texto sobre hist+¦ria, historiografia contempor+ónea, teorias da hist+¦ria

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  • 8/7/2019 Texto sobre Hist+ria, Historiografia Contempor+nea, Teorias da Hist+ria

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    CLIO E SEUS ARTFICES: REPENSANDO OFAZER HISTRICO

    Astor Antnio Diehl

    RESUMO

    Objetiva-se compreender os desdobramentos do momento desuperao (constituio e dissoluo do topus moderno) da fase decrticas lineares aos princpios e a historiografia moderna econtempornea. O momento parece ser de posturas dialgicas,percebidas a partir da constante busca de significados dasrepresentaes historiogrficas e, sobretudo, dos sentidos pedaggicosdo conhecimento histrico no momento presente. Esta postura implicanecessariamente em inventariarmos os limites e as possibilidades do

    conhecimento a partir de trs perspectivas interligadas: a terica, ametodolgica e a historiogrfica.

    Palavras-chave: Histria; historiografia contempornea; teorias dahistria; metodologia da histria.

    1. Apresentao do tema

    Tenho muito medo de um movimento

    intelectual se transformar num slogan, pois h

    sempre o perigo de autocomplacncia

    intelectual, ou seja, de se acreditar que se estno nico caminho correto, verdadeiro.

    Carlo Ginzburg.

    Todos ns, de uma ou outra forma, j nos sentimos desafiados e, porque no dizer,

    vacinados pelo enigma do momento histrico em que vivemos. um momento de

    profundas complexidades como qualquer outro momento, porm com a diferena de que

    agora experimentados o tempo presente com todas as suas temporalidades, com suas

    rupturas e permanncias, com suas linguagens e representaes. uma experincia

    multifacetada, coberta pelo nevoeiro da subjetividade. Tudo parece escorregar entre os

    dedos da mo como areia seca do deserto ou a se desmanchar no ar, como diria Berman em

    Professor do Curso de Histria e do Mestrado em Educao da Universidade de Passo Fundo (RS). E-mail:[email protected]

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    sua obra24. A fluidez e a leveza so caractersticas circunstanciadas de um momento de

    saturao cultural, o qual poderamos denominar de Sptzeit modernidade tardia25.

    No momento em que vivemos a exaltao das experincias culturais em termos das

    disciplinas sociais discutir sobre cultura e conflitos sociais na historiografia contempornea

    pode parecer mera redundncia acadmica ou mesmo sinnimo de querer revisitar uma

    constelao de elementos formadores que j estariam consolidados no debate.

    Por outro lado, o debate em torno dos fenmenos culturais e os conflitos na

    disciplina histrica sempre me pareceu indigesta, especialmente, neste momento em que a

    chamada histria cultural parece estar em alta. No precisamos mais caracterizar os

    inmeros fatores e perspectivas que dariam histria cultural os seus devidos subsdios de

    certa plausibilidade nos mais diversos nveis. Porm, o avano historiogrfico destas

    tendncias propiciou seguramente a fragilidade de certezas dos conhecimentos que atento no figuravam na pauta das discusses26.

    Sem dvida, os avanos e a receptividade entre os historiadores dos mtodos

    hermenuticos e fenomenolgicos gerou, num primeiro momento, certo mal estar,

    especialmente, naqueles que tomavam os quadros tericos modernos, provenientes do

    iluminismo civilizador, como aqueles nos quais seria possvel depositar confiana quanto as

    suas capacidades explicativas e de redeno do homem e da sociedade no futuro.

    No podemos esquecer do fato que tais teorizaes e postura totalizadoras

    tiveram a funo, entre tantas outras, de fazer morrer em ns a natureza humana. Eram

    arcabouos analticos de luta contra o caos, contra a violncia de um estado natural. Neste

    caso, a cultura tivera a funo principal de organizar, de classificar, de definir e a cincia,

    em seu turno, buscava exorcizar os temores da natureza, de reconciliar o homem com o seu

    destino e, sobretudo, compensa-lo pelo sofrimento e pelas privaes.

    Com certeza a crtica contempornea epistemologia racionalista e a crtica s

    grandes narrativas legitimadoras27, a crtica aos processos de modernizao e,

    24 Isto uma clara meno obra de BERMAN, M. Tudo que slido desmancha no ar. So Paulo:Companhia das Letras, 1986.25 Este conceito foi discutido por MOSER, Walter. Sptzeit. In: MIRANDA, Wander Melo (org.). Narrativasda modernidade. Belo Horizonte, Autntica, 1999, p. 33-54.26 Vrios destes conceitos podem ser relidos a partir da obra recente de REIS, Jos Carlos. Histria & Teoria.Historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: FGV, 2003.27 Ver especialmente CHAUVEAU, A.; TTARD, Ph. (org.). Questes para a histria do presente. Bauru:Edusc, 1999 e BODEI, Remo. A histria tem um sentido? Bauru: Edusc, 2001. Este questionamento j estavapresente nas preocupaes de Walter Benjamin emLWY, Michael. Romantismo e messianismo.So Paulo:

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    especialmente, a crtica idia de progresso que assistimos brotar em todos os recantos das

    cincias humanas e, particularmente, na cincia histrica, no nos deve cegar frente ao fato,

    de que a idia de progresso no estivesse profundamente ancorada na mentalidade e nas

    estruturas coletivas do pensamento da cultura histrico-historiogrfica.

    Em duzentos anos de cultura historiogrfica da conscincia, a categoria

    progresso28 se incrustou profundamente nas estruturas da psique ocidental e, por que no

    oriental, atuando na conscincia histrico-coletiva. Para verificarmos isso, na prtica, basta

    perguntar para uma criana ou at mesmo aos adultos, confirmando a idia orientadora de

    que o futuro ir superar sempre - o presente e o passado, em termos de chances de vida e de

    possibilidades de felicidade.

    Ora, se a perspectiva do futuro no se operacionaliza no horizonte individual nem

    no coletivo, ento vem tona um obstculo na orientao do sentido temporal da prpriahistria29. Essa orientao ser percebida atravs do distanciamento de um processo de

    desenvolvimento nas narrativas legitimadoras. O progresso como modelo de pensar um

    fator social, um conseqente fator mental dos princpios de conduta da vida e ele precisa ser

    colocado, como assim sendo, na ordem do dia, caso a histria como cincia deseje ocupar

    o espao da comunicao de experincias e do conhecimento histrico30.

    Por um lado, indiscutvel que no debate atual a categoria progresso (como ela

    se tornou fragmentria na compreenso da cultura) no consiga mais ser concebida sem

    profundas fissuras31. Para isso, as experincias histricas so poderosas demais. A

    tendncia crise, as conseqncias catastrficas da concepo tradicional, concebida como

    desenvolvimento histrico para o mundo moderno (especialmente nos setores scio-

    econmicos a partir da industrializao) j se tornou experincia coletiva comum.

    Cada um de ns que possui sensibilidade suficiente para perceber contradies

    estruturais entre o seu mundo e o da gerao passada, leva em considerao os resultados

    Perspectiva, EDUSP, 1990, especialmente o Cap. 9 e 10; para a questo historiogrfica ver DIEHL, Astor

    Antnio. A matriz da cultura histrica brasileira. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, Idem. A culturahistoriogrfica nos anos 80. Porto Alegre: EVANGRAF, 1993.28 Ver NISBET, Robert. Histria da idia de progresso. Braslia: Ed. UnB, 1985.29 Ver especialmente captulo 4 do livro de DOSSE, Franois. A Histria. Bauru: Edusc, 2003.30 Este aspecto no privilgio do pensamento histrico, mas abrange os mais diversos debates nas maisdiferentes reas do conhecimento. A abrangncia do debate pode ser acompanhada em SCHNITMAN, DoraFried (org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1996. Fizemos umatentativa no livro Com o passado na cadeira de balano. Passo Fundo: UPF editora, 2006.31 Em termos de debates recentes sobre a noo cultura sugere-se SEMPRINI, Andra. Multiculturalismo.Bauru: Edusc, 1999 e CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais. Bauru: Edusc, 1999.

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    prticos desse desenvolvimento como fatos observveis: na destruio ecolgica durante a

    explorao da natureza via industrializao; no desmedido e crescente potencial dominador

    do poder de blocos nos estados modernos; na profunda ruptura de possibilidades entre o

    mundo industrializado com as regies no industrializadas e, finalmente; na desertificao

    dos impulsos inovadores dentro do racionalismo institucionalizado pela cincia32.

    A cincia histrica no poder ser excluda da onda crtica ao progresso, se para o

    historiador a cons/cincia histrica apreendida atravs da experincia do passado significar

    alguma coisa. A crise da noo de progresso se configura na confrontao entre inteno e

    realizao especialmente a partir de trs vetores bsicos:

    a) o progresso moderno foi subsidiado pela esperana de que, atravs da

    unificao de razo filosfica e racionalidade cientfica pudesse ser instituda a paz

    interna das sociedades, bem como o delineamento da ordem internacional. As pessoas dosculo XX viveram desde grandes tenses at guerras mundiais, guerras locais, tendo como

    referencial um potente arsenal destruidor cientificamente produzido33.

    b) o progresso moderno constitui, na forma mais decisiva a sociedade do

    trabalho, na qual vale o crescimento da produtividade na base da constante automatizao,

    gerando nas sociedades industrializadas a crise da prpria sociedade do trabalho;

    c) a crena no progresso foi um fenmeno formador da identidade no auto-

    entendimento das sociedades, de seus grupos e indivduos. A crise da noo de progresso

    leva crise de identidade e de legitimidade do conhecimento, que se faz visvel em

    diferentes setores, como por exemplo: a crise de legitimidade de sistemas polticos34.

