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PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO JEAN PIAGET

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PSICOLOGIA E

EDUCAÇÃO

JEAN PIAGET

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ÍNDICE

A posição epistemológica de Jean Piaget 05

O tempo e o desenvolvimento intelectual da criança 14

O desenvolvimento das operações intelectuais 35

Estruturas operatórias concretas - os agrupamentos 53

Estruturas operatórias formais 64

O pensamento do adolescente 73

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A POSIÇÃO EPISTEMOLÓGICA DE JEAN PIAGET

Orly Zucatto Mantovani de Assis

Desde muito jovem, Piaget esteve preocupado em resolver questões epistemológicas, isto é, questões que se referem à natureza, possibilidade e processos do conhecimento. Biólogo de formação e acostumado aos procedimentos da ciência, decidiu consagrar seus estudos à explicação biológica do conhecimento. Sua intenção era a de descobrir as relações existentes entre o conhecimento e a vida orgânica, através da observação e experimentação, que constituem o método científico. Reconhecendo que só a Biologia era insuficiente para lhe dar as respostas que procurava, Piaget recorreu à Psicologia. Ele estava então convencido de que para responder às questões epistemológicas que formulara, era preciso reconstruir a psicogênese do conhecimento. Foi buscando atingir esse objetivo que Piaget empreendeu suas pesquisas no campo da psicologia genética.

Durante mais de sessenta anos Piaget dedicou-se a pesquisar o desenvolvimento da inteligência humana na tentativa de responder questões como as seguintes:

- Como é possível o conhecimento objetivo?- Qual a origem do conhecimento lógico-matemático?- Como se dá a passagem de um estado de conhecimento

mais elementar para um conhecimento mais avançado?

Muitos filósofos preocuparam-se também com essas mesmas questões. Para resolvê-las eles acreditavam ser suficiente utilizar os métodos de análise reflexiva ou especulação dedutiva. Suas conclusões eram baseadas em idéias e não em fatos. Há duas correntes filosóficas principais que explicam de modo distinto o problema do conhecimento: o Empirismo e o Racionalismo.

Os empiristas admitem que a mente da criança ao nascer é uma "tábula rasa" na qual as experiências exteriores vão se inscrevendo progressivamente. O conhecimento é, pois uma simples cópia da realidade. Eles admitem que o conhecimento provém de uma informação sensorial, transmitida do exterior para o interior do sujeito, através dos sentidos. As idéias e conceitos teriam origem na

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experiência sensível e o sujeito teria um papel muito insignificante em sua aquisição. A mente da criança seria uma espécie de cera virgem na qual as impressões captadas através dos sentidos seriam progressivamente impressas.

O pressuposto básico do Empirismo é o de que "nada há na inteligência que não tenha passado, antes, pelos sentidos". De acordo com esse pressuposto o processo de aquisição do conhecimento é explicado por D. Hume da seguinte maneira: Primeiro uma impressão fere nossos sentidos e nos faz perceber o calor ou o frio...Dessa impressão, o espírito tira uma cópia que persiste depois que cessou a impressão que é chamada idéia.

Captando várias impressões a mente extrairia o que há de comum entre elas, chegando à "abstração". Neste sentido a percepção propicia um registro puro e imediato do real e o conhecimento nada mais é do que uma cópia da realidade que aí está.

Os procedimentos pedagógicos decorrentes desta maneira de encarar o processo de aquisição do conhecimento consistem em oferecer dados sensíveis à percepção e à observação dos alunos, para que eles cheguem à abstração.Com o objetivo de provocar impressões na mente dos alunos, a pedagogia empirista limita-se em apresentar objetos, figuras, filmes, experimentos, etc. por meio de demonstrações feitas perante a classe. O professor realiza a atividade e os alunos acompanham a demonstração que lhes é feita representando mentalmente as ações que se passam diante de seus olhos. Nesse processo, eles são apenas meros espectadores, algumas vezes interessados, outras vezes indiferentes ou completamente ausentes. O professor explica um determinado assunto, valendo-se de figuras, esquemas, filmes, na tentativa de gravar na mente do aluno uma noção ou uma espécie de impressão agora não mais sensível, mas intelectual. Desta forma, a aprendizagem consiste em "tirar uma cópia" da explicação dada pelo professor. Outras vezes o professor se vale de perguntas com o objetivo de conduzir o raciocínio da criança, como se a nova forma de pensar se imprimisse em sua mente e fizesse compreender aquilo que estava sendo ensinado. Um exemplo típico são os "problemas padrões" que a criança aprende a solucionar a partir das perguntas feitas pelo professor, que encaminha o seu raciocínio. O mesmo problema é resolvido inúmeras vezes, substituindo-se os

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números e os nomes das pessoas, objetos, frutas, etc. Sua estrutura porém permanece a mesma. Outro problema padrão só será ensinado, quando o raciocínio do anterior tiver sido fixado.

Os procedimentos didáticos baseados na doutrina empirista, trabalham isoladamente com cada noção, para que essas não sejam confundidas umas com as outras pela criança. Em Língua Portuguesa, por exemplo, estuda-se primeiramente o sujeito e em seguida, um a um, os outros elementos que formam uma oração. Ao isolar artificialmente as coisas que deveriam ser relacionadas, tais procedimentos impedem a criança de compreender, obrigando-a a recorrer à memorização.

Ao longo de muitos anos, temos observado esse fato, com relação à prática da alfabetização em nossas escolas. O uso de uma cartilha, previamente elaborada pelo adulto para ser apresentada e utilizada pelas crianças, baseia-se em pressupostos empiricistas.

Por outro lado, os racionalistas admitem a existência de "idéias inatas" ou conceitos "a priori" anteriores à experiência que lhes propicia apenas a oportunidade de se manifestarem. De acordo com essa corrente epistemológica as noções de número, espaço, tempo, causalidade, etc. são pré-formadas no sujeito e não são elaboradas em função da experiência. Essas categorias do pensamento ou "formas", ou ainda, "estruturas do pensamento" são inatas e se impõem à experiência na qualidade de condições prévias do conhecimento. É aplicando essas categorias ou estruturas à experiência, que o sujeito organiza e conhece a realidade.

A interpretação racionalista acentua o papel do sujeito no processo de aquisição do conhecimento em detrimento do papel da informação captada por meio dos sentidos. O raciocínio dedutivo é o melhor meio de se atingir a verdade uma vez que os nossos sentidos podem nos enganar freqüentemente.

No processo ensino aprendizagem a ênfase é colocada sobre a simples transmissão de verdades do professor ao aluno, sem que haja preocupação com as idéias espontâneas que a criança possa ter sobre o que está sendo ensinado. Via de regra, o professor pensa que o aluno aprendeu o conteúdo, quando responde corretamente a pergunta que lhe foi feita.

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O princípio pedagógico mais comum decorrente da interpretação racionalista se reflete nos métodos que se fundamentam na idéia de que para ensinar basta que o professor enuncie um fato ou um princípio e que para ter aprendido é suficiente que o aluno seja capaz de repeti-lo. O aluno assume, portanto, o papel de simples receptor conformista das verdades proclamadas pelo professor. Esses métodos são utilizados em todos as fases da escolaridade desde a educação infantil até a universidade.

Os procedimentos pedagógicos que se fundamentam na interpretação racionalista, negligenciando o papel das constatações empíricas, como se elas fossem desnecessárias para o raciocínio dedutivo, se atém à linguagem como a fonte principal da aquisição dos conhecimentos.

Piaget se opõe ao Empirismo e ao Racionalismo e propõe uma terceira explicação que engloba as duas anteriores.

PIAGET E O EMPIRISMO

As constatações empíricas de Piaget sobre a gênese dos conhecimentos demonstram a insuficiência da interpretação "empirista" da experiência. Isso não quer dizer que Piaget negue a importância do papel da experiência na construção dos conhecimentos. Ao contrário, o que Piaget questiona é o fato de o Empirismo considerar a percepção como fonte do conhecimento.

Para ele nenhum conhecimento é devido unicamente às percepções pois eles são sempre dirigidos e enquadrados pelos esquemas de ações. O conhecimento procede da ação e toda ação que se repete ou se generaliza pela aplicação a novos objetos dá origem a um "esquema", isto é, uma espécie de conceito prático.

De acordo com a perspectiva construtivista, o "estímulo" proveniente do meio exterior só sensibiliza o sujeito e desencadeia uma resposta quando seus esquemas de ação podem interpretá-lo ou assimilá-lo. A resposta dada pelo sujeito é pois manifestação da ocorrência da assimilação. Em outras palavras, os estímulos somente são significativos quando o sujeito dispõe de "conceitos

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práticos" (esquemas de ação) ou estruturas mentais capazes de conferir-lhes significação. Como diz Piaget (1979, p.53):

A ligação fundamental constitutiva de todo conhecimento não é uma simples associação entre os objetos, pois esta noção negligencia a parte da atividade devida ao sujeito, mas sim a assimilação dos objetos aos esquemas deste sujeito.

Esta assimilação prolonga a assimilação biológica e deve ser entendida como integração de estímulos ou informações aos esquemas de ação ou estruturas mentais do sujeito. Do mesmo modo, no nível biológico o organismo integra os elementos do meio exterior às suas estruturas. Funcionalmente, a assimilação cognitiva e a assimilação biológica constituem um mesmo processo de integração. Por outro lado, quando os objetos são assimilados aos esquemas de ação há necessidade de uma "acomodação", isto é, de uma modificação, de um ajustamento desses esquemas às particularidades desses objetos para que possam ser assimilados. Esta "acomodação" é desencadeada pelos dados exteriores, resultando, portanto, da experiência. Isto significa que a experiência não provoca simplesmente o puro registro de impressões ou a cópia da realidade, mas desencadeia modificações", "ajustamentos" ativos. Mas a "acomodação" não existe isoladamente ou em estado "puro" porque ela é sempre acomodação de um esquema de ação. Para Piaget é a assimilação que constitui o motor do "ato cognitivo". Em outras palavras, o conhecimento se dá quando o objeto é assimilado (incorporado, integrado) aos esquemas ou estruturas mentais do sujeito.

Piaget chama de "esquema de ação" aquilo que numa ação é generalizável, transponível de uma situação para outra análoga, ou seja, o que há de comum nas diversas repetições ou aplicações de uma mesma ação, como, por exemplo, o "pegar", o "sugar". Os esquemas de ação têm origem nos reflexos com os quais o indivíduo nasce, mas constroem-se pouco a pouco e se diferenciam a partir de sucessivas acomodações em função da experiência. Isso não significa, porém, que os esquemas progressivamente construídos resultam exclusivamente da experiência. Se assim fosse, o Empirismo teria razão. As construção dos esquemas não pode ser atribuída inteiramente a ação do meio exterior pois isso seria negligenciar sua organização interna. É evidente que o

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conteúdo de cada esquema de ação depende em parte do meio e dos objetos ou acontecimentos aos quais se aplica, mas sua forma e funcionamento depende de fatores internos. Em primeiro lugar as ações dependem do sistema nervoso, o qual é herdado; em segundo lugar os esquemas derivam sempre de esquemas anteriores cuja origem remonta aos reflexos ou movimentos espontâneos iniciais; em terceiro lugar, um esquema admite sempre ações do sujeito que não derivam das propriedades dos objetos. Por exemplo, reunir objetos para formar um monte depende de um esquema aditivo que por sua vez implica a capacidade do sujeito e não as propriedades desses objetos. O ato de reuni-los e enumerá-los é do sujeito e não resulta das propriedades particulares desses objetos. Dispor de objetos de modo a formar uma fileira consiste em introduzir uma ordem nesses objetos e não tirá-la deles.

Pode-se concluir, portanto, que na construção dos esquemas de ação que possibilitam ao sujeito o conhecimento da realidade, interferem fatores externos e internos que estão presentes nos mecanismos de assimilação e acomodação.

Tais mecanismos são observados desde o nascimento e se encontram em todos os níveis de evolução do pensamento. É por meio deles que o sujeito se adapta ao mundo e conhece a realidade. O conhecimento dessa realidade não resulta de um puro registro ou de uma simples cópia, uma vez que os estímulos do meio são transformados pelos esquemas de ação do sujeito. Neste ato de transformação o sujeito interpreta o "estímulo" , "o objeto", de acordo com os esquemas assimilativos que possui. No "ato de conhecer" o sujeito é ativo pois constrói suas próprias categorias do pensamento ao mesmo tempo que estrutura a realidade por intermédio das ações que realiza sobre os objetos.

PIAGET E O RACIONALISMO OU PRÉ-FORMAÇÃO

Piaget se opõe ao pré-formismo, uma vez que constatou durante mais de sessenta anos de pesquisas sobre a psicogênese dos conhecimentos a existência de estágios que comprovam uma construção contínua. Assim é que dos 0 a 2 anos, no estágio sensório-motor em que não há ainda nem pensamento, nem representação, nem linguagem, observa-se a progressiva construção de esquemas de ação por meio dos quais a criança

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conhece o mundo. Esses esquemas se organizam segundo certas leis que são semelhantes às leis da lógica. Neste sentido, quando o sujeito impõe um objetivo à ação, é contraditório orientar-se para direção oposta (por exemplo, quando um objeto foi escondido sob uma almofada "B" e o bebê o procura na almofada "A" onde o viu desaparecer primeiro). Há nesse estágio uma "lógica das ações" (relações de ordem, encaixe de esquemas, intersecção, correspondências entre esquemas) que permite a construção de noções práticas (permanência do objeto, espaço, causalidade e tempo) que constituem as subestruturas das noções correspondentes que serão reconstruídas nos estágios subseqüentes. De 2 a 7 anos, aproximadamente, ocorre a interiorização das ações até então puramente perceptivas e motoras. Surge a representação, a linguagem e as noções do objeto, espaço, causalidade e tempo são agora reconstruídas no plano das intuições, permitindo à criança a manipulação simbólica da realidade. Não há ainda operações reversíveis nem conservações. Progressivamente as ações interiorizadas vão se coordenando em estruturas totais (agrupamentos) e se transformam em operações, cujas características principais são a mobilidade e a reversibilidade. Estas se constroem no estágio das operações concretas (7 - 10 anos),assim denominado porque tais operações permanecem ligadas à manipulação de objetos concretos. Finalmente por volta dos 11 - 12 anos tem-se o estágio das operações formais que permitem ao sujeito formular hipóteses e raciocinar sobre proposições verbais destacadas da constatação concreta e atual. As estruturas que agora se constroem representam um arremate final das estruturas operatórias concretas tornando possível o raciocínio hipotético dedutivo.

PIAGET E O CONSTRUTIVISMO

A interpretação piagetiana do processo de aquisição do conhecimento representa uma posição intermediária entre o apriorismo e o empirismo. Para ele o conhecimento é o resultado da interação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, a qual poderá ser representada como se segue:

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SUJEITO OBJETO

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Nesse tipo de interação não há primazia do objeto sobre o sujeito, nem deste sobre o objeto. Ao contrário da tese empirista sobre a preponderância do meio (objeto) e da tese racionalista que supõe que o papel principal seja representado pelo sujeito no ato de conhecer, Piaget faz apelo à interação indissociável entre ambos no ato do conhecimento. Para conhecer um objeto o sujeito precisa agir sobre ele, transformá-lo, dissociá-lo para depois integrá-lo às estruturas de pensamento ou a seus esquemas de ação. Isso supõe os processos de assimilação e acomodação porque à medida que o objeto vai sendo incorporado às estruturas do sujeito, estas devem acomodar-se, isto é, modificar-se a fim poderem assimilar o dado novo. Neste contexto, o ato de conhecer é um fato dinâmico que resulta do diálogo entre as estruturas do sujeito e as do objeto e no qual o sujeito é o protagonista de seu próprio conhecimento.

Como se pode observar a ação é fundamental para a construção do conhecimento. Um outro aspecto que Piaget (1977) considera também fundamental para a construção do conhecimento é a interação social que possibilita ao sujeito coordenar seu ponto de vista com os de seus pares. Sem a interação social jamais o indivíduo chegaria a raciocinar com lógica, em outras palavras, sem intercâmbio de pensamento e cooperação com os demais o indivíduo não conseguiria chegar ao pensamento operatório que implica na transformação das representações intuitivas em operações reversíveis, idênticas e associativas.

As implicações pedagógicas da teoria piagetiana à educação são inúmeras. É importante ressaltar aquelas que o próprio Piaget extrai de sua teoria como faz Munari (1995) em seu artigo intitulado: Jean Piaget.

Piaget em seus ’Discursos’ não se preocupa em explicitar suas opiniões. De início ele enunciou uma regra fundamental: o constrangimento é o pior dos métodos pedagógicos (Piaget, 1848, p.22). Uma outra regra tão fundamental e que ele expõe várias vezes, é a importância da atividade do aluno. Uma verdade aprendida não é senão uma meia verdade, a verdade inteira deve ser reconquistada, reconstruída, redescoberta pelo próprio aluno (Piaget,

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1950,p.35) Esse princípio educativo repousa, para Piaget, numa realidade psicológica indiscutível: Toda psicologia contemporânea nos ensina que a inteligência procede da ação (Ibid). Daí o papel fundamental que o exercício da pesquisa deve ter em toda estratégia educativa; mas esta pesquisa não deve ser abstrata. A ação supõe as pesquisas prévias e a pesquisa não tem valor senão em vista da ação (Piaget, 1951, p.28).

Uma escola sem coercitividade, na qual o aluno é convidado a experimentar ativamente para reconstruir por si mesmo o que deve aprender. Vemos já traçado o esboço do projeto educativo piagetiano. Mas atenção: não se aprende a experimentar vendo simplesmente o mestre experimentar ou se entregando aos exercícios já totalmente organizados: não se aprende a experimentar senão tateando por si mesmo, trabalhando ativamente, isto é, livremente e dispondo de todo tempo (Piaget, 1949, p.39).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AEBLI, H. Didática Psicológica: aplicação à didática da psicologia de Jean Piaget. Trad. por João Teodoro d’Olim Marote. 3ªed.,São Paulo: Editora Necional, 1978.

PIAGET, J. Psicologia da Inteligência. Trad. por Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1977.

___________. Para Onde Vai a Educação? Trad. por Yvette Braga. Rio de Janeiro: Livraria José Olimpo Editora, 1993.

MUNARI, A. Jean Piaget, in Construtivismo e Educação. Orgs. Mucio Camargo de Assis e Orly Z. Mantovani de Assis, Laboratório de Psicologia Genética, FE/UNICAMP, 1995.

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O tempo e o desenvolvimento intelectual da criança

Jean Piaget

O desenvolvimento da criança é um processo temporal por excelência. Eu me esforçarei em fornecer alguns dados necessários para a compreensão desse problema.

Mais precisamente, me reterei em dois pontos: o primeiro deles é o papel necessário do tempo no círculo vital. Todo desenvolvimento - psicológico como biológico - supõe a duração, e a infância dura tanto mais quanto mais superior for a espécie; a infância de um gato, a infância de um pato duram muito menos do que a infância da criança porque ela tem muito mais coisa para aprender. É o que me esforçarei em demonstrar aqui.

