jean piaget - psicologia da inteligência

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PSICOLOGIA DA INTELEGÊNCIA JEAN PIAGET CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO Volumes publicados nesta coleção: A ENTREVISTA COM A CRIANÇA, J. C. Alfouilloux ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DA EDUCAÇÃO, C. Backman e P. Secord 0 PODER DA EDUCAÇÃO, T. Brameld (2.a ed.) APRENDIZADO MODERNO DA MATEMÁTICA, Z. P. Dienes (2.a ed.) A CRISE DA EDUCAÇÃO E SEUS REMÉDIOS, R. Dottrens CRIANÇAS E ADOLESCENTES, David EIkind (2.a ed.) IDENTIDADE, JUVENTUDE E CRISE, Erik Erikson (2.a ed.) INFÂNCIA E SOCIEDADE, Erik Erikson (2.a ed.) A LóGICA DA EDUCAÇÃO, P. R. Hirst e R. S. Peters 0 ASSISTENTE SOCIAL NAS SITUAÇõES DE FAMILIA, W. Jordan INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, G. Kneller (4.a ed.) PSICOLINGUISTICA E PEDAGOGIA DAS LINGUAS, Jean-Yvon Lanchec A DIDATICA DA REFORMA Louis Legrand (2.a ed.) PSICOLOGIA APLICADA A EDUCAÇÃO INTELECTUAL, Louis Legrand HISTóRIA DO PENSAMENTO EDUCACIONAL, F. Mayer 0 ENSINO SUPERIOR, W. 14. Morris SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO, Ivor Morrish (3.a ed.) FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO: UM DIALOGO, H. Ozmon A CONSTRUÇÃO DO REAL NA CRIANÇA, Jean Piaget (2.a ed.) A EQUILIBRAÇÃO DAS ESTRUTURAS COGNITIVAS, Jean Piaget A FORMAÇÃO DO SíMBOLO NA CRIANÇA, Jean Piaget (2.a ed.) 0 NASCIMENTO DA INTELIGÊNCIA NA CRIANÇA, Jean Piaget (2.a ed.) 0 DESENVOLVIMENTO DAS QUANTIDADES FiSICAS, Jean Piaget (2.a ed.) GÊNESE DAS ESTRUTURAS LóGICAS ELEMENTARES, Jean Piaget (2.a ed.) A GÊNESE DO NúMERO NA CRIANÇA, Jean Piaget (2.a ed.) 0 DESAFIO DA EDUCAÇÂO, Sir George Pivkering A ARTE DO MAGISTÉRIO, E. V. Pullias e J. D. Young (2.a ed.) PRATICA EDUCATIVA E SOCIEDADE, S. Pereira Ramalho BASES HUMANISTICAS DA EDUCAÇÃO, J. Martin Rich DOUTRINAÇÃO E EDUCAÇÃO, 1. A. Snook

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Page 1: JEAN PIAGET - Psicologia da Inteligência

PSICOLOGIA DA INTELEGÊNCIAJEAN PIAGET

CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO

Volumes publicados nesta coleção:

A ENTREVISTA COM A CRIANÇA, J. C. Alfouilloux ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DA EDUCAÇÃO, C. Backman e P. Secord0 PODER DA EDUCAÇÃO, T. Brameld (2.a ed.) APRENDIZADO MODERNO DA MATEMÁTICA, Z. P. Dienes (2.a ed.) A CRISE DA EDUCAÇÃO E SEUS REMÉDIOS, R. Dottrens CRIANÇAS E ADOLESCENTES, David EIkind (2.a ed.) IDENTIDADE, JUVENTUDE E CRISE, Erik Erikson (2.a ed.) INFÂNCIA E SOCIEDADE, Erik Erikson (2.a ed.) A LóGICA DA EDUCAÇÃO, P. R. Hirst e R. S. Peters0 ASSISTENTE SOCIAL NAS SITUAÇõES DE FAMILIA, W. Jordan INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, G. Kneller (4.a ed.) PSICOLINGUISTICA E PEDAGOGIA DAS LINGUAS, Jean-Yvon Lanchec A DIDATICA DA REFORMA Louis Legrand (2.a ed.) PSICOLOGIA APLICADA A EDUCAÇÃO INTELECTUAL, Louis Legrand HISTóRIA DO PENSAMENTO EDUCACIONAL, F. Mayer0 ENSINO SUPERIOR, W. 14. Morris SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO, Ivor Morrish (3.a ed.) FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO: UM DIALOGO, H. Ozmon A CONSTRUÇÃO DO REAL NA CRIANÇA, Jean Piaget (2.a ed.) A EQUILIBRAÇÃO DAS ESTRUTURAS COGNITIVAS, Jean Piaget A FORMAÇÃO DO SíMBOLO NA CRIANÇA, Jean Piaget (2.a ed.)0 NASCIMENTO DA INTELIGÊNCIA NA CRIANÇA, Jean Piaget (2.a ed.)0 DESENVOLVIMENTO DAS QUANTIDADES FiSICAS, Jean Piaget (2.a ed.) GÊNESE DAS ESTRUTURAS LóGICAS ELEMENTARES, Jean Piaget (2.a ed.) A GÊNESE DO NúMERO NA CRIANÇA, Jean Piaget (2.a ed.)0 DESAFIO DA EDUCAÇÂO, Sir George Pivkering A ARTE DO MAGISTÉRIO, E. V. Pullias e J. D. Young (2.a ed.) PRATICA EDUCATIVA E SOCIEDADE, S. Pereira Ramalho BASES HUMANISTICAS DA EDUCAÇÃO, J. Martin Rich DOUTRINAÇÃO E EDUCAÇÃO, 1. A. Snook

Page 2: JEAN PIAGET - Psicologia da Inteligência

JEAN PIAGET

o Psico *a

logi

i& o da Inteligêne.a

Tradução de

NATHANAEL C. CAIXEIRO Professor de História das Idéias Contemporâneas

na Universidade Gama Filho

RIO DE JANEIRO

ZAHAR EDITORES

Page 3: JEAN PIAGET - Psicologia da Inteligência

Título original:

La Psychologie de Vintelligence

Traduzido da edição publicada em 1976 pela LIBRAIRIE ARMAND OOLIN, de Paris, França.

Copyright Q 1967 by Librairie Armand Colin

capa de ÉRICO

Edição para o Brasil

Não pode circular e>n outros países

1977

Direitos para a edição brasileira adquiridos por

Z A H A R E D I T 0 R E S

Caixa Postal 207, ZC-00, Rio que se reservam a propriedade desta versão

Impresso no Brasil

Page 4: JEAN PIAGET - Psicologia da Inteligência

índicePrefácio ................................................. 7

Prefácio à Segunda Edição ................................. 9

PRIMEIRA PARTE: A Natureza da Inteligência

Capitulo 1. Inteligência e adaptação biológica ............ 13

Situação da inteligência na organização mental .......... 14 Natureza adaptativa da inteligência ..................... 17 Definição da inteligência ............................... 19 Classificação das interpretações possíveis da inteligência . . 21

Capítulo 2. A “Psicologia do pensamento” e a natureza psi-

cológica das operações lógicas ................ 28* interpretação de Bertrand Russell ..................... 28* “psicologia do pensamento”: Bühler e Selz ............ 31 Crítica da “psicologia do pensamento” ................... 34 Lógica e psicologia .................................... 36 As operações e seus “grupamentos .. ..................... 41 A significação funcional e a estrutura dos “grupamentos” . 46 t,) Classificação dos “grupamentos” e das operações funda-

mentais do pensamento ............................... 51 Equilíbrio e gênese .................................... 5(1)

SEGUNDA PARTE: A Inteligência e as Funções Sensório-Motoras

Capítulo 3. A Inteligência e a percepção ................. 61

Histórico ...................................... ......... 61 A Teoria da Forma e sua interpretação da inteligência ... 64 Crítica da Psicologia da Forma . --------------- .............. 69 As diferenças entre percepção e inteligência ............. 74 As analogias entre a atividade perceptiva e a inteligência 84

Capítulo 4. Hábito e inteligência sensório-motora ......... 92-

Hábito e inteligência: 1. Independência ou derivações di-

retas ............................................... 93 Hábito e inteligência: II. Tateio e estruturação ......... 98

Page 5: JEAN PIAGET - Psicologia da Inteligência

6 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

Assimilação sensório-motora e nascimento da inteligência na

criança lor A construção do objeto e das relações espaciais .......... 111

TERcEIRA PARTE: 0 Desenvolvimento do Pensamento

Capítulo 5. A Elaboração do pensamento. Intuição e ope-

rações ..................................... 123 Diferenças de estrutura entre a inteligência conceptual e a

inteligência sensório-motora .......................... 124@ As fases da construção das operações ................... 1270 pensamento simbólico e pré-conceptual ................ 12@0 pensamento intuitivo ................................ M_A As operações concretas ................................. 149 As operações formais .................. :-~* *** *** *** * --- 150* hierarquia das operações e sua diferenciaçao progressiva 152* determinação do “nível mental” ....................... 155

Capítulo 6. Os fatores sociais do desenvolvimento intelectual 157

A socialização da inteligência individual ................. 159 “Grupamentos” operatórios e cooperação ................ 164

Conclusão. Ritmos, regulações e grupamentos .............. 169

Bibliografia resumida .................................... 177

Page 6: JEAN PIAGET - Psicologia da Inteligência

Prefácio

Um livro sobre a “Psicologia da Inteligência” poderia abranger a metade do domínio da Psicologia. As páginas que se seguem irão ater-se a esboçar um ponto de vista, o da constituição das “operações”, e situá-lo o mais objetivamente possível no conjunto do modo de ver do autor sobre outros aspectos da Psicologia. No primeiro capítulo, procuramos caracterizar o papel da inteligência tomando em consileração os processos adaptativos em geral; no capítulo 2, procuramos mostrar, mediante exame da “psicologia do pensamento% que o ato inteligente consiste essencialmente em “grupar” operações segundo certas estruturas definidas; no capítulo seguinte, tendo concebido a inteligência como forma de equilíbrio a que tendem todos os processos cognitívos, examinaremos os problemas suscitados pelas relações que ela mantém com a percepção; as relações da inteligência com o hábito são tratadas no capítulo 4; no capítulo 5, as questões sobre o seu desenvolvimento; finalmente, no capítulo 6, os problemas da socialização da inteligência.

A despeito da grande quantidade e do valor dos trabalhos conhecidos sobre essa questão, a teoria psicológica dos mecanismos intelectuais ainda está em seus primordios, e mal se começa a vislumbrar o gênero de rigor que ela poderia comportar. Neste trabalho, procuro exprimir esse sentimento da pesquisa em curso.

Este pequeno volume encerra a substância das aulas que tive o privilégio de dar no Collège de France, em 1942, numa hora em que os universitários sentiam a necessidade de mostrar sua solidariedade diante da violência, e sua fidelidade aos valores permanentes. Ao reescreverestas páginas, não poderia esquecer o acolhimento de meu

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8 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

auditório, bem como os contatos que tive naquele momento com meu mestre P. Janet e com meus amigos H. Piéron, H. Wallon, P. Guillaume, G. Bachelard, P. Masson-oursel, M. Mauss e tantos outros, sem esquecer meu querido amigo I. Meyerson, que naquela época integrava a Resístência.

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Prefácio à Segunda Edição

Este opúsculo teve, de um modo geral, acolhimento favorável, o que nos dá coragem para publicá-lo de novo, sem alterações. Contudo, uma critica tem sido freqüente à nossa concepção de inteligência: acusam-nos de não nos referirmos ao sistema nervoso, nem ao seu amadurecimento durante o desenvolvimento individual. Cremos que haja nisso apenas um mal-entendido. Tanto a noção de Ila.ssimilação” como a passagem dos ritmos às regulações, e destas às operações reversíveis, exigem uma interpretação neurológica ao mesmo tempo que psicológica (e lógica). Ora, longe de contraditórias, essas duas interpretações só podem harmonizar-se. Teremos ensejo de oferecer as explicações sobre essa questão fundamental, mas não nos sentimos no direito de o fazer antes de terminarmos as pesquisas psicogenéticas de pormenor, de que esse pequeno livro representa precisamente a síntese.