    Da crise de orientao do sentido que essa crtica representa na cultura poltica

    e a cultura historiogrfica atual resulta o sintoma das crescentes revolues frustradas,

    atingindo em contrapartida ao progresso de maximizao das revolues otimistas

    crescentes onde o ideal de progresso comps o estmulo central para o iluminismo atravs

    do tempo relacionado ao espao.

    32 As conseqncias esto em GIDDENS, Anthony. As conseqncias da modernidade. 2. edio. So Paulo:Editora da Unesp, 1991.33 Ver o texto de WITTROCK, B. Social Sciense and state development: Transformations of the

    discurse of modernity. In Rev. International Social Science Journal, 41 (1989): 497-507.34 TOURAINE, Alain. Modernity and Cultural Specificities in Rev. International Social Science

    Journal, 40 (1989): 43-457, e a discusso realizada no mesmo nmero da revista citada, entre referncias devrios cientistas, p. 533-584.

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    Portanto, por um lado, discutir a temtica da cultura e do conflito no modo de

    produzir o conhecimento histrico o mesmo que mapear a patologia do tempo presente,

    provocada pela mordida do enigma de compreendermos os conflitos da produo

    historiogrfica. Por outro lado, todos ns sabemos da dificuldade de se fazer um

    mapeamento mais completo ante a quantidade e diversidade da produo contempornea.

    Ento, preciso fazer uma seleo, pois humanamente impossvel ter domnio sobre a

    totalidade e aqui que enfrentamos o primeiro desafio. Quais so as obras paradigmticas

    para entender a complexa paisagem historiogrfica? Com todo o risco da impreciso e da

    parcialidade da leitura, tomo como sistema de referncia trs pontos:

    a) De onde se pode mapear os pontos do debate sobre cultura e conflitos na

    historiografia contempornea. Esta perspectiva do olhar analtico deve cobrir pelo

    menos os seguintes aspectos: as questes vinculadas s mudanas no pensamentohistoriogrfico; a questo da crise da razo histrica e do sentido do conhecimento

    histrico.

    b) Quais so os debates significativos internos e externos e como estes repercutem na

    produo historiogrfica contempornea?

    c) Quais so os pressupostos metodolgicos da anlise desta paisagem to dinmica e

    pluriorientada?

    J podemos perceber de antemo que a questo indigesta, mas podemos tentar

    compreende-la mesmo assim se partimos, metodologicamente, com a noo de cultura

    historiogrfica. Que possibilidades a noo cultura historiogrfica pode oferecer em

    detrimentos de outras formas de estudo como, por exemplo, a dos paradigmas, correntes

    tericas e etc.

    2. A noo cultura historiogrfica

    A noo cultura historiogrfica compostas por uma constelao de matrizes

    metodolgicas que nos permitem construir estruturas de anlise e compreenso da produo

    historiogrfica. Esta noo surgiu a partir de estudos mais sistemticos sobre a

    historiografia brasileira, feitos desde os anos de 1980 e gradativamente aperfeioados.

    Nosso objeto aqui discutir o processo de produo do conhecimento histrico e as

    possveis tarefas da anlise historiogrfica. Nesse sentido, tomamos como base noo de

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    cultura historiogrfica. Entendemos por cultura historiogrfica um conjunto de cinco

    matrizes com seus respectivos elementos interligados.

    A primeira matriz tem sua origem no debate proposto por Thomas Kuhn, com a

    publicao do livro A estrutura das revolues cientficas em 1962.35 Kuhn apresenta um

    debate sobre a noo de paradigma, as conseqncias para a cincia quando ocorre a

    chamada mudana paradigmtica e os fatores agentes dessa mudana.

    O debate desencadeado por Kuhn foi assimilado com diferentes graus de recepo na

    histria. Jrn Rsen ento props uma matriz disciplinar da histria como um modelo para

    a discusso terico-epistemolgica. A matriz de Rsen composta por cinco elementos: os

    interesses pelo conhecimento sobre o passado; as perspectivas tericas que orientam a

    pesquisa; as metodologias, as tcnicas de pesquisa e as diferentes fontes; as formas de

    representao do passado atravs das narrativas e, finalmente, as funes didticas dosconhecimentos histrico no contexto sociocultural.36

    A segunda matriz tem seu foco centralizado nas formas de recepo terico-

    metodolgicas e ideolgicas dos debates tericos na comunidade cientfica na prpria

    histria e demais cincias humano-sociais. Essas formas de recepo so constitudas de

    trs vetores: a ortodoxa, a adaptada e a crtica.37

    A terceira matriz tem seu esforo concentrado sobre as experincias historiogrficas

    refletidas sobre a modernidade e ela e composta pelas naes modernizao, modernidade

    e modernismo.

    PARA UMA PARA UMA

    CULTURA HISTORIOGRFICA CULTURA DIDTICA

    (complexidade da compreenso) (complexidade da mediao)

    35 DIEHL, Astor Antnio. A cultura historiogrfica e insero hermenutica. Narrativa e controle datragicidade na histria. In: Rev. Histria: debates e tendncias. Passo Fundo: Mestrado em Histria/CPH/RS,v. 02, n 1, 2001. P. 33-52.36 A matriz disciplinar de Rsen est no livro Razo histrica. Braslia: UnB, 2001. Ver esta discusso notexto de DIEHL, Astor Antnio. A cultura historiogrfica e insero hermenutica. Narrativa e controle datragicidade na histria. Op. Cit.37 Discutimos essa matriz em DIEHL, Astor Antnio. A cultura histrica brasileira. Porto Alegre: Edipucrs,1993, especialmente p. 26-27.

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    - matriz disciplinar da histria- matriz da recepo terico-

    metodolgica e ideolgica- matriz das expectativas sobre a

    modernidade- matriz das experincias sobre a

    ps-modernidade- matriz esttico-narrativa da

    histria- matriz didtico-pedaggica da

    - histria como experincia

    - histria como cincia

    - histria como didtica

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    A quarta matriz apresenta as experincias historiogrficas sobre a ps-modernidade e

    ela composta pelo debate sobre a tenso entre modernidade ps-modernidade e as

    repercusses dessa tenso na disciplina histria.

    A quinta matriz representa o esttico-narrativo da histria e ela constituda a partir

    do debate em torno do texto histrico-historiogrfico e as respectivas representaes deestruturas e de sujeitos. E, finalmente, a sexta matriz representa as possibilidades do

    conhecimento histrico em termos de sua validade e legitimidade social e cultural numa

    sociedade em profundas mudanas estruturais.

    Com esse primeiro entendimento sobre a noo cultura historiogrfica podemos

    seguir adiante, dizendo que por processo de produo do conhecimento histrico

    compreendemos um conjunto de prticas desenvolvidas tanto em nvel acadmico como

    no acadmico.

    Observa-se, ultimamente, um amplo processo de produo de dissertaes e teses no

    contexto dos programas de ps-graduao e com isso, a socializao da pesquisa dos

    membros da comunidade de historiadores. Com esse aspecto no queremos afirmar que a

    socializao dos conhecimentos produzidos ocorra, necessariamente, com igual intensidade

    no contexto mais amplo da sociedade atravs da publicao de livros e artigos de acesso

    geral.

    Nesse sentido, trata-se de verificar a hiptese segundo a qual, apesar do anncio da

    crescente burocratizao, leia-se especializao da histria. Conseqentemente, a

    socializao do conhecimento pelos membros da comunidade cientfica na pesquisa est

    sendo ainda muito mais definida pela performance individual e singular do historiador.

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    INTERME-DIAO

    CAMPOS DERACIONALIZAO DO

    CAMPOS DE EXPERINCIASrelaespossveis

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    Observa-se, tambm, a crescente institucionalizao e consolidao de cursos de

    ps-graduao num processo que poderamos denominar de interiorizao do

    conhecimento.

    Alm das questes institucionais e quantitativas da produo do conhecimento

    devemos considerar a cincia e a atividade cientfica como eminentemente sociais. A

    histria da cincia histrica se interessa pelos prprios cientistas em suas condies de

    trabalho.

    Nesse sentido, existem vrias alternativas conceituais para o estudo do processo de

    produo do conhecimento histrico. Entre estas alternativas destacamos: o conceito de

    comunidade cientfica, introduzido por Polany, presente em Merton e desenvolvido por

    Kuhn38, o conceito de ethos cientfico de Merton; o conceito de campo cientfico e habitus

    de Bourdieu39, bem como o de habitus na perspectiva de Norbert Elias.O processo de institucionalizao e consolidao da histria, como disciplina, bem

    como de constituio das coletividades de historiadores, compreende diferentes fases, no

    Brasil.

    A primeira fase compreende aquela que podemos denominar de vigilncia

    comemorativa, a qual carrega consigo a herana histrico-cultural da historiografia do

    sculo XIX.40 A sua produo intelectual e historiogrfica caracteriza-se por ensaios de

    cunho erudito, influenciado pela literatura de origem europia. So pensadores do Brasil,

    vinculados ou prximos do Estado. Os Institutos Histricos e Geogrficos e as Academias

    so exemplos dessa fase. Com posturas diferenciadas, suas caractersticas bsicas so a de

    ter a hegemonia de representar o Brasil. Essa perspectiva perdura em grande parte at

    meados dos anos 1970.41

    A partir dos anos 1970 e 1980, com a criao dos programas de ps-graduao,

    entramos numa fase da cultura historiogrfica que caracterizada pela crise dos parmetros

    cientficos tradicionais e pela diversidade de histrias, porm fortemente institucionalizada

    nas universidades. Nessa fase assistimos, alm da interiorizao da produo do

    38 KUHN, Thomas. Op. cit.39 BOURDIEU, P. A economia das trocas lingsticas. So Paulo: Edusp, 1996; Razes prticas: sobre ateoria da ao. Campinas: Papirus, 1996. BOURDIEU, P. Campo intelectual e projeto criador. Problemas doestruturalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.40 BOURDIEU, P. Op. cit.41 Ver DIEHL, Astor Antnio. A cultura historiogrfica brasileira (dcada de 1930 aos anos 1970). PassoFundo: Ediupf, 1999.