Existe um segundo ponto que também gostaria de tratar, formulado pela questão: O ciclo vital exprime um ritmo biológico fundamental, uma lei inelutável? A civilização o modifica, e em que medida? Dito de outra forma, existem possibilidades de aceleração ou de diminuição desse desenvolvimento temporal?

Para tratar esses dois pontos, só considerarei o desenvolvimento propriamente psicológico da criança, em oposição a seu desenvolvimento escolar ou a seu desenvolvimento familiar, quer dizer que insistirei principalmente no aspecto espontâneo desse desenvolvimento, e ainda o limitarei ao desenvolvimento propriamente intelectual, cognitivo.

Para efeito, podemos distinguir dois aspectos no desenvolvimento intelectual da criança. Por um lado, o que podemos chamar o aspecto psico-social, quer dizer tudo o que a criança recebe do exterior, aprende por transmissão familiar, escolar, educativa em geral; e depois, existe o desenvolvimento que podemos chamar espontâneo, que chamarei psicológico, para abreviar, que é o desenvolvimento da inteligência mesma: o que a criança aprende por si mesma, o que não lhe foi ensinado, mas o que ela deve descobrir sozinha; e é isso essencialmente que leva tempo.

Tomemos imediatamente dois exemplos: Numa coleção de objetos, por exemplo, um ramo de flores onde existem seis prímulas

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e seis flores que não são prímulas, descobrir que existem mais flores que prímulas, que o todo ultrapassa a parte. Isso parece tão evidente que ninguém tem idéia de ensinar a uma criança. Entretanto, como veremos, serão necessários vários anos para que a criança descubra leis desse gênero.

Outro exemplo banal: a transitividade. Se uma vareta, comparada a uma outra, é igual a essa outra, e se essa segunda é igual a uma terceira, será que a primeira- que escondi debaixo da mesa - é igual à terceira? .Será que A é igual a C, se A é igual a C? Novamente, isso é de uma evidência total para nós termos a idéia de ensinar isso a uma criança. Ora, serão necessários mais ou menos sete anos, como veremos, para que a criança descubra leis lógicas dessa forma.

Logo é, sobre o aspecto espontâneo da inteligência que estudarei, sendo o único do qual falarei, porque sou psicólogo e não educador; e também, porque do ponto de vista da ação do tempo, é precisamente esse desenvolvimento espontâneo que constitui a condição preliminar evidente e necessária para o desenvolvimento escolar, por exemplo.

Nas escolas de Genebra, é aos 11 anos somente que começamos a ensinar a noção de proporção aos alunos. Por que não começamos mais cedo? É evidente que se a criança pudesse compreendê-la mais cedo, os programas escolares teriam situado a iniciação, às proporções na idade de 9 ou mesmo de 7 anos. Se é necessário esperar 11 anos, é porque essa noção supõe todas as espécies de operações complexas. Uma proporção é um produto entre produtos. Para compreender um produto de produtos, é necessário compreender primeiramente o que é um produto; é necessário constituir primeiramente toda a lógica das relações aplicar depois essa lógica das relações à lógica dos números. Existe aí um amplo conjunto de operações que permanecem implícitas, que não distinguimos na primeira abordagem e que estão encobertas sob essa noção de proporção. Esse exemplo mostra entre cem outros possíveis como o desenvolvimento psico-social está subordinado ao desenvolvimento espontâneo e psicológico.

Logo, eu me limitarei ao desenvolvimento psico-social e partirei de antemão de um exemplo concreto. Trata-se de uma experiência que realizamos há muito tempo em Genebra e que é a

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seguinte: Apresenta-se a uma criança duas bolinhas de massa de modelar, de 3 ou 4 centímetros de diâmetro. A criança verifica que elas têm o mesmo volume, o mesmo peso, que elas são parecidas em tudo, e pede-se à criança para transformar em cobrinha uma das bolinhas, ou para amassá-la, ou para dividi-la em pequenos pedaços. Depois, você faz três perguntas.

Primeira pergunta: será que a quantidade de matéria permaneceu a mesma ?

Naturalmente, você empregará a linguagem da criança; você dirá por exemplo: será que existe a mesma quantidade de massa já que mudamos a bolinha em cobrinha? Ou: há mais ou menos massa que antes?

Quantidade de matéria, conservação da matéria... Coisa extraordinária, somente aos 8 anos em média esse problema é resolvido, por 75% das crianças. Isso é pois uma média. Se você fizer a experiência com seus próprios filhos, você terá naturalmente uma idade mais precoce porque seus filhos estão certamente adiantados com relação à média. Mas para a média, é aos 8 anos. ..

Segunda pergunta: será que o peso permaneceu o mesmo?

E você apresenta e ela uma pequena balança. Se eu coloco a bolinha num prato e no outro a cobrinha, sabendo que a cobrinha saiu da bolinha por uma simples mudança de forma, será que o peso vai ser o mesmo?

A noção de conservação do peso só é adquirida aos 9 ou 10 anos por 75% das crianças, quer dizer com dois anos de diferença com relação à aquisição da noção de substância.

Terceira pergunta: será que o volume permaneceu o mesmo?

Para o volume, como a linguagem é difícil, você empregará um processo indireto. Você vai mergulhar a bolinha num copo d'água; constatar que a água sobe, porque a bolinha ocupará seu lugar.Você perguntará depois se a cobrinha mergulhada no copo d'água vai tomar o mesmo lugar, quer dizer, fará subir a água da mesma maneira.

Esse problema só é resolvido aos 12 anos, quer dizer que existe novamente uma diferença de dois anos com relação à solução do problema da conservação do peso.

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Vejamos rapidamente os argumentos dos que não têm a noção da conservação ou da substância, ou do peso, ou do volume. O argumento é sempre o mesmo. A criança dirá: antes, era redondo, depois você afinou a massa. Desde que você a afinou, ela tem mais. A criança olha uma das dimensões, ela esquece a outra; o que é marcante nesse raciocínio, é que ela considera a configuração da partida, a configuração da chegada, mas não raciocina sobre a transformação mesma. Ela esquece que uma coisa foi transformada em outra; ela compara a bolinha inicial com a forma final e responde: mas não, é mais comprida, portanto tem mais.

Ela descobre depois que é a mesma substância, a mesma quantidade de matéria. Mas dirá: é mais comprida e apesar disso mais pesada - com os dois anos de diferença que falei, e com os mesmos argumentos.

Vejamos quais são os argumentos que permitem chegar à noção da conservação. Eles são sempre os mesmos, em número de três.

Primeiro argumento, que chamarei o argumento de identidade. A criança diz: mas não se tirou nada, não se acrescentou nada; por conseguinte, é a mesma coisa; a mesma quantidade de massa. E aos 8 anos, ela acha tão extraordinário lhe fazermos uma pergunta tão fácil, que sorri, dá de ombros, sem desconfiar que teria dado uma resposta contrária no ano precedente. Logo, ela dirá: é a mesma coisa, porque você não tirou nada, nem acrescentou nada. Mas quanto ao peso, é mais comprido, logo mais pesado. E o argumento precedente retorna.

Segundo argumento: é a reversibilidade. A criança diz: você afinou a massa, você deverá transformá-la em bolinha e você verá que é a mesma coisa.

Terceiro argumento: a compensação. A criança diz: naturalmente se afina terá mais; mas ao mesmo tempo está mais fina. A massa ganhou por um lado, mas perdeu por outro, conseqüentemente isso se compensa, é a mesma coisa.

Esses fatos simples nos permitem fazer imediatamente duas constatações relativas ao tempo, distinguindo no tempo dois aspectos fundamentais: por um lado a duração, depois a ordem de sucessão dos acontecimentos por outro, a duração não sendo senão o intervalo entre as ordens de sucessão.

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1º Primeiramente o tempo é necessário como duração. É necessário esperar 8 anos para a noção de conservação da substância; 10 anos para a do peso, e isso em 75% dos indivíduos. E nem todos os adultos adquirirão a noção da conservação do peso. Spencer, no seu Tratado de Sociologia, conta a história de uma senhora que viajava com mais mala comprida de preferência a uma mala quadrada, porque pensava menos que os vestidos dobrados na mala quadrada.

Quando ao volume, é necessário esperarmos 12 anos, Isso não é especial em Genebra. Essas experiências que fizemos entre 1937 e 1940 em Genebra foram retomadas na França, na Polônia, na Inglaterra, nos Estados Unidos, no Canadá, no Irã e mesmo em Aden, nas margens do mar Vermelho, e em todos os lugares encontramos esses estágios. Mas em média não encontramos nenhum adiantamento com relação a nossos pequenos genebreses que estão mesmo numa posição honrosa, como veremos. Quer dizer que essa é uma idade mínima, exceto naturalmente em alguns meios sociais selecionados, por exemplo escolas de bem dotados.

Podemos acelerar tal evolução pela aprendizagem? É a questão que se colocou um dos nossos colaboradores - um psicólogo norueguês, Jan Smerdslund - em nosso Centro de Epistemologia Genética. Ele se esforçou em acelerar a aquisição da noção da conservação do peso mediante uma certa aprendizagem - no sentido americano do termo - quer dizer por reforço externo, por leitura do resultado na balança, por exemplo. Mas é necessário compreendermos que essa aquisição da noção de conservação supõe toda uma lógica, todo um raciocínio que se dirija às transformações mesmas, e por conseguinte sobre a noção de reversibilidade, essa reversibilidade que a criança mesma invoca quando atinge a noção de conservação. Depois principalmente, essa noção de conservação supõe a transitividade; um estado A da bolinha sendo igual a um estado B, estado B sendo igual a um estado C, o estado A será igual ao estado C, o estado A será igual ao estado C. Existe correlação entre essas diversas operações. Smerdslund começou por verificar essa correlação muito significativa, com relação aos assuntos estudados, entre a noção de conservação por um lado e a de transitividade por outro. Depois ele se dedicou a essa experiência de aprendizagem, quer dizer que ele mostrou à criança, depois de cada resposta, o resultado na balança,

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fazendo com que ela constatasse que o peso era o mesmo. Depois de duas ou três vezes, a criança repetiu constantemente: será sempre o mesmo peso, será de novo o mesmo peso, etc.

Haverá assim aprendizagem do resultado. Mas o que é interessante, é que essa aprendizagem do resultado se limita a esse resultado, quer dizer que quando Smerdslund passou para a aprendizagem da transitividade (o que é um outro aspecto, a transitividade fazendo parte da estrutura lógica que conduz a esse resultado), ele não pôde obter aprendizagem com relação a essa transitividade, apesar das constatações repetidas na balança de A = C, A = B e B = C, Logo existe uma diferença entre aprender um resultado e formar um instrumento intelectual, formar uma lógica, necessária à construção de tal resultado, Não formamos um instrumento de raciocínio em alguns dias. Eis o que prova essa experiência.

2º A outra constatação fundamental que tiraremos desse exemplo das bolinhas de massa é que o tempo é necessário igualmente como ordem de sucessão.

Constatamos que a descoberta da noção de conservação da matéria precede de dois anos a do peso; e a do peso precede ide dois anos a do volume. Essa ordem de sucessão foi encontrada em toda a parte; ela nunca foi invertida, quer dizer que não encontramos um indivíduo que descubra a conservação do peso sem ter a noção da substância, enquanto encontramos sempre o inverso.

Por que essa ordem de sucessão? É que, para que o peso se conserve, é necessário naturalmente um substratum. Esse substratum, essa substância, será a matéria. É interessante observar que a criança começa pela substância, porque essa substância sem peso nem volume não é constatável empírica, perceptivamente; esse é um conceito puro, mas um conceito necessário para atingirmos depois a noção de conservação do peso e do volume.

Logo, a criança começa por essa forma vazia que é a substância, mas ela começa por aí porque sem isso não haveria conservação do peso. Quanto à conservação do volume, trata-se de um volume físico e não geométrico, comportando a incompressibilidade e a indeformabilidade do corpo, o que, na lógica

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da criança suporá sua resistência, sua massa, e por conseguinte seu peso, pois a criança não distingue o peso e a massa.

Essa ordem de sucessão mostra que, para que um novo instrumento lógico se construa, é preciso sempre instrumentos lógicos preliminares; quer dizer que a construção de uma nova noção suporá sempre substratos, subestruturas anteriores e isso por regressões indefinidas, como veremos dentro em breve.

Isso nos conduz à teoria dos estágios do desenvolvimento. O desenvolvimento se faz por graduações sucessivas, por estágios e por etapas, e distinguiremos quatro grandes etapas nesse desenvolvimento que descreverei brevemente.

Primeiramente, uma etapa que precede a linguagem e que chamaremos a da inteligência sensório-motora, antes dos 18 meses mais ou menos.

Em segundo lugar, uma etapa que começa com a linguagem e que vai até 7 ou 8 anos, que chamaremos o período da representação, mas pré-operatória, no sentido que definirei mais adiante. Depois, entre 7 e 12 anos, mais ou menos, distinguiremos um terceiro período que chamaremos das operações concretas, e, finalmente, depois de 12 anos, as operações proporcionais ou formais.

Distinguiremos pois etapas sucessivas. Observemos que essas etapas, esses estágios são caracterizados precisamente por sua ordem de sucessão fixa. Não são etapas às quais possamos determinar uma data cronológica constante. Pelo contrário, as idades podem variar de uma sociedade à outra, como veremos no fim dessa exposição. Mas a ordem de sucessão é constante. Ela é sempre a mesma, e isso por razões que acabamos de entrever, quer dizer que para atingir um certo estágio, é necessário ter passado por demarches preliminares. É necessário ter construído as pré-estruturas, as subestruturas preliminares que permitem progredirmos mais.

Atingimos pois uma hierarquia de estruturas que se constróem numa certa ordem de integração e que, coisa interessante, parecem aliás se desintegrarem na ordem inversa, no momento da senescência, como os ótimos trabalhos do Dr. Ajuriaguerra e de seus colaboradores parecem mostrar no estado atual dessas pesquisas.

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Descrevamos rapidamente esses estágios, com o fim de mostrar por que o tempo é necessário tanto tempo para se atingir noções tão evidentes, tão simples quanto as que tomei como exemplo.

Comecemos pelo período da inteligência sensório-motora. Existe uma inteligência antes da linguagem, mas não existe pensamento antes da linguagem. Distingamos a esse respeito a esse respeito a inteligência e o pensamento. A inteligência é a solução de um problema novo para o indivíduo, é a coordenação dos meios para atingir um certo fim, que não é acessível de maneira imediata; enquanto o pensamento é a inteligência interiorizada e se apoiando não mais sobre a ação direta, mas sobre um simbolismo, sobre a evocação simbólica pela linguagem, pelas imagens mentais etc., que permitem representar o que a inteligência sensório-motora, pelo contrário, vai aprender diretamente.

Existe pois uma inteligência antes do pensamento, antes da linguagem. Tomemos um exemplo. Mostro a uma criança uma coberta; sob essa coberta, e sem que a criança tenha visto, eu escondi uma boina basca. Depois do que, eu mostro à criança um objeto novo para ela, um brinquedo qualquer que ela não conheça, que ela quer pegar; e depois eu o escondo sob a coberta. Num certo nível ela vai levantar a coberta para encontrar o objeto, mas ela não vê o objeto; ela vê somente a boina basca. Imediatamente ela vai levantar a boina basca e encontrar o objeto em questão. Isso parece não ter importância, mas é um ato de inteligência muito complexo. Supõe primeiramente a permanência do objeto. Veremos mais adiante que a noção de permanência não é inata, mas exige pelo contrário meses para ser construída. Ela supõe a localização do objeto - que não é dada logo, porque essa localização supõe por sua vez a organização do espaço. Ela supõe depois relações particulares em cima-embaixo, etc. Existe pois toda uma construção nesse ato de inteligência que parece tão simples. Mas um ato de inteligência dessa espécie pode se construir antes da linguagem e não supõe necessária a representação ou o pensamento.

Por que esse período da inteligência sensório-motora dura tanto tempo, até os 18 meses?

Outra maneira de colocar a mesma pergunta: por que a aquisição da linguagem é tão tardia com relação aos mecanismos

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invocados? A linguagem às vezes foi reduzida a um puro sistema de condicionamento, de reflexos condicionados. Se tal fosse o caso, haveria aquisição da linguagem desde o fim do primeiro mês, porque já existem os primeiros reflexos condicionados no começo do segundo mês. Por que é necessário esperar 18 meses? Respondemos que a linguagem é solidária do pensamento e supõe pois um sistema de ações interiorizadas e supõe mesmo, cedo ou tardem um sistema de operações. Chamaremos "operações" ações interiorizadas quer dizer executadas não mais material, mas interior e simbolicamente, e ações que podem ser combinadas de todas as maneiras; em particular, que podem ser invertidas, que são reversíveis, no sentido que indiquei há pouco.

Ora, essas ações que consistem o pensamento, essas ações interiorizadas, é necessário aprender primeiramente a executá-las materialmente; elas exigem primeiramente todo um sistema de ações materiais. Pensar, é por exemplo classificar, ou ordenar, ou correlacionar; é reunir, ou dissociar, etc.Mas todas essas operações, é necessário primeiramente executá-las materialmente em ações para em seguida ser capaz de construí-las em pensamento. É por isso que existe um período sensório-motor tão longo antes da linguagem; é por isso que a linguagem é tão tardia, com relação ao desenvolvimento. É necessário um amplo exercício da ação pura para construir as subestruturas do pensamento ulterior .

E durante esse primeiro ano, ela constrói precisamente todas as subestruturas ulteriores: a noção do objeto, a do espaço, a de tempo, sob a forma das seqüências temporais, a noção de causalidade, em suma as grandes noções das quais o pensamento se servirá ulteriormente, e que são elaboradas, empregadas pela ação material, desde seu nível sensório-motor.

Tomemos dois exemplos: 1º) A noção do objeto permanente. Na primeira abordagem, nada é mais simples. O filósofo Meyerson pensava que a permanência do objeto era dada desde a percepção, que não existe meio de perceber um objeto sem julgá-lo permanente. O bebê nos engana a esse respeito. Tomemos um bebê de cinco ou seis meses, depois da coordenação da visão e da preensão, quer dizer quando ele começa a poder segurar os objetos que vê. Mostrem um objeto que lhe interesse, por exemplo, esse relógio. Você o coloca na mesa diante da criança, e ela estende a mão para pegar o objeto.

