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    LITERATURA E SOCIEDADE EM GOETHE: UMA ANLISE DA OBRA OS

    ANOS DO APRENDIZADO DE WILHELM MEISTER

    Rafael R. Massuia (Unesp/Araraquara)

    O marxismo, enquanto viso de mundo embasada numa perspectiva ampla e

    autenticamente humanista, forneceu-nos condies para a compreenso das distintas

    formaes sociais; mas tambm tornou possvel a justa e correta compreenso dos

    variados tipos de relaes e objetivaes humanas, dentre as quais o trabalho acategoria fundante e responsvel pelo processo de hominizao do homem. Do sistema

    de objetivaes humanas, porm, se destacam algumas formas especficas, que se

    consolidaram historicamente a partir do salto inicial dado pelo trabalho humano, se

    destacando entre as demais objetivaes: nomeadamente a cincia e a arte.

    Gyrgy Lukcs, dando continuidade rica tradio iniciada por Karl Marx e

    Friedrich Engels, e ainda acrescida pela contribuio de Lnin, Trotsky, Rosa, entre

    outros, gera uma certa dificuldade para ser classificado em uma ou noutra rea deatuao. Sendo filsofo de formao, o pensador hngaro escreveu diversas obras

    sobre filosofia, poltica, antropologia, economia poltica, mas tambm o que nos

    interessar mais diretamente sobre arte, ao que se dedicou primariamente ao estudo do

    fenmeno literrio as chamadas belles-letres.

    Ao longo da histria, seguindo as indicaes formuladas por Lukcs na sua A

    peculiaridade do esttico (1963), pode-se observar o aparecimento in status nascendi da

    arte, ainda vinculada com as formas de manifestao mgicas. Com o desenrolar desse

    processo histrico, a arte foi se distanciando desse trao inicial, e se desenvolvimento

    enquanto uma forma prpria, peculiar (ou especfica, ou ainda especializada) de

    expresso humana.

    A religio, no entanto, outra forma que surgira da mesma fonte que brotara a

    arte, era hegemnica sobre sua irm, tendo imprimido suas posies a ela, de modo que

    no se pode pensar a arte antiga e medieval sem se considerar a grande influncia que o

    pensamento religioso exercera sobre ela. Somente com o advento do Renascimento, e da

    defesa do homem como centro do universo dele decorrente a arte conseguiria se

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    desvincilhar do constrangimento religioso, e criaria condies para um desabrochar

    mais pleno. Essa luta entre as esferas artstica e religiosa, ainda que tenha seintensificado em favor da primeira aps esse perodo, ainda no se sagrou vencedora;

    ainda hoje possvel perceber a influncia duradoura de elementos religiosos na arte,

    sobretudo com o apelo ao transcendente em oposio ao imanente (simblico), que

    Lukcs (1982b) aponta como caracterstica prpria da arte.

    Numa perspectiva crtica, tomada em sua acepo vinculada ao Idealismo

    Alemo, Lukcs formularia suas posies partindo dos grandes mestres do pensamento,

    superando-os dialeticamente, aproveitando os genunos avanos no campo dopensamento. Nesse sentido, se Aristteles coube a introduo e defesa da noo de

    mimesis na arte literria1, foi Lukcs que coube a sua definitiva sistematizao e

    aplicao na anlise das grandes obras literrias j numa perspectiva da dialtica

    materialista-histrica , da pica ao drama, passando ainda pela lrica.2 Nos apoiaremos

    numa teoria da arte enquanto representao mimtica antropomorfizada da

    essencialidade social de um dado perodo histrico; para tal, portanto, se faz necessria

    anlise das condies scio-histricas nas quais as obras surgem, ainda que nisso no seencerre, pois de nada isso valeria se no fossem levados em conta as caractersticas que

    imanam da obra singularmente pensada.

    Portanto, a existncia e a essncia, a gnese e a eficcia da literatura spodem ser compreendidas e explicadas no quadro histrico geral detodo o sistema. A gnese e o desenvolvimento da literatura so partedo processo histrico geral da sociedade. A essncia e o valor estticodas obras litrrias, bem como a influncia exercida por elas,constituem parte daquele processo social geral e unitrio mediante o

    qual o homem se apropria do mundo por meio de sua conscincia.(LUKCS, 2009, p. 89)

    1 A epopeia, a tragdia, assim como a poesia ditirmica e a maior parte da aultica e da citarstica,todas so, em geral, imitaes (ARISTTELES. 2008, p. 103). As trs ltimas formas de poesiamencionadas, respectivamente, poesias em homenagem Baco, poemas acompanhados porinstrumentos de corda e, por ltimo, pela flauta, podem ser compreendidos como pertencentes aognero lrico.

