nisso uma ofensa contra os anjos”

(GRIMM, 2012, p.13). O ideal da poesia ingênua e os apontamentos de Benjamin

em O Narrador se vinculam à concepção religiosa elaborada pelo teórico acerca da

linguagem, especialmente no que se refere à linguagem adâmica. Para cumprir com

sua função nomeadora, o homem precisa ser íntimo e cúmplice da natureza. Ou,

como disse o poeta Bartolomeu Campos de Queirós, “legendar o universo, eu bem

sei, é o primordial ofício humano” (QUEIRÓS, 2007, p.13). Dessa maneira, seria

possível “a reconstrução de uma língua mágica e integradora cuja essência está

fragmentada na linguagem humana” (MAIO, 2008, p.1). O ideal benjaminiano de

linguagem se materializa na literatura, cuja força criadora permite lê-la e interpretá-la

a partir dos múltiplos sentidos que apresenta.

No livro Para ler em silêncio, o poeta mineiro Bartolomeu Campos de Queirós

se propõe a percorrer, num ensaio escrito em prosa poética, os caminhos que o

conduzem à criação poética e, dessa maneira, ritualiza, à maneira benjaminiana, os

pressupostos para elaboração de uma compreensão filosófica sobre a linguagem e a

literatura. A trajetória do escritor passa pela criação da palavra, na conhecida

passagem bíblica do Gênesis “no princípio era o verbo”: “A palavra realizou o que

anunciava e transformou a desordem em beleza e movimento. E em sete dias tudo o

que a nossa palavra alcança nos foi dado de presente” (QUEIRÓS, 2007, p.11). No

entanto, para se chegar à palavra, é preciso estar íntimo com as coisas através do

olhar e da fantasia, entendida pelo autor como o que há de mais profundo no ser

humano: “Ela é minha crença, meu norte, meu eixo. Tudo o que penso é.”

(QUEIRÓS, 2007, p. 18). A fantasia, quando acompanhada pelo silêncio

contemplativo, se faz mais presente e profícuo no ser. Na infância, o narrador-

menino contempla a natureza e a questiona:

E abraçado pelo silêncio, órfão de explicações, eu menino me indagava: - Quem despertou o desejo do açúcar no coração da formiga? - Em qual escola ensinaram a abelha fabricar o mel? - Quem imprimiu o arco-íris nas asas da borboleta? - Quem é o professor de canto dos pássaros? (QUEIRÓS, 2007, p. 20)

Calvino, Paz e Benjamin, à luz de sua produção, seja literária, crítica ou

filosófica, apresentam a imagem como fator constituinte da leitura que fazem do

mundo. Dois desses autores, Calvino e Benjamin, mencionam memórias de sua

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infância para reverenciá-la como um modo privilegiado de percepção estética das

coisas e de construção de imagens poéticas. Os exercícios poéticos de Manoel de

Barros, Ricardo Silvestrin e Bartolomeu Campos de Queirós, além dos contos de

fadas também mencionados revelam que, ao longo dos tempos, a literatura para a

infância tem se valido da sensibilidade característica dessa faixa etária para fazer

uso da palavra nas suas múltiplas camadas de sentido e de sensações. No capítulo

que segue, apresentamos o projeto estético do livro Os lobos dentro das paredes, de

Neil Gaiman e Dave Mc Kean, no intuito de analisar a sua construção imagética, à

luz dos conceitos e das reflexões que até aqui mobilizaram nossa atenção.

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CAPÍTULO 2: UMA CIFRA DO MUNDO DENTRO DAS PAREDES

Os lobos dentro das paredes, escrito pelo inglês Neil Gaiman e ilustrado por

Dave McKean, é um livro de literatura infantojuvenil que conta a história da família

de Lucy, a protagonista, diante de uma ameaça: “Se os lobos saírem de dentro das

paredes, está tudo acabado” (GAIMAN, 2006, p.11). Lucy mora com os pais e o

irmão mais novo, e, já nas primeiras páginas do livro, percebe-se que existe um

distanciamento entre a protagonista e os outros habitantes da casa, sempre

envolvidos em tarefas de trabalho (mãe e pai, ao que parece) e de lazer ou escolar

(o irmão, jogando videogame ou fazendo a lição de casa). O isolamento de Lucy

aparece quando ela escuta um barulho, vindo de dentro das paredes:

Figura 1 - Página 9 do livro Os lobos dentro das paredes

Como apresentado acima, a descrição dos “ruídos” escutados por Lucy é

sinestésica, com sugestões sonoras e visuais que aguçam a imaginação de Lucy (e

do leitor também). A expressão da menina na ilustração revela que o conflito

narrativo está por acontecer, é iminente: trata-se de ruídos das folhas ao vento, dos

estalos de uma fogueira em chamas, porém são ruídos secretos, ocultos, servis, de

alguém que está se contendo num pequeno espaço. Todos os adjetivos insinuam o

movimento (in)tenso dos lobos por dentro das paredes.7 Em seguida, quando, no

7 Em atividade realizada informalmente com cinco crianças de 10 a 12 anos, a interpretação foi de

que os ruídos revelam que os lobos estariam agitados, preparando-se para atacar naquele exato momento, “agora”. Segundo as crianças, os lobos ocupavam um pequeno espaço e estavam “apertados” e “abafados” (alusão ao adjetivo “amarrotados”). Também foi mencionado o fato de que

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meio da noite, Lucy escuta novamente os ruídos, podemos perceber o mesmo

movimento sonoro da repetição do fonema /r/ na descrição das ações dos lobos

dentro das paredes:

Figura 2 - Página 13 do livro Os lobos dentro das paredes

Na frase que se segue, temos um exemplo de aliteração, que consiste na

repetição de fonemas consonantais iguais ou semelhantes no início de várias

palavras ou sílabas próximas, em uma mesma frase ou verso: “paredes planejando

seus planos lupinos”. Os efeitos e figuras de linguagem aqui apresentadas até então

– metáfora, sinestesia e aliteração – e outros que serão introduzidos mais adiante,

como ironia e polissíndeto, imprimem o ritmo da própria construção narrativa, uma

vez que estimula o leitor a seguir na leitura e colaboram como pontos de suspense

ao longo da história.

Lucy consulta os outros membros da casa - o pai, a mãe e o irmão mais novo

– a fim de verificar se eles também escutam os ruídos dos lobos, mas todos repelem

sua ideia, dizendo outras coisas e acrescentando que, se “os lobos saírem de dentro

das paredes, tudo está perdido”. Há aqui um confronto entre duas visões: a dos

adultos, regida por padrões de racionalidade, e que é assimilada pelo filho mais

novo, e a de Lucy, que imagina o que está além do esperado. O desdém dos

membros da família representa a indiferença pela imaginação infantil, guiada pelos

princípios das sensações e das emoções (vide a descrição dos ruídos). Como

exemplo, apontaremos o diálogo do pai com a filha conforme a página abaixo:

os lobos queriam fazer uma surpresa para os humanos da casa, e que estariam com fome e sede, e, por isso, não queriam esperar tanto para sair dali.

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Figura 3 – Página 15 do livro Os lobos dentro das paredes

O pai se reporta a Porquinho de Pelúcia, único companheiro de Lucy e a

quem ela cochicha suas opiniões e com quem as compartilha. Porém, hesita ao

tentar completar a frase, desprezando-o, “é só um bichinho de pelúcia”. Também diz

que a filha tem uma “imaginação muito fértil”, o que, na ocasião, não serve como

elogio, porém como argumento para ter sua fala desconsiderada.