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Você esconde o objeto com um pano, por exemplo. Você verá que a criança retira simplesmente a mão se o objeto não é fundamental para ela, ou se encoleriza se o objeto tem um interesse particular para ela, por exemplo se se trata de sua mamadeira. Mas ela não tem idéia de levantar o pano e procurar o objeto atrás dele. E não é porque ela não saiba remover o pano de cima do objeto. Se você coloca o pano sobre o seu rosto, ela saberá muito bem retirá-lo imediatamente, enquanto não sabe procurar atrás do pano para encontrar o objeto. Logo, tudo se passa como se o objeto, uma vez desaparecido do campo da percepção, tenha sido reabsorvido, tenha perdido toda existência, ainda não tenha adquirido essa substancialidade que vimos há pouco que são necessários oito anos para que atinja à sua propriedade de conservação quantitativa. O mundo exterior é uma série de quadros movediços que aparecem, desaparecem, donde os mais interessantes podem reaparecer quando se procede desajeitadamente (por exemplo, dando gritos com muita continuidade se trata de uma pessoa cujo retorno é desejado). Mas esses são apenas quadros movediços sem substancialidade, sem permanência e, principalmente, sem localização.

Segunda etapa: você verá a criança levantar o pano para encontrar o objeto escondido atrás dele. Mas o controle seguinte mostra que tudo não foi adquirido para isso. Você coloca o objeto na direita da criança, depois o esconde, ela vai procurá-lo; depois você o apanha novamente, passa lentamente com ele sob os olhos da criança e coloca à sua esquerda (trata-se dessa vez de um bebê de 9 -10 meses). O bebê tendo visto desaparecer o objeto à sua esquerda, você verá imediatamente sua busca na direita, onde ele o encontrou uma primeira vez. Não há pois aqui senão uma semi-permanência, sem localização. A criança vai procurar onde a ação de procurar teve êxito numa primeira vez, e independentemente da mobilidade do objeto.

2º) O que acontece com o espaço?

Aí, novamente, vemos que nada é inato nas estruturas e que tudo deve ser construído pouco a pouco e laboriosamente. No que concerne ao espaço, todo o desenvolvimento sensório-motor é particularmente importante e interessante do ponto de vista da psicologia da inteligência. Com efeito, no começo, no recém-nascido não existe um espaço como continente, pois não existe objeto

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(inclusive o corpo próprio que não é naturalmente concebido como um objeto). Existe uma série de espaços heterogêneos uns aos outros, e todos centrados sobre o corpo próprio. Existe o espaço bucal. descrito por Stem. A boca é o centro do mundo durante muito tempo, Freud disse muitas coisas a esse respeito. Depois existe o espaço visual; existe o espaço táctil, existe o espaço auditivo. E esses espaços são todos centrados sobre o corpo próprio por um lado, a ação de olhar, de seguir com os olhos, a ação de levar algo à boca, etc., mas são incoordenados entre eles. Logo uma série de espaços egocêntricos, poder-se-ia dizer, mão coordenados e não compreendendo o corpo próprio a título de elemento num continente.

Enquanto dezoito meses mais tarde, essa mesma criança terá a noção de um espaço geral que engloba todas essas variedades particulares de espaços, compreendendo todos os objetos tornados sólidos e permanentes, inclusive o corpo próprio, a título de objeto entre os outros, os deslocamentos se coordenando e podendo se deduzir a se prever relativamente aos deslocamentos próprios.

Dito de outra forma, durante esses dezoito meses não é exagero falar de uma revolução coperniciana (no sentido kantiano do termo). Existe aí uma reviravolta total, uma descentralização total com relação ao espaço egocêntrico primitivo.

Já me estendi bastante para demonstrar que dezoito meses são muito pouco para construir tudo isso, e que na realidade esse desenvolvimento é singularmente acelerado durante o primeiro ano. É talvez o período da infância em que as aquisições são mais numerosas e mais rápidas.

Passo agora para o período da representação pré-operatória. Por volta de um ano e meio, dois anos, um acontecimento considerável se produz no desenvolvimento intelectual da criança. É agora que aparece a capacidade de representar alguma coisa, o que chamamos a função simbólica. A função simbólica é a linguagem, por um lado, sistema de sinais sociais em oposição aos símbolos individuais. Mas ao mesmo tempo que existe essa linguagem, existem outras manifestações da função simbólica. Existe o jogo que se torna simbólico: representar alguma coisa por meio de um objeto ou de um gesto. Até então, o jogo não era senão um jogo de exercícios motores, enquanto que por volta de um ano e

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meio por exemplo, a criança começa a jogar .Um dos meus filhos fazia circular uma concha sobre uma caixa dizendo: "Miau, porque um pouco antes tinha visto um gato no muro. O símbolo era evidente nesse caso, a criança não tendo outra palavra à sua disposição. Mas o que é novo, é representar alguma Terceira forma de simbolismo: pode ser um simbolismo gestual, por exemplo na "imitação indireta".

Quarta forma: será o começo da imagem mental ou imitação interiorizada.

Existe pois um conjunto de simbolizantes que aparecem nesse nível e que tornam possível o pensamento, o pensamento sendo, repito, um sistema de ação interiorizada e conduzindo a essas ações particulares que chamaremos "operações", ações reversíveis e ações se coordenando umas com as outras em sistemas de conjunto, dos quais falaremos dentro em breve.

Apresenta-se aqui uma situação que suscita da maneira mais aguda o problema do tempo. Por que as estruturas lógicas, por que as operações reversíveis que acabamos de caracterizar, por que a noção de conservação que falamos há pouco, não aparecem desde que haja linguagem e desde que haja função simbólica? Por que é necessário esperarmos oito anos para adquirir a invariante de substância, e muito mais para as outras noções em vez de elas aparecerem desde que haja função simbólica, quer dizer a possibilidade de pensar, e não mais simplesmente de agir materialmente? Por essa razão, fundamental, que as ações que possibilitaram alguns resultados no terreno da efetividade material não podem ser interiorizadas sem mais e de uma maneira imediata, e que se trata de reaprender no plano do pensamento o que já aprendemos no plano da ação. Essa interiorização é na realidade uma nova estruturação; é não apenas uma tradução, mas uma reestruturação, com uma decalagem que toma um tempo considerável.

Darei um exemplo: é o grupo dos deslocamentos que, na organização sensório-motora do espaço, constitui um resultado final fundamental. O que os geômetras chamam um grupo de deslocamentos, é por exemplo que a criança se toma capaz, circulando em seu apartamento ou em seu jardim quando souber andar, de coordenar suas idas e vindas, de retomar ao ponto de

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partida - é a reversibilidade - ou de fazer desvios para chegar a um mesmo ponto por caminhos diferentes - será a associatividade do grupo dos deslocamentos. Em suma, ela vai coordenar seus deslocamentos num sistema total que permite a volta ao ponto de partida.

Ora, esse grupo dos deslocamentos é adquirido desde um ano e meio mais ou menos, no plano sensório-motor. Mas isso significa que o bebê sabe se representar por imagem mental, ou por desenho, ou pela linguagem, os deslocamentos que ele sabe efetuar materialmente? Absolutamente. Porque se deslocar é uma coisa e outra diferente evocar pela representação os mesmos deslocamentos.

Realizamos outrora, com minha colaboradora Szeminska, uma experiência cheia de interesse para nós, em crianças de 4 a 5 anos que, numa época em que tinha menos tráfego em Genebra, iam sozinhas de casa para a escola e voltavam sozinhas da escola para casa, duas ou quatro vezes por dia. Tentamos representar o trajeto que elas seguiam entre a escola e a casa não por desenhos, porque teria sido muito complicado, nem pela palavra, o que teria sido mais difícil ainda, mas por meio de um pequeno jogo de construção. Tínhamos uma fita azul para Arve, um papelão verde para a planície de Plainpalais, representamos a igreja do fim da planície, o Palácio das Exposições, etc., e a criança devia localizar os diferentes edifícios com relação à escola. Bem, essas crianças de 4 e 5 anos sabiam seguir o caminho para ir à escola mas não podiam representá-lo; elas tinham de qualquer modo uma representação motora. A criança dizia: Eu saio de minha casa, eu vou assim (gesto), depois assim (gesto), depois eu faço uma volta assim, depois chego à escola.

Mas colocar edifícios e fazer o caminho, é outra coisa. Uma coisa é sair de um aperto numa cidade estrangeira onde acabamos de chegar e aí se reencontrar depois de alguns dias, outra coisa é evocar sua topografia, se não temos um mapa da cidade à nossa disposição. Que uma mesma ação seja executada materialmente ou evocada em pensamento não se trata na realidade da mesma ação. O desenvolvimento não é linear: é necessário uma reconstrução. O que explica que haja todo adquirido no nível sensório-motor não pode ser continuado sem mais, mas deve ser reelaborado no nível

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da representação, antes de atingir essas operações e conversações que falamos há pouco.

Chego agora ao nível das operações concretas, por volta de 7 anos em média em nossas civilizações. Mas veremos que existem atrasos ou adiantamentos devido à ação da vida social. Por volta de 7 anos, constatamos uma modificação fundamental no desenvolvimento da criança. Ela se toma capaz de uma certa lógica; ela se torna capaz de coordenar operações no sentido da reversibilidade, no sentido do sistema de conjunto do qual darei um ou dois exemplos agora. Esse período coincide com o começo da escola primária. Aqui novamente penso que é o fator psicológico que é decisivo. Se esse nível das operações concretas fosse mais precoce, poderíamos fazer começar a escola primária mais cedo. Ora, isso não é possível antes que tenha sido atingido um certo nível de elaboração de que tentarei dar agora as características.

As operações do pensamento, observemos imediatamente, não são idênticas nesse nível, ao que é nessa lógica para nós, ou ao que se tomará a lógica do adolescente. A lógica do adolescente - e nossa lógica - é essencialmente uma lógica do discurso. Quer dizer que somos capazes - e o adolescente se torna capaz desde 12 ou 15 anos - de raciocinar sobre enunciados verbais, proposicionais; somos capazes de manipular hipóteses, de raciocinar a partir do ponto de vista de um outro, sem acreditar nas proposições sobre as quais raciocinamos. Somos capazes de manipulá-las de uma maneira formal e hipotético-dedutiva.

Essa lógica, veremos, leva ainda muito tempo para se construir. Antes dessa lógica, é necessário passar por um estágio preliminar, e é o que chamarei o período das operações concretas. Esse período preliminar é o de uma lógica que não se dirige a enunciados verbais, mas que diz respeito aos objetos mesmos, os objetos manipuláveis. Será uma lógica das classes, porque podemos reunir os objetos juntos ou em classes; ou será uma lógica das relações porque podemos combinar os objetos seguindo suas diferentes relações; ou será uma lógica dos números porque podemos contá-los materialmente, manipulando os objetos; mas se for uma lógica das classes, relações e números, ainda não será uma lógica das proposições. E entretanto, tratamos com uma lógica, no sentido em que pela primeira vez, estamos em presença de operações propriamente ditas, enquanto possam ser invertidas -

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como por exemplo a adição que é a mesma operação que a subtração, mas no sentido inverso. E depois, é uma lógica no sentido em que as operações estão coordenadas, agrupadas em sistemas de conjunto, que têm suas leis como totalidades. E é necessário insistir com bastante ênfase sobre a necessidade dessas estruturas de conjunto para a elaboração do pensamento.

Por exemplo, um número não existe no estado isolado. O que é representado, é a sucessão tios números, quer dizer um sistema organizado que é a unidade mais a unidade, e assim sucessivamente. Uma classe lógica, um conceito não existem no estado isolado. O que é representado é o sistema total que chamaremos uma classificação. Assim também, uma relação de comparação "maior que" não existe no estado isolado; é uma parte de uma estrutura de conjunto que chamaremos a seriação, que consiste em ordenar os elementos seguindo a mesma relação.

São essas estruturas que se constróem a partir de 7 anos, e é a partir desse momento que as noções de conservação se tomam possíveis.

Tomemos dois exemplos dessas estruturas de conjunto:

1º A seriação. Você dá à criança uma série de varinhas de diferentes tamanhos e você lhe pede para ordená-las da menor até a maior. Naturalmente, a criança saberá fazer isso antes dos 7 anos, mas de uma maneira empírica, quer dizer por tateamentos, o que não é uma operação lógica. Enquanto a partir dos 7 anos, a criança se toma capaz de um sistema. Ela vai comparar os elementos entre eles, até encontrar o menor, que coloca sobre a mesa; depois procurará o menor dos que restam e o colocará ao lado do primeiro; e em seguida o menor de todos os que restam e o colocará ainda ao lado do segundo. Cada elemento sendo maior que todos os que já estavam na mesa e menor do que os que restavam: você vê então um elemento de reversibilidade.

Essa operação, que é modesta, é adquirida por volta dos 7 anos, no plano dos comprimentos. Se você traduz essa operação em termos de pura linguagem, ela se torna muito mais complicada. Nos testes de inteligência de Burt, que são tão ricos em operações lógicas, existe o seguinte teste, que estudei outrora com grande interesse. Trata-se de três meninas que diferem pela cor de seus cabelos, e pede-se para adivinhar qual delas os têm mais escuros.

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Os de Edith são mais claros que os de Suzana e ao mesmo tempo mais escuros que os de Lili. Qual das três os tem mais escuros? Você vê que é necessário um pequeno raciocínio que não é imediato, mesmo no adulto, para achar que é Suzana e não Lili. Na criança, será necessário esperar 12 anos para que esse problema seja resolvido, porque ele é posto em termos de enunciados verbais. Não existe entretanto nada mais do que a seriação de que falei há pouco, mas uma seriação verbal que é diferente das operações concretas que acabei de descrever .

2º A classificação. Ela só é adquirida por volta de 7-8 anos, se você toma como critério da classificação a inclusão de uma subclasse numa classe, quer dizer a compreensão do fato de que a parte é menor que o todo. Isso pode parecer extraordinário e é entretanto verdadeiro. Você dá à criança flores que compreendem seis prímulas e seis outras flores. Você lhe pergunta: Todas as prímulas são flores? Resposta: Naturalmente. Todas as flores são prímulas? Resposta: Naturalmente que não. Há na mesa mais prímulas ou mais flores? A criança vai olhar dizer: Há mais prímulas: ou: É a mesma coisa, porque tem 6 de um lado e 6 do outro.

- Mas, você me disse que as prímulas são flores. Há mais flores ou mais prímulas?

Bem, as flores, é o que resta depois das prímulas; não é a inclusão da parte no todo, é a comparação de uma parte.

Isso é interessante como sintoma das operações concretas. Observe que com flores, esse problema é resolvido aos 8 anos. Mas se você pergunta sobre animais, a solução vem mais tarde. Você pergunta a uma criança: todos os animais são pássaros? Certamente não. Existem caracóis, cavalos... Todos os pássaros são animais? Certamente.

- Então, se você olha pela janela, existem mais pássaros ou mais animais?

- Eu não sei. Seria preciso orientá-los.

Impossível pois de deduzir a inclusão de subclasses na classe simplesmente pela manipulação de "todos" e de "alguns". E isso provavelmente porque as flores podem ser reunidas em ramos. Existe aí uma operação concreta fácil, enquanto fazer ramos de andorinhas, se torna mais complicado; isso não é manipulável.

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Chego enfim às operações formais, por volta de 12 anos e tendo como etapa de equilíbrio 14-15 anos.

Trata-se de uma última etapa, durante a qual a criança se toma capaz de raciocinar e de deduzir, não somente sobre objetos manipuláveis como bastões a serem ordenados, esses numerosos objetos a serem juntados, etc., mas se torna capaz de lógica e de raciocínios dedutivos, sobre hipóteses, sobre preposições. Existe toda uma nova lógica, todo um conjunto de operações específicas que vêm se superpor às precedentes e que podemos chamar a lógica das proposições, Ela supõe com efeito duas características novas muito fundamentais. Primeiramente uma "combinatória", enquanto que até então tudo se fazia passo a passo, por encaixas sucessivos, enquanto a combinatória liga qualquer elemento a outro qualquer. Existe por aí uma característica nova, que repousa, sobre uma espécie de classificações, ou de seriação de todas as seriações. A lógica das proposições suporá, por outro lado, a combinação num sistema único dos diferentes agrupamentos que até então repousavam, seja sobre a reciprocidade, seja sobre a inversão, sobre as diferentes formas de reversibilidade (grupo das quatro transformações: inversão, reciprocidade, correlatividade, identidade). Estamos pois em presença de um acabamento que, em nossas sociedades, só se constata aos 14 ou 15 anos, e que toma tanto tempo porque, para chegar aí, é necessário passar por todas as espécies de etapas das quais cada uma é necessária para a conquista da seguinte.

Até aqui procurei mostrar o papel do tempo no desenvolvimento intelectual da criança. Vou falar agora da outra questão que nos colocamos no começo desse estudo, a saber: trata-se aí de um ritmo inelutável, ou existem variações possíveis da civilização ou sobre efeito das sociedades nas quais a criança vive?

Duas respostas podem ser dadas: a resposta de fato e a resposta de interpretação teórica. Mas as respostas de fato são infelizmente inseparáveis da interpretação teórica, porque um fato não é nada em si mesmo se não for interpretado e a interpretação aqui é sempre delicada.

O estado de fato. Encontramos naturalmente adiantamentos com relação às idades que indiquei. Existem indivíduos bem dotados, melhor dotados que outros. Existem gênios, de tempos em

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tempos. Existem pois adiantamentos, mas esses adiantamentos são o resultado de uma maturação biológica mais rápida? Isso é muito possível, porque existem ritmos muito diferentes no crescimento individual. Ou é um efeito de educação, do exercício, etc. ? Você vê aqui que o fato bruto não permite resposta e que é necessário uma interpretação.

Encontramos, por outro lado, adiantamentos coletivos em certas classes sociais, em certos meios. Mas aqui novamente, trata-se de uma seleção de bem dotados, ou de uma ação social propriamente dita ?

De fato, o que encontramos, principalmente nos estudos comparativos que quisemos fazer, em todas as espécies de países, sobre essas espécies de resultados, são atrasos espantosos com relação às idades que acabamos de dar. Por exemplo, os psicólogos canadenses, que retomaram esses testes detalhadamente e de uma maneira muito estandartizada, encontram em Montreal mais ou menos as mesmas idades que em Genebra. Mas retomando os mesmos estudos comparados na Martinica, eles obtiveram quatro anos de atraso nas respostas dadas a todos os nossos problemas. Tratava-se entretanto de crianças escolarizadas segundo o programa francês de ensino primário, que vai até o certificado de estudos primário. Apesar disso, as crianças da Martinica têm quatro anos de atraso na aquisição das noções de conservação, de dedução, de seriação...

Mas de que se trata aqui? Esse atraso depende de um fator de maturação, ou seja, de um fator racial? Isso parece muito pouco provável porque psicologicamente não se encontrou nada semelhante. Ou trata-se de um fator social, quer dizer de uma certa passividade no meio social adulto? Os psicólogos que cito (A. Pinard, M. Laurendeau, C. Boisclair) estariam mais certamente orientados para essa segunda direção, fornecendo-nos a esse respeito todas as espécies de índice:

Um dos professores das crianças examinadas tinha hesitado em muito, antes de escolher sua profissão, entre a vocação de professor e uma outra possível, a de feiticeiro...Ora, um meio adulto sem dinamismo intelectual pode ocasionar um atraso geral no desenvolvimento das crianças.

