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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde Curso de Psicologia Laboratório de Psicopatologia Fundamental PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA: UMA REFLEXÃO ACERCA DA PSICOPATOLOGIA Orientando: David Borges Florsheim Orientador: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck São Paulo

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Page 1: Trabalho completo em PDF

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP

Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde

Curso de Psicologia

Laboratório de Psicopatologia Fundamental

PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA: UMA REFLEXÃO ACERCA

DA PSICOPATOLOGIA

Orientando: David Borges Florsheim

Orientador: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

São Paulo

Page 2: Trabalho completo em PDF

Julho de 2009

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP

Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde

Curso de Psicologia

Laboratório de Psicopatologia Fundamental

PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA: UMA REFLEXÃO ACERCA

DA PSICOPATOLOGIA

Relatório científico de Pesquisa de Iniciação Científica aprovada pelo Conselho de

Ensino e Pesquisa da PUC-SP, subsidiado pelo PIBIC-CNPq e desenvolvido no período de

agosto de 2008 a julho de 2009.

Orientando: David Borges Florsheim

Orientador: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

São Paulo

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Julho de 2009

Resumo

A psicanálise e a psiquiatria são áreas do conhecimento que investigam o

psiquismo humano há bastante tempo. Ambas sofreram influências epistemológicas de

épocas remotas da civilização humana, havendo um destaque especial para a civilização

grega e para o período da sociedade ocidental a partir da Idade Média. O que vemos no

século XXI, no entanto, é uma dificuldade de diálogo destas visões entre si, na medida

em que a psiquiatria parece basear seu diagnóstico em manuais de classificação como os

atuais DSM-IV e CID 10 e, por outro lado, a psicanálise enfatiza a prioridade da

subjetividade para o diagnóstico e o tratamento, de forma a permitir que a narrativa do

sujeito possa revelar o seu pathos psíquico. Saber o que está por trás dos atos de

classificação é de fundamental importância para esta reflexão, na medida em que “não

há classificação do universo que não seja arbitrária e conjetural”, segundo Jorge Luís

Borges. Descobrindo estes processos, é necessário entendermos a razão de tantos

conflitos no chamado “campo psi” entre estes profissionais, uma vez que entende-se

aqui que não se tratam de áreas excludentes, mas muito pelo contrário: como o próprio

Freud afirmava em 1916, a psicanálise e a psiquiatria deveriam se relacionar de forma a

serem complementares, com cada uma lidando com um aspecto da vida psíquica que a

teoria permite. Isto já aparecia nas reflexões de Freud a respeito da histeria,

principalmente no relato do caso Anna O, que data do final do século XIX. PIBIC-

CNPq

Árvore do Conhecimento

Ciências Humanas; Psicologia

Ciências Humanas; Psicologia; Tratamento e Prevenção Psicológica

Setores de Aplicação

Cuidado à saúde das pessoas

Educação superior

Palavras-chave: Histeria; subjetividade; psicopatologia.

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Page 4: Trabalho completo em PDF

Sumário

· O LABORATÓRIO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL 5

· PRIMEIRA PARTE: RELATÓRIO DE ATIVIDADES 8

· SEGUNDA PARTE: RELATÓRIO CIENTÍFICO 11

· INTRODUÇÃO 11

· OBJETIVOS 14

· METODOLOGIA 15

· I. HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA 17

· II. BREVE HISTÓRICO DA MEDICINA NO BRASIL 30

· III. PSICANÁLISE E PSIQUIATRIA 33

· IV. DIAGNÓSTICOS 39

· V. CLASSIFICAÇÕES 47

· VI. HISTERIA: O SINTOMA TEM SENTIDO 62

· CONCLUSÃO 70

· BIBLIOGRAFIA 75

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Page 5: Trabalho completo em PDF

O Laboratório de Psicopatologia Fundamental

O Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Núcleo de Psicanálise

do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, onde esta pesquisa foi elaborada, foi

criado em fevereiro de 1995. Trata-se de um grupo permanente de pesquisa que reúne

pesquisadores (de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado)

elaborando trabalhos de investigação sobre o sofrimento (pathos) psíquico.

Intimamente relacionados com o tratamento e a prevenção psicológica, os

trabalhos variam de objeto específico, mas possuem um tema comum - a psicopatologia

- e um campo teórico-metodológico compartilhado por todos os pesquisadores - a

psicoterapia. As pesquisas visam, de maneira geral, a elaboração de um conhecimento

clínico sobre a natureza psicopatológica do humano.

O grupo tem a possibilidade de colaborar com produções científicas que variam

de complexidade. Projetos de iniciação científica, por exemplo, tem como objetivo

iniciar o aluno no fundamental trabalho de levantar a bibliografia pertinente sobre um

relevante tema de pesquisa.

O Laboratório - lugar (tório) de trabalho (labor) - supõe não só a existência de

um espaço físico, mas também um enquadre institucional e, principalmente, um espaço

onde o método clínico centrado no estudo de caso encontre uma metapsicologia

resultante da transformação da vivência clínica numa experiência socialmente

compartilhada através da palavra.

Psicopatologia Fundamental é um termo empregado, pela primeira vez, há

mais de 30 anos, pelo Professor Doutor Pierre Fédida e seus associados, no âmbito da

Université de Paris 7 – Denis Diderot onde, mais tarde, foi criado o Laboratoire de

Psychopathologie Fondamentale el Psychanalyse, junto com um programa de

Doutorado com este mesmo nome.

Psicopatologia deriva-se de três palavras gregas: psychê, que produziu

psique, psiquismo, psíquico; pathos, que resultou em paixão, excesso, passagem,

passividade, sofrimento e assujeitamento e logos, que resultou em lógica, discurso,

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Page 6: Trabalho completo em PDF

narrativa. A psicopatologia seria, então, um discurso sobre o pathos, a paixão que se

manifesta no psiquismo, ou seja, um discurso sobre o sofrimento psíquico.

No início do século XX, Karl Jaspers publicou Psicopatologia Geral visando

descrever, de forma sistemática, as doenças mentais. Esse importante trabalho deu nome

àquilo que muitos médicos faziam, principalmente na França, na Alemanha e na

Inglaterra durante todo o século XIX e inaugurou uma rica tradição médica que se

manifesta, até hoje, em tratados de Psiquiatria e em Tratados de Psicopatologia Médica.

Essa tradição, que muito contribui para a Psicopatologia Fundamental, está, entretanto,

interessada na descrição a mais cuidadosa possível e na classificação das doenças

mentais.

A Psicopatologia Fundamental, não dispensando os saberes adquiridos nem

pela Psicopatologia Geral, nem por outros saberes que contribuem para a compreensão

do sofrimento psíquico – a filosofia, a psicologia, a psicanálise, a literatura, as artes, etc

– não está tão interessada na descrição e classificação da doença mental como no que é

vivido e expressado pelo paciente, pois baseia-se no pressuposto de que o pathos

manifesta uma subjetividade que é capaz, através da narrativa, do relato, do discurso, da

expressão em palavras, de transformar a paixão e o assujeitamento numa experiência

servindo para a existência do próprio sujeito e, quem sabe, à medida que for

compartilhada, para outros sujeitos.

Levando-se em conta o pressuposto de que nenhum conhecimento

especializado é capaz de esgotar a compreensão do sofrimento psíquico, as pesquisas

realizadas no âmbito do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP visam

encontrar palavras que exprimam, de forma a mais precisa e compreensiva possível, o

pathos psíquico que se manifesta na clínica psicoterapêutica. Neste sentido, a clínica

psicoterapêutica não segue o procedimento médico visando suprimir o sintoma com o

remédio e considerar, com isso, que se produziu uma cura.

Podendo-se utilizar o remédio como um elemento do tratamento, elemento

que deixa de ser um objeto final para ser algo que possui um caráter enigmático e

obscuro. A clínica psicoterapêutica, na ótica da Psicopatologia Fundamental, deve estar

sempre orientada no sentido de encontrar as condições metodológicas que permitam,

tanto ao paciente como ao psicoterapeuta, encontrar palavras que representem, da

melhor maneira possível, o pathos que é tratado nesta clínica, pois o que se 6

Page 7: Trabalho completo em PDF

experimenta, nesta mesma clínica, é que o relato o mais preciso possível sobre o pathos

produz uma transformação fazendo desaparecer o sintoma e alterando a estrutura

mesma do psiquismo e até mesmo dos cérebros daqueles que estão envolvidos nessa

prática.

A Psicopatologia Fundamental é, então, um trabalho que visa tanto a

aquisição de uma experiência inerente ao pathos, como produzir efeito terapêutico

qualitativo modificando a posição do sujeito em relação ao seu próprio psiquismo e,

conseqüentemente, alterando sua posição e dinâmica no mundo.

Primeira Parte: Relatório das Atividades

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Page 8: Trabalho completo em PDF

Ao longo do período abrangido por este relatório (agosto de 2008 – julho de

2009), o aluno esteve em contato com seu orientador semanalmente. A cada quinze dias

aconteceram os seminários do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa

de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo e a cada quinze dias o aluno assistia a disciplina oferecida por seu

orientador sobre o método clínico (em 2008) e sobre melancolia e mania (em 2009) no

mesmo Programa (em anexo).

Em duas ocasiões, o aluno pôde apresentar o andamento da pesquisa com seus

resultados parciais, para comentário dos colegas do Laboratório, que são alunos de

iniciação científica, mestrandos, doutorandos e pós-doutores. Isso aconteceu nos dias 28

de agosto de 2008 e 16 de abril de 2009.

A contribuição do orientador e de todos os demais pesquisadores foi

fundamental, fazendo com que o aluno repensasse algumas questões sobre a

especificação do problema de investigação. Foram sugeridos diversos textos que

auxiliaram para o resultado final da pesquisa.

O orientador, portanto, utilizou uma sistemática de permitir uma liberdade de

pesquisa ao aluno, ao mesmo tempo em que perguntava ao longo do semestre a respeito

do andamento do projeto, mostrando-se solícito no possível caso de dificuldades. Uma

das dificuldades encontradas foi conseguir selecionar a bibliografia mais relevante para

a pesquisa, uma vez que a bibliografia sobre o assunto é vasta.

Foi possível contar, também, com a valiosa colaboração da Profª. Drª. Ana

Cecília Magtaz, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo -

FSP/USP, Brasil e Pós-Doutora do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do

Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo - PUC-SP, Brasil.

Dessa forma, o trabalho continuou seguindo com seu projeto inicial que se

referia à busca de convergências e divergências entre a psicanálise e a psiquiatria, para

saber se há uma interlocução possível entre estes campos.

A aprendizagem do aluno foi riquíssima durante o período em que realizava sua

pesquisa de Iniciação Científica. O convívio com pós-graduandos no Laboratório de

Psicopatologia Fundamental permitiu o enriquecimento teórico da pesquisa, além de 8

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esclarecimentos de questões mais “práticas” a respeito das pesquisas na Faculdade de

Psicologia, tais como as bolsas concedidas por instituições, a apresentação de trabalhos

em congressos e dificuldades freqüentes no desenvolvimento de pesquisas.

Além disso, a participação do aluno nos seminários permitiu que lesse trabalhos

sobre os mais variados assuntos no campo da Psicopatologia Fundamental, lendo a

narrativa de diversos casos clínicos e aprendendo inclusive a respeito do manejo da

transferência, aprendizagem esta que influenciou o aluno em sua função como

psicoterapeuta.

No decorrer deste período o aluno participou do III Congresso Internacional de

Psicopatologia Fundamental e do IX Congresso Brasileiro de Psicopatologia

Fundamental que se realizaram no período de 4 a 7 de setembro de 2008, na

Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, RJ, Brasil. A participação foi

importante, já que foi o primeiro congresso que o aluno participou, podendo assistir a

mesas-redondas, conferências e cursos, além do contato com outros pesquisadores.

O aluno participou também de um Encontro Clínico, promovido pelo

Laboratório de Psicopatologia Fundamental, no Hospital São João de Deus, onde houve

a apresentação de um caso clínico (apresentação de paciente). Esta se trata de uma

atividade eminentemente clínica visando à formação dos pesquisadores do grupo.

Desde o começo de 2009 o aluno está estagiando, pelo Núcleo de Psicanálise da

Faculdade de Psicologia, no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico em Franco

da Rocha, SP, Brasil. Lá o aluno atende dois pacientes e, dessa forma, mantém contato

tanto com psicólogos quanto com psiquiatras, o que certamente é uma experiência que

permite ao aluno perceber a questão da interlocução possível entre estas áreas, que é o

principal objetivo desta pesquisa, além de poder enriquecer sua formação clínica.

O aluno irá participar também do Colóquio Internacional sobre o Método

Clínico, promovido pela Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia

Fundamental, que deverá acontecer de 4 a 7 de setembro de 2009 na Fundação Escola

de Comércio Álvares Penteado (FECAP), São Paulo, Brasil. O aluno foi convidado e

participará da Comissão Executiva do evento.

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Além disso, o aluno participou como integrante da Comissão Discente de

Organização do 16° Encontro de Serviços-Escola de Psicologia do Estado de São Paulo

realizado no período de 1 a 3 de outubro de 2008 na Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo – PUC-SP, Brasil. Esta participação foi importante para a formação do aluno

que organizou ativamente, desde julho, o encontro, podendo se deparar com questões

que envolvem a organização de um evento como este, aprendendo a trabalhar com os

demais organizadores.

Durante o segundo semestre do ano de 2008, o aluno continuou no curso de

Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, cursando disciplinas que contribuíram

para a elaboração da pesquisa e inclusive deste relatório. No entanto, o aluno julgou

mais adequado trancar matrícula neste curso durante o ano de 2009, para poder se

dedicar inteiramente a esta Iniciação Científica e à Faculdade de Psicologia.

O aluno também participa desde agosto de 2008 de um grupo de estudos em que

lê e comenta semanalmente o livro Re-envisioning Psychology: moral dimensions of

theory and practice*, sob a orientação do psicólogo clínico e pai do aluno, Geraldo

Florsheim. Neste grupo, freqüentemente são abordadas questões que se relacionam ao

tema desta pesquisa, como a discussão dos valores éticos e morais que existem numa

psicoterapia, além de crítica às diversas abordagens, sob uma perspectiva da filosofia

hermenêutica, principalmente de Hans-Georg Gadamer, Paul Ricoeur e Charles Taylor.

Em praticamente todos os capítulos deste trabalho existem argumentações que foram

discutidas neste grupo, que assim se tornou determinante para esta pesquisa.

* FOWERS, Blaine J., GUIGNON, Charles B. e RICHARDSON, Frank C. Re-envisioning Psychology: moral

dimensions of theory and practice. San Francisco, Jossey-Bass Publishers, 1999.

Introdução

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Page 11: Trabalho completo em PDF

Mas acreditar que as neuroses podem ser vencidas pela administração de remedinhos inócuos é subestimar grosseiramente esses distúrbios, tanto quanto à sua origem quanto à sua importância prática.

S. Freud, 1915, p. 188.

Para que seja possível fazer uma interlocução entre visões subjetivas e objetivas

da natureza humana espera-se no mínimo que se tenha um grande conhecimento de

ambas as visões, além da suposição de que isso realmente seja possível de ser feito.

Minha hipótese é que tal façanha é impossível de ser realizada ou, ao menos, impossível

para um trabalho de iniciação científica como o meu e para um conhecimento de aluno

de graduação como eu.

No entanto, não considero que tal postura seja incompatível com o projeto que

pretendo realizar. Este projeto antes de qualquer coisa pretende entender qual a

importância de se colocar o sujeito em cena, fazendo-o ser lembrado não apenas como

um sintoma a ser aniquilado, mas sim junto à sua dimensão páthica. Segundo Francisco

Martins (1999):

O pathos originário nos permite repensar a questão humana e dos seus destinos antes de qualquer cisão, separação (chorismós) entre normal e anormal. O pathos permite restituir de maneira refinada como se faz a criação deste terrível fosso classificatório entre o normal e anormal, mostrando como um pode informar o outro, explicando destinos humanos tão diversos. O homem é, no sentido pleno da palavra, suscetível de pathos, na medida em que este determina sua existência. É também do pathos que ele é colocado em provação com relação aos seus sucessos e fracassos parciais, ensinando-nos o que é verdadeiramente o solo comum e possível no qual o sujeito se move para construir a sua humanidade. (p. 79)

O “Fosso Classificatório”

Sistemas classificatórios sempre existiram. Aristóteles já os possuía (sensação,

volição e afeição), bem como Platão (razão, espírito e apetite), como afirmam

Haberman e Stevenson (2005), o que nos faz pensar que desde então as classificações

foram se multiplicando, trazendo com elas novos diagnósticos e prescrições acerca da

condição humana.

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Page 12: Trabalho completo em PDF

Seguindo a linha de raciocínio de Francisco Martins (1999) e de uma

considerável parte das teorias psicanalíticas, entende-se que ao se lidar com o

sofrimento (pathos) humano, não há nada mais importante que a relação de

transferência que é estabelecida. Tal constatação pode implicar que se ater

ferrenhamente a uma tradição de classificações não é o que irá fazer com que a fala e a

linguagem do sujeito sejam adequadamente ouvidas e contempladas.

Por este motivo, as visões fisicalistas como a Psicopatologia Geral, que

pretendem constantemente tornar as doenças facilmente discerníveis, delimitadas e

palpáveis, segundo Russo e Venâncio (2006), “abandonam os mal-estares implicados no

viver e os chamados ‘problemas existenciais. ’” (p. 468)

Causa até uma estranheza perceber a completa dependência de profissionais da

saúde mental (psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, acompanhantes terapêuticos,

etc.) a estes DSMs, que cada vez aumentam mais o número de transtornos contidos

neles. Seguindo o interesse dos grandes laboratórios e as exigências da agência

reguladora americana, a FDA (Food and Drug Administration), “passou-se de 180

categorias no DSM II (que já era maior em relação ao DSM I) para 295 no DSM III e

350 no DSM IV”, ainda segundo Russo e Venâncio (2006, p. 467).

A justificativa que tais visões objetivas nos dão é que se fizeram pesquisas que

garantem a eficácia das medicações logo, elas poderiam ser usadas sem problemas.

Porém, tal visão parece não compreender que mesmo que os remédios realmente

funcionem do modo como esperam, ou seja, atacando sintomas, ainda assim partiram de

uma posição metafísica desde o começo, por acharem que apenas a “administração de

remedinhos inócuos” diminuirá o sofrimento humano.

