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________________________________________________________________________________________ Curso de Formação para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras (CEAO/UFBA) Módulo I – História da África 1 Unidade 3 – Tráfico e escravidão Escravidão: apurando o olhar Um dos argumentos mais comuns entre os defensores da escravização de africanos nas Américas era a de que a escravidão era uma instituição disseminada e considerada moralmente aceitável, mesmo no continente africano. De fato, a exploração do trabalho de indivíduos ou grupos sob ameaça de punição parece, infelizmente, ser um dos traços característicos mais comuns da história humana, onde quer que seja, até onde o conhecimento histórico nos permite recuar. O trabalho compulsório, entretanto, assumiu ao longo do tempo e em diferentes lugares formas muito variadas – a escravidão, tal como a entendemos hoje, foi apenas uma dessas formas. Entender as diversas formas de trabalho compulsório existentes na África e a história de suas transformações pode nos ajudar a desmontar algumas afirmações enganosas que, ainda hoje, são expressas, no Brasil, especialmente no âmbito dos debates sobre políticas afirmativas de recorte racial. A importância de formas de trabalho compulsório em qualquer sociedade humana está relacionada ao aumento da concentração do Pra começo de conversa... O que vamos fazer nesta unidade? estudar os vários tráficos escravistas, sua demografia e suas histórias: através do Mar Vermelho, do Índico, do Saara e do Atlântico; investigar a montagem de um sistema escravista atlântico e seu impacto no continente africano. Ao fim desta unidade, você poderá: reconhecer as diferenças entre as diversas formas históricas do trabalho compulsório, especialmente a caracterização de “escravidão mercantil” e “escravidão doméstica”; identificar os efeitos da implantação de um sistema global de escravidão mercantil sobre as sociedades africanas, incluindo a emergência de sociedades escravistas no continente. Trabalho compulsório Trabalho compulsório Trabalho compulsório Trabalho compulsório - termo genérico para designar formas de exploração de mão- de-obra relacionadas à prestação obrigatória de serviços, praticadas por diversas sociedades, em diferentes momentos e de diferentes maneiras. Entre essas formas, encontram-se a servidão e a escravidão. ---------------------------- Para saber mais, consulte o Glossário. Glossário. Glossário. Glossário.

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Curso de Formação para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras (CEAO/UFBA) Módulo I – História da África

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Unidade 3 – Tráfico e escravidão

Escravidão: apurando o olhar

Um dos argumentos mais comuns entre os defensores da escravização de africanos nas Américas era a de que a escravidão era uma instituição disseminada e considerada moralmente aceitável, mesmo no continente africano. De fato, a exploração do trabalho de indivíduos ou grupos sob ameaça de punição parece, infelizmente, ser um dos traços característicos mais comuns da história humana, onde quer que seja, até onde o conhecimento histórico nos permite recuar. O trabalho compulsório, entretanto, assumiu ao longo do tempo e em diferentes lugares formas muito variadas – a escravidão, tal como a entendemos hoje, foi apenas uma dessas formas.

Entender as diversas formas de trabalho compulsório

existentes na África e a história de suas transformações pode nos ajudar a desmontar algumas afirmações enganosas que,

ainda hoje, são expressas, no Brasil, especialmente no âmbito dos debates sobre políticas afirmativas de recorte racial.

A importância de formas de trabalho compulsório em qualquer sociedade humana está relacionada ao aumento da concentração do

Pra começo de conversa...

O que vamos fazer nesta unidade? • estudar os vários tráficos escravistas, sua demografia e suas histórias: através do Mar

Vermelho, do Índico, do Saara e do Atlântico;

• investigar a montagem de um sistema escravista atlântico e seu impacto no continente africano.

Ao fim desta unidade, você poderá: • reconhecer as diferenças entre as diversas formas históricas do trabalho compulsório,

especialmente a caracterização de “escravidão mercantil” e “escravidão doméstica”;

• identificar os efeitos da implantação de um sistema global de escravidão mercantil sobre as sociedades africanas, incluindo a emergência de sociedades escravistas no continente.

Trabalho compulsórioTrabalho compulsórioTrabalho compulsórioTrabalho compulsório - termo genérico para designar formas de exploração de mão-de-obra relacionadas à prestação obrigatória de serviços, praticadas por diversas sociedades, em diferentes momentos e de diferentes maneiras. Entre essas formas, encontram-se a servidão e a escravidão. ---------------------------- Para saber mais, consulte o Glossário.Glossário.Glossário.Glossário.