O irmão mais novo de Lucy repete os ensinamentos da escola, onde o “Seu

Wilson” ensina (grifo meu) que “se os lobos saírem de dentro das paredes, está tudo

acabado” (GAIMAN, 2006, p.17). A frase é ambígua, pois tanto pode ser interpretada

como um acontecimento que quase não merece crédito, como deixar a suspeita de

que de fato existe um grande perigo na possibilidade de haver “lobos dentro das

paredes”. Na página seguinte, temos uma inspiração imaginativa do menino,

quando recria a imagem, em chave humorística, dizendo que são “morcegos dentro

das paredes”:

Tenho que ficar atento para quando dormir deixar o pescoço de fora no caso de um deles ser um morcego vampiro. Aí, se ele me morder, vou poder voar, dormir em um caixão e nunca mais vou ter que ir à escola novamente. (GAIMAN, 2006, p.18)

Lucy acha tudo uma “triste demonstração de ignorância” (GAIMAN, 2006,

p.18) e, ao deitar-se, não escuta o barulho dos lobos. Porém, ao adormecer, há um

“rosnado e um uivo, uma batida e uma queda e...os lobos saíram de dentro das

paredes.” (GAIMAN, 2006, p.19-20). As páginas duplas do livro apresentam o

momento em que ocorre o ataque dos lobos. A imagem induz o movimento dos

animais, os quais parecem estar em alta velocidade, mantendo os olhos fixos e

tomados de tensão e agressividade (estão amarelados). Em páginas anteriores, os

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lobos aparecem como desenhos inscritos nas paredes e, nestas páginas, as

imagens nas paredes ganham vida (o traço grotesco dos lobos é o mesmo utilizado

nos desenhos anteriores).

Figura 4 - Páginas 20 e 21 do livro Os lobos dentro das paredes

(páginas 20 e 21)

F

A partir de então, a família sai de sua casa e passa um dia e duas noites

(contando a que tiveram de fugir) nos fundos do jardim. O desespero da família

fomenta a imaginação daqueles moradores antes regidos pelos padrões da

racionalidade, estimulando a produção de planos mirabolantes para morar em outros

lugares, como, por exemplo, o Círculo Ártico, onde as casas são feitas de gelo e

neve, e não há nada além de ursos polares e focas por centenas de quilômetros, diz

o pai; o Deserto do Saara, onde as paredes são tecidos coloridos que tremulam com

o vento quente e não há nada além de camelos e raposas por milhares de

quilômetros, diz a mãe; ou o espaço sideral, onde poderiam morar numa estação

orbital do espaço, onde há paredes de metal com luzes que piscam e brilham e nada

além de foosles e esquossuques por bilhões de quilômetros, diz o irmão de Lucy. No

entanto, Lucy é a única que teima em querer voltar para dentro de casa,

principalmente porque Porquinho de Pelúcia lá permanecera.

Figura 5 – Página 25 do livro Os lobos dentro das paredes

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Atrás da personagem, cujo semblante parece pensativo, projeta-se a imagem

de seu pensamento numa das árvores do jardim, a de que um lobo estaria

devorando o seu Porquinho. Lucy decide entrar dentro da parede para resgatá-lo em

seu quarto, onde tinha visto um enorme lobo dormindo em sua cama.

Ao retornar para o jardim, sua mãe lhe chama a atenção para o perigo que

correra: “- Eu falei que iria comprar um novo (grifo do texto) – disse a mãe. - Um

que não fosse rosa e novo e não encardido. – Foi por isto que eu voltei para buscar

meu porquinho (grifo do texto) – replicou Lucy.” (GAIMAN, 2006, p.31). Mais uma

vez, há indiferença da mãe em relação à imaginação afetiva da filha.

No outro dia, Lucy permanece com seu pai no jardim, enquanto sua mãe e

seu irmão foram para o trabalho e a escola, respectivamente. O pai tocava tuba e

Lucy lia guias de viagens. Na ilustração, o mapa que está sendo lido por Lucy se

expande pela página do livro, o que pode ser interpretado como metáfora da fantasia

que escapa da realidade da personagem, questão existencial de Lucy durante toda a

narrativa. A própria ação de uma criança lendo guias de viagens por si é uma

metáfora, uma vez que o termo “viagem” muitas vezes é relacionado à imaginação e

ao ato de ler. O guia de viagem é uma fonte a qual a personagem recorre para

construir suas próprias “viagens”.

Figura 6 – Página 32 do livro Os lobos dentro das paredes

No ambiente fora da casa, quando se encontram para jantar, os integrantes

da família que antes contestavam a imaginação “fértil” de Lucy, agora se colocam a

pensar em lugares – bastante inusitados, como uma ilha deserta, um balão de ar

quente, uma casa da árvore – onde poderiam morar e onde a ameaça de lobos não

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estaria presente. Nesse caso, a fantasia dos pais parece remeter a uma fuga da

realidade, não se convertendo em inspiração criativa para o enfrentamento dos

problemas. A única que se dispõe a voltar para a casa, é Lucy. Nesta passagem e

em outras, o narrador da história utiliza o recurso da ironia, através da fala das

personagens. Mais adiante, quando o pai, a mãe e o irmão mais novo vão

questionar Lucy da sua “absurda” ideia de voltar com a repetição da fala “O quê?”, o

narrador insere mais uma personagem, a Rainha da Melanesia,8 que “havia passado

para ajudar com a jardinagem” (GAIMAN, 2006, p. 35). O recurso da ironia, neste

livro, vem acompanhado da ideia do absurdo, que quebra a expectativa, a

convencionalidade, a verossimilhança da narrativa. É um belo exemplo de uma

lógica instaurada pela construção de imagens, como apontado por Octavio Paz,

quando diz que a imagem reconcilia ideias que, pela lógica racional das coisas, são

contrárias ou absurdas. O aparecimento instantâneo da personagem da Rainha,

cujas mãos com luvas amarelas aparecem anteriormente no canto inferior esquerdo

da ilustração da página 32 (ver acima), corrobora para que se diga que, além do

texto, as ilustrações do livro reforçam o teor irônico da narrativa.

Lucy consegue, finalmente, convencer sua família a voltar para casa,

invocando que, naquele frio, não poderiam ficar, e que os lobos estavam dentro da

casa, e não dentro das paredes. Depois de rastejarem por dentro das paredes, todos

viram a desordem que os lobos estavam fazendo, depredando seus objetos

pessoais mais queridos:

Figura 7 - Página 42 do livro Os lobos dentro das paredes

8 A Melanésia (palavra de origem grega que significa "ilhas dos negros") é uma região da Oceania, no

extremo oeste do Oceano Pacífico e a nordeste da Austrália, que inclui os territórios das ilhas Molucas, Nova Guiné, ilhas Salomão, Vanuatu, Nova Caledônia e Fiji.

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Pode-se relacionar a bagunça que os lobos fazem dentro da casa como a

desestabilização da própria família de Lucy. Se antes as personagens viviam em

ambientes e condições bastante confortáveis, quando os lobos tomam conta de seu

ambiente, ocorre, também, a desestruturação do pensamento das personagens.

Outro aspecto que pode ser interpretado como uma crítica ao apego à materialidade

é o fato de que as personagens se mobilizam para entrar na casa somente quando

enxergam que seus bens mais estimados estão sendo tomados por animais

selvagens. “Armados” com pés de uma velha cadeira, a família adentra a casa, e,

empreendida a tarefa, os lobos se mostram tão apavorados quanto os humanos na

ocasião anterior: “E quando as pessoas saem de dentro das paredes – berrou o

maior e o mais gordo de todos os lobos, se livrando da tuba -, está tudo acabado!”

(GAIMAN, 2006, p. 49)

Os lobos fogem, e tudo supostamente volta ao normal, até que Lucy repara

um evento estranho. Ela escutou novamente “os ruídos apressados, alvoroçados,

apertados e crepitantes” e, numa noite, ouviu o que parecia ser um ruído de um

elefante tentando não espirrar. Novamente, Lucy pediu conselhos ao seu Porquinho

de Pelúcia: “- Você acha que eu devo contar a eles – perguntou ela – que nós temos

elefantes vivendo dentro das paredes de nossa casa? – Eu tenho certeza de que

eles logo descobrirão – respondeu o Porquinho de Pelúcia para Lucy” (GAIMAN,

2006. p. 56-57). A narrativa encerra em clima de suspense:

Figura 8 - Página 58 do livro Os lobos dentro das paredes

Como se pôde perceber, a narrativa termina com o início de um novo ciclo, de

uma nova ameaça, agora, de “elefantes dentro das paredes”. Assim como em outras

produções literárias do escritor Neil Gaiman, Os lobos dentro das paredes recupera

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características das narrativas de iniciação da infância, como os contos de fadas. Ao

retomar a figura do lobo, bastante conhecida por histórias como Chapeuzinho

Vermelho e Os três porquinhos, configura-se a personificação do medo, próprio da

existência humana. O lobo é um elemento de instabilidade na narrativa, uma vez

que, se os lobos saírem das paredes, “tudo está acabado”.