Samuel Huntington (1997) indica que, de acordo com a filosofia da ciência, as

classificações são muitas vezes simplistas, como quando se dividiu o mundo em duas

partes durante a Guerra Fria ou quando se agrupam expressões culturais num

determinado espaço geográfico. No entanto, tais classificações são extremamente

necessárias para que possamos lidar com as questões de alguma maneira. No caso da

psicanálise isto também é verdade, como afirma Berlinck (2000):

Freqüentemente nos esquecemos de que as categorias nosográficas utilizadas por Freud foram construções teóricas elaboradas com base na clínica. Porém, em nenhum momento Freud sequer sugeriu que seriam

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suficientes para caracterizar um caso clínico e nem mesmo que esgotam as possibilidades da psicopatologia. (p. 133)

E ainda:

... aplicação de categorias nosográficas na clínica sem uma escuta cuidadosa e prolongada pode se constituir numa resistência do psicanalista à sua própria escuta. Declarar que um sujeito é histérico, obsessivo, perverso ou psicótico serve muitas vezes para se evitar a confrontação com o enigma que o outro é.

Porém, as categorias nosográficas podem ser importantes instrumentos auxiliares da clínica, à medida que: 1) abrem uma perspectiva para o tratamento; e 2) possibilitam que a atenção do psicanalista se dirija também para outros aspectos psicopatológicos apresentados pelo sujeito, que não estão cobertos por sua classificação nosográfica. (p. 133)

Desse modo, entende-se que as classificações nos podem ser bastante úteis, mas

sempre possuem algumas limitações. Toda classificação é sempre imposta pela nossa

subjetividade e, portanto, é sempre arbitrária. A Natureza não nos dá nenhum tipo de

classificação - a realidade não nos dá TOC, depressão ou transtorno bipolar, mas somos

nós os responsáveis por tais tipos de separação, que muitas vezes não vêem o sujeito

como singular.

Além disso, é importante dizer que sempre há um interesse que transcende as

classificações, ainda que muitas destas pretendam uma objetividade ou até uma

neutralidade. Na própria história dos DSMs, por exemplo, pode-se perceber a influência

marcante dos grandes laboratórios farmacêuticos, das companhias de seguro de saúde,

das corporações profissionais, como o American Psychiatric Association - APA e do

FDA na forma pela qual as psicopatologias são categorizadas.

Pensando tais questões pode-se sugerir que a “cura através da palavra” traz

vantagens no tratamento do sofrimento humano, já que reconhece as limitações

classificatórias, permitindo que o sujeito possa se expressar livremente. É claro que nem

todos os remédios devem ser caracterizados como “inócuos”, na medida em que podem

contribuir para a diminuição do sofrimento, mas o problema parece ser justamente a

completa dependência de um processo diagnosticar/prescrever, fazendo com que o

sintoma se sobreponha ao sujeito, e se esquecendo que ele tem um sentido.

13

Page 14: Trabalho completo em PDF

Segundo Russo e Venâncio (2006), desde a sua terceira edição, em 1980, o DSM

alterou o conceito de “neurose”, transformando tal conceito em diversas outras

classificações, com o argumento de se haver um maior “objetivismo descritivo como

critério classificatório”. Esta pesquisa pretende analisar este fato, juntamente com os

argumentos acima relatados, para pensar a questão da histeria na história da psicanálise

e do próprio DSM, discutindo o impacto das classificações na forma de se lidar com o

sofrimento humano.

Objetivos

O objetivo inicial deste projeto de pesquisa em Psicopatologia Fundamental foi o

levantamento bibliográfico a respeito da histeria em Freud e no Manual Diagnóstico e

Estatístico das Doenças Mentais, o DSM IV, para compreender se haveria possibilidade

de interlocução entre estas diferentes posições: a primeira subjetiva e a segunda

objetiva.

Para que este objetivo fosse alcançado, foi preciso estudar um pouco da história

da psiquiatria, da história da medicina no Brasil, ler sobre psicanálise e psiquiatria na

atualidade e aprofundar a leitura sobre a histeria em Freud.

Metodologia

Entre a ordem e sua execução há um abismo. Este deve ser preenchido pela compreensão. Apenas compreendendo é que sabemos que temos de fazer ISTO. A

ordem – na verdade, são apenas sons, traços de tinta. 14

Page 15: Trabalho completo em PDF

Wittgenstein, (1936), 2000, p. 129, grifo do autor.

Esta pesquisa foi realizada no âmbito do Laboratório de Psicopatologia

Fundamental da PUC-SP e, por isso, recebeu influências muito enriquecedoras para o

seu desenrolar. Estando neste ambiente minha compreensão pôde progredir livremente,

me auxiliando com a forma de lidar com o problema de pesquisa.

Estando no Laboratório, tive contato com alunos que faziam pesquisas de

iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado sobre os mais variados

assuntos no campo do pathos psíquico, o que me fez aprender muito, e creio que esta

aprendizagem aparece neste trabalho.

Comecei a desenvolver o projeto em março de 2008, já freqüentando as reuniões

do Laboratório, e pude aprender um pouco não apenas sobre o conteúdo do que era

abordado, mas também a forma de como eram abordados os assuntos, sempre com

seriedade. Esta postura eu busquei acompanhar, pois sabia que me ajudaria com este

projeto e como aprendizagem para a minha vida profissional de forma geral.

No Laboratório de Psicopatologia Fundamental prevalece a importância para o

método clínico, na busca de tratar-se a psicopatologia da melhor forma possível,

buscando permitir que a subjetividade tenha um papel central.

Uma característica importante deste método é a utilização do saber médico,

como a Psicopatologia Geral, mas também o saber de outras áreas que abordam o

sofrimento humano, como a filosofia, a psicanálise, a literatura, a sociologia, entre

outros.

Busquei, portanto, seguir este método nesta pesquisa, trazendo contribuições

destas áreas citadas acima, para que pudessem contribuir para a reflexão sobre a

interlocução possível entre a psicanálise e a psiquiatria. Sendo aluno dos cursos de

Ciências Sociais e de Psicologia, pude trazer contribuições de diferentes abordagens,

utilizando muitas vezes fragmentos de textos, que traziam novos elementos a serem

pensados, contando com o apoio de meu orientador, Prof. Dr. Manoel Berlinck, que

também conhece muito bem estas áreas.

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Page 16: Trabalho completo em PDF

Os textos utilizados neste trabalho foram sugeridos por diversas pessoas que

acompanharam o seu desenvolvimento, além de levantamentos bibliográficos feitos por

mim. As sugestões mais importantes vieram dos meus orientadores, Prof. Dr. Manoel

Berlinck e Profª Drª Ana Cecília Magtaz, da minha analista, Perpetua Medrado e do

meu pai, Geraldo Florsheim.

As duas vezes em que o projeto foi apresentado para todos os membros do

Laboratório foram fundamentais para a evolução da pesquisa, que pôde contar com a

contribuição direta de vários pesquisadores experientes sobre o texto, além do apoio

essencial do orientador. Algumas reflexões contidas neste trabalho são fruto das aulas

teóricas ministradas pelo Prof. Dr. Manoel Berlinck, a respeito do método clínico e da

melancolia e mania.

Pelo próprio conhecimento que eu tinha no início da pesquisa, que era de um

iniciante (e ainda é), pude ficar um pouco distante de dogmatismos, uma vez que sequer

entendia tão bem as diferenças para correr o risco de me tornar sectário. Não penso,

contudo, que alguém que seja sectário nesta área (ou em qualquer outra) tenha

compreendido bem a questão, e a atitude de um pesquisador é importantíssima para se

evitar este tipo de erro, uma vez que reconhece vários aspectos que ainda devem ser

trabalhados e compreendidos.

A seguir, os resultados obtidos na pesquisa.

I. História da psiquiatria

Este capítulo explorará as idéias consideradas mais relevantes da história da

psiquiatria, para que possamos nos situar historicamente e percebermos as mudanças

16

Page 17: Trabalho completo em PDF

nas concepções de mundo e de natureza humana ao longo dos séculos. É fundamental

atentarmos desde já para o momento histórico e o contexto social de cada uma dessas

idéias (e de cada pensador), a fim de que possamos contextualizá-las com suas épocas, e

entendermos suas influências no pensamento contemporâneo.

Surge um desafio desde já que é o de conseguir dar conta de um panorama

histórico tão repleto de passagens significativas. De certa forma, uma história da

psiquiatria deveria levar em conta não só a chamada sociedade ocidental, mas também

as demais sociedades, além do que teria que considerar épocas de pelo menos três mil

anos a.C., o que é certamente inviável aqui.

É necessário fazer um recorte no tempo tomando para estudo uma época que se

inicia na Renascença e vai até a Era Moderna (século XV até fim do século XIX,

aproximadamente). A Renascença é a época em que o humanismo tomou forma, assim

como a entrada da ciência na sociedade ocidental (Copérnico, que é do século XVI,

representou esta entrada ao apresentar sua hipótese de um universo heliocêntrico). Seu

fim se dá na Era Moderna, pois a partir daí surgem as concepções freudianas, e tal

reflexão será feita num outro momento deste trabalho.

Neste processo, são apresentados pensadores que contribuíram de várias formas

para o desenvolvimento do conhecimento humano, com as informações relevantes para

esta pesquisa. Neste mesmo sentido, será preciso omitir algumas informações sobre

cada momento histórico, uma vez que o excesso de informações não seria benéfico para

o raciocínio desenvolvido aqui.

Será utilizada como instrumento principal de pesquisa neste capítulo a obra

História da Psiquiatria de Franz G. Alexander e Sheldon T. Selesnick, por trazer

informações importantes para um entendimento histórico amplo.

A Renascença

A vida íntima do homem do povo é de resto um assunto filosófico e moral tão interessante quanto a do indivíduo mais brilhante; deparamos em qualquer homem com

o Homem.

17

Page 18: Trabalho completo em PDF

Montaigne, (século XVI), 2000, p. 154.

Um elemento fundamental para entendermos o que acontecia no mundo nesta

época da Renascença é o progresso do comércio entre os países do Mediterrâneo, o que

levou a um desenvolvimento das povoações marítimas e uma ascensão da classe média.

Além deste aspecto, foram levados para a Europa diversos escritos clássicos, que

haviam sido preservados pelos árabes, e que se tornaram uma fonte de inspiração para

muitos pensadores a partir deste momento.

Homens como Dante, Boccaccio e Petrarca “chefiaram um movimento que se

afastava das rígidas doutrinas dos escolásticos em direção ao renascimento de respeito

pelos escritos dos romanos e gregos.” (Alexander e Selesnick, 1966, p. 109) Com o

trabalho de tradução destes escritos e o advento da imprensa em meados do século XV,

uma parcela mais significativa da população pôde ter acesso a tais conhecimentos.

No século XVI, Maquiavel descrevia o mundo da realidade política, Copérnico

descrevia a realidade geofísica, pintores e anatomistas marcam a concretude do corpo

humano, Calvino, Lutero, Zwinglio e outros fazem as Reformas, desafiando a

autoridade da Igreja Católica. Também Rabelais e Montaigne denunciam as práticas

decadentes de clérigos e autoridades de forma geral.

Os artistas mostraram como o homem parecia por fora, os anatomistas descreveram sua estrutura interna e, finalmente, os psicólogos e filósofos da Renascença descreveram suas sensações e sentimentos. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 111)

A ideologia vigente na Idade Média que entendia o corpo nu como um pecado a

ser coberto foi completamente substituída por uma representação do corpo como um

objeto a ser descoberto. Essa nova forma de entendimento aparece tanto em trabalhos

artísticos (sendo italianos os mais famosos), como também em médicos, fazendo-os

inclusive compartilharem conhecimentos.

Leonardo da Vinci (1452-1519) representou bem a combinação de talentos

artísticos e científicos, elaborando projetos em diversas áreas do conhecimento. Ele

estudou corpos vivos e mortos, desenhando-os com tamanha precisão, que tais desenhos

acabaram sendo usados por médicos durante muitos séculos depois.

Outro nome importante deste período é Andreas Vesálius (1514-1564), um

importante anatomista cuja obra De Humani Corporis Fabrica de 1543, influenciou

profundamente a medicina moderna, uma vez que abandona a anatomia de especulação 18

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teórica e dissecação animal, para pegar o próprio corpo humano como objeto de estudo,

tornando mais preciso o seu estudo.

A confiança na observação mais que na teoria refletiu-se também no fato de terem os médicos do século XVI começado a olhar seus pacientes de perto e a registrar o que viam. Na Itália, Giovanni Montanus (1498-1552), na Alemanha, Johann Lange (1485-1565), e na França, Jean Fernel (1497-1558) foram os clínicos preeminentes. Observações realísticas semelhantes às suas surgiram pela primeira vez no terreno da doença mental (...) coube a Félix Plater (1536-1614), professor de anatomia e medicina em Basiléia, aplicar medidas precisas de observação aos doentes mentais. Plater procurou classificar todas as doenças, inclusive as mentais, e passou tempo nos calabouços suíços estudando prisioneiros psicologicamente doentes. Plater considerava que a maioria das doenças mentais era devida a alguma espécie de lesão cerebral (...) Plater pode ser, de fato, considerado como digno precursor dos classificadores alemães da doença mental do século XIX. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 113-114)

Além desses, Ambroise Paré (1510-1590) marca uma nova forma de

compreensão, uma vez que é considerado o primeiro defensor do método experimental

na medicina. Em concordância com a doutrina de Hipócrates, sustentava que os

ferimentos deviam ser tratados de modo que o processo natural de cura pudesse ocorrer

sem interferências. Este método manteve-se presente nas universidades italianas e

começou a se desenvolver cada vez mais, devido ao interesse dos envolvidos e à

instrumentalização e mecanização que começaram a se estar presentes nas ciências

biológicas.

O Século XVII ou “A Era da Razão”

Atribui-se a diversos fatores a forma com que o conhecimento humano se

desenrolou no século XVII, e os mais significantes dentre eles, segundo os

historiadores, são os seguintes: a abertura de novas rotas marítimas por marinheiros

como Drake e Raleigh, a ideologia humanista, segundo a qual os homens devem confiar

em suas próprias aptidões, e a Reforma, que reforçava esta última concepção somando a

ela o questionamento da autoridade central.

No entanto, podemos distinguir dois métodos intelectuais no conhecimento

científico da época. O primeiro dava ênfase ao raciocínio dedutivo, analítico e

matemático, e é utilizado por Descartes, Hobbes e Spinoza, e o segundo método dava 19

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ênfase ao raciocínio empírico e indutivo, e foi empregado por Bacon e Locke. Apesar

destas diferenças, ambas as visões partilhavam da dúvida no conhecimento existente e

da crença de que o mundo seria governado por uma ordem racional a ser descoberta.

Galileu Galilei (1564-1642) representou bem a união de tais métodos, trazendo

avanços metodológicos com a ajuda de seu telescópio e da análise matemática. Mais

tarde, a própria ciência em seu sentido moderno pôde ser entendida como a integração

destes métodos.

René Descartes (1596-1650) foi outro pensador que alterou de forma

significativa os métodos de raciocínio. Foi ele o responsável pela separação do homem

em corpo e alma, separação esta que ainda vemos bastante presente em trabalhos

científicos e em ideologias contemporâneas. Seu famoso “cogito, ergo sum” (penso,

logo existo) marcou seu ponto de partida inatacável (para ele), e representa bem o

pensamento que se afirmava neste século.

Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632-1704) também trouxeram

contribuições decisivas: ambos acreditavam que o conhecimento tem origem na

experiência, isto é, nas percepções dos sentidos. Hobbes acreditava que todos os

fenômenos psicológicos seriam regulados pelo instinto de conservação da vida e pela

necessidade que o organismo teria de procurar prazer e evitar a dor, idéia essa que

aparece mais tarde em Spinoza, de forma mais ampla. Por sua vez, Locke realizou uma

significativa distinção entre experiência exterior (percepção dos objetos) e experiência

interior (percepção dos sentimentos e desejos).

O método empírico e a ênfase na observação direta são cada vez mais

empregados pelos médicos e dois deles, William Harvey (1578-1657) e Thomas

Sydenham (1624-1689), ambos ingleses, impactaram por suas formas de procedimento.

Harvey discutiu em toda sua carreira a influência das emoções sobre o corpo, e

descreveu pela primeira vez na história da fisiologia a circulação sanguínea.

Sydenham, segundo dizem seus biógrafos, não confiava em livros e acreditava

apenas no que podia ver e aprender em sua própria experiência à beira da cama dos

pacientes. Realizou importantes avanços no estudo da histeria, dizendo inclusive que

homens também poderiam ter a doença. Além disso,

20

Page 21: Trabalho completo em PDF

Sydenham reconheceu pela primeira vez que sintomas histéricos podem simular quase todas as formas de doenças orgânicas. Menciona, por exemplo, a paralisia de um lado do corpo, que pode ser também causada por apoplexia, e declara que a hemiplegia histérica pode resultar de alguma violenta comoção da mente (emoções fortes) (...) Sydenham não se interessava por explicações teóricas para a histeria. Confiava ainda no antigo conceito de que ‘espíritos animais’ causam doenças afetando partes do corpo. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 139)

A riqueza intelectual do século XVII fez com que houvesse muitas contradições

entre proposições filosóficas igualmente críveis (antinomias) entre os pensadores. A

mais importante delas aparece com Baruch Spinoza (1632-1677), ao buscar uma visão

unificada do mundo, substituindo o dualismo cartesiano por seu conceito de paralelismo

psicofisiológico, que supõe mente e corpo como idênticos (conceito integral do

organismo).

Spinoza elaborou um sistema teórico de personalidade, que é onde está presente

seu conceito de anseio de autoconservação. A importância deste pensador para a história

da psiquiatria refere-se justamente à igual importância dada aos fenômenos psicológicos

e materiais.

Por fim, não podemos deixar de citar dois autores do período que trouxeram uma

análise profunda dos conflitos inconscientes da personalidade humana: William

Shakespeare (1564-1616) e Miguel de Cervantes (1547-1616). Percebe-se aqui que

pensadores de diversas áreas do conhecimento tiveram implicações no desenvolvimento

da psiquiatria, contribuindo de forma decisiva para o avanço das reflexões.

O Iluminismo

O que se chamou de Iluminismo tem seu auge no século XVIII, mas suas

influências permanecem durante tempos depois. O que marca este período histórico

fundamentalmente, é que a substituição da tradição e a fé pela razão em vários aspectos

da sociedade, com especial destaque para a física, a química e a biologia.