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Por outro lado, pesquisas foram feitas no Irã. Em Teerã, encontramos mais ou menos as mesmas idades daqui; mas, em alguns analfabetos, do campo, constatamos um atraso de dois anos e meio, e isso de uma maneira mais ou menos constante. .A ordem de sucessão permanece a mesma, mas com decalagens.

Eis pois o estado de fato: há variações na velocidade e na duração do desenvolvimento. Como interpretá-Ias? O desenvolvimento do qual tentei fazer um quadro muito esquemático e muito sucinto, pode ser explicado por diferentes fatores.

Distinguirei quatro.

Primeiro fator: a hereditariedade, a maturação interna. Esse fator deve certamente ser retido em todos os pontos de vista, mas é insuficiente porque não existe nunca no estado puro ou isolado. Se um efeito de maturação intervém em toda parte, ele permanece indissociável dos efeitos do exercício da aprendizagem ou da experiência. A hereditariedade não é pois um fator que aja isolado ou seja isolável psicologicamente.

Segundo fator: a experiência física, a ação dos objetos. Constitui novamente um fator essencial, que não deve subestimar, mas que, ele também, é insuficiente. Em particular, a lógica da criança não é tirada das ações que se exercem sobre os objetos. O que não é absolutamente a mesma coisa, quer dizer que a parte da atividade do sujeito é fundamental e aí, a experiência tirada do objeto não basta.

Terceiro fator: a transmissão social, o fator educativo, no sentido amplo. Fator determinante, naturalmente, no desenvolvimento, ele e por si só insuficiente, por essa razão evidente que para que uma transmissão seja possível entre o adulto e a criança educada, é necessário haver assimilação pela criança do que lhe procuram inculcar do exterior. Ora, uma assimilação é sempre condicionada pelas leis desse desenvolvimento parcialmente espontâneo do qual dei exemplos.

Lembremos a esse respeito a inclusão da subclasse na classe, a parte menor que o todo. A linguagem contém uma quantidade de casos nos quais a inclusão é marcada de uma maneira completamente explícita pelas palavras mesmas. Mas isso não entra entretanto no espírito da criança enquanto a operação não for construída no plano das ações interiorizadas. Por exemplo,

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estudei outrora - e era novamente um teste no qual se tratava de determinar a cor de um ramo de flores, sendo dado o seguinte enunciado: Um menino diz a suas irmãs: algumas de minhas flores são botões de ouro. (Eu tinha mesmo simplificado dizendo: Algumas de minhas flores são amarelas.) A primeira das irmãs responde: Então teu ramo é amarelo, ele é todo amarelo; a segunda responde: Uma parte das flores é amarela; a terceira responde: Nenhuma das flores é amarela.

Os pequenos parisienses - era uma pesquisa feita em Paris - respondiam até 9 e 10 anos: " As duas primeiras tem razão porque dizem a mesma coisa. A primeira disse: Todo teu ramo é amarelo, e a segunda: Algumas de suas flores são amarelas. É a mesma coisa; isso quer dizer que há algumas flores e que elas são amarelas". Dito de outra forma, o genitivo partitivo, a relação da parte ao todo, não estava compreendida na linguagem por falta de estruturação de inclusão.

Quero falar de um quarto fator, que chamarei fator de equilibração. Do momento em que há três fatores, já é necessário que eles se equilibrem entre eles; mas ainda mais, no desenvolvimento intelectual, intervém um fator fundamental. É que uma descoberta, uma noção nova, uma afirmação, etc., devem se equilibrar com as outras. É necessário todo um jogo de regulação e de compensações para atingir uma coerência. Tomo a palavra "equilíbrio", não num sentido estático, mas no sentido de uma equilibração progressiva, a equilibração sendo a compensação por reação do sujeito às perturbações exteriores, compensação que atinge a reversibilidade operatória, no fim desse desenvolvimento.

A equilibração me parece o fator fundamental desse desenvolvimento. Compreendemos então, ao mesmo tempo a possibilidade de aceleração, e a impossibilidade de um aceleramento que ultrapasse certos limites.

A possibilidade de aceleração é dada nos fatos que indiquei há pouco; mas teoricamente, se o desenvolvimento é antes de tudo negócio de equilibração, porque um equilíbrio pode se regular mais ou menos rapidamente seguindo a atividade do indivíduo, ele não é regulado automaticamente como um processo hereditário que seria sofrido do interior.

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Se compararmos aos jovens gregos do tempo em que Sócrates, Platão, Aristóteles inventaram as operações formais ou proposicionais de nossa lógica ocidental tal, nossos jovens contemporâneos que devem assimilar, não somente a lógica das proposições, mas toda a aquisição de Descartes, Galileu, Newton, etc., é necessário fazer a hipótese de uma aceleração considerável durante a infância até o nível da adolescência.

O equilíbrio leva tempo, naturalmente, mas a equilibração pode ser mais ou menos rápida. Não impede que essa aceleração não possa ser aumentada indefinidamente, e é nesse ponto que concluirei. Não creio mesmo que haja vantagem em acelerar o desenvolvimento da criança além de certos limites. Muita aceleração corre o risco de romper o equilíbrio. O ideal da educação não é aprender ao máximo mo, maximalizar os resultados, mas é antes de tudo aprender a aprender; é aprender a se desenvolver e aprender a continuar a se desenvolver depois da escola.

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O DESENVOLVIMENTO DAS OPERAÇÕES INTELECTUAIS

NOÇÃO DE CONSERVAÇÃODE QUANTIDADES DESCONTÍNUAS OU DISCRETAS

Orly Zucatto Mantovani de Assis

Comparar quantidades é relacionar suas dimensões ou colocar em correspondência um a um os seus elementos. É através desses processos que a criança chega a compreender a equivalência ou não de quantidades contínuas (massa, líquido) ou descontínuas (conjuntos de vários elementos).

Tratando-se da correspondência termo a termo é preciso ressaltar que, saber fazer um elemento de um conjunto corresponder a um outro elemento de outro conjunto, colocando-os lado a lado, não basta para que a criança compreenda que ambos são equivalentes. Já foi visto que, embora a criança seja capaz de fazer uma fileira de fichas vermelhas igual à outra fileira de fichas azuis, colocando as fichas uma ao lado da outra, quando se aumenta os intervalos que separam as fichas de uma das fileiras, a criança pode passar a negar a equivalência existente entre elas.

Para chegar a admitir essa equivalência como logicamente necessária há uma evolução do pensamento da criança da simples “correspondência global ou intuitiva” para a “correspondência quantificante”. A “correspondência global ou intuitiva” é típica da criança pré-operatória, cujo pensamento é dominado pela percepção. Assim é que a equivalência entre dois conjuntos que possuem o mesmo número de elementos só é admitida se sua correspondência for percebida. É por isso que a criança que admite a equivalência de duas fileiras de fichas quando estas estão colocadas lado a lado, passa a negá-la quando a configuração espacial de uma das fileiras se modifica. A "correspondência quantificante” é característica do início do estágio operatório, em que a equivalência logicamente necessária entre dois conjuntos de igual número de elementos é admitida independentemente da configuração desses elementos.

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Na “correspondência global ou intuitiva” a criança só admite a equivalência de dois conjuntos quando a configuração espacial de seus elementos é idêntica. Por exemplo:

Deixa de admiti-la quando, embora possuindo a mesma quantidade de elementos, os conjuntos apresentem diferentes configurações espaciais, por exemplo:

Na “correspondência quantificante” a criança admite a equivalência de conjuntos que possuem a mesma quantidade de elementos independentemente de suas configurações espaciais.

É importante observar que a criança mais nova (nível 1) não é capaz de fazer nem mesmo a correspondência termo a termo; assim sendo, se lhe apresentarmos uma fileira com seis fichas azuis, pedindo-lhe que façam outra fileira com igual quantidade de fichas vermelhas, elas a fazem do mesmo comprimento que a anterior, sem levar em consideração a quantidade de fichas. A fileira de fichas vermelhas feita pela criança terá um número maior ou menor de fichas, assim:

As sugestões de atividades que serão apresentadas têm por objetivo estimular o pensamento da criança, no sentido de fazê-la caminhar da fase em que ela não é capaz de fazer a correspondência termo a termo para as fases de “correspondência global e intuitiva” e, posteriormente, para a fase de "correspondência quantificante”. Trata-se de um conhecimento lógico-matemático que será adquirido pela criança quando, ao manipular conjuntos de vários elementos (animais, conchinhas, folhas, sementes, copinhos de plástico, palitos, botões, etc.) ela chega a compreender que a

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quantidade de elementos desses conjuntos se “conserva” independentemente de sua configuração espacial.

NOÇÃO DE CONSERVAÇÃO DE QUANTIDADES CONTÍNUAS - LÍQUIDO -

As quantidades contínuas são aquelas cujas partes podem ser comparadas entre si, sem especificação da unidade. Assim para se admitir a equivalência ou não de duas porções de massa de modelar, por exemplo, basta comparar suas dimensões, visto não ser possível especificar suas unidades e nem tampouco quantificá-las numericamente. As quantidades descontínuas ou discretas são aquelas que são comparadas através da quantificação numérica de suas unidades.

As crianças reagem de diferentes maneiras quando comparam duas porções idênticas de líquido ou de massa. Assim, por exemplo, a criança de estágio pré-operatório admite a identidade das quantidades comparadas desde que sua forma seja a mesma. Basta transformar a massa ou mudar o líquido de recipiente para que ela passe a negar a identidade afirmada anteriormente. No estágio pré-operatório a transformação da quantidade contínua é concebida como modificação de todos os dados ao mesmo tempo, sem nenhuma conservação. Desta forma, não é possível o retorno ao ponto inicial. No estágio operatório, ao contrário, a criança admite a conservação da quantidade contínua apesar de suas transformações, isso porque se torna capaz de perceber a ação transformadora como reversível. Em outras palavras, a criança compreende que uma ação inversa anula a transformação observada e conduz ao ponto inicial.

As reações das crianças podem ser categorizadas em três níveis:

Nível 1: Nenhuma conservação desde que haja transformação.

Nível 2: Conservação suposta sem certeza e para algumas transformações.

Nível 3: Conservação afirmada com certeza para todas as transformações observadas.

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Os argumentos apresentados pela criança do terceiro nível são em número de três e são típicos da inteligência operatória. O primeiro é o da reversibilidade simples: - Há em B (salsicha) a mesma quantidade de massa que tem em A (bolinha) porque se pode refazer A (bolinha) a partir de B (salsicha) ou Há em B (copo mais alto e mais estreito) a mesma quantidade de água do que em A (copo mais largo e mais baixo) porque se despejarmos a água de B em A, este ficará igual a A. O segundo tipo de argumento é o da reversibilidade por reciprocidade: -Tem a mesma quantidade, pois B (salsicha) é mais comprida, mas é mais fina ou -A água sobe mais alta, mas é mais estreita. O terceiro tipo é o da identidade: Tem a mesma quantidade porque é a mesma massa, a gente só enrolou ou Tem a mesma quantidade de água pois nós só despejamos aqui (B) ou -Tem a mesma quantidade de água porque a gente não tirou nem pôs mais.

As situações que propiciam a aquisição da noção de conservação das quantidades contínuas são aquelas em que a criança brinca com barro, água, areia, etc.

1-Ausência de Conservação

A = A´ A ≠ B A ≠ C

2-Conservação em algumas das transformações

A = A´ A ≠ B A = C

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3- Noção de Conservação

A = A´ A = B A = C

Argumentos

1. Identidade:

É a mesma água, não se tirou nem pôs. Somente passou de um copo para outro.

2. Reversibilidade:

2.1. Simples ou por inversão:

Se pusermos a água neste copo (A) outra vez, fica tudo igual como antes.

2.2. Por reciprocidade:

Neste copo (B) a água está mais alta porque o copo é fino e alto, neste (A) a água fica mais baixa porque o copo é mais largo e mais baixo, mas a quantidade é a mesma.

CONSERVAÇÃO DE QUANTIDADES CONTÍNUASMASSA

As situações que propiciam a aquisição da noção de conservação das quantidades contínuas são aquelas em que a criança brinca com barro, massa de modelar, etc.

As quantidades contínuas são aquelas cujas partes podem ser comparadas entre si, sem especificação da unidade. Assim, para se admitir a equivalência ou não de duas porções de massa de modelar, por exemplo, basta comparar suas dimensões, visto não ser possível especificar suas unidades e nem tampouco quantificá-las numericamente. As quantidades descontínuas ou discretas são

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aquelas que são comparadas através da quantificação numérica de suas unidades.

As crianças reagem de diferentes maneiras quando comparam duas porções idênticas de massa. Assim, por exemplo, a criança de estágio pré-operatório admite a identidade das quantidades comparadas desde que sua forma seja a mesma. Basta transformar a massa para que ela passe a negar a identidade afirmada anteriormente. No estágio pré-operatório a transformação da quantidade contínua é concebida como modificação de todos os dados ao mesmo tempo, sem nenhuma conservação. Desta forma, não é possível o retorno ao ponto inicial. No estágio operatório, ao contrário, a criança admite a conservação da quantidade contínua apesar de suas transformações, isso porque se torna capaz de perceber a ação transformadora como reversível. Em outras palavras, a criança compreende que uma ação inversa anula a transformação observada e conduz ao ponto inicial.

As reações das crianças podem ser caracterizadas em três níveis:

Nível 1– nenhuma conservação desde que haja transformação.

Nível 2– conservação suposta sem certeza e para algumas transformações.

Nível 3– conservação afirmada com certeza para todas as transformações observadas.

Os argumentos apresentados pela criança do terceiro nível são em número de três e são típicos da inteligência operatória. O primeiro é o da reversibilidade simples: “Há em B (salsicha) a mesma quantidade de massa que tem em A (bolinha) porque se pode refazer A (bolinha) a partir de B (salsicha)”. O segundo tipo de argumento é o da reversibilidade por reciprocidade: “Tem a mesma quantidade, pois B (salsicha) é mais comprida, mas é mais fina”. O terceiro tipo é o da identidade: “Tem a mesma quantidade porque é a mesma massa, a gente só enrolou” ou “Tem a mesma quantidade de massa porque a gente não tirou nem pôs mais”.

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Conservação de Quantidades Contínuas (Massa)

1-Ausência de Conservação

2-Conservação em algumas das transformações

3- Noção de Conservação

NOÇÃO DE CLASSIFICAÇÃO OPERATÓRIA

Classificar é reunir objetos de acordo com suas semelhanças. As origens das classificações remontam à atividade sensório-motora que consiste em reunir e em separar objetos a partir de critérios funcionais.

No estágio pré-operatório as crianças tendem a classificar os objetos fazendo "coleções figurais" ou "coleções não figurais" ( cf. Mantovani de Assis. "Uma Nova Metodologia de Educação Pré-Escolar. p. 15). As "coleções figurais" traduzem uma indiferenciação entre os aspectos figural e conceptual de um conjunto de elementos. As "coleções não figurais" consistem em distribuir em pequenos

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A = A´ A = B A = C

A = A´ A ≠ B A ≠ C

A = A´ A ≠ B A = C

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montes os objetos que se assemelham. Além disso, depois de construído um amontoado (por exemplo, de círculos) a criança chega a subdividi-lo em sub-coleções: grandes e pequenos, ou vermelhos e azuis. Tais comportamentos já são nitidamente classificatórios, mas não há ainda a operação de inclusão de classes.

No estágio operatório a criança se torna capaz de reunir em classes todos os elementos de um conjunto, segundo um critério único que inclui duas ou mais subclasses numa classe de maior extensão, como por exemplo quando afirma que, num ramalhete de cinco rosas e duas margaridas há mais flores do que rosas, pois todas são flores.

É através da observação do comportamento da criança que o(a) professor(a) chega a compreender em que nível de classificação ela se encontra. No nível das classificações figurais as reações típicas das crianças podem ser categorizadas da seguinte maneira:

1. Pequenos alinhamentos parciais:

A criança não procura classificar todos os objetos apresentados, construindo coleções não exaustivas e sem relações entre si.

Características:

a- A criança estabelece semelhanças entre o primeiro elemento escolhido e o seguinte, depois, entre o segundo e o seguinte, e assim por diante, sem qualquer plano preestabelecido e sem esgotar todos os elementos.

b- Esses elementos ligados por semelhança não estão reunidos numa totalidade estabelecida antecipadamente e nem construída como um conjunto total.

c- O alinhamento assim construído só posteriormente se impõe como uma estrutura de conjunto.

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2. Alinhamentos contínuos, mas com mudanças de critérios:

O alinhamento é generalizado para todas as figuras, constituindo-se assim um alinhamento total. Observam-se a constituição de sub-coleções que não são previstas pela criança e nem sempre notadas posteriormente. Essas sub-coleções resultam do fato da criança esquecer os elementos precedentes ao proceder a seqüenciação das figuras e ir mudando de critério à medida que constrói o alinhamento.

3. Os intermediários entre o alinhamento e os objetos coletivos ou complexos:

São agrupamentos intermediários entre os alinhamentos e os objetos coletivos ou complexos. Caracterizam-se por constituírem alinhamentos múltiplos, cujas linhas se orientam em direções diferentes, como por exemplo em ângulo reto, ou por constituírem figuras que começam sob a forma de alinhamento e depois se completam sob a forma de superfícies.

4. Objetos coletivos:

Constituem uma montagem, em duas ou três dimensões, de elementos semelhantes mas formando, em conjunto, uma figura inteiriça como se fosse uma peça só.

5. Objetos complexos:

Constituem um agrupamento de forma multidimensional. A criança perde de vista seu propósito inicial de classificar e em vez de "juntar" o que é parecido, passa a fazer uma construção qualquer.

Os comportamentos anteriormente descritos são típicos da criança de 3-4 anos de idade, que freqüentam as classes de nível 1. As coleções não figurais são típicas das crianças de 5-6 e 5-7 anos que freqüentam as classes de nível 2 e 3. Entretanto, espera-se que a criança das classes deste último nível chegue a adquirir a noção de classificação operatória. É importante observar que esta determinação de comportamentos típicos de cada idade não é rígida. Assim sendo, é bem possível que crianças de nível 2 e 3 façam coleções figurais ao classificar objetos.

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É classificando os objetos, as pessoas e os animais que a criança estrutura o real, formando conceitos. A classificação, que tem sua origem na atividade sensório-motora, vai se aperfeiçoando à medida em que a criança se desenvolve e se converte na capacidade para orientar o pensamento científico característico da adolescência e da idade adulta.

As figuras que se seguem poderão facilitar a compreensão das fases pelas quais a criança passa até construir a noção de classificação operatória.

