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MESTRADO EM LETRAS ANGELA FRANCISCA MENDEZ DE OLIVEIRA ATUAÇÃO CULTURAL DE JOVENS ESCRITORES NA CENA LITERÁRIA DE PORTO ALEGRE: O CASO DANIEL GALERA Porto Alegre 2013

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MESTRADO EM LETRAS

ANGELA FRANCISCA MENDEZ DE OLIVEIRA

ATUAÇÃO CULTURAL DE JOVENS ESCRITORES NA CENA LITE RÁRIA DE PORTO ALEGRE: O CASO DANIEL GALERA

Porto Alegre

2013

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ANGELA FRANCISCA MENDEZ DE OLIVEIRA

ATUAÇÃO CULTURAL DE JOVENS ESCRITORES NA CENA LITER ÁRIA DE PORTO ALEGRE: O CASO DANIEL GALERA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do UNIRITTER - Laureate International Universities para obtenção de título de Mestre em Letras, área de concentração: Linguagem, Interação e Processos de Aprendizagem. Orientadora: Prof. Dr. Rejane Pivetta de Oliveira

Porto Alegre

2013

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Dr. Romeu Ritter dos Reis

O48a

Oliveira, Angela Francisca Mendez de.

Atuação cultural de jovens escritores na cena literária de Porto Alegre: o caso Daniel Galera / Angela Francisca Mendez de Oliveira. – 2013.

125f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Faculdade de Letras, Porto Alegre - RS, 2013.

Inclui bibliografia.

Orientador: Prof. Dr Rejane Pivetta de Oliveira.

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ANGELA FRANCISCA MENDEZ DE OLIVEIRA

ATUAÇÃO CULTURAL DE JOVENS ESCRITORES NA CENA LITER ÁRIA DE PORTO ALEGRE: O CASO DANIEL GALERA

Trabalho de conclusão defendido e aprovado como requisito parcial para a

obtenção do título de Mestre em Letras pela banca examinadora constituída por:

_____________________________________________

Prof. Dr. Rejane Pivetta de Oliveira – UniRitter/Porto Alegre

_____________________________________________

Prof. Dr. Carmen Villarino – USC/Santiago de Compostela

_____________________________________________

Prof. Dr. João Cláudio Arendt – UCS/Caxias do Sul

_____________________________________________

Prof. Dr. Leny Gomes – UniRitter/Porto Alegre

Porto Alegre

2013

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Ao Lucca, a Francisca e a Glaci - meus fiéis companheiros de jornada.

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A CAPES, por tornar possível a realização deste Mestrado. Agradecimentos mais que especiais a minha orientadora Rejane Pivetta de Oliveira, por acreditar e batalhar pela continuação de meus estudos. Agradecimentos carinhosos aos dedicados amigos Karine M. Campos, Miguel López e Marcelo Spalding – que a vida nos permita longa parceria.

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Com algumas honrosas exceções, o pensamento acadêmico tradicional ignorou, durante séculos, a vida diária das pessoas comuns. Na verdade, ignorava mesmo era a própria vida, não apenas a diária. Não faz muito tempo, em algumas universidades tradicionalistas, ainda não era permitido pesquisar sobre autores que estivessem vivos. Isso resultava num grande incentivo para enfiar a faca entre as costelas de alguém numa noite de neblina, ou num notável teste de paciência se seu romancista predileto tivesse uma saúde de ferro e apenas 34 anos de idade. Você certamente não poderia pesquisar qualquer coisa que visse à sua volta todos os dias, por definição, isso não merecia ser estudado.

Terry Eagleton

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RESUMO

A literatura comporta um conjunto de atividades que se estende para além da obra, nas quais estão envolvidos, entre outros fatores, o multifacetado papel de produtor cultural que o escritor contemporâneo passa a assumir. O escritor contemporâneo não mais está confinado aos textos que produz, mas movimenta-se dentro de um complexo sistema literário, buscando ampliar a circulação de suas obras, interagindo com o público leitor, para além das redes da web, no âmbito de escolas, feiras de livros e eventos culturais, esses muitas vezes por eles promovidos. A partir de uma perspectiva cultural, relacional e sistêmica, conforme propõem os estudos de Raymond Williams, Pierre Bourdieu e Itamar Even-Zohar, interessa-nos discutir estas múltiplas formas de atuação do escritor e suas relações com os demais elementos que constituem o sistema literário, buscando desvelar as regras, as posições, as disputas e as estratégias implicados no processo de inserção, produção e circulação de suas obras. Para tanto, tomamos para análise o caso específico da literatura produzida na última década do século XXI por autores do Rio Grande do Sul, selecionados a partir do catálogo de publicação de duas editoras independentes de Porto Alegre, a Livros do Mal e a Não Editora, responsáveis pela publicação de jovens escritores que despontaram na cena literária a partir dos anos 2000. Nesse intento, concentramo-nos, sobretudo, na trajetória de Daniel Galera, cuja produção e atuação no cenário literário, pelo seu destaque, serve de inspiração para muitos escritores dessa geração, denominada “Zero Zero”. A fim de desvelarmos as estratégias do produtor que estão “por detrás dos bastidores” da criação, tomamos para análise o romance Cordilheira, até então a obra mais recente de Daniel Galera, exemplar por tematizar as múltiplas interferências sociais e culturais que estão na origem das produções literárias contemporâneas.

Palavras-chave: sistema literário, atuação cultural, literatura contemporânea, Daniel

Galera.

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ABSTRACT

Literature contains a number of activities that extends beyond the work in which they are involved, for instance, the multifaceted role of the cultural producer which the contemporary writer has to assume, among others. The contemporary writer is no longer confined to the texts that one produces, but moves within a complex literary system, seeking to increase the circulation of their works, interacting with readers beyond the web of networks, inside schools, book fairs and cultural events, these often promoted by them. From a cultural perspective, relational and systemic, as proposed studies by Raymond Williams, Pierre Bourdieu, and Itamar Even-Zohar, we are interested in discussing these multiple forms of performance of the writer and their relationships with the other elements which constitute the literary system, seeking to uncover the rules, positions, disputes and strategies involved in the insertion process, production and circulation of their works. Therefore, we bring into analysis the specific case of literature produced in the last decade of this century by authors of Rio Grande do Sul, selected from the catalog publication of two independent publishers of Porto Alegre, the Livros do Mal and Não Editora, responsible for publishing young writers who emerged on the literary scene from the 2000s. Hence, we focus mainly on the trajectory of Daniel Galera, whose production and performance in the literary scene, his prominence, is an inspiration for many writers of this generation, called "Zero Zero". In order to unveil strategies producers who are "behind the scenes" of the creation use, we analyze the novel Cordillera, the most recent work of Daniel Galera, an example of multiple interferences by foregrounding the social and cultural factors that are at the origin of contemporary literary productions. . Key Words: literary system, culturals activities, contemporary literature, Daniel Galera.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11

2 A LITERATURA NO HORIZONTE DAS RELAÇÕES SOCIOCULTU RAIS

2.1 A CULTURALIZAÇÃO DOS ESTUDOS HUMANÍSTICOS ................................. 15

2.2 A LITERATURA EM UMA PERSPECTIVA RELACIONAL E SISTÊMICA .......... 19

2.3 CONVERGÊNCIAS LITERÁRIAS E SOCIOCULTURAIS ................................... 30

3 A LITERATURA DO CONTEMPORÂNEO

3.1 A GERAÇÃO ZERO ZERO ................................................................................ 34

3.2 A GERAÇÃO ZERO ZERO NO SUL DO PAÍS ................................................... 40

3.2.1 Ação empreendedora dos jovens escritores: Livros do Mal e Não Editora ..... 45

3.2.2 A literatura da Academia: jovens intelectuais ................................................... 51

3.2.3 A profissionalização do ofício: ascensão das oficinas literárias ....................... 55

3.2.4 A opção pelo conto: uma expressão contemporânea ...................................... 57

3.2.5 A inserção no mercado: migrações editoriais ................................................... 59

3.3 ATUAÇÃO NO SISTEMA LITERÁRIO EM PORTO ALEGRE ............................. 66

4 REDES DE INTERAÇÃO: DANIEL GALERA E CORDILHEIRA NO SISTEMA

CULTURAL

4.1 O AUTOR-PRODUTOR DANIEL GALERA ......................................................... 74

4.2 CORDILHEIRA E A COLEÇÃO AMORES EXPRESSOS ................................... 79

4.3 VIAGEM AO UNIVERSO DE CORDILHEIRA ..................................................... 82

5 CORDILHEIRA E O DESVELAMENTO DAS REGRAS DA ARTE ...................... 91

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 104

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 110

APÊNDICE A – CATÁLOGO DE AUTORES PESQUISADOS .............................. 118

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1 INTRODUÇÃO

Na segunda metade do século XX, assistimos a um processo sem

precedentes de mudanças na história do pensamento e da tecnologia. Ao lado da

aceleração das tecnologias de comunicação, da superação de fronteiras do mundo

globalizado, da instauração de potentes blocos econômicos e das descobertas da

ciência genética, ocorreram mudanças paradigmáticas no modo de se pensar,

conceber e compreender o mundo. Essas mudanças culturais globais geraram, e

continuam gerando, uma brusca mudança social e é nesse novo momento e nessa

nova realidade que emerge o questionamento em torno da produção de

conhecimento, de seu alcance e de suas limitações, de modo a questionar as formas

pré-estabelecidas de saber. São novos sistemas nervosos que enredam as

sociedades e, nesse contexto, são necessárias novas perspectivas e novas formas

de abordagem que aprofundem o entendimento do papel da literatura na construção

da sociedade contemporânea.

Queiramos ou não, as forças e relações postas em movimento por esses

processos evolutivos estão confrontando muitos dos padrões e das tradições do

passado. As formas de existência, o relacionamento com o outro, a ética e a

moralidade, as coisas próprias do homem, tudo isso, desde sempre, ganha as mais

diferentes formas de expressão, e traduz-se, especialmente, em arte literária, em

estreita conexão com as condições de produção, circulação e recepção das obras.

Porém, os estudos literários, em grande parte, ainda concentram e restringem suas

investigações à análise de obras isoladas, tomando o texto como instância

autossuficiente, como produto acabado que encerra em si as possibilidades de

interpretação. Todavia, é preciso encarar a literatura numa perspectiva de análise

que a compreenda como atividade humana, resultante de práticas sociais e culturais

constitutivas do seu próprio modo de ser.

Partimos, para tanto, da concepção de que a literatura comporta um complexo

de atividades que se estende para além da obra, os quais envolvem, entre outros

fatores, a profissionalização do escritor e o seu papel de produtor cultural, ampliando

a circulação de suas obras entre o público leitor, sem esquecer a importância do

fortalecimento do mercado editorial e a atuação da mídia na divulgação das ações

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literárias. Tudo isso, certamente, com repercussões em termos de formas, temas e

linguagem literária. A análise desses fatores, focada na movimentação literária que

ocorre no espaço sociocultural de Porto Alegre, nesta primeira década do século

XXI, permitirá esboçar algumas funções da literatura, possibilitando a compreensão

das dinâmicas literárias, as posições de seus agentes, suas interações com o campo

cultural.

A ideia de trabalhar com a literatura contemporânea surgiu ainda na

graduação. Ao participar de pesquisa de iniciação cientifica fui me familiarizando

com outras abordagens de estudos literários e me indagando sobre a continuidade e

o funcionamento da literatura nos dias atuais. Assim, iniciei o trabalho monográfico

que cuidou da identificação dos jovens escritores (produtores) que fazem parte da

cena literária de Porto Alegre. Meu interesse era ainda mais específico, detive-me

nos escritores que, jovens e empreendedores, tiveram suas aparições a partir do

ano 2000. Realizei o levantamento da produção desses autores, deparando-me com

um agitado cenário e uma numerosa e ‘desconhecida’ quantidade de livros.

Chamou-me atenção como esses jovens apresentavam diferentes formas de

relações com instituições (editoras, livrarias, escolas, universidades, entre outras) e

com meios de circulação e divulgação (internet, jornais, revistas, televisão, eventos

literários e culturais). Também a relação entre autor e público era muito mais

próxima do que de costume, propiciada pelas iniciativas e programas lançados por

entidades oficiais, como Prefeitura e Câmara do Livro, ampliada, é claro, pela

internet (blogs, sites e redes sociais).

Desde esse levantamento inicial, pareceu-me que a efervescência de tal

cenário merecia um estudo que destacasse os principais fatores envolvidos em seu

funcionamento. Assim, busquei abordagens teóricas que dessem sustentação à

análise da literatura como prática integrada aos processos sociais e culturais. Parti,

pois, das contribuições de Raymond Williams, Pierre Bourdieu e Itamar Even-Zohar,

cujas concepções, apresentadas no capítulo que segue à introdução, “A literatura no

horizonte das relações socioculturais”, aproximam-se pelo vínculo essencial que

estabelecem entre literatura e sistema social e pela consideração da literatura e da

cultura como um modo de atuação sobre a realidade. A partir do diálogo com e entre

esses três teóricos, temos em vista construir uma base sobre a qual possamos

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perceber a literatura - no caso particular do recorte que estabelecemos - a partir de

uma rede de relações que nos permita explicitar as regras, as posições e os valores

implicados no seu processo de produção, circulação e recepção.

No capítulo seguinte, “A literatura do contemporâneo”, apresentamos a

chamada Geração Zero Zero, nome inspirado na coletânea de contos homônima

organizada por Nelson de Oliveira (2011), na qual apresenta suas pesquisas sobre a

produção literária dos anos 2000. A partir da ideia de Oliveira de organizar escritores

dentro de um recorte temporal, realizamos um panorama, ainda que sucinto, da

cena literária de Porto Alegre, apresentando alguns escritores que nela atuam. O

“quadro de autores pesquisados” que organizamos reúne informações sobre

escritores jovens que despontaram na cena literária do Estado nos anos 2000,

escolhidos a partir do catálogo de publicação de duas pequenas editoras de Porto

Alegre, A Livros do Mal e a Não Editora. A escolha por essas duas editoras

independentes para a formação do corpus justifica-se por suas semelhanças nas

propostas editorias e na história de formação das empresas. Firmando o caráter de

formação cultural desses escritores, tal qual estudos realizados por Raymond

Williams, as semelhanças observadas desenrolam reflexões expostas no capítulo

que trata desde o empreendedorismo desses autores-produtores até a formação

acadêmica e as implicações daí decorrentes no tipo de obra que produzem.

Tratamos ainda de aspectos como as oficinas literárias, a opção pelo gênero conto e

a inserção e fortalecimento do mercado editorial. “A atuação no sistema literário em

Porto Alegre” fecha o capítulo, mostrando a multiplicidade de papéis que

desenvolvem os escritores que fazem parte do sistema literário da capital gaúcha.

No quarto capítulo, “Redes de interação: Daniel Galera e Cordilheira no

sistema cultural”, detemo-nos na figura e na obra do escritor Daniel Galera,

escolhido para representar a atuação desse grupo de escritores que estudamos. A

opção por Galera encontra na sua trajetória a sua justificativa. Galera iniciou sua

história de literato muito jovem. Lançou com um grupo de amigos, também jovens

escritores, uma pequena editora (Livros do Mal) e não só forjou sua entrada no

sistema literário como sua estratégia de atuação inspirou outros jovens escritores a

seguirem o mesmo caminho. Em seguida, iniciamos a apresentação e a análise do,

até então, mais recente romance publicado por Galera, Cordilheira (2008), parte de

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um programa da editora Companhia das Letras chamado Amores expressos. A

narrativa mostra-se exemplar para refletir sobre as disposições sociais que estão na

origem das produções culturais, desvelando o que está “por detrás dos bastidores”

do sistema literário contemporâneo, apontadas e discutidas no último capítulo:

“Cordilheira e o desvelamento das regras da arte”.

As relações entre elementos do sistema literário são inúmeras, mas o seu

arranjo será tanto mais produtivo quanto mais conseguirmos demonstrar a coerência

das conexões estabelecidas, mesmo não esgotando suas possibilidades. Através

dessa análise será possível compreender as estratégias de atuação mais relevantes

dos jovens escritores na cena literária de Porto Alegre, no século XXI, tomando

Daniel Galera como caso paradigmático. Pretendemos que o estudo de tais

estratégias de alguma forma contribua para melhor compreendermos os sentidos e

as funções que a literatura desempenha no sistema social e cultural onde ela se

produz e circula.

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2 A LITERATURA NO HORIZONTE DAS RELAÇÕES SOCIOCULTU RAIS

2.1 A CULTURALIZAÇÃO DOS ESTUDOS HUMANÍSTICOS

Boaventura de Souza Santos, no livro Introdução a uma ciência pós-moderna

(1989-2010), considera que vivemos uma fase de transição paradigmática:

encontramo-nos entre o paradigma da ciência moderna - paradigma dominante -, e

um novo paradigma - “de cuja emergência vão se acumulando os sinais” -, o da

ciência pós-moderna - paradigma emergente (2010, p.11). Entre as crises da ciência

tratadas por Santos, são citados dois tipos: as crises de crescimento e as de

degenerescência. A primeira dá-se a nível disciplinar, revelando-se na insatisfação

de métodos ou conceitos básicos usados sem contestação dentro de uma disciplina

(2010, p.17). As crises de degenerescência, mais raras que as de crescimento, são

crises do paradigma, crises que atravessam todas as disciplinas em um nível

profundo. Santos, ainda que admita não ser fácil identificar tal crise, conclui que

atravessamos uma fase de crise de degenerescência, e que essa determina o tipo

de reflexo epistemológico a ser privilegiado. As críticas às correntes dominantes da

epistemologia, assim como a reflexão hermenêutica, visam, ainda segundo Santos,

compreender e desvelar “a ininteligibilidade social que rodeia e se interpenetra” nas

ciências dos paradigmas dominantes (2010, p.19). Se bem observarmos,

perceberemos que os estudos científicos passam por profundas desestabilizações e

que há, hoje, uma “culturalização” nas práticas das ciências humanas. Mas por que

a cultura se encontra no centro de tantas discussões e debates atualmente?

Em certo sentido, a questão da diversidade e do contato cultural sempre foi

contemplada em estudos de cunho humanístico, cujo objetivo, grosso modo, é o de

desvendar as complexidades da sociedade humana e de suas criações, mas agora

se coloca de modo intenso à frente das abordagens sociais. Neusa Maria Gusmão

aponta que o que é novo “é o questionamento das formas constituídas de

explicação, cujas premissas teóricas parecem estar superadas como possibilidades

de compreensão desse novo momento e dessa nova realidade” (2008, p.47). Em

meio a transformações intensas - mundo globalizado, grandes blocos econômicos,

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tecnologias de ponta, etc. – emerge o questionamento em torno da produção de

conhecimento, de seu alcance e de suas limitações, “de modo a questionar as

formas constituídas de saber” (GUSMÃO, 2008, p.48). Estes “deslocamentos das

culturas do cotidiano”, essas mudanças culturais globais estão gerando uma rápida

mudança social e é nesse novo momento e nessa nova realidade que a urgência de

refletir e privilegiar abordagens socioculturais nos estudos científicos torna-se

inadiável.

Podemos considerar, contudo, que há nas práticas contemporâneas uma

mudança na centralidade dos estudos. Segundo Stuart Hall, em A Centralidade da

Cultura (1997), com o aumento dos recursos tecnológicos e econômicos, teve início

no século XX o que ele denomina, inspirado em Raymond Williams, de “revolução

cultural”. A cultura ganhou centralidade nas discussões e nos estudos científicos

devido à enorme expansão de tudo o que a ela se associa e ao seu caráter

constitutivo em todos os aspectos da vida social. Nesse sentido, a cultura tem

assumido, explica Hall, uma “função de importância sem igual no que diz respeito à

estrutura e à organização da sociedade” (1997, p.2). São novos “sistemas nervosos”

que enredam as sociedades e para compreendê-las são necessárias novas

perspectivas e novas formas de abordagens, novos paradigmas, como apontou o

sociólogo Boaventura de Souza Santos.

Ainda na concepção de Hall, a cultura pode ser entendida como sistema de

significações que codificam, organizam, e regulam as ações sociais:

A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significados que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomados em seu conjunto, eles constituem nossas ‘culturas’”. (HALL, 1997, p.1)

Os sistemas de significações, em todo o seu conjunto - entendido então como

“culturas” -, contribuem para assegurar que toda a ação social é cultural, uma vez

que todas as práticas entendidas como sociais expressam um significado e, nesse

sentido, “são práticas de significação”. A centralidade da cultura indica, então, a

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forma como a cultura está inserida em cada recanto da vida social contemporânea,

nos termos de Hall - “mediando tudo”.

Anterior a Stuart Hall, Raymond Williams já havia percebido a dimensão

cultural das produções humanas. Partindo do materialismo histórico de base

marxista, Williams dedicou-se a pensar a cultura, levando em conta seu papel ativo

nos processos sociais e econômicos. Para o autor, os bens culturais resultam de

meios materiais de produção, que concretizam relações sociais complexas

envolvendo instituições, convenções e formas. Williams buscou, assim, redefinir o

conceito de cultura que, dentro da tradição inglesa (mais especificamente no campo

artístico literário) era indistintamente associado à cultura erudita, ou à alta cultura. A

partir da perspectiva teórica materialista, cultura passa a ser entendida por Williams

“como o sistema de significações mediante o qual necessariamente [...] uma dada

ordem social é comunicada, reproduzida, vivenciada e estudada” (WILLIAMS,

2011a, p.13). Para Williams, cultura é compreendida como “todo um modo de vida”,

abrangendo todas as atividades sociais e suas produções artísticas. Dito isso,

parece evidente que todas as ações sociais são moldadas pela cultura, e como tal o

campo das artes também o é, o que confere à literatura um conceito mais amplo. A

literatura, enquanto prática de significação, manifestação cultural e disciplina de

estudos da área das humanidades, vê-se diante da necessidade de outras

perspectivas em suas práticas. Williams aponta que os estudos literários tradicionais

acabam por proporcionar formas rigorosas de análises e quando privilegiam

aspectos sociais acabam por exaltar a metáfora do reflexo, própria da teoria

marxista:

A diferença marcante entre os estudos das ciências naturais e o das humanidades não é apenas uma questão de perguntas inevitáveis dos valores expressos ativos. É também uma questão da natureza da mudança: que as sociedades e as literaturas possuem histórias humanas ativas e conflitantes, sempre inseparáveis de valores ativos. Mas na literatura, como em alguns estudos sociais, históricos e antropológicos, esses fatos de mudanças podem ser projetados, […] tornando-os finalmente imóveis como as pedras. Com exceção, é claro, do fato de que nas ciências naturais logo aprendemos […] que apenas algumas pedras mantêm-se imóveis, e que mesmo essas são produtos de mudanças: a história contínua da Terra. (WILLIAMS, 2011b, p.21-22)

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Em acordo com Williams, hoje, ao empreendermos pesquisa no âmbito

literário, podemos levar em conta outros tantos fatores, que extrapolam a ideia de

texto encerrado em um livro, invisibilizados por práticas acadêmicas contumazes que

tornam os estudos literários “imóveis como as pedras”. Os fatores privilegiados nas

análises literárias que se enquadram nos paradigmas emergentes ultrapassam a

canônica e delimitada fronteira do termo literatura, explorando as múltiplas

estratégias e ações culturais que engendram o campo literário. A abordagem do

literário alarga-se quando apreende os seus aspectos culturais, quando se interessa

também em observar suas práticas de produção, circulação e recepção, inseridas no

sistema cultural.

Então, para além do conjunto de textos, a literatura é uma produção cultural

indissociável das condições materiais que a constituem, tal como afirma Raymond

Williams. Seguindo o pressuposto, consideramos que o estudo da literatura, a partir

de uma abordagem cuja análise dá-se no interior dos próprios processos sociais, tal

qual concebe Williams, comunica-se proeminentemente com a perspectiva relacional

e sistêmica propostas pelo sociólogo Pierre Bourdieu e o pesquisador israelense

Itamar Even-Zohar. A análise relacional proposta por Bourdieu, em linhas gerais,

concebe a obra literária integrada ao conjunto de ações humanas concretas

inseridas em um sistema sociocultural, com suas regras e hierarquia de valores,

estabelecidas de acordo com interesses e o prestígio dos seus agentes. Itamar

Even-Zohar, por sua vez, compreende a literatura a partir de suas funções dentro de

um sistema aberto à interação com outros sistemas culturais, considerando-a não

apenas um conjunto de textos, mas um agregado de atividades. Assim, a ideia de

polissistema que desenvolve é adequada para se ressaltar e se lidar com a dinâmica

e a heterogeneidade da cultura, tal como se apresenta nos tempos atuais. A seguir,

fazemos uma breve exposição dos pressupostos teóricos desses dois autores que,

igualmente, demarcam nossa proposta de análise.

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2.2 A LITERATURA EM UMA PERSPECTIVA RELACIONAL E SISTÊMICA

Pierre Bourdieu, em sua obra As regras da arte (2010), a partir da leitura e

análise do romance de Gustave Flaubert, Educação sentimental (1869), desenvolve

uma proposta para os estudos científicos da literatura: uma abordagem que leve em

conta as condições sociais de produção da obra de arte. Partindo de uma reflexão

crítica acerca da doxa literária e suas interpretações enclausurantes da arte, e da

vida - que acabam por funcionar como anteparos conformadores de práticas -,

Bourdieu investe em uma compreensão da arte como um fenômeno dinâmico,

produzida dentro de um determinado espaço regido por regras internas. Para o

autor, existe um princípio social estruturador das produções humanas, visto que

seus produtores estão inseridos em um determinado espaço social - ao qual chama

de campo -, estruturado a partir de lógicas, regras, disputas e crenças próprias,

constituidores de habitus que, específicos, são reproduzidos nas criações literárias e

estruturantes de tais produções.

Ainda que acredite que o “trabalho sobre os conceitos pode, também ser

acumulativo” (2010, p.204) – visto que a noção de habitus, conceito de que

trataremos, o sociólogo foi buscar em Aristóteles –, Bourdieu constata que os

valores e práticas herdados de certa tradição teórica continuam a orientar os

julgamentos e as ações culturais. Na reflexão crítica que desenvolve, sobretudo no

capítulo “Fundamentos de uma ciência das obras” (2010, p.203-237), o sociólogo

aponta que tais orientações são preocupantes na medida em que acarretam

atividades cognitivas mecanicistas que acabam por acrescer a “oposição canônica

da teoria e prática” que divide o trabalho intelectual, impossibilitando a construção de

“um conhecimento prático ou uma prática cognoscente” (BOURDIEU, 2010, p.205).

Resumidamente, para Bourdieu, as diversas orientações que lidam com

sistemas de representações e expressões, e que estão recobertos pelo conceito de

cultura, podem distinguir-se em duas posturas principais que se organizam por pares

de oposição, “frequentemente herdadas de um passado” e ainda concebidas como

alternativas absolutas, estruturantes da produção de conhecimento. Trata-se da

oposição das leituras interna e externa de obras (BOURDIEU, 2010, p.220). A

primeira segue duas vertentes: a tradição estruturalista, formalista - que tende a

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considerar a cultura e os sistemas simbólicos em geral como uma forma de

“conhecimento”, um instrumento de poder, isto é, de legitimação da ordem vigente

(MICELI, 1974, p.VIII) -, e a tradição kantiana “das formas simbólicas”, mais idealista

e que tende a enfatizar a cultura firmando a existência de estruturas antropológicas

universais (BOURDIEU, 2010, p.222). Já as análises externas que, via de regra,

deveriam reintroduzir as produções culturais no universo social, não escapam à

“redução operada por todas as formas, mais ou menos refinadas, da teoria do

reflexo que sustenta as análises marxistas das obras culturais” (BOURDIEU, 2010,

p.230).

Em outras palavras, as análises externas permanecem encerradas na lógica

da investigação que busca na vida do autor o princípio explicativo da obra,

encerrando-se em um “sociologismo redutor” pelo fato de que tende a “reduzir cada

autor ao conjunto das propriedades que podem ser apreendidas na escala do

indivíduo tomado em estado isolado” (BOURDIEU, 2010, p.212). A metáfora do

reflexo, princípio que também recebe críticas de Williams, igualmente acarreta

determinismos sociais que levam a crer que a obra de arte nada mais é do que um

espelho da sociedade, que a reflete, servindo de “porta voz inconsciente” da

situação social em que está inserido o autor.

Bourdieu rompe com tais posturas, criticando o idealismo e a literatura “pura”,

assim como o “sociologismo redutor” e suas metáforas de espelho, propondo uma

teoria que supere essa oposição entre análises internas e externas “sem perder

nada das aquisições e exigências dessas abordagens, tradicionalmente concebidas

como inconciliáveis” (BOURDIEU, 2010, p.234) – uma perspectiva, então, relacional.

Miceli auxilia na compreensão, explicando o que pretende Bourdieu:

Na verdade, o que Bourdieu pretende é retificar a teoria do consenso por uma concepção teórica capaz de revelar as condições materiais e institucionais que presidem a criação e a transformação de aparelhos de produção simbólica cujos bens deixam de ser vistos como meros instrumentos de comunicação e/ou de conhecimento. (MICELI, 1974, p.XII)

Assim, a partir dos conceitos de campo e de habitus, Bourdieu desenvolve

sua teoria do campo literário, uma teoria que “restaura a autonomia da literatura

como fato social” (JURT, 2004, p.51) e a partir da qual se afasta toda a espécie de

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reducionismo. Para o sociólogo, as manifestações literárias são compreendidas a

partir das posições ocupadas no interior de um campo - espaço autônomo, onde

ocorrem relações entre agentes, que atuam segundo certas leis e regras. Podemos

entender que o campo trata-se de “uma rede de relações objetivas (de dominação

ou de subordinação, de complementaridade ou de antagonismo, etc.)” (BOURDIEU,

2010, p.261), cujo funcionamento está atrelado às posições e tomadas de posições

dos agentes.

Para que um campo funcione, conforme Bourdieu, “é preciso que haja objetos

de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que

impliquem o conhecimento e reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos

objetos de disputas, etc.” (BOURDIEU, 1983, p.89). Dessa forma, as lutas e disputas

pelas posições representam o mecanismo genuíno de funcionamento do campo,

conforme explica Bourdieu:

O campo literário é um campo de forças a agir sobre todos aqueles que entram nele, e de maneira diferencial segundo a posição que aí ocupam (seja para tomar pontos muito afastados, a do autor de peças de sucesso ou do poeta de vanguarda) ao mesmo tempo que um campo de lutas de concorrência que tendem a conservar ou a transformar esse campo de forças. E as tomadas de posição (obras, manifestos, ou manifestações políticas etc.) que se pode e deve tratar como um “sistema” de oposições pelas necessidades de análise, não são o resultado de uma forma qualquer de acordo objetivo, mas o produto e a aposta de um conflito permanente. Em outras palavras, o princípio gerador e unificador desse “sistema” é a própria luta. (BOURDIEU, 2010, p.261-263)

Ligado à noção de campo, como mencionado, está o conceito de habitus. As

leis e regras existentes dentro de um campo determinam a incorporação do habitus,

que opera, também, no sentido de tornar invisíveis certas relações objetivas,

conformadoras de práticas que tendem a reproduzir certos esquemas de

pensamento. Na visão de Loïc Wacquant:

O habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar ‘a interiorização da exterioridade e a exterioridade da interioridade’, ou seja, o modo como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob forma de disposições duráveis, ou capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social existente. (WACQUANT, 2007, p.66)

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Para Bourdieu, “a análise científica das condições sociais da produção e da

recepção da obra de arte, longe de a reduzir ou de a destituir, intensifica a

experiência literária” (2010, p.14). A análise relacional concebe a obra literária não

apenas como produto final, ou depósito de valores do espírito, entende-a, antes,

como produção humana concreta efetivada segundo condições objetivas. Bourdieu

entende que estudar a literatura tendo em vista o espaço social a partir do qual se

formulou uma determinada visão de mundo “é dar possibilidade real de situar-se nas

origens de um mundo cujo funcionamento se nos tornou tão familiar que as

regularidades e as regras às quais obedece escapam-nos” (2010, p.64). Em vista

disto, Bourdieu ensina que a ciência das obras culturais que instaura supõe três

operações ligadas a três planos da realidade social que apreendem: (i) a análise da

posição do campo literário no seio do campo de poder; (ii) a análise da estrutura

interna do campo literário, isto é “a estrutura das relações objetivas entre as

posições que aí ocupam indivíduos ou grupos colocados em situação de

concorrência pela legitimidade” (2010, p.243); (iii) a análise da gênese dos habitus

dos ocupantes dessas posições, ou seja, “o sistemas de disposições, que sendo o

produto de uma trajetória social e de uma posição no interior do campo, encontra

nessa posição uma oportunidade mais ou menos favorável de atualizar-se” (2010,

p.243).