A riqueza dos dados médicos e científicos obtidos nos séculos XVII e XVIII foi

tão grande que se fez necessária uma sistematização dos dados. Os primórdios disso se 21

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dão quando Carolus Linnaeus (1707-1778) classificou os espécimes botânicos em

gêneros e espécies, estendendo sua classificação ao mundo animal, onde colocou o

homem na ordem dos Primatas e lhe deu o nome de Homo sapiens.

Médicos que tentaram dividir em categorias os sintomas dos doentes mentais no século XVIII foram prejudicados pelo fato de terem à sua disposição para classificar poucas observações diretas de pacientes. Como a codificação era a ordem do dia, porém, os sintomas mentais foram descritos e divididos em categorias no decorrer de todo o século e, em 1800, grande número de clínicos havia meticulosamente relatado e classificado suas observações. Contudo, mesmo no trabalho de homens sensíveis como Philippe Pinel (1745-1826) e Vincenzo Chiarugi (1759-1820), a nosologia psiquiátrica superou o verdadeiro conhecimento das origens das misérias psicológicas; e sem conhecimento psicológico, a observação de doentes mentais, por mais cuidadosa que fosse só podia resultar em um sistema de classificação mais ou menos significativo. A sistematização não explica os fenômenos que classifica. Quando a classificação se estende demais, há tendência a ignorar dados fatuais que não se ajustam e o sistema fica repleto de erros. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 155)

Existem vários exemplos dessas sistematizações e classificações, mas uma que

merece destaque é a classificação de doença mental de William Cullen (1712-1790), por

ter uma compreensão mais refinada que as demais, e por ter sido determinante para a

posterior sistematização de Pinel.

É Cullen o primeiro a empregar o termo “neurose”, subdividindo-a em neurose

de Comata, Adynamiae, Spasmi e Vesaniae. “Os tratamentos de Cullen baseavam-se

principalmente em dieta, sangria e vomitório – as medidas habituais usadas para

combater distúrbios fisiológicos. Cullen, como a maioria de seus contemporâneos,

tratava violentamente os pacientes perturbados, com severa coação, ameaças e camisas

de força.” (Alexander e Selesnick, 1966, p. 158)

É Giovanni Morgagni (1682-1771) quem marcou a preocupação com a

localização das doenças mentais no cérebro. Realizando cerca de oitocentas autópsias,

Morgagni ensinava que as doenças tinham relações com determinados órgãos e

interessava-se especialmente pela patologia cerebral, influenciando muitos médicos com

esta visão de corpo humano.

22

Page 23: Trabalho completo em PDF

É, no entanto, Pinel quem traz uma das maiores contribuições deste período.

Tendo sido médico-chefe na Bicêtre e na Salpêtrière, Pinel desenvolveu um sistema de

classificação bastante simples e prático, que separava as doenças mentais em

melancolias, manias sem delírio, manias com delírio e demência.

Ele acreditava que a base dos transtornos mentais podia ser uma lesão no sistema

nervoso central, dessa forma, a doença mental deveria ser estudada por meio das

ciências naturais. Além disso, Pinel não encontrava aplicação para processos

terapêuticos baseados da administração indiscriminada de drogas ou nos processos

médicos tradicionais de purgação e sangria.

Sua contribuição primordial foi mudar a atitude da sociedade em relação aos insanos de modo que esses pacientes pudessem ser considerados seres humanos enfermos merecedores e necessitados de tratamento médico. Pinel sustentava ser impossível determinar se os sintomas mentais resultavam de doença mental ou dos efeitos das correntes (aprisionamento). (Alexander e Selesnick, 1966, p. 161)

Tais idéias estavam de acordo com sua época, pois medidas de reforma estavam

sendo propostas no sentido de humanizar o tratamento com doentes mentais, ainda que

a maior parte dos manicômios da época utilizasse métodos de tortura para o tratamento,

além de diversas outras práticas “desumanas”.

Considerado o “primeiro psiquiatra americano”, Benjamin Rush (1745-1813)

também buscou a humanização do tratamento e publicou Diseases of the Mind, o

primeiro manual de doenças mentais escrito por um americano. Ele seguia as crenças

médicas de Cullen, para quem a insanidade seria um resultado de perturbações dentro

do indivíduo e não de agentes misteriosos que se apossavam do corpo. Esta última

perspectiva, que podemos chamar de mágica, esteve bastante presente neste século das

luzes e continua presente até hoje, de formas as mais variadas.

A Reação Romântica

O que aqui está sendo chamado de reação romântica se refere à mudança no

otimismo do espírito racionalista do Iluminismo para uma redescoberta da profundeza

irracional da psique humana, com destaque para os instintos e paixões. De forma

23

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resumida, podemos dizer que a atenção dos pensadores passou da razão para a emoção e

a fé.

Um dos grandes nomes deste período é Jean Esquirol (1772-1840), discípulo de

Pinel, que seguiu fielmente os ensinamentos deste último, acrescentando aspectos de

sua própria abordagem. Esquirol realizou descrições precisas de sintomas clínicos, que

eram freqüentemente acompanhadas de estatísticas, algo inovador para a psiquiatria.

Foi ainda ele o primeiro a distinguir alucinação de delírio, percebendo que a

capacidade de raciocínio do ser humano está intimamente relacionada às suas

necessidades emocionais. Esquirol influenciou muitos médicos que descreviam de

forma cada vez mais sofisticada os quadros clínicos que tratavam.

Um desses seguidores de Esquirol foi J. Moreau de Tours (1804-1884), um

importante psiquiatra que juntamente com alguns contemporâneos alemães, preocupou-

se com as chamadas forças irracionais, emocionais e ocultas da personalidade, sendo

considerado um típico representante da tendência romântica. Tais médicos procuraram

compreender a pessoa como um todo, investigando os conteúdos psicológicos invisíveis

por trás da loucura.

Moreau influenciou seus colegas afirmando que a base para o entendimento

psicológico de outra pessoa é a introspecção. Foi ele quem salientou pela primeira vez

que os sonhos oferecem uma boa pista para o conhecimento das funções mentais da

pessoa, assim, Moreau chegou bem perto do conceito de inconsciente, quando

descreveu dois modos de existência: a comunicação com o mundo exterior e o próprio

reflexo do eu, que se alimenta das próprias fontes internas distintas.

Johann Christian Heinroth (1773-1843) foi um psiquiatra alemão que pensou

neuróticos e psicóticos como responsáveis por atos pecaminosos. Tais pecados que

Heinroth se referia eram pecados do pensamento, que ofendem o senso moral, algo

como um conflito entre impulsos inaceitáveis e a consciência, em termos mais

modernos.

Este autor dividia os processos psicológicos em três níveis de funcionamento,

entendendo a saúde mental como a plena assimilação dos princípios da consciência

dentro do eu. Heinroth afirmava ainda que a atitude do médico deveria se ajustar a cada

paciente.24

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Esta fase romântica com ênfase na psique humana foi sendo modificada por uma

ênfase neurológica:

Em meados do século (XIX) a medicina começou a formar conceitos modernos incorporando os princípios da física e da química. A psiquiatria também tentou tornar-se moderna e cientifica explicando o comportamento desordenado em termos de estrutura e função nervosas dilaceradas. Este conceito materialístico da doença mental teve suas raízes na formulação de Morgagni em 1761 de que as doenças se originam em perturbações localizadas dos órgãos corporais. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 202)

Além de física e química, a biologia também influenciava significativamente a

psiquiatria da época, sendo aliada a estudos sobre anatomia e fisiologia. Em 1858

Virchow publicava sua obra Die Cellular-pathologie in ihrer Begründung auf

physiologische und pathologische Gewebelehre, sobre patologia celular baseada em

histologia fisiológica e patológica, livro que assinala o início da era moderna na

medicina.

Um ano depois, em 1859, Darwin publicou The Origin of Species by Means of

Natural Selection, marcando profundamente os estudos nas mais diversas áreas do

conhecimento, e marcando também a era moderna na medicina

Dessa forma, percebe-se que o período romântico assinalou uma promoção do

tratamento humano dos doentes mentais, onde se encarou cada pessoa como caso único,

permitindo à psiquiatria romper com as classificações de Pinel e seus seguidores, que

ainda que fossem essenciais em seus primórdios, tenderam a se tornar estéreis

codificações.

A Era Moderna

O psiquiatra que melhor representa esta mudança de concepção do Romantismo

para a Era Moderna é Wilhelm Griesinger (1817-1868), autor de um manual de doenças

mentais:

Griesinger achava que sua missão era libertar a psiquiatria alemã da especulação dos românticos. Compreendia que a especulação poética romântica sobre insanidade só criava confusão e desejou propor em seu lugar um modo positivo de encarar a etiologia da doença mental. Demonstrações concretas de que alguns transtornos

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mentais tinham causas orgânicas haviam sido feitas por Bayle e Calmiel, que encontraram lesões patológicas no cérebro de indivíduos psicóticos sofrendo de paralisia cerebral geral. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 208)

Griesinger representou para a história da psiquiatria uma esperança para muitos

de que a chamada psicologia médica se tornaria com o tempo uma disciplina da própria

medicina, de forma que a psiquiatria fosse entendida como uma das especialidades

médicas.

Outro psiquiatra que entendia a insanidade fundamentalmente como uma doença

corporal foi Henry Maudsley (1835-1918), que dava menos importância ainda para as

especulações metafísicas sobre a doença mental, considerando que o caráter seria

determinado primordialmente pela estrutura do cérebro.

É se referindo a este psiquiatra que Euclides da Cunha termina sua obra Os

Sertões no capítulo chamado Duas Linhas: “É que ainda não existe um Maudsley para

as loucuras e os crimes das nacionalidades...” (Euclides da Cunha, [1902], 1981,

pg.409). Esta aparente “cultura inútil” é relevante para este trabalho, na medida em que

revela o tipo de influência teórica que havia no Brasil no começo do século XX, algo

que será abordado mais pra frente.

Os neurologistas estavam agrupando sintomas neurológicos em síndromes e finalmente em doenças; os neuropatologistas estavam localizando as lesões para explicar esses fenômenos clínicos; e, justamente impressionados, neuropsiquiatras começavam a aplicar princípios semelhantes ao comportamento. Algumas doenças neurológicas podiam ser diferenciadas apenas por observação clínica, mesmo sem o auxílio de investigação patológica. Por que não seria possível, então, sistematizar sintomas mentais em base clínica de maneira semelhante? (...) Assim os progressos médicos e neurológicos do século XIX induziram estudiosos do comportamento à descrição, sistematização e classificação das doenças mentais. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 219-220)

Tal ênfase neurológica na observação clínica produziu tantos dados que se

desenvolveram novas classificações, e Emil Kraepelin (1856-1925) desenvolveu como

nenhum outro tal empreendimento. Ele chegou a estudar com Wundt, e suas inclinações

para o método orgânico de encarar a doença mental foram encorajadas por seus

contemporâneos.

26

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Kraepelin reuniu milhares de histórias de casos, empregando uma psiquiatria

descritiva que influencia diretamente a classificação de pacientes até hoje, com base no

comportamento manifesto. Seu trabalho é considerado como a culminância do método

neurofisiológico, sendo que abordava as manifestações psicológicas da doença mental

apenas como base para classificação.

Assim como Pinel e Esquirol, Kraepelin demonstrou a importância de utilizar-se

a psiquiatria como método médico de observação, descrição e organização dos dados.

Esta postura foi essencial para a emancipação da psiquiatria como especialidade clínica

da medicina.

No fim do século XIX, diversos clínicos contribuíram para avanços a respeito de

fenômenos inconscientes. Entre eles merece destaque a figura de Jean-Martin Charcot

(1825-1893), um neurologista que priorizou mais os fatos que encontrava que as teorias.

Nomeado médico-chefe da Salpêtrière em 1862, onde havia cerca de cinco mil

pacientes, Charcot “passou a preocupar-se com o grande e heterogêneo grupo de

pacientes que não podiam ser incluídos em qualquer das categorias clínicas tradicionais.

Classificou este grupo como sofrendo de histeria ou neurose.” (Alexander e Selesnick,

1966, p.232) Ele acreditava que a histeria era uma doença orgânica do sistema nervoso.

Tendo grande reputação como neurologista, Charcot não se preocupou em

estudar o fenômeno da hipnose, que estava desacreditado em sua época. Conseguiu

avanços com este método, e por meio dele suspeitou que houvesse um grande papel dos

impulsos sexuais na origem da histeria, preparando o caminho para as futuras

descobertas de Freud.

Eugene Bleuler (1857-1939) foi um psiquiatra que também merece destaque,

uma vez que sua orientação em relação à doença mental teve profunda influência sobre

o ponto de vista dinâmico, que ainda caracteriza uma parte da psiquiatria. Bleuler

afirmava que os doentes mentais poderiam ser estudados e abordados psicologicamente,

reconhecendo assim o componente humano universal da doença mental. Ele não

concordou com Kraepelin em que a demência prematura fosse o resultado final da

demência precoce, mudando o nome da doença para “esquizofrenia”.

Ao contrário de seus contemporâneos que procuravam entender a doença mental em termos de patologia cerebral, Bleuler encarava as bizarras e

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distorcidas manifestações dos psicóticos como essencialmente semelhante aos processos mentais das pessoas normais. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 333)

Além disso, “foi sob a direção esclarecida de Bleuler no Hospital Psiquiátrico de

Burghölzli que a doutrina de Freud encontrou pela primeira vez acesso à psiquiatria.”

(Alexander e Selesnick, 1966, p.334)

Um importante psicólogo médico que estudou com Charcot foi Pierre Janet

(1859-1947), que apoiou a teoria de seu professor de que havia uma fraqueza no sistema

nervoso do histérico. Foi Janet quem formulou a teoria de que a falta de integração

resulta na separação de aspectos da consciência e conseqüentes fenômenos histéricos e

dissociativos.*

Por meio do método hipnótico, Janet descobriu que às vezes os pacientes se

livravam de seus sintomas através da experiência catártica de relatar o acontecimento

traumático, porém,

Esta descoberta foi feita também – de maneira independente e anteriormente – por Josef Breuer (1842-1925), mas Janet publicou suas observações antes de Breuer. As conseqüentes discussões sobre prioridade foram rancorosas. Nem Janet nem Breuer foram capazes de explicar o desaparecimento da sintomatologia depois da hipnose, pois ambos recaíam em explicações orgânicas da causa dos sintomas neuróticos. (Alexander e Selesnick, 1966, p. 235)

Um psiquiatra alemão de uma época um pouco posterior, mas que não pode

deixar de ser citado aqui foi Karl Jaspers (1883-1969), que foi também um filósofo

muito influenciado pelas idéias de Kierkegaard e Nietzsche. Jaspers buscou integrar a

ciência ao pensamento filosófico, em especial o existencialismo. Sua obra

Psicopatologia Geral marcou de forma significativa a psicopatologia, abrindo novas

formas de se pensar os procedimentos psiquiátricos.

Como já foi dito anteriormente, não é o objetivo deste capítulo traçar uma

história completa da psiquiatria, que pode ser encontrada em diversos trabalhos. Será

traçada uma breve história da medicina no Brasil, para nos situarmos mais precisamente

em relação ao desenvolvimento desta área em nosso país.

28

*Freud diz nas Conferências Introdutórias de 1915-1916 que quando Janet falou

em atos mentais inconscientes não disse muito com a frase.

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II. Breve Histórico da Medicina no Brasil

Senhores, uma immensa sciencia na força e disciplina de seus conhecimentos de longe domina a obra das grandes transformações humanas, multiplicando seus officios

para a perfeita eurythmia da vida social quer estendendo suas azas tutelares na proteção e amparo ás colletividades, quer no apperfeiçoamento das raças, na formação

das nacionalidades, no destino do mundo. Eis senhores a medicina!

Clementino Fraga, Gazeta Medica da Bahia, 1914,

Apud Schwarcz, 1993, p. 202.

De acordo com Lilia Schwarcz (1993), Michel Foucault afirma que o século

XIX viu nascerem dois grandes mitos: “o mito de uma profissão médica nacionalizada,

organizada à maneira do clero e investida ao nível da saúde e do corpo de poderes

semelhantes aos que este exercia sobre as almas; e um outro mito do desaparecimento

total da doença em uma sociedade sem distúrbios e sem paixões, restituída à sua saúde

de origem”. (p. 191)

29

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Dessa forma, após a revolução francesa, a medicina européia transformava-se

em atividade pública, “na qual o médico, considerado instrumento da nação, cuidava da

saúde dos corpos ao lado dos padres, que velavam pela saúde das almas” (Schwarcz,

1993, p. 191). Esta nova prática médica visava intervir nas epidemias, calcular o seu

perfil e induzir à cura, tentando corrigir o curso da morte. O médico, a partir daí, passa a

intervir ativamente na realidade, transformando-a.

No Brasil a situação era bastante diversa. Como ainda era uma colônia de

Portugal, o atendimento era bastante precário e pouco profissional, já que até 1808 a

Colônia foi impedida de fundar instituições de nível superior. “Em 1789, por exemplo,

o vice-rei Luiz de Vasconcelos queixava-se à Metrópole da existência de apenas quatro

médicos em toda a Colônia.” (Schwarcz, 1993, p. 193)

A falta de profissionais não era, porém, aleatória. As dificuldades em seguir a carreira médica no Brasil eram grandes: livros franceses tinham a entrada proibida, assim como era difícil o acesso à bibliografia médica em geral. No Rio de Janeiro, por exemplo, existia apenas uma livraria de obras de teologia e um vendedor de livros portugueses de medicina. Por outro lado, até 1800 a profissão permanecia vedada aos brasileiros. Foi só a partir dessa data que o édito real de 1° de maio passou a determinar que quatro estudantes designados pelo município do Rio de Janeiro, dariam continuidade a seus estudos em Coimbra: dois se especializariam em matemática, o terceiro em medicina e o último em cirurgia. (Schwarcz, 1993, p. 193)

De acordo com a autora, até 1808, data de chegada de D. João VI, “a maior parte

da atividade médica era desenvolvida por curandeiros ‘herbalistas’, herdeiros de

conhecimentos africanos e indígenas, ou por práticos que tinham suas atividades

fiscalizadas, até 1872, pelos ‘cirurgiões-mores’ do Reino.” (Schwarcz, 1993, p. 192)

Com a chegada da corte portuguesa, os problemas higiênicos e sanitários

multiplicaram-se, e não havia como a Metrópole socorrer com envio de profissionais,

uma vez que estava ocupada por tropas napoleônicas. Dessa forma, a solução

encontrada por D. João VI foi a de abrir escolas que formariam médicos aqui mesmo,

criando em 18 de fevereiro de 1808 a “Escola Cirúrgica” na Bahia e em 2 de abril

inaugurando a “Escola Cirúrgica” no Rio de Janeiro.