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PRIMEIRÁ PARTE

A NATUREZA DA INTELIGÊNCIA

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Inteligência e Adaptação Biológica

Qualquer explicação psicológica cedo ou tarde acaba por apoiar-se na biologia ou na lógica (ou na sociologia; mas esta, por sua vez, chega à mesma alternativa). Para alguns, os fenômenos mentais só se tornam compreensíveis quando relacionados com o organismo. Esse modo de pensar impõe-se, de fato, no estudo das funções elementares (percepção, motricidade, etc.) de que a inteligência depende nos seus primórdios. Mas nã o vemos como a neurologia poderá jamais explicar por que 2 mais2 igual a quatro, nem por que as leis da dedução se impõem ao espírito, imperiosamente. Daí a segunda tendência, que consiste em considerar como irredutíveis as relações lógicas e matemáticas, e incluir em sua análise também as funções intelectuais superiores. Trata-se apenas de saber se a lógica, concebida como escapando às tentativas de explicação da psicologia experimental, poderá legitimamente explicar seja o que for na experiência psicológica como tal. A lógica formal, ou logística, constitui simplesmente a axiomática dos estados de equilíbrio do pensamento, e a ciência concreta correspondente a essa axiomática nada mais é que a própria psicologia do pensamento. Distribuídas desse modo as funções, a psicologia da inteligência certamente deve continuar tomando em cmsideração os descobrimentos logísticos, mas estes jamais conseguirão ditar ao psicólogo suas próprias soluções: irão limitar-se a sugerir problemas ao psicólogo.

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14 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

Temos, portanto, de partir dessa dupla natureza da inteligência: biológica e lógica. Os dois capítulos seguintes têm por objetivo delimitar essas questões prévias, e sobretudo procurar reduzir à maior unidade possível, no estado atual dos conhecimentos, esses dois aspectos fundamentais, embora aparentemente irredutíveis, da vida do pensamento.

Situação da inteligência na organização mental

Toda conduta apresenta-se como uma adaptação ou, melhor dizendo, readaptação, seja uma atividade visível, perceptível do exterior, ou interiorizada em pensamento.0 indivíduo só age sob o império da necessidade, isto é, se for por um momento rompido o equilíbrio entre o meio e o organismo; nesse caso, qualquer ação tende a restabelecer o equilíbrio, o que significa precisamente readaptar o organismo (Claparède). Conduta é, pois, um caso particular de intercãmbio entre o mundo exterior e o indivíduo, mas, contrariamente aos intercâmbios psicológicos, que são de natureza material e implicam transformação dos corpos em questão, as “condutas” estudadas pela psicologia são de ordem funcional e se efetuam a distâncias cada vez maiores, no espaço (percepção, etc.) e no tempo (memória, etc.), bem como em conformidade com trajetárias cada vez mais complexas (retornos, desvios, etc.). A conduta, assim concebida em termos de intercâmbios funcionais, implica por si dois aspetos essenciais e intimamente interdependentes: o aspecto afetivo e o cognitivo.

Muito já se debateu sobre as relações entre afetividade e conhecimento. De acordo com P. Janet, é preciso distinguir “ação primária”, ou relação entre o sujeito e o objeto (inteligência, etc.) e “ação secundária”, ou reaçã o do sujeito à sua própria ação: esta reação, que constitui os sentimentos elementares, consiste em regulacões da ação primária e garante o consumo das energias internas disponíveis. Mas ao lado dessas regulações, que determinam efetivamente o energético ou a economia internas da conduta, parece-nos necessário reservar um lugar para aquelas que regem sua finalidade ou seus valores, e esses valores caracterizam um intercâmbio

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A NATUREZA DA INTELIGÊNCIA 15

energético, ou econômico, com o meio ambiente exterior. De acordo com Claparède, os sentimentos atribuem objetivo à conduta, ao passo que a inteligência restringe-se a fornecer os meios (a “técnica”). Existe, porém, uma compreensão de objetivos e meios, e ela chega inclusive a modificar incessantemente a finalidade da ação. Na medida em que o sentimento dirige a conduta ao atribuir valor a seus fins, devemos nos limitar a dizer que ele fornece as energias necessárias para a ação, ao passo que o conhecimento lhe impõe =a estrutura. Daí a solução proposta pela chamada psicologia da forma: a conduta implica um “campo total”, abrangendo o sujeito com os objetos, e a dinâmica desse campo constitui os sentimentos (Lewin), enquanto sua estruturação é assegurada pelas percepções, motricidade e inteligência. Adotaremos fórmula análoga, salvo o esclarecimento de que nem os sentimentos, nem as formas cognitivas dependem exclusivamente do “campo” atual, mas também de toda a história anterior do sujeito ativo. Por conseguinte, diremos apenas que cada conduta implica um aspecto -energético ou afetivo, e um aspecto estrutural ou cognitivo, o que engloba de fato os diversos pontos de vista precedentes.

Todos os sentimentos consistem, de fato, ou em regulações das energias internas (”sentimentos fundamentais” de P. Janet, “interesse” de Claparède, etc.), ou em normalizações das trocas de energia com o exterior (”valores” de todos os tipos, reais ou fiduciãrios, desde as “desejabilidades” próprias do “campo total” de K. Lewin, e as “valências” de E. S. Russe11, até os valores interindividuais ou sociais). Deve-se conceber a própria vontade como um jogo de operações afetivas, portanto energéticas, referente a valores superiores, e tornando-os suscetíveis de reversibilidade e conservação (sentimentos morais etc.), paralelamente com o sistema das operações lógicas em relação aos conceitos.

Mas se toda conduta, sem exceção, implica assim uma energética ou “economia”, que constitui seu aspecto afetivo, as trocas que ela suscita como meio comportam igualmente uma forma ou estrutura, determinante dos diversos circuitos possíveis que se estabelecem entre o sujeito e os objetos. Nessa estruturação da conduta é que consiste seu aspecto cognitivo. Percepção, aprendizagem sensório-motora (hábito, etc.), ato de compreensão, racio-

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16 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

cínio etc. equivalem todos a estruturar, de um modo ou de outro, as relações entre o meio e o organismo. Nisso apresentam certo parentesco entre si, que os contrasta com os fenômenos afetivos. A seu respeito, falaremos de funções cognitivas, no sentido amplo (abrangendo, ademais, as adaptações sensõrio-motoras).

Vida afetiva e vida cognitiva são pois inseparáveís, embora distintas. E são inseparáveis porque todo intercâmbio com o meio pressupõe ao mesmo tempo estruturação e valorização, mas nem por isso ficarão menos dístintas, visto que esses dois aspectos da conduta não podem reduzir-se um ao outro. Assim é que não se poderia raciocinar, inclusive em matemática pura, sem vivenciar certos sentimentos, e que, por outro lado, não existem afeições sem um mínimo de compreensão ou de discriminação. 0 ato de inteligência pressupõe, pois, uma regulação energética interna (interesse, esforço, facilidade, etc.) e externa (valor das soluções procuradas e dos objetos sobre os quais recai a pesquisa), mas essas duas regulações são de natureza afetiva e comparáveis a todas as demais regulações dessa ordem. Reciprocamente, os elementos perceptivos ou intelectuais que deparamos em todas as manifestações intelectuais emocionais interessam à vida cognitiva como qualquer reação perceptiva ou inteligente. 0 que o senso comum chama de “sentimentos” e “inteligência”, considerando-os como duas “faculdades” opostas entre si, são simplesmente as condutas relativas às pessoas e as que se referem a idéias ou coisas: mas em cada uma dessas condutas intervêm os mesmos aspectos afetivos e cognitivos da ação, aspectos sempre reunidos de fato e que portanto não caracterizam de modo algum faculdades independentes.

Além do mais, a inteligência em si não consiste numa categoria isolada e descontínua de processos cognitivos. Rigorosamente falando, ela não é uma estruturação entre as demais: é a forma de equilíbrio a que tendem todas as estruturas cuja formação se deve procurar desde a percepção, o hábito e os mecanismos sensório-motores elementares. Com efeito, deve-se compreender que, se a inteligência não é uma faculdade, essa negação acarreta certa continuidade funcional radical entre as formas superiores de pensamento e o conjunto dos tipos inferiores de adaptação cognitiva ou motora: a inteligência, pois, só poderia ser a foma de equilíbrio a que tendem estes.

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A NATUREZA DA INTELIGÊNCIA 17

Evidentemente, isso não significa que qualquer raciocínio consista de uma coordenação de estruturas perceptivas, nem que perceber equivalha a raciocinar de modo inconsciente (muito embora ambas essas teses tenham defensores), porque a continuidade funcional não exclui de modo algum a diversidade nem mesmo a heterogeneidade das estruturas. Deve-se conceber cada estrutura como uma forma particular de equilíbrio, mais ou menos estável em seu campo restrito e que se torna instável nos limites deste. Mas essas estruturas, escalonadas por degraus, devem considerar-se como se sucedendo segundo uma lei de evolução tal que cada uma assegure um equilíbrio mais amplo e mais estável aos proceessos que intervêm já no seio da precedente. Desse modo, a inteligência não passa de termo genérico designando as forma superiores de organizaçã o ou de equilíbrio das estruturações cognitivas.

Essa maneira de falar equivale, primeiro, a insistir no papel capital da inteligência na vida do espírito e do pró prio organismo: equilíbrio estrutural ao mesmo tempo mais maleável e mais durável da conduta, a inteligência é essencialmente um sistema de operações vivas e atuantes. Ela é a adaptação mental mais extremada, isto é, o instrumento indispensável do intercâmbio entre o sujeito e o universo, enquanto seus circuitos ultrapassam os contatos imediatos e momentâneos para atingir as relações extensas e estáveis. Por outro lado, porém, essa mesma linguagem impede-nos de delimitar a inteligência quanto a seu ponto de partida: ela é ponto de chegada, e suas fontes se confundem com as da adaptação sensóriomotora em geral, assim como, além desta, com as da própria adaptação biológica.

Natureza adaptativa cla inteligência

Se inteligência é adaptação, convém antes de mais nada definir o que vem a ser adaptação. Ora, a fim de afastar as dificuldades da linguagem finalista, a adaptação deve ser caracterizada como um equilíbrio entre as atuações do organismo sobre o meio e as atuações inversas. Pode-se falar de “assimilação”, tomando este ter-

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18 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

mo no sentido mais amplo, referindo-nos à atividade do organismo sobre os objetos que o cercam, na medida em que essa atividade dependa das condutas anteriores sobre os mesmos objetos ou sobre outros objetos análogos. Com efeito, toda relação entre um ser vivo e seu meio apresenta esse caráter especifico: o primeiro, em vez de estar submetido passivamente ao segundo, modifica-o ao impor-lhe certa estrutura própria. ]@ desse modo que, do ponto de vista fisiológico, o organismo absorve substâncias e as transforma em função da sua própria. Ora, psicologicamente acontece o mesmo, exceto em que as modificações que então ocorrem não são de ordem substancial, mas exclusivamente funcional, e são determinadas pela motricidade, pela percepção ou pela conjugação de atividades reais ou virtuais (operações conceptuais, etc.). Assimilação mental é, pois, a incorporação dos objetos nos esquemas da conduta, e esses esquemas nada são do que esboços das atividades suscetíveis de serem repetidas ativamente.

Reciprocamente, o meio age sobre o organismo, e pode-se designar essa atuação inversa à maneira dos biólogos, mediante o termo “acomodação% tendo-se em mente que o ser vivo jamais sofre puramente a reação dos corpos que o circundam, mas que ela apenas modifica o ciclo assimilador ao acomodar o ser vivo a esses corpos. Psicologicamente, encontramos o mesmo processo, no sentido em que a pressão das coisas culmina sempre, não numa submissão passiva, mas em simples modificação da atividade que recai sobre elas. Dito isto, pode-se então definir adaptação como um equilíbrio entre assimilação e acomodação, o que equivale a dizer: equilíbrio dOS intercâmbios entre o sujeito e os objetos.