ESTÁGIO PRÉ-OPERATÓRIO

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4- Objetos Coletivos:

5- Objetos Complexos:

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NOÇÃO DE SERIAÇÃO OPERATÓRIA

Seriar é agrupar os objetos de acordo com suas diferenças ordenadas. A seriação sob uma forma vacilante e não sistemática já está presente no comportamento da criança desde o estágio sensório-motor. Podemos observar comportamentos de seriação em crianças desse estágio quando, por exemplo, um bebê de um ano e meio constrói uma torre, sobrepondo cubos de tamanhos decrescentes, ou quando um pouco mais tarde é capaz de fazer encaixamento de objetos de diferentes tamanhos. O comportamento da criança nesse estágio engloba a percepção de relações e comporta também um esquema sensório-motor que supera a própria percepção. A seriação operatória tem pois sua origem na atividade sensório-motora.

Do início do estágio pré-operatório até ao início do estágio operatório concreto encontramos três níveis de seriação.

Nível 1 : Ausência de seriação.

Se apresentarmos à criança uma série de 10 bastonetes, ela fracassa na seriação, arrumando os bastonetes ao acaso ou fazendo com eles pares e trios.

Nível 2 : Seriação perceptiva.

A criança consegue construir a série por tentativas mas, quando lhe solicitamos que intercale novos elementos geralmente desmancha a série feita e começa tudo outra vez ou faz a intercalação através de tentativas.

Nível 3 : Seriação Operatória.

A criança constrói a série utilizando um método sistemático, que consiste em identificar primeiro o elemento menor (ou maior) depois o outro menor (ou maior) dos que restam e assim por diante. Este comportamento já é operatório e implica a compreensão de que um determinado elemento E é, ao mesmo tempo, maior que os precedentes e menor do que os seguintes. Além disso, a criança desse nível é capaz de intercalar diretamente e sem hesitações os novos elementos que lhes são apresentados.

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SERIAÇÃO

Seriar é ordenar os objetos de acordo com suas diferenças..

1- Ausência de Seriação

2- Seriação Empírica ou Perceptiva

A série é construída por ensaio e erro

3- Seriação Operatória

A série é construída por meio de procedimentos sistemáticos.

A criança entende que qualquer elemento mediano é ao mesmo tempo maior que e menor que.

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ESTRUTURAÇÃO DO CONCEITO DE ESPAÇO

A estruturação do conceito de espaço deriva das ações que o sujeito realiza sobre os objetos no espaço. Essas ações são inicialmente sensório-motoras e mais tarde ações interiorizadas que se transformam em operações, constituindo sistemas. O conceito de espaço da pessoa adulta, resulta das manipulações ativas do meio espacial e não de um "puro registro" imediato deste meio, através da percepção. Desta forma, a percepção que temos dos objetos como juntos ou separados no espaço, é função de ações passadas de separar e juntar e não de registros visuais de sua proximidade ou separação.

Segundo Piaget, o conceito de espaço é produto de uma construção lenta e gradual que depende muito mais das ações do que da percepção. Essa construção se inicia no estágio sensório-motor. No princípio, não existe um espaço único que englobe os objetos. Ao contrário, existem "espaços" separados, heterogêneos, todos centrados no próprio corpo da criança: espaço bucal, tátil, visual, auditivo, postural. Em seguida, esses espaços vão se coordenando progressivamente, até que, no final do estágio sensório-motor, constitui-se um espaço único e objetivo, no qual todos os objetos e a própria criança estão incluídos e inter-relacionados. A criança torna-se então, capaz de controlar seus movimentos no espaço, representando internamente seus próprios deslocamentos anteriores em relação aos deslocamentos dos outros corpos. Além disso, ela também se torna capaz de representar os deslocamentos invisíveis dos objetos. Desta forma, a criança que se afasta de casa e a perde de vista, é capaz de apontar corretamente o ponto em que ela se localiza. Assim também quando a criança encontra um obstáculo que a impede de alcançar um objeto perdido, ela faz outro caminho e consegue pegar o objeto. Isso acontece porque a criança foi capaz de representar o deslocamento invisível do objeto perdido e o desvio que precisava ser feito para encontrá-lo novamente.

A partir de dois anos de idade, o espaço sensório-motor é reconstruído no nível de representação. Observa-se então, em primeiro lugar, o aparecimento de estruturas topológicas (que incluem a proximidade, a ordem, o fechamento e a continuidade) e depois o aparecimento mais ou menos simultâneo (em geral aos 9-

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10 anos) das estruturas euclidianas e projetivas. As estruturas euclidianas implicam a compreensão do espaço em três dimensões e as conservações de comprimentos, superfícies e volumes e a elaboração dos sistemas de referência (horizontal e vertical). As estruturas projetivas implicam a compreensão das transformações de perspectivas de um único objeto ou de um sistema de vários objetos, com coordenação de pontos de vista.

Esta evolução na estruturação do conceito de espaço é percebida pela análise de inúmeros fatos. Por exemplo, a criança pré-escolar de 3-4 anos é capaz de distinguir uma figura fechada de uma aberta, uma figura que tem um furo de outra que não tem. Entretanto, a capacidade de discriminar as figuras retilíneas e curvilíneas só se desenvolve muito tempo depois. Portanto, a criança que sabe distinguir um círculo fechado de um aberto, pode ser incapaz de distinguir entre figuras fechadas curvilíneas e retilíneas, como quadrados ou losangos.

No estágio pré-operatório a concepção que a criança tem de espaço está ligada às suas ações. Desta forma, é capaz de ver uma coisa em relação a outra e, conseqüentemente, de compreender as relações de proximidade, separação, ordem e continuidade existentes entre os objetos. O desenho da criança reflete a sua concepção de espaço. A figura humana é desenhada corretamente e as relações entre continente e conteúdo se manifestam nas "transparências”: batatas dentro da terra, móveis dentro da casa, etc... As crianças desenham o que sabem e não o que vêem (realismo intelectual).

Quando se trata, por exemplo, de representar graficamente o trajeto de casa à escola, a criança pré-operatória o faz em termos de suas próprias ações. Lembra-se de onde parte e onde chega e que precisa dobrar uma esquina no caminho. Mas, não é capaz de recordar um único ponto de referência, e a representação gráfica do trajeto não tem relação com a planta da escola e do bairro. À vezes é capaz de lembrar-se de nomes das ruas, mas não de sua ordem ou dos lugares onde precisa virar. Seu desenho é um círculo, com alguns pontos colocados ao acaso para corresponder aos nomes de ruas que conseguiu lembrar.

A criança constrói o conceito de espaço espontaneamente, sem que nada lhe seja ensinado.

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ESTRUTURAÇÃO DO CONCEITO DE TEMPO

Para Piaget o tempo constitui uma coordenação de velocidades distintas: movimentos do objeto para o tempo físico, ou movimentos do sujeito para o tempo psicológico.

A noção operatória de tempo evolui simultaneamente com as noções de movimento e velocidade. A noção de tempo resulta de uma construção prolongada, que se inicia no estágio sensório-motor e termina no estágio das operações formais.

A forma mais elementar dessa noção é a organização sensório-motora, que se processa desde o nascimento até a aparição da linguagem. Quando a criança chora de fome enquanto não é alimentada, ela tem conhecimento de certas durações, como a da espera. Quando a criança retira um obstáculo, para depois pegar o objeto que foi escondido atrás dele, ela estabelece uma sucessão de acontecimentos entre meios e fins (antes e depois).

Quando, com a aquisição da linguagem, a inteligência infantil ultrapassa o plano das ações para alcançar o do pensamento, as noções temporais passam a ser reconstruídas nesse novo plano. A criança começa por reaprender, nesse novo plano, o que ela já sabe de uma maneira essencialmente prática. Sendo capaz de utilizar e prever uma seqüência de acontecimentos, ou levar em consideração certas durações, torna-se necessário para ela reconstruir as mesmas noções no plano das representações. As noções temporais sensório-motoras, lenta e gradualmente, passam a ser traduzidas em signos e representações, e isto implica uma nova construção. É por isto que as crianças de 4 a 5 anos encontram dificuldade para reconstruir uma série temporal simples no plano das representações, embora sejam capazes de percebê-la e manejá-la praticamente sem dificuldade. Assim, por exemplo, ela sabe fazer escoar água de um recipiente superior para um inferior e prever que os níveis sucessivos desses recipientes serão cada vez mais baixos no primeiro e cada vez mais altos no segundo. Entretanto, se pedirmos a essa criança para seriar os desenhos que ela mesma fez desses vários níveis, vamos observar que ela comete erros.

No estágio intuitivo ou pré-operatório, a criança irá reconstruir as noções elementares de sucessão e duração

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simultaneamente, a partir dos esquemas sensório-motores. Nesse estágio essas relações são baseadas na percepção imediata interna ou externa. Disso resulta que a criança age como se cada movimento tivesse o seu próprio tempo. Piaget se refere a este fenômeno como "tempo local". Desta maneira, os "tempos" inerentes a movimentos diferentes não podem ser coordenados. A noção de "tempo homogêneo" que representa a média comum de todos os movimentos, com a mesma velocidade ou com velocidades diferentes, só será construída no estágio operatório concreto.

O conceito operatório de tempo implica a coordenação de movimentos de velocidades distintas que, por sua vez, requer uma concepção lógica de movimento e velocidade, que a criança pré-operatória não tem. Assim é que no estágio pré-operatório, o movimento e a velocidade são avaliados em termos do ponto final ou terminal do movimento no espaço percorrido. Nesse caso, a criança acredita que um objeto fez um trajeto mais longo quando ele pára antes de outro, mesmo que o primeiro tenha feito um caminho reto e o último um caminho em zigue-zague e, portanto, tenha percorrido uma distância maior. A velocidade também é compreendida pelo esquema de "passar na frente" ou de "estar na frente". Quando a criança vê um móvel ultrapassar outro ou chegar à sua frente, ela acredita que ele se locomoveu mais rapidamente. Mas se a ultrapassagem não é visível (por exemplo, quando os dois móveis se locomovem sob túneis, sendo um maior que o outro) a avaliação das velocidades se mostra incorreta. A velocidade não é então uma relação entre o tempo e o espaço percorrido. Isso ocorre porque a ordem temporal ainda não está construída. O tempo é uma coordenação de velocidades distintas e não havendo essa coordenação a velocidade resulta também de uma intuição parcial. A construção simultânea da idéia operatória de velocidade e da idéia operatória de tempo, permite à criança comparar velocidades entre si, quando não há ultrapassagens visíveis e também comparar os tempos entre si, quando as velocidades são diferentes.

Os erros próprios das intuições do tempo são modelos do pensamento pré-operatório, cuja característica é a irreversibilidade. O tempo operatório é o protótipo do pensamento reversível. Essas duas formas de pensamento são bastante nítidas quando se trata do tempo vivido (noção de idade). Para a criança pré-operatória a idade não se diferencia do tamanho (especialmente da altura). As coisas

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maiores são mais velhas que as menores e as coisas que param de crescer também não envelhecem mais. Devido à sua associação com o tamanho, a idade não tem uma relação necessária com a data do nascimento. Se Pedro nasceu depois de João, mas com o tempo o supera em tamanho, é considerado "mais velho".

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ESTRUTURAS OPERATÓRIAS CONCRETAS

OS AGRUPAMENTOS

Lia Leme Zaia

Estruturas são sistemas de conjunto1, responsáveis pela nossa capacidade de estabelecer relações lógicas e cujos elementos, relacionados entre si, não podem ser caracterizados independentemente destas relações.

Estas estruturas são construídas a partir das relações do sujeito com o meio ambiente, numa ordem invariável de sucessão. As estruturas elementares são incorporadas às novas estruturas como subestruturas.

Desta forma as estruturas elementares não se perdem mas continuam existindo como parte das mais complexas e estas, por sua vez, integram outras ainda mais complexas.

O ritmo de construção das estruturas mentais pode variar, sofrendo influência das solicitações do ambiente, isto é, de acordo com a maior ou menor possibilidade de atuar sobre objetos variados, interagir com crianças e adultos, inventar coisas, solucionar problemas, etc.

Embora seja importante para o desenvolvimento da criança, não podemos intervir diretamente no ambiente familiar; torna-se, portanto, necessário enriquecer o ambiente escolar com situações desafiadoras e estimulantes, de acordo com o seu nível de desenvolvimento.

Para que uma situação seja estimulante e desafiadora deve estar um pouco acima das possibilidades atuais da criança, mas próxima o suficiente para ser compreensível e solucionável.

1 Nos sistemas de conjunto, cada parte se relaciona com todas as outras e com o todo, de tal maneira que qualquer modificação em uma das partes provoca modificações no todo e em cada uma das outras partes. Assim, quando uma estrutura sofre modificações ao acomodar-se a um objeto do conhecimento, todas as outras estruturas sofrem acomodações para terem condições de se coordenarem com a estrutura modificada. Da mesma forma, a estrutura de conjunto também se modifica.

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É necessário, portanto que o professor conheça, não só as características gerais do estágio de desenvolvimento de seus alunos, mas, principalmente, as suas estruturas cognitivas, o seu processo de formação, as estruturas que lhe deram origem e as estruturas próprias do estágio seguinte.

Conhecendo o processo de construção das estruturas, o professor poderá diagnosticar o nível de desenvolvimento em o que aluno se encontra e selecionar questões, atividades e problemas que lhe possam ser desafiadores.As estruturas elementares já foram abordadas em outros textos, portanto passaremos por elas apenas superficialmente para aprofundar o estudo das estruturas mais elaboradas desse período de desenvolvimento: os agrupamentos.

CLASSIFICAÇÃO

Classificar é estabelecer relações entre os objetos reunindo-os de acordo com suas semelhanças. Quando a criança separa objetos de acordo com um critério, isto é, de acordo com um atributo comum e reúne novamente as classes em um todo, podemos dizer que está classificando. Assim, quando separa os brinquedos da casa de bonecas de acordo com o cômodo a que pertencem e, depois, ao ser solicitada a fazer apenas dois conjuntos, encontra um critério para reunir algumas classes deixando apenas duas, por exemplo, coisas de fazer comida e coisas que não servem para fazer comida, está reunindo classes menores em outras de maior extensão.

Paralelamente à classificação elementar, que implica a inclusão de classes, são construídas as classificações duplas, as matrizes multiplicativas com quatro compartimentos. Esta estrutura continua evoluindo, dando origem à classificações cada vez mais complexas que correspondem aos agrupamentos de classes.

Do ponto de vista lógico, agrupamentos são estruturas de conjunto. Sua composição é limitada, quando comparada com o grupo (matemático), pois não possui associatividade completa. Não sendo possível combinar qualquer elemento com qualquer outro, independente de sua disposição espacial, a sua composição é gradativa ou por contigüidade. É próxima da rede, mas apenas em forma de um meio ripado.

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As propriedades dos agrupamentos são: a composição (operação direta na qual uma subclasse é incluída em uma classe de maior extensão), a reversibilidade ou operação inversa (exclusão de uma subclasse da classe de maior extensão), a associatividade, limitada à adição de várias classes contíguas, independentemente da maneira como estão agrupadas, a identidade geral, pela qual existe um elemento, (a classe nula), que somado a qualquer outro não o modifica e as identidades especiais ou tautologia, isto é, outros elementos que desempenham o papel de identidade (a união de qualquer classe com ela mesma, nada modifica).

As identidades especiais são próprias apenas dos agrupamentos. Juntamente com os limites impostos à associatividade, diferencia o agrupamento do grupo lógico matemático.

Os agrupamentos de classe são os seguintes:

Agrupamento I - composição aditiva de classes: É a organização em que cada classe se inclui na seguinte, esta na seguinte e assim por diante, até atingir uma classe que inclui todas as outras. Cada classe é formada por uma subclasse que a antecede e sua complementar. A classe complementar é constituída por todas as classes que a antecedem (ou subclasses) e que não fazem parte da primeira. Isto significa que uma classe qualquer é constituída por todas as outras que a antecedem. Esse agrupamento é simbolizado por Piaget como: A+A’=B, B+B’=C, C+C’= D...

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A A’

B B’

C C’

D D’

E

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Exemplificando a inclusão hierárquica de classes, podemos tomar uma subclasse A que pode ser formada pelos carrinhos vermelhos, A’ pelos carrinhos não vermelhos, ambas as classes formando B, a classe dos carrinhos de brinquedo, cuja complementar é B’, a classe dos brinquedos não carrinhos. B e B’ formam a classe dos brinquedos C, cuja complementar, C’, é constituída por todos os objetos pessoais não brinquedos. Juntamente com C, C’ forma a classe dos objetos pessoais D, cuja complementar D’, é formada pelos objetos não pessoais. Ambas formam a classe E, dos objetos... e assim por diante.

A hierarquia zoológica é um outro exemplo deste agrupamento. Consideremos a subclasse dos cães dálmatas (A) cuja complementar seria a dos cães não dálmatas (A’), ambas formariam a subclasse (B) composta por todos os cães, cuja complementar poderia ser a dos animais mamíferos domésticos não cães (B’). As subclasses B e B’ formariam a subclasse C, dos animais mamíferos domésticos que, com sua complementar C’ (animais mamíferos não domésticos), formaria a subclasse dos animais mamíferos (D). A subclasse D, juntamente com sua complementar D’(animais não mamíferos) formaria a classe dos animais... e poderíamos continuar daí por diante.

É interessante observar que, as classificações zoológicas e botânicas, de cunho científico, assumem a forma deste agrupamento. Assim, se em vez de darmos as hierarquias prontas para as crianças memorizarem, oferecermos amplas possibilidades de classificarem por si mesmas as plantas e animais, a partir das espécies de seu próprio meio, das quais conhece as características, elas poderão chegar à classificações muito próximas daquelas que desejamos que elas conheçam.

Agrupamento II - adição secundária de classes: Este agrupamento consiste na inclusão de uma classe e sua complementar em uma classe de maior extensão que as comporta. A diferença em relação ao anterior consiste em que, enquanto no agrupamento I, trata-se de inclusões sucessivas, neste, a classe superior permanece sempre a mesma e pode ser constituída por qualquer outra e sua complementar.

A representação lógica desta classe seria: A1 + A’ = B, A2 + A’2 = B, A3 + A’3 = B, A4+ A’4 = B... em que A1 poderia corresponder à

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classe dos gatos, A’1 à dos não gatos, ambas constituindo B, classe dos mamíferos, que pode ser formada também por A2 - classe dos cavalos - e A’2 - classe dos mamíferos não cavalos; ou por A 3 - dos macacos e A’3 - dos mamíferos não macacos, e assim por diante.

Neste agrupamento cada soma resulta sempre na classe completa dos mamíferos, comportando, portanto, vicariâncias, uma vez que seus termos podem ser substituídos sem alterar a classe total.