O campo literário, na visão de Bourdieu, sofre o domínio do campo do poder,

visto que muitas das práticas de produções dos escritores só se deixam explicar a

partir de sua lógica. O campo do poder “é o espaço das relações de força entre

agentes ou instituições que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar

posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou cultural, especialmente)”

(BOURDIEU, 2010, p.244). Daí a análise da posição no campo, que deve levar em

conta, segundo a lógica que segue, as relações entre os escritores e os editores, os

agentes literários, o crítico, etc. Outra singularidade que liga o campo literário ao

campo de poder é a relação que mantêm os produtores culturais - “votado e

devotado ao mercado e ao lucro” (2010, p.249) – com o “sucesso”, aspecto que lhe

confere legitimidade e ascensão na posição que ocupa dentro do campo. O sucesso

de um escritor, por sua vez, é medido por índices comerciais (como publicação em

grandes editoras, o número de tiragens, etc.), ou de notoriedade social (como

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condecorações, premiações em concursos literários, reconhecimento do “grande

público”, etc.). Do extrato, a associação da literatura ao mercado, costumeiro em

estudos da literatura contemporânea, encontra na lógica do campo literário e suas

disputas a sua explicação por primazia.

A estrutura interna do campo literário, que dá conta das relações objetivas

entre as posições ocupadas no campo e suas lutas internas, tem na busca pela

legitimidade um de seus princípios. Uma das apostas centrais das rivalidades

literárias, para Bourdieu, é o monopólio de outorgar quem “está autorizado a dizer-se

escritor e quem tem autoridade para dizer quem é escritor”, trata-se, por assim dizer,

do “monopólio do poder de consagração dos produtores ou dos produtos” (2010,

p.253). Essas, que são “lutas de definição”, instituem fronteiras, controlando as

entradas e permanências no campo cultural e colocando em relação duas

estruturas: a estrutura das relações objetivas entre posições ocupadas (e entre os

produtores que já a ocupam) e a estrutura das relações objetivas entre as tomadas

de posições. Tais estruturas estabelecem, por sua vez, a correspondência entre os

espaços das posições e o “espaço dos possíveis” e “quando um novo grupo literário

ou artístico se impõe no campo, todo o espaço das posições e o espaço dos

possíveis correspondentes” veem-se transformados (2010, p.265):

A relação entre as posições e as tomadas de posições não tem nada de uma relação de determinação mecânica. Entre umas e outras se interpõe, de alguma maneira, o espaço dos possíveis, ou seja, o espaço das tomadas de posição realmente efetuadas [...], isto é como um espaço orientado e prenhe das tomadas de posição que aí se anunciam como potencialidades objetivas, coisas “a fazer”, “movimento” a lançar, revistas a criar, adversário a combater, tomadas de posição estabelecidas a “superar”, etc. (BOURDIEU, 2010, p.265).

Em um universo onde “existir é diferir”, como no campo literário, o produtor de

uma obra tem de estar disposto a “jogar o jogo”, o que implica, parafraseando

Bourdieu (2010, p.275), não apenas a arte de produzir uma obra, mas também a

arte de se produzir como artista. A iniciativa de adentrar e permanecer em um

campo literário, o que acarreta certas “mudanças” no interior do campo, cabe “quase

por definição aos recém-chegados, ou seja, aos mais jovens, que são também os

mais desprovidos de capital específico” (2010, p.271). Para ocupar uma posição

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distinta, e distintiva, esses jovens, “que podem ser quase tão velhos biologicamente

quanto os “antigos” que pretendem superar”, devem firmar sua diferença, “impondo

modos de pensamento e de expressão novos, em ruptura com os modos de

pensamento em vigor” (2010, p.271). Porém, há um paradoxo, explica Bourdieu: ao

tempo em que parte das condições de entrada do campo artístico é a “disputa”, que

requer algo de superação ao já instituído, a “presença do passado específico nunca

é tão visível quanto nos produtores de vanguarda que são determinados pelo

passado até em sua intenção de o superar” (2010, p.274), ao que segue:

Se o campo tem uma história orientada e cumulativa, é que a intenção mesma de superação que define propriamente a vanguarda é ela própria o resultado de toda uma história e está inevitavelmente situado com relação ao que pretende superar, ou seja, com relação a todas as atividades de superação que passaram para a estrutura mesma do campo e para o espaço dos possíveis que ele impõe aos recém-chegados. (BOURDIEU, 2010, p.274)

As considerações de Bourdieu sobre as tomadas de posições e o espaço dos

possíveis são pertinentes ao estudo sobre a literatura contemporânea, sobretudo

quando se observa os “recém-chegados” e suas imposições às estruturas do campo.

Ao trabalharmos com a perspectiva de Bourdieu, considerando o campo literário, é

necessário atentar para a série de regras que permitem e estabelecem as trocas e

as relações entre os produtores que dele participam. Reivindicar maior presença e

participação da literatura no sistema social significa reconhecer que o seu sentido

não é apenas aquele que está no texto, mas o significado que o texto assume a

partir de suas condições práticas de produção, circulação e recepção. A literatura

contemporânea, sobretudo a produzida no século XXI, constitui um campo dinâmico

que pode ser definido pela lógica da atuação e inter-relação entre escritores,

agentes literários, editores, instituições, mercado, entre outros. Essas lógicas de

atuação, por sua vez, configuram estratégias que, vistas dentro de um campo e

ampliando o seu sentido, constituem um complexo a que podemos chamar de

sistema literário. Poder-se-ia argumentar que sistema não estaria apropriado, uma

vez que o termo pode suscitar um ponto de vista reducionista, privilegiando,

também, uma única visão de literatura. A realidade literária realmente não pode ser

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definida no singular, pois são muitos os elementos que a significam, logo, tratá-la-

emos no plural, como um Polissistema, tal qual concebe Itamar Even-Zohar.

Even-Zohar, ao falar de literatura, o faz a partir de uma concepção relacional

e também sistêmica. Porém, o termo sistema, para o pesquisador, mostra-se

ambíguo, pois pode suscitar noções fechadas, limitando o entendimento de literatura

segundo uma chave estruturalista de relações estanques (EVEN-ZOHAR, 2007,

p.28). A literatura, para o teórico israelense, configura um agregado de atividades

que, como um todo, constitui um sistema que interage com outros sistemas. O autor

formula a “Teoria dos Polissistemas”, publicada no livro eletrônico Polissistemas de

Cultura (1990-2007), tomando emprestado o conhecido esquema da comunicação

elaborado por Roman Jakobson, adaptando-o ao caso da literatura, conforme

apresentamos a seguir:

Instituição (contexto)

Repertório

(código)

Produtor Consumidor (emissor; escritor) (receptor, leitor)

Mercado

(contato; canal)

Produto (mensagem)

Segundo Even-Zohar, o esquema que sugere “está pensado principalmente

para representar los macro-factores implicados en el funcionamiento del sistema

literario” (2007, p.29). Even-Zohar amplia a noção de campo literário desenvolvida

por Bourdieu, à medida que reconhece a existência de uma instituição literária, cuja

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autonomia1 é condição para pensar a sua inter-relação com os outros sistemas. Com

a noção de polissistema o teórico redefine e atualiza, além do conceito de campo, o

conceito de sistema literário, alargando seu espaço de ação e de interação. De

forma breve, o sistema literário, para a teoria dos polissistemas, ganha a seguinte

formulação: “La red de relaciones hipótetizadas entre una cierta cantidad de

actividades llamadas “literarias”, y consiguientemente esas actividades mismas

observadas a través de esta red” (EVEN-ZOHAR, 2007, p.25).

O E-dicionário de Termos Literários Carlos Ceia explica que a teoria dos

polissistemas inclui aspectos dos pressupostos dos formalistas russos e do

estruturalismo da Escola de Praga, desenvolvendo-se, numa segunda fase, a partir

das contribuições da semiótica da cultura, com nomes como Iuri Lotman, membro da

Escola de Tartu. Quanto à conveniência de apoiar-se no linguista russo considerado

um dos pioneiros da análise estrutural da linguagem, Even-Zohar explica que a

aproximação entre as noções do linguista e as adaptações feitas dá-se mais pelo

posicionamento de Jakobson em relação à língua: “la visión de Jakobson a lo largo

de toda a su vida fue la de que ‘el lenguaje debe investigarse en toda la variadad de

sus funciones’” (2007, p.30). Assim como Jakobson, Even-Zohar busca ilustrar os

fatores constitutivos de qualquer ato de comunicação verbal compreendendo todos

os fatores implicados no conjunto de atividades que se agrupam sob a etiqueta de

atividades literárias:

Basta con reconocer que son las interdependencias entre estos factores lo que les permite funcionar. Así, un CONSUMIDOR puede “consumir” un PRODUCTO producido por un PRODUCTOR, pero para que se genere el “producto” (el “texto”, por ejemplo), debe existir un REPERTORIO común, cuya posibilidad de uso está determinada por una cierta INSTITUICION. Debe existir un MERCADO en que este bien pueda transmitirse. En la descripción de los factores enumerados, no puede decirse de ninguno de ellos que funcione aislado, y la clase de relaciones que pueden detectarse cruza todos los posibles ejes del esquema. (EVEN-ZOHAR, 2007, p.32)

Em termos gerais, cada elemento constitutivo do polissistema passa a ser 1 Grosso modo, a noção de autonomia se refere à condição de autodeterminação do campo. Conforme destaca Charles Harrison, “nas ciências, um processo ou desenvolvimento autônomo é aquele que pode ser estudado isoladamente, baseado no fato de que conforma um conjunto de leis próprio dele”. Nesse sentido, a arte pode ser tida como autônoma uma vez a arte se desenvolve de acordo com suas próprias leis de funcionamento, o que equivale a sugerir que o processo artístico, de certa forma é um processo autogovernado.

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explicado. Em lugar do termo escritor, ou simplesmente emissor, Even-Zohar prefere

produtor e produtores, para não suscitar imagens muito específicas. Os estudos

literários por muito tempo colocaram o escritor no centro da literatura, como fonte e

origem da obra. Quando se viu extinta tal prática, surgiram os modelos

“interpretativos” que tomam os textos como algo que existe de maneira tal que não é

necessário questioná-los ou investigá-los em sua materialidade, restando somente

decifrar seus segredos “ocultos”. Segundo Even-Zohar, faz-se necessário pensar os

textos como produtos produzidos por um produtor, inseridos em certo contexto

social, vinculados a um discurso de poder moldado segundo certo repertório

aceitável e legitimado.

Da mesma forma, Even-Zohar prefere os termos consumidor e consumidores,

em lugar de leitor, que remete a uma entidade específica para a qual se produz

literatura, não alcançando a infinidade de indivíduos atingidos pela produção literária

que, ademais, não é só consumida mediante a leitura. Destaca Even-Zohar a

existência de consumidores diretos e indiretos, sendo que todos os membros de

qualquer comunidade são ao menos consumidores “indiretos” de literatura, pois

consomem fragmentos literários, digeridos e transmitidos por variados agentes

culturais e integrados no discurso diário. Os consumidores diretos são aquelas

pessoas voluntárias e interessadas nas atividades literárias - participam de várias

outras formas no sistema literário. Os consumidores de literatura consomem a

função sociocultural dos atos implicados nas atividades em questão (EVEN-ZOHAR,

2007, p.35).

A instituição funciona, por sua vez, com um agregado de fatores implicados

na manutenção da literatura como atividade sociocultural, regendo normas que

prevalecem nessa atividade, sancionando umas e rechaçando outras. Remunera e

penaliza os produtores e agentes, como também determina quem e que produtos

serão lembrados por uma comunidade. Para Even-Zohar a instituição inclui parte

dos produtores: críticos, editoras, periódicos, grupo de editores, escolas,

universidades, meios de comunicação, etc. As instituições podem operar em

diferentes seções dentro do sistema, conforme disputas travadas pelo domínio e

imposição de suas preferências, o que lembra Bourdieu nas suas considerações

acerca das disputas e tomadas de posições.

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O mercado comporta o conjunto de fatores implicados na compra e venda de

produtos literários e na promoção de tipos de consumo e inclui instituições abertas,

dedicadas à troca de mercadorias, tais como livrarias, clubes do livro e bibliotecas.

Os fatores da instituição literária e do mercado literário podem naturalmente

encontrar-se no mesmo espaço: uma escola, exemplifica Even-Zohar, é um membro

de uma instituição, que pode servir de mercado, devido a sua capacidade de vender

o produto aos estudantes, servindo o professor como mercador.

O repertório diz respeito ao conjunto de regras e conhecimentos partilhados

que regem tanto a confecção quanto o uso de qualquer produto. Se considerados os

“textos” como a mais evidente manifestação da literatura, o repertório literário será o

conjunto de regras e unidades que classificam os tipos de discurso. Por outra parte,

se considerado que a literatura se manifesta em diferentes produtos, em diferentes

formas, o repertório literário pode ser concebido como um agregado de repertórios

específicos para cada uma dessas manifestações diversas. A estrutura desses

repertórios específicos, explica Even-Zohar, pode ser definida em três níveis

distintos: o nível dos elementos individuais, dos sintagmas e dos modelos. O nível

dos elementos individuais inclui os elementos simples como morfemas e lexemas; o

nível dos sintagmas refere-se às combinações no nível das orações sintagmáticas

(modos de fala, expressões, modismos, etc.); e, por último, o nível dos modelos que

corresponde ao conceito de gêneros. O autor considera que a concepção de que as

produções literárias são dadas pelos tipos (gêneros) cotidianos de discursos

contribui para nos libertarmos do conceito romântico da literatura como “criação livre”

(EVEN-ZOHAR, 2007, p.40).

Por fim, Even-Zohar questiona o texto como manifestação única da literatura,

pois considera que esse não é o único, nem necessariamente o mais importante

produto literário. São também produtos quaisquer conjuntos de signos realizados (ou

realizáveis), resultantes de uma atividade qualquer como, por exemplo, aquelas

motivadas pelas obras, como resumos, resenhas, críticas, citações, referências. O

pesquisador colombiano Nelson C. Rodriguez (2007), em artigo bastante ilustrativo,

diz ainda que quando falamos de textos não devemos nos referir somente a textos

escritos, pois o literário, sabemos, não se expressa somente de maneira escrita. Ao

que segue:

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Es importante hablar que lo literario, no solo incluye al texto como generador unico de realidades, debemos hablar de productos, contenidos, recursos patrimoniales y fenómenos literarios que no se configuram bajo la forma de texto en ninguna de las possibilidades antes descritas, y se pueden visualizar de la siguiente manera: a. Un producto literario puede ser un bien, servicio u obra que tiene un referente claro con la literatura [...]. b Los contenidos puedem verse como construcciones mentales desarrolladas por los lectores, espectadores, escuchas, interpretes en torno a lo literario [...].c. Recursos patrimoniales, son espacios, bienes culturales y sociales de valor excepcional tangibles o intangibles [...] d. Los fenómenos literarios como acontecimientos, sucesos, eventos particulares. (RODRIGUEZ, 2007, p.3)

Itamar Even-Zohar, em conferência na Universidade de Almería, em 1997,

analisou as recorrentes formas de se pensar e abordar a cultura, a qual se dá a

partir de duas categorias: a cultura entendida como “bem” e a concepção de cultura

como “ferramenta”. A cultura como “bem” é considerada como um conjunto de bens

valiosos, cuja posse significa riqueza e prestígio a uma determinada sociedade, e os

bens podem ser materiais ou simbólicos. Dessa forma, explica Even-Zohar, os bens

tanto podem ser castelos ou um conjunto de escritores. Já como ferramenta,

entende cultura como um “conjunto de herramientas para la organización de vida, a

nivel colectivo e individual” (1999, p.28). As ferramentas, nesse caso, podem ser de

dois tipos: passiva ou ativa. Enquanto ferramentas passivas, a literatura é vista de

uma perspectiva que tem suas raízes na tradição hermenêutica, analisando e

explicando a realidade, mas nela não interferindo, podemos dizer que está mais

ocupada em entender as formas de organização da cultura. Já enquanto ferramenta

ativa a literatura está mais conectada com a atuação do que com o entendimento,

ainda que seja indispensável entender para atuar. Even-Zohar explica que como

ferramenta ativa, o que importa, mais do que extrair sentido, é o auxílio e a

preparação para o sujeito agir na realidade: “Las herramientas “activas” son los

procedimentos con la ayuda de los cuales un individuo puede manejar cualquier

situación ante la que se encuentre, así como producir también cualquier tipo de

situación”. (1999, p.28). Para tanto, explica Even-Zohar, citando Swidler (1986), a

cultura é vista como um repertório, ou “una caja de herramientas, de hábitos,

habilidades, y patrones mediante el que la gente construye ‘estratégias de acción’”

(SWIDLER, 1986, apud EVEN-ZOHAR, 1999, p.28)

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Considerar a literatura como atividade humana resultante de processos de

produção muda substancialmente as formas de estudá-la, não mais isoladamente,

mas a partir das dinâmicas interações que a obra estabelece no campo mais amplo

das relações da literatura com os processos e práticas sociais de que participa. A

cadeia literária, além do autor e do leitor, envolve diversos agentes, como críticos,

jornalistas, professores, formadores de opinião, além de uma rede de instituições,

associações, empresas e entidades que participam da vida do texto, dentro de um

determinado sistema, que funciona segundo certas regras locais e globais. Partimos,

portanto, dessa concepção que entende que a literatura comporta um complexo de

atividades, nas quais estão envolvidos, entre outros fatores, a profissionalização do

escritor e o multifacetado papel de produtor cultural que passa a assumir. Como

produtor cultural, o escritor não mais está confinado aos textos que produz, mas

trabalha no sentido de ampliar a circulação de suas obras, interagindo com o público

leitor, no âmbito de escolas, feiras de livros e eventos artísticos e culturais.

Responde pelo fortalecimento do mercado editorial, não apenas escrevendo obras,

mas também editando seus textos, e atua na mídia divulgando as ações literárias.

Tudo isso, certamente, em conexão com o estabelecimento de repertórios que

asseguram a circulação e a recepção dos textos.

Tais conjunturas estão evidenciadas na arte literária e desvelam-se tanto em

obras como a analisada por Bourdieu, que descreve a cena literária francesa do

século XIX, quanto na literatura que se produz no século XXI, quando mais do que

nunca a literatura vê-se interligada ao monopólio do poder e ao mercado cultural.

Para dar conta da relação entre cultura, sociedade, arte e mercado é que as ideias

desses teóricos parecem ter enorme interesse.

2.3 CONVERGÊNCIAS LITERÁRIAS E SOCIOCULTURAIS

Nos estudos literários, verificamos a predominância de interpretações

textuais, com atenção aos aspectos temáticos e composicionais da obra, “ilustrados”

a partir da aplicação de conceitos e referenciais teóricos, constituindo uma espécie

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de paradigma dominante2. A recorrência de tais práticas no campo da investigação

literária acaba por ditar normas e condutas de pesquisa, tornando invisíveis

alternativas outras de investigação. Alguns estudos, ainda minoritários, buscam

romper com a concepção de literatura entendida como um bem predominantemente

espiritual, produzido pela inspiração de um artista em estado de isolamento, e que

serve para a manifestação de posições mais ou menos subjetivas de seus

estudiosos.

O conceito de campo literário trabalhado pelo sociólogo Pierre Bourdieu,

revela-se operativo para o entendimento da engrenagem que envolve a produção, a

circulação e o consumo do material artístico. André Glaser, um dos estudiosos

brasileiros de Raymond Williams, afirma que tanto Bourdieu quanto Williams

entendem a produção artística como manifestação cultural e interessam-se pela

produção advinda de diversificadas camadas sociais, não elegendo como matéria de

expressividade humana somente as literaturas canonizadas:

A sociologia da cultura de Bourdieu inscreve-se, de início, na via traçada por Raymond Williams. Uma convergência marcante une o pensamento destes dois pesquisadores, de um lado e de outro da Mancha. Ambos se interessam pela produção e difusão das obras culturais, ambos têm insistido nas relações de poder que nelas se inscrevem, que elas escondem ou exprimem; ambos se interessam pelas separações e interações entre a cultura de elite e a cultura popular [...].(GLASER, 2008, p.173)

Bourdieu busca evidenciar em sua teoria do campo literário que o

entendimento da criação artística só é possível a partir do descortinamento e

mapeamento das mediações entre campo e agentes. Em outras palavras, para

Bourdieu, a literatura é um fenômeno dinâmico e em As regras da Arte busca

sistematizar aspectos da literatura, entendida como figuração simbólica do real, em

suas dinâmicas de disputas e tomadas de posição. A literatura contemporânea

alimenta-se destas disputas e nela os agentes transitam entre papéis antes

definidos, agora diversificados.

2 In: OLIVEIRA, Rejane Pivetta. Estudos literários: tendências, limites e reconversões teóricas. Nonada, v.12, 2009, p.16-27.

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Segundo Williams, a matéria-prima para a produção literária altera-se com o

decorrer da história, e a realidade concreta que apreende produz novas

observações, novas comparações, novas produções de novos significados. Mas as

principais convenções literárias, explica André Glaser, comportam tensões

permanentes que funcionam como alimento para a expressividade: “de um lado,

possuem elementos de continuidade [...]; de outro, esses elementos são

constantemente testados e comumente alterados, de acordo com as exigências de

um novo momento histórico-social” (GLASER, 2008, p.188). Desse modo, a

perspectiva material da cultura de Raymond Williams, combina-se com as

abordagens relacional de Pierre Bourdieu e sistêmica de Itamar Even-Zohar.

Constatada e esclarecida a necessidade de concepções e abordagens outras

nos estudos científicos humanísticos, Boaventura de Souza Santos, agora em seu

texto A queda do Angelus Novus (1996), esclarece que não se trata, porém, de

negar a modernidade em prol da pós-modernidade. Trata-se, antes, de reconhecer

na ciência que praticamos elementos fundamentais de construção de uma nova

compreensão de mundo:

Compreender assim a ciência não é fundá-la dogmaticamente em qualquer dos princípios absolutos ou a priori que a filosofia da ciência nos tem fornecido, desde o ens cogitans de Descartes à reflexão transcendental de Kant, ao espírito absoluto de Hegel, à consciência pura e sua intuição das essências de Husserl, à imediação da percepção sensorial do empirismo anglo-saxônico e do sensualismo francês. Ao contrário, trata-se de compreendê-la enquanto prática social de conhecimento, uma tarefa que se vai cumprindo em diálogo com o mundo que é afinal fundado nas vicissitudes, nas opressões e nas lutas que o compõem e a nós, acomodados ou revoltados. (SANTOS, 1996, p.13)

Itamar Even-Zohar (2007) salienta que não há dúvidas de que os textos são

os produtos mais óbvios do sistema literário, mas, parafraseando Joaquín Aguirre3,

os livros não são a literatura, e lembremos que a literatura é anterior aos livros,

suporte clássico da literatura, e seguramente será posterior a eles. Não se trata de

ignorar o texto, ou o livro em si, mas de reconhecer outros elementos e fenômenos

3 AGUIRRE, Joaquín. El fluido literario: Internet y la Literatura. Universidad Complutense de Madrid. Espéculo - Revista de estudios literarios, 2005. Disponível em: http://www.ucm.es/info/especulo/numero31/fluido.html Acesso em: maio 2011.

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que conformam o mundo literário e que podem nos levar a um entendimento mais

amplo dessa área de estudo.

É fato que a literatura tem se renovado e se reinventado de forma expressiva

nesta última década: novos talentos, inovadoras iniciativas, múltiplos programas de

incentivo, irreverentes editoras, variadas festividades de cortejo ao livro. Todo esse

entusiasmo representa uma movimentação literária que, no mínimo, é merecedora

de atenção e reflexão. Ao mesmo tempo, o sistema literário que se modela aparece-

nos como uma incógnita: difícil definir papéis e funções, estratégias de entrada

atuação e permanência, suas lógicas de relações e trocas, suas regras internas.

Diante desse quadro, voltamos nosso interesse para a literatura produzida a partir

dos anos 2000, a literatura do século XXI. Para essa pesquisa, lançamos olhar sobre

um grupo pequeno de escritores, se comparado ao todo que tem produzido e

consumido no vasto campo literário que hoje se nos apresenta. Nosso recorte busca

dar conta da movimentação literária em torno de um grupo de jovens escritores que

se tem destacado da cena contemporânea de Porto Alegre, tomando como

paradigmático o caso do escritor Daniel Galera. Busca-se investigar as relações da

produção literária desse autor com o sistema cultural, o que é significativamente

relevante para que se compreenda em boa medida que essa entrada dos “novos” no

sistema literário funciona também ao nível da ficção como tema e estratégia de

tomada de posição do autor no campo literário, de maneira autorreflexiva.

As formulações desses três teóricos, enriquecidas e problematizadas pela

própria análise do texto literário do escritor Daniel Galera, orientam a análise do

problema proposto: investigar e compreender a atuação cultural de jovens escritores

porto-alegrenses contemporâneos e sua inserção no sistema cultural.

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3. A LITERATURA DO CONTEMPORÂNEO

3.1 A GERAÇÃO ZERO ZERO

Na segunda metade do século XX, ao lado da aceleração das tecnologias de

comunicação e da velocidade das mudanças econômicas, ocorreram mudanças que

colocaram em xeque certezas, inverteram costumes e transformaram o homem

social e suas formas de conceber o mundo. Em época em que se acelera o tempo e

comprimem-se os espaços, o escritor contemporâneo não só acompanha a

velocidade com que as coisas acontecem, como modifica as suas relações com a

arte e o fazer literários. Festas literárias, bienais, programas de TV, encontros com o

autor, prêmio literários, blogs, twitter e facebook, somados a uma visível proliferação

de produtores literários, conferem à literatura contemporânea características

singulares, que certamente impõem aos estudiosos novos parâmetros críticos e

teóricos.

Contrários a constatações pessimistas acerca do livro impresso (sua extinção

pela ascensão dos e-books), da leitura e da escrita (que os jovens não leem e não

escrevem, desestimulados pela era da imagem), autores vários, notoriamente

jovens, surgem e movimentam o cenário literário, configurando uma situação, no

mínimo, contraposta. “Conhecendo o jogo na ponta da língua” e dispostos a ocupar

uma posição no campo literário, esses “recém-chegados” produzem, em

conformidade com as concepções de Bourdieu, objetos “cuja produção como obras

de arte supõe a produção do produtor como artista”. (2010, p.279). Nelson de

Oliveira4, já na última década do século XX, percebido o boom literário que se

instaurava, ocupou-se em mapear a literatura vigente, reunindo em coletâneas

contos escritos por esses novos autores que vinham despertando a atenção dos

leitores contemporâneos e, consequentemente, o interesse do mercado literário.

4 Nelson de Oliveira é doutor em Letras pela USP, professor, pesquisador e escritor. Quando escritor assina suas obras de ficção e suas narrativas infantis sob o pseudônimo de Luis Bras. Publicou mais de vinte livros e coleciona algumas polêmicas em seu currículo. Dentre suas publicações, nos interessam as duas antologias da “Geração 90” por Oliveira organizada: Geração 90: manuscritos de computador (2001) e Geração 90: os transgressores (2003); e a antologia Geração Zero Zero: fricções em rede (2011).

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Organizou, à época, duas antologias da geração 90, pelas quais se deram a

conhecer mais amplamente ou firmaram reputação autores como Marcelino Freire,

Altair Martins, Rubens Figueiredo, Cíntia Moscovich, André Sant’Anna, Marcelo

Mirisola, Daniel Pellizzari, entre outros nomes hoje (re)conhecidos no circuito literário

brasileiro. Com o mesmo propósito, mapear a literatura produzida dentro de um

recorte temporal, Oliveira organizou, em 2011, uma nova “antologia de autores”, a

Geração Zero Zero, agora voltada à primeira década do século XXI. Diferente das

antologias tradicionais, o organizador explica que não se preocupou em reunir os

melhores contos produzidos - quase na totalidade as narrativas desta última edição

são inéditas -, frisando que essa não é “uma seleção dos melhores contos da

Geração Zero Zero, mas dos melhores autores” (2011, p.15).

Geração Zero Zero: fricções em rede reúne vinte e um5 ficcionistas brasileiros,

de diferentes regiões do país, que estrearam a partir do ano 2000 – e, segundo

critério de seleção, que já tivessem dentro desse período, no mínimo, duas obras

publicadas. Dentre esses autores, quatro são nomes já conhecidos no cenário

literário do Rio Grande do Sul, Marcelo Benvenutti, Paulo Scott, Daniel Galera -

escritores surgidos na “incubadora” Livros do Mal - e Verônica Stigger. Também

figuras conhecidas no cenário nacional configuram a coleção, tais como Ana Paula

Maia, Andréa del Fuego e Flávio Viegas Amoreira.

Em entrevista6 à TV Cultura, Oliveira explica que exceto os itens ano e

número de publicações, os escritores, a quem anuncia como “os melhores” dessa

geração, foram escolhidos segundo a sua opinião, o que gerou polêmica e alguma

crítica. Além de muitos outros escritores terem ficado de fora da antologia, o fato de

reunir escritores diversos sem aparente elemento comum que norteie as narrativas

5 A saber, os autores que fazem parte da coletânea Geração Zero Zero: fricções em rede, em ordem de publicação, são: Flávio Viegas Amoreira (SP), Marcelo Benvenutti (RS), João Filho (BA), Whisner Fraga (MG), Andréa del Fuego (SP), Daniel Galera (SP/RS), Marne Lúcio Guedes (CUBA/SP), Maria Alzira Brum Lemos (SP), Ana Paula Maia (RJ), Tony Monti (SP), Lourenço Mutarelli (SP), Santiago Nazarian (SP), José Rezende Jr. (MG), Sidney Rocha (CE), Carola Saavedra (CHILE/SP), Paulo Sandrini (SP), Walther Moreira Santos (PE), Carlos Henrique Schroeder (SC), Paulo Scott (RS), Veronica Stigger (RS), LimaTrindade (DF). 6 Programa Metrópoles - TV Cultura. jan. de 2011. Disponível em: http://mais.uol.com.br/view/xiddtuwnvlqs/metropolis--nelson-de-oliveira-fala-sobre-nova-antologia-04029B366AC0999307?types=A Acesso em: jun. 2011.

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sob o rótulo de “geração” não foi visto com bons olhos pela crítica especializada,

ainda à época do lançamento das coletâneas dos anos 90. Paulo Wernac (2010),

por exemplo, editor do caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo e ex-editor de

literatura da Cosac Naify e da Companhia das Letras, expõe sua crítica, explicitando

o caráter mercadológico do projeto de Oliveira:

Marketing é para editoras e livrarias, não para autores e críticos. Escritores que se escoram no marketing não subvertem o capitalismo, apenas o reiteram e negam o exercício da crítica. Para ter verdade crítica, uma antologia deve identificar movimentos, vetores, sensibilidades compartilhadas por um grupo. É preciso um ensaio de peso, uma revista, um manifesto que justifiquem o batismo de uma nova geração literária.7

A crítica de Wernac, sob o título “Antologias simbolizam a era do marketing

literário” (2010), vão ao encontro das concepções de Bourdieu sobre as “lutas

internas e sanções externas” no campo literário, que é um campo de concorrência

pelo monopólio da legitimidade artística. Para Bourdieu “a oposição entre arte e

dinheiro é o princípio gerador da maior parte dos julgamentos que, em matéria de

[...] literatura, pretende estabelecer a fronteira entre o que é arte e o que não é”

(2010, p.187). O campo literário atrai e acolhe agentes muito diferentes entre si “por

suas propriedades e suas disposições, portanto, por suas ambições” (BOURDIEU,

2010, p.256). Assim posto, podemos entender o discurso de Wernac sob duas

possibilidades, tendo em vista as disputas operantes no campo: enquanto crítico que

busca defender a “literatura pura” contra os ataques proféticos, estabelecendo,

dessa forma, o que tem e o que não tem valor de sagrado no campo literário; ou

como um dos possíveis exemplos das relações objetivas de disputas que ocorrem

entre agentes quando na defesa das posições que ocupam dentro do campo em que

estão inseridos. Bourdieu expõe:

No campo literário ou artístico, os recém-chegados ao seio da vanguarda podem tirar partido da relação que espontaneamente se tende a estabelecer entre a qualidade da obra e a qualidade social de seu público para tentar desacreditar a obra da vanguarda em via de consagração, imputando à

7 WERNAC, Paulo. Antologias simbolizam a era do marketing literário. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 dez. de 2010. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/847533-antologias-simbolizam-a-era-do-marketing-literario.shtml Acesso em: 16 out. 2012.