Ora, no caso da adaptação orgânica, sendo esses intercâmbios de natureza material, eles implicam uma interpenetração entre uma parte qualquer do corpo vivo e determinado setor do meio externo. Pelo contrário, a vida psicológica começa, como vimos, com os intercâmbios funcionais, isto é, no ponto em que a assimilação nã o mais altera de modo físico-químico os objetos assimilados, mas os incorpora simplesmente às formas da atividade própria (e em que a acomodação apenas modifica essa atividade). Compreende-se então que, à interpenetração direta do organismo e meio, superpõem-se, com a vida mental, intercâmbios imediatos entre o sujeito e

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A NATUREZA DA INTELIGÊNCIA 19

os objetos, que se efetuam a distâncias espaço-temporais cada vez maiores e segundo trajetos cada vez mais complexos. Todo o desenvolvimento da atividade mental, da percepção e do hábito até a representação e a memória, assim como às operações superiores do raciocínio e do pensamento formal, é assim função dessa distância paulatinamente aumentada dos intercâmbios; por conseguinte, do equilíbrio entre uma assimilação de realidades cada vez mais distanciadas da atividade própria e uma acomodação destas àquelas.

E nesse sentido que a inteligência, cujas operações lógicas constituem um equilíbrio ao mesmo tempo móvel e permanente entre o universo e o pensamento, estende e conclui o conjunto dos processos adaptativos. A adaptação orgânica não assegura, com efeito, senão um equilíbrio imediato, e, por conseguinte, limitado, entre o ser vivo e o meio atual. As funções cognitivas elementares, tais como a peroepção, o hábito e a memória, estendem-na no sentido da extensão presente (contato perceptivo com os objetos distantes) e antecipações ou reconstituições próximas. Só, a inteligência, capaz de todos os desvios e retornos pela atividade e pelo pensamento, tende ao equilíbrio total, tendo em mira assimilar o conjunto do real e nele acomodar a atívidade, que ela liberta de sua sujeição ao hic e ao nunc iniciais.

Definição da Inteligência

Se nos ativermos a definir inteligência, o que se impõe, sem dúvida, para delimitar o domínio de que nos ocuparemos sob essa designação, bastará entendermo-nos sobre o grau de complexidade dos intercâmbios a distância, a partir dos quais será conveniente chamá-los de “inteligentes”. No caso, porém, surgem dificuldades, visto que a linha inferior de demarcação é arbitrária. Para alguns estudiosos, como Claparède e Sterri, a inteligência é uma adaptação mental às circunstâncias novas. Claparède contrapõe assim a inteligência ao instinto e ao hábito, que são adaptações, hereditárias ou adquiridas, nas circunstâncias que se repetem; mas para ele a inteligência tem início a partir dos tateios empíricos mais elemen-

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20 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

tares (origem dos tateios interiorizados que irão caracterizar posteriormente a procura da hipótese). Para Bü hler, que divide também as estruturas em três tipos (instinto, adestramento e inteligência), essa definição é demasiado ampla: a inteligência aparece apenas com as atividades de compreensão súbita (AhaErIffinis), ao passo que o tateio pertence à fase de adestramento. Por sua vez, também KõhIer reserva o termo “inteligência” para as atividades de reestruturação brusca e exclui dentre essas o tateio. j2 inegável que este aparece desde a formação dos hábitos mais simples, os quais são, por sua vez, no momento em que se constituem, adaptaçõ es a circunstâncias novas. Por outro lado, a questão, a hipótese e o controle, cuja reunião caracteriza também a inteligência, ao ver de Claparède, estão já em germe nas necessidades, nos ensaios e erros e na sanção empírica própria das adaptações sensório-motoras menos evoluídas. Por conseguinte, de duas, uma: ou nos contentamos com uma definição funcional, sob o risco de abranger a quase totalidade das estruturas cognitivas, ou então escolhemos como critério certa estrutura particular: mas a escolha permanecerá convencional e correndo o risco de desprezar a continuidade real.

Contudo, é ainda possível definir a inteligência pelo sentido em que se orienta seu desenvolvimento, sem insistir nas questões de fronteiras, que se convertem em questão de fases ou formas sucessivas de equilíbrio. Podemos, então, colocar-nos simultaneamente nos pontos de vista da situação funcional e do mecanismo estrutural. Quanto ao primeiro desses pontos de vista, pode-se dizer que uma conduta é tanto mais “inteligente” quanto as trajetórias entre o sujeito e os objetos de sua atividade deixam de “r simples e exigem uma composição progressiva. Assim e que a percepção comporta apenas trajetos simples, mesmo que o objeto percebido esteja muito distante. Poderia parecer que um hábito fosse mais complexo, mas suas articulações espaço-temporais fundem-se num todo único, sem partes independentes nem componíveis distintamente. Pelo contrário, um ato de inteligência, tal como o de achar um objeto escondido, ou a significação de uma imagem, implica certa quantidade de trajetos (no espaço e no tempo), ao mesmo tempo isolãveis e suscetíveis de composição. Do ponto de vista do mecanismo estrutural, por conseguinte, as adaptações sensório-motoras e'.ementares são ao mesmo tempo rígidas e de sentido único, ao

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A NATUREZA DA INTELIGÊNCIA 21

passo que a inteligência envereda na direção da mobili. dade reversível. Veremos que, precisamente nisso cons. titui-se o carÚter essencial das operações que caracterizam a lógica viva e em atuação. Mas se vê ao mesmo tempo que a reversibilidade nada mais é que o critério do equilíbrio (como nos ensinaram os físicos). Definir a inteligência pela reversibilidade progressiva das estruturas móveis que ela constrói é o mesmo que dizer, em outras palavras, e sob forma nova, que a inteligência constitui o estado de equilíbrio no sentido a que tendem todas as adaptações sucessivas de ordem sensório-motora e cognitiva, assim como todas as trocas assimiladoras e acomodadoras entre o organismo e o meio.

Classificação das inierpretações possíveis da inteligêncila

Do ponto de vista biológico, a inteligência aparece, pois, como uma das atividades do organismo, ao passo que os objetos aos quais ela se adapta constituem setor particular do meio ambiente. Mas, na medida em que os conhecimentos elaborados pela inteligência realizam um equilíbrio privilegiado, visto ser termo necessário dos intercâmbios sensório-motores e representativos, quando da extensão indeterminada das distâncias no espaço e no tempo, a inteligência cria o próprio pensamento científico, inclusive o conhecimento biológico. É, portanto, natural que as teorias psicológicas da inteligência venham inserir-se entre as teorias biológicas da adaptação e teorias do conhecimento em geral. Nada há de surpreendente em que haja parentesco entre as teorias psicológicas e as doutrinas epistemológicas, visto que, se a psicologia 111 bertou-se das tutelas filosóficas, persiste felizmente algum vínculo entre o estudo das funções mentais e o dos processos do conhecimento científico. Mas é sobretudo interessante que exista um paralelismo, até bastante estreito, entre as grandes doutrinas biológicas da variedade evolutiva (portanto, da adaptação) e as teorias restritas da inteligência, na medida em que fato psicológico: é freqüente, de fato, que os psicólogos não tenham consciência das correntes de inspiração biológica que dão vida às suas interpretações, mesmo quando, às vezes, os biólogos tenham adotado naturalmente uma posição psicológica de

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22 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

preferência a outras possíveis (ef. o papel do hábito em Lamarck, ou da concorrência e luta pela vida em Darwin); além do mais, dado o parentesco dos problemas, pode haver simples convergência de soluções, e esta confirma então aquele.

Do ponto de vista biológico, as relações entre o organismo e o meio comportam seis interpretações possíveis, de acordo com as combinações seguintes (todas as quais deram ensejo a soluções distintas, clássicas ou atuais) : ou se rejeita a idéia de uma evolução propriamente dita (1) ou se admite a sua existência (II); por outro lado, nos dois casos (I e ID, atribui-se as adaptações ou a fatores externos ao organismo (1), ou a fatores internos (2), ou a uma interação entre os dois (3). Do ponto de vista fixista (I), pode-se assim atribuir a adaptação a certa harmonia pr"stabelecida entre o organismo e as propriedades do meio Q,), a um preformismo que permita ao organismo reagir a qualquer situação tomando reais suas estruturas virtuais (I,,), ou ainda ao “surgimento” de estruturas de conjunto, irredutíveis a seus elementos e determinadas simultaneamente de dentro e de fora (13).’ Quanto aos pontos de vista evolucionistas (H), eles explicam paralelamente as variações adaptativas, seja pela pressão do meio (lamarckismo, [III] seja pelas mutações endógenas com posterior seleçã o (mutacionismo (112)2 ou por uma interação progressiva dos fatores internos e externos (113).

1 A harmonia pré-estabelecida (I,) é a solução inerente ao criacionismo clássico e constitui a única explicação da adaptação de que dispõe de fato o vitalismo sob forma pura. 0 preformismo (12) CSteve por vezes ligado às soluções vitalistas, mas pode tornar-se independente dele e se perpetua, não raro, sob aparências mutacionistas entre os autores que negam à evolução qualquer caráter construtivo, e consideram todo caráter novo como efetivação de potencialidades até então simplesmente latentes. Pelo contrário, o ponto de vista da emergência (I.) pretende explicar o novo que surge nas hierarquias dos seres mediante estruturas de conjunto irredutíveis aos elementos do estágio anterior. Desses elementos “emerge” uma totalidade nova, que é adaptativa, porque abrangendo num todo indissociável os mecanismos internos e suas relações com o meio exterior. Admitindo ao mesmo tempo o fato da evolução, a hipótese da emergência a reduz assim a uma seqüência de hipóteses irredutíveis umas às outras, o que a fragmenta numa séria de criações distintas.2 Nas explicações mutacionistas da evolução, a seleção, se deve ao próprio meio. Para Darwin, ela estava relacionada com a competição.

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Ora, é notável verificar-se o quanto se encontram as mesmas grandes correntes de pensamento na interpretação do próprio conhecimento, na medida em que relação entre o sujeito pensante e os objetos. À harmonia pré-estabelecída, própria do vitalismo criacionista, corresponde o realismo dessas doutrinas que vêem na razão uma adequação inata a formas ou essências eternas (I,); ao preformismo corresponde o apriorismo que explica o conhecimento por estruturas internas anteriores à experiência (4), e à “emergência” das estruturas nã o construídas corresponde a fenomenologia contemporânea, que analisa apenas as diversas formas de pensamento, recusando-se, ao mesmo tempo, a retirá-las geneticamente umas das outras e a dissociar nelas a parte do sujeito e a dos objetos (13). As interpretações evolucionistas encontram-se, por outro lado, nas correntes epistemológicas contribuindo para a construção progressiva da razão; ao lamarckismo corresponde o empirismo que explica o conhecimento pela pressão das coisas (II,); ao mutacionismo correspondem o convencionalismo e o pragmatismo, que atribuem a adequação do espírito ao real à livre criação de noções subjetivas selecionadas com o tempo segundo um princípio ae simples comodidade (112) - 0 interacionismo, por fim, enseja um relativismo que fará do conhecimento o produto de uma colaboração indissociável entre a experiência e a dedução (113).

Sem insistir nesse paralelismo, sob sua forma geral, será conveniente observar agora que as teorias contemporãneas e propriamente psicológicas da inteligência inspiram-se de fato nas mesmas correntes de idéias,ora dominando a. ênfase no biológico, ora se fazendo sentir as influências filosóficas em relação com estudo do próprio conhecimento.