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poder político. Na África pré-colonial, ao contrário dos estereótipos que ainda hoje circulam amplamente, e que discutimos na Unidade 1, havia uma enorme multiplicidade de formas de organização da autoridade política, mais ou menos centralizadas, que iam desde Estados extremamente hierarquizados e burocráticos – cujos princípios organizativos podiam incluir a noção de realeza sagrada – a sociedades organizadas em grupos de parentesco, como as linhagens [ver grupo de parentesco e linhagem] – algumas das quais agrupavam-se sob uma liderança comum [ver chefia], enquanto outras dispunham de instituições extremamente sofisticadas para evitar a concentração do poder político. É preciso cuidado, entretanto, para não atribuir a estas últimas o conceito de comunismo primitivo, criado pelos evolucionistas do século XIX para designar sociedades hipotéticas em que não haveria nenhum tipo de diferenciação social [ver evolucionismo].

No contexto politicamente múltiplo da África pré-colonial, a forma de trabalho compulsório mais corriqueira era a chamada escravidão

doméstica, que envolvia, em geral, pessoas entregues como compensação por dívidas não pagas, condenadas por determinados crimes ou ofensas, ou capturadas em conflitos militares – os cativos

de guerra.

Para muitos estudiosos, é preciso fazer uma distinção entre o termo “cativo”, que indica um estatuto transitório de privação de liberdade, e o termo “escravo”, que indica a redução de uma pessoa ao estatuto de mercadoria. Cativos, em geral, podiam ser resgatados, através de uma compensação financeira ou simbólica, por seu grupo de parentesco de origem, ou incorporados, junto com sua descendência, à sociedade ou linhagem captora, em uma posição de dependência que podia, ou não, ser revertida ou amenizada ao longo das gerações. Cativos não podiam ser vendidos, e seu número era quase sempre pequeno. Além disso, o tipo de exploração de seu trabalho não diferia muito da situação vivida pelos demais membros do grupo de parentesco, enquadrados em um sistema único de dependência e de status dominado pelos homens mais velhos.

A escravidão que vigorou nas Américas entre os séculos XVI e XVIII é, ao contrário, caracterizada pelos estudiosos como escravidão

mercantil, pelo fato de que, nesse contexto, o escravo tornava-se uma mercadoria destinada a produzir outras mercadorias, no contexto da unificação global das redes comerciais regionais operada a partir do século XV pela expansão europeia. Nesse caso é possível falar em um “sistema escravista”, porque, ao contrário do que ocorria

Realeza sagradaRealeza sagradaRealeza sagradaRealeza sagrada –tipo de estrutura

política na qual os reis são revestidos de

um caráter divino, chegando, em alguns

casos, a ser considerados como

encarnações de deuses.

Comunismo primitivoComunismo primitivoComunismo primitivoComunismo primitivo– tipo hipotético de

organização social na qual não haveria classes sociais, a

instituição da família, propriedade privada

ou Estado.

Escravidão domésticaEscravidão domésticaEscravidão domésticaEscravidão doméstica– forma de

escravidão na qual os cativos são

absorvidos em uma posição subalterna a

um grupo de parentesco e passam a ser empregados na

produção de alimentos e utensílios a serem consumidos pelo próprio grupo.

Cativos de guerraCativos de guerraCativos de guerraCativos de guerra –Indivíduo feito

prisioneiro, capturado ou derrotado numa

guerra.

Escravidão mercantilEscravidão mercantilEscravidão mercantilEscravidão mercantil -Sistema econômico no qual a produção da riqueza de uma

sociedade, geralmente inserida

em um amplo circuito de trocas comerciais,

baseia-se fundamentalmente no

trabalho escravo.----------------------------Para saber mais,

consulte o Glossário.Glossário.Glossário.Glossário.

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sob a escravidão doméstica, na escravidão mercantil a base de toda a produção econômica estava assentada sobre o trabalho escravo.

Em muitos lugares do continente africano, à medida que a centralização política e a diferenciação social avançavam, as formas de trabalho compulsório iam-se transformando. A escravidão foi-se disseminando e ampliando progressivamente sua importância econômica e política, passando de situações onde a norma era a escravidão doméstica para outra em que o número de pessoas escravizadas crescia constantemente e em que elas passavam a ser cada vez mais importantes na produção de alimentos, em geral para sustentar uma classe de guerreiros ou de funcionários palacianos.