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renegação ou ao esfriamento da intenção subversiva o rebaixamento da qualidade social de seu público. (BOURDIEU, 2010, p.288)

Críticas e disputas à parte, emprestaremos a definição de Oliveira para fazer

referência não só aos escritores da coletânea, mas aos escritores que tiveram suas

primeiras publicações a partir dos anos 2000. O cunho dar-se-á antes pelo seu

caráter de recorte temporal que pela associação de escritores em grupo por

aspectos comuns, como trataremos adiante. Não se intenta forjar, portanto, caráter

de movimento ou escola que possa reunir tais escritores, batizando “uma nova

geração literária”.

O projeto de identificar quais escritores deram rosto à prosa brasileira na

primeira década do século XXI não representa tarefa fácil. Nelson de Oliveira, ainda

na entrevista à TV Cultura, conta que trabalhou por três anos na seleção dos

“melhores escritores”, partindo de um montante de cento e cinquenta nomes,

acumulados durante dez anos de observação e pesquisa. Tal ocorrência reforça o

caráter de fenômeno literário anunciado pelos poucos pesquisadores desta literatura

emergente e, segundo explica Oliveira na introdução da coletânea, “o número é

gigantesco, não resta dúvida, pois nunca se publicou tanto como nesse período”

(2011, p.13). Com a facilidade advinda das novas tecnologias de informação e,

claro, da internet – a protagonista da era digital -, presencia-se, além da propagação

da produção literária, a sua descentralização, visto que os escritores que surgem

fazem da internet um meio pelo qual chegar aos leitores, sem a intervenção primeira

das editoras renomadas. Trata-se de escritores que, através de blogs, redes sociais

e sites, inauguraram e impuseram novas formas de relação do livro com o mercado

editorial e fizeram da cibercultura sua estratégia de atuação e da literatura a sua

arte. Tais considerações são apontadas por Oliveira:

Muitos deles surgiram primeiro na maçaroca líquida da web. Apesar disso, a internet e suas redes sociais — sites, blogues, Orkut, Facebook, Twitter etc. — afetam essa geração apenas superficialmente. Se a internet prometeu, no seu primórdio, revolucionar a literatura por meio do hyperlink, essa promessa ainda não foi cumprida. Sites, blogues e miniblogues (Twitter) são ótimos veículos para a literatura, pois condensam numa só pessoa a figura do autor, do editor, do impressor e do livreiro. Também são ótimos veículos para a divulgação da literatura, espalhando resenhas e releases. Mas essas ferramentas digitais não representam por si sós uma nova linguagem

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literária. Aliás, a web ainda não conseguiu sequer modificar profundamente a estrutura literária off-line. (OLIVEIRA, 2011, p.14)

Como referido por Oliveira, fica claro quando na leitura das narrativas dos

escritores da Geração Zero Zero a afirmativa de que a internet afeta essa geração

de forma superficial, uma vez que muitos seguem certos preceitos clássicos de

literatura. Porém, a literatura contemporânea apresenta algumas mudanças. Os

jovens escritores, ainda que não desposem a ideia clássica de literatura e escritor -

como entidades nobres, representativas do patrimônio cultural e espiritual de uma

nação, conforme uma concepção romântica ainda hoje dominante -, atuam de modo

inusitado, compatível com a cultura contemporânea, influência dos meios de

comunicação de massa e da era digital. Segundo explica André Glaser, para

Raymond Williams, ao tratar das culturas emergentes e residuais, a natureza de uma

cultura “é sempre, ao mesmo tempo, tradicional e criativa” (GLASER, 2008, p.188).

Em outras palavras, as principais convenções literárias, na concepção de Williams,

comportam uma tensão permanente – de um lado observamos elementos de

continuidade e de outros “novos significados e valores, novas práticas, novos

sentidos e experiências estão sendo continuamente criados” (WILLIAMS, 2011b,

p.57). Assim, nada mais natural que se possam observar claramente resíduos de

uma determinada tradição literária na qual se inspiraram os escritores

contemporâneos, que antes de escritores provam-se experientes leitores.

Parafraseando Borges, cada texto é produto de outros textos e esses de outros

mais. Convicção similar está na base do pensamento de Gerárd Genette, em seu

Palimpsestos: a literatura de segunda mão (2006). Ao tratar de transtextualidade ou

transcendência textual dos enunciados, o autor afirma que todo texto está em menor

ou maior grau relacionado com textos outros. Independente das variantes na

conceituação de intertextualidade, o pressuposto inconteste parte do dialogismo

bakhtiniano, segundo o qual todo discurso é essencialmente dialógico porque

“sempre responde (no sentido lato da palavra), de uma forma ou de outra, a

enunciados de outros anteriores” (BAKHTIN, 2010, p.319). Enfim, podemos afirmar

que todas as obras são hipertextuais em maior ou menor grau. Bourdieu, citando

Foucault, arremata: “nenhuma obra cultural existe por si mesma, isto é, fora das

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relações de interdependência que a unem a outras obras” (2010, p.225). Logo, o

acentuado apuro estilístico, a visível ligação com a tradição e as claras influências

de autores clássicos que se repara nos textos dessa nova geração de escritores,

conferem a essa literatura um estilo híbrido que reúne tecnologia, inovação e

tradição.

Supondo que não se possa, ainda, caracterizar um grupo de escritores

equivalentes devido à multiplicidade de estilos e temas diversos, na literatura

contemporânea há questões predominantes e preocupações comuns manifestas nas

produções. O sentido de urgência, a violência urbana, a primazia pelo grotesco e

pelo bizarro, o retorno do trágico são algumas das especificidades dessa literatura,

apontadas por Beatriz Resende (2008). Na literatura produzida pela Geração Zero

Zero, há estilos bem diversos, mas as características comuns em suas produções

são consequências de aspectos dos tempos em que vivemos, como apontam os

teóricos que se voltam à tarefa de entender o contemporâneo: fim da barreira entre

a alta cultura e a cultura de massa, diversidade de suportes e linguagens, tensão

entre o local e o global, novas subjetividades, preocupação com a inserção, etc.

Andrea del Fuego, escritora da Geração Zero Zero, em depoimento para o programa

Entrelinhas fala dessa falta de coligação entre a geração, reforçando o caráter

temporal do rótulo, mas delineando aspectos comuns voltados à postura dessa

geração diante do que escreve:

O que eu vejo em comum nos autores, acho que é até a postura diante do que se escreve e não dentro de sua escrita. Acho que em comum tem uma certa pressa, uma certa urgência que eu acho que o mercado influi muito nisso. Novos leitores que se aproximam, porque é inegável que há novos leitores, além de novos escritores. Então, acho que em comum tem uma certa gula, uma pressa em alcançar esse leitor, uma pressa em alcançar o mercado editorial. Mas, se for olhar para uma geração zero zero esperando, sabe-se lá, talvez uma manifestação, ou qualquer coisa que seja uma bandeira, isso não existe.8

Do excerto introdutório da coletânea de Nelson de Oliveira, cabe ressaltar

ainda a evidência da mobilidade dos autores contemporâneos dentro do sistema

8 Programa Entrelinhas - TV Cultura. 26 out. 2011. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=CL4tR5LEqnQ&feature=BFa&list=PLA79F50C911F2B35B Acesso em: 19 jul. 2012.

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literário: “condensam numa só pessoa a figura do autor, do editor, do impressor e do

livreiro” (OLIVEIRA, 2011, p.14). A partir da visão de Itamar Even-Zohar, a obra

literária resulta da atuação de um produtor, inserido em certo contexto social,

vinculado a um discurso de poder moldado a um certo repertório aceitável e

legitimado e ainda não confinados a um só papel na rede literária, atuando, muitas

vezes, em outras atividades. Também Pierre Bourdieu entende que a literatura é um

fenômeno dinâmico, observando as disputas e tomadas de posição dentro do campo

literário. Segundo Bourdieu, longe de assumir uma estrutura equilibrada e

harmoniosa, o “sistema literário” é lugar de tensões entre obras canonizadas ou não

canonizadas, em outras palavras, entre os autores aceitos ou não aceitos dentro do

campo (2010, p.229). Para o sociólogo, lembremos, as estratégias dos agentes e

das instituições comprometidas nas lutas literárias dependem da posição que esses

agentes ocupam no campo, ou seja, dependem da “estrutura da distribuição de

capital específico, do reconhecimento, que institucionalizado ou não, que lhes é

concedido por seus pares-concorrentes e pelo grande público [...]” (BOURDIEU,

2010, p.235).

Os escritores da Geração Zero Zero - assim instituídos por coletâneas

organizadas com a chancela de um escritor e crítico influente no campo -, como

vimos nessa breve exposição, apresentam características comuns, ainda que não se

possa reuni-los em uma formação unificada. Na capital do Rio Grande do Sul,

observamos, assim como a exemplo de outros Estados fora do eixo cultural Rio-São

Paulo, a existência do boom literário de que tratamos e as semelhanças nas

dinâmicas de atuação no sistema cultural nos levam a perceber a formação de um

grupo cultural, ainda que “sem bandeiras”, não engajado em movimentos artísticos

ou políticos.

3.2 A GERAÇÃO ZERO ZERO NO SUL DO PAÍS

Se para Itamar Even-Zohar a obra literária não pode ser considerada um

produto isolado, dada a sua relação com o produtor que está inserido em um

contexto social a partir do qual desenvolve o seu discurso, para Raymond Williams

não é diferente. Em seus estudos sobre grupos culturais, Williams alerta para a

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importância de debruçar-se sobre um grupo ou uma formação intelectual, visto que o

artista nunca expressa um ponto de vista isolado e individual. O artista expressa,

antes, o ponto de vista do conjunto ao qual pertence, consideração a partir da qual

infere-se que toda a produção artística pode ser considerada social. Exemplo é o

estudo de Williams sobre o Círculo de Godwin, os Pré-Rafaelitas e o Grupo

Bloomsbury, este último um grupo de amigos com determinadas características em

comum como, por exemplo, o bairro londrino onde moravam e que dá nome ao

grupo. O Grupo Bloomsbury, assim como a Geração Zero Zero, rechaçava a ideia

de formação cultural, mas, diz Williams, “basta um exame superficial de Bloomsbury

como grupo atuante para encontrar alguns traços mais fundamentais de uma

autêntica formação cultural” (2011a, p.79):

[...] eles provinham, na maioria, de famílias de profissionais liberais e de funcionários públicos, e cresceram dentro do sistema educacional [...] de escolas e universidades “públicas”. Seus líderes (Woolf, Keynes, Strachey) conheceram-se em Cambridge. [...] são uma fração da classe dirigente, tanto no sentido de que pertencem integralmente a ela [...], quanto de que constituem uma divisão coerente dela, definidas pelos valores de uma determinada educação superior: a posse de uma cultura geral, e não de uma cultura meramente nacional ou de classe [...]. (WILLIAMS, 2011a, p.79-80)

Pode-se considerar que pensamento similar ao de Williams sobre a

pertinência de se voltar as atenções às formações culturais encontramos em

Bourdieu. Para o sociólogo, estudar a literatura tendo em vista o espaço social a

partir do qual se formulou uma determinada visão de mundo “é dar possibilidade real

de situar-se nas origens de um mundo cujo funcionamento se nos tornou tão familiar

que as regularidades e as regras às quais obedece escapam-nos” (2010, p.64). O

teórico, porém, critica os estudos sociológicos que, a partir dessa perspectiva,

acabam por derrapar em reducionismos, como a exemplo das práticas do marxismo

cultural, mais difundidas nas produções de Lukács e Goldmann (BOURDIEU, 2010,

p.230). Para Bourdieu, o “sociologismo reducionista”, que opera pela metáfora do

reflexo, tem por pressuposto a lógica de que compreender a obra de arte seria

compreender a visão de mundo de um grupo, expresso por um artista que, a sua

revelia, cumpre o papel de porta-voz inconsciente. Para Bourdieu os estudos de

grupos são válidos quando levam em conta os confrontamentos com o mercado,

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visto que, uma vez agrupados, há certo “efeito libertador” desses agentes que

“ligados por laços pessoais a uma família” (2010, p.75) veem-se libertos dos laços

de dependências com o sistema, capazes de limitar ou até impedir suas produções.

Entendemos que os estudos empregados por Williams sobre as formações tem esse

caráter, uma vez que (além de ter também partido de uma reflexão crítica do

marxismo cultural) respeita a subjetividade do produtor – “nenhum relato completo

sobre uma formação pode ser feito sem atentar para as diferenças individuais no

seu interior (2011a, p.85) - e que seu objetivo é a compreensão dos processos

culturais nas produções culturais, assim exposto: “É pois, aprendendo a estudar a

natureza e a diversidade das formações [...] que podemos caminhar na direção de

uma compreensão mais adequada dos processos culturais imediatos das produções

culturais” (WILLIAMS, 2011a, p.85).

Como indica Mauss, “é impossível compreender a magia sem o grupo

mágico” (apud BOURDIEU, 2010, p.195). Assim, estudar a literatura contemporânea

também requer certa visão de grupo, pois a literatura brasileira coetânea, e mais

especificamente a produzida em Porto Alegre, que aqui nos interessa, é composta

por um conjunto de escritores que, além de pertencer à mesma geração e de

compartilhar de condições sociais semelhantes, se inter-relacionam e atuam no

sistema literário de forma semelhantemente dinâmica. Basta observar as redes

sociais e as interações que nesses espaços ocorrem, as festas que promovem, as

referências em entrevistas, o conjunto de atitudes sociais e culturais comuns. Como

expôs Williams, os princípios que unificam um grupo podem ou não ser codificados,

pois “há muitos grupos culturais importantes que possuem um corpo de práticas em

comum ou um etos distinguível, ao invés de princípios ou objetivos declarados em

um manifesto” (2011b, p.201).

Os escritores da Geração Zero Zero do Rio Grande do Sul, apesar de não se

filiarem a movimentos, tampouco representarem uma formação cultural organizada,

a exemplo das apontadas por Williams, apresentam, como mencionamos,

características semelhantes, próprias de “uma autêntica formação cultural”

(WILLIAMS, 2011a, p.79). Além de começar a escrever muito jovens - muitos

publicaram seu primeiro livro antes dos trinta anos -, participaram de oficinas

literárias buscando a profissionalização e especialização, pertencem a uma classe

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social economicamente estruturada, são estudantes acadêmicos e têm um histórico

de leitura considerável. O depoimento do jovem escritor Antônio Xerxenesky indica

as aproximações observadas e que são recorrentes em muitas entrevistas e

depoimentos de diferentes autores dessa nova geração:

Eu me tornei um escritor porque eu lia muito, eu sou antes de tudo um leitor e escrever é consequência. Minha mãe tem uma biblioteca enorme [...]. Meus pais sempre leram muito e é quase natural para alguém que vê pessoas lendo, um dia querer descobrir o que tem de tão emocionante nesse objeto livro. [...] Também foi por isso que eu entrei, depois, na faculdade de Letras, me formei, e gora estou no mestrado de Literatura Comparada.9

Tais aspectos tornam-se mais evidentes no exame do quadro que organiza

informações sobre escritores gaúchos de duas editoras de Porto Alegre,

selecionadas por sua representatividade no sistema cultural de que nos ocupamos.

Partimos do catálogo de publicação de duas editoras independentes de Porto

Alegre, a extinta editora Livros do Mal e a ativa Não Editora. A escolha por essas

editoras se justifica não só por essas corresponderem aos critérios de pesquisa, mas

por apresentarem semelhanças especificas e propostas idênticas de linha editorial:

ambas são pequenas editoras que surgiram com o propósito de publicar escritores

iniciantes. Consequentemente, ambas reúnem escritores jovens e que tiveram suas

primeiras publicações a partir dos anos 2000. Assim, forma-se o corpus de dezoito

escritores para representar a Geração Zero Zero gaúcha, organizado no “quadro de

autores pesquisados”. Alguns números, porém, devem ser explicados. A editora

Livros do Mal publicou um total de sete escritores, dentre os quais se excluiu Paulo

Bullar (nascido em Salvador, radicado em São Paulo) e Joca Reiners Terron

(nascido em Cuiabá, radicado em São Paulo). A Não Editora, por sua vez, publicou,

até então, onze escritores, dentre os quais foram excluídos Fernando Mantelli

(primeira publicação em 1988) e Alexandre Rodrigues (nascido e radicado no Rio de

Janeiro). Alguns escritores não publicados por essas editoras integram o corpus por

suas participações em antologias que auxiliam no mapeamento da literatura

9 Programa Saraiva Conteúdo, 18 out. 2010. Disponível em: www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10445 Acesso em: maio 2012.

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contemporânea. São eles: Michel Laub, Luisa Geisler, Leandro Sarmatz

(selecionados para figurar na Revista Granta) e Verônica Stigger (selecionada para

figurar Geração Zero Zero: fricções em rede). Estabelecido o corpus representativo

para a análise, assim se apresenta o grupo:

Quadro 1 – Dados dos autores pesquisados

AUTORES NASC. FORMAÇÃO ACADÊMICA

OFICINAS LITERÁRIAS

1° PUBLICAÇÃO N° LIVROS

ÚLTIMA PUBLICAÇÃO

Alessandro Garcia

1979 (POA)

Publicidade Milton

Hatoum

Nelson de

Oliveira

CONTOS: A sordidez das pequenas coisas

(Não Editora, 2010)

01 CONTOS: A sordidez das pequenas coisas

(Não Editora, 2010)

Antônio Xerxenesky

1984 (POA)

Letras Mestrado

Seminário de criação literária

CONTOS: Entre

(Movimento, 2006)

03 CONTOS: A página assombrada por fantasmas

(Rocco, 2011) Cristiano

Baldi 1976

(CAXIAS) Publicidade Assis Brasil

CONTOS:

Ou Clavículas (Livros do Mal, 2002)

01 CONTOS: Ou Clavículas

(Livros do Mal, 2002) Carol

Bensimon 1982

(POA) Publicidade Mestrado

Assis Brasil

NOVELAS: Pó de Parede

(Não Editora, 2008)

02 ROMANCE: Sinuca embaixo d’água

(Comp. das Letras, 2009) Daniel Galera 1979

(SP/POA) Letras Assis Brasil

CONTOS:

Dentes Guardados (Livros do Mal, 2001)

05 ROMANCE: Cordilheira

(Comp. das Letras, 2008) QUADRINHOS:

Cachalote (Comp. das Letras, 2010)

Daniel Pellizzari

1974 (MANAUS/

POA)

---- Assis Brasil

CONTOS: Ovelhas que voam se perdem no

céu (Livros do Mal, 2001)

03 ROMANCE: Dedo negro com unha

(DBA,2005)

Diego Grando 1981 (POA)

Letras Doutorado

Assis Brasil

POESIA: Desencantado carrossel

(Não Editora, 2008)

02 POESIA: Sétima do singular (Não Editora, 2012)

Everton Behenck

1979 (POA)

Publicidade ---- POESIA: Os dentes da delicadeza

(Não Editora, 2010)

01 ----

Leandro Sarmatz

1973 (POA)

Jornalismo Mestrado

---- TEATRO: Mães e sogras

(IEL, 2000)

03 CONTOS: Uma fome

(Record, 2010) Luisa Geisler 1991

(CANOAS) Ciências Sociais

Assis Brasil CONTOS: Contos de mentira

(Record, 2011)

02 NOVELA: Quiça

(Record, 2012) Marcelo

Benvenutti 1970

(POA) Publicidade

Ciências Contábeis

---- CONTOS: Vidas cegas

(Livros do Mal, 2002)

05 CONTOS: Arquivo morto

(Kafka Edições, 2009)

Michel Laub 1973 (POA)

Jornalismo Assis Brasil

ROMANCE: Música anterior

(Comp. das Letras, 2001)

05 ROMANCE: Diário da queda

(Comp. das Letras, 2011), Paulo Scott 1966

(POA) Direito

Mestrado Assis Brasil

CONTOS/POESIA:

Histórias curtas para domesticar as paixões dos anjos e atenuar o

sofrimento dos monstros (Sulina, 2001)

06 ROMANCE: Habitante irreal

(Alfaguara, 2011)

Rafael Bán Jacobsen

1981 (POA)

Física Lea Masina ROMANCE: Tempos e costumes

(Alcance, 1998)

03 ROMANCE: Uma Leve Simetria (Não Editora, 2009)

Reginaldo Pujol Filho

1980 (POA)

Publicidade Pós Escrita

criativa

Charles Kiefer

CONTOS: Azar do personagem (Não Editora, 2007)

02 CONTOS: Quero ser Reginaldo Pujol Filho

(Não Editora, 2010) Rodrigo Rosp 1975

(RJ/POA) Publicidade Linguística

(Pós)

Charles Kiefer

CONTOS: A virgem que não conhecia Picasso

(Não Editora, 2007)

02 CONTOS: Fora de lugar

(Não Editora, 2009) Samir M. de

Machado 1981

(POA) Publicidade Assis Brasil

NOVELA:

O professor de botânica (Não Editora, 2008)

01 NOVELA: O professor de botânica

(Não Editora, 2008) Verônica Stigger

1973 (POA)

Jornalismo Doutorado

(Arte)

Ministrante de oficina literária

CONTOS: O trágico e outras comédias

(Angelus Novus, 2003)

04 CONTOS: Os anões

(Cosac Naify, 2010)

Fonte: Dados elaborados pela autora

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A partir da observação do grupo que se organiza, algumas características

firmam o caráter de formação cultural desses escritores, tal qual estudos realizados

por Raymond Williams. As semelhanças observadas sugerem reflexões que passam

pelo empreendedorismo desses autores-produtores, pela sua formação acadêmica e

ainda por outros elementos significativos, como a participação em oficinas literárias,

a opção pelo gênero conto e a busca de inserção no mercado editorial, pois tudo

isso caracteriza o modo como esses escritores marcam sua posição no campo

literário .

3.2.1 Ação empreendedora dos jovens escritores: Livros do Mal e Não Editora

A primeira constatação decorre do item que remete à idade desses escritores.

Claro que a proposta é esquadrinhar a literatura contemporânea de estreantes nos

anos 2000, logo, escritores relativamente jovens. Contudo, fica evidente tratar-se de

duas safras de escritores, mesmo que pertencentes à mesma geração: aqueles da

Livros do Mal - em maioria nascidos no fim da década de 70, estreantes nos

primeiros cinco anos do século XXI -, e os da Não Editora - nascidos nos anos 80,

estreantes na segunda metade da primeira década dos anos 2000. Desse

pressuposto podemos inferir, mesmo correndo o risco de generalizações, que os

últimos foram leitores dos primeiros. Chamou-nos a atenção o depoimento de

Antônio Xerxenesky, mais uma vez, ao mencionar Daniel Galera como um dos

escritores que o influenciou e inspirou:

Li o Dentes Guardados, do Daniel Galera, com 16 anos. Hoje ele não provoca mais o mesmo impacto em mim, mas há um trabalho estético claro, de brincar com palavras, vírgulas fora do lugar. Foi um livro inspirador numa época em que eu lia só o que o colégio me obrigava.10

Cabe ressaltar que Xerxenesky é um dos idealizadores da Não Editora,

empresa na qual trabalha e pela qual publicou o seu romance Areia nos Dentes

(2008), reeditado pela Rocco em 2011, e Galera um dos fundadores da Livros do

10 In: MOREIRA, Carlos André. Retrato do escritor quando jovem. Zero Hora, Porto Alegre, 27 maio de 2009. Segundo Caderno, p.1.

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Mal. Ainda que não se possa afirmar que a Não Editora tenha sido pensada, e

inspirada, nos moldes da Livros do Mal, também não se mostra de todo

incongruente a hipótese. Em matéria do jornal Zero Hora, de onde se extraiu o

depoimento de Xerxenesky, a introdução intensifica a conjectura:

Uma nova onda literária composta de escritores e poetas com menos de 30 anos forma o panorama da atual ficção contemporânea gaúcha. Uma turma para quem o pop é elemento, não requisito, que escreve explorando a linguagem com pretensão intelectual inovadora, mas tentando comover o leitor, e para quem os pioneiros da Livros do Mal, no iníci o dos anos 2000, são, mais do que companheiros de faixa etária , inspiração. 11 [grifo nosso]

A semelhança da proposta e da formação das duas editoras merece olhar

mais atento, a fim de avaliarmos a relação, e possíveis aproximações, entre os dois

projetos. Desse modo inserimos breve histórico de ambas, potencializando a opção

por essas na constituição do corpus de pesquisa.

O conceito operativo de “tomada de posição” trabalhado por Bourdieu, que

mobiliza o sentido de posicionar-se em relação a algo e o sentido de os agentes

recém-chegados tomarem para si certa posição estabelecida no campo, verifica-se

na formação e instauração da pequena editora Livros do Mal. A editora foi fundada

em 2001 por um grupo de amigos - os escritores Daniel Galera e Daniel Pellizzari e

o artista plástico Guilherme Pilla - e tinha como principal função a inserção de seus

fundadores, e de amigos outros, no campo literário. A Livros do Mal publicou nove

títulos no total e sete autores iniciantes (Galera e Pellizzari, Paulo Scott, Marcelo

Benvenutti, Cristiano Ubaldi, Paulo Bullar e Joca Reiners Terron), mantendo-se em

funcionamento até 2004. Não poderíamos deixar de mencionar que,

contraditoriamente ao propósito de ruptura com o cânone, o nome da editora

estabelece uma marcante e declarada ligação com a ‘tradição’ (mesmo que

transgressora à época), pois existe por trás do nome a referência a Georges Bataille,

autor de A literatura e o mal, e à obra As flores do mal, de Baudelaire, ainda que as

coleções tentassem representar um caráter de combate ao cânone: “Contra Capa” e

“Tumba do Cânone”. A primeira coleção, aglutinadora dos livros de estreia,

11 In: MOREIRA, Carlos André. Retrato do escritor quando jovem. Zero Hora, Porto Alegre, 27 maio de 2009. Segundo Caderno, p.1.

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pretendia, pelo que se pode inferir do título, um sentido de oposição ao pré-

estabelecido no campo literário, e a última, um confronto e uma suposta

relativização canônica, assim interpretada por Ítalo Ogliari, também escritor da

Geração Zero Zero:

A “Tumba do cânone” nada mais é, e assim pode ser interpretada, do que a própria tentativa de novos escritores em busca do direito de voz e percebendo que o caminho para isso é confrontar o discurso histórico, jogar com a relativização canônica; ou melhor, relativizar o cânone, comum hoje, discutindo seu discurso formador: uma estrutura rígida que a abordagem paródica tem como objetivo debater. (OGLIARI, 2012, p.91)

Os elementos textuais e a articulação entre a tradição e “o novo”, como

vimos, estendem-se para além das narrativas. A estratégia utilizava os elementos

paratextuais para reforçar a mensagem, como nas ilustrações das capas de

Guilherme Pilla e nos nomes das coleções. Também é visível a estratégia na

chamada - “Leia o novo. É trimmmassa” - e no logotipo da editora, um pinto saindo

de uma casca de ovo semi-quebrada, representando o caráter de inovação e de

emergência desses escritores recém-chegados. O pinto, de olhos esbugalhados e

psicóticos reforçam o caráter monstruoso, construbuindo para o sentido de “mal” na

literatura que se faz necessário, segundo as concepções bourdianas, quando nas

tomadas de posição de autores emergentes.

Figura 1 - Logotipo Livros do Mal

Fonte: ranchocarne.org

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As estratégias de alcance e “marketing” da editora estendiam-se, igualmente,

para outros âmbitos. Além da utilização da internet - “o paraíso do escritor iniciante”,

como exclama Dalcastagnè (2001b, p.27) - as promoções de festas, lançamentos de

livros em bares populares da cidade - como o Garagem Hermética que serviu de

palco para algumas festas promovidas pela Livros do Mal -, encontros e festejos do

livro eram comuns, marcando a atuação e a tomada de posição desses escritores

frente ao campo literário. A história da Livros do Mal é uma história de sucesso

dentre tantas de insucesso. A editora recebeu o Prêmio Açorianos de Editora

Destaque12 (2003) e mais da metade dos escritores ligados à “incubadora literária”

firmaram nome no campo literário e alguns deles, como Galera, Pellizzari e Scott,

vemos hoje publicados por editoras como a Companhia das Letras.

A estratégia de atuação, embora não seja inovadora13, acarretou aos

fundadores da editora o cunho de precursores no Estado e depois dos autores que

participaram do projeto da Livros do Mal muitos outros vieram, igualmente enérgicos

e férteis, arrebatando prêmios literários, chamando a atenção do mercado e dos

leitores. Desses, elegemos, para traçar este retrato da literatura contemporânea, os

publicados pela Não Editora, que, a partir da coleção de contos “Ficção de Polpa”,

foi descobrindo e lançando no mercado uma outra geração que começava a

escrever (esses mais novos, nascidos em grande parte nos anos 80, como

observado no quadro de autores pesquisados).

12 O Prêmio Açorianos de Literatura é um concurso literário anual, organizado pela Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, que premia, além da criação literária em seus variados gêneros, algumas outras categorias envolvidas no fazer literário, tais como arte gráfica, capa, editoras destaque, projetos de incentivo à leitura, destaque em mídia digital (blogs e sites), entre outros. 13 Cabe ressaltar que Joca Reiners Terron - escritor publicado pela Livros do Mal, porém desconsiderado do corpus da pesquisa por sua naturalidade (nascido em Cuiabá) - em sociedade com Patrícia Perocco, no final dos anos 90 lançaram a pequena editora paulista Ciência do Acidente, uma editora doméstica que funcionava num dos quartos da casa do designer e autor Joca e que fora bastante cobiçada pelos novos escritores de São Paulo, e do país. Laços familiares ou de amizade costumam dar origem às sociedades, e os sócios da editora paulista estimularam os amigos Daniel Galera e Daniel Pellizzari a lançar, em Porto Alegre, a editora independente Livros do Mal. Esse é somente um dos muitos exemplos que demonstram que a estratégia de posicionamento no campo a partir do lançamento de editoras como modo de inserir-se e firmar-se no mercado editorial não é inovadora, porém atribui-se aos fundadores da Livros do Mal o cunho de precursores de um modo de atuação cultural no Rio Grande do Sul por suas idades e precursionismo no uso das tecnologias no fazer literário.

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A Não Editora foi criada em 2007 pelos amigos Rodrigo Rosp, Samir

Machado de Machado - ambos colegas de publicidade e propaganda, ou seja “não

escritores e não editores” - e Antônio Xerxenesky. A proposta está expressa na

definição da pequena empresa, divulgada nos sites de busca da web: “Editora

independente porto-alegrense que tem como objetivo dizer “não” ao que é

convencional no mercado editorial”. O objetivo inicial, como anunciam os seus

sócios, era o de criar um meio de publicar os textos dos idealizadores, que mesmo

“não sendo da área” produziam textos literários, e dos amigos, oferecendo “uma

alternativa viável aos jovens escritores [...] para que esses escritores totalmente

desconhecidos pudessem encontrar seu lugar no mercado”14. A Não Editora, que

ainda se mantém ativa, publicou até o momento vinte títulos no total e onze autores

iniciantes foram lançados (Rodrigo Rosp, Reginaldo Pujol Filho, Antônio Xerxenesky,

Samir Machado de Machado, Carol Bensimon, Diego Grando, Fernando Mantelli,

Rafael Bán Jacobsen, Alexandre Rodrigues, Everton Behenck e Alessandro Garcia).

O nome da editora, que assim como a Livros do Mal pretende dizer “não” ao cânone

estabelecido pelo grande mercado editorial, estabelece, também, inquestionável

ligação com a tradição: foi inspirado na tela do surrealista René Magritte, na obra A

traição das imagens (1928), que apresenta o desenho de um cachimbo com a

inscrição em francês: Ceci n’est pás une pipe (Isto não é um cachimbo).

Figura 2 – Logo tipo Não Editora

Fonte: Site da editora

14 Programa Quebrando a casca. TV Casa de Cultura Mário Quintana. 13 dez. 2011. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=2XnqmZA0afU Acesso em: 15 mar. 2012

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A editora investe no projeto gráfico das publicações, especialmente nas

capas, produzidas por Samir Machado de Machado (recebeu o Prêmio Açorianos de

melhor capa, em 2011, para o livro Quero ser Reginaldo Pujol Filho), sendo este um

elemento estratégico de inserção no mercado literário, numa sociedade fortemente

marcada pelas mídias visuais.