O narrador da história adota o foco narrativo de observação dos fatos,

fazendo uso da terceira pessoa, porém, narra a partir da perspectiva da personagem

Lucy, desde o início do enredo: “Lucy andava pela casa.” (GAIMAN, 2006, p.7). Ao

longo da narrativa, o narrador concede voz às personagens da história, através do

uso do discurso direto, de certa forma, descrevendo e desvendando o pensamento

de cada uma das personagens. Quando temos a voz do narrador, a fonte está

grifada em negrito, e, quando há fala das personagens, a fonte do texto é outra, e,

em contraste com a fonte em negrito, lembra os desenhos inscritos nas paredes.

Quando há o discurso direto, são esboçados balões, como os de Histórias em

Quadrinhos.

No que concerne à imagem visual do livro, as ilustrações de Dave Mc Kean

endossam a atmosfera fantasmagórica da narrativa, tendo as personagens humanas

traços angulares e sem contornos, confrontados com traços grotescos e bem

definidos dos lobos. A técnica de ilustração mistura pintura e fotografia, esboço e

colagem, que converge muito com a narrativa, que mescla imagens insólitas a

imagens realistas. As cores são em tons pastéis, quando a família está dentro de

casa, e em tons de azul e preto, quando permanecem fora dela, e o jogo de sombras

nos ambientes reforça a atmosfera de mistério. O projeto gráfico do livro fortalece a

imagem do seu texto escrito, uma vez que as palavras mais significativas são

grifadas em negrito e em fonte mais graúda, além de sua disposição ao longo da

página, que obedece o ritmo da narrativa contada pela ilustração. A diagramação

das ilustrações também é conduzida pela importância daquele episódio ilustrado na

trama, como, por exemplo, em uma sequência de pequenas ações da personagem,

no caso, quando Lucy pega seu Porquinho dentro de casa, retratadas em pequenas

cenas numa mesma página, estética que se reporta às histórias em quadrinhos. Neil

Gaiman produz roteiros de histórias em quadrinhos, tendo em Sandman sua obra-

prima, e a parceria com Dave Mc Kean se estende ao desenho de capas de revistas

de Sandman.

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Figura 9 - Página 29 do livro Os lobos dentro das paredes

Lucy é uma personagem profícua para pensarmos a relação da infância com

o mundo. Ela é a única da casa que percebe a ameaça dos lobos, toma-a com

seriedade, apesar da descrença dos outros membros da família. A relação de Lucy

com o mundo é orientada pela sensibilidade, “tomada a sério”, ou seja, transformada

num modo de agir inquietante, tomado de perplexidade, que não se conforma com

as soluções simples e enganadoras.

Gaiman ambienta seu conflito no contexto familiar, o que favorece a

identificação com o leitor infantil. Neste aspecto, Os lobos dentro das paredes se

assemelha muito a outro livro de Gaiman, Coraline. Ambas as protagonistas – Lucy

e Coraline – divergem do ponto de vista de seus pais, sendo este episódio o

propulsor para os seguintes. No caso de Coraline, a menina é tentada a viver em

outro mundo, atrás de uma das portas de sua casa, em que há outro pai e outra

mãe, supostamente perfeitos. Lucy é quem percebe o fator de instabilidade em

morar naquela casa, e, em ambas as situações, a família é apresentada como o

espaço de acolhimento, de segurança diante dos perigos, apesar das diferenças

entre as pessoas da própria família. Sejam lobos, elefantes, rinocerontes ou animais

quaisquer, vivemos rodeados de fatores de instabilidade em nossas vidas. Dessa

forma, a narrativa desmistifica a certeza e o compromisso com um “final feliz”.

Neil Gaiman é reconhecido como um autor que trata de temas pouco

apresentados na Literatura Infantil. Suas obras pertencem ao gênero “terror infantil”,

muito produzido no cinema, em filmes dos diretores Tim Burton (A Fantástica

Fábrica de Chocolate, A Noiva Cadáver, Frankenweenie), Gil Kenan (A Casa

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Monstro) e Henry Selick (O Estranho Mundo de Jack, Coraline – baseado no livro

homônimo de Gaiman - e ParaNorman). Ainda hoje o terror é um tema considerado

“pouco adequado” nos livros para crianças, permanecendo suas produções voltadas

à juventude. Gaiman resolve (com genialidade) a problemática a partir da construção

imagética de seu texto, que evoca imagens insólitas, sendo a principal delas, a de

lobos dentro das paredes.

O conflito narrativo se instaura a partir da situação insólita, deixando-a em

suspense até sua resolução. Os estudos literários consideram o insólito um macro-

gênero (GARCIA, 2008), caracterizado por TODOROV (1969) como estranho, em

que os fatos irreais podem ser explicados de forma natural. Os processos verbais

descritos por Todorov são encontradas no livro, como o uso do pretérito imperfeito

“Lucy andava pela casa” (GAIMAN, 2003, p.7) e verbos modalizadores do discurso

“Lucy sabia que tipos de coisas faziam ruídos assim dentro das paredes de velhos

casarões, então correu e contou para a mãe” (GAIMAN, 2003, p.10). Outras marcas

linguísticas, como o uso de reticências para criar expectativa e efeito de suspense

para o acontecimento da próxima página “E no meio da noite, um rosnado e um

uivo, uma batida e uma queda e... (GAIMAN, 2006, p.19), frases declarativas e uso

de orações coordenadas “Ela rastejou pela casa atrás das paredes, passou pelas

escadas, subiu por dentro delas, para a parede de seu quarto” (GAIMAN, 2006,

p.27) e uso de advérbios de modo: “Lucy saiu da parede por atrás do quadro que

fica em cima de sua cama, desceu cuidadosamente, silenciosamente, e pegou

Porquinho de Pelúcia do chão, e deu nele um abraço. (GAIMAN, 2006, p.29).

Pela definição proposta por Todorov (1969), apresenta-se a problemática,

própria do gênero do insólito, advinda da ambiguidade oferecida pelo texto: o que

seria uma explicação natural para os fenômenos/acontecimentos produzidos pela

construção imagética do texto? Ou, especificamente, existe uma explicação natural

para o fato de “Se os lobos saírem das paredes, tudo está acabado”? Para Lucy, tais

dúvidas não se colocam, pois trata-se de uma dimensão mais complexa da

percepção da realidade que só a imaginação criadora é capaz de indagar. Cabe-

nos, agora, no próximo capítulo, descobrirmos o que essas imagens suscitam nos

leitores a quem apresentamos Os lobos dentro das paredes.

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CAPÍTULO 3: LENDO PARA ALÉM DAS PAREDES

As atividades planejadas, desenvolvidas e aplicadas permitiram verificar a

recepção do livro Os lobos dentro das paredes pelas crianças, naqueles aspectos de

interesse desta pesquisa, sobretudo no que se refere às articulações entre as

construções imagéticas da obra e as formas de significação da experiência de

leitores-criança. O trabalho prático transcorreu no período dos meses de agosto a

outubro do ano de 2012, em cinco encontros de 1h30min cada, no contraturno das

atividades escolares daquele grupo, constituído de cinco crianças leitoras do 5º ano

do Ensino Fundamental de escola da rede municipal de Cachoeirinha.