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    conhecimento e sua correspondente profissionalizao, a emergncia de alternativas

    temticas e tericas.42

    Com o fim do regime militar em 1985, a historiografia ingressou num perodo sob

    condies de democracia no Brasil. Com isso, as universidades passaram a gozar de uma

    relativa autonomia, estimulando um novo incremento institucionalizao atravs da

    vivncia departamental, oriunda da reforma universitria no final dos anos 1960.

    Essa institucionalizao gerou profundas descontinuidades que, neste perodo, se

    apresentam fragmentadas sob a forma de vrias especializaes e essas no regulam sua

    expanso por paradigmas fortes e dominantes. A departamentalizao do conhecimento

    histrico e dos prprios cursos de histria pode, para fins de compreenso, ser transposta

    geograficamente para as diferentes universidades.

    O departamento torna-se o lugar, por excelncia, da produo em histria. Nessemomento podemos identificar pelo menos trs tendncias.

    A primeira tendncia lembra uma orientao mertoniana, na qual ocorre a dissociao

    entre cincia e vida pblica. Desenvolve-se uma historiografia sob a jurisdio de uma

    comunidade cientfica orientada por um ethos especfico. Atravs desse ethos especfico e

    autnomo, procurou-se atingir os fins prprios da lgica cientfica. Nessa tendncia, a

    historiografia no deveria servir ao Estado, ao mercado, nem a quaisquer outros sujeitos

    sociais.

    A segunda tendncia prev o locus departamental, como sendo uma espcie de autor

    para a construo de redes em torno de objetos definidos pela vocao solving problems,

    estimulando-se, para tanto, a criao de laboratrios, arquivos e implementando linhas de

    pesquisa e reas de concentrao.

    A terceira tendncia consiste numa forte influncia francesa na cultura historiogrfica

    pela qual ocorre a recepo macia e uma aproximao da nova histria francesa com a

    histria cultural, fazendo da histria uma forma medial de comunicao entre passado e

    presente. Evidente est que a histria nova gerou uma revoluo na historiografia, como

    muito bem menciona Peter Burke.43 Mas, sua forte tendncia ao mercado medial acentuou a

    42 Fizemos isso em Cultura historiogrfica brasileira nos anos 1980. 2 edio. Passo Fundo: UPF editora,2004.43 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929 1989). 2. ed. So Paulo: ed. da Unesp, 1991.

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    sua patologia. Refiro-me a patologia do esgotamento e da sua perda de sentido em termos

    de busca dos parmetros modernos de cincia.

    Radicalizando essa tese, poder-se-ia falar de uma historiografia compensatria aos

    problemas contemporneos e de uma falta de perspectivas para uma possvel mudana

    social.

    Contudo, na verso atual, essa tendncia est se apresentando como uma historiografia

    especializada em objetos fragmentados (negros, mulheres, sem-terra, homossexuais,

    feiticeiras, imaginrio, cotidiano, etc.), com os quais ela se identifica, atuando como ator na

    sua representao. Ainda na situao atual temos uma verso historiogrfica que ruma para

    o encontro com a literatura, enfatizando as prefiguraes e discursos contextualizados.

    Nessa perspectiva rompem-se as fronteiras disciplinares da histria.

    De forma genrica podemos afirmar que apesar de trs tendncias identificadasisoladamente, elas ocorrem simultaneamente, mostrando-nos, sobretudo, que no h mais

    um conhecimento estabelecido de verdades absolutas e ltimas. Por mais paradoxal que

    possa parecer, a histria est em franca popularizao, e cada vez mais ela vem ocupando

    espaos nos diferentes meios de comunicao. Cada vez mais, a legitimidade da histria

    centra-se na pluralidade e na multiplicidade, no imediato e no tempo presente, causando a

    seduo do leitor atravs de uma narrativa aberta sem os dogmatismos de pensamento do

    sculo XIX.

    Por outro lado, assistimos um avano numrico considervel na produo de histrias

    municipais, locais, regionais e personalizadas. So cada vez mais produes em micro

    escala, que buscam a afirmao dos saberes locais, das identidades tnico-culturais e de

    posturas poltico-administrativo-municipais. Uma parcela considervel desses textos

    produzida fora dos parmetros universitrios e, portanto, do controle da comunidade

    cientfica.

    Apesar da inovao metodolgica e temtica da histria, no podemos deixar de

    mencionar a fugacidade do texto histrico e sua configurao terica, provocada pelo

    afronto tradicional razo histrica. Nos anos da dcada de 1980 e 1990, a cultura

    historiogrfica brasileira vem desenvolvendo-se num intenso debate em torno dos

    problemas apontados pela ps-modernidade. As clivagens desse debate localizam-se em

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    parte sobre a crtica da idia de progresso, da razo histrica e do prprio sentido do

    conhecimento histrico, as quais foram as molas mestras das perspectivas de modernidade.

    Por outro lado, as solues micro e culturais so tambm uma resposta ao processo de

    globalizao em forma de resistncia, de identidades e de culturas locais. Assim, os

    critrios de fundamentao moderna e validade da histria cincia esto hoje sob suspeita.44

    Nessa constelao ampla existem dois parmetros bsicos que devemos considerar

    em relao cultura historiogrfica: (a) a formao da atividade cientfica na comunidade e

    (b) a estrutura e concepes na produo do conhecimento histrico45.

    Frente a essa tese, a hiptese plausvel nesse contexto a nossa constante busca de

    parmetros que possam configurar a performance da cincia histrica. Um desses

    parmetros o estabelecimento de elementos capazes de estimular premissas para um

    programa mnimo, mesmo que precrio para a disciplina. Tais premissas precisamconstituir-se em meta-discurso, que consiga abranger as mais diferentes representaes

    localizadas.

    Tal meta-discurso dever dar conta dos elementos discursivos anrquicos, que querem

    romper com o personalismo historiogrfico existente, e aqueles cujo objetivo a

    configurao da disciplina histrica. A dificuldade est exatamente nesse ponto, que o xis

    nevrlgico da questo. Por outro lado, a constituio dos elementos dessa meta-discurso

    poderia estar historicizada, pois o dilogo ir apresentar experincias disciplinadoras e

    impulsos de emancipao46.

    Portanto, um primeiro aspecto a necessria (re)configurao entre o discurso terico

    e a razo prtica, entre o pensar representativo do mundo e a vivncia da experincia

    daqueles que objetivamos reconstruir num processo de atualizao do passado.

    A contemporaneidade do no-contemporneo implica em exerccios scio-culturais de

    interesses pelo conhecimento histrico. Tais interesses independentes do contexto revelam

    a capacidade do sujeito cognitivo consciente, reconstrudo atravs das prticas existenciais

    44 Em termos epistemolgicos procuramos discutir isso no confronto entre os paradigmas modernos e ps-modernos em DIEHL, Astor Antnio; TEDESCO, Joo Carlos. Epistemologias das cincias sociais.Consideraes introdutrias de um debate. Passo Fundo: Clio Livros, 2001.45 Os dois aspectos apontados no sero discutir aqui. Entretanto, seria por demais interessante vincula-los narelao especfica com os programas de ps-graduaes e a questo das regionalidades.46 Ver mais em DIEHL, Astor Antnio. Cultura historiogrfica: memria, identidade e representao. Bauru:Edusc, 2002.

    11

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    e do conjunto de tendncias do paradigma dominante. Esse aspecto por si s j gera um

    conflito, estabelecido entre o existencial do historiador e o paradigmtico de sua cincia.

    Nesse aspecto, no devemos confundir as prticas existenciais no-discursivas como,

    por exemplo, comportamento cotidiano, com discursos impressos sobre o cotidiano. Ou

    seja, a orientao de misturar experincias existenciais e textos de crtica historiogrfica.

    Alis, essa orientao faz parte da patologia da histria como cincia. Portanto, o foco

    central desse primeiro elemento o da histria como experincia ou espao das

    experincias.

    O segundo elemento da meta-discurso o das perspectivas orientadoras sobre o

    passado, ou seja, o conjunto de teorias, as quais do significado ao passado. atravs das

    perspectivas orientadoras que os interesses ajudam a compreender as transformaes

    temporais do homem, do seu mundo e a conscincia de seu reconhecimento como histrico.O terceiro aspecto constitutivo da meta-discurso as orientaes e regras

    metodolgicas, com as quais as experincias do passado so inseridas nas perspectivas

    orientadoras atravs da pesquisa e de todo arsenal tcnico de manuseio documental na

    significao das informaes. A insero das experincias do passado nas perspectivas

    orientadoras feita atravs das estratgias de pesquisa. O arsenal tcnico e as estratgias

    vo mudando conforme as orientaes tericas.

    O quarto elemento constitudo pelas formas de representao historiogrfica, atravs

    das quais so elaborados os textos e discursos sobre o passado. A dimenso textual-

    discursiva compreende aspectos como memria, continuidade/ruptura, comunicao,

    identidade e sentido do tempo, vinculados a quatro estruturas narrativas: a exemplar, a

    tradicional, a crtica e a gentica.47

    E, finalmente, o quinto elemento constitutivo da meta-discurso envolve as funes do

    conhecimento histrico no contexto social e individual. Em outras palavras, essas so as

    funes didticas do saber histrico, atravs das quais germinam novos interesses sobre as

    prticas scio-culturais. Exatamente nesse aspecto est presente a profunda vinculao

    entre presente e o passado.