Entretanto, esse não parece ter sido um desenvolvimento autônomo: até onde chegam nossos conhecimentos, a progressiva disseminação de novas formas de trabalho compulsório no continente africano foi induzida a partir do exterior, estando profundamente ligada à demanda por escravos no mundo islâmico, e, posteriormente, do lado de cá do Atlântico.

O mundo islâmico e a escravidão africana

Ao contrário do que acreditavam os pensadores europeus dos séculos XVIII e XIX, a África nunca esteve isolada do resto do mundo. Dentro do continente, formaram-se progressivamente, e desde muito cedo, extensas redes de comércio de longa distância, pelas quais circulavam

Um mercado de escravos no Cairo (David_Roberts,_1845-1849)

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produtos oriundos de diferentes meios naturais ou de regiões especializadas na fabricação de certas manufaturas. Em muitos lugares, a crescente centralização política esteve ligada ao controle de rotas comerciais e de mercados, ou de fontes de minerais especialmente importantes, como o cobre ou o ouro. Essas redes de trocas intra-continentais ligavam-se, eventualmente, com as terminações de outras redes que ligavam o continente ao exterior: intensas trocas econômicas, culturais e mesmo populacionais ocorriam através do Índico, do Mar Vermelho e do Mediterrâneo desde épocas muito recuadas.

Há registros de um pequeno fluxo de escravos em direção ao Mediterrâneo da Antiguidade clássica, através do vale do Nilo, desde o primeiro milênio a.C.. Entretanto, foi só a partir do surgimento do Islã, e da conquista do norte da África pelo Califado, no século VII, que se estabeleceu um comércio regular de escravos através do Saara, por rotas que ligavam a grande curva do Níger, o entorno do Chade e o Cordofã (que compreendiam, do ponto de vista dos árabes, o Bilad-as-Sudan, ou “país dos negros”) aos portos do Marrocos, Cabília (atual Argélia), Tunísia, Tripolitânia (atual Líbia) e Egito.

A rápida conquista islâmica do norte do continente vinculou de forma intensa a fronteira sul do grande deserto do Saara ao enorme mercado que, tendo por núcleo a Arábia, o Egito e o Crescente Fértil, se estendia da Espanha ao Sind, e se enlaçava com o Império Bizantino, os reinos francos e os estados italianos, a Índia hinduísta e budista, o sudeste da Ásia, a China e os litorais africanos do Índico – onde um complexo econômico e cultural, conhecido como swahili, incluindo uma língua específica, formou-se a partir de influências locais, árabes, persas, indianas. Nesse imenso espaço de trocas, circulavam a seda e as porcelanas chinesas, os brocados da Pérsia, o estanho espanhol, os algodões da Índia, o incenso do Iêmen, o trigo do Egito, os cavalos da Arábia e as pimentas, o azeite de oliva, as tâmaras, os tapetes, o cobre, o anil, o vidro, o coral, os perfumes, as louças, as plumas de avestruz, a prata, o ouro, o marfim e, cada vez com mais importância, os escravos.

Um dos principais impactos da rápida expansão do islamismo

foi a consolidação de um quadro ideológico e legal para a escravidão ao longo de uma vasta área geográfica.

Em primeiro lugar, os vencidos em jihad eram destinados à escravidão, que, em teoria, funcionava como um processo de

Rio NiloRio NiloRio NiloRio Nilo –––– maior rio africano em extensão,

com aproximadamente

6.630 km decomprimento e uma bacia hidrográfica de cerca de 3,2 milhões

de km² (asegunda maior do

continente).

CalifadoCalifadoCalifadoCalifado - período em que o califa, o

“comandante dos crentes”, exerceu o

poder políticosobre um império islâmico unificado.

Rio NígerRio NígerRio NígerRio Níger ---- Terceiro rio mais longo do

continente africano e o principal da África

Ocidental.

Lago ChadeLago ChadeLago ChadeLago Chade - grande lago localizado na África Ocidental, muito importante

economicamente por fornecer água para os

quatro países localizados ao seu

redor: Chade, Camarões, Níger e

Nigéria. O rio Chari é sua maior fonte,

fornecendo cerca de 90% de sua água.