Em primeiro lugar, não há dúvida alguma de que uma oposição essencial distingue duas espécies de interpretações: as que, ao mesmo tempo reconhecendo a existência dos fatos do desenvolvimento, não podem eximir-se de considerar a inteligência como um dado primeiro, e com isso reduzem a evolução mental a uma espécie de tomada de consciência paulatina. sem construção verdadeira, e as que pretendem explicar a inteligência pelo seu próprio desenvolvimento. Notemos, de resto, que as duas escolas colaboram no descobrimente, e análise dos próprios fatos experimentais. Eis por que será pertinente classificar obje-

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tivamente todas as atuais interpretações de conjunto, na medida em que serviram para ressaltar esse ou aquele aspecto especial dos fatos a explicar: a linha de demarcação entre as teorias psicológicas e as doutrinas filosóficas é, de fato, algo a procurar nessa aplicação à experiência, e não nas hipóteses iniciais.

Entre as teorias fixistas, há em primeiro lugar as que continuam fiéis, apesar de tudo, à idéia de uma intelígência-faculdade, espécie de conhecimento direto dos seres físicos e das idéias lógicas ou matemáticas, mediante harmonia pré-estabelecida entre o intelecto e a realidade (I,). Deve-se confessar que poucos psicólogos experimentais continuam fiéis a essa hipótese. Mas os problemas suscitados pelas fronteiras comuns à Psicologia e à análise do pensamento matemático deram ensejo a certos cultores da logística, como Bertrand Russell, de dar rigor a essa concepção de inteligência e mesmo de querer impôIa à própria Psicologia (ef. A Análíse da Mente*).

Mais em voga é a hipótese Q2) segundo a qual a inteligência é determinada por estruturas internas, que tampouco se constroem, mas se explicitam paulatinamente, no curso do desenvolvimento, graças a uma reflexão do pensamento sobre si mesmo. Essa corrente apriorista inspirou de fato boa parte dos trabalhos da Denkpsychologie alemã, e acha-se, por conseguinte, na origem de numerosas pesquisas experimentais sobre o pensamento, mediante os conhecidos métodos de introspecção provocada, que se diversificaram a partir de 1900-1905 até hoje. Isso não significa, evidentemente, que todo emprego desses métodos de investigação conduza a essa explicação da inteligência: a obra de Binet atesta o contrário. Mas com K. Bühler, Selz e muitos outros, a inteligência acabou por tomar-se como um “espelho da lógica% impondo-se esta de dentro sem explicação causal possível.

Em terceiro lugar (L), aos pontos de vista da “emergência” e da fenomen ólogia (com influência histórica efetiva desta última) corresponde uma teoria recente da inteligência, que renovou as questões de modo muito sugestivo: a teoria da Forma (Gestalt). Surgida das pesquisas experimentais sobre a percepção, a noção de “forma de conjunto” consiste em admitir que uma totalidade

* Bertrand Rtissell, A Análise da Mente, publicado por esta editora. (N. do T.)

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é irredutível aos elementos que a compõem, enquanto regida por leis próprias de organização ou de equilíbrio. Ora, após haver analisado essas leis de estruturação no domínio perceptivo e as ter encontrado nos terrenos da motricidade, da memória, etc., a Teoria da Forma aplicou-se à inteligência, e sob seus aspectos tanto reflexivos (pensamento lógico) quanto sensório-motores (inteligência animal e infantil antes da fala). Desse modo foi que Kõhler, a propósito dos chipanzés, e Wertheimer, a propósito do silogismo, etc., falaram de “reestruturações imediatas”, procurando explicar o ato da compreensão pela “pregnância” de estruturas bem organizadas, que nem são endágenas nem exógenas, mas abrangem o sujeito e os objetos num circuito total. Ademais, essas Gelstalt, comuns à percepção, à motricidade e à inteligência, não evoluem, mas representam formas permanentes de equilíbrio independentes do desenvolvimento mental (pode-se, quanto a isso, encontrar todos os intermediários entre o apriorismo e a teoria da Forma, embora essa se coloque em geral na perspectiva de um realismo físico ou fisiolõgico das “estruturas”).

Essas são as três principais teorias não-genéticas da inteligência. Verifica-se que a primeira reduz a adaptação cognitiva a uma acomodação pura, visto que o pensamento não passa para ela de um espelho de “idéias” inteiramente feitas; que a segunda a reduz a uma assimilação pura, visto que as estruturas intelectuais são consideradas por ela como exclusivamente endógenas; e que a terceira confunde assimilação com acomodação num único todo, visto que só existe, do ponto de vista da Gestalt, o circuito que relaciona os objetos ao sujeito, sem atividade deste nem existência isolada daqueles.

Quanto às interpretações genéticas, encontramos aquelas que explicam a inteligência apenas pelo meio exterior (empirismo associacionista correspondente ao lamarckismo); pela atividade do sujeito (teoria do tateio correspondente, no plano das adaptações individuais, ao mutacionismo no plano das variações hereditárias), e pela relação entre o sujeito e os objetos (teoria operatória).

0 empirismo (I11) já não mais é sustentado sob a forma associacionista pura, a não ser por alguns autores de tendência sobretudo fisiológica, que pensam poder reduzir a inteligência a um jogo de condutas “condicionadas”. Mas, sob formas mais maleáveis, encontramos o empiris-

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mo nas interpretações de Rignano, que reduz o raciocínio à experiência mental, e sobretudo na interessante teoria de Spearman, ao mesmo tempo estatística (análise dos fatores da inteligência) e descritiva: desse segundo ponto de vista, Spearman reduz as operações da inteligência à “apreensão da experiência” e à “educção” das relações e dos “correlatos”, isto é, a uma interpretação mais ou menos complexa das relações dadas no real. Essas relações não são pois construídas, mas descobertas por simples acomodação à realidade exterior.

A noção das tentativas e erros (112) ensejou várias interpretações da aprendizagem e da própria inteligência. A teoria do tateio elaborada por Claparède constitui sob esse aspecto a mais apurada atualização: a adaptação inteligente consiste de tentativas ou hipóteses, devidas à atividade do sujeito e à sua seleção efetuada no decorrer do tempo sob a pressão da experiência (êxitos ou fracassos). Esse controle empírico, que seleciona de início as tentativas do sujeito, interioriza-se em seguida sob a forma de previsões devidas à consciência das relações, assim coffio o tateio motor se prolonga em tateio representativo ou imaginação de hipóteses.

Por fim, a ênfase dada às interações do organismo e meio conduz à teoria operatória da inteligência (113). De acordo com esse ponto de vista, as operações intelectuais cuja forma superior é lógica e matemática, constituem atividades reais, sob o duplo aspecto de produção peculiar ao sujeito e de uma experiência possível na realidade. 0 problema então é compreender como as operações se elaboram a partir da atividade material e mediante que leis de equilíbrio sua evolução é regida: as operações são assim concebidas como grupando-se necessariamente em sistemas de conjunto, comparáveis às “formas” da teoria da Gestalt, mas que, longe de serem estáticas e dadas desde o início, são móveis, reversíveis, e não se encerram em si mesmas, senão no final do processo genético ao mesmo tempo individual e social que as caracteriza@3

Desenvolveremos este sexto ponto de vista. Quanto às teorias do tateio e às concepções empiristas, deixaremos

3 Notemos, quanto a isso, que, embora a natureza social das operações se identifique com seu caráter de atividade efetiva e com seu g-upamento gradual, reservamos, porém, para clareza da exposição,, a discussão dos fatores sociais do pensamento para o Capítulo 6.

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para analisá-las sobretudo a propósito da inteligência sensório-motora e suas relações com o hábito (Cap. 4). A teoria da Forma exige discussão em separado, que concentraremos no problema essencial das relações entre a percepção e a inteligência (Cap. 3). No que se refere a doutrinas de uma inteligência pré-adaptada às entidades lógicas subsistentes em si ou quanto ao pensamento que reflita uma lógica a priori, vamos encontrá-las no início do capítulo seguinte. De fato, elas suscitam, ambas, aquilo que poderíamos chamar de “a questão prévia” do estudo psicológico do intelecto: poder-se-ã esperar uma explicação propriamente dita da inteligência, ou constituirá esta um fato primeiro irredutível, na medida em que espelho de uma realidade anterior a toda experiência, e que seria a lógica?

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A “Psicologia do Pensamento’ e a Natureza Psicológica das Operações Lógicas

A possibilidade de uma explicação psicológica da inteligência depende da maneira como se interpretem as operações lógicas: serão elas reflexo de uma realidade inteiramente feita ou expressão de uma atividade verdadeira? Só a noção de uma lógica axiomática permite, sem dúvida,. escapar a essa alternativa, ao submeter as operações reais do pensamento à interpretação genética, ao mesmo tempo conservando o caráter irredutível de suas conexões formais,. enquanto estas são analisadas axiomaticamente: o lógico procede, então, como, o geômetra quanto aos espaços que, constrói dedutivamente, ao passo que o psicólogo se assemelha ao físico que mede o espaço do mundo real. Em outras palavras, o psicólogo estuda o modo como se constitui o equilíbrio de fato das ações e operações, ao passo, que o lógico analisa o mesmo equilíbrio sob sua forma ideal, isto é, tal como ele seria se fosse concretizado int<3gralmente, e tal como se impõe assim, normativamente, ao espírito.

A interpretação de Bertrand Russell

Comecemos com a teoria da inteligência de Bertrand Russel, que assinala o máximo de submissão possível da psicologia à logística. Quando percebemos uma rosa branca, diz RusselI, concebemos ao mesmo tempo as noções

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de rosa e brancura, e isso por um processo análogo ao da percepção: apreendemos diretamente, e como de fora, os “universais” correspondentes aos objetos sensíveis e “subsistentes independentemente do pensamento do sujeito. Mas que dizer, então, das idéias falsas? Trata-se de idéias como as demais, e as qualidades de falso e verdadeiro aplicam-se aos conceitos como há rosas brancas e rosas vermelhas. Quanto às leis que regem os universais e que determinam suas relações, elas decorrem apenas da lógica, e a psicologia não pode senão curvar-se diante desse conhecimento prévio, que lhe é dado inteiramente feito.

Essa a hipótese. De nada vale rotulá-la de metafísica ou metapsicológica, porque choca o senso comum dos experimentadores: o do matemático acomoda-se a ela muito bem, e a psicoolgia deve contar com os matemáticos. Tese tão radical como essa é mesmo de molde a fazer refletir. Em primeiro lugar, ela suprime a noção de operação, visto que, se captamos os universais de fora, não os construímos. Na expressão 1 + 1 = 2, o sinal + nada mais designa senão uma relação, entre as duas unidades e de modo algum uma atividade que engendra o número 2: como o disse, claramente Couturat, a noção de operação é essencialmente “antropomórfíca”. A teoria de Russell dissocia, pois, a fortiori, os fatores subjetivos do pensamento (crença, etc.) dos fatores objetivos (necessidade, probabilidade, etc.). Em suma, ela suprime o ponto de vista genético . certo russelliano inglês dizia certa vez, para provar a inutilidade das pesquisas sobre o pensamento infantil, que “o lógico se interessa pelas idéias verdadeiras, ao passo que o psícõlogo acha prazer em descrever idéias falsas”.

Mas se deliberamos começar este capítulo evocando as idéias de Russell é para assinalar desde logo que a linha de demarcação entre o conhecimento logístico e a psicologia não pode ser transposta impunemente pela primeira. Mesmo que, do ponto de vista da axiomática, a operação aparecesse como despida de significação, seu “antropomorfismo” por si só lhe daria uma realidade mental. Geneticamente, as operações são, de fato, atividades propriamente ditas, e não apenas verificações ou apreensões de relações. Quando se soma 1 mais 1, à o sujeito que reúne duas unidades num todo, ao Dasso que os poderia manter isolados. Sem dúvida, essa atividade, efetuando-se em pensamento, adquire um carãter sui generis que a distir)gue das atividades quaisquer: ela é reversível, isto é, após reu-

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nir as duas unidades o sujeito pensante pode dissociá-las e voltar desse modo ao ponto de partida. Mas nem poi isso deixa de ser uma atividade propriamente dita, bem diferente da simples leitura de uma relação tal como 2 > 1. Ora, a isso não respondem os russellianos, a não ser por um argumento extrapsicológico: trata-se, dizem eles, de uma atividade ilusória ‘ visto que 1 + 1 estão reunidos em2 desde a eternidade (ou, como dizem Carnap e von Wittgenstein, visto que 1 + 1 = 2 não passa de tautologia, característica dessa linguagem que é a “sintaxe lógica” e não abrangendo o pensamento em si, cujas fases são especificamente experimentais). De um modo geral, o pensamento matemático se ilude quando acredita construir ou inventar, ao passo que se limita a descobrir os diversos aspectos de um mundo inteiramente feito (e, acrescentam os adeptos do Círculo de Viena, inteiramente tautológico). Resta apenas, mesmo que recusemos à psicologia da inteligência o direito de se ocupar da natureza dos seres lógico-matemáticos, que o pensamento individual não poderia permanecer passivo diante de Idéias (ou signos de uma linguagem lógica), muito menos diante de entidades físicas, e que, para as assimilar, ela os reconstrua por meio de Operações psicologicamente reais.