    47 Estas estruturas narrativas da histria foram desenvolvidas por Jrn Rsen. Procuramos operacionaliz-lasem DIEHL, Astor Antnio (org.). Vises da histria do planalto rio-grandense. (1980-1995). Passo Fundo:UPF editora, 2001, p. 17.

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    Portanto, entendemos que a performance da histria com plausibilidade cientfica

    passa necessariamente pelo estabelecimento desses cinco elementos constitutivos da meta-

    discurso em um programa epistemolgico mnimo. Independente da postura terica, esse

    meta-discurso possibilita, sobretudo, uma concepo da prpria possibilidade histrica e do

    seu desenvolvimento.

    No seria exagerado afirmar aqui, para finalizar a parte de contextualizao, que a

    prpria busca desse acordo tambm repleto de produtividade para a histria, pois a

    relao dialgica a maneira pela qual se revela a conscincia da produtividade. Sem

    dvida, o aparecimento da conscincia histrica constitui o aspecto mais importante de

    constituio da histria como disciplina moderna e este o parmetro de compreenso

    fundamental da historicidade do passado, bem como evidencia o reconhecimento

    intelectual contemporneo.Porm, no basta apenas a conscincia de que algo esteja mudando. preciso

    compreender a cultura da mudana e no mais o resultado final da mudana nas formas de

    produo e representao do conhecimento histrico. Nessa cultura da mudana deve

    chamar ateno para dois pontos da guinada. O primeiro ponto diz respeito ao abuso da

    interdisciplinaridade, especialmente com a sociologia da gente, a economia da negociao e

    na prpria histria com a proposta de estudos da contemporaneidade do no-

    contemporneo. O segundo ponto da guinada refere-se conscincia de que a verdade no

    est nos arquivos e o documento por si j no pode mais dar a resposta cabal da veracidade

    dos fatos.

    Com esta guinada, a histria passa a ser concebida como inveno controlada das

    experincias na suas temporalidades. Nesse sentido, a linguagem passa a assumir uma

    relevncia na busca da universalidade da experincia singular para a tomada de conscincia

    da contemporaneidade. exatamente esta fuso de horizontes que mostra a relao entre

    espao de experincias (tradio) e horizonte de expectativas (tempo)48.

    Esta perspectiva hermenutica empresta o sentido ltimo s cincias humanas e nos

    coloca como seres finitos, inconclusos que precisam da histria para encontrar o sentido da

    compreenso em relao amplitude da idia de tradio e a possibilidade de mudana no

    tempo presente. Parece-nos que estas as concepes que forjam o indivduo e o cidado

    48 Conforme KOSELLECK, R. Vergangene Zukunft. Frankfurt: Suhrkamp, 1989.

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    modernos em identidades parciais e nem sempre harmnicas a partir do teatro da memria.

    Tal aspecto tornou-se ultimamente importante no debate pelo seu grau fragmentrio e

    subjetivo, o qual penetra na intimidade individual onde a noo de sinceridade pode se

    tornar um aval da verdade. Esta proposio poderia significar dentro dos parmetros mais

    ortodoxos do pensamento uma afronta aos critrios de cientificidade e de historicidade do

    conhecimento histrico. Entretanto, o dilogo com as tradies sempre ir supor valores e,

    fundamentalmente, os sentidos de valores como critrios negociados individual e

    socialmente dentro de um sistema de referncias.

    Se continuarmos nesta lgica de pensamento facilmente poder-se-ia levantar a hiptese

    de que o passado no existe. Existe isto sim a construo temporal de sistemas de

    referncias, dos quais brotam os sentidos e significados daquilo que denominamos passado

    e passamos a referenciar como histria. Mesmo com os sistemas de referncias estruturadosheuristicamente ainda assim o passado nos prega peas: para uns o passado poderia ter

    sido...; outros gostariam que ele tivesse sido; ou ainda aqueles que perguntam sobre como

    possvel reconstitu-lo.... Alis, a histria o espao do tempo e o passado o campo no

    qual o real brinca de esconder com o pesquisar. O passado uma espcie de sombra de

    cada um de ns e somente ela nos faz perceber como, onde e quando nos influencia na vida.

    A compreenso desta problemtica coloca o passado como a possibilidade de futuro e ele

    um poderoso argumento para a cultura da mudana.

    Ento, o mapeamento e compreenso dos debates e conflitos na historiografia

    contempornea dividido em dois grandes leques. O primeiro busca cobrir o territrio dos

    debates temtico-tericos e o segundo avana sobre a compreenso da paisagem dos

    debates epistemolgicos e metodolgicos.

    3. O territrio dos debates temtico-tericos

    a) Debates em torno do marxismo: Althusser, Gramsci, Agnes Heller, a influncia da

    Escola de Frankfurt, Edward Thompson, Perry Anderson.

    b) Debates em torno do Movimento dos Annales: crise do estruturalismo durkheimiano

    e a crise da histria econmica e a larga influncia da antropologia e da

    hermenutica. Franois Dosse, Peter Burke, Jacques Le Goff, Marcel Gauchet.

    c) Debates em torno das novas configuraes do poder: Gramsci, Foucault e Bourdieu.

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    d) Debates em torno da memria: Walter Benjamin, Paul Thompson, Henri Bergson.

    e) Debates em torno da crise do Estado-nao: regionalidades, do local, do micro

    especialmente com Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, Jacques Revel.

    f) Debates em torno das representaes: Michel Vovelle, Roger Chartier, Georges

    Duby.

    g) Debates em torno da histria poltica ou da renovada histria poltica: Ren

    Remond.

    h) Debates em torno dos sujeitos histricos e biogrficos: camponeses, mulheres,

    operrios, bruxas, feiticeiras, prostitutas, homossexuais etc.

    i) Debates em torno da crise da histria das idias e a conceituao da histria

    intelectual: Robert Darnton, Franois Dosse, Ren Remond.

    j) Debates em torno dos sentimentos, da subjetividade, dos medos, da felecidade: JeanDelumeau.

    k) Debates em torno da modernidade e ps-modernidade: J. Rsen, Remo Bodei, Josep

    Fontana, Perry Anderson, Eric Hobsbawm, Boaventura de Souza Santos, Marchall

    Berman.

    l) Debates em torno da histria cultural: as peculiaridades, a compreenso - Lynn

    Hunt, Peter Burke, Jacques Revel.

    4. A paisagem dos debates epistemolgicos e metodolgicos

    a) Debates em torno da insero da hermenutica no processo de compreenso do

    passado: aproximao com a filosofia, o avano da subjetividade e das experincias

    cotidianas - Paul Ricouer, Michel de Certeau, R. Koselleck, Hans-Geog

    Gadamer, Dominique La Capra.

    b) Debates em torno da ps-modernidade: Keith Jenkins, Linda Hutcheon, StevenConnor, Richard Rorty em termos de sistematizao do pensamento ps-moderno.

    c) Debates em torno do sentido da histria: humanizao das cincias humanas Josep

    Fontana, Franois Dosse, Remo Bodei, Jrn Rsen.

    d) Debates em torno do tempo presente: pluralidade de sons e tempos - Ph. Ttard.

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    e) Debates em torno da histria e narrativa: a histria como cincia da palavra e do

    texto Hayden White, J. Rsen, Claude Lefort, Eric Hobsbawm.

    f) Debates em torno da historiografia e cultura historiogrfica: Marie-Paule Caire-

    Jabinet.

    g) Debates em torno da interdisciplinaridade, multi e transdisciplinaridade: o objeto da

    histria.

    h) Debates em torno da histria e psicanlise: Michel de Certeau, Paul Ricoeur.

    i) Debates em torno da didtica da histria: o sentido do conhecimento histrico e as

    suas funes culturais.

    5. Narratividade na histria

    O termo narratividade foi introduzido no debate histrico-historiogrfico atravs

    da filosofia analtica da histria5, bem como, paralelamente, atravs das pesquisas

    sistemticas da teoria literria e da lingstica exegtica de textos.6

    A narratividade abarca a especificidade lgica do leque de relaes da

    linguagem atravs da qual pessoas narram representaes do passado pela historiografia e

    literatura. Dependendo das relaes que so estabelecidas nas perspectivas de pesquisas

    sero tambm vinculados os princpios narrativos, frases, textos como elementos da

    narratividade, estruturas narrativas ou esquemas explicativos.

    Na rea do conhecimento histrico e sua respectiva teorizao, narratividade

    significa, em primeiro lugar, o fato que toda histria apresentada como um contar sobre o

    passado. Isso significa representar o passado como histrias. Se esse fato est estreitamente

    fazendo a ligao entre histria e narrao, o que posio indiscutvel, ento surgem,

    problemas quanto fundamentao mais exata em termos de teorias da histria.

    A questo central, por onde surgem os problemas de fundamentao, pode ser

    formulada a partir da construo do prprio conhecimento histrico. A narrativa, com sua

    5 WHITE, Morton. Foundation of Historical Knowledge. New York: 1965 e DANTO, Arthur C. AnalyticalPhilosophy of History. Cambridge, 1965 (traduo parcial espanhola Historia y narracin. Barcelona/ BuenosAires/ Mxico: Ediciones Paids, 1989).6 STIERLE, K. Text als Handlung. Perspecktiven einer systematischen Literaturwissenschaft. Munique: 1975,especialmente p. 49-55.

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    seqncia, a qual culmina na sntese, estruturada atravs de aspectos externos do discurso

    sobre o passado ou ela vem estipulada a partir da relao conceitual interna da prpria

    histria? Em outras palavras, poder-se-ia afirmar que a narrativa seria uma resposta para a

    questo do j discutido problema da filosofia da histria, atravs do qual o passado ou no

    tornado histria.