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Os cirurgiões-mores, que fiscalizavam as atividades, são substituídos em 1872

pela junta perpétua do Proto-Medicato cujos integrantes eram deputados e enfermeiros

diplomados em Coimbra que policiavam o exercício de qualquer atividade ligada à cura,

“além de habilitar com ‘cartas de autorização’ todos aqueles que quisessem praticar tal

‘arte. ’” (Schwarcz, 1993, p. 192)

A medicina no Brasil, portanto, começou tardiamente, mas passou a se

desenvolver cada vez mais. Não faremos aqui um histórico deste desenvolvimento, pois

o tema do trabalho é outro, mas estas considerações a respeito dos primórdios desta

prática certamente contribuirão com as discussões que serão feitas.

Correndo no tempo e pensando a sociedade brasileira contemporânea, vemos

que ocorrem alguns fenômenos que certamente têm relação com estas formas iniciais de

regular a atividade daqueles que praticam a “arte de curar”. Veremos que o termo

“curar” não se aplica tanto para a psicanálise, que na verdade busca uma compreensão

do que está sendo dito, mas de qualquer forma é importante pensarmos na psicanálise

como fazendo parte do campo da saúde.

Ultimamente temos visto diversos projetos que partem de médicos para serem

aprovados na Câmara visando um controle de médicos sobre outras atividades tais como

a psicoterapia. A idéia é a de que uma pessoa para chegar a um psicólogo clínico teria

necessariamente que passar por um médico antes, para que este último fizesse a

indicação. Uma medida como esta colocaria claramente a sociedade como refém destes

profissionais da medicina, que por vezes parecem abusar do status de “doutor” que as

pessoas lhe atribuem.

É para nos situarmos historicamente em relação a estas medidas corporativas da

medicina no Brasil que reside o objetivo deste capítulo. O leitor pode ter sentido falta de

um histórico mais específico da psiquiatria no Brasil, o que de certa forma poderia ter

sido interessante, porém, não é este o objetivo do trabalho, uma vez que a história da

psiquiatria mundial (sobretudo européia) já revela dados para avançarmos no trabalho

proposto.

De qualquer forma este trabalho pretende refletir não sobre as questões políticas

que envolvem a práxis médica, mas sim sobre como visões acerca do ser humano

influenciam a forma de se lidar com o sofrimento. No entanto, não se pode ignorar

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questões fundamentais na esfera macrossocial que influenciam a clínica de cada

profissional. Pensar a clínica isoladamente seria tornar-se um “clínico de gabinete”, o

que seria reducionista, uma vez que aspectos sociais influem na clínica, queiramos isto

ou não.

A seguir será apresentada, de forma mais aprofundada, uma reflexão acerca das

diferenças entre psicanálise e psiquiatria, para pensarmos a possibilidade de diálogo

entre tais abordagens.

III. Psicanálise e Psiquiatria

Hierófilo atribui aos humores a origem de nossas doenças; Erasístrato, ao sangue das artérias; Asclepíades, à

superabundância ou à escassez das energias físicas; Díocles, a um desequilíbrio na proporção dos elementos que compõem

nosso corpo, bem como à qualidade do ar que respiramos; Estráton, a um excesso, a uma dificuldade de assimilação e a

uma corrupção dos alimentos; Hipócrates, aos espíritos. Um de seus amigos (Plínio), que os médicos conhecem melhor do que

eu, diz a propósito que ‘a ciência mais importante para nós, aquela à qual incumbe a conservação de nossa saúde, é

infelizmente a mais incerta, a mais confusa, a mais agitada pelas contínuas mudanças de doutrina’. Não há grande mal em

errarmos na medida da distância do sol, bem como em qualquer cálculo astronômico, mas no caso da medicina é nosso ser que está em jogo e não me parece prudente nos abandonarmos ao

sabor dos ventos. Montaigne, (século XVI), 2000, p. 127.

Faz-se necessário aqui iniciar uma reflexão a respeito da relação entre a

psiquiatria e a medicina, antes de entrarmos no âmbito da psicanálise. Oficialmente a

psiquiatria faz parte das ciências médicas, ou podemos pensar que para tornar-se um

32

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psiquiatra a pessoa deve se formar numa faculdade de medicina. No entanto, há uma

questão específica que distingue a psiquiatria da dermatologia, ortopedia, pediatria, etc.,

que é o fato de a psiquiatria muitas vezes receitar medicamentos ainda que não encontre

lesão de órgão.

Certamente os psiquiatras utilizam seu status de “doutores” para atuar no campo

da saúde, mas entre os próprios médicos há preconceitos em relação a esta atividade. De

acordo com Lucien Israël (1994): “alguns lutam para manter a psiquiatria, a qualquer

preço, no campo da medicina. Mas, onde, Deus meu, a medicina usa o

comportamentalismo?” (p. 33-34) De fato, a psiquiatria que vemos atualmente vale-se

muito de métodos da psicologia comportamental, ao contrário do resto da medicina que

atua com remédios ou cirurgias para lidar com o patológico.

De acordo com este autor, o próprio Freud dizia em 1925 que o

comportamentalismo é uma visão ingênua que torna evidente a vontade de se

desembaraçar do psiquismo humano. Agora, se assim for, o uso do

comportamentalismo por parte dos psiquiatras torna bastante estranho o fato da

psiquiatria, ainda que se pretendendo médica, buscar se livrar do psiquismo, já que

originalmente era este o seu objeto de estudo, bastando para isso atentar para o prefixo

da palavra.

Continuando sua crítica, Lucien Israël afirma que “o comportamentalismo está,

assim, sempre ligado a uma formulação implícita que é a de deixar pensar os que

sabem” (p. 35), ou seja, o “doutor”. “Basta ver as práticas comportamentais nas

instituições psiquiátricas: o sistema da cenoura e do bastão. Peguem qualquer psicótico

e o condicionem a se comportar bem – e ganhar um doce quando o faz, ou ser privado

de roupas e de comida quando faz errado.” (Israël, 1994, p.35)

As diferenças metodológicas entre psicanálise e psicologia comportamental não

serão abordadas aqui, uma vez que este é tema para longas reflexões. Porém, a maioria

dos clínicos reconhece que a psicologia comportamental é bastante eficaz em

determinadas situações, tendo seu mérito garantido no chamado “campo psi”. O que

podemos questionar é se o uso que os psiquiatras fazem desses métodos são coerentes

com a teoria. Muitas vezes este uso nos remete aos experimentos com animais de

Pavlov, que certamente a psicologia comportamental pode questionar, uma vez que já

33

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avançou muito desde então, ainda que continue trabalhando com o conceito pavloviano

de “reflexos condicionados”.

Percebe-se, dessa forma, que as divergências entre psicanálise e psiquiatria são

bastante grandes, uma vez que uma parece levar em conta o psiquismo e a outra não,

mas veremos que há possibilidades para encontrarmos convergências também. Não se

trata aqui, de forma alguma, de se pensar psicanálise versus psiquiatria mesmo porque

isto não faria o menor sentido, tendo em vista as origens da psicanálise. Porém, de toda

forma a psiquiatria atual e a psicanálise têm peculiaridades que muitas vezes dificultam

um diálogo entre os profissionais e é isto o que vamos analisar.

A psiquiatria, adotando práticas da psicologia comportamental e adotando

manuais diagnósticos que enquadram e rotulam os pacientes, se modifica enormemente,

se analisarmos sua história a partir do começo do século XX.

Para Lucien Israël (1994),

Estamos, assim, construindo, debaixo de nossos olhos, uma psiquiatria oficial que suprime cuidadosamente qualquer traço não só de originalidade, mas de reflexão pessoal e toda consideração cultural. Lidamos com a técnica. Da mesma maneira que colocamos trilhos em todos os lugares, vamos colocar conceitos psiquiátricos, na mesma medida, em todos os lugares onde há psiquiatras e pessoas que precisam deles. (Israël, 1994, p. 62, grifo meu)

O “lidar com a técnica” é uma questão central para a discussão que queremos

realizar. No século XIX no Brasil, “recebiam a alcunha de ‘endireitas’ aqueles que

ajudavam nos casos de fraturas ou luxações” (Schwarcz, 1993, p. 193). Estes

“endireitas”, denominação vista também em textos de Machado de Assis, seriam o que

hoje chamamos de ortopedistas, que são sabidamente os profissionais que lidam com

uma das áreas mais técnicas da medicina.

O que queremos mostrar nesse trabalho é que a psicanálise não se propõe uma

espécie de “endireita”. Não pretende endireitar nada, mas lidar com o sofrimento

humano levando em consideração a subjetividade e colocando o sujeito em cena. A

psicanálise não está interessada em “deixar pensar os que sabem” como afirma Israël

(1994, p. 35), mesmo porque ela parte de um princípio de que não sabe a respeito do

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sofrimento do outro, ainda que pretenda lidar diretamente com isso. E justamente por ter

uma ética definida é que a psicanálise se distancia da técnica.

Durante os invernos de 1916 e 1917, Freud proferiu uma série de conferências

introdutórias sobre psicanálise, entre elas, uma intitulada Psicanálise e Psiquiatria. A

questão da interlocução possível entre estas áreas, portanto, não é recente, mas devemos

considerar que a psiquiatria no começar do século XX é bastante diferente da psiquiatria

dominada pelas neurociências que se utiliza de manuais diagnósticos.

Em sua primeira conferência introdutória sobre psicanálise, Freud afirmou que:

[a psicanálise] procura dar à psiquiatria a base psicológica de que esta carece. Espera descobrir o terreno comum em cuja base se torne compreensível a conseqüência do distúrbio físico e mental. Com esse objetivo em vista, a psicanálise deve manter-se livre de toda hipótese que lhe é estranha, seja de tipo anatômico, químico ou fisiológico, e deve operar inteiramente com idéias auxiliares puramente psicológicas. (Freud [1916], 1969, p. 30)

Nesta conferência “Freud afirma que os médicos só são adversários da

psicanálise porque não prestam suficiente atenção no que lhes dizem seus pacientes, e

os conclama a ouvir esse dizer, na esperança de com isso diminuir a resistência à

psicanálise.” (Quinet, 2001, p. 7)

Para que esta resistência possa ser reduzida podemos pensar como Freud, para

quem a psiquiatria e a psicanálise completam-se. Segundo ele, “o que se opõe à

psicanálise não é a psiquiatria, mas os psiquiatras. A psicanálise relaciona-se com a

psiquiatria aproximadamente como a histologia se relaciona com a anatomia: uma

estuda as formas externa dos órgãos, a outra estuda sua estruturação em tecidos e

células.” (Freud, [1916, 1917], 1969, p. 262)

Para Quinet, no momento em que “a neurose desaparece dos manuais

psiquiátricos para dar lugar a transtornos tratados por medicamentos, existe o risco de

que essa relação se desestabilize.” ( 2001, p. 10)

Os primórdios desta relação entre psicanálise e psiquiatria se dão quando Freud

vai para a Salpêtrière aprender com Charcot. Neste encontro, que foi fundamental para a

descoberta do inconsciente e para o desenvolvimento da psicanálise, Freud começa a

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perceber que não é apenas importante descrever os quadros psicopatológicos, como

fazia tão bem Charcot, mas era também importante criar um espaço da palavra e da

escuta das histéricas. Dizem alguns inclusive que foram estas “histéricas” as

“descobridoras” da psicanálise, exatamente no momento em que dizem para o médico

parar de falar e ouvi-las (o que Freud teria feito de diferente foi conseguir sustentar a

relação transferencial, ao contrário de Charcot e outros médicos da época).

De acordo com Morais (2000), um corte epistemológico foi realizado por Freud

neste momento, já que, guiado pela escuta da histérica, anuncia um novo corpo e uma

nova alma, subvertendo a idéia de corpo anatomofisiológico.

Buscando compreender o sintoma histérico, Freud cria o corpo teórico da

psicanálise; “resgatando a histérica à dimensão de sujeito, reintroduzindo pela janela da

história o que saíra pela porta da ciência descritiva: a singularidade do sujeito

desejante.” (Morais, 2000, p. 100)

Com a escuta das histéricas, Freud descobre que o corpo fala. Segundo Morais:

Na experiência histérica o corpo se faz sintoma esforçando-se por dizer o que não pode ser dito. E o que o corpo tem a dizer? Que existe o desejo. Freud afirma que o sintoma se faz para atender às exigências da pulsão e que, apesar de sua relação com o desejo, ele realiza uma satisfação, enfim, o sintoma satisfaz. A satisfação é justamente o fim buscado pela pulsão pela via do corpo. (2000, p. 100)

Descobrindo uma linguagem entre a ordem do corporal e do psíquico, ou seja,

que o sintoma tem sentido, Freud consegue ir um pouco além do dualismo cartesiano,

dualismo este que até hoje influencia toda a ciência.

Sabendo-se que este sentido existente no sintoma é diferente para cada sujeito,

passa a existir uma divergência na medida em que “se o discurso da ciência pressupõe a

realização da universalidade conceitual, a psicanálise é a modalidade de saber que

pretende reconhecer a singularidade do sujeito. Singularidades e sujeitos sofrentes que

buscam a possibilidade de, no seu desejo e na sua dor, reinstaurarem a liberdade de seu

diálogo com o mundo”. (Morais, 2000, p. 101)

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Seguindo o raciocínio usado no artigo de Morais, faz-se importante definir o

campo epistemológico da psiquiatria e da psicanálise. Segundo a autora:

A psiquiatria, como uma especialidade médica, se encontra no campo das ciências da natureza na sua vertente biológica. Falar de psiquiatria biológica não deixa de ser uma redundância, porque a psiquiatria carrega em si naturalmente este aspecto. Mas a psiquiatria não é apenas isso. A psiquiatria, das especialidades médicas, é aquela que se propõe dar um passo além da medicina, o seu objeto é o fenômeno psíquico, para o qual não existem parâmetros tão definidos como os sintomas e sinais funcionais, físicos e biológicos da medicina, que permitem classificar o doente numa determinada categoria. (2000, p. 102)

E completa:

Em psiquiatria, os sinais objetivos são escassos quando comparados com a medicina em geral e o transtorno mental se inscreve num distúrbio de comportamento em relação a uma norma. Não existe ‘norma em si’, pois ela varia com o meio e a cultura. Por isso, a psiquiatria é o saber médico que mais se defronta com aspectos morais, sociais e políticos, bem como uma série de questões colocadas pelas ciências humanas. (2000, p. 102)

Por outro lado, a psicanálise aborda o sintoma diferentemente, “o sintoma

psicanalítico é falado pelo paciente em seu próprio discurso. O sintoma freudiano só

existe a partir do discurso do paciente, dentro do dispositivo analítico, no

endereçamento do discurso do cliente sob transferência com o analista, estando o

analista implicado neste sintoma.” (Morais, 2000, p. 102)

Dessa forma, os conceitos psicanalíticos foram adotados por permitirem uma

compreensão maior dos casos clínicos. De acordo com Morais, a experiência

psicanalítica não poderia ser repetida por pesquisadores independentes como na ciência

em geral, e é por esta razão que Popper critica a psicanálise, por não ter como realizar

uma constatação empírica.

Porém tal crítica não retira o mérito desta abordagem. O próprio Freud afirmava

que tanto os conceitos da física, quanto os da psicanálise, são construções de valor

heurístico. Pode-se utilizar aqui uma importante passagem do artigo de Marília Morais:

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Colocadas estas considerações, percebemos que esta discussão entre psiquiatria e psicanálise não trata apenas da solidez epistemológica ou de debates acadêmicos, mas do sofrimento psíquico de seres humanos. Os progressos da ciência são bem-vindos na medida em que aliviam sofrimentos desnecessários. E a ciência, enquanto é composta de recortes parciais do real, está num constante vir-a-ser. Apostar tudo nos medicamentos é tão reducionista quanto achar que as palavras recobrem tudo. São lugares distintos: o da medicação e o da palavra. Não há como estabelecer disputa e competição entre eles. Se existe uma clínica do medicamento e uma clínica da palavra, elas não se excluem mutuamente. Não é isso ou aquilo. É muitas vezes isso e aquilo. (Morais, 2000, p. 105)

A psiquiatria contemporânea possui algumas peculiaridades, como já vimos até

agora. Se a psicanálise é uma ciência do singular que trabalha com o discurso do

paciente, que pode ser um doente mental, a forma como a psiquiatria está se deparando

com o doente mental é através das classificações, e é isso o que vamos começar a

analisar no próximo capítulo intitulado “Diagnósticos”.

IV. Diagnósticos

Para abordar este assunto, usei fundamentalmente o livro O que é diagnosticar

em psiquiatria, de Jorge J. Saurí, visto que traz as evoluções históricas do uso do termo

de forma detalhada, com especial ênfase nas contribuições psicanalíticas. Comecemos

então com uma citação a respeito do conhecimento filológico implicado no termo

“diagnóstico”:

A área semântica do vocábulo diagnosis – integrada por termos como diagignosko, separar e decidir; diagnome, deliberação e decisão; diagnomon, perspicaz, vigilante e atento; diagnorizo, fazer, conhecer e divulgar, e diagnostikos – designou, em suas origens, o fato e os atos de reconhecer e discernir, e configurou um campo significativo relativo a um modo de conhecer que consistia em separar e discriminar as notas do cognoscível. (Saurí, 2001, p. 10)

Como se pode imaginar, visto os prefixos e sufixos, a origem do termo é grega, e

nesta época Clássica, o diagnosticar era, de fato, discernir, o que se refere à

possibilidade de se conhecer racionalmente algo de forma lúcida. O intuito do

diagnosticar era, portanto, encontrar o que seria possível de ser conhecido de fato, para

assim decidir-se alguma coisa.

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Avançando bastante no tempo, a noção seguinte mais relevante sobre a

concepção do diagnóstico vem no século XVII, com a concepção de Descartes de

diagnóstico como uma noção de representação. Neste sentido, o diagnosticar supõe a

representação daquilo comprovado pela compreensão do cogito (pensamento) havendo,

portanto, um domínio intelectual do Sujeito, que assim ocupava um lugar hierárquico.