Agrupamento III - multiplicação biunívoca de classes: As classes podem ser multiplicadas umas pelas outras. O resultado dessa multiplicação é sempre uma classe de menor extensão, porque possui os predicados das duas classes multiplicadas. Se multiplicarmos, por exemplo, a classe dos carros, que comporta todos os carros, pela classe dos vermelhos, que inclui todos os objetos vermelhos, tenho a classe dos carros vermelhos, que comporta apenas os carros de cor vermelha, deixando de incluir todos os outros carros - não vermelhos - e todos os outros objetos - não carros. O produto desta multiplicação é, portanto, a interseção de ambas as classes.

Podemos tomar como exemplo, novamente, os brinquedos de uma criança. A classe dos brinquedos poderia ser dividida pela cor, hierarquia (D1 ) e pela espécie, (D2 ). Assim, poderia ser constituída, por um lado, pela classe dos brinquedos azuis (A1 ), dos brinquedos amarelos (B1 ) e dos brinquedos vermelhos (C1 ) e, por outro lado, pela classe dos carrinhos ( A2), pela dos piões(B2 ) e pela das bolas(C2 ) . A multiplicação lógica dessas hierarquias dá origem à matriz multiplicativa ou tabela de dupla entrada:

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B

A1

A’1

A 2 A’2

A 3

A’3

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D1

D2

A2 B2 C2

A1 A1 A2 A1 B2 A1 C2

B1 B1 A2 B1 B2 B1 C2

C1 C1 A2 C1 B2 C1 C2

Este agrupamento recebe o nome de multiplicativo biunívoco porque cada classe da primeira hierarquia (D1), multiplica-se pelas classes individuais da segunda hierarquia (D2) para dar origem às classes de menor extensão, situadas nas interseções.

Diversas atividades podem propiciar o estabelecimento destas relações multiplicativas. Um exemplo clássico, seria o de colocar diante da criança dois conjuntos, um com objetos verdes (uma caneca, um carro, uma caneta, etc., todos verdes), formando uma linha vertical, e outro de folhas de diversas cores, amarela, laranja, marrom, vermelha (exceto verde) formando uma linha horizontal. O ponto de interseção ficaria vazio e se perguntaria à criança, o que poderia ser colocado ali. Para obter a resposta a criança teria de considerar os critérios de classificação dos dois conjuntos: objetos verdes de um lado e folhas do outro. Multiplicando ambos os critérios, teria uma folha verde.

Com crianças menores podemos apresentar diversos objetos para ela escolher, dentre eles, o que serve para ambos os conjuntos. Com crianças mais velhas isso não é necessário. Com estas também é possível trabalhar com palavras, a partir dos conteúdos escolares já trabalhados. Por exemplo, pode-se oferecer nomes de diversos personagens portugueses de nossa história para um conjunto e, para outro, nomes de reis de diversas nacionalidades, para preencher a interseção a criança poderia escolher entre diversos nomes de personagens de nossa história, tendo apenas D. João VI para representar o rei português.

Agrupamento IV - multiplicação counívoca de classes: Na multiplicação counívoca de classes (um-para-muitos), cada classe de uma hierarquia pode ser multiplicada por todas classes de outra hierarquia. Tomemos o exemplo de uma família, sendo a hierarquia K1 formada pelas classes: A1 - os filhos de x, B1 - os netos de x - e C1

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- os bisnetos de x. A hierarquia K2 é constituída por A2 - irmãos, A’2 - primos de A2 - e B’2 - primos em segundo grau de A2.

A2

A1

irmãos

A2

primos irmãos

A’2

primos -2ºgrau

B’2

A1 A1 A2

B1 B1 A2 B1 A’2

C1 C1 A2 C1 A’2 C1 B’2

Neste exemplo, A1 corresponde a apenas uma classe de K2, a classe A2 . Isto é, os filhos de x só podem ser irmãos ente si. Da mesma forma os netos de x ( A’2) só podem ser irmãos entre si (B1

A’2) ou primos irmãos (B1 A’2), enquanto os bisnetos de x podem ser irmãos entre si (C1 A2 ), primos irmãos (C1 A’2) e primos em segundo grau (C1 B’2). O agrupamento quatro forma uma matriz triangular.

SERIAÇÃO

Seriar é ordenar os objetos de acordo com as diferenças. Quando uma criança coloca objetos em ordem de tamanho (do maior para o menor ou vice-versa), ou de peso, espessura, tonalidade, aspereza, etc., executa uma atividade de seriação. Os objetos que possibilitam estas atividades possuem todas as características iguais, exceto uma, cujas diferenças são constantes, podendo ser ordenadas.

O importante em qualquer critério de seriação é que os objetos ordenados se disponham de forma a poder ocupar apenas um lugar na série e essa posição seja definida por sua relação com os que o precedem e com os que os sucedem.

A partir da seriação operatória serão construídas as correspondências seriais e as seriações de duas dimensões.

correspondências seriais: consistem em construir séries duplas, como por exemplo, gaiolas e pássaros, bebês e chupetas, xícaras e pires, de tamanhos gradualmente maiores.

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seriações de duas dimensões: consistem em dispor numa matriz objetos que variam em duas dimensões (por exemplo, tamanho e cor)

Da mesma forma que as classificações, as seriações operatórias dão origem aos agrupamentos de relações:

Agrupamento V - aditivo assimétrico de relações: As relações assimétricas são ordenadas2 entre os indivíduos de uma série, tais como A é menor que B, B menor que C... ou M é mais claro que N, N mais claro que O e assim por diante.

A a B b C c D d E

Na série de objetos (A, B, C, D, etc) as letras minúsculas indicam as diferenças ordenadas entre os elementos. Essas diferenças comportam a transitividade: A é menor que B e este é maior que A .

Assim, se A a B, B a’ A

Outra forma de representar seria:

a

b

c

Nos agrupamentos de seriação, a reversibilidade assume uma forma diferente dos agrupamentos anteriores, uma vez que a

2 São ordenadas porque ocorrem em uma única direção.

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A

B

C

D

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inversão ou negação não é possível, enquanto a identidade geral, não podendo ser a ausência de diferenças, assume a forma de uma equivalência entre as diferenças (as diferenças entre A, B, C e D são equivalentes).

Agrupamento VI - aditivo simétrico de relações: refere-se às relações simétricas encontradas na hierarquia genealógica - composições aditivas simétricas - que podem ser combinadas entre si.

Por exemplo se tomarmos uma família, cujos membros x, y e z, são seus membros masculinos, podemos estabelecer as seguintes relações simétricas:

(A) x 0 x (ou x = x)

(B) x a y, a = “irmão de”

(C) x a’ z, a’ = “primo-irmão de”

(D) x b y, x b z, b = “tem o mesmo avô que”

Essas relações podem ser combinadas, pois se x é irmão de y e y é irmão de z, então x é irmão de z, ou se x é irmão de y e y é primo-irmão de z, x é primo-irmão de z.

Agrupamento VII - multiplicativo biunívoco de relações: Neste agrupamento, os elementos, ordenados assimetricamente em relação a dois atributos ao mesmo tempo, formam também uma tabela de dupla entrada, mas comportando as relações próprias de uma série.

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Mais escuro

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A1 A2 A3 etc.

Maior B1 B2 B3 etc.

C1 C2 C3 etc

Como exemplo de atividade, poderíamos entregar às crianças alguns cubos em três ou quatro tamanhos diferentes e tonalidades também diferentes da mesma cor, para que colocassem bem em ordem. O resultado esperado, para as crianças que já construíram este agrupamento, pode ser representado como segue:

Agrupamento VIII - multiplicativo counívoco de relações: Também se refere à hierarquia genealógica, mas neste caso, estabelecendo relações multiplicativas counívocas (um para muitos). Assim, tomemos as duas séries:

A1 é pai de B1 e avô de C1

B1 é irmão de B2 e primo-irmão de C3

Multiplicando-as uma pela outra, temos:

Se A1 é pai de B1, e B1 é irmão de B2, então A1 é pai de B2

Se A1 é pai de B1 e B1 é primo-irmão de C3, então A1 é tio de C3.

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BIBLIOGRAFIA

BRENELLI, Rosely Palermo.(1996). Observáveis e Coordenações em um jogo de regras: Influência do nível operatório e interação social. Campinas, Unicamp, Faculdade de Educação, 1986 (tese de mestrado).

BRENELLI, Rosely Palermo. O jogo como espaço para pensar: a construção de noções lógicas e aritméticas. Campinas: Papirus,.

MANTOVANI DE ASSIS,(l987) Orly Z. Uma Nova Metodologia de Educação Pré-Escolar. São, Paulo, Pioneira,

MANTOVANI DE ASSIS, Orly Z. Textos do PROEPRE - Projeto de Educação Pré-Escolar

PIAGET, Jean. (l975)A Teoria de Jean Piaget. In: Carmichael. Manual de Psicologia da Criança. Rio de Janeiro. EPU/EDUSP, p.75 a 115.

PIAGET, Jean e INHELDER, Bärbell. (l983) A Gênese das Estruturas Lógicas Elementares. Rio de Janeiro, ZAHAR.

ZAIA, Lia Leme. (1996) A Solicitação do meio e a construção das estruturas operatórias em crianças com dificuldades de aprendizagem. Campinas, Unicamp, Faculdade de Educação, (Tese de Doutorado).

ZAIA, Lia Leme.(1995) O papel do jogo na construção das estruturas operatórias elementares e das estruturas aritméticas. In: Anais do XII Encontro Nacional de Professores do PROEPRE. Campinas: Unicamp - Faculdade de Educação, p.123.

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ESTRUTURAS OPERATÓRIAS FORMAIS

Lia Leme Zaia

COMBINAÇÕES, PERMUTAÇÕES e ARRANJOS

A coordenação das duas reversibilidades: inversão e reciprocidade dão origem à construção da combinatória, primeira estrutura do pensamento formal que possibilitará, por sua vez, a construção das demais.

A combinatória consiste em combinar todas as possibilidades de uma situação, trate-se de combinar objetos ou juízos. Essa estrutura de pensamento pode ser observada numa situação bastante simples, que consiste em fornecer ao sujeito quatro cores de fichas e solicitar-lhe que faça com as mesmas todas as combinações possíveis.

Os sujeitos do período operatório concreto só conseguem realizar algumas combinações, por ensaio e erro. Entretanto, durante o período operatório formal, torna-se possível esgotar as possibilidades. Os sujeitos desse período utilizam o método de manter uma cor, combinando-a com as outras, mudar a cor e realizar as combinações possíveis com todas que ainda não foram escolhidas. Valendo-se desse método exaustivo, obtém as 16 combinações: 6 com duas cores, 4 com três, 1 de quatro, 4 de uma cor e nenhuma (cf. fig 01).

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(nenhuma)

Fig. 01

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Outra maneira de colocar em evidência a estrutura da combinatória é solicitar ao sujeito que encontre todas as formas possíveis de colocar juntas as cores duas a duas, como se fossem pessoas que vão passear aos pares. Aumenta-se gradativamente o número de cores a serem combinadas, procedendo-se sempre desta forma.

Os sujeitos de idades menores costumam fazer dois pares, completando-os com duas fichas da mesma cor. Depois dos seis anos, mais ou menos, continuam agindo por ensaio e erro, mas descobrem, com ajuda, as combinações possíveis com quatro cores. Dos 8 anos até os doze, mais ou menos, procuram um método, mas acabam por tentativas. Apenas após os 11-12 anos, passam a utilizar o método de manter uma cor e combinar com todas as outras.

Uma das situações mais utilizadas para se observar a estrutura combinatória é a dos arranjos, na qual estão envolvidas combinações e permutas.

ARRANJOS3

Solicita-se que o sujeito escolha três cores e combine-as, duas a duas, de todas as formas possíveis. Quando termina pergunta-se se fez todos os arranjos possíveis, se tem certeza e por que. Se não tiver certeza, pergunta-se como pode fazer para ter certeza ao terminar.

Solicita-se que anote em uma tabela, o número de cores utilizadas, o número de combinações e o de fichas de cada cor. Sugere-se, então, que escolha mais uma cor e faça novamente todos os pares possíveis. O procedimento é o mesmo até 7 cores, no máximo.

Pergunta-se, então, se existe uma forma de saber quantas combinações poderão ser feitas, com qualquer quantidade de cores, sem que haja necessidade de ir aumentando uma a uma. Deixa-se experimentar – depois se pede ao sujeito que explique o processo. Se não conseguir desta forma, pergunta-se com 10 cores, com 30

3 Piaget , Inhelder e cols. Operações de Arranjo. In: (1980). A origem da idéia de Acaso na criança. Rio de Janeiro, s/d, pp.269-291.

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ou 90, quantas combinações e quantas fichas de cada cor serão utilizadas.

Procedimentos do sujeito

Em um primeiro estágio (pré-operatório), mais ou menos dos cinco aos sete anos, a criança tem mais dificuldade para inverter os arranjos já feitos do que para combinar as cores. Forma os pares por tentativas, sem esgotar as possibilidades.

Trata-se de arranjos empíricos, por tentativas, sem chegar a suspeitar da possibilidade de usar um sistema, a criança pega qualquer cor, combinando-a com qualquer outra e, só depois, verifica se já havia feito essa combinação. Não consegue fazer permutas e combinações ao mesmo tempo, agindo como se fossem pares isolados, sem relação uns com os outros.

Em um segundo estágio, operatório concreto, dos sete-oito aos onze-doze anos, mais ou menos, constroem progressivamente o senso de regularidade, procurando descobrir um sistema que garanta todas as combinações.

Iniciam por tentativas, depois percebem que podem organizar os arranjos em função das primeiras cores colocadas, mas poucos continuam com o mesmo sistema para todas as cores. Alguns chegam a compreender empiricamente a lei (n2 ) para descobrir o número de arranjos possíveis, mas por descoberta empírica e não por dedução.

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Fig. 02

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Alguns exemplos com números talvez facilitem a compreensão dos sistemas e das limitações encontradas neste estágio.

Passa por diversos sistemas, que não permitem garantir todas as combinações até chegar ao terceiro estágio, operatório formal, quando atinge a compreensão do sistema de arranjos.

Durante o nível inicial do período operatório formal, nível IIIA, consegue descobrir a lei – por um número dado (n x n-1), embora nem sempre compreenda a razão dessa lei e não chegue a uma generalização construtiva quando muda de uma quantidade de cores para outra, por não compreender que se trate de um sistema único. Embora o sistema já esteja completo, ele ainda não dá origem ao esquema reflexivo que lhe permita antecipar.

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Fig. 03

com 2 elementos

Com 5 elementos

Diz que faz 30, encontra 25 e não entende porque. Cada número, multiplica por ele mesmo, com 6, coloca 6 tentos da mesma cor em uma coluna.

com 4 elementos

com 3 elementos

depois

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Ao atingir o equilíbrio do período operatório formal, nível IIIB, descobre a lei e compreende sua razão, tomando consciência das relações inerentes ao sistema adotado, para esgotar todos os arranjos possíveis. Formula a lei a partir desse sistema formal, generalizando para qualquer quantidade de cores.

A combinatória, aplicada à realização de experiências, dá origem ao método chamado científico, que consiste em manter todas as variáveis constantes enquanto se modifica apenas uma. Podemos acompanhar a construção deste método, bem como a exclusão de fatores que não exercem nenhuma influência numa situação em que se coloca o problema da “A freqüência das oscilações do pêndulo”.

A FREQÜÊNCIA DAS OSCILAÇÕES DO PÊNDULO

Deixa-se que o sujeito explore o aparelho e descubra tudo o que pode modificar, isto é, o comprimento do barbante (C), o peso (P), a altura de soltar (A) e o impulso (I) Uma vez descobertos os fatores solicita-se que experimente, como desejar, para descobrir o que faz o pêndulo balançar mais vezes em um mesmo período de tempo (aumentar a freqüência das oscilações).

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Procedimentos do sujeito

Durante um primeiro estágio, pré-operatório, observa-se uma indiferenciação entre as ações do sujeito e as oscilações do pêndulo, isto é, ao tentar solucionar a tarefa as ações realizadas pela criança são confundidas com os movimentos observáveis do pêndulo. Quase sempre, o sujeito explica a maior freqüência de oscilações pelo impulso dado e intervém sempre nos movimentos do aparelho. Não há seriação ou correspondências exatas entre os fatores e suas conseqüências, e muitas contradições são observadas.

No estágio operatório concreto a criança começa a seriar os fatores, a estabelecer correspondências entre eles e a freqüência das oscilações, mas ainda não dissocia os fatores. Esse período divide-se em dois níveis:

Em um primeiro nível, IIA, torna-se capaz de seriar as alturas, os comprimentos, os pesos, de julgar objetivamente as mudanças de freqüência e chegar a correspondências exatas.

Além disto, descobre a correspondência inversa entre o comprimento da corrente e a freqüência das oscilações, mas ainda atribui um papel ao peso, ao impulso e à altura de soltar.

Nota-se que não chega a dissociar os fatores, variando vários ao mesmo tempo. Não existe seriação exata dos pesos e conclui que o comprimento do barbante não é o único fator a intervir.

Já no nível de efetivação ou de equilíbrio deste estágio, nível IIB, o sujeito torna-se capaz de todas as formas de seriação e correspondências que permitem variar os quatro fatores e conseguir ler os resultados; seriar exatamente os efeitos dos pesos na experiência bruta e de utilizar tabelas simples de variação.

Entretanto, os fatores nem sempre podem ser separados, razão pela qual, muitas vezes tiram das operações apenas algumas inferências de transitividade (A C se A B e B C), não imaginam a multiplicidade de variações que podem ser tiradas das operações e variam simultaneamente vários fatores, podendo não variar o fator que desejam examinar.

Apenas no estágio operatório formal a dissociação de fatores torna-se possível, embora ainda não seja espontânea.

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Durante o primeiro nível do período operatório formal, nível IIIA, o adolescente torna-se capaz de dissociar os fatores, mas apenas quando se encontra diante de combinações nas quais um fator varia enquanto os outros permanecem imutáveis; faz algumas inferências, mas não organizadas suficientemente para servir de esquema antecipatório.

Como não sabe provocar sistematicamente as operações, nas quais um fator varia e os outros permanecem imutáveis, torna-se impossível a exclusão dos fatores inoperantes. Esta dissociação de fatores através do método de variar apenas um e manter os outros constantes, possibilitando a exclusão, só ocorre no nível IIIB, nível de equilíbrio do período operatório formal.

TRAÇÃO DO PESO SOBRE O PLANO INCLINADO4

Trata-se de um problema de equilíbrio que coloca em evidência as relações de trabalho.A criança é convidada a manipular um dispositivo composto por uma rampa móvel (A), que pode ser elevada ou abaixada, um caminhãozinho (M) preso por um cordão a um suporte de pesos (P), pequenos pesos de 20 gramas, que podem ser colocados no caminhão ou no suporte. Colocada a questão: O que faz o caminhão andar? a criança pode realizar experiências com o dispositivo para descobrir a resposta. Depois do sujeito dizer o que faz o caminhãozinho subir e o que o faz descer, pergunta-se: - O que você pode mudar sem que o carrinho ande? ou sugere-se: - você pode ir modificando o que quiser para descobrir a regra do equilíbrio do caminhãozinho.