A instituição de ensino onde foi realizada a pesquisa fica em área central do

Município, próxima à sua avenida principal. No entanto, sua localização é fronteiriça

com dois vilarejos que têm características sociais bastante distintas: para o lado

direito da estrutura da escola, atrás de sua rua, que é sem saída, existe uma vila,

cuja população é de baixa renda (a vila surgiu como ocupação ilegal) e, para o lado

esquerdo do terreno, há um bairro, com população de classe média. Ao longo do

tempo – a escola tem 48 anos de funcionamento - a comunidade escolar foi se

modificando, e abarcando, cada vez mais, as crianças oriundas da comunidade

periférica e menos as do bairro, uma vez que essas famílias foram tendo menos

filhos ou estes já tinham crescido. Na mesma rua, existe um estabelecimento de

ensino particular que atende, prioritariamente, alunos cujas famílias têm maior poder

aquisitivo. Dessa maneira, de acordo com depoimento da diretora, a clientela vem

diminuindo ao longo dos anos, contando atualmente com o número de 300 alunos,

distribuídos em 12 turmas (seis no turno da manhã e outras seis no turno da tarde),

da Pré-Escola ao 5º ano do Ensino Fundamental.

A proposta pedagógica da escola se constitui de projetos desenvolvidos de

acordo com as demandas levantadas pelo grupo de professores e equipe diretiva.

Um dos projetos mais relevantes foi o “Gentileza gera gentileza”, em que foram

confeccionadas camisetas com os dizeres do Profeta Gentileza9, os quais também

9Marcio José Andrade da Silva, mais conhecido como Profeta Gentileza, foi uma personalidade

urbana carioca, espécie de pregador, que se tornou conhecido a partir de 1980 por fazer inscrições

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foram mote para produções escritas, orais e visuais dos alunos da escola. O projeto

teve por objetivo retomar atitudes de cordialidade dentro e fora do ambiente escolar

e estabelecer melhores vínculos entre professores, alunos e outros agentes da

comunidade escolar. No âmbito da leitura literária, a escola realiza anualmente a sua

Feira do Livro – evento em que a pesquisadora apresentou relato de experiência de

sua pesquisa de Mestrado para a comunidade escolar –, recebe um autor na escola

pelo Programa de Leitura Livro Lido, da rede municipal de Cachoeirinha e mantém

projetos como a Hora do Conto semanalmente.

Um dos entraves da pesquisa, em parte já esperado, por tratar-se de uma

atividade não obrigatória, foram as constantes faltas dos alunos aos encontros. No

primeiro dia, estiveram presentes cinco alunos e, a partir do segundo, apenas três,

os quais terão seus textos aqui analisados como dados da pesquisa, e serão aqui

identificados como Laura, Bruno e Miguel. Todos os encontros foram gravados em

vídeo e áudio. A realização da pesquisa dependeu de sua aprovação prévia no

Comitê de Ética desta Instituição, e o atendimento às exigências do órgão, tais como

a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos responsáveis

pelas crianças, a autorização da escola, o projeto de pesquisa com a descrição

minuciosa dos procedimentos e os instrumentos utilizados e demais trâmites

contidos nos seguintes documentos: Resolução do Comitê de Ética em Pesquisa do

Uniritter (CEP) 01/2010 e 196/96 do CNS (Conselho Nacional de Saúde). A

Secretaria Municipal de Educação também requereu a aprovação prévia do projeto

de pesquisa para aplicá-la na escola, o que foi encaminhado previamente ao início

dos encontros com as crianças. Em duas ocasiões, a pesquisadora visitou a escola,

a fim de explanar à equipe diretiva a proposta oferecida e encaminhar os trâmites

necessários à sua realização no ambiente escolar.

Laura é a mais velha do grupo, tem 13 anos. Mora com a mãe, avó e quatro

irmãs (é a caçula) numa casa numa vila periférica não muito próxima à escola (há

outra escola municipal mais próxima de sua casa). Suas histórias favoritas são as de

terror e de aventura, porém ela também cita outras, como lendas, narradas por sua

avó. Apresenta maior repertório de leitura que seus colegas, ao referenciar, desde o

peculiares sob um viaduto situado na Avenida Brasil, na zona portuária do Rio de Janeiro, onde andava com uma túnica branca e longa barba.

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primeiro encontro, livros literários que retira na biblioteca. Alguns deles: Atrás da

porta azul, de Caio Riter, com a qual aprendeu que a imaginação pode ser algo que

faça divertir; O Flautista de Hamelin, conto popular dos Irmãos Grimm, que ensina

que “é preciso pensar bem antes de se fazer alguma coisa”; e livros de poesia,

percebida pela aluna como uma brincadeira com as palavras. Laura esteve presente

nos três primeiros encontros e considerou, até o fim, que Lucy estava “imaginando

que havia lobos dentro das paredes”, ao contrário de seus colegas.

Miguel tem 11 anos, reside com seu pai e sua mãe em uma casa na vila

periférica citada anteriormente. Tem admiração por histórias de terror e de

suspense, citando os livros da escritora Paula Mastroberti como exemplo de

excelência. Inclusive, “decepcionou-se” com o livro, ao contar que o conflito narrativo

não era tão violento e sangrento como nos livros e filmes que estava habituado a ler

e a assistir. Dentre as coisas que gosta de fazer, destaca-se andar de skate, que

usa como meio de locomoção até a escola. Miguel esteve presente em todos os

encontros.

Bruno tem 10 anos, é o mais jovem. Reside com sua avó na vila periférica. Na

entrevista, citou filmes de aventura como 2012 e Piratas Pirados dentre seus

favoritos e o livro Marcelo, Alê, Ju e eu, da escritora Jane Tutikian. Os gêneros

preferidos de histórias são as de aventura e de suspense. Bruno esteve presente em

todos os encontros.

Os encontros tiveram de ser realizados em salas diferentes ao longo de seu

desenvolvimento, dependendo da disponibilidade do espaço físico da escola. Ao

chegarem, os estudantes tomavam conhecimento das atividades a serem realizadas

naquele encontro, sempre iniciada com a leitura silenciosa e individualizada de

trechos do livro, a partir do terceiro encontro, uma vez que os dois primeiros foram

para a apresentação do grupo através de entrevista semi-estruturada e leitura da

capa do livro. Após a leitura, as atividades, as quais envolveram produções orais,

escritas e visuais, foram propostas. Nas discussões orais, oportunizadas através de

perguntas feitas pela mediadora, o grupo participou ativamente. Porém, em alguns

momentos, verificou-se que os meninos tinham discursos afins (Miguel se mostrou

mais autônomo e, de certa forma, mais contundente nas suas convicções que

Bruno) e frequentemente se opuseram às conclusões de Laura, momentos em que

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foram necessárias intervenções da mediadora de leitura, no sentido de que

respeitassem a manifestação do colega e a diversidade de hipóteses fomentadas

pela leitura dos textos. Durante as produções escritas, todas elas realizadas

individualmente, os alunos mantiveram uma conduta adequada em sala de aula,

interagindo quando tinham dúvidas em relação à ortografia de uma palavra ou algum

detalhe da história. Nas produções visuais, dois alunos demonstraram pouca

desenvoltura com a atividade de desenho. Isso se deu, talvez, por que Miguel

demonstrava grande habilidade, enquanto que seus colegas, não. Em uma das

atividades deste tipo, Bruno pediu a Miguel que desenhasse o lobo para ele, pois

não saberia como fazê-lo.

Apesar de se tratarem de sujeitos os quais etariamente se encontram em fase

de transição, entre infância e adolescência, esse fato não comprometeu a relação

estabelecida entre a construção imagética do texto e a experiência da infância, posto

que esta é engendrada pela percepção sensível do texto, independentemente da

idade do leitor. A diversidade de experiências vividas pelas crianças na realidade em

que se inserem por certo tem reflexos no modo de interação com os produtos

simbólicos, mas para este trabalho não importou a reflexão sobre possíveis

condicionantes, seja no âmbito social, econômico ou das relações familiares, das

representações elaboradas por esses sujeitos. O interesse está, efetivamente,

naquilo que manifestam no evento da leitura e, nessa medida, nas relações daí

derivadas com a própria experiência.

A proposta de trabalho almejou vincular a forma da obra infantojuvenil (que

visa prioritariamente a esse público, mas enquanto arte literária ultrapassa limites

etários) a um pensamento por imagens, uma epistemologia sensível, daí a escolha

da obra O lobo dentro das paredes, que formula, desde o título, o conflito narrativo a

partir de uma imagem, que, conforme afirma Octavio Paz, concentra “realidades

opostas, indiferentes ou distanciadas entre si” (PAZ, 1982, p.120), e cria uma nova

unidade de significação, que provoca a ordem e o pensamento racional das coisas.