    2 "Quando Hegel chama o romance de "epopeia burguesa", pe uma questo que , ao mesmo tempo,esttica e histrica: ele considera o romance como o gnero literrio que, na poca burguesa,

    corresponde epopeia. O romance, por um lado, tem as caractersticas estticas gerais da grandenarrativa pica; e, por outro, sofre as modificaes trazidas pela poca burguesa, o que assegura suaoriginalidade." (LUKCS, 2009, p. 195)

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    A relevncia e importncia desse mtodo de anlise ainda subestimada,

    sobretudo em funo do eclipse que a razo dialtica vem sofrendo desde a segundametade do sculo XX. Nos valendo dessa proposta terica lukacsiana, portanto,

    tentaremos empreender uma anlise da obra Os anos de aprendizado de Wilhelm

    Meister, de Goethe, procurando realizar algumas reflexes e consideraes suscitadas

    atravs de sua leitura. Nos valeremos, ainda, de importantes indicaes do ensaio de

    Lukcs dedicado a essa obra, onde so lanados e discutidos os seus principais aspectos

    (LUKCS, 2006).

    1.

    A obra, em sua verso definitiva, foi escrita entre 1793-95, ainda que uma

    primeira tentativa chegue a datar de 1977, ainda com o ttulo A misso teatral de

    Wilhelm Mesiter, que posteriormente seria abandonado. Com sua redao final tendo se

    dado no perodo de transio entre os sculos XVIII e XIX, a obra ainda seria

    testemunha de um grande marco transitrio, pois se localiza num perodo aps

    Revoluo Francesa, e Goethe acompanhou privilegiadamente os embates entre a velha

    e a nova ordem social, tambm em funo do relativo atraso da Alemanha, onde os

    reflexos da revoluo se deram sobretudo no campo do pensamento, em detrimento de

    alguma possibilidade de progresso real. Essa concepo desabilita o argumento lugar-

    comum dos detratores do pensamento marxista, pois j em Marx percebe-se uma

    ateno dada a esse carter dialtico do desenvolvimento espiritual em relao ao

    material:

    Na arte, sabido que determinadas pocas de florescimento noguardam nenhuma relao com o desenvolvimento geral da sociedade,nem, portanto, com o da base material, que , por assim dizer, aossatura de sua organizao. [] Se esse o caso na relao dosdiferentes gneros artsticos no domnio da arte, no surpreende queseja tambm o caso na relao do domnio da arte como um todo como desenvolvimento geral da sociedade. A dificuldade consistesimplesmente na compreenso geral dessas contradies. To logo soespecificadas, so explicadas. (MARX. 2011, p. 62)

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    Somando-se a riqueza do momento histrico global imensa capacidade do

    autor, o livro Os anos de aprendizado... nos apresenta um amplo e dinmico registro dasprincipais foras scio-histricas atuantes no perodo, assim como, no se deixando

    iludir pelo fervor do momento, nos fornece uma viso predominantemente crtica do

    incipiente projeto emancipatrio burgus.

    Ao perseguir o destino individual do protagonista, buscando traar os traos

    gerais do seu desenvolvimento em oposio s condies sociais do seu tempo, ou seja,

    perseguindo uma maneira de figurar de maneira realista a realidade humana do seu

    perodo, Goethe chega a fundar um novo tipo de romance, que ficaria conhecido comoBildungsroman, ou romance de formao. O grande artista, ao tentar incorporar o novo

    que brota no seio da vida humana, por vezes se v forado a ampliar os critrios de

    figurao artstica:

    Toda grande arte realista. Desde Homero. E isto porque ela reflete arealidade; este o critrio irrecusvel de todo grande perodo artstico,ainda que, naturalmente, variem infinitamente os meios de expresso.(ABENDROTH et al., 1969, p. 184)

    Cabe lembrar que, reclamando a concepo de realismo artstico, utilizada pelos

    pais do comunismo, Lukcs nos fornece por um lado uma sistematizao da natureza do

    fato esttico, e por outro lado o critrio para se distinguir as grandes obras de arte das

    obras de ocasio, ou de importncia reduzida. A arte, como j lembramos acima,

    entendida como resultado de um processo de mimetizao da realidade humana, e uma

    obra de arte ser tanto mais estimada quanto maior for a profundidade da evocao por

    ela realizada dos problemas humanos essenciais do perodo em que afloram. Nosdizeres de Lukcs:

    Na medida em que for verdadeiramente profunda e realista, ela podefornecer, mesmo ao mais profundo conhecedor das relaes sociais,experincias vividas e noes inteiramente novas, inesperadas eimportantssimas. Sobre essa possibilidade, Marx insistiurepetidamente a propsito de Balzac e Shakespeare, e Lenin de Tolstoie Gorki. (LUKCS, 2010, p. 80)

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    A primeira inteno de Goethe, que objetivava colocar a arte, especificamente a

    arte dramtica, em oposio ao mundo burgus o que, no por acaso, consiste natemtica da primeira tentativa de redao da obra , sendo vista como a nica sada

    para o seu prosasmo, superada no seu projeto definitivo. Superando essa soluo

    idealista, em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister Goethe nos fornece uma

    anlise realista e profunda sobre a complexa relao entre indivduo e sociedade,

    utilizando-se dos meios prprios da literatura, ou seja atravs da figurao de caracteres

    tpicos em situaes tpicas.3

    Em finais do sculo XVIII e incio do sculo XIX no era possvel falar-se deuma sociedade alem, pois o que havia de fato era uma grande quantidade de

    principados mais ou menos independentes entre si. Esses principados, ou estados

    germnicos, que estavam na casa das centenas, estavam divididos pela disputa poltica

    travada entre a dinastia austraca dos Habsburgo e o reino da Prssia. No momento da

    efetiva unificao do Estado alemo, com o fim da Guerra Franco-Prussiana, em 1871,

    totalizavam 39 estados germnicos, que seriam dissolvidos em favor da criao do

    Imprio Alemo. Nesse contexto complexo e acidentado, Lukcs retoma a formulaoengelsiana sobre as particularidades do desenvolvimento do capitalismo no caso

    alemo:

    Tentaremos dar uma formulao concreta questo. Engels uma vezcomparou o desenvolvimento da Alemanha ao da Frana, do incio daliquidao do feudalismo emergncia da unidade nacional e dademocracia burguesa. Ele chegou a concluso de que, naquela poca,

    3 Lukcs retoma algumas consideraes de Engels, elaboradas sobretudo em duas cartas. Na primeira,

    endereada a Minna Kautski, conceitua o personagem tpico: [] cada personagem um prottipo,mas, ao mesmo tempo, tem uma personalidade nitidamente definida um este, como diria o velhoHegel, e assim que deve ser. [] Mas eu sou de opinio que a tendncia deve surgir comnaturalidade das situaes e da ao, sem que seja necessria a sua exposio especial; e penso que oautor no est obrigado a apresentar ao leitor a futura soluo histrica dos conflitos sociais quedescreve. (MARX; ENGELS, 2010, p. 66). Lukcs ainda retomaria as reflexes engelsianas sobre adimenso ideolgica da arte, formuladas numa correspondncia a Miss Harkness: O realismo aque me refiro se manifesta, inclusive, independentemente dos pontos de vista do autor. Permita-memencionar um exemplo. Balzac que considero um mestre do realismo maior que todos os Zola do

    passado, do presente e do futuro desenvolve em sua Comdia humana a mais extraordinria histriarealista da sociedade francesa, narrando, ano a ano, e como se fora uma crnica, os costumesimperantes entre 1816 e 1848. () Considero que uma das maiores vitrias do realismo, um dostraos mais valiosos do velho Balzac, que ele se viu forado a escrever contra as suas prprias

    simpatias de classe e preconceitos polticos, que tenha visto o carter inevitvel da runa dos seusaristocratas prediletos e os tenha descrito como homens que no mereciam sorte melhor e que visse osverdadeiros homens do futuro precisamente onde se encontravam. (ibidem, p. 68-69)

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    enquanto a Frana havia encontrado uma soluo progressista aos seusproblemas histricos, a Alemanha havia adotado uma reacionria.(LUKCS, 1979, p. 7)4

    Enquanto uma srie de pases europeus alcanavam suas respectivas unificaes

    nacionais, a Alemanha vivia, como vimos, um relativo atraso poltico e econmico, mas

    com sries inflexes no campo cultural. A existncia dos pequenos principados

    observava a existncia de formas de governo diferentes, mas todas tinham em comum o

    elemento retrgrado e autoritrio. Prossegue Lukcs:

    Por sculos a autonomia dos pequenos principados foi o maissignificativo obstculo da unificao alem. Suas ostensivasindependncias, suas ostensivas polticas de independncia por muitotempo fizeram da Alemanha objeto passivo da poltica externaeuropeia, um campo de batalha para as guerras europeias. (LUKCS,1979, p. 8)

    Como consequncia o territrio alemo, que dificilmente conseguia manter uma

    soberania geogrfica efetiva, muito deixou a desejar no campo das ideias, o que refletiu

    em forte medida no campo cultural. A inexistncia de uma cultura progressiva, reunidaao redor de uma classe burguesa efetivamente progressiva era, portanto, natural; como

    poderia existir uma cultura nacional progressiva se sequer podamos falar da existncia

    de uma nao?

    Diante das lendas criadas pelos historiadores alemes, precisosublinhar aqui a este respeito, a Prssia era um tpico pequenoprincipado alemo; portanto, um obstculo para a unidade nacional, euma porta aberta para a interveno estrangeira. Acompanhado de

    perto, esse desenvolvimento significa que o surgimento da culturaburguesa avanava num ritmo bastante lento; no seu lugar apareceriaum semi-feudalismo corrupto. O fato de tais condies sociais, emtodos os sentidos, terem obstrudo a constituio de uma culturanacional progressiva no requer discusso detalhada. (LUKCS,1979, p. 8)

    Se boa parte das naes europeias tiveram 1848 como o marco de suas histrias,

    colocando e demarcando claramente os limites reais da revoluo burguesa, na

    Confederao Germnica como era conhecida at ento a associao dos principados

    4 As tradues dos textos estrangeiros citados neste trabalho so de nossa responsabilidade (RM).

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    germnicos a problemtica burguesa estava sendo posta pela primeira vez. Como

    consequncia disso, aponta Lukcs, deu-se uma ruptura entre progresso social edesenvolvimento nacional:

    A consequncia de tudo isso que na Alemanha o progresso social e odesenvolvimento nacional no apoiavam-se mutuamente e promoviamum ao outro como na Frana, mas antes situavam-se um em oposioao outro. Assim, mesmo o desenvolvimento do capitalismo no pdeproduzir uma classe burguesa capaz de assumir a liderana nacional.(LUKCS, 1979, p. 9)

    Marx observava, j em 1843, que o atraso alemo, que tambm foi chamado

    misria alem, criou uma condio especial no plano cultural, de modo que do ponto

    de vista filosfico mas tambm poderamos estender o fenmeno ao campo artstico ,

    a Alemanha no ficou em nada devedora s expresses mais elaboradas do pensamento

    europeu. Na verdade o que se d muitas vezes o contrrio: contraditoriamente, alguns

    dos pensadores alemes conseguiram superar em alguns momentos os seus

    contemporneos, de pases mais desenvolvidos de forma poltica, econmica e social

    (casos de Kant, Hegel, Schiller, Beethoven, Mozart,Wagner, Hlderlin, Goethe, Heine,

    etc).5

    Assim como as naes do mundo antigo viveram sua pr-histria naimaginao, na mitologia, assim ns, alemes, vivemos a nossa pr-histria no pensamento, na filosofia. Somos os contemporneos

    filosficos da poca atual, sem sermos os seus contemporneoshistricos. A filosofia alem constitui o prolongamento ideal dahistria alem. (MARX, 2005, p. 150)

    No plano artstico, observou-se o crescimento de tendncias romnticas, que

    buscavam no campo artstico as inspiraes que no podiam recolher da realidade

    social. No causal que o jovem Goethe tenha pertencido a esse movimento. Sua Os

    5 De uma perspectiva poltica, o povo alemo ainda era objeto de grupos rivais, o moderno mundoburgus que emergia na Frana e o absolutismo feudal do Leste Europeu e da Europa Centralalternaram-se contra ele sob apoio ingls. [] Na Alemanha ainda no havia falando objetivamente

    uma unidade poltica nacional. Grande parte da vanguarda intelectual burguesa saudaram aRevoluo Francesa com entusiasmo (Kant, Herder, Brger, Hegel, Hlderlin, etc). E documentos

    contemporneos, como os relatos de viagem de Goethe, mostram que esse entusiasmo no era deforma alguma limitado s clebres mentes da classe mdia, mas possua razes em setores maisamplos da prpria classe. (LUKCS, 1981, p. 43-44)

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    sofrimentos do jovem Werther, considerada como fundadora do movimento literrio

    romntico Sturm and Drang(Tempestado e mpeto), que considerada por muitos umadas maiores obras da literatura mundial, ainda que mesmo nessa obra o escritor alemo

    j demonstravam indcios da evoluo que efetuaria posteriormente.6

    2.