Acrescentemos que, do ponto de vista puramente logístico, as

afirmações de Bertrand Russell e do círculo de Viena sobre a existência independente dos seres lógico-matemáticos, a respeito das operações que parecem engendrá-los, são tão arbitrárias quanto do ponto de vista psicológico: elas se chocarão sempre, com efeito, com a dificuldade fundamental do realismo das classes, relações e números, que é a das antinomias relativas à “classe de todas as classes”, e ao número infinito real. Pelo contrário, do ponto de vista operatório, ,os seres infinitos nada mais são que a expressão de operações suscetíveis de repetir-se infinitamente.

Por fim, da perspectiva genética, é mais quimérica ainda a hipótese de uma apreensão direta, pelo pensamento, de universais subsistentes independentemente dele. Admitamos que as idéias falsas do adulto tenham existência ,comDarÚvel à das idéias verdadeiras. Que pensar, então, dos conceitos sucessivamente construidos pela criança no -curso dos estágios lieterogêneos de seu desenvolvimento? E Os “esquemas” da inteligência prática pré-verbal, “subsistirão” eles, acaso, fora do sujeito? E os esquemas da inteligência animal? Se reservarmos a “subsistência eterna”

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apenas às idéias verdadeiras, em que idade começa a sua apreensão? E mesmo, de um modo geral, que as fases do desenvolvimento assinalem apenas aproximações sucessivas da inteligência em sua conquista de “idéias” imutáveis, que prova temos de que o adulto normal ou os lógicos da escola de Russell tenham chegado a captá-las e que não venham a ser ultrapassados sem cessar pelas gerações futuras?

A “psicologia do pensamewto11: Bühler e Selz

As dificuldades que acabamos de encontrar na interpretação da inteligência segundo Bertrand Russell e o cí rculo de Viena encontram-se em parte na interpretação a que foi levada a Denkpsychologie alemã, embora se trate agora exclusivamente de psicólogos. Certo é que, para os autores filiados a essa escola, a lógica não se impõe ao espírito externamente, mas a partir de dentro: o conflito entre as exigências da explicação psicológica e as da dedução peculiar aos lógicos atenuou-se, sem dúvida; mas como veremos, não está inteiramente suprimido, e a sombra da lógica formal continua a pairar, como dado irredutível, sobre o empenho explicativo e causal do psicólogo, desde que ele não se coloque de uma perspectiva decididamente genética. Ora, os “psicólogos do pensamento” alemães de fato se inspiraram em correntes propriamente apríorístas ou em correntes fenomenológicas (a influência de Edmund Husserl foi sobremodo nítida), com todos os matizes entre essas duas orientações.

Enquanto método, a psicologia do pensamento nasceu simultaneamente na França e na Alemanha. Decorrente inteiramente do associacionismo, Binet defendeu-a em seu opúsculo sobre A Psicologia do Raciocínio, retomando a questão das relações do pensamento com as imagens mediante um método interessante de introspecção provocada, e descobriu, gracas a ele, a existência de um pensamento sem imagens: as relações, os julgamentos, as atitudes, etc. ultrapassam o quadro das imagens, e pensar não se reduz a “contemplar o Epinal”, afirma ele em 19,03, em seu Estudo Experimental da Inteligência, Quanto a saber em que consistem essas atividades do pensamento que resistem à interpretação associacionista, Binet mantém-se reservado, limitando-se a observar o parentesco entre as “atitudes”

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intelectuais e motoras, e conclui que, do ponto de vista exclusivo da introspecção, “o pensamento é uma atividade inconsciente do espírito”. Lição sobremodo instrutiva, mas sem dúvida decepcionante quanto aos recursos de um método que se revelou fecundo mais para a própria formulação dos problemas do que para a sua solução.

Em 19.00, Marbe (Experimentelle Untersuchungen -über das Urtheil) indagava também em que o juizo difere de uma associação, e tinha esperança de resolver a questão por um método de introspecção provocada. Marbe depaTou, então, com os mais diversos estados de consciência: representações verbais, imagens, sensaçõ es de movimentos, atitudes (dúvida, etc.), mas nada de constante. Enquanto já observa que a condição necessária do juizo é o carãter pretendido ou intencional da relação, ele não considera essa condição como suficiente, e conclui por uma negação que lembra a fórmula de Binet: não há estado de consciência constantemente ligado ao juizo e que possa ser considerado como seu determinante. Mas acrescenta, e esse acréscimo nos parece ter influído diretamente ou indiretamente em toda a Denkpsychologie alemã, que o juizo implica, por conseguinte, a intervenção de um fator extrapsicológico, visto que inerente à lógica pura. Vê-se que não exagerávamos ao declarar o reaparecimento, neste novo plano, das dificuldades próprias do logicismo dos próprios platônicos.

Em seguida, vieram os trabalhos de Watt, Messer e Btihler, inspirados por Külpe, e que ilustraram a “escola de Wurzburg”. Watt, estudando, sempre por introspecção .provocada, as associações fornecidas pelo sujeito em cumprimento a uma ordem dada (por exemplo, associações por superordenação, etc.), descobriu que a ordem pode atuar, seja acompanhando-se de imagens, seja no estado de consciência sem imagem (de Bewusstheit), ou, enfim, no estado inconsciente. Formula então a hipótese de que a “inlt-,enção” de Marbe é precisamente efeito das ordens (externas e internas) e pensa resolver o problema do juizo ao fazer deste uma sucessão de estados condicionados por um fator psíquico anteriormente consciente e de influência durável.

Messer acha demasiado vaga a descrição de Watt, visto que se aplica tanto a um jogo regulamentado quanto ao juizo, e retoma o problema mediante técnica análoga: dis-

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tingue então associação regulamentada e o próprio jufzo, que será uma relação aceita ou rejeitada, e dedica o essencial de seus trabalhos a analisar os diferentes tipos mentais de juizo.

K. BühIer, finalmente, assinala a culminação dos trabalhos da escola de Wurzburg. A pobreza dos resultados iniciais do método de introspecção provocada parece-lhe resultar do fato de que as questões levantadas recaíram sobre processos demasiado simples, e se aplica a partir daí a analisar com seus sujeitos a solução de problemas propriamente ditos. Os elementos do pensamento obtidos por esse processo dividem-se em três categorias: as imagens, cujo papel é acessório, e não essencial, como o pretendia o associacionismo; os sentimentos intelectuais o atitudes; finalmente, e sobretudo, os “pensamentos” em si mesmos (Bewusstheit). Por seu turno, estes se apresentam sob a forma ou de “consciência de relação” (p.ex., A < B) , ou de “ consciência das regras” (pex., pensar no inverso do quadrado da distância sem saber de que objetos nem de que distâncias se trata), ou de “intenções (no sentido escolástico) puramente formais” (p. ex., pensar na arquitetura de um sistema). Concebida desse modo, a psicologia do pensamento chega, pois, a uma descrição exata e, não raro, muito sutil, dos estados intelectuais, mas paralela à análise lógica e não explicando de modo algum as operações como tais.

Por outro lado, com os trabalhos de Selz, os resultados da escola de Wurzburg são ultrapassados no sentido de uma análise do próprio dinamismo do pensamento, e não mais apenas de seus estados isolados. Selz, como Bühler, estuda a solução dos próprios problemas; porém, procura menos descrever os elementos do pensamento do que captar como são obtidas as soluções. Após haverestudado, em 1913, o “pensamento reprodutivo% tenta, portanto, em 192,2 (Zur Psychologie des produktiven Denkers und des Irrtums), descobrir o segredo da construção mental. Ora, é interessante verificar que, na medida em que as pesquisas são assim orientadas no sentido da atividade como tal do pensamento, elas se distanciam por isso mesmo do atomismo lógico, que consiste em classificar as relações, juizos e esquemas isolados, e se aproximam das totalidades vivas, segundo o modelo ilustrado pela Psicologia da Forma e de que encontraremos, logo a seguir, um

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modelo diferente no que se refere às operações. Para Selz, com efeito, todo o trabalho do pensamento consiste em completar um conjunto (teoria da Kompiergãnzung): a solução de um problema não se deixa reduzir ao esquema estirnulo-respos-La, mas consiste em preencher as lacunas que subsistem no interior cLos “complexos” de noções e relações. Quanao levantado um problema, dois casos podem então se apresentar: ou se trata de uma que6tão cie reconstituição,nao exigindo uma construção nova, e a solução consiste simplesmente em recorrer aos “complexos” já existentes: vernica-se daí a ---concretização cio saber”, portanto, pensamento apenas “reproclutivo”; ou então se trata de verdadeiro problema, provando a existência de lacunas no seio dos complexos até então admitictos, e sendo necessário concretizar não mais o saber, mas os mé@odos de solução (aplicação dos métodos conhecidos ao caso novo), ou mesmo de abstrair novos métodos a partir dos antigos: há, neste último caso, pensamento “produtivo% e é este que consiste propriamente em completar as totalidades ou complexos já existentes. Quanto a esse “preenchimento de lacunas”, é sempre orientado por “esquenias antecipadores” (comparáveis ao “esquema dinâmico” de Bergson), que tecem, entre os dados novos e o conjunto do complexo correspondente, um sistema de relações provisórias globais constituindo o esboço da solução a encontrar (portanto a hipótese diretriz). Essas relações em si são, por fim, pormenorizadas, segundo um mecanismo sujeito a leis rigorosas: essas leis nada mais são que as leis da lógica, de que o pensamento é, afinal, o espelho.

Lembremos também a obra de Lindworski, que se intercala entre as duas obras de Selz e anuncia as conclusões deste. Quanto ao estudo de Claparède sobre a gênese da hipótese, falaremos dela a propósito do tateio (Capítulo 4).

Crítica da “psicologia do pensamento”

1,2 elai@o que os trabalhos precedentes prestaram grandes serviços ao estudo da inteligência. Libertaram o pensamento da imagem, concebida como elemento constitutivo, e redescobriram, depois de Descartes, que o juizo é uma atividade. Descreveram com rigor os diversos estados do pensamento e mostraram assim, contra Wundt, que a

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introspecção pode ser promovida à categoria de método positivo quando é “provocada”, isto é, quando é de fato controlada por um observador.

Mas convém notar desde logo que, mesmo no plano da simples descrição, as relações entre a imagem e o pensamento foram muito simplificadas pela escola de Wurzburg. Não há dúvida de que a imagem não constitui elemento do pensamento em si. Ela apenas o acompanha e serve de símbolo, símbolo individual completando os signos coletivos da língua. A escola do Significado, surgida da lógica de Bradley, mostrou bem que todo pensamento é um sistema de significações, e foi essa noção que Delacroíx e seus discípulos, sobretudo I. Meyerson, desenvolveram no que se refere às relações de pensamento e imagem. As significações comportam, de fato, “significados” que são o pensamento como tal, mas também “sjgnificantes”, constituídos pelos signos verbais ou os símbolos dotados de imagem construindo-se em correlação íntima com o próprio pensamento.