JihadJihadJihadJihad - Um dos preceitos

estabelecidos na religião islâmica,

segundo a qual os muçulmanos devem lutar para buscar e

conseguir a fé.----------------------------Para saber mais,

consulte o Glossário.Glossário.Glossário.Glossário.

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Principais rotas do tráfico de escravos na Idade Média

islamização, ao fim do qual poderia advir a emancipação do escravo (na prática, a esmagadora maioria dos escravizados terminava seus dias em sujeição). Um efeito dessa disposição foi o de revestir qualquer guerra ou expedição militar do estatuto de jihad, o que significava uma forma conveniente e legítima de escravização, do ponto de vista do islamismo. Além disso, o tributo cobrado pelo Califado a países submetidos passou a ser feito, cada vez mais, em escravos, o que impulsionou a constituição de um sistema intrincado, envolvendo elites comerciais e militares especializadas na escravização, que marcou de forma profunda o desenvolvimento político, social e cultural do Sael e da savana setentrional africana.

Significativamente mais longo que o tráfico transatlântico, estendendo-se entre meados do século VII e o início do século XX, o comércio transaariano atingiu um número total estimado em cerca de 9 milhões de pessoas, das quais 3 milhões e meio teriam sido traficadas entre os anos de 900 e 1400, destinados em sua quase totalidade ao mundo muçulmano, especialmente o Egito e o Iraque, ainda que uma pequena parcela fosse desembarcada no sul da Europa. Através do Mar Vermelho e do Índico, estima-se que um total de 8 milhões de pessoas tenham sido traficadas no mesmo período, destinadas igualmente ao Iraque, mas também à Pérsia e à Índia.

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O emprego dos escravos africanos no mundo islâmico era múltiplo, e variava enormemente em função das particularidades e circunstâncias dos locais de destino. Entretanto, três grandes eixos parecem ter sido constantes: o uso doméstico (que congregava a maior parte das mulheres escravizadas, incluindo criadas, cantoras, musicistas, concubinas ou amas-de-leite, mas também incluía homens, especialmente como criados e eunucos), o serviço das armas [ver escravidão ancilar e escravidão conspícua] e o trabalho agrícola ou, em menor escala, artesanal.

Chamados pelos árabes de zanj ou zenj, os africanos da costa oriental foram empregados em grande quantidade no sul do Iraque, desde o século VII, em trabalhos agrícolas pesados, especialmente a limpeza de pântanos e áreas degradadas, a fim de convertê-las em terras aráveis. Protagonizaram uma série de grandes revoltas escravas, a primeira das quais em 689. Em 749, seriam necessários quatro mil soldados para conter uma nova rebelião.

A grande guerra feita pelos zanj ocorreria a partir de 869, estendendo-se por quase 15 anos. Uma das principais exigências era a emancipação a que eles, como convertidos, tinham direito segundo a lei islâmica. Entretanto, mais que um levantamento de escravos, ou uma tentativa de pôr fim ao sistema escravista, a revolta foi um esforço para pôr no governo um descendente do profeta Maomé, e ocupar a administração do Califado. O levante atraiu escravos de outras origens, assim como camponeses livres pobres. Depois de acumularem importantes vitórias, tomando as maiores cidades, inclusive Basra, o maior porto fluvial iraquiano, ligado diretamente ao comércio do Golfo Pérsico, e estabelecer um Estado independente que se tornou a mais grave ameaça à dinastia dos abássidas, terminaram a guerra mortos ou re-escravizados, entre 883 e 885.

Na Índia, por sua vez, os escravos de origem africana eram divididos em habashi (“abissínios”, palavra de origem árabe para designar alternadamente os etíopes e os povos vizinhos a eles) e siddi (oriundos das regiões mais ao sul, ao longo da África Oriental). Concentraram-se no Ceilão (atual Sri Lanka) e no norte do subcontinente indiano, no Decã e no Gujarate, regiões progressivamente islamizadas a partir do século X.

Os habashi, em geral muçulmanos desde antes de sua captura, ou convertidos durante o cativeiro, eram dedicados a tarefas específicas. As mulheres abissínias eram especialmente procuradas como

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De onde vieram os africanos escravizados?

concubinas e para o serviço doméstico, por sua suposta docilidade e submissão. Os homens eram destinados principalmente aos exércitos, e alguns obtiveram grande destaque no mundo da política, chegando a constituir-se como generais e mesmo reis. Os siddi, que não correspondiam aos critérios de beleza local e tinham fama de rebeldes, faziam os trabalhos mais duros do serviço doméstico, a arriscada colheita de pérolas, a lida agrícola e o pastoreio, além do trabalho nos portos. Os que tinham sorte podiam ser engajados na tripulação de navios mercantes.