    Lukcs, no seu texto sobre Os anos de aprendizado, sobre o qual nos apoiamos

    para elaborar este trabalho, defende que as menes elogiosas de Goethe ao Bardo,quase beirando sua sublimao, buscam revelar um aspecto mais profundo da viso

    goethiana de arte: para Goethe, a arte no se configura como um fim em si mesma, mas

    como um meio para a busca do desenvolvimento das potencialidades humanas. Goethe

    se apoia em Shakespeare pensando-o antes como um grande humanista, tendo-o como

    um educador, um modelo de uma moral humanista elevada:

    Parecem obra de um gnio celestial, que se aproxima dos homens paralhes dar a conhecer a si mesmos da maneira mais natural. No socomposies poticas! Acreditamos encontrar-nos diante dos colossaislivros do destino em que, uma vez abertos, sibila o vento impetuoso daagitada vida, e com uma rapidez e violncia vai virando suas pginas.(GOETHE, 2006, p. 194-195)

    Essa nova concepo de homem que permitiria a Goethe fazer uma crtica to

    profunda sociedade alem; somente, portanto, com essa ampliao humanista do seu

    horizonte que Goethe supera a noo da arte enquanto fim em si mesmo, se

    aproximando de uma compreenso mais abrangente da arte enquanto rico, mas no

    exclusivo, meio de promover essa elevao humana.

    A ampla e diversa realidade figurada por Goethe nos revela alguns importantes

    elementos da estrutura social prpria do perodo: atravs da seleo dos caracteres

    essenciais desse momento scio-histrico, a homogeneidade artstica que nos

    6 verdade que tambm em Wertheraparece o quadro da sociedade burguesa, mas s em seu reflexona subjetividade rebelde do heri. Em seu modo de representar, a Misso teatral muito maisobjetiva, mas sua concepo s admite a representao das foras e dos tipos sociais que esto direta

    ou indiretamente ligados ao teatro e ao drama. O salto goethiano, tanto de contedo quanto de forma,em direo configurao objetiva da sociedade burguesa inteira s se completa portanto em Osanos de aprendizado. (LUKCS, 2006, p. 582)

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    apresentada evidencia os problemas que j surgiam com essa nova ordem social. E

    Goethe teceu vrios crticas diviso capitalista do trabalho, excessivaespecializao do ser humano, ao aniquilamento do homem por essa diviso do

    trabalho (LUKCS, 2006, p. 584). Tambm se notam crticas segmentao dos

    homens em classes sociais, em que o escritor alemo dirige suas armas contra o

    estreitamento, contra a deformao do ser humano pelo aprisionamento no ser e na

    conscincia da classe social (LUKCS, p. 585), e reforaria essa validade formal da

    diviso em classes ao promover uma srie de casamentos desiguais, ou msalliances.

    No , portanto, sem razo que Lukcs (2006, p. 586) afirme, sobre Os anos deaprendizado, que a realizao dos ideais humanistas neste romance no s o

    parmetro para julgar as diversas classes e seus representantes, como tambm a fora

    propulsora e o critrio da ao de todo o romance. O homem como a medida de todas

    coisas, a que o prprio Goethe se refere no decorrer da obra 7, ainda segundo Lukcs,

    colocado no centro desse romance o ser humano, a realizao e o desenvolvimento de

    sua personalidade, com uma clareza e conciso que dificilmente um outro escritor

    haver conseguido em alguma outra obra da literatura universal. (LUKCS, p. 587)Ainda que alguns possam confundir a defesa goethiana dos ideias humanistas

    como uma posio idealista, ela vai alm da alcunha por se apoiar no elemento ativo da

    (inter)ao humana. O processo educativo do iluminista Goethe no admite separao

    entre contemplao e ao, mas de uma conjugao harmnica de ambas. Ao nos

    introduzir o texto Confisses de uma bela alma, o autor desavisado tomar aquelas

    posies como as de Goethe, mas nesse ponto a sutileza do autor impressiona.

    Contrapondo o relato ao resto do romance, obtemos como resultado uma sntese desses

    extremos. Pois a personalidade humana s pode desenvolver-se agindo, mas agir

    significa sempre uma interao ativa dos homens na sociedade (LUKCS, p. 588).