    Essa questo traz tona um problema subjacente, mas no menos importante da

    narratividade histrica. Podemos ampliar o grau de complexidade da questo, se tomarmos

    a constituio da conscincia histrica, ou seja, a especificao de como a histria o

    passado constituda em histria no processo de anlise de pesquisa.

    Nessa perspectiva, podemos ento observar que a narratividade se tornou um dos

    problemas atuais do debate. A atualidade desse problema tambm vem, por um lado, da

    maneira especfica do desenvolvimento da histria cultural, vista pelo ngulo metodolgicoe, de outro lado, pela crise paradigmtica que a histria vem enfrentando como cincia.7

    A tentativa de buscar estruturas narrativas especficas para a histria e a

    multiplicidade de perspectivas tericas em jogo indica uma reviso dos conceitos bsicos

    do prprio conhecimento histrico. Dessa necessria reviso no se explica apenas o fato

    que o problema metodolgico, mas de que precisamos redefinir as relaes entre narrao

    e explicao e entre narrao e teoria. Portanto, compreende-se que a base clssica da

    narrao fora reduzida a uma forma de representao do passado em termos de estruturas

    didticas: as funes do conhecimento histrico em um dado contexto.

    Assim, uma reabilitao da narrativa histrica como algo especfico somente ser

    possvel se tomada como um dos critrios de plausibilidade do conhecimento histrico. Isso

    significa incluir na sua estrutura terica os elementos do discurso histrico como fonte

    fundamental da explicao.

    Arthur Danto procurou, atravs de sua anlise, discutir os esquemas narrativos da

    explicao histrica, mostrando que a oposio narrativa x teoria falsa, levando inclusive

    avaliaes errneas.

    Os aspectos levantados por Danto de forma alguma foram superados naquele

    momento, tanto que mereceram debates posteriores. Pelo contrrio, suas consideraes

    7 Ver aqui duas obras recentes DE DECCA, Edgar S.; LEMAIRE, Ria (Orgs.). Pelas margens. Outroscaminhos da histria e da literatura. Campinas, Porto Alegre: Ed. da Unicamp, Ed. da Universidade-UFRGS,2000 e CARDOSO, Ciro F.; MALERA, J. (Orgs.). Representaes. Contribuio a um debatetransdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000.

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    foram importante por chamarem a ateno para o significado da narrao, sua fundamental

    necessidade no processo de constituio da pesquisa e do conhecimento histrico, bem

    como na funo de teorizao na histria social e da histria cultural.8

    Evidentemente, a caracterizao acima apenas delimitou a importncia da

    narratividade. certo que a narrativa sempre ir estar presente em textos com contedos

    histricos; que o espao da histria narrada est presente na interferncia de aes, na

    heterogeneidade dos fins e na contingncia; que a histria na sua prtica de constituio

    precisa ter presentes estruturas narrativas; que a narrativa e a teoria precisam estar

    minimamente em situao de complementaridade; que as teorias tambm precisam estar

    sujeitas ao contedo do debate da narrao.

    Nesse sentido, a questo de fundo proposta aqui de trazer a discusso das formas

    narrativas para dentro do debate mais geral, vinculando-as aos princpios das teorizaes,das metodizaes e didatizaes na constituio do conhecimento histrico. Fora disso, a

    discusso sobre a narratividade cair no esgotamento das formas estticas de representao

    do passado e em debates meramente tcnicos, vinculados as estruturas frasais onde o

    contedo histrico como conhecimento perder seu significado na tarefa de produzir

    possibilidades de conscincia.

    As possibilidades de conscincia colocam a narrativa no centro de questes

    fundamentais para a histria, podendo elas ser apresentadas como origem, como alegoria e

    como esttica.

    a) Narrativa como origem

    Em essncia toda narrativa um discurso fundador e nesse sentido pode designar uma

    constelao de ingredientes desse discurso9.

    Narrativa como origem pode designar um lugar privilegiado do passado e de uma

    recusa da modernidade, pois nesse locus convergem simultaneamente os impulsos

    restauradores e utpicos. Ela representa o retorno a uma harmonia anterior, perdida pelos

    processos de modernizao objetivos da sociedade. Buscar fundar um passado perdido

    8 DANTO, Arthur C. Historia e narracin. Barcelona/ Buenos Aires/ Mxico: Ediciones Paids, 1989.

    9 Em termos de um rastreamento de teorias e percursos das lnguas e linguagens ver ECO, Umberto. A buscada lngua perfeita. Bauru: Edusc, 2001. No deveramos esquecer a possibilidade de outras leituras, verKUPER, Adam. Cultura: a viso dos antroplogos. Bauru: Edusc, 2002.

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    articulado como se o ideal estivesse no passado. Nesse sentido, podemos constatar uma

    contradio entre nostalgia e vanguarda ou entre conservao e revoluo. O tempo

    representado como restaurao e como disperso, assumindo caracterstica alegrica, onde

    a restaurao estabelece o termo e a disperso o efmero.

    A narrativa como origem designa ento um salto (Sprung) para fora ou para alm da

    sucesso cronolgica que nivela os fatos numa linha de tempo linear. A origem quebra a

    linearidade do tempo, passando a operar com cortes no discurso.10

    uma tentativa de fazer saltar do passado congelado para o contemporneo e do

    contemporneo para o passado quase como algo acidental e subjetivo. Assim, o passado

    congelado passaria a integrar o contemporneo agitado e esse, por sua vez, poderia fazer

    parte do passado, formando a heterogeneidade no encontro de experincias diferenciadoras

    naquilo que pode ser denominado de o contemporneo do no-contemporneo ou a idia defuturo que se tinha no passado ou ainda a idia de passado que se ter no futuro.

    Mas, a narrativa como origem representada como a vontade de um regresso e,

    sobretudo, mostra tambm a precariedade desse regresso. A precariedade aparece quando

    existe a conscincia de que s restaurado aquilo que foi destrudo. Nesse caso, o ato de

    querer restaurar indica o reconhecimento da perda, a lembrana de uma ordem anterior e a

    fragilidade dessa ordem. Ento, a restaurao sempre incompleta.11

    Continuando o raciocnio, a narrativa sobre o passado via rememorao no implica

    apenas na tentativa de restaurao do passado, mas alavanca tambm uma transformao do

    presente de tal forma que, se o passado a for reencontrado, ele no fique o mesmo, mas

    seja tambm ele retomado e transformado. Nesse sentido, a relao estabelecida entre o

    passado e o presente implica no reencontro transformador de ambos. J no teremos mais

    um passado como ele realmente foi e um presente inclume interferncia do passado.

    Certamente nesse processo transformador existia um vnculo essencial entre

    narrativa e histria. A linguagem contida na narrativa uma espcie de reatualizao da

    origem e, portanto, ela possui uma vinculao com o futuro utpico no passado. , em

    ltima anlise, restabelecer os vnculos com as idias de futuro no presente e as idias de

    10 Ver CASSIRER, Ernt. Linguagem e mito. So Paulo: Perspectiva, 1972.11 Uma leitura interessante nesse aspecto a de VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito etrgedia na Grcia Antiga. So Paulo: Brasiliense, 1988.

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    futuro que se tinha no passado. Ento, a tarefa da narrativa no apenas a restaurao do

    idntico esquecido, mas a possibilidade do diferente.

    Nesse sentido, o discurso (logos) e onoma (que conhece), vinculando linguagem e

    histria, articula-se em combinaes diferentes, resultando da as vrias tradies histricas

    que nada mais so do que tradues do passado. Em outras palavras, as narrativas so

    tradues e leituras diferentes do passado que, dependendo das combinaes e nfases

    variadas, possibilitam as mais diferenciadas leituras interpretativas do passado. Porm,

    todas as possveis tradies possuem algo em comum. Todas elas demonstram serem

    incompletas e transitrias, mesmo que busquem a perfeio do passado.

    b) Narrativa como alegoria

    No sentido clssico, alegoria nasce da distncia histrica que separa o leitor do texto,

    cujo texto pode apresentar-se das mais diversas formas. Com essa premissa bsica, a

    alegoria torna-se: uma espcie de intervalo entre ambos; um escndalo do leitor em relao

    ao texto; e finalmente, como diz Schleimacher, a responsabilidade (o ponto chave) caber

    ao ato da leitura e no mais ao texto.

    Com essas trs perspectivas, alegoria a possibilidade de reabilitao da histria, da

    temporalidade, mas tambm a morte da linguagem humana na relao leitor-texto. Pois, ao

    mesmo momento que a narrativa possui historicidade, ela demonstra seu carter arbitrrio

    na medida que traduz a precariedade dela mesma. Seu desejo de eternidade corresponde asua conscincia da precariedade da descrio do mundo. Parece ser essa a fonte da alegoria:

    a coexistncia entre efmero e o eterno. Ou como diria Baudelarie: a coexistncia da

    harmonia e da modernidade devoradora.

    exatamente dessa coexistncia contraditria que a narrativa experimenta sua

    viabilidade, a qual se encontra situada entre expresso e significao. Origina-se da o fato

    da alegoria apontar para a impossibilidade de um sentido eterno. Apesar dessa

    impossibilidade, ela tambm aponta para a necessidade de preservar temporalidades

    significativas recheando-as de historicidades, porm transitrias.

    Atravs da alegoria aprofunda-se uma relao trplice:

    a) a do sujeito clssico que podia afirmar uma identidade coerente entre si mesmo. A

    alegoria agora passa a sugerir precariedade da identidade coerente e verdadeira e

    nisso o sujeito construtor da totalidade coerente passa a vacilar;

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    b) a dos objetos que no so mais os depsitos da estabilidade ltima, passando

    agora pela decomposio e fragmentao;

    c) a do processo de significao, cujo sentido surge da corroso dos laos de

    experincias de sujeitos e objetos.