Para além da construção textual e da prefiguração de um leitor ideal, este trabalho

optou por analisar a recepção de leitores reais, buscando refletir sobre os efeitos

efetivamente produzidos nos sujeitos envolvidos no estudo, a partir das

manifestações e produções elaboradas como respostas aos exercícios de leitura

propostos.

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A seguir, descrevemos pormenorizadamente as atividades realizadas em

cada um dos encontros.

Encontro 1 – 29 de agosto de 2012

No primeiro momento, foi esclarecido aos alunos a origem e o conteúdo da

pesquisa, bem como a sua utilização como parte prática de estudos de Mestrado da

mediadora de leitura, e também o conceito de “histórias” (como ficções e narrativas

em geral, não sendo necessariamente escritas em livros, podendo ser, também,

filmes, contos orais), que serviria para as perguntas que se seguiriam numa

entrevista oral e compartilhada pelo grupo. Foi realizado, então, um questionário

semi-estruturado (ANEXO A) com os participantes da pesquisa sobre suas práticas

de leitura e escrita. O questionário foi aplicado em grupo, e as perguntas fluíram de

acordo com as respostas dos alunos (sem tempo previamente estimado).

O grupo de crianças revelou hábitos que não divergem daqueles já

conhecidos, como jogar futebol, mexer no computador e navegar na internet, ver TV,

passear no shopping e estudar. Observou-se, inicialmente, que se tratava de um

grupo com referenciais de leitura bastante diversos, oriundos do hábito de retirar

livros da biblioteca da escola uma vez por semana e do acervo pessoal (citado por

Miguel). O tema principal trazido pelo grupo foi as narrativas de terror e de

suspense, na sua maioria, filmes. Miguel mencionou filmes como Atividade

Paranormal e Madrugada dos Mortos – diga-se de passagem, filmes com

classificação etária mínima de 16 anos – como exemplos do que seria uma “boa

história de terror”. Depois da afirmação de Miguel, que, no grupo, instaurou uma voz

de autoridade, os colegas concordaram com a sua opinião. Outros gêneros referidos

foram as histórias de aventura, de suspense, de mistério e de amor. Quando

perguntados sobre o que faziam quando abriam um livro, num primeiro momento, os

alunos ficaram um pouco confusos com a pergunta, que precisou ser explicada pelo

exemplo de como eles escolhiam livros para pegar emprestado da biblioteca. Foram

citados, neste “ritual”, “a emoção de ler um livro e suas imagens, e escolher pelo

título e pelo texto que está atrás do livro (contracapa)” (Bruno), “ler o título, as três

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primeiras páginas e ver se ele é grande” (Laura) e “ver a capa e folhear o livro para

ver se a história é boa” (Miguel).

Ainda que um pouco tímido, o que é normal para o primeiro encontro, o grupo

correspondeu às expectativas, ao mostrar engajamento com a proposta

desenvolvida. Mostraram-se engajados na ideia de participarem de uma atividade

extracurricular, ainda mais, por se tratar de uma oficina de Literatura (essa foi a

nomenclatura comentada pela supervisora da escola, ao conclamá-los a participar).

Um detalhe, em especial, chamou mais a atenção da pesquisa: o fato de o grupo ter

prontamente entendido o conceito do termo “histórias” como produções narrativas

em geral, e mencionar, inclusive, histórias pessoais, como a de escolha do nome

pelos pais, como uma história que lhes foi transmitida.

Encontro 2 – 05 de setembro de 2012

No segundo encontro, foi analisada a capa do livro e, a partir do que viam, foi

realizado um levantamento de hipóteses no quadro: A partir da imagem da capa,

que história vocês acreditam que será contada no livro?

Figura 10 – Capa do livro Os lobos dentro das paredes

As hipóteses dos participantes foram as seguintes: a personagem desenha

lobos nas paredes; existe uma casa mal-assombrada por lobos; a personagem

imagina que ela desenha lobos nas paredes; aparece na imagem uma “troca de

olhos”, que seria uma troca de almas; os olhos chamam mais a atenção na capa,

eles são feios, monstruosos, assustadores, estranhos e raivosos. Durante esse

momento, houve uma discussão entre Miguel e Laura, uma vez que Laura defendia

que a menina imaginava que existiam lobos em sua casa, e Miguel, que realmente

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eles existiam, não eram fruto da imaginação da personagem. Os olhos da imagem

também foram motivo de grande discussão do grupo, seriam os de um lobo ou de

uma pessoa? A parede seria uma espécie de “máscara” para aqueles olhos?

Abaixo, Laura escreveu, a pedido da mediadora, uma síntese da discussão oral do

grupo, que foi apontada no quadro:

Figura 11 – Síntese da discussão oral

Após a discussão oral, os participantes produziram um texto, com a seguinte

proposta: Como seria uma vida dentro das paredes? Abaixo, os textos estão

transcritos a partir dos originais, apresentados em seguida. O primeiro texto, de

Miguel, intitula-se “As pessoas dentro das paredes”:

As pessoas dentro das paredes

Num dia, um grupo de estudantes, foram fazer um passeio da escola

numa casa de campo, chegando lá tinha um homen que cortava pasto para

os cavalos que tinham lá. Com uma baita foise na mão uma das estudantes

levou um susto mais logo passou.

Eles chegaram se acomodaram eles logo escolheram os quartos e

foram para a piscina, depois da piscina foram tomar café e fizeram uma

bagunça.

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Só que uma coisa que eles não sabiam é que essa casa era mal

assombrada por um empregada só pelo espirito dela) e quem fazia bagunça

na casa ela primeiro arrumava a bagunça e depois casava apesso a que

bagunçou.

Ela caçou todos os estudantes depois, botava as aumas deles dentro

das paredes dessa casa, o unico geito de terminar com esse espirito era

botando um espelho na frente dela mais ninguem te ve coragem então os

estudantes ficaram ali para sempre assombran a casa.

Figura 12 - Texto original de Miguel

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O texto de Bruno contou a história de um menino, de onze anos, que tinha

pedido autorização para viajar, a fim de descobrir coisas novas:

A minha vida dentro das paredes

A muito tempo atrás em 1847 existiu um menino muito chato e legal ao

mesmo tempo esse guri sempre em busca de coisas novas, e um dia perguntou

para seus pais se ele podia viajar pelo mundo a fora descobrir algos novos sem

pensar a mãe dele disse não filho você tem 11 anos é muito novo e claro o pai dele

não filho pode ir se quiser agora emtao tá disse o menino viajou para todos os

lugares do mundo e agora com 26 anos tem um lugar que ninguem vontou vivo de lá

se chama a casa do quabra crânio nunca ninguem jamais vou lá mais quem já foi

nunca mais vontou o menino foi e quando chegou viu um homem com um facão

barba e sangue pelo corpo convidou rapidamente para entrar na casa e entrando

gentes dentro das paredes ele perguntou o que eles fazem dentro das paredes o

velho respondeu tu também vai fazem parte com ele ta na hora de dormir o moso

responde porque na fiz nada ninguém disse que você fez nada então chegou sua

hora de fazer partle com ele e com facam matou o chovem e colocou ele dentro

parede e deu tchau.

Fim

Figura 13 - Texto original de Bruno

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O texto de Laura trata de uma menina que tinha uma imaginação “muito

diferente”, cuja família viaja pelo mundo atrás de descobertas:

Uma menina e o pensamento

Numa certa vez uma menina com o nome de Klara ela tinha 8 anos tinha uma

imaginação tão diferente e sua família viaja o mundo atrás de descobertas seu pai

arqueologos e sua mãe também ela era filha do meio ela tinha duas irmães a de 6

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Julia e a de 10 Carol as duas só brincava quando ião viajar mais Klara sempre ficava

queta e com seus livros.

Antes de seu avó falecer ele a lê contava muitas histórias as ultimas palavras

do seu avó para e era assim. – Nunca deixe de usar a sua imaginação minha

discrubidora. passou 2 anos e ela e sua família foram conhecer a ilha das cavernas

históricas ela e suas irmães visitar a caverna dos lobos mais não puderam ir.