Embora, inicialmente, os africanos representassem apenas uma pequena parcela da população escrava no mundo muçulmano (que recebia também importantes fluxos da Ásia Central e da Europa Oriental), lentamente a África foi-se consolidando como a principal região fornecedora de escravos, e o caráter racial da escravidão foi sendo progressivamente afirmado. É possível que a “revolta dos zanj” tenha contribuído de maneira decisiva para a constituição dos preconceitos raciais que passaram a marcar cada vez de forma mais definitiva a escravidão africana no mundo islâmico. De toda forma, esses preconceitos circularam amplamente na bacia do Mediterrâneo, mesclando-se a ideias medievais europeias sobre a diferença racial, especialmente a narrativa bíblica dos filhos de Noé. Quando os europeus passaram de consumidores marginais de escravos a importantes operadores do tráfico, a associação entre “escravo” e “negro” já estava consolidada.

O advento do tráfico atlântico

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Excetuando-se o Império Bizantino, a Europa medieval era uma região periférica, pobre e desorganizada politicamente, que servia como zona de captura de escravos e de saque para os exércitos islâmicos. Apenas a partir do século X, com a fragmentação política do Califado, as unidades políticas europeias começariam lentamente a se fortalecer, em grande medida através da incorporação de diversas inovações técnicas, econômicas e culturais trazidas de diversas partes do mundo pelos muçulmanos.

A partir do século XIV, Portugal passou a se interessar pelo comércio africano, especialmente por duas mercadorias – ouro e escravos – que chegavam ao Mediterrâneo, através de rotas

transaarianas, pelas mãos de intermediários muçulmanos.

O ouro era necessário para cunhar as moedas aceitas pelos comerciantes hindus, islâmicos ou chineses em troca de especiarias e artigos de luxo, como seda e perfumes. Os escravos eram utilizados no sul da Europa para a produção de alimentos, vinho e azeite de oliva desde os tempos dos romanos, e os momentos, breves ou longos, de dominação islâmica deram prosseguimento a esse tipo de atividade. Os portugueses começaram por adaptar o sistema da escravidão mercantil vigente para atender a suas próprias necessidades comerciais.

A primeira experiência ocorreu nas ilhas atlânticas: para Cabo Verde eram levadas pessoas escravizadas no Golfo do Benim para que fabricassem têxteis, que, por sua vez, eram trocados por ouro nas regiões produtoras da África Ocidental. Na ilha da Madeira, o vinho, vendido na Europa, também era produzido com mão-de-obra escrava. Mais tarde, os escravos comprados na região do Congo-Angola foram incorporados a esse circuito, que passou a incluir também a produção de açúcar em São Tomé, seguindo o modelo implantado pelos muçulmanos na Espanha. Essas experiências escravistas foram mais tarde aplicadas às possessões portuguesas nas Américas, no território que, tempos depois, viria a ser o Brasil.

O açúcar foi o principal produto dinamizador dessa economia. Sua produção em larga escala na América portuguesa e nas Antilhas (as ilhas da América Central colonizadas por franceses, britânicos e holandeses) transformou esses espaços nos principais mercados receptores de pessoas escravizadas na África. A ilha Hispaniola – nome que Colombo deu ao Haiti – possuía, no ano de 1550, mais de

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trinta engenhos em funcionamento e vivia, nesse período, o auge da produção açucareira. No final do século XVI, o Brasil despontou como atraente mercado para negreiros, já que o açúcar brasileiro, produzido especialmente nas terras que hoje formam os estados de Pernambuco e Bahia, assumiu lugar de destaque na economia do império português.

Desde então, o tráfico realizado para as Américas ultrapassou em volume o tráfico transaariano. Ao longo do tempo, o tráfico de escravos pelo Atlântico deixou de ser uma atividade de apoio e passou ao primeiro plano, permitindo a acumulação de mais capital que a própria agro-indústria açucareira. Nos primeiros 150 anos (entre os séculos XV e XVI), os portugueses foram quase os únicos a comerciar escravos. Já no século XVII, holandeses, espanhóis, franceses, dinamarqueses e ingleses participariam com impacto crescente.