Assim entendido, a tarefa diagnóstica é exercício de um poder por parte de quem detém o saber, que aumentará recorrendo a métodos e procedimentos “complementares”. O aparelho conceitual integrado pela representação e a primazia do Sujeito, evidencia uma sutil intenção de submeter o cognoscível à vontade do conhecedor. Quem diagnostica, discerne e decide e, em função disso, oferece segurança. (Saurí, 2001, p. 14)

Foram estas concepções de percepção do conhecimento e de liberdade do

cognoscente que tornaram possível o surgimento conceitual do diagnóstico empírico.

Esta concepção, na medida em que perseguia o ideal das ciências exatas, buscava

decidir, reconhecer e nomear entidades, fazendo representações e, por fim,

confrontando-as para encontrar conclusões gerais.

Guiados por esta aspiração, a meta diagnóstica dos alienistas do naturalismo empirista foi descrever espécies mórbidas indo, segundo Locke prescrevera, das idéias simples às complexas. Isto levou, além de sua utilidade, a sobrevalorizar o signo físico buscando-o, quando não era suficientemente claro, por outros meios, mas não levando em consideração os limites entre o sistema observado e o observador – lembremos a soberania do Sujeito – o diagnóstico empirista ficou circunscrito à detecção da sucessão natural do observado. (Saurí, 2001, p. 17)

De forma alguma este procedimento deve ser desvalorizado, uma vez que

desenvolveu formas de pensar inéditas. No entanto, a relação entre o que acima foi

chamado de sistema observado e o observador merece destaque.

Hume assinalou que mesmo a causalidade sendo perceptível e legível nos mesmos fatos – como acreditava Locke -, ela consiste num enlace permanente entre dois fatos que, para o observador, tomam a aparência de necessários. E como esta causalidade resulta de nossos próprios hábitos, mesmo que os conhecimentos empiristas tenham uma certeza subjetiva, a necessidade da vinculação dos fatos entre si está fabricada por nós. (Saurí, 2001, p. 20)

Esta noção que Hume introduz revoluciona a forma de se pensar o empirismo, e

assim, um aprofundamento maior faz-se necessário.39

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Diagnósticos: uma análise filosófica

Cried the maid: ‘You must marry me, Hume!’

A statement that made David fume.

He said: ‘In cause and effect,

There is a defect;

That it´s mine you can only assume.’ *

P. W. R. Foot, in E. O. Parrott, 1991, pg. 61.

O trecho acima se trata de um limerick, um tipo de poesia da língua inglesa que

pode abranger vários assuntos. Os primeiros limericks de que se tem notícia são

provavelmente do século XIX, e sempre foram cômicos, elaborados com rimas

AABBA, em sua maioria. Grandes autores como Aldous Huxley, Lewis Carroll, Mark

Twain, Robert Frost, James Joyce e Isaac Asimov produziram seus limericks sobre

diversas situações, e com diferentes tipos de humor.

Serão resumidas, a seguir, as idéias de David Hume, por serem fundamentais

para este capítulo sobre diagnóstico (um benefício secundário disto é o leitor poder

entender a comicidade do limerick, caso não tenha entendido).

...não há classificação do universo que não seja arbitrária e conjetural. A razão é muito simples: não sabemos o que é o universo. “O mundo – escreve David Hume – talvez seja o rudimentar esboço de algum deus infantil que o abandonou pela metade, envergonhado de sua execução deficiente; ou a obra de um deus subalterno, alvo de zombaria dos deuses superiores; ou a confusa produção de uma divindade decrépita e aposentada, que já morreu” (Dialogues Concerning Natural Religion, V, 1779). Pode-se ir além; pode-se suspeitar que não há universo no sentido orgânico, unificador, que tenha essa ambiciosa palavra. Se houver, falta conjeturar seu propósito; falta conjeturar as palavras, as definições, as etimologias, as sinonímias do secreto dicionário de Deus. (Jorge Luís Borges, 1999, p. 94-95)

A primeira frase do trecho acima é essencial para este trabalho, na medida em

que afirma que as classificações são sempre arbitrárias e conjeturais, como já foi dito

anteriormente. Esta reflexão será feita de forma mais completa no próximo capítulo, 40

*Disse a empregada: ‘Você deve se casar comigo, Hume!’ Uma afirmação que deixou David muito

irritado, Ele disse: ‘Em casa e efeito, Existe um defeito; Que é meu você só pode supor.’

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intitulado “Classificações”, mas é importante considerá-la também neste capítulo, na

medida em que a classificação e o diagnóstico são práticas que se relacionam na práxis

de profissionais da saúde mental.

Vamos, então, entrar em maiores detalhes sobre a questão que nos interessa aqui

e que possui uma relação direta com o ato de diagnosticar, que é a relação entre o

sistema observado e o observador, segundo Hume.

David Hume (1711-1776) é considerado por muitos o maior filósofo da língua

inglesa, além de ter sido também um conhecido historiador e ensaísta.

Seguindo a tradição de Locke e Berkeley, Hume foi um empirista, um naturalista e um cético (...) Homem agradável e sociável, Hume fez amizades com os principais intelectuais do seu tempo. Ele contava com Adam Smith, James Boswell, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau entre os seus amigos e conhecidos. (Garrett, 2008, p.62)

Uma das concepções centrais da teoria de Hume é que a experiência humana é

apenas a do fenomênico, das impressões dos sentidos, no entanto, não há nenhum meio

de averiguar o que está além dessas impressões dos sentidos, das espirituais ou de

quaisquer outras.

Ele distinguia impressões sensoriais de idéias: as primeiras são a base de

qualquer conhecimento e surgem com força e vivacidade que as tornam singulares, já as

idéias são cópias esmaecidas dessas impressões, segundo Tarnas (1991).

Dessa forma, pode-se experimentar por meio dos sentidos uma impressão da cor

azul, por exemplo, e com base na impressão pode-se ter uma idéia dessa cor pela qual

ela pode ser lembrada.

Perguntamo-nos então: o que causa a impressão sensorial? Se todas as idéias válidas têm como base uma impressão correspondente, a que impressão pode a mente indicar para sua idéia de causalidade? Nenhuma, respondeu Hume. (Tarnas, 1991, p. 362)

Analisando a experiência sem preconceitos, a mente deveria reconhecer que de

fato todo o seu suposto conhecimento se baseia em inúmeras sensações isoladas, as

quais a própria mente organiza.

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De sua experiência, a mente extrai uma explicação que na verdade deriva dela mesma, não da experiência. A mente não pode realmente saber o que causam as sensações, pois jamais experimenta a “causa” como uma sensação. Ela experimenta apenas impressões simples. Ou melhor, através de uma associação de idéias – o que é apenas um hábito da imaginação humana -, a mente pressupõe uma relação causal que de fato não tem nenhuma base na impressão sensorial. Tudo o que o Homem tem para fundamentar seu conhecimento são as impressões da mente; ele não tem como conhecer o que existe além dessas impressões. (Tarnas, 1991, p. 362)

Uma das questões centrais que podemos retirar desta teoria de Hume é que nossa

mente pode nos enganar. Isso se refere à que “a inteligibilidade do mundo reflete

hábitos da mente, não a natureza da realidade.” (Tarnas, 1991, p. 363)

Para ficar mais claro, podemos pensar em alguns exemplos: coloquei a mão no

fogo logo, me queimei; me irritei porque fulano fez tal coisa; estou resfriado porque

tomei chuva. Em todos estes exemplos, uma relação causal está explicando o

acontecido, mas como podemos saber estas coisas? Será que não existe a possibilidade

de estarmos empregando uma causalidade enganosa? “You can only assume” (você só

pode supor), segundo o limerick.

O leitor pode estar se perguntando o que toda esta reflexão tem a ver com um

capítulo intitulado “Diagnósticos”. Já digo: grande parte dos diagnósticos psiquiátricos

atualmente é baseada em classificações de manuais que foram feitos segundo pesquisas

empíricas. Ora, as conclusões de Hume debilitam a ciência empírica, uma vez que a

fundamentação lógica dela, a indução, parece agora injustificável.

O progresso lógico da cultura, indo de muitos particulares para uma certeza universal, jamais poderia ser legitimado absolutamente: não importa quantas vezes se observe uma determinada seqüência de eventos, jamais se pode ter a certeza de que esta é causal e sempre se repetirá nas observações subseqüentes. (Tarnas, 1991, p. 364)

E mais:

Pode-se perceber a regularidade dos eventos, mas não sua inevitabilidade. Esta não passa de um sentimento subjetivo induzido pela aparência de aparente regularidade. Em tal contexto, a Ciência é possível, mas é apenas uma ciência do fenomênico, das aparências registradas na mente; sua certeza é

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subjetiva, determinada não pela natureza, mas pela psicologia humana. (Tarnas, 1991, p. 364, grifo meu)

A física quântica parece de acordo com estas teorias de Hume:

Uma questão central da física quântica é que eventos microscópicos individuais são imprevisíveis, mas as estatísticas destes eventos são previsíveis. É como jogar moedas: Você não pode prever o que sairá depois que jogar a moeda uma vez, mas pode-se prever que você terá cerca de 50% de ‘caras’ depois de jogá-la várias vezes. (Hobson, 2007, p. 362, tradução minha)

O melhor exemplo disso é do átomo de urânio (ou de qualquer núcleo instável),

que emite partículas com uma freqüência indeterminada pela ciência.

Por causa das incertezas quânticas, a natureza “sabe” apenas as chances que uma partícula alfa será ejetada, mas não quando será ejetada. Um determinado núcleo de urânio pode ter um decaimento radioativo em 1 segundo, em 1 ano, ou em 20 bilhões de anos (...) É como jogar moedas: podemos prever as estatísticas, mas não o que acontecerá individualmente. (Hobson, 2007, p. 362, tradução minha)

Albert Einstein não acreditou muito nesta teoria. Segundo ele, não sabíamos

determinar o momento preciso da ocorrência de decaimento de partículas, pois ainda

não havia pesquisas suficientes, mas com o tempo a ciência poderia determinar tais

momentos – uma visão claramente empírica. Ele disse: “Eu não posso crer que Deus

jogue dados.” (Gribbin, 1999, p. 110)

Porém, atualmente a grande maioria dos físicos acredita na teoria da física

quântica e neste princípio da incerteza. Acreditam que mesmo com o conhecimento

humano avançando, nunca se saberá o momento exato no qual o átomo radioativo irá

realizar o decaimento de partículas; é simplesmente algo imprevisível. Ficam do lado de

Niels Bohr que respondeu a Einstein algo como: “Albert você não deveria dizer a Deus

o que Ele deveria ou não fazer”.

Novas Possibilidades

A impossibilidade de penetrar o esquema divino do universo não pode, contudo, dissuadir-nos de planejar esquemas humanos, mesmo sabendo que eles são provisórios.

Jorge Luís Borges, 1999, p. 95.

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Apesar das críticas de Hume, o método empírico continuou progredindo em

diversas áreas do conhecimento. As afirmações feitas por estudiosos precisavam ser

colocadas à prova, para que houvesse uma validade empírica do que estava sendo dito.

No caso da clínica, contudo, devemos nos perguntar se a tarefa diagnóstica

baseada exclusivamente em um processo científico criticista permite uma boa

compreensão do sujeito. De acordo com Saurí,

A busca de precisão “científica” desemboca em um empobrecimento conceitual. A clínica fica, então, subordinada ao diagnóstico, concebido como a coroação de um saber. E assim como o diagnóstico empirista desembocou em uma nosologia, o positivista o transformou na classificação. (2001, p. 23-24)

É justamente Freud quem vai conseguir se afastar desta forma de abordar o

sofrimento psíquico, após ter registrado os sinais mencionados por Schreber e se

perguntar a respeito do mecanismo paranóico, segundo Saurí (2001). Este

questionamento marcou uma novidade na medida em que buscava conhecer o

desenvolvimento dos processos relativos à categoria nosológica.

Dessa forma, Freud começava a construir uma teoria que mudaria a história da

psiquiatria. Discriminando as “fases” – oral, anal e genital – ele inseriu a tarefa

diagnóstica no fluir da libido e nas relações de objeto.

A prática psicanalítica mostrou que a tarefa diagnóstica identifica “organizações” do aparato psíquico – etapas da libido, relações de objeto, falso self – que não se correspondem nem são homólogas com as categorias nosológicas. E, assim, a prática psicanalítica introduziu no terreno da tarefa diagnóstica um terceiro critério: não basta registrar e agrupar signos e categorizar síndromes – conjunto de sintomas atribuídos a uma causa - é necessário, ainda, detectar e interpretar o funcionamento de organizações psíquicas inconscientes próprias das alterações manifestadas. (Saurí, 2001, p. 29-30)

Mais tarde, Lacan acrescenta algumas considerações a respeito do diagnosticar,

quando afirma que este se trata de um discurso vazio cuja significação é função das

relações de posição. Diz, no entanto, que esta enunciação remete a um sujeito do qual

temos o direito de duvidar, na medida em que nunca se pôde conhecer a si mesmo. Esta

concepção vem complementar o diagnóstico que leva em consideração o inconsciente.

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As concepções psicanalíticas tornaram ainda mais flagrantes as limitações da

visão positivo-naturalista:

O afã classificatório (...) sendo parcial e redutivo, dificultou o conhecimento, levando-o a um beco sem saída. Não se tratava de uma abordagem falsa, mas sim limitada, uma vez que mais buscava explicar o encontrado do que compreendê-lo. É certo que para um estudo epidemiológico, por exemplo, necessito contar com um registro de “identidades” fixas, uma linguagem compatível e partilhada e um vocabulário estável. Mas quando sou levado a considerar a pessoa, isto não funciona porque a tarefa diagnóstica, ao ir fazendo-se com a personalização interrogada, é como ela, aberta, transitória e versátil. Isto supõe chegar a conhecer uma “identidade” de modo reflexivo, meditado e ponderado, identificando os signos do considerado para poder “reconhecê-lo” em outro momento ou situação, quando alguns deles se repitam. (Saurí, 2001, p. 40)

Na passagem acima o autor nos diz que quando as classificações se deparam

com a subjetividade de cada pessoa, seu intuito se complica. Não nos esqueçamos que,

como já vimos no capítulo “História da Psiquiatria”, a sistematização dos dados

médicos se tornou intensa por volta dos séculos XVII e XVIII, e foi muito influenciada

pelo sistema de Linnaeus, que classificou os espécimes botânicos. O que se questiona é

se um bom método utilizado para classificação de musgos, arbustos e vegetais em geral,

é também um bom método para a classificação do sofrimento humano.

Se o diagnóstico psiquiátrico atual parece ser fundamentado nas classificações,

esta reflexão nos será bastante bem-vinda, para que possamos entender as características

deste processo – é isso o que será abordado no próximo capítulo.

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V. Classificações

São semi-loucos: Julio Cesar, Napoleão, Flaubert, Richelieu, Dostoiewsky, Byron, Pascal, Mozart e Wagner. São loucos (ao menos no fim da vida) Comte,

Newton, Nietche, Moliere. São maniacos perseguidos: Rousseau, Haller. São maniacos de grandeza Balzac, Swift. São neurasthenicos Voltaire, Chateaubriand, Zola, Chopin e

sobretudo Pasteur. Além de outras formas de maniacos: original, Tolstoi; esquecido, Diderot; decadente, Wagner; surdo, Bethoven; sonnabulo, Goethe; egoista, Victor

Hugo... O que preocupa é menos a insanidade manifesta e mais a proximidade existente entre a degeneração, a loucura e a criminalidade.

Laurindo Leão,Revista Academica da Faculdade de Direito do Recife, 1913,

Apud Schwarcz, 1993, p. 167.

Para ser bem compreendido, o trecho acima deve ser situado em seu

contexto histórico. Inauguradas em 1828, as faculdades de direito de Pernambuco e de

São Paulo, desde seu início, influenciaram a sociedade brasileira de forma a trazer

discussões acerca de idéias novas, a maioria importadas da Europa. Entre 1868 a 1878

em particular, houve uma grande mudança:

De repente a imutabilidade das coisas se mostrou... Um bando de idéias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte... Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance, novos processos de crítica e história literária, transformação da instrução do Direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da Escola de Recife. (Romero 1926, Apud Schwarcz, 1993, p. 148)

Silvio Romero, autor da passagem acima, tornou-se uma figura de destaque entre

os bacharéis do direito no Brasil. Esse mesmo autor, quando defendia sua tese de

economia política em 1875, entrou num embate com o prof. Dr. Coelho Rodrigues que

era um dos integrantes da banca e reclamou da oposição que fazia Silvio Romero à

metafísica, ao que Romero respondeu:

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- Nisto não há metafísica, há lógica.- A lógica não exclui a metafísica, replicou o argüente.

- A metafísica, não existe mais, se não sabia, o saiba, treplicou o doutorando.

- Não sabia, retruca esse.- Pois vá estudar e aprender para saber que a metafísica

está morta.- Foi o senhor quem a matou? , perguntou-lhe então o

professor.- “Foi o progresso, a civilização”, Respondeu o bacharel Silvio Romero que ato contínuo se

levantou, tomou os livros que estavam sobre a mesa e disse com ar triunfante: “Não estou para aturar esta corja de ignorantes que não sabem de nada.” (Bevilacqua 1875, Apud Schwarcz, 1993, p. 148)

Estas passagens exemplificam, sob a figura de Silvio Romero, as mudanças que

estavam acontecendo na sociedade brasileira naquela época. Na tentativa de buscar um

rigor com suas pesquisas e uma diferenciação da hegemonia rural brasileira, os

intelectuais envolvidos acreditavam cegamente na cientificidade, se dizendo “longe da

metafísica” e “distantes do subjetivismo”, considerando que a “sciencia tudo pode”.

(1894, Apud Schwarcz 1993, p. 150)

Silvio Romero, que se considerava um “homem de sciencia”, foi um fiel

seguidor do determinismo racial pensando, sob tais influências (modelos deterministas

biológicos e etnográficos), a questão da mestiçagem e da criminalidade no Brasil.