    Do aprofundamento da trplice relao acima exposta, ocorre a morte do sujeito

    clssico e o surgimento da forma alegrica do texto, passando a no existir mais a

    independncia entre sujeito e objeto; como tal tem-se a inexistncia de sentido prprio. A

    relao de dependncia entre sujeito e objeto propicia com que a alegoria (ela prpria) seja

    a fragmentao do real e a renncia da aparncia falsa de totalidade. Assim, a alegoria

    possibilita a produo abundante de sentidos sobre as runas (o passado) de um edifcio do

    qual no sabemos se ele existiu por inteiro ou se ele foi uma construo.12

    Mesmo com a multiplicidade de significaes que podem ser produzidas pela alegoria,ela revela uma conscincia de momento da leitura. Ela ajuda a compreender a

    temporalidade, portanto, a transitrio e a fragilidade do presente.

    c) Narrativa como esttica

    A ansiedade do mundo ocidental em perceber operacionalizados os princpios da

    modernidade (na sociedade, no Estado, no poder, nas artes...) levou-o a uma interpretao

    unilateral da prpria modernidade como sendo algo monoltico, perfeito e orientado para o

    futuro. Longe disso, a origem da modernidade assenta-se exatamente no contrrio dessa

    interpretao. Ela sugere a multiplicidade nas diferenas prticas discursivas que

    testemunham o conflito de experincias sociais, cientficas, polticas percebidas, sobretudo,

    nas formas artsticas.13

    Somente muito recentemente, com a crtica acirrada aos parmetros da modernidade,

    percebeu-se com mais ateno que os fundadores da modernidade, sculo XVIII e XIX,

    buscam-se o pluralismo, a transitoriedade e a negao da autoridade constituda. O desafioda crtica aos modernos , portanto, duplo: primeiramente reconhecer a crise de identidade

    no a extino de seus princpios e retornar crtica razo instrumental dentro da

    12 Uma leitura interessante nesse aspecto a de VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito etrajdia na Grcia Antiga. So Paulo: Brasiliense, 1988. Tambm WARNIER, Jean-Pierre. A mundializaoda cultura. Bauru: Edusc, 2000.13 Ver FERRY, Luc. Homo Aestheticus: a inveno do gosto na era da democracia. So Paulo: Ensaios, 1994.

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  • 8/7/2019 Texto sobre Hist+ria, Historiografia Contempor+nea, Teorias da Hist+ria

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    atuao experincia do capitalismo avanado. O segundo desafio, ao nosso ver, deve tentar

    resgatar os impulsos utpicos do esclarecimento e buscar a complementaridade da

    modernidade.

    Em outras palavras isso significa dizer que atravs do desafio lanado, os discursos da

    cincia, da filosofia, da poltica e etc., na crise da modernidade no expressam apenas

    desintegrao e o sentimento de dificuldade em poder conciliar a racionalidade com os

    valores do passado. A interrogao ir bem mais alm, pois a esttica da modernidade no

    pode prescindir da leitura de metforas cifradas de vivncias e do conflito que a prpria

    experincia de gerao da condio moderna.

    Parece que so as metforas e os conflitos as chaves de compreenso da esttica na

    narrativa moderna. No so apenas os mega projetos polticos da modernidade que podem

    apontar para um novo mundo. Tambm a narrativa de fragmentos pode garantir arepresentao da capacidade de criao e de resignificao das experincias. Portanto, a

    questo metodolgica no est somente expressa nos textos, mas sim na possibilidade de

    leitura e releitura dos mesmos.

    Esto a alguns argumentos, entre tantos outros, sobre a atualidade da esttica no texto

    histrico. Sem dvida, a possibilidade de dilogo nesse ponto tensa e conflituosa.

    Certamente, isso ocorre por conta da mentalidade moderna moldada na cultura ocidental

    que considerou apenas a experincia da uniformidade moderna quando conjugou natureza,

    sociedade e narrativa.

    Nessa conjugao o espao, o tempo e o movimento dos modernos ficaram restritos

    aos (sub)textos estranhos a razo moderna. O redescobrimento do estranho na razo

    moderna motivou o alargamento do repertrio esttico dos textos e de ampliao de

    mecanismos metodolgicos capazes de caracterizar e compreender o moderno.

    Esses aspectos ajudam-nos a compreender a aproximao entre histria e literatura e a

    valorizao crescente da narrativa como fator de sustentao do texto histrico. O

    reconhecimento desse ponto de vista atraiu o discurso histrico contemporneo para um

    repertrio lingstico de ruptura da histria naturalizada com as cincias positivas.

    Estabelecem-se novas relaes entre sociedade e histria, especialmente (a) pela

    busca da dinmica multitemporal do tempo como expresso do rompimento com a

    totalidade e com a unidade eterna, diante da desintegrao das promessas de modernidade;

    22

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    (b) pela busca da transitoriedade, cujos aspectos centrais so a novidade e efmero, a

    inveno e a subverso dos sentidos tradicionais; (c) pela negao da modernidade e do

    otimismo, que so valores expressos na linearidade no tempo, no progresso e na cincia

    como fatores de redeno da humanidade e (d) pela negao da autoridade da tradio

    historiogrfica com seu ideal universal.

    As formas de oposio tradio da mentalidade moderna buscam o ertico, a

    imaginao, o cotidiano, o mgico atravs da linguagem primeira capaz de resgatar a

    experincia e o tempo anterior histria cincia14. Cria-se assim um texto inundado pelo

    estranho, pela ironia, pelo transitrio, pelo corpo etc., envolto pela linguagem

    descomprometida pelo regramento cientfico moderno que, entre outras coisas, escondia a

    cotidianidade e a tragicidade no passado. Tais textos exercem atualmente um fascnio

    mgico sobre o leitor. Conseguem possibilitar, por vezes, uma capacidade de intermediaocomunicativa entre os processos civilizadores e a subjetividade imaginativa do leitor.

    Contudo, por um lado, preciso notar que tais caractersticas em textos histricos so

    por vezes criticadas como sendo ps-modernos ou anti-modernos15 pelo seu dficit na

    produo de identidade. Claro est que a produo de identidade sofreu modificaes

    profundas ao longo da prpria constituio da modernidade.

    Assim, os defensores da modernidade jamais apostaram em uma nica identidade e

    uma verdade, mas, sobretudo, na multiplicidade de discursos concorrentes. Por outro lado,

    deixar fluir a insero esttica no deve significar a sua autonomia completa, pois isso

    tambm a afastaria do cotidiano das experincias, do social e do histrico. Se isso ocorrer

    teramos a ornamentao do texto sobreposto ao histrico e, consequentemente, nada mais

    do que um novo jogo de hostilizao ao passado, onde predominariam o gozo das formas

    do esteticismo tcnico e superficial. Em outras palavras, teramos apenas um paraso

    esttico de alienao e de escapismo.

    6. Hermenutica e representao

    14 As teorizaes sobre o ps-modernismo, vistas a partir de vrias facetas do debate podem seracompanhadas em HUTCHEON, Linda. Potica do ps-modernismo: histria, teoria, fico. Rio de Janeiro:Imago ed., 1991.15 Fizemos essa crtica em Vinho velho em pipa nova: o ps-moderno e o fim da histria. Passo Fundo:Ediupf, 1997. Conferir a posio de diversos autores em LECHTE, John. 50 pensadores contemporneosessenciais. Do estruturalismo ps-modernidade. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.

    23

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    Hermenutica significa, primeiramente, o processo metodolgico da interpretao

    com o objetivo de compreender o significado quando um texto no entendido de

    imediato. Ela foi inicialmente arte da interpretao dos textos bblicos e jurdicos de

    forma normativa e ocasional. Alm dessa hermenutica normativa, Gadamer17 examina,

    sobretudo, na filosofia da hermenutica a possibilidade do compreender o seu significado

    numa espcie de teoria do conhecimento das cincias humanas, separando-as de

    explicaes das cincias naturais.

    De ambas as variantes da hermenutica possvel diferenciar o compreender histrico.

    A compreenso histrica ocorre no apenas no texto ou nas fontes, mas em toda ao

    humana do passado capaz de ser reconstruda dos documentos e das fontes orais. Nesse

    sentido, os restos de expresso das aes humanas no passado, contidos nas fontes recebem

    interpretaes compreensveis a partir de tradies, representaes de valor, significaes ede perspectivas de futuro.

    A compreenso histrica sempre ter ento presente a experincia atual de vida do

    historiador e, portanto, de uma pr-compreenso como ponto de partida. Entretanto, para

    que as aes do passado no estejam submetidas somente ao presente, preciso lanar mo

    de uma srie de regras e operaes, com as quais o contexto das aes e suas relaes

    possam ser reconstrudos e objetivados e assim possam ter um mnimo de universalidade,

    mesmo que precria18 e, diga-se de passagem, ela ser sempre precria.

    Essas regras e operaes possibilitam corrigir e, ao mesmo tempo, ampliar o

    horizonte de compreenso original dos intrpretes e separar deste compreender, aquilo que

    foi atribudo posteriormente pelo historiador sobre as intenes da prxis humana no

    passado. Requer-se assim uma interpretao crtica, tal como propem as cincias humanas

    para que se chegue ao sentido mais prximo possvel da veracidade e no nos chegue

    mascarado ou deformado por ideologias.19

    Entretanto, iluso buscar o conhecimento histrico a partir de um modelo

    objetivista. Isso ocorre basicamente por duas razes: a) a compreenso entendida como

    17 Um bom exemplo para esse aspecto so as obras de VICO, Gianbattista. A cincia nova. Rio de Janeiro:Record, 1999 e DILTHEY, W. Aufbau der Geschichtlichen Welt in den Geisteswissenchaften. (GesammelteSchriften. Stuttgart: 1958).18 DOSSE, Franois. Paul Ricoeur revoluciona a escrita da histria. In: Rev. Margem. Faculdade de CinciasSociais, PUCRS, n. 5, 1996. p. 9-30. Tambm em DOSSE, Franois (2001). Op.cit. p. 71-100.19 GADAMER, H. G. Problemas epistemolgicos das cincias humanas. In: FRUCHON, Pierre (org.). Oproblerma da conscincia histrica. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 19.