Há estimativas de que cerca de 12 milhões de pessoas tenham sido embarcadas no tráfico atlântico. Quatro em cada dez,

aproximadamente, tiveram como destino o Brasil.

O fluxo foi razoavelmente pequeno no século XVI, atingiu meio milhão de pessoas, mais ou menos, no século XVII, e explodiu no século XVIII, quando algo como um milhão e meio de pessoas foram trazidas. No século XIX, quando o fim do tráfico passou ao primeiro plano da agenda da política internacional, o volume de pessoas traficadas chegou a sua maior cifra, de mais de dois milhões e meio. Considerados em sua totalidade, os fluxos de escravos através do Saara e do Índico, calculados em cerca de 17 milhões de pessoas, muito provavelmente superam o volume do tráfico atlântico. Entretanto, a concentração deste último em apenas quatro séculos, contra treze séculos dos anteriores, resulta em uma média anual de pessoas traficadas incomparavelmente mais alta, o que implicou um impacto demográfico muito mais significativo sobre as zonas de captura.

A região Congo-Angola concentrou, inicialmente, a maioria dos escravos enviados para as terras do Brasil. No século XVI, saíram dos portos de Loango e Benguela milhares de pessoas de diferentes grupos, comercializados em troca de tabaco, algodão e café dos portos brasileiros do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. No Brasil, produziram açúcar, por sua vez, vendido na Europa. A partir do século

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XVII, a costa ocidental do continente africano, Costa da Mina e Golfo do Benim, também passou a enviar escravos para as zonas açucareiras no Brasil e, mais tarde, para o trabalho nas zonas mineradoras (século XVIII) e ainda para plantações cafeeiras (século XIX). Embora as principais zonas receptoras de escravos tenham sido o nordeste açucareiro e o sudeste minerador e cafeeiro, africanos em volumes e de procedências diferentes chegaram a todas as regiões do Brasil.

As sociedades africanas tocadas pelo tráfico

Mas... de que maneira cada vez mais

regiões do continente africanos eram

inseridas no sistema escravista?

Apesar de significativas diferenças regionais, o padrão de expansão espacial da escravidão moderna na África envolveu uma série de situações sucessivas que podem ser, grosso modo, descritas como a seguir.

O primeiro contato das sociedades africanas com o mundo escravista se deu via de regra pelas razias ou reides, ataques-relâmpagos a povoações e seus arredores que tinham como finalidade capturar diretamente o maior número possível de pessoas, especialmente jovens no início de sua vida produtiva, levados a cabo seja por Estados, seja por grupos armados. As pessoas assim escravizadas podiam ser postas diretamente a serviço de seus captores, mas o mais comum era a venda para lugares mais longínquos, uma vez que isso diminuía enormemente a possibilidade de fugas.

As populações assim tocadas pela ameaça de escravização podiam tentar migrar para mais longe das zonas de captura ou para refúgios naturais, mas a fronteira escravista, em permanente expansão, mais cedo ou mais tarde as terminava alcançando. O mais comum era a emergência, nessas regiões, de grupos armados que se opunham às razias, em troca de tributos exigidos das populações protegidas. Entretanto, os meios necessários para o exercício do poder militar – especialmente armas de fogo e, onde o terreno permitia, cavalos – só podiam ser obtidos em troca de escravos. Logo essas novas aristocracias guerreiras estavam empenhadas em razias para além do

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território sob sua proteção, empurrando, desse modo, as zonas de captura e a própria fronteira escravista.

Com o passar do tempo, não apenas a demanda a partir do Mediterrâneo e do Oriente Médio seguia aumentando (em parte porque antigas zonas de captura fora da África, como a Europa Oriental e a Ásia Central, davam sinais de esgotamento), mas a própria dinâmica dos processos de escravização ia-se tornando mais complexa. Bandos guerreiros ou exércitos estatais precisavam fazer expedições a zonas de captura cada vez mais longínquas. As guerras entre diferentes Estados, que também podiam resultar em grandes quantidades de escravizados, eram cada vez mais vultosas, em razão do aumento progressivo do poderio bélico.