Por outro lado, é claro que o próprio método da Denkpsychologie lhe impede de ultrapassar a pura descrição, e ele fracassa em explicar a inteligência em seus mecanismos propriamente construtivos, porque a introspecção, mesmo controlada, certamente recai apenas sobre os produtos do pensamento e não sobre sua formação. Além do mais, ela se aplica apenas aos sujeitos capazes de reflexão: ora, é talvez antes dos 7 a 8 anos de idade que se deve procurar o segredo da inteligência!

Faltando-lhe, pois, a perspectiva genética, a “psicologia do pensamento” analisa exclusivamente os estágios finais da evolução intelectual. Falando em termos de estados e de equilíbrio acabado, não surpreende que ela acabe num panlogismo e seja obrigada a interromper a análise psicológica diante do dado irredutível das leis da lógica. Desde Marbe, que pura e simplesmente invocava a lei lógica a título de fator extrapsicológico interferindo causalmente e preenchendo as lacunas da causalidade mental, até Selz, que chega a uma espécie de paralelismo lógico-psicológico, convertendo o pensamento em espelho da lógica, o fato lógico permanece inexplicado em termos psicológicos para todos esses autores.

Sem dúvida, Selz se libertou em parte do método demasiado estreito de análise dos estados e elementos, para tentar acompanhar o dinamismo do ato inteligente. Des-

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cobriu também as totalidades que caracterizam os sistemas de pensamento, bem como o papel dos esquemas antecipadores na solução de problemas. Mas, ao mesmo tempo assinalando freqüentemente as analogias entre esses processos e os mecanismos orgãnicos e motores, ele não reconstitui sua formação genética. Alia-se também ao panlogismo da escola de Wurzburg, e o faz inclusive de modo paradoxal, cujo exemplo vale a pena meditar por quem quiser libertar a psicologia dos empreendimentos do apriorismo logístico ao mesmo tempo em que procurando explicar o fato lógico.

De fato, ao descobrir o papel essencial das totalidades no funcionamento do pensamento, Selz poderia ter tirado * conclusão de que a lógica clássica é incapaz de traduzir * juízo, em ação, tal como se apresenta e se constitui no,6< pensamento produtivo”. A lógica clássica, mesmo sob sua forma infinitamente abrandada pela técnica sutil e rigorosa do cálculo logístico, continua atomística; classes, relações, proposições são nela analisadas em suas operações elementares (adição e multiplicação lógicas, implicações e incompatibilidades, etc.). Para traduzir o jogo dos esquemas antecipadores e da Komplexergãnzung, portanto totalidades intelectuais que intervêm no pensamento vivo e atuante, seria necessário que Selz recorresse a uma lógica das próprias totalidades, e então o problema das relaçõ es entre a inteligência, na medida em que fato psieGlógicO, e a lógica como tal, se teria colocado em termos novos que demandassem solução propriamente genética. Pelo contrário, Selz, por demais respeitoso quanto aos quadros lógicos a priori, não obstante seu caráter descontínuo e atomístico, acabou naturalmente por encontrá-los integralmente a titulo de resíduos da análise psicológica, e por invoeã-los no pormenor das elaborações mentais.

Em suma, a “psicologia do pensamento” acabou por fazer do pensamento o espelho da lógica, e nisso reside a origem das dificuldades que ela não pôde superar. A questão é, pois, de saber se não conviria simplesmente inverter os termos e fazer da lógica o espelho do pensamento, o que restituiria a esta sua independência construtiva.

Lógica e Psicologia

A lógica como o espelho do pensamento, e não o in- verso, tal o ponto de vista a que fomos levados (Classes>

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Relações e Números. Ensaio sobre os Grupamentos da Logística e a Reversibilidade do Pensamento, 1942) pelo estudo da formação das operações na criança, e isto após nos havermos persuadido, no ponto de partida, da justeza do postulado da irredutibilidade em que se inspiram os “psicólogos do pensamento”. Isso equivale a dizer que a lógica é uma axiomática da razão da qual a psicologia da inteligência é a ciência experimental correspondente. Parece-nos indispensável insistir um pouco mais nesta questão de método.

Axiomática é ciência exclusivamente hipotético-dedutiva, isto é, ela reduz ao mínimo os recursos da experiência (e ambiciona inclusive eliminá-los inteiramente) para reconstruir livremente seu objeto por meio de proposições indemonstrãveis (axiomas) que devem combinar-se mutuamente de acordo com todas as possibilidades e do modo mais rigoroso. Desse modo, a Geometria realizou grande progresso, quando, procurando abstrair toda intuição, construiu os espaços mais diversos, meramente definindo os elementos primitivos admitidos por hipótese e as operações aos quais estão submetidos. 0 método axiomãtico é, pois, o método matemático por excelência, e encontrou numerosas aplicações, não apenas em matemática pura, mas em diversos domínios da matemática aplicada (da física teórica à economia matemática). A utilidade da axiomática ultrapassa, com efeito, os da demonstração (ainda que, nesse campo, ela constitua o único método rigoroso) : diante de realidades complexas e resistindo à análise exaustiva, ela permite construir modelos simplificados do real e fornece assim ao estudo deste os insubstituiveis instrumentos de dissecção. De modo geral, uma axiomática constitui, como o demonstrou muito bem Gonseth, um “esquema” da realidade, e pelo próprio fato de que toda abstração conduz a uma esquematização, o método axiomático estende no total a esquematização da própria inteligência.

Mas, precisamente em vista de seu caráter “esquemático”, uma axiomática não pode pretender a fundamentaçã o, nem, sobretudo, substituir a ciência experimental correspondente, isto é, aquela ciência que trata de certo setor da realidade de que a axiomática constitui o esquema. Por isso, a geometria axiomática não tem condições de nos ensinar o que vem a ser o espaço do mundo real (e que a «economia pura” não esgota absolutamente a complexidade

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dos fatos econômicos concretos). A axiomática, não poderia substituir a ciência índutiva que lhe corresponde, em vista da razão essencial de que sua própria pureza não passa de um limite jamais atingido ria plenitude. Como ainda o diz Gonseth, resta sempre um resíduo intuitivo no esquema, por mais apurado que seja (assim como já entra um elemento de esquematização em toda intuição). Basta essa única razão para dar a compreender por que a axiomática jamais “fundamentará” a ciência experimental e por que a toda axiomática pode corresponder tal ciência (assim como, sem dúvida, o inverso).

Em vista do exposto, -o problema das relações entre a lógica formal e a psicologia da inteligência é suscetível de obter solução comparável àquela que pôs fim, após séculos de discussão, ao conflito entre a geometria dedutiva e a geometria real ou física. Assim como no caso dessas duas espécies de disciplina, a lógica e a psicologia do pensamento começaram por ser confundidas ou indiferenciadas: Aristóteles acreditava escrever uma história natural do espírito (como, de resto, da própria realidade física) ao enunciar as leis do silogismo. Quando a psicología se constituiu como ciência independente, os psicólogos compreenderam (levando para isso um tempo considerável) que as reflexões dos manuais de lógica sobre o conceito, juizo e raciocínio não os eximia de procurar o deslindamento do mecanismo causal da inteligência. Só que, por um efeito residual da indissociação primitiva, continuaram a enxergar a lógica como ciência da realidade, situada, não obstante seu carãter normativo, no mesmo plano que a psicologia, mas ocupando-se tão-somente do “pensamento verdadeiro% contrastando com o pensamento em geral, com abstração de qualquer norma. Daí essa perspectiva ilusória da Denkpsychologie, segundo a qual o pensamento, na medida em que fato psicológico, constituiria o reflexo das leis lógicas. Em contrapartida, se a lógica se considerava uma axiomática, o falso problema dessas relações de interferência se dissiparia pela própria inversão das posições.

Ora, parece evidente que, na medida em que a lógica renunciou à imprecisão da linguagem verbal para constitUir, sob o nome de logística, um algoritmo cujo rigor iguala ao da linguagem matemática, ela se transformou eIn técnica axiomática. Por outro lado, sabe-se o quanto el@sa técnica rapidamente interferiu com as partes mais

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gerais das matemáticas, a tal ponto que a logística adquiriu hoje uni valor científico independente das filosofias particulares dos logísticos (platonismo de Russell ou nominalismo do Círculo de Viena). 0 próprio fato de qu-- as interpretações filosóficas deixam inalterada a sua técnica interna mostra, de resto, por si só, que esta atingiu o nível axiomático: a logística constitui, pois, meramente um “moclelo” ideal do pensamento.

No caso, porém, as relações entre a lógica e a psicologia mostram-se indevidamente simplificadas. A logística não precisa recorrer à psicologia, visto que uma questão de fato não intervém absolutamente numa teoria hipotético-dedutiva. Inversamente, seria absurdo invocar a logística para resolver uma questão que implique a experiéncia, tal como a do mecanismo real da inteligência. Todavia, na medida em que a psicologia se aplica a analisar os estados de equilíbrio finais do pensamento, há, não um paralelismo, mas uma correspondência entre esse conhecimento experimental e a logística, como há correspondência entre um esquema e a realidade que ele representa. Cada questão suscitada por uma das duas disciplinas corresponde, então, a uma questão da outra, embora nem seus métodos nem suas soluções próprias possam interferir.

Essa independência de métodos pode ser ilustrada mediante exemplo muito simples, cuja discussão nos será ú til em vista dos assuntos a serem ventilados nos capítulos5 e 6, deste livro. É comum dizer que o pensamento (real) “aplica o princípio de contradição% o que, tomado literalmente, suporia a intervenção de um fator lógico no contexto causal dos fatos psicológicos e contradiria assim o que acabamos de sustentar. Ora, examinando os termos de mais perto, afirmação desse tipo mostra-se despida de significação. De fato, o princípio de contradição limita-se a impedir a afirmação e negação simultâneas de certo aspecto dado: A é incompatível com não-A. Mas, para o pensamento efetivo de um sujeito real, a dificuldade começa quando ele indaga se tem o direito de afirmar ao mesmo tempo A e B, porque jamais a lógica prescreve diretamente se B implica ou não não-A. Pode-se, por exemplo, falar de uma montanha que tem apenas 100 metros de altura, ou isto será contraditório? Pode-se ser ao inesmo tempo comunista e patriota? Pode-se conceber um quadra-

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do de ângulos desiguais? etc. Para responder a essas questões, existem apenas dois processos. 0 lógico, que consiste em definir teoricamente A e B e procurar se B implica não-A. Mas, então, a “aplicação” do “princípio” de contradição recai exclusivamente sobre as definições, isto é, sobre conceitos axiomatizados, e não sobre noções vivas de que o pensamento se vale na realidade. 0 processo empregado pelo pensamento real consiste, pelo contrário, não em raciocinar sobre definições apenas, o que não tem interesse para ele (dado que, desse ponto de vista, a definição não passa de uma tomada de consciência retrospectiva, e não raro incompleta), mas em atuar e operar, elaborando os conceitos segundo as possibilidades de composição dessas ações e operações. De fato, o conceito não passa de um esquema de ação ou de operação, e é ao executar as ações que engendram A e B que se há de verificar se são compatíveis ou não. Longe de “aplicar um princípio% as ações se organizam segundo condições internas de coerência, e é a estrutura dessa organização que constitui o fato de pensamento real correspondente ao que se chama, no plano axiomático, o “princípio de contradição”.

É verdade que, além da coerência individual das ações, intervêm no pensamento interações de ordem coletiva e, por conseguinte, “normas” impostas por essa própria colaboração. Mas a cooperação é apenas um sistema de ações ou mesmo de operações executadas em comum, e pode-se refazer o raciocínio precedente a propósito das representações coletivas, que também permanecem, no plano das estruturas reais, em oposição às axiomatizações de natureza formal.