As estratégias para se estabelecer no mercado e de aproximação e conquista

do público leitor estendem-se para outros âmbitos. A Não Editora faz uso da internet

para promoções de projetos outros, tais como o “Cadernos de Não-ficção” - revista

eletrônica sobre literatura - e o “Contém 1 drama” - pequenos livretos com contos ou

poemas -, todos disponibilizados no site da editora. Lançamentos em bares

populares da cidade, a exemplo do Zelig Bar e Café da Oca, também são

estratégias recorrentes, como também o são a promoção de festas, encontros e a

marcante presença nos festejos tradicionais do livro. A editora também foi

contemplada com o Prêmio Açorianos de Editora Destaque (2009) e alguns de seus

jovens escritores, como trataremos adiante, foram publicados por editoras de grande

porte. A procura pela editora cresceu e, para atender às propostas que chegavam e

não correspondiam ao caráter emergente da editora, os idealizadores da Não

Editora fundaram a Dublinense15, editora cujo nome remete à obra de James Joyce,

um dos mais consagrados escritores do século XX.

A história da Não Editora, como a da Livros do Mal, é também uma história de

sucesso dentre tantos outros projetos que não decolaram. Como exposto, ainda que

não se tenha confirmação de que a Livros do Mal tenha incentivado a formação da

Não Editora, percebem-se as nuances em comum entre ambos os projetos editorias.

Porém, retomando o objetivo a que se propõe o capítulo, outros aspectos que

distinguem a Geração Zero Zero podem ser apontados e a formação acadêmica dos

produtores dessa literatura contemporânea é o tema que segue.

15 Assim está descrita a ideia da editora: “A Dublinense foi criada em 2009 com o objetivo de formar um catálogo eclético. Isso significa receber os jovens e criativos autores, mas também os escritores maduros e já consagrados. Os valores que norteiam a editora são o apuro com a palavra e o cuidado gráfico. A linha editorial da Dublinense está direcionada principalmente para os gêneros tradicionais da literatura de ficção, mas compreende também livros de negócios, ensaios, relatos e esportes. Seus sócios e idealizadores são Gustavo Faraon e Rodrigo Rosp”. Disponível em: http://www.dublinense.com.br/editora/ Acesso em: 25 set. 2012.

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3.2.2 A literatura da Academia: jovens intelectuais

Uma característica distintiva dessa Geração Zero Zero é a inserção no meio

acadêmico. Dos dezoito escritores, todos têm, em menor ou maior grau, formação

acadêmica16. Diego Grando, escritor de poesia, gênero pouco cultivado pelos

escritores da nova geração, especializou-se em Escrita Criativa (mestrado) e cursou

doutorado em poesia na Université Sorbonne Nouvelle. Carol Bensimon é formada

em Publicidade e é mestre em Teoria Literária, isso para citar poucos exemplos.

Charles Kiefer, escritor gaúcho conhecido no cenário literário nacional e ministrante

de uma renomada oficina literária no Estado, fala sobre a formação desses

escritores:

Essa geração é mais bem preparada intelectualmente do que foi a minha. Quando cheguei a Porto Alegre, as pessoas eram, na maioria, contadoras de histórias, do jeito que Erico Veríssimo sempre se definiu, mas havia pouca reflexão teórica formal, era muito na intuição. Hoje, os mais novos são mais qualificados para o embate com a palavra. Talvez o que falte sejam utopias e experiências, ou um certo instinto de aventura.17

Pode-se considerar do exposto que a literatura de que tratamos é uma

literatura advinda de certos parâmetros valorizados pela academia e, ademais, de

uma classe social com recursos culturais, constatação que se torna relevante

quando na análise das narrativas desses autores. Críticos apontam para a qualidade

formal dos textos produzidos e para o cuidado com a preparação das obras. Beatriz

Resende, por exemplo, sublinha “o conhecimento das muitas possibilidades de

nossa sintaxe e uma erudição inesperada” (2008, p.17) nas produções desses

jovens escritores, talvez resultado de uma preparação intelectual distinta, como

citado por Charles Kiefer. A constatação se consagra na leitura de Uma leve simetria

(2009), romance de Rafael Bán Jacobsen (autor contemplado com a bolsa Funarte 16 Observado o quadro, o autor Daniel Pellizzari não é graduado, mas também não é exceção que se aponte, visto que frequentou o meio acadêmico. Mojo, como é conhecido entre amigos, iniciou quatro cursos de graduação, História (2 semestres), Psicologia (3 semestres), Jornalismo (5 semestres) e Letras (2 semestres) mas, como afirma em seu blog, “não teve paciência de terminar nenhum”, dedicando-se aos livros, atuando hoje como escritor, editor e tradutor de literatura. 17 In: MOREIRA, Carlos André. Retrato do escritor quando jovem. Zero Hora, Porto Alegre, 27 maio de 2009. Segundo Caderno, p.1.

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de criação literária para a produção do seu próximo romance), rico em imagens

poéticas e em frases que desvelam o zelo do autor com sua narrativa.

Outra crítica recorrente às narrativas da Geração Zero Zero, que também

poderia ser apontada como consequência da formação acadêmica desses autores, é

o uso exacerbado da metalinguagem ou da metanarrativa. Alguns textos são

exemplares, como o conto “Linguista”18, de Rodrigo Rosp, que apresenta como

primeiro plano da narrativa a história de um casal de linguistas, ele professor e

pesquisador acadêmico, ela estudiosa de línguas mortas, com atenções redobradas

ao latim. A partir de joguetes com palavras e frases dúbias, o autor insere acepções

teóricas da linguagem e do discurso, evocando, nas entrelinhas, teóricos como

Benveniste e Jakobson, servindo de moldura à trama que se edifica no suspense e

fazendo da narrativa uma reflexão sobre o uso da língua. Também na linha da

reflexão sobre a linguagem, é modelo o conto “O velho branco”19, de Daniel Galera,

no qual o autor expressa seus anseios no trato com a palavra e expõe ao leitor sua

reflexão metaliterária, ou metalinguística, tal como se observa nos excertos abaixo:

Dificilmente vou conseguir explicar a grandeza metafísica dessa resposta para quem não a identificou de cara. Além disso, neste texto não há como reproduzir a voz do Velho Branco - o som de algo sólido tornado quebradiço em condições inesperadas, como o estalo final do tronco de uma sequoia centenária que está começando a tombar depois de ter sido seccionada na base por uma motoserra -, tampouco a expressão facial que ostentava ao me responder [...] - ou sua postura geral naquele momento [...]. Posso dizer apenas que naquele instante me viera à mente todas as coisas de que gosto justamente porque sou bom nelas, e não ao contrário. Me senti pequeno e ignorante, mas um ser pequeno e ignorante para o qual a salvação estava ao alcance. (GALERA, 2011, p.120)

18 Publicado na coletânea de contos de terror e de ficção científica denominada “Ficção de Polpa” (2008). A coleção, que iniciou com o extinto projeto editorial Fósforo, hoje é publicada pela Não Editora e está em sua 4° edição. As capas dessas coletânea s são elaboradas nos moldes das revistas pulp, ou pulp fiction, publicações de sucesso entre as décadas de 1920 e 1950, assim denominadas por serem impressas em papel barato, feito de polpa de madeira e vendidas pelo valor irrisório de dez centavos. As capas das pulp fictions traziam ilustrações belíssimas e, para os padrões da época, bastante apelativas, com mulheres seminuas - em desenho estilo pin up -, em perigo e à espera de seu herói. A coletânea “Ficção de Polpa” é obra âncora da Não Editora e pode-se considerar obra inaugural de muitos dos escritores que hoje participam ativamente do sistema literário contemporâneo do estado do RS. (In: MACHADO, Samir Machado de (Org.). Ficção de polpa. v.1. Porto Alegre: Fósforo, 2007, p.23-27) 19 In: OLIVEIRA, Nelson (Org.). Geração Zero Zero: fricções em rede. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2011, p. 118-123.

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Num mundo onde o velho branco existe, não poderá haver vítimas. Suas braçadas de boia e sem palmar nos dizem que a probabilidade do que acontece é absoluta. Ao vê-lo nadando, você saberá que ele sabe disso tudo e saberá que ele sabe de outras coisas, coisas impossíveis de compartilhar, pois falta linguagem20. (GALERA, 2011, p.123)

De fato encontramos na literatura dessa nova geração de escritores uma

grande recorrência à representação do próprio fazer literário. Talvez a transformação

da literatura em evento social glamouroso e a exposição e exploração da imagem do

autor unida à “corrida pela ascenção” no sistema literário tenha transformado o autor

em personagem e o fazer literário em mote para a ficção. Nessa vertente, a narrativa

é quase sempre a história de um escritor, um crítico, um intelectual, ou a história de

uma história que é construída à medida que se lê. No livro Areia nos dentes (2008 -

2010), Xerxenesky faz menção ao gosto pela metalinguagem, característico dos

jovens escritores. O romance, finalista do Prêmio Açorianos de Narrativa Longa

(2008), trata-se de uma mistura de faroeste com zumbis, inspirado no universo dos

videogames, mais especificamente no jogo Alone in the Dark 3. A história é narrada

por Juan, personagem que está escrevendo a história de seus antepassados que

habitavam o povoado de Mavrak. No excerto observamos que a crítica é também

matéria para criação e para a autocrítica:

“Li sobre um jovem escritor que também escreveu um faroeste com zumbis.” “Sério? Acho que os mortos-vivos de fato habitavam o Velho Oeste com alguma frequência naquele fim de século.” “Mas a história dele é diferente da sua. Ele escreve sobre um homem velho escrevendo um faroeste com mortos-vivos.” “Que ideia péssima! Por que alguém escreveria sobre alguém escrevendo?” “Nem fale. Eu também acho horrível. Teve um crítico que resumiu exatamente o que eu sinto. Ele disse ‘metalinguagem é uma doença juvenil’. Enfim.” Essas abstrações intelectualoides ele deve ter aprendido na faculdade. (XERXENESKY, 2010, p.88)

Como referido no excerto, o livro de Xerxenesky é um faroeste e está repleto

de referências cinematográficas, como a Sergio Leone e a Sam Peckinpah. O

20 A título de curiosidade, “Velho branco” é nome de uma música composta por Galera à época em que foi guitarrista/baixista da banda Blanched, em 2003.

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crítico21 a que se refere o autor é Jean-Claude Bernardet, renomado crítico brasileiro

de cinema, oportunamente aproveitado para a literatura (lembrando que a referência

estabelece diálogo entre literatura e outras artes, característica também comum

nessa literatura a que nos voltamos). A arte, sabemos, faz amplo uso da

metalinguagem, logo não se trata de uma invenção contemporânea o artista discutir

ou exaltar o seu próprio fazer artístico, ainda que hoje seu uso esteja

“desmoderado”. Nessa linha, a intertextualidade é um recurso largamente utilizado

por esses escritores. A constatada formação acadêmica e a considerável carga de

leitura desses jovens - (Xerxenesky, em entrevista já citada, afirma: “eu me tornei um

escritor porque eu lia muito, eu sou antes de tudo um leitor”) certamente é um fator

que favorece a referência aos clássicos da literatura, mas também, podemos

deduzir, serve como estratégia de afirmação da identidade autoral, a partir do

vínculo com a tradição. O livro de Reginaldo Pujol Filho, Quero ser Reginaldo Pujol

Filho (2011), é um bom exemplo disso, pois o autor declara abertamente as

influências literárias que sofre, tentando extrair o estilo de autores consagrados na

construção de uma narrativa própria. Na contracapa da obra está posto:

Há quem sofra de angústia da influência. Reginaldo Pujol Filho, não. Em vez de se angustiar, de sofrer, de esconder referências, decidiu escancarar seus mestres. E fez isso em dez contos. Cada conto, uma homenagem a um autor: Amílcar Bettega Barbosa, Altair Martins, Gonçalo M. Tavares, Ítalo Calvino, Luigi Pirandello, Luis Fernando Veríssimo, Machado de Assis, Miguel de Cervantes e Rubem Fonseca. Tudo feito sem regras nem modelos e, principalmente, sem medo de admitir que todos somos feitos de influências.22

Assim como declarado por Genette (2006) e Bakhtin (2010), um texto é

sempre resultado de leituras outras, de textos outros, um hipertexto, enfim. Não se

pode considerar um texto essencialmente original, visto que ele é um mosaico de

outros textos com os quais mantém, sempre, uma relação. Foucault, colaborando

com a reflexão, alerta para a importância de lembrarmo-nos de que “a literatura, a

21 In: BERNARDET, Jean-Claude. Baixio das Bestas. Blog do Jean-Claude. 18 maio 2007. Disponível em: http://jcbernardet.blog.uol.com.br/arch2007-05-13_2007-05-19.html. Acesso em: 10 set. 2012. 22 PUJOL FILHO, Reginaldo. Quero ser Reginaldo Pujol Filho. Porto Alegre: Não Editora, 2010, contracapa.

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obra literária, não vem de uma espécie de brancura anterior à linguagem, mas da

repetição contínua da biblioteca, da impureza letal da palavra” (1999, p.207).

3.2.3 A profissionalização do ofício: ascensão das oficinas literárias

A participação em oficinas literárias é outro aspecto significativo no grupo,

pois muitos desses jovens escritores advêm de oficinas literárias. Segundo Luis

Antonio de Assis Brasil, escritor e professor de uma das mais antigas oficinas

literárias do Estado, a crescida procura pelas oficinas se dá em função da influência

da língua inglesa e pela "notoriedade das oficinas americanas, designadas como

creative writing”23. Para Charles Kiefer, outro escritor que mantém oficina literária em

Porto Alegre, "a internet é que está gerando a demanda enorme. Todo mundo tem

blog, todo mundo escreve, mas uma hora se dá conta de que precisa estudar,

avançar"24. Seja como for, o elo entre as conjecturas é, sem dúvida, a socialização

das tecnologias de informação e o desmantelamento das fronteiras, mas também a

popularização do ensino acadêmico pode estar no cerne da questão. Nessa medida,

muitos anunciam que o Brasil vive a emergência de um movimento literário, o dos

escritores com diploma de autor. A discussão é extensa e questões variadas

surgem, desde a profissionalização do autor à mecanização da arte criativa, porém

uma das perguntas sensatas que se fazem críticos e estudiosos é: a escrita criativa

pode ser ensinada?

Francine Prose, autora de Para ler como um escritor (2008) e professora

americana de literatura e de escrita criativa, responde que se o que se pergunta, em

verdade, é se “pode o amor pela linguagem ser ensinado, ou o talento para a

narração de histórias ser ensinado?, então a resposta é não” (2008, p.13). Mas,

segue a autora, “uma oficina pode ser útil. Um bom professor pode lhe mostrar como

editar o seu trabalho. A turma adequada pode formar a base de uma comunidade

que o ajudará e sustentará” (PROSE, 2008, p.14). Lembrando que a hipótese que

aqui se sustenta é a de possível agregação dos escritores de Porto Alegre numa

23 In: NETO, Ernane Guimarães. A ascensão das oficinas literárias. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 de agosto de 2009. Caderno Mais!, p.1. 24 Ibidem.

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“formação cultural”, seja organizada ou não, a resposta de Prose é sancionadora.

Os fatores que associam esses escritores apontam para a “base de uma

comunidade”, formada, neste caso, a partir dos cursos de criação literária. Como

dito, do todo observado, mais da metade dos escritores procuraram especialização

nas oficinas e a adesão maior se dá por parte do grupo da Livros do Mal: todos os

escritores compartilharam dos ensinamentos de Luis Antonio de Assis Brasil,

partindo para o projeto editorial basilar na publicação de suas obras. Se lá se

conheceram ou não pouco importa, pois o fato inconteste é que muitas eram as

afinidades que os ligavam e a oficina as potencializa.

No Rio Grande do Sul, as oficinas se consolidaram a partir do trabalho de

escritores como Luiz Antonio de Assis Brasil e Charles Kiefer. Não por menos,

ambos foram os mais citados na análise do quadro de autores, sendo que nove

dentre os dezoito autores pesquisados foram alunos de Assis Brasil que, desde

1985, dirige a “Oficina da PUC", há pouco integrada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras. Daniel Galera discorre sobre sua participação na oficina literária de Assis

Brasil:

Surpreendente, mas inevitável. Quando, em algum momento de 1999, o professor Assis Brasil [que coordena oficinas de texto na PUC-RS] colocou nesses termos para seus alunos o desfecho ideal de todo conto, eu sabia exatamente do que ele estava falando. Sabia porque, aos 20 anos, já tinha lido centenas de contos. Mas eu sabia sem saber. Tinha a experiência, mas não a consciência da experiência. Sabe lá quanto tempo eu levaria para chegar sozinho a uma fórmula tão elegante para definir o instante em que o subtexto, tão essencial ao conto moderno, vem à tona. Talvez nunca chegasse. Foi esse tipo de coisa que a oficina de literatura do Assis me deu de bandeja.25

Se a escrita criativa, a escrita literária, pode ou não ser ensinada, não

modifica o quadro que se apresenta. Os escritores procuram as oficinas e buscam

nelas a profissionalização da atividade literária e a qualidade em suas produções.

Em virtude do que foi mencionado, podemos refletir acerca da relação das oficinas e

a formação acadêmica desses jovens escritores. Considerando as afirmações de

Assis Brasil, as oficinas literárias brasileiras seguem o modelo das oficinas de escrita

25 In: GALERA, Daniel. Relato de um escritor aprendiz. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 de agosto de 2009, caderno Mais!, p.6.

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das universidades americanas, o que nos remete ao pesquisador americano Mark

McGurl que, em entrevista para a Folha de São Paulo (2009), afirma: “não dá para

compreender a história da literatura norte-americana sem conhecer os programas

universitários de escrita criativa”26. Da mesma forma, compreender essa ligação

pode ajudar no entendimento da raiz de boa parte da nova literatura brasileira.

Podemos inferir que a formação acadêmica desses jovens escritores está conectada

à ascensão das oficinas literárias. Muitos têm formação em cursos que trabalham as

especificidades da linguagem, a comunicação, logo, para aqueles que desejam o

exercício da escrita literária, buscar o aprimoramento também na escrita criativa

apresenta-se como extenção dos estudos. E aos que querem viver de seus textos

veem redobradas as razões para aderir às oficinas, buscando um “diferencial” para

competir no mercado literário. Evidente que nem todos que buscam as oficinas se

estabelecem, alguns se tornam escritores de êxito, outros, escritores menos

conhecidos, e muitos se tornam ministrantes de oficinas. Para o resto, lembra McGur

(2009), “é um treinamento sem uso profissional, é uma extensão da "educação

liberal".

3.2.4 A opção pelo conto: uma expressão contemporânea

Hipótese também possível é a aproximação da ascensão das oficinas

literárias à preferência pelo gênero literário conto, porta de entrada de nove entre

dez dos jovens escritores no cenário literário. Não em vão, o gênero privilegiado pela

geração de jovens escritores que despontaram nas duas últimas décadas é o conto,

caracterizado, conforme lembra-nos Cortázar, como “uma síntese viva ao mesmo

tempo que uma vida sintetizada”27. Gênero literário compacto, mas não menor, o

conto apresenta, segundo fórmula desenvolvida por Anton Tchekhov, um mínimo de

enredo e o máximo de emoção ou, ainda, nas formulações de Edgar Allan Poe,

trata-se de uma narrativa na qual o autor consegue com o mínimo de meios, o

26 In: NETO, Ernane Guimarães. A ascensão das oficinas literárias. Folha de São Paulo, São Paulo, 16 de agosto de 2009. Caderno Mais! p.3. 27 CORTÁZAR, apud GOTLIB, 2006, p.10.

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máximo de efeito. Sabemos, pela sua histografia, que o conto é o gênero literário

mais antigo de todos - sua origem nos remete à cultura oral, às fábulas e às

parábolas -, pois o homem sempre foi ser narrativo. Porém, a origem da estrutura

moderna do conto, tal como o conhecemos hoje, está em Poe e Tchekhov que, a

partir da teoria da unidade de efeito e da teoria do conto de atmosfera, foram

moldando, formulando e estruturando o gênero, impondo-lhe regras e limites.

Depois dessas formulações primeiras, muitos outros escritores seguiram, e seguem,

o debate sobre o gênero, estando entre esses autores Júlio Cortázar, Jorge Luiz

Borges e Ricardo Piglia, para citar alguns.28

O conto reúne as características que a sociedade contemporânea busca em

suas atividades cotidianas: a rapidez, o imediatismo, a liberdade de mobilidade num

mundo em constante movimento. Mempo Giardinelli, em sua obra Assim se escreve

um conto (1994), percebeu que o conto é o gênero do tempo contemporâneo, o

gênero que tem assegurado o seu porvir, melhor definido em suas próprias palavras:

Na minha opinião, o conto é o gênero literário mais moderno e que tem a maior vitalidade. Por um lado – sabe-se – o homem e a mulher jamais deixam de contar o que lhes aconteceu. Por outro porque, por mais cansativa que seja a vida humana, as pessoas sempre terão – nessa época e nas próximas – cinco ou dez minutos para saborear um conto bem escrito. Como é um gênero que terá assegurado o seu porvir – costumo brincar - ao menos enquanto as pessoas tiveram abajures na cabeceira da cama, forem ao banheiro ou viajarem de ônibus. (GIARDINELLI, 1994, p.15)

A narrativa breve é hoje das mais populares entre os jovens escritores. Não

só os escritores a conclamam como também os organizadores de coletâneas e

antologias se utilizam dessa forma narrativa para apresentar aos leitores as suas

apostas literárias, reunindo escritores emergentes em volumes prometedores.

Podemos pensar em um possível vínculo entre a predileção pelo gênero e as

oficinas literárias.

28 As obras a que nos referimos são (seguindo a ordem de citação): (i) CORTAZAR, Júlio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 1974; (ii) BORGES, Jorge Luiz. A arte narrativa e a magia. In: Discussão. Trad. de Cláudio Fornari. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994; (iii) PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.

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Quase na totalidade os escritores observados passaram pelas salas de

oficinas e cursos de escrita literária, sendo que muitos deles 29despontaram a partir

da produção de contos. Nas oficinas, por circunstância do tempo, a forma literária

eleita para o “aprendizado” é, sem dúvidas, o conto. Aos escritores, então, é

“imposta” a produção de contos e a partir dessa estrutura, na qual querem aprimorar

suas veias criativas, surgem suas primeiras “fabricações” literárias, reforçando a

estatística. Daniel Galera, para exemplificar, estreou no meio literário com a

coletânea Dentes guardados (2001), resultado da sua participação na oficina literária

de Assis Brasil. Apesar de o autor hoje escrever romances, dedica-se ainda aos

contos, participando de coletâneas recentes como a Geração Zero Zero (2011) e a

Revista Granta (2012).

Por essas ideias apresentadas, é certo afirmar que o conto é um gênero

contemporâneo que se reinventa nas produções dos jovens escritores da Geração

Zero Zero que o “elegem” como expressão artística genuína. Podemos inferir que a

popularidade do conto dá-se pela sua brevidade, característica que atende as

demanda da sociedade contemporânea, e que há conexão entre a prática do conto e

a ascensão das oficinas literárias, visto que o conto é a base prática das oficinas e é

a estrutura pela qual esses se inserem no mercado literário. No que concerne à

apreciação estética dos contos hoje produzidos, fiquemos com Machado de Assis

que, na apresentação de Várias Histórias (1961), confessa ao leitor: “há sempre uma

qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e

outros são medíocres: é serem curtos”.

3.2.5 A Inserção no mercado: migrações editoriais

Mais uma característica passível de interpretação é a migração dos jovens

escritores das pequenas para as grandes editoras. As editoras, por sua estreita 29 Dos dezoito escritores que compõem o corpus de análise, onze iniciaram suas carreiras de escritores com publicação de contos, porém todos os escritores de que tratamos publicaram contos. Michel Laub, para citar um exemplo, iniciou sua trajetória com a publicação de romance, gênero ao qual se dedica (seus cinco romances foram publicados pela Companhia das Letras) e aparece com o conto “Animais” na Revista Granta (2012). Vale ressaltar ainda a seguinte estatística: dos dezoito autores, quinze participaram de oficinas literárias, logo a hipótese que liga a predileção pelo conto às oficinas literárias pode se dizer confirmada.

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ligação com o mercado, representam um dos elementos mais polêmicos do sistema

literário, pois segundo Lajolo e Zilberman, “na tradição dos estudos literários, não é

de bom tom misturar questões de dinheiro com literatura, apagando-se o caráter

econômico das atividades culturais” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2001, p.71).

A crença na literatura como atividade autônoma e contemplativa, “separada

das bases materiais, técnicas e econômicas, vale dizer, infraestruturais de sua

produção” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2001, p.72), é reafirmada a partir da história de

escritores que, em épocas outras, a exemplo de Camões, “morreram na miséria”,

reforçando “o embate entre criação artística e luta pela sobrevivência” (LAJOLO;

ZILBERMAN, 2001, p.72). Todavia, as atividades culturais, desde os tempos

antigos, estão estritamente ligadas aos modos de produção, instaurando o livro

como objeto de produção industrial, a leitura como rentável mercado intelectual e o

escritor como profissional aspirante por viver de sua produção literária. Dito isso, a

literatura, o livro como produto de mercado e a profissionalização do escritor não são

propriamente consequência do capitalismo ou propriedade da modernidade, ainda

que se vejam, na contemporaneidade, potencializadas essas facetas.

Desde o aparecimento da escrita, e dos primeiros escribas egípcios, a

transcrição da produção intelectual da oralidade para o registro escrito exigiu

trabalhadores qualificados. Com a demanda vigente e o surgimento da categoria de

profissionais da produção de livros iniciou-se o que podemos considerar hoje o

mercado literário, conforme explicam Lajolo e Zilberman:

O livro resulta de produção em série, emprega diferentes tipos de trabalhadores (entre os quais se contam ao menos o autor, o tipógrafo, o revisor, o encadernador, o propagandista, o vendedor, o professor de literatura, o crítico), supõe matéria-prima (papel, tinta, cola, linha de costura) e exige investimento, já que sua produção tem custo. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2001, p.159-160)

Uma vez resultado de força de trabalho, ao livro e ao seu produtor é afixado

valor, e a literatura, considerada essa perspectiva, passa a comportar, como lembra

Even-Zohar, um complexo de atividades que se estende para além da obra. Ainda

segundo Lajolo e Zilberman, atribuir ‘valor’ às produções humanas é tanto um

fundamento da economia capital quanto um conceito básico da estética. A diferença,

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explicam as autoras, “é que a economia privilegiou o quantitativo, e a Estética, o

qualitativo”. (2001, p.18). Contudo, alguns estudos acadêmicos negligenciam o

caráter econômico das atividades culturais e nos estudos literários tais abordagens

são vistas com certa desconfiança. Porém, como proferiu Antonio Candido (2000,

p.20), “não convém separar a repercussão da obra de sua feitura” e, em

concordância, Williams pensa a literatura como uma produção cultural indissociável

das condições materiais que a constituem. Bourdieu cita que Zola, em fins da época

de domínio dos mecenas, anunciou: “o dinheiro emancipou o escritor, o dinheiro

criou as letras modernas” (BOURDIEU, 2010, p.63), logo torna-se evidente que o

sistema literário possui estreitas relações com o campo econômico.

Para pensarmos o sistema literário contemporâneo, faz-se pertinente revisitar

o panorama histórico do campo literário brasileiro, a fim de determinar as

disposições sob as quais o campo literário atual irá se desenvolver. Segundo

Antônio Cândido (2006, p.241-260) observa-se um primeiro momento de rápida

expansão a partir da implementação da tipografia no Brasil, com a qual surgem as

condições materiais de reprodução e desenvolvimento de uma literatura

especializada, seguida do desenvolvimento de um mercado igualmente

especializado. Há, depois, um intertempo de estagnação do campo literário que

corresponde às duas primeiras décadas do século XX, seguido do período do ciclo

de 30, no qual experimentamos uma retomada do desenvolvimento do campo

literário e o reestabelecimento editorial e mercantil, possibilitados pelo

estabelecimento da classe média. No período da ditadura militar, pela censura

instaurada também à produção intelectual e artística, o circuito literário ficou

condicionado, gerando uma “literatura de combate” (CARNEIRO, 2005, p.26).

Durante a década de 70, instaurou-se um ambiente que favoreceu a

“legitimação da pluralidade” nas produções literárias que, incorporando técnicas e

linguagens, resultaram em textos indefiníveis: “romances que mais parecem

reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas; [...] textos feitos

com a justaposição de recortes, documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte”

(CANDIDO, 2006, p.253). Com o fim do regime militar, inicia-se o período de

redemocratização, cujas condições econômicas e políticas permitiram a livre

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circulação de produtos e o desenvolvimento de projetos editorias, apontando novas

direções depois do período de repressão.

A este panorama se juntam outras disposições que trouxeram condições

específicas para o estabelecimento do campo literário da década de 00 e suas

singularidades. A estabilidade econômica experimentada na década de 90 propiciou

o avanço das tecnologias de informação e a implantação da internet no Brasil30 que

trouxeram consigo o aumento da circulação de bens culturais e facilitaram a

explosão editorial, alterando o quadro da indústria editorial, estabelecendo de vez o

mercado literário e cultural. Assim explica Zilberman:

O quadro da indústria editorial também se alterou no Brasil do novo milênio: empresas estrangeiras descobriram o mercado nacional, adquirindo editoras de grande porte, [...] A reunião de editoras sob um único selo constitui acontecimento da última década, permitindo a um grupo como a Record abrigar os catálogos, entre outros, da Bertrand Brasil, José Olympo, Civilização Brasileira e Difel [...]. A concentração editorial em poucas empresas de grande porte, poucas delas inteiramente nacionais, teve como consequência a reação regional, impulsionando o aparecimento de projetos destinados à difusão de escritores de circulação local ou emergentes. Trata-se aqui de outro procedimento, que responde a uma lógica diferenciada, porém não menos focada no mercado. (ZILBERMAN, 2010, p.185)

O quadro editorial contemporâneo está formado por pequenas, médias e

grandes editoras. Muitos dos escritores premiados e (re)conhecidos no cenário

literário contemporâneo começaram suas trajetórias em pequenas editoras, atuando,

muitas vezes, não só como produtores, mas como editores de seus livros. Como já

explorado nestas páginas, duas dessas editoras destinadas “à difusão de escritores

de circulação local ou emergentes” aqui no Estado são a Livros do Mal e a Não

Editora. Dentre os quatorze escritores que publicaram nos dois pequenos projetos

editoriais, e que fazem parte do corpus desta pesquisa, seis deles migraram para

30 Estritamente ligada à história da internet no Brasil está a atuação dos jovens escritores, que ainda sem expressividade no sistema literário, viram a oportunidade de inserção. Daniel Pellizzari, concomitante à primeira onda de comercialização da internet, criou, em 1996, o Quatro gargantas cortadas: um folhetim pop de ficção esquizodélica, o segundo site de publicação individual de literatura no Brasil. Sua atuação vanguardista e a consequente recepção de seus textos lhe trouxeram visibilidade e Pellizzari passou a ser considerado um agente de expressão no panorama cultural. Seguindo os passos do amigo, Daniel Galera, em 1997, criou o site Proa da Palavra, dedicado a publicação de textos de escritores iniciantes, considerado igualmente um escritor vanguardista no uso da internet como meio de produção e circulação de textos literários.

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renomadas editoras. Daniel Galera, Daniel Pellizzari, Paulo Scott, todos da extinta

Livros do Mal, hoje são contratados pela Companhia das Letras31. Da Não Editora,

por sua vez, temos Carol Bensimon, que hoje também publica pela Companhia da

Letras e Antônio Xerxenesky, que teve seu segundo livro reeditado pela Rocco.