Romero e muitos outros de sua época utilizaram como referências teóricas para

suas teses, acima de tudo, Lombroso e Ferri, pensadores da chamada “Escola Italiana”,

que tentavam entender os crimes a partir da análise “do individuo, de seu typo phisico e

da raça a que pertence”. (1891, Apud Schwarcz 1993, p. 156)

Para alguns teóricos, o tipo físico do criminoso era tão previsível que seria possível delimitá-lo de forma objetiva. Lombroso, por exemplo, criou uma minuciosa tabela, subdividida em: “elementos anathomicos” (assimetria cranial e facial, região occipital predominante sobre a frontal, fortes arcadas superciliares e mandíbulas além do prognatismo); “elementos physiologicos” (insensibilidade, invulnerabilidade, mancinismo e ambidestria); “elementos psycologicos” (tato embotado, olfato e paladar obtusos, visão e audição ora fracas ora fortes, falta de atividade e de inibição); e “elementos sociológicos” (existência de tatuagens no corpo). (1913, Apud Scwarcz 1993, p. 166)

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Neste ponto podemos retomar a primeira passagem citada, de Laurindo Leão,

professor de direito criminal da faculdade de direito de Recife. Para ele um “critério

objetivo de análise” como esta frenologia de Lombroso, trazia certezas não apenas

acerca do indivíduo, mas também acerca da nação: “Uma nação mestiça é uma nação

invadida por criminosos”. (1913, Apud Schwarcz 1993, p. 167)

Em 1913, este “critério objetivo de análise” era considerado por muitos como

sendo a verdade suprema e incontestável. Entre os bacharéis era consenso que o

cientificismo traria “ordem e progresso” ao país (como vemos em nossa bandeira),

tirando-o do enorme atraso com relação a outras nações (que muitos diriam ser causado

pela mestiçagem). Porém, lendo a passagem de Laurindo Leão nos dias atuais, fica

difícil não sorrir ao nos darmos conta que Flaubert seria na verdade um semi-louco,

Tolstói um maníaco original e Goethe um maníaco sonâmbulo.

O que aconteceu nesse meio-tempo que fez com que um suposto “critério

objetivo de análise” se tornasse risível? A ciência não seria uma verdade absoluta e

atemporal que “tudo pode”? A metafísica não estaria morta?

Para começarmos a lidar com estas questões vamos utilizar aqui um pensamento

de um contemporâneo de Silvio Romero e Laurindo Leão que publicou em 1912:

Inversamente, os conceitos, mesmo quando construídos de acordo com todas as regras da ciência, estão longe de derivar sua autoridade unicamente de seu valor objetivo. Não basta que sejam verdadeiros para que se creia neles. Se não estiverem em harmonia com as outras crenças, as outras opiniões, enfim, com o conjunto das representações coletivas, serão negados; os espíritos se fecharão a eles; por conseguinte, será como se não existissem. Se hoje é suficiente, em geral, que eles tragam o selo da ciência para obterem uma espécie de crédito privilegiado, é porque temos fé na ciência. Mas essa fé não difere essencialmente da fé religiosa. O valor que atribuímos à ciência depende, em suma, da idéia que temos coletivamente de sua natureza e de seu papel na vida; vale dizer que ela exprime um estado de opinião. É que tudo na vida social, inclusive a ciência, repousa na opinião. Claro que se pode tomar a opinião como objeto de estudo e dela fazer ciência; é nisso principalmente que consiste a sociologia. Mas a ciência da opinião não faz a opinião; pode apenas esclarecê-la, torná-la mais consciente de si. É verdade que, deste modo, pode fazê-la mudar; mas a ciência continua a depender da opinião no momento em que parece lhe ditar a lei, pois, como mostramos, é da opinião que

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ela tira a força necessária para agir sobre a opinião. (Durkheim, [1912], 2003, p. 487)

Classificações: uma análise sociológica

Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom

amigo-de-seus-amigos! Sei desses.

Guimarães Rosa, (1956), 2008, p.27-28.

Émile Durkheim em seu livro As formas elementares da vida religiosa

demonstra como o chamado fato religioso é uma das bases essenciais da sociedade.

Afirma que “há muito se sabe que os primeiros sistemas de representações que o

homem produziu do mundo e de si próprio são de origem religiosa.” (Durkheim, [1912],

2003, p. XV)

Cabe aqui uma frase de nosso maníaco sonâmbulo: “Aquele que tem ciência e

arte tem também religião; o que não tem nenhuma delas, que tenha religião!” (Goethe,

[1832], Apud Giannetti, 2008, p. 120) Se entendermos esta frase com a chave que está

sendo proposta aqui, vemos que há concordância com Durkheim, no sentido que supõe

o pensamento religioso como uma das bases da sociedade.

Não podemos nos esquecer, entretanto, que o pensamento de Durkheim* é

permeado por idéias positivistas advindas diretamente de Augusto Comte e, por isso,

possui muitas limitações (assim como qualquer teoria). Comte afirmava que havia três

estágios do pensamento humano: religioso, metafísico e científico, sendo este último o

mais avançado.

Mais recentemente, algumas das idéias de Durkheim foram retomadas por este

campo do conhecimento chamado Sociologia do Conhecimento da “Escola de

Edimburgo”, representada aqui pelos autores Barnes, Bloor e Henry. Segundo eles, a

ciência não pode ser encarada como verdade absoluta. Assim como as religiões e as

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manifestações artísticas, a ciência está sempre inserida num contexto social específico

que determina a sua forma de compreensão do mundo e do ser humano.

A ciência, portanto, tem limitações e um exemplo disso é podermos pensar que,

por um lado, a ciência só está interessada naquilo que é possível de ser provado

empiricamente, ou seja, só o que pode ser provado dessa maneira pode ser considerado

como verdadeiro. É, aliás, usando justamente este argumento que Popper critica Freud,

como já vimos anteriormente. Por outro lado, no entanto, não se pode provar

empiricamente que a ciência seja uma verdade. Esta única questão já traz inúmeras

reflexões para aqueles interessados nela, mas muitos cientistas parecem ignorar este

paradoxo.

Cabe ressaltar que não se trata aqui de afirmar uma completa falta de mérito da

ciência e que esta deva ser abolida. Pensar dessa maneira seria um absurdo intelectual.

A questão é justamente levar em consideração que o pensamento científico não pode

afirmar-se como o único capaz de ter uma correta compreensão das coisas. Assim como

outros tipos de compreensão, sua capacidade é determinada socialmente.

Dessa forma, se em 1913, Laurindo Leão delimitava a loucura entre famosos do

passado utilizando uma classificação no mínimo discutível, neste mesmo ano outro

pensador desenvolvia idéias bastante diferentes, afirmando que “o cerne da postura

científica é a recusa em considerar nossos próprios desejos, gostos e interesses como

capazes de fornecer a chave para a compreensão do mundo.” (Bertrand Russel, [1913],

Apud Giannetti, 2008, p. 86)

A passagem acima auxilia a ser explicitada a questão da naturalização do

pensamento científico: se conseguimos entender que nossos desejos, gostos e interesses

têm uma determinação social, por que é tão difícil ter o mesmo tipo de entendimento

com relação à ciência?

Continuando com nossa reflexão sobre as classificações, Barnes, Bloor e Henry

afirmam que:

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* Além de Durkheim, Lévi-Strauss é outro pensador clássico das ciências sociais que trabalha bastante com classificações, principalmente em sua obra O Pensamento Selvagem, e poderia muita bem ser utilizado aqui, uma vez que traz contribuições importantes do Estruturalismo. No entanto, fez-se a escolha de aproveitar apenas as idéias de Durkheim, uma vez que serve de base maior para a Sociologia do Conhecimento, que auxiliará nas reflexões a partir daqui.

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a maneira como classificamos dependerá do ‘arcabouço’ que nós herdamos e – já que diferentes sistemas de classificação são herdados em diferentes culturas – a maneira como os membros dessas culturas classificam serão diferentes: convenções diferentes de classificação existirão em diferentes culturas. (p. 48, tradução minha)

Os autores afirmam que as formas mais fundamentais de se classificar se dão

pela chamada aprendizagem “ostensiva”, que é “a definição por um exemplo no qual o

referente é especificado apontando ou mostrando de alguma maneira: por exemplo

‘vermelho’ é aquela cor, onde a palavra aquela é acompanhada por um gesto que

aponta para uma mancha colorida.” (Audi, 1999, p. 214, tradução minha) Segundo

Barnes, Bloor e Henry, “nossa pressuposição é que o sistema herdado de classificação

de tipos é aprendido por ostensão” (p. 49, tradução minha), ou seja, completamente

subjetivo.

Esse método de “ostensão” traz questões importantes. Uma delas é que ela

precisa se basear em noções de similaridade. Os autores usam o exemplo de patos

(confundir com pathos): quando sabemos o que é um pato, podemos generalizar este

conceito para categorizar outras coisas. O próximo pato que encontrarmos nós iremos

classificá-lo como pato porque é similar ao que tínhamos como conceito, no entanto,

este novo pato não é exatamente idêntico ao anterior. Como entidades empíricas, todos

os patos são diferentes uns dos outros, assim como todos os membros de todas as

espécies.

O novo pato, portanto, foi assim classificado por ser similar ao conceito que

tínhamos de pato, num processo em que semelhanças e diferenças são pensadas, e

escolhemos subjetivamente a categoria em que vamos enquadrar. Porém, este novo pato

poderia ser só um pássaro qualquer, ou até mesmo um marreco, mas não são todos que

saberiam diferenciar um pato de um marreco.

Além de não podermos contar sempre com as classificações utilizadas que

conhecemos nossos sentidos também podem nos enganar, distorcendo nossa

categorização.

E, além disso, podemos achar inúmeras semelhanças entre dois patos, mas

podemos achar inúmeras semelhanças em absolutamente qualquer par de coisas,

dependendo da classificação que queremos utilizar. Por exemplo, um colar de

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madrepérola elaborado por moradores das Ilhas Trobriand e um exemplar de 1926 da

obra Sein und Zeit (Ser e Tempo) de Martin Heidegger podem ser similares, na medida

em que ambos não possuem mais de um metro de comprimento, ambos foram feitos por

pessoas que não nasceram no Brasil, ambos fazem parte da Via Láctea, ambos estão

sendo citados por mim neste momento, etc. O que fica claro aqui é que o critério

utilizado para a classificação é sempre arbitrário.

Porém, alguém poderia insistir numa suposta objetividade indo até o dicionário e

nos dando a classificação de pato: “designação comum às aves anseriformes da família

dos anatídeos, aquáticas, que geralmente possuem grande porte.” (Houaiss, Villar e

Franco, 2001, p. 2149) Porém, poderíamos perguntar a esta pessoa: o que significa ave?

E anseriforme? E anatídeo? E pena? E bico? E branco? E preto? Etc.

É como Barnes, Bloor e Henry afirmam: “Como T. S. Kuhn indicou, existe

sempre um ponto no qual nós temos que reconhecer que algumas coisas são as mesmas

que outras, sem sermos capazes de dizer em que sentido elas são o mesmo.” (1996, p.

52, tradução minha)

Percebe-se, assim, que a aprendizagem por “ostensão” é ela própria um processo

social. Quem ensina as categorizações das coisas são as outras pessoas e tradições, e não

as coisas mesmas. Insisto: as coisas não nos dizem absolutamente nada sobre elas

mesmas e nem sobre as outras coisas.

A forma de nos apropriarmos das classificações é estabelecendo convenções

dentro da tradição em que estamos inseridos, transmitindo-as por meio de uma relação

social que envolve reconhecimento na autoridade daquele que nos ensina. Então, onde

está a objetividade aí?

Dessa forma, os atos de classificação se tornam uma questão complicada em

termos empíricos. O caráter convencional da classificação fica claro se a pensarmos

como uma realização coletiva. Assim,

Na medida em que a classificação é convencional, são as nossas maneiras escolhidas de aplicar nossos termos que determinarão que formas as convenções assumem e assumirão, não as convenções que determinarão as nossas maneiras de aplicar os termos. (Barnes, Bloor e Henry, 1996, p. 55, tradução minha)

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Mostrei até aqui algumas convenções utilizadas no começo do século XX, que

hoje em dia parecem um tanto cômicas, visto que ninguém as utiliza mais e seus

pressupostos parecem ultrapassados (como o sistema de análise de criminosos de

Lombroso). É curioso o fato de que as convenções apresentam este caráter de mudança,

que pode suscitar um efeito cômico em diversos aspectos, inclusive nos nomes das

pessoas citadas: Clementino Fraga e Laurindo Leão. Se a história é capaz de tornar o

próprio nome das pessoas estranho a nós, o que dirá suas teorias e reflexões acerca do

mundo e da natureza humana.

A intenção, portanto, é a de percebermos que o desenvolvimento histórico

transforma as convenções sociais, transformando a forma como as classificações são

utilizadas. Após algumas considerações, analisaremos o Manual Estatístico e

Diagnóstico dos Transtornos Mentais em sua quarta edição, para pensar quais valores

sociais estão por trás deste sistema de classificações.

Classificações e Psicopatologia

Com a palavra, a Loucura:

Não espereis de mim nem definição, nem divisão de mestre de retórica. Nada seria mais despropositado. Definir-me seria dar-me limites, e minha força não conhece nenhum. Dividir-me seria distinguir os diferentes cultos que me prestam, e sou adorada

por igual em toda a terra. Além do mais, por que querer vos dar, por uma definição, uma cópia ideal de mim mesma que não seria mais que minha sombra, se tendes diante

dos olhos o original?

Erasmo de Rotterdam, (1509), 2003, p. 14.

No capítulo anterior, quando foi abordado o exemplo dos patos e da

aprendizagem por “ostensão”, foi sugerido que confundíssemos com o conceito de

pathos, que é essencial para nossa reflexão.

Afirmou-se que não havia dois patos exatamente idênticos, mas que estes eram

colocados numa mesma classificação, de acordo com convenções estabelecidas

socialmente. Além disso, foi dito que nossos sentidos podem nos enganar no momento

em que a classificação é estabelecida, e que qualquer par de coisas poderia ser inserido

em alguma classificação.

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Sabemos que as classificações são de extrema importância adaptativa para os

seres humanos. Saber categorizar as coisas garante nossa sobrevivência e auxilia a

desenvolvermos nossas técnicas e teorias. Podemos pegar muitos exemplos para ilustrar

esta idéia: saber diferenciar água de ácido sulfúrico concentrado, cobras corais

verdadeiras (peçonhentas) de corais falsas (não-peçonhentas), etc. Não há a menor

dúvida da importância das classificações para a vida humana, já que a partir delas

podemos estabelecer diferenciações e similaridades entre as coisas.

A questão do pathos psíquico pode aqui ser finalmente desenvolvida. O pathos,

entendido de acordo com o pensamento de Heidegger, ou seja, como um conceito

inerente ao ser e que faz parte da dimensão filosófica do homem, traz a questão da

simpatia e da antipatia.

Dessa forma, em nosso contato com o mundo, temos experiências que provocam

tanto nossa simpatia quanto nossa antipatia e, segundo Martins (1999): “nos dois casos

estamos implicados como sujeitos, ficando evidenciado que existe qualquer coisa em

mim que me dispõe a experimentar algo páthico.” (p. 73)

O trocadilho com “patos” se justifica no sentido de que cada pato (ou pathos)

deve ser entendido como próprio de um determinado ser. Cada pato é único, bem como

cada pathos. Ou melhor: a forma como o pathos se manifesta na existência de cada

sujeito é sempre única, e este pathos ora suscita simpatia, ora antipatia. O esforço por

enquadrá-los em alguma categoria, ainda que possa nos ser útil por diversas razões, em

última instância faz com que um pouco de suas singularidades sejam perdidas.

Martins nos coloca a questão:

Tornou-se lugar-comum no modo de fazer ciência mais divulgado que a neutralidade deve ser pelo menos cultivada, para não dizer que tanto a simpatia como a antipatia devem ser evitadas. Esse ideal pode ser bem nutrido quando o elemento humano não está diretamente implicado. Logo que o humano atravessa o fazer ciência não terá nenhuma neutralidade. A loucura, tal como estudada nos textos psicopatológicos clássicos, evidencia os vieses deste ideal. Assim, logo que pensamos na loucura, não somos ou não queremos ser simpáticos ou antipáticos. O nosso fazer ciência exige neutralidade páthica. Localizamos a partir de então a loucura como algo exterior, um objeto pertencente ao mundo concreto e

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que não nos concerne como psicopatologistas. (Martins, 1999, p. 73)

Assim, o caráter da “objetividade” é este: localizar aquilo a ser estudado como

algo exterior, como um objeto que nada tem a ver com nós mesmos. Esta postura, no

entanto, traz repercussões:

Localizar a loucura como doença é uma estratégia que não deixa de ter conseqüências para todos. Por um lado, não permite a realização da antipatia completa. Por outro, realiza menos ainda qualquer ideal romântico de simpatia. Consegue em geral colocar em um grande limbo os loucos e excêntricos, permitindo a continuação da boa consciência de um bom número de interessados. (Martins, 1999, p. 74)

Israël apresenta um bom exemplo que continua com nosso questionamento:

Mas o que significa a postura de Freud? Ele nos diz que temos não só o direito, mas também o dever, de sermos loucos. Como? Freud, o pequeno burguês, sempre bem vestido, adequado, que não se permitia o menor deslize, que trocou de profissão aos quarenta anos, teria sido louco? Mas, com certeza, senhores psiquiatras. Era louco, mas não como os biógrafos tentam nos descrever. E se alguns tiveram a coragem de passar os olhos sobre as biografias romanceadas de Freud, encontraram coisas engraçadas. O que não se disse dele! Todos sabem que era, pelo menos, hipocondríaco, fóbico e homossexual e todos, de tanto recomeçar e repetir as mesmas imbecilidades a esse respeito não percebem que, assim, se aliam à psiquiatria mais regressiva, mais conservadora, mais fascista que se pode conceber: aquela que aprisiona as pessoas em categorias, como em guetos ou em campos de concentração. (Israël, 1994, p. 26-27)

No manicômio judiciário de Franco da Rocha, por exemplo, é possível perceber

como tal instituição se configura como uma espécie de depósito de seres humanos, um

verdadeiro limbo no qual aqueles ditos “loucos” são internados, para a boa consciência

dos agentes de saúde e da própria sociedade. Dessa forma, a sociedade de forma geral

não tem que lidar com este aspecto, que na verdade se refere a si própria. Durante nossa

reflexão não podemos nos esquecer deste limbo materializado, que continua presente

em nossa sociedade, mas vamos tratar aqui da parte mais teórica deste fenômeno,

sempre pensando que as duas partes estão intimamente relacionadas.

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DSM IV: O instrumento que introduz o radicalmente outro

Saber de cor não é saber: é conservar o que se entregou à memória para guardar.

Montaigne, (século XVI), 2000, p. 153.

Quando nos situamos na questão histórica do DSM, percebemos que a

psicanálise foi perdendo sua relevância ao longo das sucessivas elaborações deste

manual. Em sua versão IV, o DSM continua excluindo a histeria e a neurose obsessiva,

como o fez a sua versão anterior, substituindo tais conceitos por diversos transtornos,

num processo no qual as categorias psicanalíticas são abandonadas.