Durante o período pré-operatório, Nível I, constata-se uma indiferenciação entre as ações do sujeito e os processos objetivos, isto é, a criança explica os fenômenos observados invocando as ações que pode exercer sobre o dispositivo. Assim, o dispositivo não constitui um conjunto independente de causas e efeitos, mas forma uma unidade com as ações do sujeito e o peso é uma força capaz tanto de puxar como de empurrar o caminhão.

4 Inhelder e Piaget. Tração do Peso sobre o Plano Inclinado. In:1976. Da Lógica da Criança à Lógica do Adolescente: ensaio sobre a construção das estruturas operatórias formais. São Paulo: Pioneira, 1.976, pp.139-150

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O nível inicial do período operatório concreto (Nível IIA) o sujeito torna-se capaz de determinar o papel dos pesos, sem coordená-los com as inclinações. Assim, procura compor os pesos do carrinho (M) com os contrapesos (P) para manter o caminhão equilibrado; percebe o papel da inclinação, favorecendo a descida ou a subida do caminhão, mas não chega a prever que aumentando a inclinação precisa mais contrapeso (P) para o carrinho subir do que numa inclinação menor. A inclinação assume um segundo plano, tendo influência em algumas situações, mas não podendo ser combinado com os outros fatores.

Durante o Nível IIB (nível de equilíbrio do estágio operatório concreto) o sujeito descobre o papel da inclinação, assim os três fatores, peso do carrinho, contrapeso e inclinação da rampa, passam a ser considerados. Compreende que uma inclinação maior exige um trabalho superior, mas a noção de trabalho ainda é qualitativa. Por outro lado, coordena os fatores dois a dois, sem levar em conta o terceiro fator.

No período operatório formal, Nível IIIA, tem início uma coordenação qualitativa dos três fatores. Observa-se então que o sujeito experimenta os extremos e o meio, considera a inclinação ou no ângulo formado pela rampa e não a altura total e não consegue descobrir a lei. O progresso apresentado neste nível é a possibilidade de coordenar os três fatores em uma única ligação, compreendendo que a inclinação pode ser compensada por mais pesos P ou menos M.

Já no Nível IIIB, nível de equilíbrio do período operatório formal, o sujeito descobre a lei do equilíbrio, ou melhor, a proporcionalidade das alturas e dos pesos, encontrando a proporção métrica e explicando-a em termos de trabalho.

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Bibliografia

PIAGET , INHELDER e cols. (1980). A origem da idéia de Acaso na criança. Rio de Janeiro.

INHELDER, B e PIAGET, J. (1976) Da lógica da criança à lógica do adolescente. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira.

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Fig.05

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O PENSAMENTO DO ADOLESCENTE5

Jean PiagetAdaptação: Orly Z. Mantovani de Assis

Considerando-se os excelentes estudos publicados sobre a vida social e afetiva do adolescente, é surpreendente que tão pouco trabalho tenha sido realizado quanto ao pensamento do adolescente.

Os poucos estudos minuciosos a respeito são muito valiosos, mas até agora não nos permitiram ter um quadro coerente de conjunto. Os testes de inteligência nos mostraram o caráter hipotético-dedutivo do pensamento formal que se constitui a partir de 11-12 anos. Alguns trabalhos, de outro lado, sobre o pensamento matemático e físico do adolescente mostraram principalmente os resíduos do pensamento da criança que encontramos durante a adolescência, e isso por uma espécie de permanência dos problemas do plano concreto num plano mais abstrato.

Neste texto final desejamos verificar se os resultados apresentados anteriormente, neste livro, que se referem ao pensamento experimental de adolescentes que se dispõem a enfrentar aparelhos que os levam simultaneamente à ação e à reflexão, permitem identificar as grandes linhas desse quadro que nem os testes, nem o estudo do pensamento verbal, nem mesmo o do pensamento matemático, permitiram até agora esclarecer.

Do ponto de vista das estruturas lógicas, os resultados parecem comportar uma conclusão que distingue claramente o adolescente da criança. Esta chega apenas a lidar com operações concretas de classes, de relações e números, cuja estrutura não ultrapassa o nível dos "agrupamentos" lógicos elementares ou dos grupos numéricos aditivos e multiplicativos. A criança chega, assim, a utilizar as duas formas complementares da reversibilidade (inversão para as classes e os números, reciprocidade para as relações), mas sem fundi-Ias nesse sistema único e total que

5 Este texto foi adaptado do Capítulo XVIII do livro do autor intitulado Da Lógica da Criança à Lógica do Adolescente.

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caracteriza a lógica formal. O adolescente, ao contrário, superpõe a lógica das proposições à das classes e das relações, e assim desenvolve, pouco a pouco (atingindo seu patamar de equilíbrio por volta de 14-15 anos), um mecanismo formal fundamentado simultaneamente nas estruturas do reticulado e do grupo das 4 transformações; estas lhe permitirão reunir, num mesmo todo, além do raciocínio hipotético-dedutivo e da prova experimental baseada na variação de um único fator (desde que as outras coisas permaneçam iguais), certo número de esquemas operatórios que utilizará continuamente em seu pensamento experimental, bem como lógico-matemático.

No entanto, a lógica não é tudo no pensamento, e é preciso verificar, agora, se tais transformações das estruturas lógicas acompanham outras modificações gerais do pensamento que comumente - às vezes explicitamente, e freqüentemente de maneira implícita - se admite serem características do adolescente. Desejamos tentar mostrar rapidamente, não apenas que isso acontece realmente, mas ainda que a transformação das estruturas constitui como que o núcleo a partir do qual se irradiam as diversas modificações mais visíveis do pensamento dos adolescentes.

Para isso, é preciso começar por eliminar um equívoco possível. A característica fundamental da adolescência é a integração do indivíduo na sociedade dos adultos. O critério da adolescência não deve ser dado, portanto, pela puberdade. A puberdade aparece mais ou menos na mesma idade em todas as raças e em todas as sociedades. A integração na sociedade dos adultos, ao contrário, varia consideravelmente nas várias sociedades, e até em diferentes ambientes sociais. Ora, para nossos objetivos, essa transição social fundamental será o fato essencial.

Portanto, não interessa estabelecer relação entre o pensamento formal e a puberdade. Não há dúvida de que há numerosos laços entre o aparecimento das estruturas formais e as transformações da afetividade, e logo mais falaremos destas últimas. No entanto, tais relações são complexas e não tem um sentido único. Por isso, ainda aqui estaríamos diante de uma confusão preliminar se quiséssemos reduzir a adolescência às manifestações da puberdade. Por exemplo, não podemos sustentar que o aparecimento do amor seja característico da adolescência; há

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crianças que se apaixonam; o que, em nossas sociedades, distingue um adolescente apaixonado de uma criança também apaixonada é que, geralmente, o primeiro complica seus sentimentos pela construção de um romance ou com a referência a ideais sociais e até literários de todos os tipos. Ora, a invenção de um romance ou a utilização de modelos coletivos diferentes nem são resultados diretos das transformações neuro-fisiológicas da puberdade e nem produtos exclusivos da afetividade; são também reflexos indiretos e específicos dessa tendência geral dos adolescentes para construir teorias e utilizar as ideologias de seu ambiente. E esta tendência só pode ser explicada se considerarmos os dois fatores associados que continuamente encontramos: as transformações do pensamento e a integração na sociedade adulta, devendo-se lembrar que esta última inclui uma reestruturação total da personalidade, na qual o aspecto intelectual acompanha ou complementa o aspecto afetivo.

No entanto, se o aparecimento do pensamento formal não é uma conseqüência da puberdade, não deverá ser considerado como uma manifestação das transformações cerebrais devidas à maturação do sistema nervoso e, que podem estar em relação direta, ou indireta, com a puberdade? Realmente, é muito provável que, se a criança de 7-8 anos (a não ser com raras exceções) não pode lidar com as estruturas que, em nossas sociedades, o adolescente enfrenta com tanta facilidade, isso se explica pelo fato de não ter certo número de coordenações cujas datas de formação são determinadas pelas etapas da maturação. De outro lado, as estruturas do reticulado e do grupo são muito provavelmente isomorfas das estruturas nervosas e são certamente isomorfas das estruturas dos modelos mecânicos que a cibernética imaginou para imitar o cérebro 0.2 Portanto, parece evidente que o desenvolvimento das estruturas formais da adolescência está ligado ao das estruturas cerebrais. No entanto, esta ligação está longe de ser simples, uma vez que a constituição das estruturas formais também depende certamente do meio social. A idade de 11-12 anos, que, em nossas sociedades, marca os seus inícios, é certamente muito relativa, pois a lógica das chamadas sociedades primitivas parece ignorar tais estruturas e estas têm uma história ligada à evolução da cultura e das representações coletivas, da mesma forma que uma história ontogenética. Se, em sua reflexão lógica e matemática, os gregos tomaram consciência de uma parte de tais estruturas, é verossímil que as crianças gregas estivessem

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atrasadas com relação às nossas; a idade atual de 11-12 anos seria, portanto, produto, não apenas de fatores neurológicos, mas também de uma aceleração progressiva do desenvolvimento individual sob a influência da educação e nada impede que, em futuro mais ou menos longínquo, essa idade média seja reduzida.

Em resumo, longe de constituir uma fonte de "idéias inatas" já inteiramente elaboradas, a maturação do sistema nervoso se limita a determinar o conjunto' das possibilidades e impossibilidades para determinado nível, em determinado ambiente social, e é portanto indispensável para a efetivação dessas possibilidades. Depois, essa efetivação pode ser acelerada ou retardada em função das condições culturais e educativas; é por isso que tanto o aparecimento do pensamento formal quanto a idade da adolescência em geral, isto é, a integração do indivíduo na sociedade adulta, dependem dos fatores sociais tanto e até mais do que dos fatores neurológicos.

No que se refere às estruturas formais, notamos muitas vezes a convergência entre algumas reações de nossos sujeitos e alguns ensinamentos escolares, a tal ponto que podemos perguntar se as manifestações individuais do pensamento formal não são apenas impostas pelo grupo social graças à educação formal e escolar. Mas a essa hipótese sociológica extrema, os fatos psicológicos permitem responder que a sociedade não atua por simples pressão exterior sobre os indivíduos em formação, e que estes não são, com relação ao ambiente social e nem com relação ao ambiente físico, simples “tábulas rasas” nas quais as coerções imprimiriam conhecimentos já inteiramente estruturados. Para que o meio social atue realmente sobre os cérebros individuais, é preciso que estes estejam em condições de assimilar as contribuições desse meio, e voltamos à necessidade de uma maturação suficiente dos instrumentos cerebrais individuais.

Desse processo circular, que caracteriza os intercâmbios entre o sistema nervoso e a sociedade, decorrem duas conseqüências. A primeira é que as estruturas formais não formas inata ou a priori, e que seriam inscritas previamente no sistema nervoso, e nem representações coletivas que existam inteiramente elaboradas fora e acima dos indivíduos, mas formas de equilíbrio que se impõe pouco a pouco ao sistema de intercâmbios entre os indivíduos e o meio físico, e ao dos intercâmbios entre os indivíduos,

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e esses dois sistemas constituem, aliás, um apenas, visto de duas perspectivas diferentes (distintos apenas para a análise). Portanto, isso volta ao que dissemos várias vezes.

A segunda conseqüência é que, entre o sistema nervoso e a sociedade, existe uma atividade individual, isto é, o conjunto das experiências e dos exercícios feitos pelo indivíduo para adaptar-se simultaneamente ao mundo físico e ao mundo social. Se as estruturas formais são leis de equilíbrio e se existe uma atividade funcional característica do indivíduo, deve-se esperar que o adolescente - se a adolescência é a idade da integração dos indivíduos em formação na sociedade dos adultos apresente uma série de manifestações espontâneas que traduzam essa construção das estruturas formais de uma maneira vivida e real, e de uma maneira que assegura, nas ações cotidianas e na vida dos sujeitos, sua integração na vida social dos adultos.

No entanto, devemos perguntar inicialmente o que é que, precisamente, significa essa integração. Ao contrário do que ocorre com a criança, que se sente inferior e subordinada ao adulto, o adolescente é o indivíduo que começa a considerar-se como igual aos adultos e julgá-los num plano de igualdade e de total reciprocidade. Mas a esse primeiro traço se juntam dois outros. Em segundo lugar, o adolescente é ainda o indivíduo em formação, mas que começa a pensar no futuro, isto é, em seu trabalho atual ou futuro dentro da sociedade, e que às suas atividades do momento junta um programa de vida para suas atividades ulteriores ou "adultas." Finalmente, e sem dúvida na grande maioria dos casos no que se refere a nossas sociedades, o adolescente é o indivíduo que, procurando introduzir-se e introduzir seu trabalho atual ou futuro na sociedade dos adultos, se propõe também (e, segundo ele, por isso mesmo) a reformar essa sociedade em algum domínio específico ou em sua totalidade; a integração de um indivíduo na sociedade adulta não poderia, realmente, realizar-se sem conflito, e enquanto a criança procura a solução dos conflitos nas suas compensações atuais (lúdicas ou reais), o adolescente acrescenta a essas compensações limitadas a compensação mais geral que é uma vontade de reformas, ou até um plano para executá-las.

Ora, assim definida em seus três aspectos fundamentais, a integração do adolescente na sociedade dos adultos supõe certamente alguns instrumentos intelectuais e afetivos, cuja

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elaboração espontânea é exatamente o que distingue a adolescência da infância. Mas, em que consistem tais instrumentos intelectuais novos, e qual pode ser a sua relação com o pensamento formal?

Se quisermos nos limitar a uma observação inteiramente global e ingênua, e sem procurar diferenciar por suas reações sociais específicas o colegial, o aprendiz, o jovem operário e o jovem camponês, o adolescente se distingue da criança, antes demais nada, por uma reflexão que ultrapassa o presente. O adolescente é o indivíduo que, embora diante de situações vividas e reais, se volta para a consideração de possibilidades. Em outros termos, e dando às palavras "teorias" e "sistemas" a significação mais ampla, o adolescente, ao contrário do que ocorre com a criança, é o indivíduo que começa a construir sistemas ou teorias.

A criança não constrói sistemas. Seu pensamento espontâneo talvez seja mais ou menos sistemático (inicialmente muito pouco, e depois mais), mas é o observador que de fora percebe isso, enquanto que a criança não toma consciência desse aspecto, pois seu pensamento não é auto-reflexivo. Por exemplo, quando há tempos estudamos a "representação do mundo" pela criança, pudemos observar certo número de reações sistemáticas e construir o sistema correspondente a tal ou qual nível; no entanto, fomos nós que o construímos, enquanto que a criança, embora freqüentemente encontrando espontaneamente as mesmas preocupações e dando inconscientemente respostas análogas6 não procura sistematizar suas idéias, pois não tem reflexão, isto é, um pensamento em segunda potência ou pensamento sobre o próprio pensamento, e isto é indispensável para a construção de qualquer teoria.

O adolescente, ao contrário, reflete sobre seu pensamento e constrói teorias. O fato de que sejam limitadas, inadequadas e, principalmente, pouco originais não tem importância; do ponto de vista funcional, tais sistemas apresentam a significação essencial de permitir ao adolescente sua integração moral e intelectual na sociedade dos adultos, e isso sem mencionar seu programa de vida e seus projetos de reforma.

6 Por exemplo, La Formation du Symbole chez I'Enfant, cap. 1 X.

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Estes são indispensáveis para que o adolescente assimile as ideologias que caracterizam a sociedade ou as classes sociais, na medida em que são entidades opostas às simples relações interindividuais.

Examinemos, desse ponto de vista, um grupo de colegiais entre 14-15 anos e o baccalauréat [exame francês para jovens entre 18-19 anos, e que tenham terminado a escola secundária]. A maior parte tem teorias políticas e sociais e deseja reformar o mundo, explicando à sua maneira os mecanismos e as perturbações da vida coletiva. Outros têm teorias literárias ou estéticas e situam suas leituras ou suas experiências do belo numa escala de valores projetada em sistema. As crises religiosas e a reflexão sobre a fé, ou contra esta, dominam alguns, e estes partem então para um sistema geral, isto é, que desejam válido para todos. A especulação filosófica apaixona uma minoria e, para todo intelectual autêntico, a adolescência é a idade metafísica por excelência, cujas seduções perigosas a reflexão adulta terá dificuldade para esquecer. Uma minoria ainda mais reduzida se orienta desde o início para as teorias científicas ou pseudo-científicas. Mas cada um tem suas teorias, mais ou menos explícitas e redutíveis a fórmulas, ou simplesmente implícitas. Alguns escrevem e têm grande interesse reencontrar os esquemas de idéias que às vezes foram retomados e prolongados. Outros se limitam a falar e a meditar, mas cada um tem suas idéias próprias (e que geralmente acredita terem sido criados por ele), que o libertam da infância e lhe permitem colocar-se em pé de igualdade com o adulto.7

Se nos afastamos da escola secundária tradicional e, sobretudo das classes intelectuais, e examinamos o adolescente aprendiz, operário ou camponês, encontramos o mesmo fenômeno sob outras formas: em lugar da elaboração de "teorias" pessoais, encontramos uma adesão às idéias transmitidas pelos colegas, desenvolvidas em reuniões ou provocadas por leituras. Encontramos um pouco menos de crises familiares e ainda menos crises religiosas, e, sobretudo, menos abstração. Mas sob aspectos externos diferentes e variados, identificaremos facilmente o mesmo processo central: o adolescente não se contenta mais com viver as

7 As moças naturalmente se interessam mais pelo casamento, mas o marido com que sonham é muito freqüentemente "teórico" e suas reflexões sobre a vida conjugal adquirem muitas vezes o aspecto de "teorias".

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relações interindividuais que seu ambiente lhe oferece, nem com a utilização de sua inteligência para resolver os problemas do momento; procura, além disso, colocar-se no mundo social dos adultos e, para isso, tende a participar das idéias, dos ideais e das ideologias de um grupo mais amplo, utilizando como intermediário certo número de símbolos verbais que o lhes eram indiferentes quando criança.