As necessidades de manter um exército numeroso e uma corte cada vez mais extensa já não podiam ser supridas pelos tributos cobrados aos camponeses; a utilização de escravos na produção de víveres era a solução mais comum. A extensão das rotas comerciais e o afluxo de riqueza e produtos variados, incluindo artigos de luxo, reforçou o poder dos mercadores, que passaram a investir, eles próprios, no fornecimento de serviços diversos, na produção de víveres e de manufaturas, baseados na mão de obra escrava. Quanto mais integrada uma região se encontrava em relação ao sistema escravista global, mais os mercadores cresciam em importância política frente às aristocracias guerreiras.

O advento do comércio de escravos para as Américas abriu novas frentes para a fronteira escravista, ao longo de toda a

costa atlântica, até então pouco tocada pelo escravismo moderno, e imprimiu uma importante aceleração a esses

desenvolvimentos.

No caso da África Ocidental, o eixo de poder foi subitamente deslocado do interior, de onde partiam as rotas transaarianas, para o litoral, onde as novas rotas transatlânticas tocavam o continente. Mas, se nesses locais os grupos dominantes africanos mais empenhados na escravização e no tráfico tiveram seu poder reforçado na medida da ampliação extrema da demanda por escravos nas Américas, os efeitos sobre o conjunto da população foram bem diferentes.

Em geral, podem ser identificadas uma superexploração da população camponesa e a sensação de ameaça generalizada de escravização,

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Curso de Formação para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras (CEAO/UFBA) Módulo I – História da África

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uma vez que esta passou a ser uma punição cada vez mais comum para uma grande variedade de crimes e ofensas. Além disso, conflitos entre Estados vizinhos e mesmo disputas de sucessão, cada vez mais frequentes, serviam como pretextos para a escravização indiscriminada de camponeses, e eventualmente membros de facções inimigas de grupos dominantes. Em alguns casos, essa situação de insegurança interna contínua levou à desintegração política de poderosos Estados africanos (como o Kongo, no século XVIII, ou Oyó, no século XIX), que tinham prosperado como importantes parceiros europeus no comércio escravista.

As fraturas entre Estados vizinhos, e, dentro de cada Estado, entre diferentes facções de grupos dominantes ou entre esses grupos e as populações camponesas submetidas, muitas vezes pelas armas, a pesados tributos, foram os efeitos desestruturadores do que o historiador nigeriano Godfrey Uzoigwe chamou de “roedura” do continente pelos europeus. Como veremos na Unidade 4, a conquista militar da quase totalidade do território africano por meia dúzia de países europeus em pouco mais de trinta anos dificilmente teria sido possível de outra forma.

Leitura básica

VAINFAS, Ronaldo; SOUZA, Marina de Mello e. “Catolização e poder no tempo do tráfico: o reino do Congo da conversão coroada ao movimento antoniano, séculos XV-XVIII”. Tempo. 3, 6 (1998). Disponível em <http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg6-7.pdf>.

Para saber mais

ALENCASTRO, Luís Felipe de. “Africanos, os ‘escravos de Guiné’”. In: O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 44-76. CURTO, José C.. “Resistência à escravidão na África: o caso dos escravos fugitivos recapturados em Angola, 1846-1876”. Afro-Ásia. 33 (2005), p. 67-86. Disponível em <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia33_pp67_86_Curto.pdf>. EL HAMEL,Chouki. “‘Raça’, escravidão e Islã no Marrocos: a questão dos haratin”. Afro-Ásia. 31 (2004) p. 9-37. Disponível em <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/31_13_raca.pdf>. LOVEJOY, Paul. “Jihad e escravidão: as origens dos escravos muçulmanos na Bahia”. Topoi. 1 (2002). p. 11-44. Disponível em <http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/topoi1a1.pdf>.

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LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. M’BOKOLO, Elikia. “Os tráficos negreiros – séculos VII-XIX: o tráfico árabe-muçulmano” e “Nascimento e expansão do tráfico europeu”. In: África negra: história e civilizações. Salvador: Edufba, São Paulo: Casa das Áfricas, 2009. p. 211-236; 252-272. MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. MILLER, Joseph C.. “O Atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos”. Afro-Ásia. 19/20 (1997). p. 9-36. Disponível em <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n19_20_p9.pdf>. REIS, João José. “Notas sobre a escravidão na África pré-colonial”. Estudos Afro-Asiáticos. 14 (1987). p. 5-21. REIS, João José. “Os filhos de Alá na Bahia”. In: Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835. Ed. rev. ampl.. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 158-214. SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. THORNTON, John K.. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Campus, Elsevier, 2004.