Assim, o problema continua inteiro para a psicologia, no sentido de compreender mediante que mecanismo a inteligência chega a construir estruturas coerentes, suscetíveis de composição operatória: e de nada vale invocar44princípios” que essa inteligência aplicasse espontaneamente, visto que os princípios lógicos nada mais são que um esquema teórico formulado através do tempo, uma v,ez elaborado o pensamento, e não essa própria elaboração viva. Diz Brunschvieg com profundidade que a inteligência ganha as batalhas ou se entrega, como a poesia, a uma criação contínua, ao passo que a dedução logística só é comparável aos tratados de estraté gia e às “artes poéti-

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cas”, que codificam as vitórias passadas da ação ou cio espírito, mas não garantem suas conquistas futuras.4

Entretanto, e precisamente porque a axiomática lógica esquematiza o trabalho real do espírito, qualquer descobrimento num dos dois planos pode ensejar um problema no outro. Não há dúvida de que os esquemas lógicos tenham freqüentemente ajudado, por sua sutileza, a análise dos psicólogos: a Dimkpsychologie é um bom exemplo disso. Mas, inversamente, quando esses psicólogos descobrem, com Selz, os “gestaltistas” e muitos outros, o papel das totalidades e das organizações de conjunto no trabalho do pensamento, não há razão alguma para considerar a lógica clássica ou mesmo a logística atual, que permaneceram um modo descontínuo e atomístico de descrição, como intangíveis e definitivas, nem para fazer delas um modelo de que o pensamento fosse o “espelho”: muito pelo contrário, trata-se de elaborar uma lógica das totalidades, se quisermos que sirva de esquema adequado para os estados de equilíbrio do espírito, e de analisar as operações sem as reduzir a elementos isolados, insuficientes do ponto de vista das exigências psicológicas.

As operações e seus “grupamentos”

0 grande obstáculo a uma teoria da inteligência que parta da análise do pensamento sob suas formas superiores é o fascínio que as facilidades do pensamento verbal exercem sobre a consciência. P. Janet demonstrou de modo excelente como a linguagem substitui em parte a ação, ao ponto em que a introspecção sente a maior dificuldade em discernir só por seus meios que ela é ainda um comportamento verdadeiro: a conduta verbal é uma atividade. sem dúvida amenizada e que permanec,:- interior, um esboço de ação que chega a correr o risco de não sair do estado de projeto, mas, de qualquer modo, ação, que substitui simplesmente as coisas por signos e os movimentos por sua evocação, e que operam ainda, em pensamento, mediante esses intérpretes. Ora, desprezando esse aspecto ativo do pensamento verbal, a introspecção só enxerga nele o reflexo, o discurso e a representação conceptual: daí a ilusão dos psicólogos introspectivos de que a inteli-

4 L. Brunschvieg, Les Etapes de la philosophie mathématique, p. 426,2.a ed.

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gência se reduz a esses estados terminais privilegiados, e dos lógicos, de que o esquema loçístico mais adequado deva ser essencialmente uma teoria das “proposições”.

Para atingir o funcionamento real da uitengência, iniporta, pois, inverter esse movimento natural CIO espírito e recolocar-se na perspectiva da própria ação: só entao aparece com toda nitidez o papel ciessa ativicLade interior que é a operação. E por isso mesmo se impõe a continuidade que relaciona a operação com a atividacle verdadeira, fonte e meio da inteligência. Nada mais apropriado para esclarecer essa perspectiva do que a meditação sobre essa espécie de linguagem - linguagem ainda, mas purament,:, intelectual, transparente e estranha às ilusões da imagem- que é a linguagem matemática. Numa expressão qualquer, tal como (x2 + y - z - u), cada termo designa em definitivo uma atividade: o sinal (--) exprime a possibilidade de uma substituição; o sinal (+) uma reunião; o sinal (-) uma separação; o quadrado X2 a atividade de reproduzir x vezes x, e cada um dos valores u, x, y e z, a atividade de reproduzir certo número de vezes a unidade. Cada um desses símbolos se refere, pois, a uma atividade que poderia ser real, mas que a linguagem matemática limita-se a designar abstratamente, sob a forma de ações interiorizadas, isto é, de operações do pensamento.5

Ora, se a coisa é evidente no caso do pensamento matemático, mais real ainda se apresenta no caso do pensamento lógico e da linguagem corrente, do duplo ponto de vista da análise logística e da análise psicológica. É assim que duas classes podem ser adicionadas como dois números. Na proposição: “Os vertebrados e os invertebrados são todos os animais”, a palavra “c” (ou o sinal logístico +) representa uma ação de reunir que pode ser efetuada materialmente, na classificação de um conjunto de objetos, mas que o pensamento pode também efetuar mentalmente. Pode-se também classificar sob vários pontos de vista ao mesmo tempo, como numa tabela de coluna dupla, e essa operação (que a logística chama de multiplicação

5 Esse caráter ativo do raciocínio matemático foi bem observado por Goblot em seu Traité de Logique: “deduzir”, dizia ele, “é construir”. Mas a construção operatória lhe parecia regulada simplesmente pelas “proposições anteriormente admitidas% ao passo que a regulagem das operaçõ es lhes é imanente e constituída por sua capacidade de composições reversíveis, em outras palavras, por sua natureza de “grupos”.

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lógica: sinal X) é tão natural ao espírito que o psicólogo Spearman, fez dela, sob o nome de “educação dos correlatos”, uma das características do ato inteligente: “Paris está para a França como Londres está para a Inglaterra.” Podem-se seriar relações: A < B; B < C, e essa dupla relação, que permite concluir que C é maior que A, é a reproclução em pensamento da ação que se poderia efetuar materialmente alinhando-se três objetos segundo suas grandezas crescentes. Pode-se, igualmente, ordenar segundo várias relações ao mesmo tempo, e recaímos em outra forma de multiplicação lógica ou de correlação, etc.

Se encararmos agora os termos como tais, isto é, os chamados elementos do pensamento, conceitos de classes ou relações, veremos neles o mesmo caráter operatório que os existentes em suas combinações. Um conceito de classe, uo pokfito de vista psicológico, nada mais é que a expr,@ssão da identidade de reação do sujeito para com objetos que ele reúne numa classe: logicamente, essa assimilação ativa se traduz pela equivalência qualitativa de todos os elementos da classe. Do mesmo modo, uma relação assimétrica (-íz pesado ou grande) exprime as diversas intensidades da ação, isto, é, as diferenças em contraposição às equivalências, e se traduz logicamente pelas estruturas seriais.

Em resumo, o carãter essencial do pensamento lógico é de ser operatório, isto é, de estender a ação ao interiorizá-la. Quanto a isso, juntar-se-ão os pontos de vista das mais diversas correntes, desde as teorias empíricas e pragmatistas que se limitam a essa afirmação elementar atribuindo ao pensamento a forma de uma “experiência mental” (Mach, Rignano, Chaslin), até as interpretações de inspiração apriorista (Delacroix). Além do mais, essa hipótese concorda com as esquematizações logísticas, quando se limitam a constituir uma técnica e nã o se estendam numa filosofia que negue a existência das mesmas operações que elas utilizam sem cessar na realidade.

E isso não é tudo, porque a operação não se reduz. a uma ativídade qualquer, e, se o ato operatório decorre do ato efetivo, a distância a percorrer continua considerável entre os dois, conforme veremos em pormenor ao examinar o desenvolvimento da inteligência (Caps. 4 e 5). A operação racional não pode ser comparada a uma atividade simples, salvo sob condição de a encarar em estado isolado; mas é precisamente o erro fundamental das

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teorias empiristas da “experiência, mental” a especulação sobre a operação isolada: uma operação única não pode ser chamada de operação, visto que permanece em estado de simples representação intuitiva. A natureza específica das operações, comparadas às ações empíricas, decorre do fato de que jamais existem em estado descontínuo. É por uma abstração totalmente ilegítima que se fala de “uma” operação: uma única operação não poderia ser operação, visto que o peculiar das operações é constituírem sistemas. Neste ponto, impõe-se reagir com energia contra o atomismo lógico, cujo esquema pesou duramente sobre a psicologia do pensamento. Para captar o caráter operatório do pensamento racional, é preciso atingir os sistemas como tais, e se os esquemas lógicos comuns lhe mascaram a existência, é necessário elaborar uma lógica das totalidades.

É desse modo, para começar com o caso mais simples, que tanto a psicologia quanto a lógica clássicas falam do conceito enquanto elemento do pensamento. Ora, uma4íclasse” não poderia existir por si mesma, e isso independentemente do fato de que sua definição recorre a outros co;nceitos. Na medida em que instrumento do pensamento real, e com abstração de sua definição lógica, ela não passa de elemento “estruturado% e não 11estruturante”, ou pelo menos ela é já estruturada na medida em que estruturante: ela só tem realidade em função de todos os elementos aos quais se opõe ou nos quais estiver encaixada (ou que encaixe ela mesma). “Classe” supõe “classificação”, e o fato primeiro é constituído por esta última, porque são as operações de classificação que engendram as classes particulares. Independentemente de classificação de conjunto, o termo genérico não designa uma classe, mas uma coleção intuitiva.

Do mesmo modo, uma relação assimétrica transitiva, como A<B, não existe como relação (mas apenas na medida em que relação perceptiva, ou intuitiva) sem a possibilidade de construir toda uma seqüência de outras relações seriadas tais como A<B<C<... E quando dizemos que ela só existe como relação, é preciso tomar essa afirmação no sentido mais concreto do termo, porque, como veremos (Cap. 5), a criança não é rigorosamente capaz de pensar por relações antes de saber seriar. A “seriação” é pois a realidade primeira, da qual uma relação assimétrica

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qualquer é apenas um elemento momentaneamente abstrato.

Outros exemplos: um “correlato” no sentido que lhe dá Spearman (o cão está para o lobo assim como o gato está para o tigre) só tem sentido em função de uma tabela de dupla entrada. Uma relação de parentesco (irmão, tio, etc.) refere-se ao conjunto constituído por uma árvore genealõgica, etc. Será necessário lembrar que um número inteiro só existe psicológica como logicamente (malgrado Russe11) a título de elemento da própria seqüência dos números (engendrada pela operação + 1)? Que uma relação espacial pressupõe todo um espaço? Que uma relação temporal implica a compreensão do tempo a título de esquema único? E, noutro terreno, será necessário insistir no fato de que um valor só vale em função de uma “escala” completa de valores, momentânea ou estável?

Em suma, em qualquer domínio do pensamento constituído (em contraste precisamente com os estados de desequilíbrio que caracterizam a sua gênese), a realidade psicológica consiste de sistemas operatórios de conjunto e não de operações isoladas concebidas a título de elementos anteriores a esses sistemas: é pois apenas enquanto ações ou representações intuitivas se organizam em tais sistemas que elas adquirem (e o adquirem por isso mesmo) a natureza de “operações”. 0 problema essencial da psicologia do pensamento é, então, o de extrair as leis de equilíbrio desses sistemas, assim como o problema central de uma lógica que pretendesse ser adequada ao trabalho real do espírito parece-nos ser o de formular as leis dessas totalidades como tais.

Ora, a análise de ordem matemática há muito descobriu essa interdependência das operações que constituem certos sistemas bem definidos: a noção de “grupo” que se aplica à série de números inteiros, às estruturas espaciais, temporais, às operações algébricas, etc. tornou-se, assim, noção central na própria ordenação do pensamento matemático. No caso dos sistemas qualitativos próprios do pensamento simplesmente lógico, tais como as classificações simples, as tabelas de dupla entrada, as seriações de relações, as árvores genealógicas, etc., chamaremos de <ígrupamentos” os sistemas de conjunto correspondentes. Do ponto de vista psicológico, o “grupamento” consiste de certa forma de equilíbrio das operações, portanto, de

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ações interiorizadas e organizadas em estruturas de conjunto, e o problema é de caracterizar esse equilíbrio, ao mesmo tempo em relação aos diversos níveis genéticos, que o preparam e em oposição às formas de equilíbrio próprias a outras funções que não a inteligência (as “estruturas” perceptivas ou motoras, etc.). Do ponto de vista logístico, o “grupamento” apresenta uma estrutura bem definida (parente da estrutura do grupo, mas diferindo dela em alguns pontos essenciais), e que exprime uma sucessão de distinções dicotômicas: suas normas operatórias constituem, pois, precisamente essa lógica das totalidades que traduz num esquema axiomático ou formal o trabalho efetivo do espírito, no nível operatório de seu desenvolvimento, isto é, em sua forma de equilíbrio final.