Em tão ela começou a pensar como seria la e embarcou numaimaginação o

que ela não des da morte de seu avó. E pensou que ela estava dentro da caverna e

imaginou que nas paredes tinha lobos desenhados nas paredes e se a proximou de

um desenho de um que não tinha os olhos então do nada emchergou um caneta e

pegou e comesou a desenhar os olhos do animal então os olhos estavão fechados

bem na hora que os olhos abriram ela acordo e essa foi a minha história.

Fim!

Figura 14 – Texto original de Laura

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O texto de Laura estabelece relações mais aprofundadas e apresenta ideias

melhor desenvolvidas (em termos de consistência e organização) em comparação

às produções de ambos os meninos. Porém, pode-se pensar em alguns pontos

convergentes entre as narrativas escritas pelos participantes da pesquisa. Como é

próprio da faixa etária das crianças, nota-se que as personagens protagonistas das

histórias mantêm traços em comum com o autor das narrativas. No texto de Bruno,

escapa, no título “A minha vida dentro das paredes”, o uso da primeira pessoa, que,

ao longo do texto, é rejeitada na perspectiva do narrador onisciente. Nos três textos

há marcas de similitude das protagonistas com seus autores, tanto na escolha do

sexo da personagem e em outras características; são estudantes, um menino de

onze anos e uma menina de oito. O texto de Laura mantém a hipótese da aluna

sobre imaginar que há lobos nas paredes, inclusive, inserindo o elemento “sonho”

como uma possível resolução para o conflito narrativo. Os meninos optaram por

conflitos narrativos mais literais, inclusive nos seus títulos, “As pessoas dentro das

paredes” e “A minha vida dentro da parede”.

Os três textos apresentam um percurso de saída e movimento para outro

lugar – uma viagem - da personagem protagonista para outro lugar desconhecido.

Conforme Paes (2005), esses são três elementos-base “o herói, o desconhecido e o

perigo” (PAES, 2005, p.5) que compõem o processo de construção das narrativas de

aventura. A trajetória dos heróis dessas histórias, ou seja, seu enredo, é linear. Inicia

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com a apresentação da personagem, também chamada de equilíbrio inicial, depois

se tem a enunciação do conflito narrativo, o clímax, momento de tensão próximo da

resolução do conflito, que encerra a narrativa. Percebe-se, nos textos, que, ao longo

da construção das histórias, esses elementos vêm “perdendo o fôlego”: dá-se

grande importância para a apresentação da personagem e o conflito narrativo,

porém o clímax e a resolução têm um desenvolvimento mais curto e superficial. O

desconhecido e o perigo aparecem a partir do deslocamento das personagens para

outro lugar. A viagem aparece, nos três textos, como uma imagem que remete a um

mundo desconhecido e desprovido das lógicas do mundo realista: são lugares cujos

valores são organizados pela fantasia. No caso do texto de Laura, a viagem não

ocorre presencialmente, mas na imaginação da personagem, no seu sonho,

contudo, em um lugar definido como “a ilha das cavernas históricas”, que contém

evidentes elementos de mistério. Miguel e Bruno optaram por lugares aterrorizantes,

uma casa mal-assombrada e a casa do Quebra Crânio.

Encontro 3 – 12 de setembro de 2012

A partir deste encontro, o grupo iniciou a leitura do livro, interrompendo-a no

ápice do conflito narrativo, na página 19, quando o narrador anuncia: “E os lobos

saíram das paredes”. Foram discutidas oralmente duas questões: “‘Se os lobos

saírem das paredes, está tudo acabado...’ O que você entende por esta frase?” e

“Vocês conhecem outras histórias de lobos? Quem eles são nestas histórias? O que

significa falar em ‘lobo’ para vocês?”. Quatro hipóteses foram levantadas pelo grupo:

uma ameaça de morte, um provérbio popular, a parede vai cair, um segredo será

revelado.

Dessas respostas, percebe-se que os leitores captaram a história por seus

elementos de suspense e mistério. Para a segunda pergunta, as histórias citadas

foram Chapeuzinho Vermelho, Os três Porquinhos, Harry Potter e Crepúsculo. O

lobo representa o mal, monstros, mas também pessoas boas (o lobo da Saga

Crepúsculo). As fantasias das crianças com a figura do lobo foram, por exemplo,

como relata Laura, imaginar-se como um desses animais; ou como no caso de

Miguel, que citou Jacob, de Crepúsculo, personagem que, quando fica nervosa,

transforma-se em lobo; ou ainda como para Bruno, que afirma ser o lobo agressivo,

além de lembrar noite de lua cheia, e o lobo da novela Avenida Brasil, que então era

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transmitida em um dos canais da TV aberta, cujo capítulo sempre era encerrado

com o uivo deste animal.

Figura 15 – Síntese da discussão oral

Encontro 4 – 19 de setembro de 2012

Houve prosseguimento na leitura do livro, mais precisamente, da parte da

saída da família até a cena que mostra a iminência de sua volta à casa. Os alunos

produziram um texto a partir da pergunta: “Se isso acontecesse com você e com sua

família, de que forma você resolveria este conflito?”. Miguel e Bruno, os alunos

presentes neste encontro, demonstraram, em texto escrito e em imagens, as

estratégias que executariam caso sua família fosse alvo dos lobos. Miguel desenhou

uma planta baixa da casa, com setas que direcionariam o caminho que os lobos

percorreriam até a sua saída da casa. Já Bruno optou por desenhar a armadilha

escolhida para a captura dos lobos, uma rede.

Miguel

Eu bolaria um plano, para entrar na casa.

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Primeiro eu bolaria um plano para entrar e para sair, depois buscaria armadilhas

armas e facas e umas manobras evazivas para os lobos não me pegarem e

emcurralaria todos para as armadilhas e depois matava todos

Figura 16 – Plano de Miguel

Bruno

Eu resolveria com uma armadilha muito esperta, e como todo mundo sabe os lobos

são muitos espertos só com uma rede, se lançar quando eles estiverem distraídos

casabunba já era pros lobos vou fazer isso agora:

Figura 17 – Plano de Bruno

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Encontro 5 – 03 de outubro de 2012

No último encontro, foram discutidas oralmente duas perguntas com os

alunos Miguel e Bruno: “Podemos dizer que existe um final nesta história? Por quê?”

e “Por que apenas Lucy percebia o que estava dentro das paredes?”. Os estudantes

apontaram que a história não termina, uma vez que, a partir da visita dos elefantes,

pode-se iniciar uma nova história. Perceberam, também, que Lucy se distanciava de

sua família porque acreditava no poder da imaginação, enquanto que os outros não

consideravam isso uma coisa importante. As outras questões, respondidas por

escrito, versaram sobre o sentimento que as imagens do livro despertaram nos

leitores: amor, raiva e muito mistério (Miguel), e que existe um mundo à minha volta

(Bruno) e a criação de legendas que descrevessem as imagens que mais chamaram

a atenção dos participantes da pesquisa, transcritas abaixo:

Miguel

1 – A imagem numero 1 diz que a casa deles foram tomadas pelos lobos:

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Figura 18 – Página 22 do livro Os lobos dentro das paredes

2- A segunda imagem é a primeira noite

Figura 19 – Página 23 do livro Os lobos dentro das paredes

Que sentimento as imagens dispertaram em vc? Dispertaram muito amor,

raiva e muito mistério:

Essa história fez você descobrir alguma coisa? Fale sobre a sua experiência

de leitura. Você gostaria de ler outras histórias como essa? Não essa história não

fez um descobrir nada. A experiência foi bem legal. Não eu não gostaria de ler outra

historia.

Figura 20 – Respostas de Miguel

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Bruno

1 – Essa imagem me mostrou que o sono é uma das riquezas mais bonitas

que tem.

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Figura 21 – Página 13 do livro Os lobos dentro das paredes

2 – Esse capitulo me mostro que o susto é apavorante

Figura 22 – Página 9 do livro Os lobos dentro das paredes

Que sentimentos as imagens dispertaram em você? As imagem me mostrou

que existe um mundo em minha volta.