Dizer que o DSM IV é um instrumento que introduz o radicalmente outro,

significa adotar a visão da psicanálise. Este “outro” tão estranho que exclui algumas

categorias e acrescenta dúzias de outras, gera uma dificuldade de compreensão lógica

por parte da psicanálise, que não encontra sentido na criação de cada vez mais

classificações distantes da psicopatologia, ao invés de haver escuta da narrativa de cada

sujeito.

Com a perda de sua influência na elaboração destes manuais (DSM e CID), a

psicanálise precisa tomar bastante cuidado para que seu discurso contra visões

fisicalistas não seja na verdade um lamento pela hegemonia perdida. As discussões

ideológicas precisam ser deixadas de lado, para não perder-se de vista o assunto

principal: o sujeito e seu pathos.

De acordo com Berlinck, precisamos de atenção para não incorrer no erro de

psicanalizarmos o DSM. Ainda segundo Berlinck, há dois tipos de memória: a

anamnese e a mnemosine. A medicina e seus processos de diagnóstico se inserem neste

primeiro tipo de memória, que tem um caráter ativo. Fazendo uma convocação ativa da

memória (via manuais), os médicos podem realizar suas funções.

Por outro lado, a busca da compreensão do sujeito implica na mnemosine, uma

memória passiva que impede uma formatação diagnóstica. É o sujeito (paciente, cliente,

analisando, etc.) quem suscita uma memória, e não o analista quem a impõe. É por isso

que lidar com a linguagem e a transferência se torna tão importante na clínica

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psicanalítica. É também um esforço em colocar o ideal do analista em parênteses, para

permitir ao outro emergir, ou seja, não pretender que o outro seja o que o clínico

gostaria que ele fosse.

No entanto, sabemos que é muito complicado evitar que nosso ideal seja deixado

de lado, mesmo na clínica. Ao falarmos, ou mesmo através de nosso silêncio, nossos

valores estão permeando a relação e, mesmo que a ação seja a de fazer com que o outro

perceba que tem escolhas, aí também tem um valor embutido.

Neste encontro conflituoso da psicanálise com a psiquiatria que utiliza

amplamente os manuais diagnósticos, procuramos saber qual seria a diferença radical,

para, a partir disso, entendermos se o diálogo é possível.

Ainda pensando a distinção entre os tipos de memória, podemos sugerir aqui que

uma diferença marcante entre psicanálise e psiquiatria pode ser encontrada na forma

pela qual o sintoma é abordado:

O sintoma não é abordado da mesma maneira no campo da psiquiatria e da psicanálise. O sintoma psicanalítico é falado pelo paciente em seu próprio discurso. O sintoma freudiano só existe a partir do discurso do paciente, dentro do dispositivo analítico, no endereçamento do discurso do cliente sob transferência com o analista, estando o analista implicado neste sintoma. Em psiquiatria, o psiquiatra constitui o sintoma à medida que o escuta, observa, descreve, classifica, nomeia. As nuances descritivas da clínica psiquiátrica clássica são uma fonte de conhecimento pata todos. A clínica fundamental é a clínica psiquiátrica, inclusive para a psicanálise, que é uma herança dela. (Morais, 2000, p. 102-103, um trecho desta passagem já havia sido citada neste trabalho)

Dessa forma, a psicanálise poderia contribuir para a visão psiquiátrica, fazendo-a

perceber que “não atacar o sintoma, mas abordá-lo como uma manifestação subjetiva

significa acolhê-lo para que possa ser desdobrado, fazendo emergir um sujeito, seja no

ataque histérico, seja na depressão melancólica, no delírio paranóico ou no

despedaçamento do esquizofrênico.” (Quinet, 2001, p. 76)

Foi a psicanálise que introduziu o conceito de que o sintoma se tratava de um

significante que não se exprime através da palavra:

Depois a confusão entre os psiquiatras só aumentou. Porque eles não sabem mais se ocupam do sintoma enquanto expressão do

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sofrimento do paciente ou se designam o que lhes parece objetivo, isto é, o que percebem do sinal. Mas o que pode, na realidade, existir como sinal objetivo – desculpem o pleonasmo – em psiquiatria? Trata-se, sempre, de comportamentos. Ora, se o sinal se destaca da conduta, o sintoma, por outro lado, se destaca do discurso. (Israël, 1994, p. 55)

Como já dissemos, a psiquiatria busca muitas vezes encontrar sinais objetivos

que justifiquem a escolha do diagnóstico. O DSM é o instrumento que organiza os

sinais de cada transtorno, para então o profissional classificar e medicalizar. Se este

profissional se tornar completamente dependente do manual, ele se transforma num

técnico, podendo quem sabe no futuro ser substituído por um robô que busca sinais de

transtornos na pessoa. É curioso que existam inclusive programas de computador no

qual o psiquiatra digita os sinais percebidos e informações sobre o paciente, e o

programa já dá o diagnóstico e o medicamento. Israël nos disse anteriormente que Freud

nos dizia para sermos loucos:

Mas, o direito à loucura não tem nada a ver com a psicose. Não saímos do grande manicômio de Foucault; continuamos a aprisionar os loucos nas celas fabricadas para eles e a última grande conquista da psiquiatria mundial, o D.S.M. III, o Diagnostical and Statistical Manual, permite, com algumas questões bem colocadas, definir em qual buraco vamos aprisionar os doentes mentais. Ele é particularmente elaborado quanto aos distúrbios na sexualidade. O D.S.M. II só descrevia quatro tipos. O D.S.M. III descreve sete, porque, entre o II e III, foi feito um inventário da demografia terapêutica e constatou-se que existiam sete tipos de especialistas tratando dos distúrbios da sexualidade. Assim, era necessário encontrar sete distúrbios. E assim foi feito. (Israël, 1994, p. 27)

Do DSM III para sua versão IV, o número de transtornos continuou subindo: “na

nova ‘arquitetura’ do DSM III o grupo das ‘Neuroses’ desapareceu e se dissolveu em

pelo menos três agrupamentos, com um total de 18 transtornos. No DSM IV o número

de transtornos que entraram ‘no lugar’ das neuroses subiu para 24.” (Russo e Venâncio,

2006, p.469)

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DSM IV: objetivo e a-teórico?

A produção de mais-valia ou a extração de mais-trabalho constitui o conteúdo e o objetivo específico da produção capitalista, abstraídas as transformações do próprio

modo de produção que possam surgir da subordinação do trabalho ao capital.

Karl Marx, (1867), 1988, p. 410.

No decorrer das décadas do século XX, os critérios de diagnóstico têm variado e

se ampliado na psiquiatria, enquanto que para a psicanálise as referências diagnósticas

continuam basicamente as mesmas desde Freud. Os DSMs e CIDs ao longo deste

processo distanciam as nosografias psiquiátrica e psicanalítica, uma vez que fazem

desaparecer as entidades clínicas psicanalíticas em seu conteúdo, dificultando possíveis

interlocuções entre psicanálise e psiquiatria, que tanto almejava Freud.

Os DSMs e CIDs, que surgiram num curto espaço de tempo, parecem sugerir

que a construção de novas categorias nosográficas não se trata de uma questão de

necessidade, mas de destino. Pergunta-se: “essa evolução acompanha o

desenvolvimento da ciência, a novos males, novos remédios, ou é seu avesso: a novos

remédios, pseudomales?” (Quinet, 2001, p. 73)

Seja como for, os manuais são constantemente modificados, e a tendência é que

sempre haja um aumento significativo dos transtornos (a serem medicalizados). Que

autoridade é essa que decide num curto espaço de tempo que o número de transtornos

será aumentado enormemente?

Lembrando da Sociologia do Conhecimento, devemos nos lembrar que esta

autoridade está sempre situada num contexto social específico. Peguemos o exemplo da

Igreja Católica: até séculos atrás havia a possibilidade de reencarnação para os

católicos, mas então se decidiu num Concílio que não haveria mais isto, e até

recentemente havia um lugar chamado limbo no qual algumas almas iriam (como bebês

não batizados), mas o Papa disse que o limbo não existe mais.

De novo: que autoridade é essa que faz alterações até no dito Sagrado? Do que

podemos captar desde exemplo da Igreja, até o destino das almas parece depender do

contexto social em que a visão está inserida, neste caso, a visão da autoridade central -

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do Papa - autoridade esta que, como já vimos, foi questionada pelo humanismo e pelos

formuladores da Reforma, no século XVI.

A autoridade nos dois casos não são apenas médicos e padres, mas todos os

desejos e interesses por trás deles que prevalecem num determinado contexto social. Se

as alterações na própria religião são efetuadas dependendo do contexto, não é difícil

aceitar que este processo possa ocorrer também no campo da saúde mental e da ciência

de forma geral. No entanto, chama à atenção a falta de crítica que parece haver entre os

envolvidos com tais questões, o que remete a um processo no qual a ciência parece

entrar no lugar da religião. De acordo com Antônio Beneti “com o advento dos

psicofármacos e os recentes avanços da neuroquímica cerebral, o discurso da ciência

estrutura e sustenta solidamente a prática psiquiátrica hoje.” (Beneti, 1998, p. 43)

Deve ficar claro, contudo, que o DSM não é um manual de psiquiatria, mas um

manual de diagnóstico. Assim sendo, pretende-se a-teórico, para que haja uma descrição

partilhada pelos psiquiatras ao redor do mundo. Porém, não é verdade que seja a-

teórico, uma vez que há, na verdade, o encobrimento de uma teoria que reduz o ser

humano a um organismo biológico, desconsiderando a linguagem, a cultura e os

símbolos. E, mesmo que conseguisse ser a-teórico (o que é impossível de ser feito), o

manual então não serviria para ninguém, ao contrário de que serviria para todos.

Por este caráter de se pretender universal, o DSM é encarado por Quinet (2001)

e Beneti (1998), como uma espécie de esperanto, aquela língua criada para se levar em

conta a universalidade. O que acontece com o esperanto, porém, é que apesar de ter

boas intenções ao querer que todos possam se comunicar, ao mesmo tempo implica

numa completa destruição da diversidade cultural, um etnocídio, como diria Pierre

Clastres, caso se tratasse de uma única língua falada por todas as pessoas no mundo.

Desse modo, o DSM sugere esta mesma questão e se, como já vimos, a maneira

como classificamos depende do arcabouço herdado por nós, então, dependendo da

cultura vão existir classificações diferentes. Fica claro, portanto, que as intenções do

DSM IV estão vinculadas à globalização e à lógica capitalista de uma sociedade que,

aliás, está pouco preocupada com o respeito às diferentes culturas.

VI. Histeria: o Sintoma tem Sentido60

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A psiquiatria clínica atenta pouco para a forma externa do conteúdo dos sintomas individualmente considerados, a psicanálise, entretanto, valoriza

precisamente este ponto e estabeleceu, em primeiro lugar, que os sintomas têm sentido e se relacionam com as experiências do paciente. O sentido dos sintomas neuróticos foi

descoberto, em primeira mão, por Josef Breuer, em seu estudo e cura bem sucedida (entre 1880 e 1882) de um caso de histeria, que desde então se tornou famoso.

Freud, 1916-1917, p. 265.

Como já abordamos nesta pesquisa, a psicanálise transformou a forma de se

encarar os transtornos mentais, inserindo a concepção de inconsciente e, por isso,

trabalhando com a idéia de que “cada caso é um caso”. Uma vez que os sintomas de

cada pessoa continham sentidos próprios, não adiantava mais apenas enquadrá-la num

diagnóstico e tratar todos de forma semelhante com medicações ou hidroterapias.

Na passagem de Freud citada acima, o mesmo faz referência ao caso Anna O. ,

paciente que foi atendida por Breuer e cujo relato se encontra nos “Estudos sobre a

histeria”, de 1893-1895. Este caso é de fundamental importância para a psicanálise, na

medida em que a própria paciente, Anna O. , é quem faz referência a um novo método

de tratamento.

O Caso Anna O.

Anna O. , e seu verdadeiro nome Berthe Pappenheim, bem mereceu a celebridade científica, visto ser a ela que, efetivamente, se deve o método de Breuer, por ela justamente denominado tratamento pela palavra ou limpeza de chaminé. Na altura do tratamento, era uma jovem de 21 anos extremamente inteligente, se não genial, e, além disso, bastante sedutora, o que não deixou de contribuir para o embaraço do médico. Consultara Breuer, que não era psiquiatra, em virtude de uma tosse nervosa que a incomodava, mas sofria de outras perturbações tão espetaculares quanto variadas, que lhe haviam surgido com a morte do pai. (Robert, 1964, p. 70)

Estas perturbações eram paralisias de membros com insensibilidade,

perturbações na linguagem, dificuldades com a alimentação e, além disso, era capaz de

dois estados de consciência, um que revelava um comportamento “normal” e outro no

qual ela se comportava como uma criança. A transição entre estes estados fazia-se por

uma espécie de auto-hipnose.

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Durante este período do tratamento, Anna O. se exprimia através do inglês (por

isso o uso de termos em inglês como “talking cure”), parecendo ter esquecido

completamente a sua língua materna, o alemão.

Breuer a visitava à noite, quando Anna O. estava lúcida, e esta tomou a iniciativa

de contar ao médico o que sofria durante o dia, descrevendo as alucinações. Contou

certa vez a respeito das condições em que um sintoma surgiu, sendo que apenas com

esta descrição, o sintoma desapareceu, como uma espécie de mágica. Anna O.

compreendeu o acontecido e continuou a fazer sua limpeza de chaminé, a que Freud e

Breuer vieram depois a dar o nome de catharsis ou purgação da alma, segundo Robert

(1964).

Anna O. , e disso não tenhamos dúvidas, estava muito longe da cura, durante muito tempo ainda viria a sofrer da suas perturbações, depois, o seu estado melhorou pouco a pouco e chegou a levar uma vida ativa, em que pôde empregar a sua energia e faculdades. Foi a primeira assistente social a desempenhar este cargo na Alemanha e, ao que parece, uma das primeiras do mundo inteiro. Solteira e crente dedicou-se à causa da emancipação feminina e percorreu a Europa Oriental para socorrer os filhos das vítimas dos pogrom (arruaças contra os judeus na Rússia, acompanhadas de saques e assassinato). (Robert, 1964, p. 72)

A seguir, irei colocar um fragmento deste caso clínico, para depois decompô-lo

em três partes e trabalhá-los separadamente. Todo o fragmento a seguir faz parte de um

mesmo parágrafo, que talvez seja o mais importante do caso:

Ela descrevia de modo apropriado esse método, falando a sério, como uma “talking cure”, ao mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira, como “chimney-sweeping”. (...) Nas noites em que não se acalmava pela enunciação verbal, era necessário recorrer novamente ao cloral. (...) Mas foi possível reduzir a dose, de forma gradual. (Freud e Breuer, 1893-1895, p. 65-66)

Desenvolvimento do método

62

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1. Ela descrevia de modo apropriado esse método, falando a sério, como uma “talking cure”, ao mesmo tempo em que se referia a ele, em tom de brincadeira,

como “chimney-sweeping.”

Freud e Breuer, 1893-1895, p. 65.

Anna O. , entendida como uma histérica por Breuer e Freud, foi quem possibilitou a

ambos desenvolverem o que ela própria chamou de “cura pela palavra”, ou “limpeza de

chaminé”, que se configura como os primórdios da psicanálise. Seu diagnóstico como

histérica foi importante, na medida em que:

Historicamente, o estabelecimento do diagnóstico diferencial entre doença orgânica e psicológica tem nas histerias um problemas de maior importância (...) A histeria, ao mesmo tempo que não possui uma etiologia orgânica, compõe-se, desde Charcot, como um quadro clínico perfeitamente adequado ao conhecimento anátomo-fisiológico da época. A histérica simula as doenças que o médico conhece e, por assim dizer, ele acaba por imputar-lhe os sintomas. (Fonseca, 1997, p. 19)

Quando Freud foi para a Salpêtrière, onde Charcot era médico-chefe, percebeu

que a clínica psicopatológica a qual estava acostumado era diferente da que lá

encontrava. Freud, impregnado pelas concepções alemãs da época que se referiam

principalmente às noções fisiológicas da psiquiatria ficou impressionado com:

A paciência e o rigor com os quais se observava na Salpêtrière os fenômenos histéricos, sob a recusa (aparente) de todo pressuposto acerca de sua natureza e funcionamento reais. (Bercherie, 1996, p. 276, tradução minha)

Dessa forma, a necessidade de uma interpretação desta objetividade dos

sintomas histéricos era fundamental. Quando Freud desenvolveu sua forma de

interpretação com base no desejo, pôde abandonar sua sujeição à Charcot.

Não podemos esquecer, portanto, que a apreensão realizada por Freud acerca da

histeria deve-se em grande parte aos progressos do conhecimento neurológico,

fisiológico e patológico até então, assim, o saber médico foi uma condição para o

surgimento da psicanálise. Foi com base em seu conhecimento de neurologista que

Freud desenvolveu a teoria do inconsciente.

63

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Se Charcot entendia a histeria por meio do conceito de “lesão dinâmica”, um

tipo de lesão realmente orgânica, mas que não podia ser vista por meio da necropsia,

Freud pensou de outra forma:

O sintoma histérico é apenas um transtorno psíquico, uma “lesão” da representação das funções e dos órgãos, dele provém sua ignorância das condições verdadeiras da produção orgânica dos sintomas desse tipo. (Bercherie, 1996, p. 278, tradução minha)

Neste momento de sua reflexão, Freud considerava que os fenômenos histéricos

eram a expressão do deslocamento no interior do psiquismo, no nível dos automatismos

cerebrais que se supunha como suporte dos fenômenos mentais inconscientes, de um

excesso de excitação.

Freud percebeu, com o ensino de Charcot, que havia casos em que se poderia

diagnosticar alguém como histérico, sem que houvesse necessariamente instabilidade da

vontade, alterações de humor, aumento da excitação e diminuição de sentimentos

altruístas, estados estes que eram usados para a realização do diagnóstico. Esta postura

posicionou Freud como um antipsiquiatra, no sentido da concepção psiquiátrica de

histeria.