Podemos considerar que, no mercado literário, as pequenas editoras assumem um

papel de “olheiro”, prestando serviço às grandes editoras. Xerxenesky, integrante do

corpo editorial da Não Editora, explica em entrevista:

As editoras pequenas têm uma função meio cretina no mercado literário que é a seguinte: descobrir os novos autores. As grandes editoras meio que estão esperando que nós façamos esse trabalho de descobrir quem é que está escrevendo bem na cidade, publique e depois vêm e dizem: “a esse aqui é realmente bom, para o segundo livro vamos chamar ele”.32

Confirmação desse pressuposto observa-se no depoimento de Marta Garcia,

uma das editoras da Companhia das Letras, respondendo a um leitor que indaga

“como o Galera foi para a editora”:

É uma história interessante porque o Galera é um cara que começou a escrever muito jovem, meio menino prodígio eu diria, e ele tinha uma pequena editora lá no Sul, a Livros do Mal, e ele fez uns livrinhos, desses livrinhos meio alternativos. Ele começou fazendo contos, aliás, antes disso ela já publicava coisas na internet, mas eu o conheci através da Livros do Mal. Ele mandou para meu marido, Reinaldo Moraes, esses livrinhos, mandou ou o Reinaldo ficou sabendo de alguma maneira e aí ele me mostrou e disse: “Lê esse cara, vê como ele é bom”. Eu li e realmente fiquei impressionada, e ele me disse: “esses são uns caras jovens lá do Sul que estão escrevendo super bem”, e eu fiquei impressionada. Até cheguei a mencionar numa reunião aqui, mas isso foi nos primórdios e não teve muita repercussão. Depois, eu não sei exatamente como, o Luiz leu o Galera e também ficou impressionado e foi contatar o Galera numa FLIP, e falou: “queremos você aqui na editora”.33

31 Faz-se necessário explicar que, se observado o quadro de autores pesquisados, as publicações recentes de Daniel Pellizzari e Paulo Scott não apontam para a Companhia da Letras. Tal fato se dá por ainda não estarem acabados os romances que fazem parte da coleção “Amores expressos”, proposta pela editora e que é abordada no capítulo seguinte. 32 Depoimento ao “Saraiva Conteúdo”, em 18 out. 2010. Disponível em: www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10445 Acesso em: maio 2012. 33 Depoimento ao “Companhia das Letras responde perguntas dos leitores”, em 27 jan. 2011. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=eDJN7X_8bic&list=PLA79F50C911F2B35B&index=19&feature=plpp_video. Acesso em: jun. 2012.

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Do depoimento da editora da Companhia da Letras poderíamos derivar outras

reflexões, além do papel significante, para o mercado editorial, das pequenas

editoras e suas apostas em emergentes escritores. As feiras e festas literárias têm

significativa importância - a exemplo da FLIP, evento onde, segundo o depoimento,

Galera foi “encontrado” pela grande editora – pois são espaços de trocas sociais e

também de negociações comerciais, pilares da arte industrial, como se refere

Bourdieu (2010, p.19). Ao analisar os salões do século XIX, semelhante aos eventos

que citamos, Bourdieu expõe que esses salões não são apenas locais onde

escritores e artistas reúnem-se e encontram “os poderosos, materializando, assim,

em interações diretas, a continuidade que se estabelece” entre os campos (do

poder, econômico e literário). Através das trocas que ali se operam, esses eventos

passam a exercer uma força estruturante do campo literário, estabelecendo as

regras dos jogos que ali se instauram: “É assim que os salões, que se distinguem

mais pelo que excluem que pelo que aglutinam, contribuem para estruturar o campo

literário” (BOURDIEU, 2010, p.69).

Reflexão pertinente também é a que denuncia a interferência dos editores nas

produções artísticas, tendo por argumento a demanda do mercado. Os editores das

grandes empresas livreiras tendem a adaptar as obras, influenciando, assim, não só

na arte - que acaba sendo controlada por interesses mercadológicos – mas também

no gosto, que passa a ser definido e imposto a uma massa de leitores. Bourdieu

explica que o campo literário tende a organizar-se segundo dois princípios de

diferenciação: a oposição da arte pura e a da destinada ao mercado. Tendo em vista

a intervenção dos editores, e que livros dependem de editoras para chegarem ao

livreiro e, enfim, ao leitor, a ideia de “arte pura”, ou a arte pela arte, torna-se conceito

distante da realidade. Para citar um exemplo, Antonio Xerxeneski, quando teve seu

livro (Areia nos dentes) reeditado pela Rocco (2010) – primeiramente publicado pela

Não Editora (2008) - conta que, além de algumas alterações ao longo da narrativa, o

romance recebeu um acréscimo de cinco páginas, o que, segundo o autor, melhorou

a obra. A constatação do escritor Caio Yurgel referente ao número de páginas dos

livros publicados recentemente é outro indício da interferência das editoras, e de seu

quadro de editores, na produção artística:

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Me chama a atenção como 90% (spoiler alert: estou inventando este número agora) dos livros recentes brasileiros têm ao redor de 150 páginas. É quase como uma receita, uma equação: 150 páginas, o fôlego do autor ou do leitor. Não sei qual o pior cenário. O que eu sei é que, olhando assim empiricamente para minha estante, os livros brasileiros têm o mesmo tamanho. (Exceções que eu consigo enxergar daqui: Lúcio Cardoso, Hilda Hilst, Veronica Stigger – mas este só por causa do projeto gráfico totoso da Cosac).34

Raymond Williams explica as relações de patronato, as mesmas explicitadas

por Bourdieu nas citações ao mecenato. Para Williams os patrocinadores da arte

acabam por exercer uma função de instituição reguladora das produções culturais

por suas diversificadas formas de atuação no campo literário e suas intrínsecas

relações com o campo mercadológico, que vão desde a contratação do autor e

encomenda de obras (como a exemplo da coleção “Amores expressos” de que

trataremos) até a proteção e reconhecimento social desses artistas (WILLIAMS,

2011a, p.39-42). Essas interseções modificam as relações do produtor com sua obra

e suscitam discussões importantes e difíceis, explica Williams, como a “obrigação,

ou sujeição” do produtor a um “público ou mercado” (2011a, p.45). Bourdieu trata

dos mecenas e da prática do mecenato, comum até meados do século XVIII. Os

mecenas eram os protetores oficiais da arte, uma verdadeira “subordinação

estrutural” que impõe e estabelece as regras do jogo (2010, p.65) - hoje não muito

distante dos séculos passados. Seja como for, isso indica a relevância em se

entender a literatura enquanto sistema que funciona de forma interligada.

Vimos que os jovens escritores aqui apresentados podem ser observados

enquanto grupo cultural, tendo em vista suas semelhanças nas formas de atuação e

condições compartilhadas. Essa compreensão nos auxilia no entendimento de suas

dinâmicas de atuação dentro do sistema literário, como veremos a seguir. Deve-se

considerar, em conformidade com Williams, que mesmo sendo o grupo pequeno ou

efêmero não convém tratar com descaso sua relevância como fato social e cultural,

visto que, em caráter geral, muito se descortina, “no que eles realizam e nos seus

modos de realização”, sobre as sociedades (2011b, p.202).

34 YURGEL, Caio. Jonathan Franzen e a literatura pau-mole. Cadernos de Não-Ficção, Porto Alegre, n.3, jun. 2011, p.10-20. Disponível em: http://www.naoeditora.com.br/wp-content/uploads/pdfs/cadernos_de_nao_ficcao-03.pdf Acesso em: 10 nov. 2012.

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3.3 ATUAÇÃO NO SISTEMA LITERÁRIO EM PORTO ALEGRE

Dada a quantidade de escritores jovens que se ocupam em escrever

literatura, cabe agora identificar como atuam esse escritores, os produtores de que

nos fala Even-Zohar, no sistema literário gaúcho. Antes, porém, vale ressaltar que

mapear a literatura contemporânea não é tarefa que se encerre ou se esgote nestas

páginas, é, antes, trabalho para um estudo continuado. Podemos afirmar que a

literatura brasileira produzida no século XXI apresenta singularidades, uma das mais

visíveis certamente é a atuação cultural dos escritores contemporâneos, que

desenvolvem variadas funções no sistema literário, envolvendo-se na produção,

edição, distribuição e chegada do livro nas mãos do leitor. Essas novas dinâmicas

modificaram as relações entre os diversos profissionais da área, impelindo o escritor

a abandonar a posição inerte para atuar dinamicamente no cenário literário.

Escritores como Daniel Galera e Daniel Pellizzari, que hoje têm seus livros

editados pela Companhia da Letras, não esperaram a aceitação de seus textos por

uma instituição editorial e “forjaram” sua inserção no mercado, a partir da criação da

Livros do Mal. Esses autores inauguraram no Estado um modelo de circulação da

literatura que passava da internet, onde já tinha um público cativo, para as páginas

impressas, ganhando novos leitores. Os criadores da Livros do Mal, escritores-

empreendedores, inspiraram outros que se proliferam pelo Estado, acompanhados

também de suas editoras, como a também já apresentada Não Editora. Fora o

empreendedorismo editorial, esses escritores movimentam o sistema literário à

frente de múltiplos projetos culturais. Como aponta Even-Zohar “os produtores não

estão confinados a um só papel na rede literária, atuam, muitas vezes, em outras

atividades” (2007, p.48). Essa multiplicidade de papéis é que torna interessante a

literatura contemporânea produzida na capital do Rio Grande do Sul. Esses

escritores, produtores contemporâneos, configuram um modo de agir no sistema

literário, organizando-se de formas criativas, tomando a frente não só no processo

de produção da obra, mas interferindo também na sua circulação e recepção.

Diante da mobilidade de atuação e da habilidade desses jovens autores, vale

apontar as suas atuações ligadas à instituição, particularmente a pequenas editoras,

como a Livros do Mal e a Não Editora. Desta última originou-se a Dublinense,

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editora criada devido à demanda de escritores novos e de suas diferentes propostas,

não condizentes com a linha editorial da Não Editora. Também podemos referir o

grupo de escritores e os projetos literários, igualmente múltiplos e, em grande parte,

surgidos pela proposição desses mesmos escritores de que nos ocupamos aqui.

Projetos como o “Gauchão de Literatura”35, finalista do prêmio Fato Literário 2010, é

exemplo do que tratamos. Ainda merecem atenção a “Maratona Literária de Porto

Alegre”36, evento literário pioneiro em Porto Alegre; o “Encontro Literário Palavra -

Alegria da Influência”37, evento que possibilita discutir a literatura sob a perspectiva

de diferentes gerações; a “FestiPoa Literária”38 que, em sua quinta edição (2012), é

considerada hoje um dos principais eventos culturais da cidade (ao lado, claro, da

“Feira do Livro”), promovendo debates, leituras, lançamentos, oficinas, exposições,

shows, espetáculos de teatro, filmes, entre outras atividades; a “Feira do Livro de

Porto Alegre”, uma das mais antigas do país, considerada a maior feira de livros a

céu aberto das Américas; o “Sarau Elétrico”39, um encontro literário-musical que

ocorre todas as terças-feiras, desde 1999, no bar Ocidente e que já foi incorporado

ao calendário cultural da cidade; entre tantos outros eventos que dão visibilidade e

inserção social à literatura.

Se tomarmos o exemplo da editora Dublinense, verificaremos implicações,

entre outros aspectos, em termos de repertório, uma vez que essa surgiu para

acolher os escritores que apresentavam propostas diferentes à linha da Não Editora,

35 O Gauchão Literário é um campeonato virtual que promove leituras e comparações entre livros dessa nova geração de autores gaúchos, produzindo, assim, um vasto material crítico sobre a produção recente da literatura do Estado e premiando aqueles autores de maior destaque. Mais informações disponíveis em: gauchaodeliteratura.wordpress.com 36 A Maratona Literária de Porto Alegre, foi um evento literário promovido pela Secretaria Municipal de Cultura. A atividade propunha a leitura coletiva de um livro pré-escolhido, em espaços culturais da cidade. A leitura da obra era realizada na íntegra, geralmente totalizando mais de 12 horas de atividade. O propósito era incentivar, promover e democratizar a literatura. A maratona teve edições até 2010. Informações disponíveis em: maratonaliterária.blogspot.com 37 São encontros mensais que ocorrem em uma livraria da capital, propiciando o encontro de escritores gaúchos da nova geração (anfitrião do encontro) com escritores já consolidados no cenário literário do Estado, para conversar sobre seus trabalhos, ler textos e debater ideias sobre suas produções literárias. 38 Mais informações disponíveis no site: festipoaliteraria.com 39 Mais informações disponíveis no site: saraueletrico.com.br

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o que nos leva a inferir a existência de “regras” no fazer literário, de acordo com a

definição de públicos, estabelecidos pelas linhas editoriais. Assim, tais opções são

exemplificativas das “regras da arte”, para usar a expressão de Bourdieu (2010),

determinadas por agentes que participam do campo literário. Algumas indagações

ao nível do repertório surgem de pronto, como, por exemplo, o registro de linguagem

e os conhecimentos compartilhados (tais como elementos e termos advindos da

tecnologia e da informática); a estrutura e modelos privilegiados nas produções

(contos, minicontos, crônicas, traduções, quadrinhos, etc.).

O poema de Diego Grando, “Googled poetry” é exemplo perfeito do registro

da linguagem advinda da tecnologia, observados na literatura da

contemporaneidade. O poema, que integra o livro Sétima do singular (2012), faz da

autenticidade e originalidade, e do Google, mote para a criação:

Quando quero uma frase sem igual um verso totalmente inusitado o inovador em um lugar comum reinventado primeiro abro a janela em seguida as aspas e aos olhos e ouvidos do mundo lanço pretensa e ambiciosa sentença-imagem-nada se a busca não tem retorno “nenhum documento encontrado” tanto melhor para mim sinal de que a ideia é boa e deve ser ponderada (questão de autenticidade salvo a prova num print screen) um poema que se preste (copia e move, e clica, e corta, e cola): puro engajamento virtual (GRANDO, 2012, p.24)

Observamos que o poeta utiliza ações próprias do uso do computador, e de

seus editores de texto, – “copia e move, e clica, e corta, e cola” - para refletir sobra a

originalidade no fazer poético, que hoje é “puro engajamento virtual”. Outro exemplo

que pode auxiliar na ilustração da conjuntura é o conto “Quero ser Mia Couto”, do já

referido Quero ser Reginaldo Pujol Filho (2010, p.101-127). O conto apresenta a

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história de um jornalista correspondente de guerra, Carlos Peixoto, enviado para

cobrir uma guerra em Maputo. Chegando a capital moçambicana, ”um vírus detonou

o hd” de seu laptop, danificando a “placa-mãe” (PUJOL FILHO, 2010, p.108).

Autorizado a comprar outra máquina para trabalhar e, enfim, enviar seus boletins

diários, ele adquire um computador que “pertenceu a um famoso escritor

moçambicano” (2010, p.108). A partir da aquisição do novo laptop, a narrativa se

desenvolve, tendo a tecnologia e a linguagem literária de Mia Couto como pano de

fundo e estrutura. O que o jornalista escreve durante o dia, para enviar na manhã

seguinte ao jornal, o laptop, que supostamente pertenceu a Mia, modifica,

adaptando à linguagem característica do autor moçambicano, deixando todos

confusos com a “falta de objetividade” e o excesso de subjetividade. Nos excertos a

seguir temos um exemplo do enredo da narrativa, toda estruturada no formato de e-

mail:

De: Alexandre Junqueira Enviada em: domingo, 18 de abril de 2004 08:33 Para: Carlos Peixoto [mailto:[email protected]] Assunto:RE: Lendo nas entrelinhas da noite Peixoto [...] Mas, rapaz, não entendi o seu texto, que linguagem é essa? [...]. Me explica isso, vai dar um trabalho do cacete copidescar esses arroubos poéticos-impressionistas. [...] Pensando melhor, nem vou passar esse texto diante [...]. Aguardo tuas explicações. De: Carlos Peixoto [mailto:[email protected]] Enviada em: segunda-feira, 19 de abril de 2004 05:2 2 Para: Alexandre Junqueira Assunto: RES:RE: Lendo nas entrelinhas da noite Junqueira Terá-se tornado a internet uma estrada sonâmbula, movendo-se tontuosa a desviar nossos caminhos enquanto estamos a dormir? [...]. (PUJOL FILHO, 2010, p.111-112)

Ainda que tenhamos observado que o gênero literário mais popular entre os

escritores da Geração Zero Zero é o conto, os escritores se aventuram em gêneros

e artes variadas. Sabemos que Daniel Galera, por exemplo, iniciou escrevendo

contos – Dentes Guardados (2001) – e experimentou os quadrinhos com a trama

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Cachalote (2010), mas sua mais profícua produção são os romances – Até o Dia em

que o Cão Morreu (2003-2007), Mãos de Cavalo (2006), e Cordilheira (2008) e o

recente (lançado no Brasil no final de dezembro) Barba ensopada de sangue (2012).

Alessandro Garcia privilegia os contos, dentre os quais, destacamos o “Vãos” e

“Me”, ambos reunidos na antologia a Sordidez das pequenas coisas (2010). Diego

Grando, por sua vez, dedica-se à poesia, gênero pouco privilegiado pelos escritores

contemporâneos que observamos ou, talvez, menos incentivado pelas editoras,

mercado e consumidores. Também poeta, Everton Behenck mistura literatura à

música e vice-versa. É autor de Os dentes da delicadeza (2010) - uma compilação

de seus poemas, publicado no blog “Apesar do céu”-, e atua como letrista e vocalista

da banda Casamadre. Isso para citar poucos exemplos.

O mercado, porém, talvez seja o elemento no qual mais encontremos a

movimentação desses produtores, vista a migração de agentes de outros campos do

“polissistema”. Aqui, o funcionamento, a intencionalidade e os resultados de

programas como o “Adote um escritor” - realizado pela prefeitura de Porto Alegre, no

qual a escola passa a atuar como mercado e os professores como mercadores - é

exemplo bastante elucidativo.

As estratégias de inserção no mercado, adotadas pelos escritores

contemporâneos do Estado, suas atuações na internet, suas investidas como

críticos literários, lançando resenhas de escritores também contemporâneos em

revistas eletrônicas (como o exemplo da revista eletrônica “Cadernos de Não Ficção,

mantida pela Não Editora, onde escritores publicam resenhas e críticas literárias)

são questões que desafiam pesquisadores que ensejam estudar o sistema literário

contemporâneo. Do mesmo modo, suas participações em eventos e projetos e a

promoção de festas literárias, conforme exemplos que citamos anteriormente,

sinalizam que tais dinâmicas culturais não se dão à parte do processo criativo, mas

lhes são constitutivas.

Dentre tantas possibilidades de investigação acerca das atuações dos

escritores gaúchos contemporâneos, uma constatação parece evidente: esses

escritores conferem aos livros o status de produto legitimador da literatura. Tal

conclusão está calcada na evidenciada proliferação de pequenas e independentes

editoras criadas por esses novos escritores, o que nos leva a inferir que tal se dá

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porque o livro ainda é o suporte que confere aos textos o valor literário e, aos

produtores, a profissão de escritor. Mas não só textos literários são privilegiados por

esses escritores. Há produtos literários derivados, conforme considera Even-Zohar,

e eles são inúmeros, tais como: entrevistas; leituras em saraus e maratonas;

produção de artigos e críticas literárias; citações. Igualmente, os prefácios são

modelo do que fala Even-Zohar, e esses servem, também, para ressaltar o caráter

de grupo que descrevemos anteriormente e o estreito vínculo entre os escritores da

Livros do Mal e da Não Editora. Via de regra, esses jovens produtores escrevem uns

nos livros dos outros, sendo fartos os exemplos. Em O livro das cousas que

acontecem (2003), de Daniel Pellizzari, o conto “Rancho carne” (p.53) é dedicado a

Daniel Galera e o título nomeia hoje a página de Galera na Web. Em contrapartida,

nos quadrinhos de Cachalote (2010), de Galera e Rafael Coutinho, na segunda

parte, encontramos, em forma de cartaz fixado a uma parede de um estúdio

cinematográfico, referência explicita ao livro Dedo negro com unha (2005), de Daniel

Pellizzari. O livro de Carol Bensimon, Pó de parede (2008), recebe prefácio de Paulo

Scott e em sua segunda publicação, Sinuca embaixo d’água (2009, p.137) a autora

agradece aos conselhos e sugestões de Paulo Scott e Daniel Galera. O livro Areia

nos dentes (2010), de Antônio Xerxenesky traz o prefácio de Daniel Galera, o livro A

virgem que não conhecia Picasso (2007), de Rodrigo Rosp, apresenta na capa

crítica de Rafael Bán Jacobsen, e assim por diante.

Resta saber quem são os consumidores de tanta literatura

contemporaneamente produzida no mercado gaúcho. Podemos falar na eleição de

públicos específicos, que constituem comunidades visadas pela atividade literária,

tais como literatura para jovens, crianças, universitários, homossexuais, entre

outras? Enfim, as possibilidades de investigação são amplas e múltiplas e, talvez, os

consumidores configurem o elemento mais complexo de ser analisado. Afinal, os

autores modelam seus repertórios de acordo com públicos específicos visados? E

em que termos suas atuações como produtores literários alcança captar a adesão

desses consumidores? As respostas a essas indagações exigiriam uma pesquisa a

parte, para além dos limites deste trabalho.

A produção literária contemporânea pode ser encarada com outros olhares.

São numerosos e variados os agentes, as concepções, os modelos, os modos de

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atuar, fazer e lidar com a literatura. A literatura que estudamos configura a

complexidade e a renovação do sistema literário contemporâneo, que compreende a

literatura para além dos livros e concebe o fazer literário como atividade que não se

esgota na criação individual. Tendo em vista essas questões, fica visível que os

modos de se conceber e de se fazer literatura mantêm forte vínculo com a

organização sociocultural, deixando os textos de funcionar apenas como

representação de um imaginário universal, para que adquiram sentido em contextos

práticos, em estreita conexão com o modo como eles ganham existência e incidem

na vida individual e coletiva.

Ao mesmo tempo, contudo, é possível destacar certa dinâmica, ou luta,

dentro desse campo, além de um pacto comum em torno do prestígio literário a

adquirir, entre os ortodoxos e os heréticos, isto é, entre os que estão no centro e os

das margens. O pacto, no fundo, justifica a própria luta. De acordo com Joseph Jurt:

Há sempre uma relação antagônica entre aqueles que Bourdieu chama, na linha da sociologia religiosa de Max Weber, de “ortodoxos” e de “heréticos”. Os ortodoxos, “que, num determinado ponto das relações de força, monopolizam (mais ou menos completamente) o capital específico característico de um campo, são inclinados a adotar estratégias de conservação” (Bourdieu, 1980, p. 115). “Os menos dotados de capital simbólico, em contrapartida, ‘tendem a adotar estratégias de subversão – aquelas da heresia” (id. ibid.). Apesar dos antagonismos, há também interesses fundamentais implícitos que todos os agentes do campo partilham e que estão ligados à sua própria existência. (JURT, 2004, p. 53)

O êxito ou o fracasso no campo literário depende sempre dos capitais

simbólicos envolvidos. Assim, o que é sucesso em termos de vendas, por exemplo,

em outra instância pode ser um malogro, como acontece com a crítica acadêmica

em relação aos best sellers. Seja como for, produtos e produtores literários estão em

permaente disputa e sua existência implica sempre estratégias de legitimação. No

caso dos jovens escritores gaúchos contemporâneos, identificados a uma mesma

“formação cultural”, como procuramos evidenciar, podemos dizer que detêm alto

capital simbólico, franqueado por sua condição social e pelos modelos literários que

elegem como referentes. Não se trata, portanto, de heréticos, mas antes de

ortodoxos, segundo a postulação de Jurt. Do conjunto desses escritores, Daniel

Galera talvez seja o caso que melhor exemplifica essa estratégia ortodoxa de

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atuação, revelando plena consciência do seu papel de produtor dentro e fora da

literatura. Assim, Galera torna-se um caso de estudo tanto por sua destacada

movimentação no campo literário, como também por refletir, nas páginas da ficção,

como no romance Cordilheira, de que trataremos no próximo capítulo, sobre as

dinâmicas envolvidas na produção literária contemporânea.

Muitos outros escritores poderiam ser escolhidos, mas a eleição de Galera

tem a ver tanto com seu empreendedorismo, ao lançar o selo editorial Livros do Mal,

quanto pelo seu percurso dentro do sistema literário, até alcançar o lugar de

referente, quando se aborda a literatura contemporânea, ou a literatura da cultura

digital. Beatriz Resende justifica a “merecida atenção” a esse escritor que se

sobressaiu no início do século, trazendo vigor a “uma literatura brasileira que

retomava fôlego, caracterizando-se, sobretudo, por múltiplas possibilidades, atraindo

interesse de novos leitores e editores que a olhavam com um misto de curiosidade,

esperança e...descrença” (2008, p.124).

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4 REDES DE INTERAÇÃO: DANIEL GALERA E CORDILHEIRA NO SISTEMA CULTURAL

4.1 O AUTOR-PRODUTOR DANIEL GALERA

Daniel Galera nasceu no ano de 1979, na cidade de São Paulo, mas residiu a

maior parte de sua vida em Porto Alegre, cidade em que, depois de algumas

mudanças, vive atualmente. Formado em Letras pela UFRGS, além de escritor,

Galera atua como tradutor de língua inglesa e é hoje uma das referências da nova

geração de escritores no Brasil. Como afirma em entrevista, foi um dos precursores

do uso da internet em prol da literatura, editando e publicando textos em portais e

fanzines eletrônicos entre 1996 e 2000, chegando a lançar um selo editorial próprio

para a difusão de escritores emergentes:

Comecei a escrever lá por 1996/1997 que coincidiu com a popularização da web no Brasil [...] então foi uma coisa óbvia, na verdade, começar a escrever e publicar na internet foram coisas espontâneas, nunca foi uma novidade para mim. Eu comecei a escrever ao mesmo tempo em que comecei a descobrir as possibilidades de publicação na internet.40

Em 1998, Galera tornou-se colunista do ezine CardosoOnline (COL), um dos

mais populares fanzines eletrônicos que alcançou o número de 5.000 assinantes e

contribuiu para o lançamento de alguns escritores da nova geração. Com o

surgimento das tecnologias digitais, os modernos editores de texto e os softwares de

diagramação, Galera, tirando vantagens das tecnologias de seu tempo, lançou em

2001 não só seu primeiro livro - Dentes Guardados – mas também o selo editorial

Livros do Mal, sob o qual imprimiu suas primeiras produções. A editora, criada por

Galera em sociedade com os amigos Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla, difundiu

uma gama de nomes de escritores emergentes, fora do eixo Rio-São Paulo e, ao

que parece, inspirou outras pequenas editoras lançadas por escritores iniciantes no

Estado. A estratégia de lançar editoras independentes para a publicação de autores

40 Programa Encontros de interrogação - Itaú Cultural. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=tWSCbYxyOYM&feature=BFa&list=PLB4C64BF0BA3A0CEF&lf=mh_lolz Acesso em: 20 abr. 2012.

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que não encontram espaço no mercado tradicional não é propriamente uma ideia

original, visto que na história da literatura brasileira encontramos registros de ações

empreendedoras desse tipo. Podemos citar, como exemplo, a iniciativa do escritor

Monteiro Lobato, que modificou o mercado editorial brasileiro já no início do século

XX. Lobato imprimiu por conta própria o seu livro Urupês (1918), cuidou da

distribuição e da circulação de sua obra, atentou ainda para a recepção de seus

textos mantendo contato com o público leitor e, com a criação da Companhia

Gráfico-Editora Monteiro Lobato, começou a publicar os livros de seus amigos e de

escritores iniciantes. Editoras e cooperativas literárias em nível regional com o

mesmo histórico poderiam ser também citadas, mas não é o caso de alongarmo-nos

neste ponto. Ainda que a prática de escritores atuando como editores, lançando

selos editoriais e desempenhando funções variadas no sistema literário de que

participam não seja novidade, a Livros do Mal sintetiza as propostas apresentadas

pela nova geração de escritores de que aqui tratamos. A primeira publicação de

Galera e da editora Livros do Mal foi, como já dito, a coletânea Dentes Guardados,

que teve suas duas edições esgotadas. Os quatorze contos que a compõem

despertaram o interesse de alguns críticos que voltaram as atenções para Daniel

Galera, sobre o qual escreveram41:

Daniel Galera anda no fio da navalha da ficção e confissão. A começar pelo título, tirado de Hilda Hilst, Dentes guardados estabelece diálogos com a tradição literária, mas cada uma das 14 histórias é atravessada por referências ao cotidiano de jovens intelectualizados e saudavelmente insatisfeitos com a vida. Isso se manifesta, é claro, em situações, mas principalmente no bom ouvido de Galera para registrar o coloquial sem descuidar da forma. Seus personagens são facilmente reconhecíveis, mas não decalcam a vida: são, por tudo isso, solidamente literários [...].(Revista Época, Paulo Roberto Pires)

Alguns contos da coletânea foram adaptados para o teatro por Mário

Bortolotto (2002) e outros ganharam expressão em curtas-metragens 35mm, tais

como: "Intimidade", por Camila Gonzatto (2003); "Manual para atropelar cachorros",

por Rafael Primo (2005); "Dafne adormecia", por Pedro Perazzo, com o título "Fácil

41 Fonte: ranchocarne.org (site do autor). Daniel Galera mantém, em seu site, a clipagem das notícias veiculadas na mídia acerca de suas publicações. No site não são mencionadas as datas em que foram publicadas as críticas.

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como a vida" (2010). De Dentes Guardados merece atenção, ainda, o conto "A

escrava branca", também adaptado para o teatro e para curta-metragem, por

Fabrício Bittar, com o título "Elise" (2007). O conto tem como pano de fundo a

confusa relação entre homens e mulheres hoje, instaurada pela conquista da

igualdade entre os sexos. A coletânea foi publicada também na Itália, com o título

Manuale per investire i cani e altri racconto (Arcana, 2004) e atualmente está

disponível na web, inclusive em versão para impressão, através do link que o autor

informa em seu site Rancho Carne.

Em 2003, aos 23 anos, Galera escreveu seu segundo livro, a novela Até o dia

em que o cão morreu, lançado, primeiramente, também pela Livros do Mal. Como

sua coletânea de estreia obteve êxito, a novela encontrara um grupo de leitores já

formado. Até o dia em que o cão morreu despertou o interesse da renomada editora

Companhia das Letras que, em 2007, editou o terceiro livro de Galera, Mãos de

Cavalo - obra que se insere na tradição literária dos romances de “reparação”,

problematizando o tema da “segunda chance”-, marcando o lugar do autor no

cenário literário nacional. Mãos de Cavalo, lançado também na Itália, França,

Portugal e Argentina, é dividido em duas partes que, entrelaçadas, contam a história

memorialística de um grupo de adolescente de Porto Alegre, simultânea ao relato de

vida de Hermano, um médico de sucesso. Galera foi moderadamente criticado

quanto ao cunho biográfico do romance, ao que respondeu em entrevista, quando

da publicação de Mão de Cavalo na Itália:

Eu acabo usando muito das experiências minhas. Experiências de pessoas que eu conheci, histórias que me foram contadas, lugares que eu vi. Tudo isso para mim é matéria prima para criar ficção [...]. No caso de Mãos de Cavalo eu explorei isso de maneira mais aberta, mais franca. O livro está situado no bairro onde eu cresci, aquelas ruas foram as ruas de minha infância de fato, eram as ruas onde eu andava de bicicleta [...].42

Como bem prenuncia Pierre Bourdieu, o “descobridor nunca descobre nada

que já não esteja descoberto” (2010, p.194). A Companhia das Letras, atenta à

42 Programa Parole Sull’Acqua - Lib Lab. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=-zXEKWOC0fc&feature=BFa&list=PLB4C64BF0BA3A0CEF&lf=plpp_video. Acesso em: 08 jun 2012.

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trajetória de sucesso do autor43, incluiu-o no seu prestigioso catálogo. A segunda

edição de Até o dia em que o cão morreu saiu em 2007 justamente pela Companhia

das Letras, e no mesmo ano é adaptada para o cinema por Beto Brant e Renato

Ciasca. Sob o nome de Cão sem Dono, o filme recebeu duas indicações ao Grande

Prêmio do Cinema Brasileiro, nas categorias de melhor diretor e melhor roteiro

adaptado. Ganhou três prêmios no Festival do Audiovisual, e no Festival de Cuiabá

foi escolhido na categoria melhor Atriz (Tainá Müller). Daniel Galera, assim,

conquistou seu “lugar ao sol” e recebeu incentivo por parte dos meios de

comunicação, sempre atentos à literatura e suas novas apostas.