Essa história vez você descobrir alguma coisa? Fale sua experiência de

leitura. Você gostaria de ler outras histórias como essa? Vez um descobrir que o

mundo não é brincadeira.

A minha experiência

(sua avó chegou nessa hora para buscá-lo, não pôde completar a atividade)

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Figura 23 – Respostas de Bruno

Verificou-se que os repertórios de experiências de leitura foram trazidos paras

as respostas dos participantes durante as atividades desenvolvidas nos encontros.

Laura, que mencionou o contato com as narrativas orais, contadas pela avó,

pareceu inclinar-se por essa perspectiva em alguns momentos. No terceiro encontro,

na atividade sobre o que seria “se os lobos saírem das paredes, tudo está acabado”,

a aluna relacionou o fato de se tratar de um provérbio popular, um dizer que fora

transmitido pela oralidade e que os humanos repetiam, sem compreender o que era

de fato. No segundo encontro, defendeu a ideia de que Lucy imaginava que existiam

lobos na casa, e depois escreveu um texto no qual essa ideia também aparecia.

Como não esteve presente nos demais encontros, não foi possível avaliar essa

hipótese com maior profundidade. Miguel e Bruno posicionaram-se a partir de ideias

trazidas pelas narrativas de terror e de suspense, temas que mais lhes

interessavam. Bruno pareceu mais envolvido com a narrativa do que Miguel, uma

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vez que seu repertório de leitura de histórias de terror determinou certos parâmetros

sobre o tipo que história que não corresponderam às suas expectativas. Ao ser

perguntado por que não tinha aprendido nada com a leitura do livro, disse que era

por não se tratar de “uma história de terror de verdade, como os livros da autora

Paula Mastroberti”. Bruno fixou-se bastante nas ilustrações da história e no

suspense despertado pela narrativa (algumas vezes espiou a leitura mais adiante

para ler o resto da história), atendo-se à ideia de que os lobos seriam uma ameaça

de morte (a morte também é o destino de sua personagem protagonista, em sua

produção de texto).

Depois de realizadas as atividades de leitura, algumas considerações podem

ser formuladas, a partir de correlações que o lastro teórico, as produções das

crianças, a observação e a interação da pesquisadora, além de sua própria

sensibilidade, são capazes, neste momento, de explicitar, a título de conclusões,

sempre provisórias, deste trabalho.

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CONCLUSÃO

Há um provérbio em Moçambique que diz: a vida de cada um é um rio. Assim pensado, o tempo que nos cabe para viver é alimentado por uma fonte eterna: a infância. E assim dita, a infância não é um tempo passado, mas a capacidade infinita de nos renovarmos entre nascente e estuário. (...) a ideia de que aquilo que chamamos de Literatura Infantil é, muitas vezes, um estereótipo fundado numa falsa menoridade da criança e na verdadeira arrogância do adulto. Esse conto (A diaba e sua filha) fala desse rio que apenas existe se nos olharmos como eternos inventores da nossa própria infância. Na margem desse rio, nenhuma história tem idade porque toda a narrativa está fora do tempo.

Mia Couto, na orelha do livro A diaba e sua filha, de Marie Ndiaye

Conforme vimos na análise de O lobo dentro das paredes, de Neil Gaiman e

Dave McKean, tudo na história, desde o título, que remete ao conflito que a

estrutura, contém um forte apelo à imaginação, o que exige do leitor respostas que

colocam em jogo formas intuitivas de compreensão, baseadas em percepções não

analíticas, mas sensoriais. Mas que efeitos essa história poderia provocar sobre a

imaginação de leitores reais? E que conhecimentos são intuídos dessa experiência

de leitura? Este foi o propósito que animou a realização das atividades de leitura.

Conforme nos aponta Ítalo Calvino, a imaginação apresenta-se como um mosaico

infinito de possibilidades e de hipóteses que estão intimamente ligadas ao imaginário

e à nossa experiência pessoal. Tal constatação verificou-se no momento da

realização das atividades de leitura com as crianças, uma vez que cada uma

estabeleceu suas próprias relações de acordo com vivências e leituras já realizadas

anteriormente, tendo, dessa maneira, um espaço profícuo para o debate (e o

embate) de ideias que aconteceram ao longo dos cinco encontros. Calvino, ao

comentar que a imaginação é o espaço “daquilo que poderia ter sido” (CALVINO,

2010, p.106), também agrega a ideia de que o texto literário que explora o potencial

narrativo permite a incursão do leitor, a fim de que ele encontre algo que se

comunique com sua experiência de leitura.

A forma mais original (no sentido de puro) com que a imaginação se

apresenta ao mundo é a imagem. Seja nos sonhos, nos primeiros desenhos feitos

pelo homem, no imaginário, no mito, em todas essas formas primitivas encontramos

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a imagem como um elemento fundamental de elaboração da experiência humana. A

imagem ocupa esse papel central por conta da sua capacidade de sublimar a

imaginação, como num processo físico em que um gás se transforma em estado

sólido. A imaginação se comprime a ponto de virar imagem, um composto sólido,

rígido e denso. Isso porque a imagem se basta a si mesma, é única e total, não se

preocupa em explicar-se, mas em apresentar-se como verdade insubstituível. O

limite da imagem é ela própria, também não se preocupa em relacionar-se com os

princípios da realidade, mas com os princípios da verossimilhança. A imagem é uma

forma de organizarmos nossa experiência de existir e, por isso, relaciona-se

intrinsicamente com a infância, momento da vida em que estamos mais expostos ao

“conflito” de estar no mundo e à construção de casas da experiência humana

arraigadas em imagens que já foram sonhadas, imaginadas e escritas pelo homem

nos tempos primordiais.

Neil Gaiman afirmou, em recente entrevista, que a fantasia é um termo que

abrange, inclusive, a ficção realista, uma vez que todos os autores empreendem a

mesma tarefa: “falar de coisas verdadeiras e grandes contando mentiras” (GAIMAN,

2013, p.6). Para ele, a tarefa é exitosa se o texto tiver algo de “mítico, com o sabor

de uma história verdadeira que você sente que sempre soube, mas tinha esquecido”

(GAIMAN, 2013, p.6). Na obra analisada, percebe-se que Gaiman consegue

vincular-se com tal experiência universal, uma vez que sua leitura fomenta o poder

imaginativo de seus leitores, como se observou na atividade prática com as

crianças. Em um dos encontros, Laura interpretou a frase “Se os lobos saírem das

paredes, tudo está acabado” como um provérbio popular, algo dito e repetido pelos

adultos, mesmo que desconheçam seu real significado. Em encontro informal com

grupo de alunos da pesquisadora, uma das crianças informou que tal frase remetia a

um mito, uma possível explicação para um fenômeno natural. Ambas as falas

parecem recuperar sentidos da tradição, incorporados à experiência infantil,

enriquecida com as histórias. Podemos relacionar tal situação ao saber próprio da

experiência benjaminiana, entendida como uma operação “do parar para olhar,

sentir, ouvir, pensar, escutar sem julgar; da abertura para novas compreensões (...)”,

de alguma coisa que “nos toca, é única” (CARDIA, 2012, p.24-25).

O saber da experiência se constitui como um tesouro, algo de muito precioso

que precisa ser compartilhado e transmitido de geração em geração, mediado por

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trocas simbólicas, em alguns casos, entre crianças e adultos. Um dos conflitos da

narrativa do livro é justamente a incomunicabilidade da experiência de Lucy sobre a

ameaça dos lobos que estão dentro das paredes. Lucy se percebe envolta num

labirinto quando não consegue compartilhar sua experiência com os outros membros

de sua família.

A obra de Neil Gaiman e os textos de Benjamin assinalam conexões na

medida em que entendem a infância como um modo privilegiado de percepção do

mundo, mediado pelas emoções e pela imagem. Através dessa lente, também

procuram entender a forma como as crianças se relacionam com a linguagem.