Na seqüência do desenvolvimento de suas idéias, Freud passou a considerar a

hipnose como um bom tratamento para a histeria. Primeiramente praticado por Joseph

Breuer, e praticado também por Charcot, este método conduziria o paciente à sua pré-

história psíquica, podendo tomar conhecimento da ocasião em que a desordem se

iniciou. Dessa forma, pensando a sintomatologia dos histéricos como objetiva, Freud

afirmava que a hipnose também deveria ter este caráter, e não deveria se reduzir à

efeitos de sugestão.

No entanto, a partir de 1890, Freud começa a apontar os pontos fracos do

tratamento por hipnose, e volta-se para o procedimento catártico que Anna O. , havia

sugerido à Breuer:

Breuer e Freud viam na dissociação a conseqüência da constituição de uma espécie de excrescência psíquica, de um excedente de energia que a catarse reduzia (abreação), aliviando assim o psiquismo por outra parte dos histéricos. Sobre a origem desta “hérnia” mental, Breuer e Freud divergiram desde o início; nesta busca em que Freud se compromete sem reservas reside a

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força de sua originalidade: ali descobria a psicanálise. (Bercherie, 1996, p. 288, tradução minha)

Robert (1964) nos dá mais elementos para a reflexão:

O método catártico de Breuer estava muito longe de resolver todos os problemas. Exigia o emprego da hipnose, a respeito da qual se convencia cada vez mais que nem sempre era possível nem mesmo sempre desejável. O estado de hipnose parecia dissimular certos fenômenos de cuja importância determinante Freud começava a suspeitar, entre os quais aquilo a que chamou “transferência”, conjunto de emoções violentas, contraditórias e ambíguas que o paciente outrora experimentara relativamente a seus pais e que transferia agora inconscientemente sobre a pessoa de seu médico. (Robert, p. 72-73)

O que ele deu o nome de transferência, certamente tem relação com os

sentimentos envolvidos entre Anna O. e Breuer, que parecia ter se apaixonado pela

paciente, e este fato muito provavelmente estava implicado também na resistência de

Breuer às idéias de Freud acerca da histeria. Buscando a natureza da doença, Freud

renunciou pouco a pouco à técnica da hipnose, substituindo-a por uma técnica de

concentração, ficando satisfeito com os resultados obtidos e dando o nome de análise

psíquica.

Atendendo seus pacientes, Freud começou a dar cada vez mais importância aos

fatores sexuais na gênese das neuroses.

Freud convenceu-se inicialmente de que a descoberta era inteiramente sua. Mas depois lembrou-se de certos conceitos sustentados por médicos conhecidos, que pareciam ter tido uma idéia ou, pelo menos, uma intuição análoga. Um dia, Breuer dissera na sua frente que a histeria tinha muitas vezes relação com os segredos do leito conjugal. Outra vez, ouvira Charcot dizer ao seu assistente Brouardel que a “coisa genital” estava sempre em jogo em certos casos de perturbações neuróticas. (Robert, 1964, p. 73-74)

O trabalho de Freud e Breuer “Os Estudos sobre a Histeria”, na qual estava tanto

o relato de caso de Anna O. quanto de quatro outras pacientes atendidas por Freud, é

onde se pode ver o desenvolvimento das técnicas usadas por Freud. Tal trabalho foi mal

acolhido pelos meios médicos da época, o que fez Breuer se sentir desencorajado para

prosseguir neste caminho.

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Em 1896 a ruptura de Freud e Breuer consumou-se, mesmo ano em que Freud

afirmou categoricamente a etiologia sexual da histeria e daquilo que passou a chamar de

psiconeurose. Neste mesmo ano empregou pela primeira vez o termo “psicanálise”, num

texto publicado em francês chamado “L´Hérédité et l´Etiologie dês Néuroses”.

Interlocução

2. Nas noites em que não se acalmava pela enunciação verbal, era necessário recorrer novamente ao cloral.

Freud e Breuer, 1893-1895, p. 66.

Tomando este segundo fragmento do caso Anna O. , é possível ressaltar aspectos

mais amplos que estão sendo desenvolvidos neste trabalho, que é a possibilidade de

interlocução entre psicanálise e psiquiatria.

Como acabamos de ver, o termo “psicanálise” só foi usado por Freud em 1896,

ou seja, posteriormente à publicação do fragmento acima. No entanto, como já vimos, é

neste caso que a “cura pela palavra” foi primeiramente sugerida, pela própria paciente, e

por isso há grande importância para a reflexão.

As diferenças entre psicanálise e psiquiatria começaram logo no momento do

surgimento da psicanálise e continuam presentes até hoje. O que é muito interessante no

fragmento é que sugere uma postura de interlocução possível entre estes campos do

conhecimento, uma vez que ao admitir as limitações de uma, pode-se buscar o apoio da

outra (o cloral, um tipo de medicação, poderia ser usado quando a talking cure não dava

conta).

É esta postura que deve ser objeto de estudo, já que permite ao clínico

reconhecer as limitações de seu método e encaminhar o caso para outro que aborde de

forma diferente o tratamento. Os psicanalistas em sua maioria reconhecem as vantagens

do uso de remédios em determinados casos, e fazem encaminhamentos para psiquiatras

quando entendem que isto é necessário.

Psiquiatras também fazem encaminhamentos para psicólogos e psicanalistas,

mas por vezes parecem não reconhecer a eficácia de outro método que não o que atua

no organismo físico diretamente, o que torna difícil o diálogo.

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O que vemos de forma flagrante com o uso do DSM IV é uma atitude

diagnóstica fundamentada num positivismo que só busca classificações, anulando o

sujeito, com um processo de medicalização em seguida. É importante diferenciarmos os

termos medicação e medicalização. Enquanto a primeira é um recurso que o médico

pode usar no tratamento, a segunda se refere mais a uma dependência do médico a este

tipo de encaminhamento. Segundo Illich:

A medicalização da vida é malsã por três motivos: primeiro, a intervenção técnica no organismo, acima de determinado nível, retira do paciente características comumente designadas pela palavra saúde; segundo, a organização necessária para sustentar essa intervenção transforma-se em máscara sanitária de uma sociedade destrutiva, e terceiro, o aparelho biomédico do sistema industrial, ao tomar a seu cargo o indivíduo, tira-lhe todo o poder de cidadão para controlar politicamente tal sistema. A medicina passa a ser uma oficina de reparos e manutenção, destinada a conservar em funcionamento o homem usado como produto não humano. (1975, p. 10, grifo do autor)

Não se trata aqui de anularmos todo o processo de busca por uma interlocução,

mas se trata justamente de conseguirmos apontar que processos estão determinando a

práxis dos profissionais da saúde. Sabemos que não necessariamente esta postura está

de acordo com a ética envolvida, mas devido às pressões (normalmente políticas), este

profissional precisa se enquadrar neste tipo de trabalho. Isto vale não só para

psiquiatras, mas também para psicanalistas – que trabalham em instituições,

principalmente.

3. Mas foi possível reduzir a dose, de forma gradual.

Freud e Breuer, 1893-1895, p. 66.

Este terceiro e último fragmento que retirei do caso Anna O. , indica a eficácia

do tratamento pela palavra. Podemos, é claro, recorrer novamente às teorias de David

Hume e questionarmos a relação causa-efeito que está sendo proposta. Não

necessariamente este tratamento pode ser útil para todos os pacientes, poderia afirmar

Hume.

No entanto, após mais de cem anos de prática psicanalítica, milhares de casos

podem sugerir a eficácia deste tratamento e mostrar a importância de abordar-se cada

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pessoa como única, cujos sintomas têm sentido para ela própria, e muitas vezes a chave

para um tipo de “cura” reside nesta estratégia de tratamento.

Assim, como este terceiro fragmento do caso Anna O. indica, o uso de um

método como a talking cure pode possibilitar a redução da dose de medicação, dose esta

que, como é sabido, pode causar más conseqüências ao organismo se for utilizada em

excesso. Pode, portanto, reduzir a iatrogenia (erros da conduta médica) que acontece

com a prescrição exagerada de medicamentos.

Conclusão

Tudo isso é, em verdade, interessante, mas, que diabo, essa gente não usa calças! Montaigne, (século XVI), 2000, p. 203.

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Montaigne (1533-1592), em sua obra intitulada Ensaios, escreveu um capítulo

chamado “Dos Canibais”, onde apresenta uma visão de mundo e de natureza humana

bastante relativista para sua época.

Afirmando que “nossa razão, e não o que dizem, deve influir em nosso

julgamento” (2000, p. 193), ele comenta informações sobre experiências dos franceses

de sua época na chamada França Antártica (o lugar a que hoje se dá o nome de Brasil).

Diz: “Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na

verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra.” (2000, p. 195)

Quando acontece uma guerra e fazem-se prisioneiros, Montaigne relata que o

índio deste lugar,

No momento propício, amarra a um dos braços da vítima uma corda cuja extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço que fica entregue a seu melhor amigo, de modo a manter o condenado afastado de alguns passos e incapaz de reação. Isso feito, ambos o moem de bordoadas às vistas da assistência, assando-o em seguida, comendo-o e presenteando os amigos ausentes com pedaços da vítima. (Montaigne, [século XVI], 2000, p. 198)

No parágrafo seguinte ele ainda diz: “Não me parece excessivo julgar bárbaros

tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira

acerca dos nossos.” (2000, p. 199)

Montaigne se mostra bastante livre de etnocentrismos, se comparado à visão que

prevalecia em sua época. Relativizando o pensamento com exemplos das sociedades

recém-descobertas pelos europeus, ele critica sua própria sociedade, cujos costumes

também lhe parecem bárbaros em determinadas situações.

No entanto, com seu humor característico, Montaigne termina o capítulo com a

primeira citação que coloquei nesta Conclusão - “Tudo isso é, em verdade, interessante,

mas, que diabo, essa gente não usa calças!” (2000, p. 203) - o que reforça a diferença

entre europeus e índios “selvagens”, mostrando a dificuldade que é entender e suportar

aquilo que é diferente de nós (ou pelo menos esta é uma interpretação possível que nos

será útil). Esta frase mostra também que existem limites quanto à postura relativista, no

sentido de que estamos habituados a formas de pensar que permanecem tão arraigadas

em nós, que fica muito difícil pensarmos de outra forma

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Neste trabalho, intitulado “Psicanálise e psiquiatria: uma reflexão acerca da

psicopatologia” foi sempre preciso lidar com o diálogo possível entre duas visões que

são diferentes em muitos sentidos.

A psiquiatria, ao utilizar um manual de classificações como o DSM IV muitas

vezes acaba se esquecendo da singularidade de cada sujeito, como já vimos neste

trabalho e em tantos outros publicados. O que acontece, porém, é que em muitos casos

os próprios psiquiatras não estão necessariamente de acordo com a lógica classificar-

medicalizar, mas outros fatores (econômicos, políticos, etc.) impedem que tenham

tempo para trabalhar com cada pessoa e ouvir o que ela tem a dizer.

A psiquiatria atual parece estar em apuros, ao ser cobrada pelas companhias de

seguro, pela medicina, pela psicologia e pela indústria farmacêutica, num conflito de

interesses bastante complexo. Neste conflito está sobrando pouco espaço para que as

singularidades emirjam, e a psiquiatria está adaptando sua ética às novas configurações,

e não o contrário, como seria de se esperar ao se tratar de ética.

O DSM ocupa um lugar importante na reflexão, uma vez que a forma como é

elaborado e posteriormente utilizado pelos psiquiatras do mundo inteiro contém estes

conflitos de interesse, e a última coisa que parece levar em consideração é o sofrimento

humano.

Como afirma Coutinho (2009, p. E10), foi-se o tempo em que “uma pessoa

tímida era simplesmente uma pessoa tímida. Uma pessoa expansiva era simplesmente

uma pessoa expansiva”, e isso pode ser aplicado a diversas outras manifestações

subjetivas. Segundo este autor,

Gradualmente, a psiquiatria começou a ter uma palavra sobre o assunto, procurando “regular” ou “normalizar” a variedade de que somos feitos (...) Uma parte da medicina moderna acredita na idéia, pessoalmente aberrante, de que deve existir um padrão de “equilíbrio comportamental” para definir um ser humano harmonioso, realizado e feliz (...) O problema é que poucos correspondem ao padrão. (2009, p. E10)

Este autor diz ter encontrado o relato da última reunião da American Psychiatric

Association, em São Francisco, reunião esta que discutia alterações a serem feitas no

Diagnostic ans Statistical Manual of Mental Disorder, o DSM. O que ele encontrou

neste relato:

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Para começar, existem “doenças” relacionadas à alimentação. É o caso da “binge-eating disorder” e da “night-eating syndrome”. Em linguagem de gente, a primeira refere-se a uma compulsão excessiva para comer mais do que o estritamente necessário; a segunda pretende diagnosticar, e tratar, o gosto perverso por assaltar a geladeira depois da meia-noite. Mas a lista de novas “doenças” não termina aqui. O vício pela internet e pelo e-mail (”internet addiction”); o gosto por vários parceiros sexuais, em sucessão ou em simultâneo (“sex addiction”); a compulsão “terapêutica” por compras (”compulsive shopping”); a fúria incontrolada e muitas vezes injustificada (“embitterment disorder”); o preconceito perante a “diferença” (“ pathological bias ”) ; e mesmo a tendência idiossincrática para colecionar materiais diversos (“pathological hoarding”), nada escapa à inquisição psiquiátrica. (Coutinho, 2009, p. E10, grifo meu)

Percebe-se assim, que esta postura classificatória é avaliada em função dos

meios de atuação dos médicos. É uma classificação que está comprometida com o

homem norte-americano contemporâneo e sua atuação. Não é uma classificação

preocupada em buscar etiologias das doenças, mas apenas preocupada na medicalização

de efeitos e sintomas.

É também uma classificação que não leva em consideração a lógica de que não

há necessariamente um equilíbrio comportamental. Além disso, mesmo que houvesse,

como se poderia saber qual é este equilíbrio, visto a enormidade de diferenças culturais?

Tem grupos de pessoas que parecem ser tristes, outras mais felizes, e outras canibais.

Não há necessariamente uma patologia aí, e esta antiga questão da medicina é

justamente algo que complexifica a reflexão, que é a diferença entre o normal e o

patológico.

Quem deve considerar “bárbara” alguma atitude da vida não deve ser

necessariamente o médico, mas sim a própria pessoa, refletindo sobre sua subjetividade

e sobre o sentido de seus sintomas, percebendo que escolhas são possíveis.

Quando se está envolvido em uma pesquisa, é impressionante como

relacionamos muitas coisas que vemos e escutamos com nosso problema de

investigação. Com esta atitude, ouvi certa vez o orientador desta pesquisa - Prof. Dr.

Manoel Tosta Berlinck – dizer que recebeu um e-mail de um paquistanês no qual

refletia a respeito da democracia. O que foi abordado, entre outras coisas, é que nas

democracias as pessoas precisam estar preparadas para lidar com a diferença, uma vez

71

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que o sistema político na qual vivem permite que haja um grande leque de

possibilidades. Um exemplo histórico reforça esta idéia:

Salvador Allende, o falecido presidente do Chile, que era também médico, foi até agora o único homem de Estado ocidental a tentar pôr um dique na progressão abusiva dos medicamentos. Ele propôs proibir a importação do Chile de todo novo medicamento que não tivesse sido testado antes, durante sete anos pelo menos, na população norte-americana, sem ter sido retirado do mercado pela United States Food and Drug Administration. Propôs também a redução da farmacopéia nacional a algumas dúzias de produtos, mais ou menos os mesmos que cada médico chinês de pés nus leva consigo. Uma grande maioria de médicos chilenos não respondeu ao apelo de seu presidente. Bom número daqueles que ensaiaram pôr em prática suas idéias foram assassinados na semana seguinte ao putsch dos coronéis em 11 de setembro de 1973. (Illich, 1975, p. 54-55)

Observa-se com este exemplo que quando a democracia é substituída por um

sistema imperialista e autoritário, fica muito difícil a possibilidade de diálogo entre

diferentes. Não podemos nos esquecer, contudo, que muitas vezes pode coexistir uma

democracia com posturas autoritárias.

É importante atentarmos que conflitos de interesse sempre existiram e sempre

vão existir, seja em planos teóricos, religiosos, políticos ou quaisquer outros. O que

podemos aprender com isto é que a possibilidade de diálogo reside muito mais na

postura de cada pessoa (democrática ou não), do que nas convergências e divergências

de cada teoria, porque, em última instância, temos diferenças com qualquer outra

pessoa, e se esta postura não for enfatizada, não poderíamos ter diálogo com ninguém.

Este trabalho deve ser finalizado com uma passagem fundamental de Freud, que

já foi citada anteriormente no capítulo III, mas que vale a pena ser pensada novamente,

uma vez que é extremamente atual, e reforça a perspectiva exposta nesta conclusão:

O que se opõe à psicanálise não é a psiquiatria, mas os psiquiatras. A psicanálise relaciona-se com a psiquiatria aproximadamente como a histologia se relaciona com a anatomia: uma estuda as formas externas dos órgãos, a outra estuda sua estruturação em tecidos e células. ([1916, 1917], 1969, p. 262)

É claro que nem sempre duas perspectivas serão complementares, mas imagina-

se que mesmo que sejam antinômicas, o uso de uma ou de outra poderia ser pensado 72

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racionalmente, e não por meio de criação de corporações para que um poder político

seja estabelecido e para que a outra visão seja aniquilada. Porém, esta postura só é

possível se admitirmos que nossa forma de pensamento é sempre limitada, e que pode

existir uma outra lógica que também pode ser coerente e eficiente (como a lógica dos

canibais).

Não podemos nos esquecer, contudo, que para os canibais, nossa lógica também

parece estranha. Trata-se sempre de uma via de mão dupla, e sempre precisamos

considerar isto num diálogo entre diferentes. Um exemplo disso é que no século XVI,

três índios foram para a Europa e alguém lhes perguntou o que pensavam da cidade e o

que ela lhes tinha revelado:

Disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número de homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que se achavam junto do rei (provavelmente se referiam aos suíços da guarda) se sujeitassem em obedecer a uma criança e que fora mais natural se escolhessem um deles para o comando. Em segundo lugar observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica a tais infelizes chamam de “metades”); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais. (Montaigne, [século XVI], 2000, p. 203)

Aqui o DSM nos pode ser útil, na medida em que se algum psiquiatra se opuser

à psicanálise de forma radical, como acontece com muitos há mais ou menos cento e

dez anos, podemos sugerir que ele busque outro psiquiatra, levando a queixa de

pathological bias (preconceito perante a diferença) para ser tratada, categoria esta que,

como já vimos, deve estar na próxima versão do DSM.

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