É possível que [Galera] tenha captado como ninguém o espírito dessa geração que, aos olhos dos mais velhos, parece perdida e desejosa de prolongar indefinidamente a adolescência. Seja como for, Até o dia em que o cão morreu revela um escritor talentoso e cheio de personalidade, que tem no frescor da linguagem sua virtude mais evidente. (Carta Capital, José Geraldo Couto)

Em 2008, é lançado no mercado o livro Cordilheira, parte de um projeto

proposto pela Companhia das Letras, chamado Amores Expressos. Com o romance,

Galera auferiu o Prêmio Machado de Assis de Romance (2008) e foi o terceiro

colocado no Prêmio Jabuti (2009). Em 2010, é editada a narrativa em quadrinho

Cachalote, em parceria com o desenhista Rafael Coutinho. Galera participou de

diversas coletâneas, entre elas: Sex'n'bossa. Antologia di narrativa erótica brasiliana

(Itália: Mondadori, 2005); Contos de Bolso (Casa Verde, 2005); Os Cem Menores

Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004); Literatura Século XXI - vol. 2

(Blocos, 1999). Além de selecionado recentemente para participar da polêmica

coletânea Geração Zero Zero (2011), em julho de 2012, Galera foi escolhido para

43 A trajetória de Galera é exemplo de escritor que conquistou seu espaço e que vive de sua profissão. É importante registrar, porém, que essa não é uma história recorrente, visto que são muitos os jovens que também tentaram, e ainda tentam, se estabelecer como escritor profissional e não obtiveram o mesmo êxito. A ‘contraexemplo’, cito o caso do escritor Cristiano Baldi que, apesar de fazer parte do grupo da Livros do Mal, não obteve bons resultados em sua trajetória literária que se restringiu à publicação de Ou Clavículas (Livros do Mal, 2002).

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figurar na tradicional revista britânica Granta44, sob o título de “os melhores jovens

escritores brasileiros”.

A Revista Granta, fundada em 1889 por alunos da universidade de

Cambridge, se estabeleceu como uma publicação que lança novos autores. Ao

longo dos anos, a revista foi se consagrando por apostar, e acertar, em nomes de

jovens escritores que tenderiam a tornarem-se os “próximos grandes escritores” dos

países em que era publicada. Hoje é possível constatar a validade das listas a partir

de nomes como Julian Barnes e Ian McEwan (edição Reino Unido, 1983); Jonathan

Franzen, Will Self e Hanif Kureishi (edição norte-americana, 1996 e 2006); Elvira

Navarro, Javier Montes e Andrés Neuman (edição em espanhol, 2010). Na

apresentação da edição brasileira, Roberto Feith e Marcelo Ferroni explicam o

projeto de Granta em português45. O projeto abriu inscrições para os escritores de

prosa nascidos a partir de 1972 e que tivesse algum texto de ficção já publicado no

Brasil. A revista recebeu um total de 247 inscrições válidas que foram analisadas por

sete jurados - Beatriz Bracher, Cristóvão Tezza, Samuel Titan, Manoel da Costa

pinto, Italo Moriconi, Benjamin Moser (norte-americano) e Marcelo Ferroni - que

selecionaram vinte nomes para figurar na edição nacional. Quanto à aposta e o

mercado literário brasileiro, assim está colocado na introdução da revista:

O Brasil vive um momento especial na literatura. Nas últimas duas décadas, poucos autores foram publicados e reconhecidos fora do país. Os motivos eram diversos: de uma suposta literatura difícil às barreiras da língua. Hoje, encontra-se gradualmente no mapa da literatura mundial; contamos com um programa mais consistente de apoio à produção, editoras e agentes estrangeiros demonstram interesse em encontrar novos talentos

44 A saber, os autores selecionados para a edição brasileira da Revista Granta, em ordem de publicação, foram: Michel Laub (RS); Laura Erber (RJ); J. P. Cuenca (RJ); Luisa Geisler (RS); Ricardo Lisias (SP); Daniel Galera (RS); Antonio Prata (SP); Julián Fuks (SP); Vanessa Barbara (SP); Chico Mattoso (França/SP); Emilio Fraia (SP); Antônio Xerxenesky (RS); Javier Arancibia Contreras (BH); Carol Bensimon (RS); Cristhiano Aguiar (PB); Leandro Sarmatz (RS); Carola Saavedra (Chile/RJ); Miguel Del Castillo (RJ); Vinicius Jatobá (RJ); Tatiana Salem Levy (Lisboa/RJ). 45 A iniciativa da Revista Granta e seus critérios de escolha foram, assim como as outras antologias de proposta semelhante, também alvo de críticas, motivando debates calorosos na blogosfera. Na rede é possível encontrar diversos blogs que discutem o projeto da Granta em português, entre eles vale citar o “Off-Granta”. O espaço foi criado para acomodar os textos de escritores que se sentiram excluídos, tal como exposto na apresentação: “No tempo em que os textos só circulavam em papel, não haveria como avaliar se a escolha foi bem feita. Mas vivemos na era da comunicação digital, da cauda longa, essas coisas todas. Então, este blog está aberto para os 227 rejeitados”. Disponível em: http://offgranta.wordpress.com/category/discussao/. Acesso em: 09 nov. 2012.

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escrevendo em português, e, com a escolha do Brasil como país homenageado na Feira de Frankfurt em 2013, a tendência é que mais escritores sejam reconhecidos internacionalmente. Acreditamos que a Granta pode ser peça importante para revelar esses talentos. Esta edição reúne um conjunto de textos de qualidade, e temos a convicção de que os autores selecionados irão produzir obras fundamentais para a literatura brasileira nas próximas décadas. (GRANTA, 2012, p.9)

O texto com o qual Daniel Galera participa na revista - “Apneia” - faz parte de

um romance recentemente publicado no Brasil46, o Barba ensopada de sangue.

Assim visto, podemos concluir que hoje, quando se fala em literatura

contemporânea, escritores da era digital ou literatura digital, ou ainda em literatura

de computador, e Geração Zero Zero, o nome de Daniel Galera é um dos que mais

se evoca.

4.2 CORDILHEIRA E A COLEÇÃO AMORES EXPRESSOS

Antes da análise do romance de Daniel Galera, convêm algumas informações

sobre o projeto ao qual o livro se vincula, dado que não podemos deixar escapar “o

essencial quando se refere ao mundo social no qual ele é produzido” (BOURDIEU,

2010, p.14). Cordilheira foi o primeiro47 lançamento da coleção Amores Expressos,

projeto criado pela Companhia das Letras que propôs a autores brasileiros da nova

46 Na edição da Feira do livro de Frankfurt, na qual o Brasil foi escolhido para ser o país homenageado de 2013 e a Não Editora como pequena editora destaque, o caso mais “impressionante”, segundo André Miranda, enviado de O Globo para cobrir a Feira, de interesse por um jovem autor nacional aconteceu com o romance Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera. O livro, antes de ser publicado no Brasil, fechou contrato de tradução na feira entre a Companhia das Letras e a editora alemã Suhrkamp. “A literatura brasileira está num bom momento. Há possibilidades de negociação e há uma geração nova aparecendo” - afirma Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, que, além de Galera, destaca o acordo feito com o recente livro de Michel Laub, Diário da queda, em Frankfurt. - “O livro já tem edições garantidas em Holanda, Portugal, França e Espanha. E acabamos de receber aqui uma oferta para a Itália”. Fonte: MOREIRA, André. Editoras estrangeiras buscam talentos da nova geração de escritores. O Globo. São Paulo, 13 de out. 2012. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/10/13/editoras-estrangeiras-buscam-talentos-da-nova-geracao-de-escritores-469969.asp Acesso em: 04 nov. 2012. 47 O primeiro título a ser publicado, como mencionado, foi Cordilheira, de Daniel Galera, (2008); seguiram-se, até o momento as seguintes publicações: O filho da mãe, Bernardo Carvalho (2009); Estive em Lisboa e lembrei de você, Luiz Ruffato, (2010); O único final feliz para uma história de amor é um acidente, João Paulo Cuenca, (2010); Do fundo do poço se vê a lua, Joca Reiners Terron, (2010); O livro de Praga: narrativas de amor e arte, Sérgio Sant’Anna, (2011) e Nunca vai embora, Chico Mattoso, (2011).

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geração que escrevessem histórias de amor, tendo como cenário diversas cidades

do mundo. O projeto fora idealizado pelo produtor cultural Rodrigo Teixeira,

juntamente com o escritor João Paulo Cuenca, e o custo, cerca de R$ 1,2 milhão,

foi, em parte, financiado com recursos provenientes da Lei Rouanet de incentivo à

cultura. Foram dezessete escritores48 selecionados - em meio a polêmicas quanto

aos critérios de seleção, alimentadas principalmente pelo escritor Marcelo Mirisola49

-, para passar um mês nas cidades a que foram destinados, a fim de colher “matéria-

prima” para produzirem seus romances. Daí alguns artigos referirem-se ao projeto

da Companhia das Letras como “narrativas do não pertencimento”, tal como

exemplificado no excerto retirado do artigo apresentado no Congresso Internacional

da ABRALIC (2011), Amores expressos: Narrativas brasileiras em tempos de

globalização50:

Enquanto os projetos literários do período de consolidação da nação apostavam na fixidez, na construção das nacionalidades, nas identidades centradas, nas grandes narrativas do passado e nas utopias de um futuro promissor, a literatura contemporânea, por sua vez, é esta marcada pela mobilidade espacial, pela desconstrução dos conceitos de nacional e universal, pelas identidades múltiplas e cambiantes, por narrativas sem a preocupação ou pretensão de abordar uma totalidade e por uma incômoda desconfiança no passado e pouca confiança no futuro. (LOBO, 2011, p.4)

48 Os autores e as cidades selecionadas foram: Adriana Lisboa (Paris), Daniel Galera (Buenos Aires), André de Leones (São Paulo), Lourenço Mutarelli (Nova York), João Paulo Cuenca (Tóquio), Joca Reiners Terron (Cairo), Cecília Giannetti (Berlim), Sérgio Sant’Anna (Praga), Reinaldo Moraes (Cidade do México), Paulo Scott (Sidney), Antônia Pellegrino (Bombaim), Daniel Pellizzari (Dublim), Bernardo Carvalho (São Petersbugo), Antonio Prata (Xangai), Chico Mattoso (Havana), Amilcar Bettega (Istambul) e Luiz Ruffato (Lisboa). A saber, entre os escritores selecionados, quatro tem algum vínculo com Porto Alegre, cidade a qual nos voltamos: Daniel Galera, Paulo Scott, Daniel Pellizzari e Amilcar Bettega. 49 A Folha publicou, em 18 de março de 2007, carta do escritor Marcelo Mirisola, que ficou fora do projeto, questionando o critério de escolha dos autores e denunciando uma “prática brasileira” de confundir o público com o privado. Outra matéria foi publicada no mesmo jornal com o título “Bonde do barulho”, na semana seguinte, relatando que escritores e blogueiros ao longo da semana tinham inundado a internet com acusações acerca de alguns pontos do projeto, entre eles o de supostamente reunir apenas amigos dos organizadores e o fato de o projeto usar dinheiro público para financiar viagens internacionais, consideradas desnecessárias pelo “bonde”. 50 Disponível em: http://www.abralic.org.br/anais/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0672-1.pdf Acesso em: maio. 2012.

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Parte da proposta de Amores Expressos, além de os livros serem publicados

pela Companhia das Letras em versão impressa e e-book, está a produção de

documentários, filmados in loco, durante a permanência dos escritores nas cidades

destinadas. Os documentários começaram a ser veiculados a partir de 2010 no site51

da editora (também no YouTub) e pretendem os organizadores lançá-los, após

publicadas as obras dos dezessete escritores participantes, em DVD. Fechando o

ciclo de mídias audiovisuais envolvidas, os autores, durante a estada fora do Brasil,

deveriam manter blogs com relatos da experiência em curso, e manifestar-se acerca

da venda dos direitos sobre os textos para possível adaptação cinematográfica. O

livro Cordilheira começa a ser filmado em 2012, sob direção de Carolina Jabor.

Galera foi para Buenos Aires, segundo suas palavras, sem intenção de

trabalhar no livro propriamente e sim com o intuito de fazer anotações sobre a

cidade, anotações “que consumiram todo um Moleskine52”: "Não queria ficar lá

consciente da minha condição de autor que está em Buenos Aires para escrever um

livro, mas me permitir ficar à vontade para que conhecesse a cidade e ela me

influenciasse53". Assistindo ao documentário de Cordilheira, verificamos que muitas

das impressões e sensações do autor sobre a capital argentina, expostas no

depoimento, estão também impressas nas linhas de sua produção literária. Segundo

Galera, Buenos Aires não foi determinante para a história de Cordilheira, mas essas

pequenas experiências e atmosferas fizeram a diferença. A virada se deu com a

viagem de quatro dias à Terra do Fogo, "por conta própria". "Foi o lugar que mais

afetou o desenvolvimento do livro. Foi onde tive o afastamento radical que buscava

da viagem, em termos de cultura, de hábitos e de natureza [em especial a

Cordilheira que dá nome ao romance]". O clímax da viagem acabou se tornando o

51 Os vídeos estão disponíveis em: http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12710

52 Marca de cadernos de notas produzida pela empresa italiana Moleskine SRL, com uma capa dura de cartão envolvida por material impermeável. Outras características que a distinguem são cantos arredondados, uma tira de elástico para mantê-la fechada (ou aberta em determinada página) e uma lombada costurada que permite que ela permaneça plana (a 180 graus) enquanto aberta. A Moleskine voltou à moda após as descrições feitas pelo escritor Bruce Chatwin dos cadernos de notas que usou. (Fonte: Wikipédia)

53 Vídeo gravado para a Editora Companhia das Letras. Disponível em: http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12710 . Acesso em: 05 set. 2011.

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clímax do romance. Vencedor do Prêmio Machado de Assis de Romance 2008 e

terceiro colocado no Prêmio Jabuti 2009, o que de certa forma revela o sucesso do

projeto, o romance lançado pela Companhia das Letras (2008) é dos mais

significativos exemplos dos engendramentos da literatura produzidos pelas

complexas interações que nutrem o sistema cultural.

4.3 VIAGEM AO UNIVERSO DE CORDILHEIRA

O romance Cordilheira, de Daniel Galera, apresenta características bastante

comuns nas produções dos escritores da literatura contemporânea. De acordo com

Beatriz Resende (2008), a geração surgida a partir da segunda metade da década

de 1990 e início do século XXI coloca a literatura em sintonia com os tempos

contemporâneos, tratando de novas subjetividades, da tensão entre o local e o

global, da desterritorialização e do fim da barreira entre a considerada alta cultura e

a cultura de massa. É uma literatura marcada pela multiplicidade de temas,

formatos, linguagens e suportes. As narrativas de Amores Expressos, aqui

representada pelo romance Cordilheira, reafirmam a preocupação obsessiva com o

presente, a manifestação de uma urgência e o retorno do trágico, apontados por

Resende (2008, p.27) como traços característicos da produção dessa geração. A

vida urbana na metrópole quase sempre hostil e desesperançada retrata um

presente imediato, fugaz, líquido e solitário, em que as antigas formas que faziam os

sujeitos criarem raízes em suas pátrias são substituídas por um individualismo

desconcertante de sujeitos perdidos e em constantes crises identitárias: “Essas ruas

não me reprovavam. Era pior. Elas me ignoravam” (GALERA, 2008, p.64). Podemos

observar tais sentimentos no perfil psicológico da protagonista Anita e das

personagens que a cercam, em Cordilheira. Também se repara isso nas ideias,

decisões e comportamentos da personagem que se lança a outras terras em busca

e fuga de si, assim como nas perturbações vividas por seus novos amigos em terras

estrangeiras, que constroem suas vidas numa mistura de ficção e realidade.

Cordilheira é uma metanarrativa. Reflete sobre vida e arte, realidade e ficção

e, concomitantemente, revela ao leitor um pouco das complexas relações existentes

“por detrás dos bastidores” do campo literário. Retrata, num primeiro plano, as

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angústias de uma escritora em meio aos dilemas da vida contemporânea, ao tempo

que tem como pano de fundo a reflexão sobre o mundo das artes e das

engrenagens que movimentam o sistema literário.

A história supõe um deslocamento físico, o que faz parte do projeto literário

da coleção - no caso, o deslocamento é tanto do autor quanto da personagem uma

vez que ambos se deslocam em função das suas aventuras literárias, dentro e fora

da ficção. Além disso, temos o deslocamento de gênero: a protagonista do romance

de Galera pertence ao universo feminino, o que é assim explicado pelo autor: “Tive

vontade de desenvolver uma protagonista mulher, porque as mulheres modernas me

parecem bem mais interessantes e complexas do que os homens”.54 Tal preferência,

um escritor se lançar a representar as complexidades características do gênero

feminino, mesmo que não seja inovador, chamou a atenção do escritor e crítico

literário Carlos André Moreira, do jornal Zero Hora:

O livro tem a qualidade de apresentar uma voz feminina crível, delineada com sensibilidade. Está na figura de Anita a chave do que o romance tem de melhor, uma personalidade complexa, com desejos conflitantes e que refletem à perfeição um dos temas centrais da obra de Galera até agora, a falta de um sentido para uma geração jovem sem interesse em cumprir as expectativas alheias, algo que já se via em Até o Dia em que o Cão Morreu e em Mãos de Cavalo.55

O romance é, em grande parte, narrado em primeira pessoa pela

protagonista, salvo pelos capítulos de abertura ”Como água” e o de fechamento

“Fique para sempre”, que fazem às vezes de moldura da história principal, intitulada

“Mamihlapinatapai”56. No primeiro capítulo, um narrador em terceira pessoa relata

uma cena aparentemente trivial entre a jornalista recém-formada Anita “que pensava

54 Vídeo gravado para a Editora Companhia das Letras. Disponível em: http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12710 . Acesso em: 05 set. 2011. 55 MOREIRA, Carlos André. Cruzando a Cordilheira. In: Jornal Zero Hora. Porto Alegre, 24 de outubro 2008. Disponível em: http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getBlog&uf=1&local=1&template=3948.dwt&section=Blogs&post=116105&blog=31&coldir=1&topo=3951.dwt Acesso em: jun. 2012. 56 uma palavra da Língua Yagan, da Terra do Fogo, listada no Guiness Book como a palavra mais sucinta. Ela descreve "um olhar trocado entre duas pessoas no qual cada uma espera que a outra tome a iniciativa de algo que os dois desejam, mas nenhuma quer começar. (Fonte: Wikpédia)

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apenas no livro que vinha escrevendo” e seu pai que, de saída, atrasado para

encontrar-se com amigos, demora-se a observar a filha. Com os recursos próprios

da onisciência do narrador são revelados ao leitor características da personagem

que protagonizará a história.

Anita fora criada pelo pai que, “amando-a não apenas mais do que qualquer

coisa no mundo, mas amando-a por dois”, observa a filha à soleira da porta do

quarto e sente “uma certa sensação de dever cumprido” (2008, p.10). Enquanto

escova os “longos cabelos negros” Anita percebe a presença do pai, ao que diz:

“Lembra quando você penteava meu cabelo? [...] Quer fazer isso?” (2008, p.10). O

pai, segurando os cabelos, que “eram como água”, questiona-se “se ela lembrava

mesmo”, refletindo sobre o “passado que tinha acabado de acontecer” (2008, p.11).

A referência à água que se percebe no primeiro capítulo, e que acompanha toda a

narrativa, está articulada à primeira epígrafe inscrita nas páginas que antecedem o

capítulo:

I dream some nights of a funny sea, As soft as a newly born baby It cries for me pitifully! And I five for my child with a wildness in me, And am so sweetly there received Joanna Newsom, “Colleen” (GALERA, 2008, p.5).

O fragmento da canção da jovem harpista norte-americana Joanna Newsom

serve de introdução referencial a um dos temas que orienta o romance, a

maternidade ansiada pela personagem como saída para o impasse existencial. Ao

mesmo tempo, é instrutivo de certa atmosfera aquosa que permeia o texto, uma vez

que água é elemento recorrente desde o primeiro capítulo, aparecendo

acentuadamente no último capítulo do romance escrito por Anita - “Descrições da

chuva” (2008, p.40-47) - recitado no evento de lançamento do livro na Argentina, até

a cena em que descalços e molhados sob a chuva no terraço de um edifício paulista,

Anita e Danilo encerram a narrativa de Cordilheira, unindo uma ponta à outra

da narração, margeada pela liquidez. Poderíamos ainda fazer uma relação da

aquosidade que perpassa o romance com o líquido amniótico, água primordial que

possibilita a vida, expresso na descrição de um sonho de Anita (logo após a primeira

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relação sexual com Holden), em que ela, com um filho nos braços, salta de um

penhasco de encontro ao mar revolto, em um dia de chuva forte (2008, p.81). Os

versos de Newsom transcritos na epígrafe encontram aqui sua evidente referência,

visto que a canção fala de um sonho com um mar ao som do choro de um recém-

nascido.

O capítulo principal se passa em Buenos Aires, mas não faz dessa

localização um elemento central de sua narrativa, mesclando lugares como São

Paulo e Santa Catarina. Anita von der Goltz Vianna é uma escritora, formada em

jornalismo, filha de uma professora de história que morreu no parto de Anita, e cuja

“fome de livros fez com que acumulasse uns mil volumes em seus vinte e sete anos

de existência” (2008, p.53). A escolha de Anita em tornar-se escritora parece vir da

paixão da mãe pelos livros, uma vez que o pai os guardara como uma espécie de

monumento em memória à esposa e a estante cheia de livros, “a muralha de textos”,

exercia fascínio sobre a personagem desde a infância. A protagonista encontrou na

leitura e no manuseio dos livros deixados pela mãe uma maneira de conhecer um

pouco da mulher que lhe dera a vida em troca da sua: “muitos estavam sublinhados

à régua e anotados com a caligrafia miúda e precisa de minha mãe [...] eu abria um

livro atrás do outro somente para investigar aquelas inscrições” (2008, p.53). O pai

da protagonista morreu em um acidente de carro ao sair embriagado do último de

seus encontros semanais com os amigos de pôquer. Anita, à época do acidente,

ainda trabalhava na produção de seu livro, o que parece contribuir com o assumido

desprezo que cultiva pela sua própria criação.

Anita começou a escrever seu livro aos 23 anos e o publicou aos 25 anos, por

uma editora de renome. O livro fora bem recebido pela crítica e pelo público, o que

lhe garantiu um lugar na assim chamada "cena literária", mas um lugar que a própria

Anita não quer mais ocupar: “para mim o romance estava enterrado junto com meus

pais. Conheci Danilo, nos apaixonamos, ele me adotou. Tudo que eu estava pedindo

da vida agora era uma família” (2008, p.55). Anita, já com 27 anos, mora em São

Paulo com o namorado Danilo e não mais se vê como escritora e sim como futura

mãe, sonho que se torna obsessivo e conflitante nos tempos em que vive. Podemos

perceber que as ideias expostas nos diálogos travados sobre a vontade de Anita de

gerar um filho descortina o tecido da sociedade pós-moderna e os conflitos de ideias

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daí gerados. Anita vive em meio ao anseio, e certa necessidade, de constituir uma

família nos moldes tradicionais, mas Danilo, o namorado, sequer concebe a ideia de

tornar-se pai, e entre suas amigas “também não encontrava muita compreensão”:

[...] ele julgava inconcebível que eu desejasse ter filhos e ao tratarmos do assunto me encarava como se eu fosse uma mutação genética, uma louca ou uma donzela do passado que tinha acabado de viajar para o futuro e pousado no tapete fofinho do estúdio do apartamento dele. (GALERA, 2008, p.17)

- Filhos. Ah. Na boa, eu só quero ter filhos quando tiver certeza de que minha vida está arrumada. Não quero descontar meus traumas e frustrações nos meus filhos. Antes disso, preciso ficar resolvida, independente. Queria ter filhos com cinquenta, sessenta anos. Acho que vai ser possível até lá, a medicina tá resolvendo tudo. Agora, tu, Anita? Faz favor né guria. - Qual o problema, porra? - Ah, não sei. – E aí ela me olhou de cima a baixo, como se não me conhecesse. – Sei lá, o mundo tá aí, tanta coisa e tu nessa pilha aí. (GALERA, 2008, p.21)

Anita tem por companheiras quatro amigas, “a turma AJAX”: Anita, Julie,

Amanda e Xanda (2008, p.21). Quatro mulheres cuja palavra “independência” julgam

ser o seu principal substantivo. Personagens femininas de aparente estabilidade,

resolvidas quanto ao papel que desempenham na sociedade contemporânea, porém

vítimas de anseios e estranhezas subjetivas que não sabem como administrar.

Julie, a amiga mais antiga de Anita, é filha de família francesa radicada no Brasil

desde a infância. Bailarina profissional, “dava wokshops de dança moderna que

eram disputados a tapa” e, aos olhos de Anita, ela “era uma mulher mais feliz que a

média”. Suas convicções em relação ao sexo eram bastante contundentes: “Julie

não se apegava aos homens, e o sexo para ela era, sobretudo, uma questão de

vaidade. Cada homem comido não passava de uma afirmação de sua beleza e

elegância de movimento [...]” (2008, p.19). Amanda era gaúcha de Torres, mudara-

se para Porto Alegre para estudar história, abandonando a faculdade para estudar

oceanografia em Florianópolis, curso que também abandonou para trabalhar em

uma ONG que promovia a “permacultura” em São Paulo: “um conceito de moradias

e sistemas produtivos autossustentáveis, em integração total com a natureza” (2008,

p.20). Tinha um namorado que vivia em uma ecovila em Ubatuba e, apesar de suas

recorrências a um tema bastante caro à contemporaneidade, “suas convicções

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ecológicas eram meio superficiais, como tudo em sua vida” (2008, p.20). Alexandra

era a mais velha das quatro, tinha 30 anos, uma carreira bem sucedida como

repórter de uma revista semanal e tinha uma vida social bastante agitada com “o

celular tocando sem parar”. Apesar de sua aparente estabilidade e confiança, o que

poderia nos levar ao sinônimo de completude, “dentro dela havia um espaço vazio”

que deixava transparecer, levando Anita a revelar que “tinha medo de tocar em

Alexandra porque parecia que ela ia desfarelar” (2008, p.22).

Assim eram, podemos inferir, por trás das aparentes personalidades bem

estruturadas, as quatro personagens femininas, prestes a “desfarelar”. Pessoas

confusas, perdidas em um turbilhão de ânsias e medos, desamparadas entre

contradições culturais desordenadas que ora pregam a tradição, ora a novidade.

Sujeitos solitários que sofrem as penas do “mal do século”, a depressão. Não sabem

como lidar com “sua dose eventual de vazio e angústia” e a forma com que

administram tais sentimentos, sintomas dos tempos contemporâneos, é dourando a

pílula, ao que parece, literalmente: Julie tenta se matar tomando quinze comprimidos

de Clonotril; Alexandra, aos 28 anos enfrenta uma depressão e “precisou de muita

psicoterapia e Paroxetina para sair do buraco” (2008, p.22) e, um tempo depois,

“pulou da sacada de seu flat no nono andar e morreu na hora” (2008, p.27); Anita, a

protagonista, sofre de transtorno do pânico desde a morte do pai e toma Sertralina

“para combater a ansiedade”, mas sente necessidade de parar de tomar as pílulas e

de livrar a mente, “por mais fodida que estivesse, de todos os filtros e regulagens”

(2008, p.29).

Anita é a personificação de sujeitos deslocados, que veem se desfazer seus

vínculos afetivos com a terra natal e, marcados por um sentimento de não

pertencimento a qualquer espaço, a qualquer esfera de identidade palpável buscam

um lugar mais habitável, no caso, Buenos Aires. A viagem pode ser interpretada

como tentativa de fuga ou negação de uma realidade de frustrações, ainda que se

saiba que o passado, as experiências, a história do indivíduo não está registrada na

geografia, acompanha-os.

Anita, consequência do precipitado sucesso como escritora, recebe convite

para o lançamento da edição argentina de seu romance e, dado o fim do

relacionamento com o namorado (que se nega a fazer parte de seu plano maternal),

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somado ao suicídio da amiga, aceita o convite e parte para Buenos Aires, ainda que

seja uma escritora em crise. Anita se sente desconfortável não só com o romance

que produzira - e o notório sucesso que obtivera - e com o qual não mais se

identifica, como com todas as obrigações que acompanham o êxito: o cortejo, a

fama, as entrevistas, os eventos literários, as exposições e o contato com o público.

Embora o romance tenha lhe proporcionado a oportuna viagem, sua produção,

assim como o reconhecimento enquanto escritora, não é a força que a impulsiona na

aventura.

Em Cordilheira, Galera explora drama comum a muitos escritores: onde

começa a ficção e onde termina a realidade. No romance, um grupo de escritores

subverte a lógica e passa a viver os personagens das suas obras. A singularidade

desse grupo, a partir da qual se desenrola a reflexão sobre realidade/ficção,

autor/personagem, inspiração/experiência está anunciada na segunda epígrafe,

seguida à canção de Joanna Newsom, de abertura do romance:

Imaginar o inexistente é um ato de paixão pela vida, mas viver o imaginado requer um amor duradouro e sobretudo, um compromisso. Júpter Irrisari, Personajes. (GALERA, 2008, p.5).

A epígrafe faz referência ao escritor guatemalteco Jupiter Irrisari que ficou

conhecido por conceber e pôr em prática a ideia de transformar-se nos personagens

que criava. Daí a natureza da ideia do grupo argentino de Cordilheira ao qual Anita

se aproxima, além da aproximação entre a natureza da narrativa de ficção e a dos

jogos de interpretação de personagens conhecidos pela sigla RPG57. Daniel Galera

57 Role-playing game (“jogo de interpretação de personagens”), conhecido como RPG, surgiu em 1974, nos Estados Unidos. O Jogo dá-se através de fichas e objetos de cena e os jogadores interpretam seus personagens. Nos últimos anos outras formas midiáticas proliferaram rapidamente, como a de atividades para computador e videogames. Os jogadores assumem os papéis de personagens e criam narrativas colaborativamente; um deles desempenha o papel de narrador, sendo o responsável pelo desenvolvimento da história, podendo alterar, inclusive o andamento da narrativa durante a representação. Cada personagem deve ser interpretado pelos jogadores, assim como fazem os atores, ou os personagens do grupo de Holden, criados por Galera, inspirados em Irisari. O progresso de um jogo se dá de acordo com um sistema de regras pré-determinado, permitindo aos jogadores improvisar livremente: “são as suas escolhas que determinam a direção que o jogo irá tomar”. Os jogos de RPG são tipicamente mais colaborativos e sociais do que competitivos, já que congregam os seus participantes como em um grupo coeso em função de uma ideia ou objetivo, por isso um RPG raramente tem ganhadores ou perdedores, o que o torna fundamentalmente diferente de qualquer outro tipo de “jogo social”. Informações disponíveis em: <www.rpgonline.com.br/o_que_e_rpg.asp>. Acesso em: set. 2012.

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escreveu para o blog da editora Cosac Naify 58uma breve resenha sobre Irrisari,

resultado de suas pesquisas e leituras, matéria-prima para a construção de sua

narrativa:

Los Títeres e a Acéphale - Daniel Galera Morto na cadeia em 1943, com cerca de trinta e cinco anos, em circunstâncias nunca esclarecidas, o escritor guatemalteco Jupiter Irrisari ficou conhecido em alguns círculos literários da sua época por conceber e pôr em prática a radical agenda estética — exposta no raro volume Personajes, edição artesanal de 1931 — de transformar-se nos personagens que criava. A sociedade que liderou, Los Títeres, incluiu os obscuros compatriotas Manolo Godoy, Lucy Longo Chacón e Denni Mejicanos, todos, supostamente, engajados a partir de algum momento na encarnação real de seus personagens literários. Suspeita-se da existência de uma conexão de Los Títeres com a Acéphale, a revista e sociedade esotérica secreta liderada por Georges Bataille na França entre 1936 e 1939, da qual participaram, entre outros, Roger Caillois, Jean Wahl, Pierre Klossowski e o pintor André Masson. Pelo menos um biógrafo do autor francês acredita que um encontro de Irrisari e Bataille na Espanha foi o estopim do rompimento do segundo com André Breton e os surrealistas. As atividades da Acéphale, mantidas secretas até hoje por juramento, seriam uma extensão da “realidade ficcional” dos Títeres guatemaltecos, porém investida de um caráter esotérico. Em seu artigo A Conjuração Sagrada, publicada na primeira edição da Acéphale, Bataille escreveu: “Secretamente ou não (…) é necessário tornar-se diferente ou então deixar de existir”.