Benjamin, ao escrever os textos de Rua de Mão Única, concretiza o projeto de uma

leitura crítica da infância, não apenas se valendo de memórias literárias, porém

apresentando um texto que reflita sobre a experiência da infância, a partir de um

modo imagético de conceitualização. Gaiman, por sua vez, consegue empreender

um projeto de construção literária que demonstra a mesma experiência sensível da

infância, contada na forma narrativa. Ambos são textos convidativos à participação

do leitor, uma vez que a sugestão das imagens aciona a memória (consciente ou

não). Dessa forma, o leitor é instado a preencher as lacunas sugestivas do texto e

constrói uma percepção de si mesmo e do mundo que o cerca. Essa

revelação/identificação com o texto se chama experiência. Neste momento, o leitor

se conecta com o saber transmitido pela obra literária.

Bartolomeu Campos de Queirós, no texto A criação poética e a infância

(2012), relata que os autores de Literatura Infantil escrevem pela (e não para) a

criança que ainda existe dentro de si. Ao pensar a citação de Mia Couto que inicia

estas considerações finais, pode-se afirmar que a infância é a intensa renovação de

nós mesmos através da linguagem. Não é à toa que grande parte das memórias

(ainda que talvez inventadas) de nossa infância estão relacionadas com processos

de aprendizagem linguística. Bartolomeu complementa a ideia afirmando que a

operação de escrita de textos de Literatura Infantil é um “ato de contenção”

(QUEIRÓS, 2012, p.56). Não se trata de uma simplificação infantilizada, pelo

contrário, de um poder de síntese que leve o leitor criança a preencher as lacunas

do texto com seu imaginário. Nesse sentido, a imagem é um recurso que exerce

domínio sobre a memória extensiva da fantasia. Por meio dela, o leitor reconhece

algo que acredita já ter conhecido. Em alguns casos, ao se deparar com alguma

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imagem, o leitor é acometido do pensamento de “como é que eu não disse isso

antes, é tão óbvio”. A imagem literária inaugura o que está escondido dentro do

leitor, e, com ela, ele escreverá um novo texto. De acordo com Queirós, “A escrita

literária não ignora os leitores. Ela sabe que é pelas experiências vividas, pelas

dúvidas silenciosas, pelas fantasias escondidas que os leitores conversam com o

texto.” (QUEIRÓS, 2012, p.91).

Portanto, podemos retomar como conclusões deste trabalho a aproximação

do modo de pensamento da infância com o modo de pensamento das formas

primitivas do mito, que procedem através da imagem; a recuperação, por parte das

crianças, de seus repertórios de leituras e experiências pessoais, para elaboração

de suas produções; o trabalho com a imagem como uma ferramenta de fomento à

produção imaginativa das crianças. A realização deste trabalho confirmou que a

leitura literária deve ser entendida como uma prática que precisa estimular o diálogo

com a experiência e que precisa ser compartilhada, seja nos silêncios solitários de

um leitor ou nas discussões com outros leitores. Através da leitura, nos relacionamos

com a linguagem e atribuímos sentido à realidade das coisas – em suma, à vida.

Ainda que não tenha sido o propósito que animou a produção deste trabalho, mas

que, de certa forma, tem a ver com a vocação pedagógica da Literatura Infantil

(conforme afirma Nelly Novaes Coelho) e com a trajetória de leitora e de mediadora

de leitura da autora do trabalho, é imprescindível o entendimento da literatura para

além de sua especificidade fechada no texto, mas como uma experiência sensível

de linguagem, que precisa ser vivificada pelo sujeito - desafio que se põe

constantemente a quem busca, nas práticas de leitura, construir um conhecimento

que seja produto da vida dos leitores, despertada na interação com os textos.

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ANEXO A – Questionário com os participantes da pesquisa

1. Nome da criança:

2. Data de nascimento: _______ / ________ / ________

3. Com quem mora em casa:

4. O que você mais gosta de fazer:

a) em casa:

b) na escola:

c) outro lugar:

5. Alguém em casa conta história pra você? Se sim, quem?

6. Você tem livros em casa? Lembra de algum título?

7. Na escola, alguém lhe conta histórias? Quem?

8. Você costuma ir à biblioteca da escola retirar livros?

9. Você gosta de histórias?

10. Diga algumas histórias de que gosta:

11. O que as histórias significam para você? Que emoções as histórias lhe

provocam? Cite um exemplo:

12. Diga alguma história que você leu e lhe fez pensar em alguma coisa. O que

ela fez você pensar?

13. Que tipo de história você gosta? Terror? Aventura? Amor? Mistério? Humor?

Outro?

14. Que tipo de personagem você gosta?

15. Quando você abre um livro, o que mais lhe chama a atenção?

16. Você observa as imagens antes ou depois das palavras?

Esclarecimento sobre o conteúdo da pesquisa, explicação sobre o que se entende

por “histórias” (como ficções, não sendo, necessariamente, escritas em livros)

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ANEXO B - Planejamento de aplicação de atividades de leitura

ENCONTRO OBJETIVO PROCEDIMENTOS DIDÁTICOS RECURSOS

1º encontro - Conhecer os

participantes e sua

relação com práticas

de leitura.

- Realização de questionário

socializado com os participantes

da pesquisa sobre práticas de

leitura (anexo A).

- Folhas da

entrevista.

2º encontro - Realizar a leitura da

imagem da capa do

livro.

- Análise da capa do livro e

levantamento de hipóteses no

quadro:

A partir da imagem da capa, que

história vocês acreditam que será

contada no livro?

- Produção textual: Como seria

uma vida atrás das paredes?

- Quadro, giz

e apagador;

- Livros;

- Folhas para

produção

textual;

- Lápis e

borracha.

3º encontro - Perceber de que

forma os participantes

se relacionam com o

texto e as imagens do

livro;

- Conhecer o

repertório de histórias

infantis que povoam o

imaginário dos

participantes;

- Entender o

significado atribuído à

figura do “lobo” pelos

participantes, a partir

de seu repertório e de

- Leitura do início do livro até “os

lobos saíram de dentro das

paredes.”

A leitura será silenciosa, pois cada

participante terá um exemplar do

livro.

- Perguntas para discussão oral

com a turma:

“Se os lobos saírem das paredes,

está tudo acabado...” O que você

entende por esta frase?

Vocês conhecem outras histórias

de lobos? Quem eles são nestas

histórias? O que significa falar em

- Quadro, giz

e apagador;

- Folhas para

produção

visual;

- Lápis e

borracha;

- Livros.

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sua produção. “lobo” para vocês?

4º encontro - Perceber de que

forma os participantes

se relacionam com o

texto e as imagens do

livro;

- Propor uma produção

textual em que o

conflito da narrativa do

livro interaja com o

cotidiano dos

participantes.

- Leitura da parte da saída da

família até a cena da fogueira “De

qualquer forma, nenhum deles

queria passar outra noite dormindo

no jardim.”

A leitura será silenciosa, pois cada

participante terá um exemplar do

livro.

- Perguntas para discussão oral

com a turma:

O que mudou do ambiente da casa

para o de fora dela?

De que forma vocês

caracterizariam a personagem

Lucy? Como é a relação dela com

sua família?

Produção textual: Se você fosse o

autor dessa história, como

resolveria esse conflito?

- Quadro, giz

e apagador;

- Livros;

- Folhas para

produção

textual;

- Lápis e

borracha.

5º encontro - Perceber de que

forma os participantes

se relacionam com o

texto e as imagens do

livro;

- Analisar as partes da

narrativa que mais

sensibilizaram os

participantes dos

encontros.

- Leitura de “- Arrgh! – uivaram os

lobos.” até o fim da narrativa.

- Perguntas para discussão oral

com a turma:

Podemos dizer que existe um final

nesta história? Por quê?

Por que apenas Lucy percebia o

que estava dentro das paredes?

Produção visual: Escolhe três

imagens que você acha mais

- Giz e

apagador de

quadro;

- Livros;

- Folhas para

produção

visual;

- Lápis e

borracha;

- Material para

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representativas da história.

Escreva uma legenda para cada

imagem com suas próprias

palavras.

Que sentimento as imagens

despertaram em você?

Essa história fez você descobrir

alguma coisa? Fale sobre a sua

experiência de leitura.

Você gostaria de ler outras

histórias como essa?

colorir.

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ANEXO C – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Miguel

Miguel

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Bruno

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Laura