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    um projeto lanado, ou seja, o historiador que se lana para alm do tempo, numa espcie

    de busca do significado antecipado, b) por que vivenciamos o tempo histrico, no qual o

    passado nos interpela constantemente. Nas duas razes apontadas, o passado , ao mesmo

    tempo, saber histrico e ser histrico.

    Evidentemente, que a essa altura importante entender o quadro complexo em

    formao, especialmente no sentido do pertenciamento a uma tradio e ao estabelecimento

    do crculo hermenutico, segundo Gadamer, cuja discusso vem de Schleiermacher. Trata-

    se aqui de compreender o valor intrnseco dos argumentos de um autor, cujo texto pertence,

    em primeiro lugar, ao conjunto de obras e, em segundo, ao gnero historiogrfico de onde

    provm. Sua compreenso s acontecer se entendermos o texto no momento de criao,

    inserido na totalidade experimentada pelo seu autor.

    Portanto, o objetivo daquele que interpreta se fazer mediador entre o texto e atotalidade nela implcita e, nesse sentido, a hermenutica procura restituir e restabelecer o

    acordo.20

    No seria exagero afirmar aqui que a prpria busca desse acordo a produtividade do

    processo histrico, pois estamos lidando com a possibilidade da distncia temporal quando

    nos remetemos ao passado (recuo no tempo). Esse remeter ao passado implica na

    produtividade de novas temporalidades a partir de um presente indefinido. O acordo

    facilmente rompido, pois recuamos no tempo com preconceitos. Esses preconceitos so

    vistos aqui no como particulares, mas como diretrizes da compreenso.21 Novamente, para

    que a significao do passado no seja perspectivada cegamente pelos preconceitos,

    preciso uma crtica hermenutica.

    A tarefa crtica da hermenutica deve distinguir os preconceitos que cegam, dos

    preconceitos que esclarecem. Obviamente, o objetivismo reducionista no teria mais nada a

    dizer frente esse impasse. Seria, portanto, necessrio ir a radicalidade dos pontos em

    questo.

    A crtica hermenutica deve denunciar o preconceito, surpreendendo-o de sua

    possvel validade. A reflexo de denncias dos preconceitos formada pela interrogao

    provocativa. O resultado disso o retorno renovado com uma tradio que se encontra na

    20 GADAMER, H. G. In: FRUCHON, P. Op. cit. p. 59.21 Ver SOUZA SANTOS, Boaventura de. Introduo a uma cincia ps-moderna. Rio de Janeiro: Graal,1989. Ao nvel das preocupaes metodolgicas ver CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construesda realidade social. Bauru: Edusc, 2001.

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    origem deles, podendo esse encontro ser a constatao da alteridade. Nesse sentido, toda

    possibilidade de compreenso comea com algo que nos provoca. Estabelece-se ento uma

    situao dialgica de mediao entre o presente e passado. Evidentemente, a crise dos

    fundamentos da histria como disciplina com plausibilidade levou a discusso para campos

    polarizados.

    De um lado, esto aqueles que se mantm definidos por uma reconstituio estrutural

    do passado. Do outro lado, encontramo-nos de frente com aqueles que encerram o debate

    no nvel da racionalidade universal, deslocando-se para a reconstituio das representaes

    do passado. Essa bifurcao do debate caracteriza-se, por vezes, pela estigmatizao e em

    uma luta entre o bem e o mal. Nesse caso, ambos os lados fazem carecem e fecham-se para

    as possibilidades de dilogo, apesar de fazerem parte da mesma moeda.

    A relao dialgica a maneira pela qual se revela a conscincia da produtividadehistrica na compreenso hermenutica. Sem dvida, o aparecimento da conscincia

    histrica talvez o aspecto mais importante da constituio da histria como disciplina

    moderna. A conscincia histrica, alm de ser o parmetro de compreenso fundamental da

    historicidade do passado, tambm a possibilidade do reconhecimento intelectual

    contemporneo do poder suportar e do ter que suportar o mundo nas suas mais

    diferenciadas significaes.

    A conscincia histrica, com esse qualitativo, mostra-nos que estar no mundo ainda

    no o parmetro da chave e muito menos da fechadura, de que a partir da histria

    teramos o conhecimento suficientemente infalvel e ideal para a revoluo dos modos de

    ser, das sensibilidades e, sobretudo, das sociabilidades.

    7. Histria e representao

    A rigor, todas as sociedades produzem suas representaes, com as quais

    reconstituem do passado, imagens, eventos, fatos, cronologias como aquilo que deveriamser preservados para as futuras geraes. Evidenciamos nos itens anteriores que a histria

    no cumpre apenas uma funo cognitiva de construo dos conhecimentos. A histria,

    atravs da perspectiva pragmtica, tambm adquire socialmente formas de identificao

    coletiva, de explicao das origens e de legitimao da hierarquia estabelecida.

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    Com esse aspecto no estamos negando a legitimidade da histria como disciplina,

    mas afirmando que ela ultrapassa o nvel do relato e daquilo que representa em termos de

    contedos explicitados.22 Mas, por outra instncia, o conhecimento produzido constitui um

    capital simblico23 da sociedade que a produz, vinculado a um determinado tempo, espao

    e movimento.

    A representao, enquanto objeto da histria, tem sua existncia em abordagens e

    posicionamentos plurais. Essa compreenso permite pensar a histria como uma forma de

    representao que seleciona elementos do passado, objetivando-os sob formas discursivas e

    simblicas, que, por vezes, passa a ser compreendido como forma legtima de

    conhecimento da realidade social.

    Por outro lado, esse conhecimento passa a ser um lugar antropolgico-existencial a

    partir do qual se estabelecem relaes com o mundo e com os outros, projetando-se sonhose utopias.

    Nesse sentido, o campo de atuao historiogrfica insere-se na constituio das

    representaes memorativas que, fundadas na concretude do real, na organizao e na

    estrutura social, so percebidas como espaos de manifestao de lutas sociais e do poder.

    As memrias historiogrficas, ento, podem ser tomadas como produtoras de representao

    capazes, pela sua recorrncia, de levar a fazer ver e a fazer crer, reforando os laos

    identitrios e legitimando prticas de excluso e/ou de incluso.24

    Nessa perspectiva possvel lanar mo de uma srie de noes e conceitos

    relativos ao campo da memria. Le Goff discute a problemtica dos usos da memria

    coletiva na luta das foras sociais pelo poder, apontando, dessa forma, para os usos que se

    fazem da memria.25

    Hobsbawm, ao indicar que a inveno de tradies utiliza a histria como a

    legitimadora das aes de determinados grupos e como fundamento de coeso social. 26

    Halbwachs destaca a importncia da memria, a qual considera a partir de seus suportes

    22 Sobre os usos da histria, ver FERRO, M. As falsificaes da histria. 1981; LE GOFF, J. Memria. In:Enciclopdis Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da moeda, 1984. p.423-483.23 BOURDIEU, P. O poder simblico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro, 1989 e CERTEAU, Michel de. Ainveno do cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1999. Ver tambm SARTORI, Giovanni. Homo videns: televiso eps-pensamento. Bauru: Edusc, 2001.24 BOURDIEU, P. O poder simblico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro, 1989 e CERTEAU, Michel de. Ainveno do cotidiano. Petrpolis: Vozes, 1999.25 LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Campinas: ed. da Unicamp, 1990.26 HOBSBAWM, E. J.; RANGER, T. A inveno das tradies. So Paulo: Paz e Terra, 1984.

    27

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    sociais, das formas como ela socialmente construda e como se estabelecem os vnculos

    entre aqueles e o lugar social de quem os produz. O autor formula a noo de

    pertencimento a um grupo social com o mecanismo por meio do qual os indivduos so

    capazes de adquirir, localizar e evocar as suas memrias.27

    J Fentress trabalha sob a perspectiva de que a memria histria e

    simultaneamente numa fora da histria; um meio de unificao e legitimao, mas

    tambm um fator de diviso e falsificao.28 Connerton analisa os rituais performticos da

    transmisso de memrias com atos de transferncia que tornam possvel recordar em

    conjunto, como mecanismos constitutivos da perpetuao de lembranas por uma dada

    sociedade, entre os quais situa as cerimnias comemorativas.29

    Pierre Nora trabalha com a noo de lugares da memria, a qual permite inferir que

    o conhecimento histrico ainda memria, porque sacraliza, comemora e celebra. Talnoo remete questo da identidade coletiva que se expressa por um sentimento de

    referncia grupal que define os grupos, na busca de reconhecimento e no movimento de

    resgate de signos de pertencimento local.30

    claro ao descrever, registrar e narrar acontecimentos considerados dignos de

    memorizao, situando-os quanto ao tempo, atos e sujeitos, constitui-se numa cronologia

    referencial e atingindo-se a fronteira onde a memria se torna histria. 31 exatamente com

    essa qualificao que trabalha o historiador das memrias historiogrficas, dando-lhe uma

    dimenso de representaes em textos histricos.