Como suscitado por Raymond Williams, a “formação intelectual” apresenta-se

como matéria relevante para os estudos de abordagens socioculturais, sobretudo

estudos literários, pois a partir das características e singularidades dessas 58 A editora Cosac Naify, a partir da reedição do livro História abreviada da literatura portátil (1985 – 2011), do autor catalão Henrique Vila-Mata, propôs a escritores brasileiros que escrevessem sobre sociedades ou grupos intelectuais que conhecessem. Os relatos estão publicados em três partes no blogue da editora. A primeira traz Antonio Xerxenesky falando sobre uma seita de adoradores de Thomas Bernhard, e Daniel Galera, que explica as relações entre a Acéphale, sociedade fundada por Georges Bataille nos anos 30, e o grupo liderado pelo escritor guatemalteco Jupiter Irrisari: Los Títeres. A formação intelectual estudada e relatada no livro de Vila-Matas, assim está resumida, também no blog da editora: “Criada em 1924 e dissolvida em 1927, a conspiração portátil foi tão fechada e obscura que até hoje é difícil dizer quem participou ou não dela. Com certeza Walter Benjamin, Marcel Duchamp, Francis Picabia e Tristan Tzara. Mas existiram outros. Entre os portáteis, ou shandys, como eram conhecidos (uma homenagem ao Tristram Shandy, de Laurence Sterne), só eram aceitos aqueles que tivessem entre seus ideais: 1) o amor à escrita como diversão; 2) a insolência; 3) um certo espírito inovador; 4) o celibato (seus membros não podiam ser casados); 5) e a autoria de obras que coubessem em uma maleta – deviam estar sempre prontos para o deslocamento, e por isso fazia-se necessária, além da ausência de mulher, marido e filhos, uma obra portátil, que pudesse ser levada por aí”. Disponível em: http://editora.cosacnaify.com.br/blog/?tag=sociedade-secreta-shandy. Acesso em: 21 mar. 2012.

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agremiações muito se desvela sobre a literatura daí produzida, os pontos de vista

dos autores inseridos nessa realidade social e o “caráter das contribuições culturais,

intelectuais e artísticas” (WILLIAMS, 2011b, p.222) dessas formações. O grupo de

escritores argentinos de Cordilheira, por exemplo, muito desvela sobre a história que

se desenrola a partir do envolvimento de Anita com um de seus integrantes, Holden.

Holden, cujas obsessões eram seitas secretas, movimentos literários de dissidentes surrealistas e um escritor guatemalteco do início do século XX chamado Jupiter Irrisari. Holden tinha dois livros desse autor em casa, de acordo com ele os únicos que se podiam encontrar. Mas o essencial em Irrisari, de acordo com Holden, não foram os livros que publicou, e sim o caminho que seguiu a partir de certo ponto de sua carreira: parou de escrever histórias e passou a vivê-las. - Irrisari concebia personagens, traçava alguns elementos básicos de sua história e os incorporava. (GALERA, 2008, p.95).

À medida que se envolve com o homem misterioso e conhece a vida dele - e

de seu sombrio grupo de amigos, sujeitos integrantes de uma confraria de autores-

personagens, Anita percebe que Holden, personagem cujo nome nos remete ao

clássico O apanhador no campo de centeio, de J. D Salinger, pode ser útil em sua

obsessão pela maternidade — assim como ela pode vir a ser útil para ele em um

plano um tanto doentio, ligado à finitude da existência da personagem que lhe

empresta a vida.

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5 CORDILHEIRA E O DESVELAMENTO DAS REGRAS DA ARTE

Raymond Williams preocupou-se em compreender os processos de mudança

social a partir do estudo da arte e da literatura, propondo uma análise cultural

materialista das obras. A parte mais difícil de uma análise cultural da arte, o que se

intenta neste capítulo, ensina Williams, é justamente a que procura apreender o

hegemônico em seu processo transformativo, visto que a hegemonia tem como uma

das principais funções a naturalização de significados, valores e práticas. A partir do

conceito de Gramsci, Williams formula o conceito de “estrutura de sentimento”,

desenvolvido para explicar “como nossas práticas sociais e hábitos mentais se

coordenam com as formas de produção e de organização socioeconômicas que as

estruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do vivido”

(CEVASCO, apud PASSIANI, 2009, p.291). Ao processo transformativo liga-se

outro conceito no trabalho de Williams, “também importante para se ir além da

oposição pessoal/social: a consciência prática” (GLASER, 2008, p.151). A

consciência prática, também aplicada aos grupos culturais que estudou, responde

pelo que é hábito internalizado, a incorporação e naturalização das relações sociais

dentro do que vivemos. Ainda que pareça óbvio, o social é produção humana, logo,

uma ideia fundamental por trás da consciência prática é que toda a produção

individual é social e o conjunto de formas de agir, movidos pela consciência prática,

é nomeado como estrutura de sentimento.

O conceito de consciência prática, e por associação o de estrutura de

sentimento, remete-nos, ainda que existam diferenças significativas59, às

59 Paul Filmer (2009, p. 379) explica que há semelhanças bem claras entre o conceito de consciência prática desenvolvido por Raymond Williams e o conceito de habitus de Pierre Bourdieu, porém, existem também diferenças. Habitus, para Bourdieu, é um conjunto de práticas socialmente adquiridas e impossível de ser operacionalizadas conscientemente. Base do conceito de classe de Bourdieu, por sua internalização inconsciente, o habitus “relaciona todas as práticas que produz até atingir um conjunto unificador de princípios que regula as práticas individuais comuns às condições sociais coletivas”. Consciência prática para Williams, também se trata de conjunto de práticas internalizada inconscientemente (primeiramente na infância) , porém pode ser “regulada tanto pelas condições materiais diretamente, como pelo material mediado através das práticas dos adultos presentes no contexto”, “operando de acordo com relativa coerência”. A diferença, então, está no conceito estrutura de sentimento - conceito que explica a possibilidade de transformação da consciência prática-, que são manifestações emergentes de resistência e oposição às práticas e às ideologias dominantes da ordem social existente. Em contrapartida, o conceito de Bourdieu é uma teoria de reprodução cultural, estruturalmente determinada pela ordem social existente.

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concepções de Pierre Bourdieu apontadas na teoria do campo literário e na

abordagem relacional que o sociólogo propõe aos estudos literários. O campo

literário, lembremos, é regido por disputas internas e, autônomo, possui regras

próprias conformadoras de habitus, disposições internalizadas estruturadas e

estruturantes dos modos de atuar no mundo. Esses conceitos encontram, por sua

vez, relações com a teoria dos polissistemas de Even-Zohar que dá conta de

organizar o conjunto de atividades que, interligadas, funcionam como um todo. As

atividades que estruturam o polissistema literário comportam além do produtor,

produto e consumidor, o mercado e a instituição, ou seja, comporta uma gama de

agentes predispostos a jogar o jogo no campo de que fazem parte, para o qual

colaboram determinados repertórios.

A obra Cordilheira de Daniel Galera é um romance de ficção, mas também

uma narrativa da experiência que obriga a interrogar-se sobre as disposições sociais

que estão na origem das produções culturais. Pode-se perceber que o que foi aqui

explicitado acerca do campo literário em Porto Alegre, a formação cultural dos

jovens escritores analisados, suas estratégias de atuação nas tomadas de posição e

as regras próprias que conferem autonomia a esse campo descortinam-se na

narrativa de Galera. Sendo Daniel Galera o autor eleito por seu destaque e

precursionismo nesses “novos modos” de atuação no sistema literário

contemporâneo, Cordilheira apresenta-se como uma narrativa da “experiência do

vivido”, uma narrativa que, como expôs Williams, tenta dar conta da incorporação de

significados, valores e práticas sociais comuns aos tempos vigentes. Marcel Mauss,

o antropólogo que afirmou a impossibilidade de se conhecer a magia sem o grupo

mágico, ensina que todo o estudo cultural deve partir da morfologia social: “No

estudo de uma sociedade o primeiro ponto consiste em saber do que se fala” (1972,

p.13). Pensamento similar está nas afirmativas de Bourdieu, para quem

“compreender a gênese social do campo literário, da crença que o sustenta, do jogo

de linguagem que aí se joga, dos interesses e das apostas materiais ou simbólicas

que aí se engendram” é olhar as coisas de frente e vê-las como são (2010, p.15).

Tratar a obra de arte a partir do princípio de sua existência em ligação com o que ela

tem de histórico e de “trans-histórico”, segue Bourdieu, é tratar essa obra como

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“signo intencional habitado e regulado por alguma coisa, da qual ela é também

sintoma” (2010, p.16).

A partir do que “fala” Cordilheira, muitas das disposições e incorporações de

significados podem ser ressaltadas, a fim de se compreender sobre o tempo e o

homem contemporâneo. O sujeito contemporâneo - diagnosticado por Zygmunt

Bauman, um dos líderes da chamada sociologia humanística - vive em crise

identitária, tal como vemos nos anseios e dilemas vividos pelas personagens de

Galera, sobretudo nos perfis psicológicos das amigas de Anita. O relacionamento

com o outro e os conflitos de valores e crenças que colocam em oposição tradição e

modernidade vêm-se expressos no conflito de interesses que põe fim ao

relacionamento de Anita - que investe suas crenças na instituição “família”- com o

namorado e, por conseguinte, na superficialidade do envolvimento com Holden.

Porém, interessa-nos especialmente os aspectos que dão conta de descortinar as

implicações sociais do literário.

O romance de Galera constrói a sua trama a partir da representação do

campo literário e social de que a obra faz parte, localizando agentes, suas posições

e estratégias no interior do sistema. São diferentes, mas bem orquestradas práticas

sociais de “cooptação”, como se refere Bourdieu (2010, p.19), tais como recepções,

reuniões, coquetéis, contatos, entrevistas, entre outras. Todo o espetáculo que hoje

a literatura - sobretudo em função de suas estreitas relações com o campo

econômico - passa a incorporar, pilares da indústria da arte, está desvelado no

romance de Galera.

Na obra encontramos referências diversas às “regras da arte” e do

funcionamento do campo literário, revelando algumas facetas do cenário artístico.

Servem-nos de exemplo os salões parisienses do século XIX, descritos por Bourdieu

na análise do romance de Flaubert, Educação sentimental. Tal como acontecia

nesses ambientes, a cena literária contemporânea é uma mistura de glamour,

mercado e, claro, disputas. O romance de Galera é uma metanarrativa que dá conta

da vida de uma escritora e suas participações no sistema literário, uma “recém-

chegada” ao jogo, com seus mecanismos de consagração do artista (BOURDIEU,

2010, p.193). O contato com o púbico, os eventos que a expõem, as relações com a

mídia, os contratos firmados com editoras e o posicionamento do produtor cultural

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em meio a tudo isso está na obra de Galera. Anita é uma escritora jovem que obtém

sucesso já com o seu primeiro romance e é convidada a participar da Feira do Livro

de Buenos Aires, quando será lançada a edição argentina de seu livro. A

semelhança entre as histórias dos autores que estudamos, e do próprio Galera, não

é gratuita. A partir das páginas de Cordilheira é possível fazer um levantamento do

estado da arte contemporânea e suas condições sociais de produção, circulação e

recepção, incluindo a situação do produtor artístico que, além de produzir a obra, é

também produzido como astro principal, exposto às luzes do grande teatro que é a

indústria cultural e suas estratégias de “marketing global” (ORTIZ, 2000, p.169). As

condições materiais de existência da literatura contemporânea começam por

evidenciar sua inserção na mídia - jornal, televisão – assim como a ação editorial e

suas estratégias de atuação no “mercado”:

Tinha recebido no dia anterior um e-mail empolgadíssimo do meu editor argentino dizendo que El País havia publicado uma resenha favorabilíssima, que o livro estava distribuído nas livrarias e em todos os estandes da Feira do Livro de Buenos Aires e que um programa de televisão local viria me entrevistar após o evento de lançamento para falar sobre a nova geração de autores brasileiros. (GALERA, 2008, p.16)

A literatura como mercadoria, os trâmites legais da negociação do produto em

contraposição à inspiração artística, também é evidente na obra:

Primeiro foi o convite para lançar meu livro em Buenos Aires. Lembrava que os direitos haviam sido vendidos uns seis meses antes, mas tinha quase esquecido do assunto e a notícia de que a tradução estava pronta e o livro indo para a gráfica me pegou um pouco de surpresa. O editor argentino, Vicente Imbrogiano, enviou um e-mail perguntando minhas preferências de passagem aérea e informando que o lançamento aconteceria dentro da programação da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, no dia 23 de abril. Haveria alguma espécie de debate seguido de uma sessão de autógrafos. Eu ficaria cinco dias na capital argentina, com tudo pago pela embaixada brasileira. Em breve receberia um adiantamento de direitos autorais no valor de dois mil dólares, uma soma atraente [...]. (GALERA, 2008, p.24)

A literatura transformada em evento e os agentes que fazem parte das

estruturas do sistema literário estão igualmente representados no romance. A

“política de boas relações” a que se veem “obrigados” os produtores, bem como o

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desconforto que a imposição pode causar a alguns escritores são postos em

evidência:

No carro, Martín tentou me explicar no que consistia exatamente o tal coquetel. Estariam presentes alguns outros autores brasileiros que participariam da feira do Livro, o adido cultural, o próprio embaixador, alguns autores e editores argentinos, gente de instituições culturais e quejandos. Eu tinha tanto interesse nisso quanto num encontro de cirurgiões bucomaxilofaciais. Martín notou minha reação e disse que não era necessário ficar muito, apenas o bastante para que me apresentasse a meia dúzia de pessoas diretamente responsáveis pela promoção da cultura brasileira na Argentina. Fiz o possível para reconhecer que essa política de boas relações era importante para a editora em que ele trabalhava (e que tinha me publicado e me pagado direitos e me trazido para cá), mas era difícil. (GALERA, 2008, p.34)

Também percebemos a literatura como espetáculo, evento social

acompanhado de todo o glamour e aparato de legitimação, em estreita vinculação

com o campo do poder:

Dizem que Buenos Aires foi construída com a ambição de ser a Paris dos pampas, e naquele momento entendi o que isso queria dizer. O salão, ocupado nessa ocasião por três ou quatro dezenas de convidados, era um museu de decoração francesa do século XIX [...]. E então fui sendo apresentada por Martín a uma série de pessoas: Bernardo Portela, adido cultural, um sujeito jovem demais para ser careca que fingiu ter lido meu livro mas só leu mesmo o meu decote; Dolores Vaquero, dona de uma rede de livrarias que me disse algo como “temos que trazer seus livros para nossas livrarias” como se esse tipo de coisa dependesse de mim ou sequer me preocupasse; Vicente Imbrogiano, que vinha a ser meu editor argentino, um homem que me surpreendeu por sua juventude e modos nervosos, como se a presença naquele coquetel fosse um desconforto maior para ele do que para mim [...] (GALERA, 2008, p.35-36)

Podemos comparar as passagens descritas por Galera em seu romance com

seu depoimento em uma entrevista concedida à televisão do Rio Grande do Norte,

onde participou de um Festival Literário. Na entrevista Galera argumenta sobre o

espetáculo em que vê transformados a arte literária e o escritor:

Margot Ferreira: dizem que o Brasil é um país de pouquíssimos leitores, mas a gente vê um boom de festivais literários pelo país todo, esse aqui na FLIPIPA é um exemplo disso. O que você acha? É um modismo, o que é? Ou há um movimento realmente de renascimento da literatura?

Daniel Galera: Acho que hoje em dia o que acontece é que a relação do leitor não é mais só com o livro. O leitor quer se relacionar com o autor de

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alguma forma. As pessoas que têm comparecido a esses inúmeros eventos literários que surgiram nos últimos anos, muitos leram os autores, mas muitos não. Eles vão para conhecer o autor, quer dizer, têm um certo nível de espetáculo na coisa também. E que às vezes até acusam um pouco os autores contemporâneos – “Ah, em vez de escrever, gostam de aparecer, gostam de ir a festivais literários”. Enfim, o autor pode até gostar, mas isso não é um processo que parte do autor. Eu acho que é um processo que parte do mercado editorial, e, sobretudo, do leitor que hoje em dia valoriza um pouco esse contato direto com os autores. Então é tudo parte de um contexto mais complexo. E não é que todas as pessoas que vão a esses festivais são leitores, mas eu acho que eles são importantes. Eu acho que os festivais literários aumentam o interesse do leitor pelos livros e tal. E se vende cada vez mais livros, essa é que é a verdade.60

Galera expressa a inevitável condição do autor frente ao espetáculo comercial

a que se vê submetido e as obrigações que acompanham o êxito e a fama. Bourdieu

explica, no capítulo “A produção da crença”, que a “adesão coletiva ao jogo é a um

só tempo causa e efeito da existência do jogo” (2010, p.193). O escritor

contemporâneo, para além de sua atividade criativa, é “fabricado” pelo mercado de

bens simbólicos e seus agentes que “exploram o trabalho do artista” ao fazer

comércio de suas produções. É a partir da exposição e encenação do produtor que o

mercado cultural “assegura ao produto da fabricação artística uma consagração”

(BOURDIEU, 2010, p. 193). O acúmulo de “capital simbólico” é tanto importante para

o produtor quanto para o seu “descobridor”, pois o ciclo de consagração assegura-

lhes uma posição de destaque dentro do campo, que “o introduz em companhias

cada vez mais escolhidas e em lugares cada vez mais raros e requisitados”

(BOURDIEU, 2010, p.193). Como afirma Galera, “tudo é parte de um contexto mais

complexo”, tudo é parte de um sistema cujas atividades contribuem para a

sustentação de suas engrenagens e o colocam em movimento.

Não é novidade escritores desenvolverem narrativas a partir de suas

experiências pessoais, misturando dados da realidade a elementos da ficção.

Poderíamos citar exemplos clássicos de autores que se utilizaram de suas

experiências para a criação, sendo Marcel Proust e sua recherché o exemplo

paradigmático. Porém, a mistura de realidade e ficção é apontada como método

narrativo característico da literatura contemporânea, principalmente a produzida nas

60 Programa Cores & Nomes – RN TV. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=pd3sf8NpMUc. Acesso em: 12 abr. 2012.

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últimas décadas. Além da recorrência de aspectos da vida do autor, facilmente

identificável, visto que o escritor hoje está significativamente mais exposto que em

outros tempos, a experiência desses enquanto produtores literários é temática

costumeira. Segundo Dalcastagnè, na literatura contemporânea “a fronteira entre

diário pessoal e literatura nem sempre está traçada” (2001a, p.17), pois o horizonte

da criação transformou o escritor em personagem.

A transformação da literatura em evento social glamouroso, a exposição

pública do escritor, a aproximação com o leitor - transformado em público -,

propiciada pelos eventos e pela internet e, claro, a corrida pela ascensão alcançada

a partir da conquista de uma posição num campo celebrado como é o literário hoje,

deslocam o foco da invenção ficcional para a persona do autor que expõe seu

processo de produção, revela-se na personificação de protagonistas e inventa-se

nos modos de narrar muitas vezes confessional. O escritor contemporâneo não só

transforma suas vivências em ficção como se transforma em personagem. Daniel

Galera assume que aproveita de suas experiências como matéria prima para

criação.

Contudo, tais preferências narrativas preocupam críticos que questionam a

qualidade dessa literatura produzida na contemporaneidade que é, como expôs

Bourdieu, “signo intencional habitado e regulado por alguma coisa, da qual ela é

também sintoma”. As preocupações e anseios a que estão pré-dispostos o homem

“pós-moderno”, a relação do campo literário com o campo de poder, mas também a

oposição entre realidade e ficção, são temas basilares do romance de Galera.

O autor propõe ainda, com certa ironia, a reflexão sobre a crítica que

considera os novos escritores como escritores menores – “de segunda linha” -,

quando, passada a metade da história, citando o filósofo Emil Cioran, escreve:

- Se você quer conhecer uma nação, familiarize-se com seus escritores de segunda linha: somente eles refletem sua verdadeira natureza. Os outros denunciam ou transfiguram a nulidade de seus compatriotas, e não podem nem irão situar-se à sua mesma altura. São testemunhas suspeitas. - Quem escreveu isso mesmo? – perguntou Silvia. - Cioran – disse Holden trocando um rápido olhar com Vigo, como se pedisse permissão para tomar a palavra. – E digo mais. Se você quer conhecer uma nação, não leia literatura. Nem uma página. Escritores de ficção têm pouco ou nada a dizer sobre seu país. Toda arte é egoísta, mas a literatura é a mais egoísta de todas. Não há como escrever

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honestamente sobre qualquer coisa que não seja nós mesmos. Um escritor pode tentar maquiar esse fato com todas as suas forças, mas nunca escapará dele . Cioran tem razão, os escritores de segunda linha tendem a ser mais autênticos porque têm menos capac idade de maquiar a individualidade do que os move a escrever . [grifo nosso] (GALERA, 2008, p.89)

As passagens transcritas tornam-se mais reveladoras se associadas ao

depoimento do autor que afirma sua autenticidade de “recém-chegado”, validada

pelo fato de que “têm menos capacidade de maquiar a individualidade do que

escreve”:

Eu acabo usando muito experiências minhas . Experiências de pessoas que eu conheci. Histórias que me foram contadas, lugares que eu vi. Tudo isso para mim é matéria prima para criar ficção. Então, em qualquer livro meu, apesar de serem histórias fictícias, se tu começar, quem me conhece muito bem, ou sabe coisas específicas sobre a minha vida, se começar a procurar vai achar paralelos com a minha vida em alguma cois a [...] Nenhum dos meus livros pode ser considerado autobiográfico, mas em todos eles têm pessoas, acontecimentos, lugares que foram parte da minha vida. Eu acho que toda a literatura nasce da experiência subjetiva. Acho que um autor que diz que botar a si mesmo no texto é uma coisa que tira o valor da literatura é uma bobagem. Acho que têm autores que disfarçam muito bem as suas próprias experiências n o que eles escrevem . Eles podem estar escrevendo uma ficção científica, que se passa daqui a três mil anos, com os personagens mais malucos possíveis, mas ele não estaria criando aquela história se ela não esti vesse enraizada em algum tipo de experiência subjetiva qu e ele teve . O leitor de hoje em dia, contemporâneo, ele valoriza demais, dá muita atenção aos paralelos, às semelhanças que podem existir entre o que um autor escreve e a vida dele. Essas semelhanças existem, mas eu acredito que elas não são relevantes para a leitura, para a experiência de ler um livro. Eu acho que hoje em dia, por questões culturais, questões gerais até, coisa de mídia, o espetáculo geral das coisas , parece que já se lê todos os livros de autores contemporâneos querendo adivinhar, enquanto tá lendo, o que é real, o que ele fez o que ele não fez, o que eu acho uma perda de tempo, não acho uma maneira ideal de se saborear a literatura de ficção.61 [grifo nosso]

61 Programa Lib Lab - Parole Sull’Acqua . Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=-zXEKWOC0fc&feature=BFa&list=PLB4C64BF0BA3A0CEF&lf=plpp_video. Acesso em: agos. 2012.

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A discussão é levantada também nas reflexões de Anita que, em

pensamento, discorre sobre a produção de seu livro e a construção das

personagens, buscando as raízes de suas inspirações:

Lembro de quando comecei a escrever o romance. Queria expressar coisas que não sabia bem o que eram, queria imaginar uma vida em que houvesse uma mãe. Magnólia, minha personagem, tem mãe, mas não tem pai. Era o contrário de mim, pelo menos quando comecei a escre ver. No fundo, toda essa história de uma menina que gosta de nadar – como eu nadava, admito, na minha adolescência, manifestações de uma paixão pela água que se estendia a mares, rios, cachoeiras, chuva, chuveiros, banheiras – e que se apaixona pelo professor do cursinho – muito vagamente inspirado num professor de cursinho que tive, com o qual fiquei numa festa, um cara que usava bigode e, tá, paremos por aqui – e acaba fodendo com a vida de ambos era pretexto para imaginar livremente aquela mãe, dar-lhe uma forma definitiva, que ficaria no papel. Perguntava às minhas amigas sobre a relação delas com suas mães e lia coisas sobre mães e analisava personagens maternos em outros livros para construir aquela ausência na minha vida [...] A mãe foi descrita com base nas fotos da minha mãe e agia um pouco conforme as histórias sobre minha mãe que eram contadas pelo meu pai . Será que isso passa na cabeça de algum leitor ? [grifo nosso]. (GALERA, 2008, p.48)

Certamente pela avaliação da crítica passa o tema da tradição. Raymond

Williams, ao discorrer sobre a arte, mais especificamente sobre a literatura, examina

o desenvolvimento histórico e social do termo. Inicia seu percurso pelas conexões

da literatura com a alfabetização - com ênfase no aprendizado culto e nos livros

impressos. Em seguida, passa à escrita criativa como prática cultural, chegando ao

conceito de crítica – “de uma ênfase no uso ou consumo (ostensivo) de obras, mais

do que na sua produção” (1979, p.54) -, indissociável do de tradição. Williams, em

tom crítico, escreve:

Assim a categoria que havia parecido objetiva como “todos os livros impressos”, e que havia recebido uma base de classe social como “conhecimento culto”, e como “gosto” e “sensibilidade”, passou a ser uma área necessariamente seletiva e autodefinidora: nem toda “ficção” era “imaginativa”; nem toda “literatura” era “Literatura”. A “crítica” adquiriu uma importância nova e primordial, já que passou a ser a única maneira de validar essa categoria especializada e seletiva. Era ao mesmo tempo uma discriminação das grandes obras, ou das obras maiores, com uma consequente classificação de obras “menores” e de uma exclusão prática das obras “más” ou “desprezíveis” e uma realização e comunicação prática dos valores “maiores”. (WILLIAMS, 1979, p.56).

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Williams afirma que em qualquer sociedade e em qualquer período “há um

sistema central de práticas, significados e valores que podemos chamar

especificamente de dominante e eficaz” (2011b, p.53). Em outras palavras, Williams

compreende que a cultura se converte num espaço de dominação no qual se

reafirma a hegemonia de uma determinada classe dominante. A dominação de

classe, porém, depende da legitimação de sua própria dominação, alcançada

através da universalização dos significados e valores de uma classe em relação ao

conjunto da sociedade. Logo, ao universalizar seus valores e sentimentos, práticas e

significados, uma classe instaura a sua hegemonia. Mas para assegurar sua posição

de classe dominante, faz-se necessária a reprodução dessa hegemonia que,

segundo Williams, encontra na produção cultural, particularmente na literatura, o

veículo principal. A partir dessa lógica, conclui-se que a classe dominante instaura o

que chamamos de tradição, o que leva o autor britânico, e a seus leitores, a

questionar não só o conceito de tradição, como também a hierarquização dos

padrões estéticos impostos e defendidos pela crítica.

Contudo, o processo de formação da “tradição” não é, necessariamente, uma

imposição, a palavra-chave é seleção, visto que há, sempre, disputa entre o que fará

parte ou não de uma tradição literária na qual “certos significados e práticas são

escolhidos e enfatizados”, enquanto outros são negligenciados e excluídos

(WILLIAMS, 2011b, p.54). Tal processo de seleção culminou e definiu os valores

literários que conhecemos e que ditam o que deve ser considerado “literatura” ou

não, baseado no gosto instaurado pela classe dominante. Cevasco aponta que, para

Williams, “o que a classe dominante faz é controlar a tradição, instalando o que

chamou de ‘tradição seletiva’” (CEVASCO apud PASSIANI, 2009, p.291). O papel do

crítico é zelar pela tradição. Daí a crítica literária, e de quebra os estudos literários,

pôr em equiparação o novo com o clássico, atentando às “qualidades estéticas” das

obras, desconsiderando todo um conjunto de fatores importantes, possíveis somente

quando na compreensão da literatura como prática cultural, numa concepção

ampliada do conceito de cultura, conforme propõe Williams.

Em Cordilheira, a relação do escritor com a crítica literária, cujos critérios de

análise e “validação” reproduzem preceitos instituídos pela tradição, está assim

representada:

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[...] Havia quatro acentos: um para Vicente, um para mim, um para Lúcia Merello – autora e critica argentina, estudiosa de literatura contemporânea brasileira – e outra para Nicanos Benegas, editor de uma revista paraguaia de literatura latino-americana. (GALERA, 2008, p.39) E não quero nem falar sobre a linguagem. Nada disso impedia, é claro, que outras pessoas encontrassem significados e ideias maravilhosas ali, a ponto de concederem prêmios ao livro e publicarem análises como a que Lúcia Merello tinha começado a ler [...].

- ... ou seja, com descrições da chuva Anita von der Goltz Vianna não apenas se inscreve na tradição de uma literatura feminina que evoca tanto Clarice Lispector quanto Lygia Fagundes Telles, mas usa-a como trampolim para alcançar novas alturas [...]. Era um monte de besteira. Clarice Lispector. Haja paciência. (GALERA, 2008, p.48-49)

Porém, a literatura está intrinsicamente vinculada ao mercado, elemento

importante do sistema que a comporta. Ingenuidade seria crer que os produtores –

lembremos que são também sujeitos predispostos à incorporação de habitus – não

se importam com a recepção e validação de suas obras por parte da crítica. Daniel

Galera, escritor evocado com frequência para ilustrar a situação midiática da

literatura, coleciona em seu site notas (positivas) veiculadas na mídia sobre suas

produções, e Cordilheira, podemos considerar, foi legitimada pela crítica:62

A ausência de platitude tanto emocional quanto no cenário instaura um nervoso eletrocardiograma a disseminar uma cordilheira. Ela espalha sua figura assombrosa por todas as páginas, nos planos material e metafórico. A exuberância técnica de Galera nas descrições potencializa o texto. [...] Trata-se de um jogo (doloroso) de identidades e de uma angustiada busca de vínculos. Cordilheira prova que o livro anterior não foi apenas sorte de um escritor jovem. (Paulo Bentancur, Revista Época)

Pontuado por digressões engenhosas, e movido por constantes revisões de perspectiva que mantêm os julgamentos sempre em suspenso, o realismo detalhista de Galera empresta verossimilhança e dramaticidade à história, dando vigor às reflexões que servem de eixo para o enredo. Buenos Aires aparece mais nos bares e cafés do que nas avenidas monumentais, e as descrições desses espaços, ao mesmo tempo concisas e atentas a pequenas particularidades, atestam não apenas o talento evocativo de Galera, mas também sua capacidade de observação. (...) Ainda que seja um livro sobre a relação entre escritores e suas obras, “Cordilheira” explora de maneira mais ampla a idéia da vida cotidiana como uma narrativa, indicando ao mesmo tempo limites para a auto-invenção e o caráter às vezes irrisório da distinção entre o real e a ficção. (Miguel Conde, O Globo)

A comunidade de escritores fanáticos imaginada por Daniel Galera faz sentido mesmo para o leitor que desconheça essas piscadinhas de olhos

62 As críticas, como mencionado, estão disponível no site de Daniel Galera, ranchocarne.org. As datas das publicações não estão indicadas no site do autor.

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eruditas. Trata-se, ainda uma vez, de meditar sobre os limites tênues entre a arte e o real. No caso, entre o que se escreve e a experiência vivida. Galera oferece uma torção adicional a essa problemática do escritor: como viver de acordo com aquilo que escrevemos e inventamos? (Luiz Zanin, O Estado de SP)

Para finalizar, retomemos a questão de formação cultural, importante nessa

dissertação e na narrativa de Galera. Anita, a personagem de Cordilheira, poderia,

por exemplo, fazer parte da formação cultural da Geração Zero Zero, dado os

aspectos em comum que apresenta com os autores analisados. Raymond Williams

ensinou da importância de se estudar literatura a partir de formações culturais e em

Cordilheira muito se depreende da análise da escritora Anita e suas características

de escritora. Anita é uma jovem, natural de Porto Alegre, que teve sua primeira obra

publicada antes dos trinta anos. Possui formação acadêmica, é formada em

jornalismo, e sua preferência por um curso de comunicação, ou pela linguagem, tem

relações com a mãe, professora que mantinha uma extensa biblioteca em casa. As

semelhanças que unem os escritores que analisamos, incluindo Daniel Galera, e

também sua personagem Anita, vão desde os modos de atuação às semelhantes

estratégias narrativas. Anita atua, embora afirme desconfortável com sua obra e com

a posição de escritora, dinamicamente no sistema cultural de que faz parte e “colhe

os louros da fama”.