Ora, como explicar essa nova capacidade, característica do adolescente, de orientar-se para o que (visto de fora e por um observador que o compara à criança) é natural e abstrato, mas que visto de dentro constitui seu instrumento indispensável de adaptação ao mundo social adulto e, por conseguinte, seu interesse mais imediato e mais sentido? Não há dúvida de que aí estamos diante da manifestação mais direta e mais simples do pensamento formal. O pensamento formal constitui, ao mesmo tempo, uma reflexão da inteligência sobre si mesma (a lógica das proposições constitui um sistema operatório de segunda potência, e que opera com as proposições cuja verdade depende de operações de classes, de relações e de números) e uma inversão das relações entre o possível e o real (pois o real é colocado, como setor particular, no conjunto das combinações possíveis). São essas duas características - cuja descrição tentamos até aqui na linguagem abstrata que convém à análise dos raciocínios - que estão na origem das reações vividas e sempre impregnadas de afetividade por meio dos quais o adolescente constrói seus ideais para adaptar-se ao ambiente social. Se o adolescente constrói teorias isso se explica porque, de um lado, tornou-se capaz de reflexão e, de outro, porque sua reflexão lhe permite fugir do concreto atual na direção do abstrato e do possível. Não queremos de modo algum dizer com isso que inicialmente exista elaboração de estruturas formais, e depois, aplicação às reflexões individuais e socialmente úteis, como instrumentos adaptativos; ao contrário, esses são dois aspectos de uma mesma realidade e é mesmo porque o pensamento formal desempenha um papel fundamental, do ponto de vista funcional, que chega a se estruturar em seus modos gerais e lógicos. Ainda uma vez, a lógica não é estranha à vida; é apenas a expressão das coordenações operatórias necessárias à ação.

No entanto, isso não significa que a integração do adolescente no mundo social dos adultos se faça apenas através de

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teorias gerais e desinteressadas; existem ainda dois outros aspectos dessa integração, que são o programa de vida e a reforma da sociedade atual. O adolescente constrói suas teorias, ou adota, reconstruindo-as, as que lhe são apresentadas. Além da necessidade de participar das ideologias adultas, para ele é indispensável chegar a uma concepção das coisas que lhe dê a possibilidade de afirmar-se e criar (donde a ligação estreita entre o sistema construído e o programa de vida) e lhe garanta, ao mesmo tempo, que terá mais êxito que seus antecessores (donde as reformas necessárias, onde se misturam da maneira mais íntima as preocupações desinteressadas e as ambições características da juventude).

Em outras palavras, nesse novo plano de pensamento e de realidade que é descoberto pela inteligência operatória formal, ocorre o mesmo processo que observamos, patamar por patamar, nos diferentes níveis do desenvolvimento da criança: uma indiferenciação inicial entre o objeto ou o outro e as atividades pessoais, seguida de uma descentração no sentido da objetividade e da reciprocidade. Já no plano senso-motor o bebê começa por não saber dissociar o que decorre de suas ações e o que pertence apenas aos objetos ou às pessoas exteriores: inicialmente, vive num mundo sem objetos exteriores permanentes e sem a consciência de um eu ou de uma subjetividade interior; depois, por uma série de descentrações devidas à coordenação progressiva de suas ações, chega a diferenciar seu eu e a situar seu corpo num universo espacial e causalmente organizado, composto por objetos permanentes e por pessoas semelhantes a ele. Mas, com o aparecimento da função simbólica, a linguagem, a representação e os intercâmbios com outro ampliam esse universo em proporções imprevistas, e exigem uma nova estruturação. Nesta segunda situação, o egocentrismo reaparece sob um novo plano e sob a forma de uma relativa indiferenciação inicial entre o ponto de vista pessoal (ponto de vista representativo e não mais senso-motor) e o dos outros, bem como uma indiferenciação relativa entre o subjetivo e o objetivo (sempre quanto à representação e não mais quanto aos esquemas senso-motores). Com as coordenações conseguidas no nível das operações concretas (7-8 anos), torna-se possível uma descentração suficiente e que permite à criança pensar objetivamente as ligações entre classes, relações e números, e de agir de maneira interindividual segundo um conjunto de relações

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cooperativas (a cooperação e a constituição das operações representam, aliás, os dois aspectos de uma mesma realidade). Mas com a nova ampliação do universo que é provocada pela elaboração do pensamento formal, inicialmente se manifesta uma terceira forma de egocentrismo, e assinala uma das características mais ou menos constantes da adolescência, até a nova descentração ulterior que será possível por causa do início real do trabalho adulto.

Esta forma superior de egocentrismo, apresentada pelo adolescente, é, aliás, a conseqüência inevitável de sua integração na vida social adulta, pois o adolescente não procura apenas adaptar seu eu ao ambiente social, mas também adaptar o ambiente social a seu eu. Em outras palavras, ao pensar no ambiente em que procura localizar-se, pensará em sua atividade social nesse ambiente social e nos meios para transformá-lo. Disso decorre uma relativa indiferenciação entre seu ponto de vista de indivíduo chamado a construir seu programa de vida e o ponto de vista do grupo que ele deseja transformar.

Mais concretamente, o egocentrismo característico da adolescência se manifesta por uma espécie de messianismo de tal tipo que as teorias através das quais representa ao mundo estão centradas na atividade reformadora que se sente chamado a desempenhar no futuro. Aqui, convém não nos limitarmos apenas à simples observação, mas utilizar também os documentos mais secretos, entre os quais os trabalhos escritos, não destinados à publicação imediata, os diários íntimos ou simplesmente as confidências que às vezes obtemos dos adolescentes quanto a seus devaneios mais íntimos. Lembremos, por exemplo, as descrições dos devaneios noturnos que foram solicitadas a uma classe de colégio. Os alunos mais normais, mais modestos e mais delicados confessavam, sem preocupação, algumas imaginações e fabulações que, alguns anos mais tarde, pareceriam a seus olhos sinais de megalomania patológica... sem insistir nessas representações específicas, o aspecto geral do fenômeno deve ser procurado na relação entre as teorias aparentemente abstratas, elaboradas pelo sujeito, e o plano de vida que traça para si mesmo: percebemos então que, sob um aspecto exterior impessoal e geral, o sistema inclui um programa de ação com uma ambição ingênua e muitas vezes desmedida. Consideremos, como exemplo, alguns antigos

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alunos de uma pequena classe, numa pequena cidade suíça de língua francesa. Um deles, que depois se tornou comerciante, espantava seus colegas por suas doutrinas literárias e escrevia, em segredo, um romance. Um outro, que se tornou diretor de uma companhia de seguros, se interessava, entre outras coisas, pelo futuro do teatro e mostrava, a alguns íntimos, a primeira cena de um primeiro ato de uma tragédia - e que, aliás, não passou dessa cena. Um terceiro, apaixonado pela filosofia, buscava simplesmente a reconciliação entre a ciência e a religião. Nem é preciso lembrar os reformadores sociais e políticos, de esquerda e de direita. Havia apenas duas exceções a esses surpreendentes programas de vida: eram dois adolescentes um pouco dominados por "superegos" dos pais. e cujas fantasias secretas não eram conhecidas.

Em alguns casos esses tipos de programas de vida têm uma influência real no desenvolvimento ulterior do indivíduo e pode ocorrer que encontremos, em seus papéis de adolescentes, o esboço de algumas idéias que efetivamente desenvolveram mais tarde. Mas em muitos outros casos, os projetos de adolescentes parecem mais uma espécie de jogo superior com funções de compensação, de participação em ambientes realmente inacessíveis, etc. Pensamos que, nessa espécie de egocentrismo característico do adolescente, existe mais do que um simples desejo de ser diferente dos outros: há também um fenômeno de indiferenciação a respeito do qual convém insistir um pouco mais.

É característico do processo que, em qualquer dos patamares de desenvolvimento, vá do egocentrismo à descentração, subordine o progresso do conhecimento a uma revisão constante das perspectivas. Todos já notaram que a criança confunde o subjetivo e o objetivo, e, se a hipótese do egocentrismo se limitasse a repetir isso, seria perfeitamente inútil; sua significação real consiste, ao contrário, em sustentar que o progresso do conhecimento não é aditivo e que o fato de acrescentar um conhecimento a outro não é suficiente para a formação de uma atitude de objetividade. Esta supõe, ao contrário, uma descentração, isto é, uma revisão contínua das perspectivas: o egocentrismo é o estado de indiferenciação que ignora a multiplicidade das perspectivas, enquanto que a objetividade supõe, ao mesmo tempo, uma diferenciação e uma coordenação dos pontos de vista.

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Ora, é um processo análogo a esse o que encontramos no nível da adolescência, nesse plano superior do pensamento que é o das estruturas formais: a ampliação indefinida da reflexão que permite esse novo instrumento que é a lógica das proposições conduz, inicialmente, a uma indiferenciação entre esse poder novo e imprevisto que o eu descobre e o universo social ou cósmico que é o objeto dessa reflexão. Em outras palavras, o adolescente passa por uma fase em que atribui um poder ilimitado ao seu pensamento, quando o fato de pensar num futuro glorioso ou em transformar o mundo pela idéia (mesmo que esse idealismo adquira a forma de um materialismo com todas as variedades) parece não somente um ato de conhecimento positivo, mas ainda uma ação efetiva que modifica a realidade como tal. Portanto, aí existe uma forma de egocentrismo do pensamento, bem diferente da encontrada na criança (que é senso-motor, ou simplesmente representativo, mas sem "reflexão"), mas que decorre do mesmo mecanismo em função de condições novas, criadas pela elaboração do pensamento formal.

Existe uma forma para verificar essa interpretação: estudar o processo de descentração que permite, a seguir, que o adolescente escape dessa relativa indiferenciação inicial e se cure de sua crise idealista para chegar novamente ao real, e, portanto, que o conduz da adolescência ao início real da vida adulta. Ora, essa descentração se realiza, como no nível das operações concretas, simultaneamente no plano social e no plano do pensamento.

Socialmente, todos notam a tendência do adolescente para se reunir em grupos com seus semelhantes: grupos de discussão ou de ação, grupos políticos, movimentos de juventude, acampamentos de férias, etc., Trata-se de uma fase de expansão, posterior a uma de fechamento, sem que possamos sempre distinguir nitidamente uma da outra. Ora, essa vida social é origem de descentração intelectual e não apenas moral: é principalmente nas discussões com os colegas que o criador de teorias freqüentemente descobre, pela crítica às dos outros, a fragilidade das suas.

No entanto, do ponto de vista da descentração, o fato principal é o início do trabalho propriamente dito. É ao empreender uma tarefa efetiva que o adolescente se torna adulto e o reformador idealista se transforma em realizador. Em outras palavras, é o trabalho que permite que o pensamento ameaçado de formalismo se volte para o real. Ora, a observação mostra como essa reconciliação

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entre o pensamento e a experiência pode ser trabalhosa e lenta. Basta examinar o comportamento de estudantes que se iniciam numa disciplina experimental para verificar até que ponto a crença do adolescente no poder do pensamento pode durar muito tempo e até que ponto o espírito está pouco inclinado a subordinar as idéias à análise dos fatos (o que não significa que os fatos sejam acessíveis independentemente de uma interpretação, mas sim que a construção interpretativa só adquire valor com a sua verificação experimental).

A respeito, os resultados dos capítulos do livro Da lógica da criança à lógica do adolescente apresentam um problema de certa importância. As reações dos sujeitos aos aparelhos experimentais muito diferentes mostram que depois de uma fase de elaboração (11-12 até 13-14 anos) em que o pré-adolescente chega a dominar algumas operações formais (implicação, exclusão, etc.) mas sem constituir um método suficiente de verificação, o adolescente de 14-15 anos chega e espontaneamente, pois é neste domínio que o verbalismo escolar assinala sua maior deficiência) a utilizar sistematicamente os processos de controle que implicam uma combinatória, fazendo variar um único fator com a exclusão dos outros ("conservando iguais as outras coisas", etc.). Ora, esta constituição dos instrumentos de verificação experimental decorre diretamente, como o vimos repetidamente, do pensamento formal e das operações interproposicionais. Portanto, como é possível - e este é o problema - que, mostrando-se assim capaz simultaneamente de dedução e de indução experimental, o adolescente dê um tal poder a primeira e chegue tão tarde a utilizar a segunda num trabalho contínuo e efetivo (pois uma coisa é reagir de maneira experimental a um aparelho anteriormente preparado, e outra organizar sozinho um trabalho de pesquisa)? O problema não é apenas ontogenético; é histórico, e a mesma pergunta se propõe quando procuramos compreender porque os gregos se limitaram (salvo algumas exceções) a refletir e a deduzir8, e que a ciência

8 Ainda não se encontrou, do ponto de vista sociológico, uma explicação satisfatória para esse fato. O fato de atribuir as estruturas formais explicitadas pelos gregos ao caráter contemplativo de tal ou qual classe social não explica porque essa contemplação não se limitou às ideologias metafísicas e tenha chegado à criação de uma matemática.

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moderna, centralizada na física, tenha levado tantos séculos para se formar.

É para resolver esse problema (e aqui falamos apenas do adolescente) que nos parece indispensável lembrar, ao lado do aparecimento do pensamento formal, a indiferenciação relativa do sujeito e do objeto e que acompanha, nesse novo plano, a sua utilização, e depois a descentração trabalhosa e lenta que são provocadas apenas por algumas colaborações sociais e pela progressiva submissão a um trabalho efetivo.

Verificamos, assim, que as principais características intelectuais da adolescência decorrem direta ou indiretamente da elaboração das estruturas formais, e que essa elaboração constitui o acontecimento central do pensamento característico dessa fase. Quanto às novidades afetivas que assinalam essa fase, podemos falar em duas novidades principais e que, como sempre, são paralelas ou correspondentes às transformações intelectuais, pois a afetividade representa o fator de energia das condutas, enquanto a estrutura define as funções cognitivas (o que não significa que a afetividade seja determinada pelo intelecto, e nem o inverso, mas, que o intelecto e a afetividade estão indissoluvelmente unidos no funcionamento da pessoa).

Se a adolescência é a idade da integração dos indivíduos em formação no universo social adulto (e esta integração coincide ou não com a puberdade), esta adaptação social decisiva deve exigir, em correlação com o desenvolvimento das operações formais ou proposições que garantem a sua estruturação intelectual, as duas transformações fundamentais exigidas pela socialização afetiva adulta: os sentimentos relativos a ideais, que se acrescentam aos sentimentos entre as pessoas, e a formação de personalidades, caracterizadas pelo papel social e a escala de valores que se atribuem (e não mais apenas pela coordenação dos intercâmbios que mantém com o meio físico e as outras pessoas).

Evidentemente, este não é um lugar para nos dedicarmos a um ensaio de psicologia afetiva, mas é interessante notar, para concluir, como esses dois aspectos essenciais de adolescência também são ligados às transformações de comportamento provocadas pela construção das estruturas formais.

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No que se refere, inicialmente, a sentimentos relativos aos ideais, é notável observar até que ponto a criança permanece quase que inteiramente estranha a eles.

Uma pesquisa sobre a idéia de pátria e sobre as atitudes sociais ligadas a ela9 nos mostrou que a criança é sensível à sua família, aos lugares em que mora, à sua cidade, à sua língua materna, a alguns costumes, etc., mas que permanece surpreendentemente ignorante e espantosamente insensível no que se refere, não talvez à sua qualidade ou à qualidade de seus parentes de serem suíços, franceses, etc., mas à sua pátria enquanto realidade coletiva. Isso é, aliás, muito natural, pois, se a lógica de 7 a 11 anos se limita a lidar com objetos concretos e manipuláveis, nenhuma operação disponível nesse nível permitirá a elaboração de um ideal que ultrapasse o sensível. Este é apenas um exemplo entre outros: as noções de humanidade, de justiça social (por oposição à justiça interindividual que é profundamente vivida desde o nível concreto), de liberdade de consciência, de coragem cívica e intelectual, etc., são ideais que comoverão profundamente, como a idéia de pátria, a afetividade do adolescente, sem que possam ser compreendidos ou sentidos, a não ser através de alguns reflexos individuais, pela mentalidade da criança.

Em outras palavras, dos sentimentos sociais a criança conhece apenas os afetos interindividuais, pois os sentimentos morais são vividos apenas em função do respeito unilateral (autoridade) ou do respeito mútuo. A esses sentimentos, que evidentemente permanecem no adolescente e no adulto, a partir dos 13-15 anos se acrescentam os sentimentos relativos aos ideais ou às idéias como tais. Evidentemente, um ideal é sempre mais ou menos encarnado numa pessoa e continua a ser um elemento interindividual importante nesse conjunto de sentimentos novos; mas o problema é saber se a idéia é objeto da afetividade por causa da pessoa, ou a pessoa por causa da idéia. Ora, enquanto a criança nunca sai desse círculo porque seus únicos ideais sensíveis são os

9 J.PIAGET e A. M. WEIL, O Desenvolvimento na Criança da Idéia de Pátria e as Relações com o Estrangeiro, Bull.Intern.des.Sc.Sociales (UNESCO), t.III (1951), pp.605-21

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ideais encarnados, na adolescência ocorre uma superação, no sentido da independência dos ideais e percebemos, sem comentário, a semelhança entre esse mecanismo afetivo e o pensamento formal.

No que se refere à personalidade, pode-se dizer que não há outra noção tão mal definida no vocabulário psicológico - já tão dificilmente manejável - e a causa disso é que a personalidade se orienta em sentido inverso ao do eu: se o eu é naturalmente egocêntrico, a personalidade é o eu descentralizado. O eu é detestável, e tão mais detestável quanto mais forte, enquanto que uma forte personalidade é aquela que chega a disciplinar seu eu. Em outras palavras, a personalidade é a submissão do eu a um ideal que encarna, mas que o ultrapassa e ao qual se subordina; é a adesão a uma escala de valores, não abstrata, mas relativa a uma obra; portanto, é a adoção de um papel social, mas não preparado como uma função administrativa, e sim de um papel que o indivíduo irá criar ao representar.

Dizer que a adolescência é a idade da integração no universo social adulto é, portanto, sustentar que é a idade da formação da personalidade, pois essa integração é, sob outro aspecto, necessariamente complementar, a construção de uma personalidade. Além disso, o programa de vida e o plano de reformas que, segundo acabamos de ver, constituem, sob o ângulo das funções cognitivas ou do pensamento, uma das características essenciais da conduta do adolescente, são ao mesmo tempo o motor afetivo da formação da personalidade. Um plano de vida é, em primeiro lugar, uma escala de valores que colocará alguns ideais como subordinados a outros e subordinará os valores meios aos fins considerados como permanentes. Ora, essa escala de valores é a organização afetiva correspondente à organização intelectual da obra que o recém-chegado ao universo social pretende realizar. Um plano de vida é, de outro lado, uma afirmação de autonomia, e a autonomia moral enfim inteiramente conquistada pelo adolescente, que se considera igual aos adultos, é um outro aspecto afetivo essencial da personalidade nascente que se prepara para enfrentar a vida.

Em conclusão, as aquisições afetivas fundamentais da adolescência são paralelas às suas aquisições intelectuais. Para poder compreender o papel das estruturas formais no pensamento

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na vida do adolescente, precisamos finalmente inseri-las na sua personalidade total. Mas, de outro lado, não compreenderíamos inteiramente a formação dessa personalidade sem aí englobar também as transformações do pensamento e, conseqüentemente, a construção das estruturas formais.

Bibliografia

INHELDER, B e PIAGET, J. (1976) Da lógica da criança à lógica do adolescente. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Pioneira, pp.249-260.

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