    8. Limites e possibilidades do conhecimento histrico

    Em tese, a tentativa de compreenso dos dilemas e noutra instncia os limites e

    possibilidades da cultura historiogrfica contempornea situa-se num conjunto de aspectos

    que podemos reunir em dois nveis diferentes, mas interligados.

    27 HALBWACHS, M. A memria coletiva. So Paulo: Vrtice, 1990. Um dos fundamentos deste debate estna raiz do conceito de cultura, ver: CUCHE, Denys. A noo de cultura nas cincias sociais . Bauru: Edusc,1999.28 FRENTESS, J.; WICKHAN, C. Memria social. Lisboa: Teorena, 1994.29 CONNERTON, P. Como as sociedades recordam. Portugal: 1999.30 D LESSIO, M. M. Memria: leitura de M. Halbwachs e P. Nora. In: Rev. Brasileira de Histria. SoPaulo, n 25-26, set. 92 /ago.93. Uma discusso recente est em KELLNER, Douglas. A cultura da mdia.Bauru: Edusc, 2001 e em MATHEWS, Gordon. Cultura global e identidade individual. Bauru: Edusc, 2002.31 LE GOFF, J. A histria nova. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 18.

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    O primeiro nvel o da situao da histria como disciplina com plausibilidade

    cientfica. Argumentvamos anteriormente que a produo do conhecimento histrico se

    deslocou das cincias fsico-biolgicas. Esta separao gerou para a histria um clima de

    crise dos seus critrios racionais e cientficos e, como conseqncia, instaurou na

    comunidade cientfica uma espcie de insegurana terico-metodolgica. Prprio dessa

    insegurana terica o fantasma da intransparncia na operacionalizao de conceitos, de

    categorias e teorias atravs da pesquisa e na possibilidade de releitura das fontes. Tambm

    nesse primeiro nvel temos conjugado uma valorizao cada vez maior do tempo presente

    no condicionamento dos interesses pelo conhecimento histrico. O presentismo assume a

    funo predominante sobre o passado, ou melhor, sobre a construo dos sistemas de

    referncia que por sua vez permitem dar sentido ao passado.

    Esta mudana nas perspectivas orientadoras sobre o passado resulta na passagem doparadigma analtico, totalizante, iluminista e cientfico para as tendncias fortemente

    influenciadas pela hermenutica. Nesse caso, a pesquisa se volta para a descrio densa de

    fragmentos, do micro e das experincias cotidianas. Tal processo poder-se-ia denominar

    porantropologizao da histria. Esse processo passvel de compreenso na medida que

    no paradigma analtico, a histria percebida como coero e a questo de fundo gira sobre

    a capacidade explicativa de sistemas complexos e estruturais, sejam eles econmicos ou

    burocrticos. Enquanto nas tendncias hermenuticas, a histria percebida como

    resistncia aos processos de modernizao e a questo de fundo gira sobre a capacidade de

    compreenso de especificidades, de aes e de liberdades, inseridas em tradies culturais.

    nesse momento que a histria perde dois dos seus pilares mestres de sustentao: o

    tempo linear e a concepo do progresso cumulativo. Agora, tornou-se mais importante do

    que dizero qu mudou, mas entendero por qu da mudana. O o qu mudou, a anlise de

    crtica historiogrfica de obras em questo j deram conta. O por qu da mudana vincula-

    se ao forte teor presentista das experincias reconstrudas do passado e ainda merecem

    ateno. Porm, destacamos um conjunto de quatro aspectos sintomticos agregados ao

    presentismo: i) a falncia dos paradigmas tradicionais da histria que se assentavam quase

    exclusivamente na concepo de progresso e na linearidade do tempo; ii) os paradigmas

    tradicionais pressupunham as revolues otimistas crescentes. Em outras palavras, tais

    concepes tinham embutidas orientaes de redeno das sociedades e da humanidade,

    29

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    arrancando-a da servido do passado. O sentido teleolgico dessas teorias, a sua no

    realizao e, sobretudo, o avano descomunal do vetor instrumental causou uma profunda

    experincia de frustrao em relao ao futuro. Na medida em que o futuro frustra, o

    presente e o passado passam a ser o ncleo de ateno. O vetor retrospectivo da razo

    iluminista torna-se o aval de retorno idealizado ao passado. Em casos radicais, esse aspecto

    pode significar a fuga do presente/futuro frustrado para o passado de forma ideal e mesmo

    romntica; iii) metodologicamente, os conceitos estruturais pela nfase atual ao

    fragmento no conseguem mais captar as microrelaes do cotidiano ntimo das pessoas.

    Podemos afirmar que est havendo, portanto, a regraduao da rede metodolgica para

    poder capturar os gestos significativos do passado na reconstituio das histrias de vida.

    Aqueles e aquilo que fora higienizado pelos modelos analticos da razo iluminista so

    agora catapultados como sombras para o centro do palco. O pessimismo em relao aofuturo sombreado ainda mais por aquilo que poderamos chamar de formas de resistncia.

    O ideal no futuro passa ao passado como posio cultural ante ao avano dos processos de

    modernizao, institudos a partir do iluminismo; iv) tematicamente podemos observar um

    certo pessimismo em relao ao papel social do historiador. Ou seja, j no se percebe mais

    uma teoria subjacente da mudana social na produo do conhecimento histrico. Percebe-

    se, isto sim, um retorno s temticas micro perspectivadas como formas de resistncia que,

    por vezes, esto traduzidas em cortes quase libertrios e anrquicos de indivduos ou grupos

    frente histria estrutural e modernizadora.

    Essas temticas, genericamente, esto presentes em trs vnculos: a micro perspectiva

    dos temas de interesse, o cotidiano ntimo e a relao pblico x privado. Esses trs

    vnculos, por sua vez, podem ser cruzados com aspectos antropolgicos - a questo de

    gnero, por exemplo -, aspectos institucionais presdios, fbricas, etc -, ou ainda com

    aspectos culturais religiosidades heterodoxas, as fraquezas humanas, as representaes

    simblicas etc. Evidente est que ainda mais fcil perceber tais temticas e seus

    cruzamentos nas tendncias da nova histria, mas elas tambm aparecem correlatas ao

    marxismo, na tradio Max Weber e, diga-se de passagem, muito bem institucionalizadas

    nos programas de ps-graduao

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    O segundo nvel para a compreenso dos dilemas est relacionado com o fato de

    que essa situao descrita gera trs variveis novas: ao nvel da histria, ao nvel do social

    e ao nvel do historiador. Vejamos como estas variveis se apresentam assim:

    i) ao nvel da histria temos ento uma profunda mudana nos pontos de referncia e de

    apoio da histria como disciplina. At meados dos anos de 1970 tnhamos o debate

    canalizado sobre a dependncia, da autonomia estrutural e cultural. Predominava ainda uma

    viso rural-urbana da histria sob a perspectiva da histria da sociedade brasileira. Nesse

    debate estavam agregados fortes caractersticas de viso otimista e coletiva de histria,

    perpassada pelo critrio do progresso material e poltico da modernizao. A mudana

    consolida-se nos anos 1980 com as novas tendncias perpassadas, desta vez, pela viso

    cultural, pelo antropolgico e individual. Rompe-se a relao rural-urbana, entrando em

    nfase a viso social urbana na perspectiva da crtica modernizao e,metodologicamente, nas posturas da histria social e transdisciplinar. Alis, o cotejamento

    interdisciplinar da modernidade cede lugar ao multi e pluri quando so rompidas as

    fronteiras de identidade das diversas disciplinas sociais. Parece-nos atravs da anlise dos

    temas propostos, que neste processo de mudana houve um descuido dos historiadores com

    as questes filosficas da histria, as quais fundamentam as prprias orientaes tericas.

    ii) Ao nvel social, o conhecimento produzido por essa nova historiografia acentua a crise e

    a falta de perspectivas em relao aos projetos magnos do sculo XIX. Na tnica do quando

    o futuro frustra, o passado reconforta, a historiografia, centrada no individual, no regional,

    no tnico etc,. possui um potencial que possibilita o ressurgimento de novos mitos, tais

    como: os mitos tnicos mesclados com relaes econmicas nos separatismos; os mitos

    geogrficos com os novos espaos econmicos do consumo; os mitos temporais com a

    determinao de pocas; os mitos polticos com a idia da nao cultural e os biogrficos

    com o novo individualismo.

    Ainda ao nvel social podemos perceber uma aproximao entre a histria e a

    literatura, tematizada a partir de experincias cotidianas. As janelas do cotidiano so

    lastreadas em funo da fuga do pblico ao privado, o fechamento do indivduo em si e os

    temas religiosos msticos num evidente interesse pela filosofia da vida em oposio ao

    primado de generalizaes e das leis sociais. Adianta-se desta forma a precariedade do

    universal e da racionalidade instrumental. A multiplicidade representa um obstculo para as

    31

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    teorias uniformizantes e, dessa forma, a unificao de especificidades culturais passa a ser

    problemtica, pois o contedo terico da individualidade est circunscrito pelas esperas da

    experincia social, dotada de coerncia e identidade, situadas nos limites das esferas

    institucionais, rituais e simblicas.

    iii) Ao nvel do historiador, a histria e o social em crise, na produo do conhecimento e,

    principalmente, nas funes didticas desse conhecimento se apresenta com trs

    caractersticas bsicas: (a) o conhecimento histrico produzido e sua intermediao didtica

    conseguem apenas alcanar uma postura crtica conformista da sociedade, pois, (b) o

    simples retorno ao indivduo e ao sujeito e seu fechamento em si quebra qualquer

    possibilidade de crtica estrutural, por exemplo, dos processos de dominao e explorao;

    (c) academicamente, o conhecimento historiogrfico, pela perda da teoria subjacente de

    mudana social, tornar-se-ia um discurso do politicamente correto.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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