    Portanto, Goethe est a perseguir uma mediao interior e exterior.

    Em oposio ao prosasmo da sociedade capitalista que hostil a toda produo

    artstica8, o projeto de Goethe reencontrar o equilbrio do homem, e para tal ele busca

    7 O trecho de Goethe remete conhecida frase de Alexander Pope, notrio poeta ingls: The properstudy of mankind is man (POPE apudGOETHE. 2006, p. 110)

    8

    Aqui nos remetemos clebre frase contida nas Teorias da mais-valia:Por exemplo, a produocapitalista hostil a certos setores da produo intelectual, como a arte e a poesia etc. (MARX;ENGELS, 2010, p. 150)

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    uma poesia da vida que rompa com os grilhes do seu momento histrico concreto.

    Seria proveitoso aqui fazermos um novo paralelo com o seu Os sofrimentos do jovem

    Werther, aonde o protagonista, tambm acometido de um forte idealismo, inserindo-se

    nos fronts numa luta contra a sua sociedade, a nica sada encontrada para a sua

    oposio fora o suicdio uma resposta, portanto, romntica, fugidia. Goethe supera a

    soluo romntica wertheriana, a sua revolta cega contra o consolidado, ao promover a

    defesa educao moral (ancorada nos ideais humanistas) como mediao entre

    conscincia e ao, e aqui ele acredita ter encontrado a soluo para essa contraditria

    relao (fazendo uma verdadeira profisso de f ao racionalismo iluminista).Essa luta entre os ideias e a realidade , segundo Lukcs (2006, p. 592), a

    temtica tipicamente romanesca; e ainda que Goethe no consiga apontar os caminhos

    especficos para essa superao, faz um grande apelo em forma de defesa da

    potencialidade do efetivamente livre desenvolvimento humano, sem mais barreiras

    mold-lo e reduzi-lo s suas prprias limitaes:

    Por tal diferena culpa-se no a arrogncia dos nobres nem atransigncia dos burgueses, mas sim a prpria constituio dasociedade; se um dia alguma coisa ir modificar-se, e o que semodificar, importa-me bem pouco; em suma, tenho de pensar emmim mesmo tal como esto agora as coisas, e no modo como hei desalvar a mim mesmo e conseguir o que para mim uma necessidadeindispensvel. (GOETHE, 2006, p. 286)

    O encaminhamento e ponto-chave do desenvolvimento de Wilhelm Meister se

    d, como passamos a saber depois, atravs de uma complicada cadeia de influncias da

    Sociedade da Torre. Esse grupo inicitico retratado por Goethe nos moldes de muitos

    outros que existiam poca a materializao irnica da incapacidade dos ideias

    burgueses se efetivarem a nvel universal. Restritos exclusivamente aos membros da

    sociedade-ilha, os ideais humanos como sntese das etapas de aprendizado traam um

    paralelo com a subsuno dos interesses privados da burguesia defesa dos valores

    humanistas.

    Da compreenso da intricada relao entre interior e exterior, Meister pudera

    compreender o que buscara ao iniciar sua viagem: alargar seus horizontes. O teatro fora

    um meio privilegiado para tal, mas no marcava o fim de sua jornada, o que ele sempre

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    desejara ele j obtivera, sem mesmo ter se dado conta. De modo que em nada nos

    contradiramos se repetssemos, ao protagonista, uma frase por ele proferida ainda aoincio de sua jornada:

    to agradvel podermos recordar, se contentes estamos com nsmesmos, os diferentes obstculos que, com um sentimento doloroso,acreditvamos por vezes insuperveis, e comparar o quanto evoludo

    somos agora com o quo evoludos ramos ento. (GOETHE, 2006, p.34)

    Com uma personalidade desenvolvida entre dois mundos nobre e burgus , epara alm deles, Meister agora estava em condies de melhor compreender o mundo e

    os homens, em funo da integralidade que as suas experincias o forneceram; podia

    ver agora, no menino Flix, em microcosmo, a encarnao das potencialidades humanas

    o infinito contido no finito. Somente, portanto, com esse necessrio processo de

    elevao o homem passa a se encontrar em condies de refletir si e seu destino, e passa

    a estender o seu olhar para alm de uma ordem social que o conforma e deforma, ao

    invs de como deveria ser se fosse justa favorecer ao livre desenvolvimento do seu

    ser.

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    Referncias

    ABENDROTH. W. et all. (orgs.) Conversando com Lukcs. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

    ARISTTELES. Potica. 8 ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008.

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