Galera, atuante enérgico no sistema literário, em Cordilheira retoma algumas

singularidades do campo de que faz parte e expõe certas características dos jovens

escritores, próprias da Geração a qual pertence. O romance apresenta as

características narrativas recorrentes na produção da Geração Zero Zero, pois, além

de metaliterário, estratégia apontada por alguns críticos como recorrente na

literatura desses escritores, é um exercício intertextual, visto que não são poucas as

referências que encontramos no livro, algumas já exploradas como o filosofo Emil

Cioram, o escritor Júpter Irissari e J.D Salinger. Outro aspecto interessante de se

observar no texto são as referências temporais que pertencem a uma determinada

época, uma específica geração, como nos exemplos:

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Liguei a televisão em busca de qualquer coisa divertida para escutar [...] me deparei com um bispo pregando para um grande auditório. Era um bispo brasileiro da Igreja Universal ou qualquer assemelhada [...]. (GALERA, 2010, p.33) Sequei o cabelo e optei por um visual meio metaleira, com botinha, meu vestido de seda preta e o colar com o símbolo da banda Nailbomb63 que eu tinha mandado fazer sob encomenda na adolescência e usava até hoje (GALERA, 2010p.33) - Motörhead tocará no Luna Park daqui a alguns dias. Fiz um “lml” com a mão esquerda e sacudi um pouco a cabeça, deixando os cabelos caírem sobre a cara. (GALERA, 2010 p.35) Acordei quase uma hora da tarde e almocei no Burguer King (GALERA, 2010, p.38). Numa dessas passagens pelo “locutório” fui conferir meus e-mails e encontrei Danilo no MSN. (GALERA, 2010, p.58) - Cadê a vitrola? - Vitrola? - Onde tá tocando esse disco de blues? - É no meu Macbook64. – Apontou para um pufezinho verde sobre o qual descansava o computador portátil conectado a enormes caixas acústicas de algum sistema de som primitivo, mais uma combinação inusitada. (GALERA, 2010, p.77)

Está claro que o romance Cordilheira reflete sobre a vida, a ficção e a

realidade e que concomitantemente revela ao leitor um pouco das complexas

relações e dos “jogos”, para usar expressão de Bourdieu, a que os agentes que

participam do campo literário se veem implicados. As reflexões sobre o mundo das

artes e das engrenagens que movimentam o sistema literário estão desveladas no

romance de Galera que, como afirma, não busca inspiração para escrever em outro

lugar senão na própria vida. Galera intensifica a experiência do literário no momento

em que se encontra englobado e “incluído como um ponto” (BOURDIEU, 2010, p.15)

nas relações que torna inteligível ao leitor. 63 Nailbomb foi um breve projeto paralelo entre o então vocalista e guitarrista Max Cavalera do Sepultura, e o guitarrista e vocalista Alex Newport do Fudge Tunnel.Juntamente com a dupla, o baterista Igor Cavalera e o guitarrista Andreas Kisser (ambos também do Sepultura), fizeram parte do Nailbomb em seu primeiro álbum de estúdio, Point Blank, lançado pela Roadrunner Records em 8 de março de 1994.

64 O MacBook foi um computador Macintosh da Apple Inc. O primeiro MacBook foi lançado em 2006 e utilizava o processador Intel Core Duo. As mais recentes atualizações da linha MacBook ocorreram em 2008 e 2010.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tempo contemporâneo apresentasse como uma incógnita, impondo-nos

suas inconstâncias, incutindo-nos inseguranças e obrigando-nos a repensar os

modos pré-estabelecidos de se compreender, apreender e atuar no mundo. Essas

que são então mudanças culturais globais ganham diferentes formas de expressão e

estendem seus desafios a todas as áreas de conhecimento, sobretudo a área dos

estudos humanísticos, e particularmente o campos dos estudos literários.

As produções artísticas e a dinâmica cultural contemporânea exigem uma

revisão de alguns de seus pilares conceituais. Computadores, editores de textos,

internet, festas literárias, bienais, programas de TV, encontros com o autor, prêmio

literários, blogs, twitter e facebook, somados a uma visível proliferação de

produtores literários e de pequenas editoras que surgem, conferem à literatura

contemporânea características singulares, tornando indissociável que o estudo da

literatura incorpore em seu escopo análises relacionais, que considerem sua

interação com as dinâmicas sociais e culturais.

Os sistemas de significações, em todo o seu conjunto – entendidos então

como “culturas” - contribuem para assegurar que toda a ação social é cultural, uma

vez que todas as práticas entendidas como sociais expressam um significado e,

nesse sentido, “são práticas de significação”. Estudar a literatura como prática de

significação, empreendendo uma abordagem cultural em suas análises, é investigar

a forma como a cultura está inserida em cada recanto da vida social contemporânea,

“mediando tudo”. Considerar a literatura como atividade humana inserida num

sistema de relações abre novos horizontes de pesquisa, conferindo objetividade ao

entendimento do papel estratégico que jogam os fatores de produção, circulação e

recepção do literário nas disputas por centralidade numa sociedade altamente

complexa e multifacetada. À luz dessa concepção é que situamos nossa proposta de

estudos, que objetivou compreender o sistema de relações da literatura

contemporânea produzida no espaço sociocultural de Porto Alegre e suas

implicações culturais, apoiando-nos nas contribuições teóricas de Raymond

Williams, Itamar Even-Zohar e Pierre Bourdieu.

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A interação da literatura com as práticas culturais, e com o próprio conceito de

cultura, entendida aqui nas formulações de Williams como “todo um modo de vida”,

fornece novos parâmetros de compreensão dos fenômenos literários. Como

esclarece Itamar Even-Zohar, a obra literária resulta da atuação de um produtor,

inserido em certo contexto social, vinculado a um discurso de poder moldado a um

certo repertório aceitável e legitimado e não confinado a um só papel na rede

literária, atuando, muitas vezes, em outras atividades. Também Pierre Bourdieu

entende que a literatura é um fenômeno dinâmico, observando as disputas e

tomadas de posição dentro do campo literário. Segundo Bourdieu, longe de assumir

uma estrutura equilibrada e harmoniosa, o “sistema literário” é lugar de tensões

entre obras canonizadas ou não canonizadas, em outras palavras, entre os autores

aceitos ou não aceitos dentro do campo (2010, p.229). Para o sociólogo, lembremos,

as estratégias dos agentes e das instituições comprometidas nas lutas literárias

dependem da posição que esses agentes ocupam no campo, ou seja, dependem da

“estrutura da distribuição de capital específico, do reconhecimento, que

institucionalizado ou não, lhes é concedido por seus pares-concorrentes e pelo

grande público [...]” (BOURDIEU, 2010, p.235).

De fato, a arte literária sempre acompanhou as evoluções tecnológicas,

reinventando-se, adaptando-se e sobrevivendo, desde a invenção da escrita.

Observa-se que teimosamente a literatura, e o livro impresso, suporte a que

permanece ainda fortemente ligada, resistem e sobrevivem às previsões

pessimistas. Com a popularização da internet e as incessantes inovações, muito se

tem questionado sobre a sobrevivência do livro e da própria literatura, tendo em

vista, a propagação dos e-books e a transposição do suporte impresso para o digital,

comum e possível a qualquer um que tenha um computador, scanner e paciência. A

partir daí, questões bastante caras à literatura, como a autoria e a democratização

do acesso, modificaram muito seus usos e significados. A ameaça à literatura – “a

internet seria o último prego no caixão da literatura” – encontra argumento nas

formas sucintas de se comunicar, e escrever, da geração da era da informação. Os

jovens - como podemos observar nas redes sociais, blogs, sites, MSN, torpedos, etc.

- praticamente inventaram uma nova linguagem. Porém, como vimos aqui, a geração

de jovens escritores é aplicada e bem decidida. Como afirmou Nelson de Oliveira,

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organizador desde os anos 90 de coletâneas que buscam mapear a abundante

produção literária do nosso tempo, a internet interfere pouco na produção artística

desses escritores. Nas palavras do organizador, “a web ainda não conseguiu sequer

modificar profundamente a estrutura literária off-line”. A literatura contemporânea

que estudamos segue fiel a preceitos clássicos, e isso se comprova, também, nas

referências várias a autores canônicos. As principais convenções literárias, na

concepção de Williams, comportam uma tensão permanente – de um lado

observamos elementos de continuidade e de outros “novos significados e valores,

novas práticas, novos sentidos e experiências estão sendo continuamente criados”

(WILLIAMS, 2011b, p.57). Assim, nada mais natural que observemos, em meio ao

novo, resíduos da tradição. Logo, o acentuado apuro estilístico e as claras

influências de autores clássicos que se repara nos textos dessa nova geração de

escritores, conferem a essa literatura um estilo híbrido que reúne tecnologia,

inovação e tradição.

A literatura produzida por escritores emergentes que atuam de forma

dinâmica no sistema literário é dotada ainda de outros mecanismos de sustentação.

Em primeiro lugar, notamos a existência de um boom literário, constatado a partir da

proliferação de jovens escritores que surgem enérgicos e prontos a movimentar o

sistema literário. Com essa dinâmica de atuação, constatamos que algumas

estruturas veem-se alteradas, tais como o papel de produtor cultural que o escritor

passa a assumir, ampliando a circulação de suas obras entre o público leitor, seja no

âmbito de escolas, feiras de livros ou eventos artísticos, culturais e sociais; o

fortalecimento do mercado editorial a partir de profusão de publicações e de editoras

independentes; a formação de grupos culturais que se inter-relacionam promovendo

novos valores e significados para a arte literária; entre outros fatores merecedores, e

carentes, de atenção. Tudo isso, certamente, em conexão com utilização da

literatura como ferramenta ativa nos modos de organização social, visto que o

produtor literário não mais se restringe à produção artística, produzindo-se também

enquanto artista inserido em um meio social no qual passa a agir e interferir

profundamente.

Na capital do Rio Grande do Sul, observamos a incidência do boom literário

apontado por alguns críticos. Escritores jovens souberam fazer uso das tecnologias

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da informação e deram novo fôlego à literatura, movimentando e rearticulando as

relações e disputas que ocorrem no interior do campo literário. Essas “relações

objetivas" foram desveladas por Bourdieu que concebe a obra literária não apenas

como produto final, ou depósito de valores do espírito, entendo-a, antes, como

produções resultantes de ações humanas concretas inseridas em um sistema

sociocultural, hoje mais dinâmico do que outrora. Como indica Mauss, “é impossível

compreender a magia sem o grupo mágico” (apud BOURDIEU, 2010, p.195). Assim,

estudar a literatura contemporânea também requer certa visão de grupo. Desse

modo, conforme estudos de Raymond Williams, que analisou alguns grupos

culturais, demonstrando a relevância dessas formações - nem sempre declaradas ou

manifestas - para a compreensão não só das produções artísticas, mas do estado

das coisas em determinadas épocas ou sociedades, organizamos um “quadro de

escritores pesquisados”, formado a partir do catálogo de publicação de duas

pequenas editoras de Porto Alegre – a Livros do Mal e a Não Editora - responsáveis

pela inserção no mercado de muitos desses escritores emergentes.

Esse quadro permitiu-nos constatar que a literatura contemporânea, mais

especificamente a produzida em Porto Alegre, é composta por um conjunto de

escritores jovens que, além de pertencerem à mesma geração, compartilham de

condições sociais semelhantes, se inter-relacionam e atuam no sistema literário de

forma semelhantemente dinâmica. A editora Livros do Mal foi a editora pioneira,

lançada em 2001, pelo escritor Daniel Galera, em companhia de amigos e inspirou,

por ssim dizer, a Não Editora. Daniel Galera é, então, pelo empreendedorismo e o

visível sucesso que alcançou junto ao público leitor, às editoras e, claro, à mídia o

representante por primazia dessa geração. A sua obra Cordilheira mostra-se

exemplar para refletir sobre as regras da arte que buscamos, desde o início, tornar

visíveis.

Podemos afirmar, diante de tantas incertezas, como diz Beatriz Resende,

que estudar a literatura do presente assusta, pois se teme alguma avaliação

equivocada, algum entusiasmo fugaz, o que leva os pesquisadores “à prudência de

deixar passar algum tempo antes de se ocupar do novo” (2008, p.15). Porém, ao

mesmo tempo, o presente exige o esforço de interpretá-lo no calor mesmo da sua

emergência. Daí que quaisquer conclusões a que cheguemos serão sempre

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instáveis e provisórias, sujeitas às mudanças daquilo mesmo que buscamos

compreender.

Podemos afirmar que a literatura brasileira, a partir recorte analisado, tem se

renovado e se reinventado de forma expressiva nesta última década: novos talentos,

inovadoras iniciativas, irreverentes editoras, variadas festividades de cortejo ao livro,

múltiplos incentivos à leitura e à escrita, reinventadas formas de atuação cultural.

Todo esse entusiasmo representa, além de ruptura com as formas canônicas de

produção e circulação cultural, uma movimentação que instaura novas práticas e

formação de diferentes públicos, deslocando os canais tradicionais de legitimação

da literatura, antes nas mãos basicamente da academia. São irreverentes e

diversificados processos culturais emergentes nas sociedades contemporâneas que,

ainda que em constante construção, são merecedores de atenção e reflexão. Ao

mesmo tempo, o campo literário que se modela aparece-nos como uma incógnita:

difícil definir papéis e funções, estratégias de entrada, atuação e permanência no

sistema literário, suas lógicas de relações e trocas, suas regras internas, suas

interferências nos modos de significação e organização sociais. Também podemos

firmar a importância dessas movimentações culturais, entendidas enquanto

ferramentas ativas na construção e organização das práticas sociais.

Ao chegarmos ao fim deste trabalho – o que não significa encerrá-lo – tornou-

se evidente aquilo que à partida nos movia, justamente a indagação sobre um modo

de participação da literatura no sistema cultural não restrito à obra isolada, fruto da

imaginação do escritor, mas como produto resultante de mútuas interferências entre

fatores sociais, culturais e literários. Para melhor compreendermos a situação,

sempre instável e provisória, da literatura contemporânea, é necessário que não a

isolemos dos processos e fatores dos quais ela emerge, sendo-lhes, portanto,

internos, e não externos. A análise que empreendemos do caso específico de Daniel

Galera e seu romance Cordilheira parece deixar suficientemente claro que a

existência da literatura é dependente de uma certa posição no sistema, forjada pela

atuação de agentes e instituições, ligações inevitáveis com o mercado e a mídia, e

com processos planejados de produção, circulação e recepção. O que finalmente o

caso Daniel Galera evidencia é que a literatura produzida no século XXI apresenta

muitas singularidades e uma das mais visíveis, certamente, é a forte atuação cultural

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dos escritores contemporâneos, que se movimentam bastante à vontade no

mercado objetivo das letras, ao mesmo tempo que almejam um lugar no panteão

sagrado das musas.

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REFERÊNCIAS

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APÊNDICE A – Catálogo e autores pesquisados

ALESSANDRO GARCIA (Não Editora)

Porto-alegrense, nascido em 1979, Alessandro Garcia é escritor e publicitário. É

autor da antologia A sordidez das pequenas coisas (Não Editora, 2010), finalista

do Prêmio Jabuti 2011 e segunda colocada no Prêmio Fundação Biblioteca

Nacional. Participou também de algumas coletâneas, tais como Cenas de Oficina

(Unidade Editorial, 2000), Ficção de Polpa Vol. 1 (Fósforo, 2007; Não Editora,2008)

e Ficção de Polpa Vol. 3 (Não Editora, 2009). Publicou em revistas literárias como

Ficçōes e Cult e atualmente escreve para o Digestivo Cultural, Cronópios, Scream &

Yell, Portal Literal e é colunista do Paralelos, no Globo On Line.

ANTÔNIO XERXENESKY (Não Editora)

Porto-Alegrense, nascido em 1984, Xerxenesky é formado em letras e mestre em

Literatura Comparada pela UFRGS. Como escritor, sua primeira publicação foi o

livro de contos Entre (Fumproarte/Movimento, 2006). Seu segundo livro é o romance

Areia nos dentes (Não Editora, 2008/ Rocco, 2010), publicado primeiramente pela

‘Não’, editora que ajudou a fundar em 2007, em parceria com os escritores Rodrigo

Rosp, Samir Machado de Machado, entre outros. Seu livro mais recente é a

coletânea de contos A página assombrada por fantasmas (Rocco, 2011).

Participou de algumas coletâneas de contos, entre elas do Ficção de polpa, vol.1

(Fósforo, 2007, cujo conto “O desvio” foi adaptado para a TV por Fernando Mantelli,

na série “Curtas Gaúchos” (2007). Colabora com resenhas e críticas para diversos

jornais e revistas e atua como editor na Não Editora, onde organiza a revista online

de crítica literária Cadernos de Não-Ficção. Recentemente, julho de 2012,

Xerxenesky foi selecionado para figurar na revista britânica Granta. O texto

publicado faz parte do seu próximo romance, em andamento, F. para Welles.

CRISTIANO BALDI (Livros do Mal)

Nascido em Caxias do Sul, no ano de 1976, formado em Publicidade e Propaganda

e ex-aluno da oficina literário do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil. Sua atuação

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enquanto escritor restringe-se ao livro Ou Clavículas (Livros do Mal, 2002),

publicado pela extinta Livros do Mal. Suas histórias não foram muito apreciadas pela

crítica que chegou a sugerir que seus textos não eram dignos de publicação. Seu

nome não é muito presente no cenário literário gaúcho e poucas informações sobre

sua trajetória enquanto escritor está disponível na web.

CAROL BENSIMON (Não Editora)

Nasceu em 1982, na cidade de Porto Alegre. Formada em Letras, foi aluna da

oficina literária do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil e é mestre em Escrita Criativa

pela PUC-RS. Participou de algumas antologias, tais como Histórias Femininas

(Scipione, 2011) e Ficção de Polpa Vol. 4 (Não Editora, 2011) e seu primeiro livro de

ficção, Pó de parede (Não Editora, 2008), foi finalista do Prêmio Açoriano e

vencedor do 1° Gauchão de Literatura (2010). Em 200 9, Bensimon publicou o

romance Sinuca embaixo d’água (Companhia da Letras, 2009), finalista dos

prêmios São Paulo, Jabuti e Bravo!. A jovem escritora trabalha ainda como tradutora

de quadrinhos e em julho de 2012 foi selecionada para figurar na revista britânica

Granta, sob o título de os vinte melhores jovens escritores brasileiros. O texto

publicado na revista, Faíscas, faz parte do seu novo romance, ainda em construção.

DANIEL GALERA (Livros do Mal)

Nascido em 1979, em São Paulo, mas passou a maior parte da vida em Porto

Alegre. Formado em Letras e ex-aluno da oficina literária de Luiz Antonio de Assis

Brasil, participou de diversas coletâneas, entre elas: Geração Zero Zero: Fricções

em Rede (Língua Geral, 2011); Sex'n'bossa. Antologia di narrativa erótica brasiliana

(Itália: Mondadori, 2005); Contos de Bolso (Casa Verde, 2005); Os Cem Menores

Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004); Literatura Século XXI - vol. 2

(Blocos, 1999). Em 2001, criou o extinto selo editorial Livros do Mal, pelo qual

publicou o volume de contos Dentes guardados (Livros do Mal, 2001) que teve

algumas narrativas adaptadas para o teatro e curtas-metragens. Sua segunda

publicação é a novela Até o dia em que o cão morreu (Livros do Mal, 2003 /

Companhia da Letras, 2007), adaptada para o cinema, por Beto Brant e Renato

Ciasca, sob o título de Cão sem dono (2007). Mãos de cavalo (Companhia das

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Letras, 2006), publicado também na Itália, França, Portugal e Argentina, é sua

terceira produção. Cordilheira (Companhia das Letras, 2008), seu romance mais

recente, é parte de um projeto proposto pela Companhia das Letras, chamado

Amores Expressos. Com o romance, Galera auferiu o Prêmio Machado de Assis

(2008) e foi o terceiro colocado no Prêmio Jabuti (2009). Em conjunto com o

desenhista Rafael Coutinho, publicou também a graphic novel Cachalote

(Companhia das Letras, 2010). Além de escritor, Galera atua como tradutor de

língua inglesa e recentemente, julho de 2012, foi selecionado para figurar na revista

Granta , na qual participa com o texto “Apneia”, que faz parte de um romance em

andamento.

DANIEL PELLIZZARI (Livros do Mal)

O escritor Daniel Pellizzari nasceu em Manaus, em 1974 e reside em Porto Alegre

desde 1984. Mojo, como também é conhecido, iniciou alguns cursos de graduação -

jornalismo, história, letras e psicologia -, mas, como afirma, “não teve paciência para

terminar nenhum”, dedicando-se integralmente aos livros. Em 1996 estudou criação

literária com Luiz Antonio de Assis Brasil, foi colunista do CardosoOnline e um dos

fundadores da extinta Livros do Mal, editora pela qual publicou seu primeiro livro

Ovelhas que Voam de Perde no Céu (Livros do Mal, 2001). A coletânea teve

contos adaptados para o teatro e foi traduzido para o italiano com o título adaptado

Percore che volano si perdono nel cielo (Arcana Librie, 2004). A segunda produção

de Pellizzari é a antologia de contos O Livro das cousas que acontecem (Livros do

Mal, 2002). Seu primeiro romance é Dedo Negro com Unha (DBA, 2005). Daniel

Pellizzari, além de escritor atua como tradutor. Publicou contos em coletâneas, entre

elas: Lusofonica: La nuova narrativa in lingua portoghese (La Nuova Frontiera, Itália,

2006). Contos do Novo Milênio (IEL, 2006); Sex'n'Bossa – Mondadori (Itália, 2005);

Contos de Bolso (Casa Verde, 2005); Wunderblogs.com – (Barracuda, 2004); Os

Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Ateliê Editorial, 2004). Geração 90: Os

transgressores (Boitempo, 2003); Jovem escritor 90 (Nova Dimensão, 1990).

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DIEGO GRANDO (Não Editora)

Nascido em Porto Alegre no ano de 1981, Grando é ex-aluno da oficina literária do

escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, licenciado em Letras na UFRGS, mestre em

Escrita Criativa pela PUCRS e doutor em poesia na Université Sorbonne Nouvelle.

Poeta, gênero pouco preterido pelos escritores da “nova geração”, estreou no

cenário literário com o Desencantado carrossel (Não Editora, 2008), finalista do

Prêmio Açorianos. Seu segundo livro, também de poesias, é o Sétima do Singular

(Não Editora, 2012).

EVERTON BEHENCK (Não Editora)

Nascido em Porto Alegre, em 1979, Behenck é redator, poeta e músico. Como

escritor teve poemas publicados na extinta revista Entre Livros, no Jornal Vaia e na

Feira do Livro, quando foi selecionado pelo projeto Habitasul Revelação Literária na

Feira. Os dentes da delicadeza é seu livro de estreia (Não Editora, 2010). Atua

como vocalista e letrista da banda Casamadre e suas poesias e músicas estão

disponíveis no blog apesardoceu.wordpres.

LEANDRO SARMATZ (Granta)

Natural de Porto Alegre (1973), Sarmatz é mestre em Teoria Literária e foi

colaborador do jornal Zero Hora até 2001, quando se mudou para São Paulo.

Trabalhou como editor das revistas SuperInteressante e Vida Simples (ambas da

Editora Abril). Escreveu em 2000 a peça Mães e sogras (IEL-RS, 2000), encenada

em 2010, sob deireção de Marcelo Adams. Publicou a coletânea de poesias

Logocausto (Editora da Casa, 2009) e a antologia de contos Uma fome (Record,

2010). Recentemente foi selecionado para figurar na revista Granta (Alfaguara,

2012) com o conto Você tem dado notícias? Atualmente trabalha como editor na

Companhia das Letras.

LUISA GEISLER (Outras)

Nasceu em Canoas, no ano de 1991. Sua estreia foi com a coletânea Contos de

mentira (Record, 2011), escolhido pelo Prêmio SESC de Literatura 2010/2011, na

categoria conto. No ano seguinte, sua novela Quiçá (Record, 2012) recebeu o

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mesmo prêmio. Atualmente, Geisler estuda Ciências Sociais e Relações

Internacionais e trabalha como colunista da página final da revista Capricho. Em

julho de 2012, foi selecionada para figurar na revista Granta , na qual participa com o

texto “O que você está fazendo aqui”.

MARCELO BENVENUTTI (Livros do Mal)

Escritor porto-alegrense (1970), Benvenutti fez parte do corpo editorial da extinta

cooperativa de escritores Edições K. Estreou no cenário literário com o livro de

contos Vidas Cegas (Livros do Mal, 2002). O seu segundo livro, também de contos,

é O Livro Laranja , lançado pelo selo editorial independente @editora Cafeína Não é

Proibida (2003), seguidos de O Ovo Escocês (Edições K, 2003), Manual do

Fantasma Amador (edições K, 2005) e Arquivo Morto (Kafka Edições, 2009).

Participou da coletânea organiza por Nelson de Oliveira, Geração Zero Zero:

fricções em rede (Língua Geral, 2011) e facebookiano ativo, publicou alguns textos

na página social.

MICHEL LAUB (Outras)

Escritor e jornalista, Michel Laub nasceu em Porto Alegre, no ano de 1973. Ex-aluno

da oficina literária do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, é hoje um nome

representativo da literatura nacional. Autor de cinco romances, todos publicados pela

Companhia das Letras, Música anterior (Companhia das Letras, 2001) foi sua

primeira publicação. O seu segundo livro é Longe da água (Companhia das Letras,

2004), publicado também na Argentina (EDUCC). Com a publicação de O Segundo

tempo (Companhia das Letras, 2006), seu terceiro romance, foi finalista do prêmio

Jabuti de 2006. Seu quarto romance é O gato diz adeus (Companhia das Letras,

2009), seguido de sua mais recente publicação, Diário da queda (Companhia das

Letras, 2011), que teve os direitos vendidos para o cinema, recebeu os prêmios

Brasília e Bravo/Bradesco e sairá na Alemanha (Klett-Cotta), Espanha (Mondadori),

França (Buchet/Chastel) e Inglaterra (Vintage). O autor foi laureado, ainda, com os

prêmios Erico Veríssimo/Revelação e União Brasileira dos Escritores, e foi finalista

dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom. Michel Laub foi selecionado recentemente

para figurar na revista britânica Granta (Objetiva, 2012), sob o título de os vinte

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melhores jovens escritores brasileiros, na qual participa com o texto “Animais”.

Também foi convidado a figurar na 1ª edição da Revista 2384 - uma revista

espanhola dedicada à tradução de textos literários para o espanhol e o catalão.

Atualmente reside em São Paulo onde atua como professor de criação literária, além

de colaborar com diversas editoras e veículos de informação (Companhia das

Letras, Cosac Naify, Trip, Revista 18, IMS, Bravo, Contigo, Folha de São Paulo).

PAULO SCOTT (Livros do Mal)

Poeta, contista e romancista, nasceu em Porto Alegre, no ano de 1966, e hoje mora

no Rio de Janeiro. Scott foi aluno da oficina literária do escritor Assis Brasil, é

formado em Direito pela PUC e mestre em Direito Público pela UFRGS. Seu livro de

estreia, Histórias curtas para domesticar as paixões dos anj os e atenuar os

sofrimentos dos monstros (Sulina, 2001), foi publicado sob o pseudônimo de

Elrodris. O livro de contos Ainda Orangotangos (Livros do Mal, 2003 / Bertrand,

2007) foi um dos três finalistas do Prêmio Açorianos de Literatura (2004) e teve seis

contos adaptado para o cinema pelo diretor Gustavo Spolidoro (2008). Seu primeiro

romance, Voláteis (Objetiva, 2005), foi parte do projeto “Coleção Fora dos Eixos”, e

vencedor dos prêmios Autor Revelação (2005) / Prêmio Jornal O Sul / Câmara Rio-

Grandense do Livro. No ano seguinte publicou os livros de poesia A timidez do

monstro (Objetiva, 2006) e Senhor escuridão (Besttrans, 2006) e escreveu a peça

Crucial dois um, contemplada com o Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz

(2006). Participou de algumas coletâneas, entre elas: Geração Zero Zero: fricções

em rede (Língua Geral, 2011); Poesia do dia: poetas de hoje para leitores de agora

(Ática, 2008); Contos do novo milênio (IEL, 2005); Contos de bolso (Casa Verde,

2005); e Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Editora Ateliê, 2004). Em

2010, foi agraciado com a Bolsa Petrobrás de Criação Literária para a conclusão de

seu último livro, o romance Habitante irreal (Alfaguara, 2011). Atualmente encontra-

se em progresso seu romance que faz parte do projeto “Amores Expressos”,

realizado pela RT Features e pela Companhia das Letras, que o levou a Sydney, na

Austrália, em 2008.

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RAFAEL BÁN JACOBSEN (Não Editora)

Nascido no ano de 1981, em Porto Alegre, Bán Jacobsen é físico, professor,

pianista, escritor e poeta. Aos 17 anos lançou seu primeiro livro, Tempos &

Costumes (Alcance, 1998) pelo qual recebeu o Prêmio Açorianos. Sua segunda

publicação, o romance Solenar (Movimento, 2005), também foi agraciado com o

Prêmio Açorianos (2006). Sua publicação mais recente é o romance Uma Leve

Simetria (Não Editora, 2009). Bán Jacobsen participou de inúmeras coletâneas,

entre elas Ficção de Polpa Vol. 1 e Vol. 2 (Não Editora, 2008) e tem grande

quantidade de artigos publicados em jornais e revistas. Trabalha, ainda, com

pesquisa em cosmologia e em física nuclear e de partículas na UFRGS.

REGINALDO PUJOL FILHO (Não Editora)

Nasceu em 30 de março de 1980, em Porto Alegre. É redator publicitário e um dos

primeiros autores da Não Editora, pela qual publicou seu livro de estreia Azar do

Personagem (Não Editora, 2007). Também pela Não Editora, organizou a antologia

Desacordo Ortográfico (Não Editora / 2009 - Livro do Dia / 2010), e publicou seu

segundo livro, Quero ser Reginaldo Pujol Filho (Não Editora, 2010). Esse último -

que recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura (2011) pela capa de Samir Machado

de Machado. Tem contos publicados em antologias, revistas, jornais, sites e no

YouTube (o conto animado Querido U). Escreve com alguma regularidade no blog

Por causa dos elefantes, e atualmente vive em Lisboa, onde cursa a Pós-graduação

em Artes da Escrita da Universidade Nova de Lisboa.

RODRIGO ROSP (Não Editora)

Nascido no Rio de Janeiro em 1975, em 1980 naturalizou-se gaúcho. Foi aluno da

oficina de criação literária do escritor Charles Kiefer, é formado em Publicidade e

Propaganda e pós-graduado em Estudos Linguísticos. Trabalhou por algum tempo

com mídia no cinema para a rede GNC, foi um dos fundadores da Não Editora e da

Dublinense, editoras nas quais trabalha como editor, redator e revisor. Sua primeira

produção é a coletânea de contos A Virgem que Não Conhecia Picasso (Não

Editora, 2007), seguida de Fora do lugar (Não Editora) e da coletânea 24 letras por

segundo (Não Editora, 2011), na qual participa como organizador e escritor.

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Rodrigo Rosp teve contos selecionados e publicados na internet e participou das

coletâneas Ficção de Polpa vol. 1 e vol. 2 (Não Editora, 2008).

SAMIR MACHADO DE MACHADO (Não Editora)

Nascido em Porto Alegre, em 1981 é publicitário, designer gráfico e um dos

criadores da Não Editora onde, além de criar as capas dos livros - pelas quais

recebeu alguns prêmios -, trabalha como editor. Participou da oficina literária do

escritor Luis Antonio de Assis Brasil e seu interesse por literatura fantástica, de

horror e de ficção científica encontra expressão na organização da coleção Ficção

de Polpa (Não Editora), atualmente em seu quarto volume. Seu conto “Os

expressionistas”, publicado na coleção, foi adaptado para curta-metragem por

Frederico Cabral (2008). A novela O professor de botânica (Não Editora, 2008) é

seu livro de estreia.

VERONICA STIGGER (Outras)

Nascida em Porto Alegre no ano de 1973, Stigger é, além de escritora, jornalista,

professora e doutora em Teoria e Crítica da Arte, pela USP. Sua estreia na ficção

foi com a coletânea de contos O trágico e outras comédias (Portugal: Angelus

Novus, 2003 / 7letras, 2007); Também livros de contos é autora de Gran Cabaret

Demenzial (Cosac Naify, 2007) e Os anões (Cosac Naify, 2010). Aventurou-se na

literatura infantil com a publicação de Dora e o sol (2010). Participou de algumas

antologias, entre elas merecem destaque: 90.00 cuentos brasileños

contemporáneos, publicada no Peru (Ediciones Copé, 2009) e Geração Zero Zero:

fricções em rede (Língua Geral, 2011). Alguns de seus contos foram traduzidos para

o catalão, o espanhol, o francês e o italiano. Em 2007 foi selecionada para o festival

de Bogotá 39, que reuniu os 39 escritores com menos de 39 anos mais promissores

da América Latina. Em 2010 montou sua própria exposição "Pré-Histórias, 2", com

cartazes afixados nos tapumes da obra do SESC 24 de Maio da cidade de São

Paulo.