A significação funcional e a estrutura dos “grupamentos”

Comecemos por relacionar ligeiramente as reflexões que precedem ao que aprendemos da “psicologia do pensamento”. De acordo com Selz, a solução de um problema pressupõe, em primeiro lugar, um “esquema antecipador”, que relaciona o objetivo a atingir com um “complexo” de noções, em relação ao qual ele cria uma lacuna; depois, em segundo lugar, o “preenchimento” desse esquema antecipador por meio de conceitos e de relações que vêm completar o “complexo”, ordenando-se segundo as leis da lógica. Daí uma série de questões: quais são as leis de organização do complexo total? Qual a natureza do esquema antecipador? Poder-se-á suprimir o dualismo que parece subsistir entre a formação do esquema antecipador e o pormenor dos prcícessos que determinam seu preenchimento?

Tomemos como exemplo uma interessante experiência feita por nosso colaborador André Rey: num quadrado de alguns centímetros, desenhado numa folha de papel também quadrado (de 19 a 15 em de lado), pede-se à pessoa que desenhe o menor quadrado possível a lápis, bem como c maior quadrado possível de representar-se na referida folha. Ora, enquanto os adultos (e as crianças desde7/8 anos) conseguem, sem dificuldade, fazer um quadrado de 1 a 2 em de lado, assim como um quadrado margeando de perto as bordas do papel, as crianças de menos

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de 6 a 7 anos só conseguem, a princípio, desenhar quadrados ou um pouco menores ou um pouco maiores que o modelo, procedendo depois por tentativas sucessivas, e, não raro, sem êxito, como se não antecipassem em momento algum as soluções finais. Nesse caso, percebe-se imediatamente a intervenção de um “grupamento'1 de relações assimétricas (A<B<C... ), presente nos adultos e que parece ausente abaixo dos sete anos: o quadrado percebido está situado em pensamento numa série de quadrados virtuais cada vez maiores e cada vez menores em relação ao primeiro. Pode-se então admitir: LI, que o esquema antecipador é o próprio esquema de grupamento, isto é, a consciência da sucessão ordenada das oprações possíveis; 2.o, que o preenchimento do esquema é a simples execução dessas operações; 3.0 que a organização do “complexo” das noções prévias tem a ver com as próprias leis do grupamento. Se essa solução fosse geral, a noção de grupamentos introduziria, assim, a unidade entre o si,,>tema anterior de noções, o esquema antecipador e seu preenchimento controlado.

Pensemos agora no conjunto de problemas concretos que o espírito em movimento apresenta sempre: Que é isso? Isso é mais ou menos (pesado, distante, etc.)? Onde? Quando? Por quê, Em que sentido? Quanto? etc. etc. Verificamos que cada uma dessas questões é necessariamente função de um “grupamentoll ou de um “grupo” prévios: cada indivíduo está de posse de classificações, seriações, sistemas de explicação, um espaço e uma cronologia pessoais, uma escala de valores, etc., assim como do espaço e do tempo matemáticos, seqüências numéricas. Ora, esses grupamentos e esses grupos não surgem a propósito da questão feita, mas duram toda a vida: desde a infância, nós classificamos, comparamos (diferenças ou equivalências), ordenamos no espaço e no tempo, explicamos, avaliamos nossos objetivos e meios, contamos, etc. e é relativamente a esses sistemas de conjunto que os problemas se colocam, na exata medida em que surgem novos fatos, que não estã o ainda classificados, seriados, etc. A questão que orienta o esquema antecipador procede, pois, do grupamento prévio, e o esquema antecipador em si nada mais é que a direção impressa ao pensamento pela estrutura desse grupamento. Assim cada problema, tanto no que se refere à hipótese antecipadora da solução quanto ao controle pormenorizado desta, consiste

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tão-somente de um sistema especial de operações a efetuar no seio do grupamento total correspondente. Para encontrar seu caminho, não é necessário. reconstruir todo o espaço, mas simplesmente completar o preenchimento em determinado setor. Para prever um acontecimento, consertar a bicicleta, fazer seu orçamento ou elaborar seu programa de atividades, não é necessário refazer toda a causalidade e o tempo, nem f azer a revisão de todos os valores aceitos, etc.: a solução a encontrar apenas prolonga e completa as relações já grupadas, prontas a corrigir o grupamento no caso de erros de pormenor e sobretudo para subdividir e diferenciar, mas sem construir tudo de novo. Quanto à verificação, ela só é possível de acordo com as regras do próprio grupamento: pelo acordo das relações novas com o sistema anterior.

0 fato notável, nessa assimilação contínua do real à inteligência, é, de fato, o equilíbrio dos quadros assimiladores constituídos pelo grupamento. Durante toda a sua formação, o pensamento acha-se em desequilíbrio ou em estado de equilíbrio instável: toda nova aquisição modifica as noções anteriores ou ameaça ensejar a contradição. Pelo contrário, a partir do nível operatório, os quadros classificatórios e seriais espaciais e temporais, etc., elaborados aos poucos, vêm a incorporar, sem dificuldades, novos elementos: o recipiente especial para encontrar, completar ou grupar todas as peças não abala a solidez do todo, mas se harmoniza com o conjunto. É desse modo, para tomar o exemplo mais característico desse equilíbrio dos conceitos, que uma ciência exata, não obstante todas as “crises” e reformulações de que se gaba para provar sua validade, vem a ser nada menos que um corpo de noções cujo pormenor das relações se conserva, e se fecha, ao ensejo de cada acréscimo de fatos ou princípios, porque os novos princípios, por mais revolucionários que sejam, mantêm os antigos a título de primeiras aproximações relativas a uma escala dada: a criação continuada e imprevisível de que a ciência dá provas integra a si, pois, incessantemente, o seu próprio passado. Deparamo-nos com o mesmo problema, porém em escala menor, no pensamento de todo homem normal.

Mais que isso, o equilíbrio dos grupamentos é essencialmente móvel comparado ao equilíbrio parcial das estruturas perceptivas ou motoras: como as operações se constituem de atividades, o equilíbrio do pensamento ope-

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ratórío não significa de modo algum o repouso, mas, pelo contrário, um sistema de trocas que se equilibram, um sistema de transformações incessantemente compensadas por outras. É o equilíbrio de uma polifonia, e nã o de um sistema de massas inertes, e nada tem a ver com a falsa estabilidade que resulta, às vezes, do retardamento do esforço intelectual que advém com a idade.

Trata-se, por conseguinte, e nisso consiste todo o problema do grupamento, de determinar as condições desse equilíbrio, a fim de poder-se depois procurar, geneticamente, como ele se constitui. Ora, essas condições podem ser imediatamente descobertas pela observação e pelas experiências psicológicas e formuladas segundo o gênerc> de rigor que um esquema axioniãtico comporte. Elas constituem desse modo, sob a perspectiva psicológica, os fatores de ordem causal que explicam o mecanismo da inteligência, ao mesmo tempo que sua esquematização logística fornece as regras da lógica das totalidades.

São quatro essas condições no caso dos “grupos” de ordem matemática, e cinco no caso dos “grupamentos” de ordem qualitativa.

1.0 - Dois elementos quaisquer de um grupamento podem ser compostos entre si e engendram, assim, um novo elemento do mesmo grupamento: duas classes distintas podem ser reunidas numa classe de conjunto que as encerre; duas relações A<B e B<C podem ser juntadas numa relação A<C que as contenha, etc. Do ponto de vista psicológico, essa primeira condição exprime pois a coordenação possível das operações.

2.0 - Toda transformação é reversível. É desse modo que as duas classes ou as duas relações reunidas num momento podem ser de novo dissociadas e que, no pensamento matemático, cada operação direta de um grupo comporta certa operação inversa (subtração por adição, divisão por multiplicação, etc.). Essa reversibilidade é, sem dúvida, o aspecto mais específico da inteligência, porque, se a motricidade e a percepção gozam da possibilidade de compor-se, por outro lado permanecem irreversíveis. Um hábito motor tem sentido único, e aprender a efetuar movimentos noutro sentido consiste em adquirir novo hábito. Uma percepção é irreversível dado que, ao ensejo de cada aparecimento de um novo elemento objetivo no campo perceptivo, há “deslocamento, do equilíbrio”, e que, se restabeleemos objetivamente a situação inicial

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a percepção é modificada por estados intermediários. A inteligência, pelo contrário, pode elaborar hipóteses e depois afastá-las para voltar ao ponto de partida. Pode percorrer um caminho e fazer o caminho inverso sem modificar as noções utilizadas. Ora, o pensamento da criança é, precisamente, como o veremos no Capítulo 5, tanto mais irreversível quanto o sujeito seja mais jovem, e mais próximo dos esquemas percepto-motores, ou intuitivos, da inteligência inicial: por conseguinte, a reversibilidade caxecteriza não apenas os estados finais de equilíbrio, mas tambem os proprios processos evolutivos.

3.o - A composiçáo das operações é “associativa” (no sentido lógico do termo), isto é, o pensamento continua ,sempre livre para fazer desvios, e um resultado obtido por duas vias diferentes continua o mesmo nos dois casos. Esse aspecto parece igualmente próprio da inteligência: tanto a percepção como a motricidade gozam apenas de itinerários específicos, dado que o hábito é estereotipado e que, na percepção, dois itinerários distintos chegam a resultados diferentes (por exemplo, uma mesma temperatura percebida em termos distintos de comparação não parece a mesma). 0 aparecimento do desvio é característico da inteligência sensório-motora, e quanto mais o pensamento é ativo e móvel, tanto mais os desvios ,desempenham nela uma função; mas apenas num sistema jem equilíbrio permanente deixam invariante o termo final do pensamento.

4.0 - Uma operação combinada com seu inverso é anulada (por exemplo + 1 - 1 = 0 ou X 5 : 5 = X 1). Nas formas iniciais do pensamento da criança, pelo contrário, o retorno ao ponto de partida não se acompanha de ,conservação deste: por exemplo, após haver formulado uma hipótese a seguir rejeitada, a criança não encontra intatos os dados pela nípótese, embora essa tenha sido afastada.

5.0 - No domínio dos números, uma unidade acrescentada a si mesma enseja novo número, por aplicação da composição (1) : há interação. Pelo contrário, um elemento qualitativo repetido não se transforma: dá-se então “ tautologia”: A + A = A.

Se exprimirmos essas cinco condições do grupamento num esquema logístico, chegamos então às simples fórmulas seguintes: 1.0 ICOMPosição: x + x’ = v; y + Y’ = z, etc. 2.0 - Reversibilidade:

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x = x’ ou y x’ = x. 3.0 - Associatividade: (x + x’) + y’ = =X = (x’ + :y’) (z). 4.0 - Operação idêntica geral: x - x = 0; y - y = 0, etc. 5.0 - Tautologia ou idênticos especiais: x + x = x; y + y = y, etc. Torna-se evidente que um cálculo das transformações. vem a ser possível, mas precisa, por causa da presença de tautologias, de certo número de regras em cujo pormenor não nos podemos estender aqui (Veja-se nosso livro Classes, Relações e Números.)

Classificação dos “grupamentos” e das operações fundamentais do pensamento

0 estudo do andamento do pensamento em evolução, na criança, leva a reconhecer não apenas a existência dos grupamentos, mas também suas conexões mútuas, isto é> as relações que permitem classificá-lo e fazer o seu cadastro. A existência psicológica de um grupamento se reconhece facilmente, com efeito, nas operações explícitas de que uma pessoa é capaz. Há mais, porém: na medida em que não haja grupamento, não poderá haver conservação dos conjuntos ou totalidades, ao passo que o aparecimento de um grupamento é atestado pelo aparecimento de um princípio de conservação. Por exemplo, o sujeito capaz de um raciocínio operatório com estrutura de grupamento estará de antemão certo de que um todo se conservarã independentemente do arranjo de suas partes, ao passo que o conteste antes. Estudaremos no Capítulo [’> a formação dos princípios de conservação para mostrar a função do grupamento no desenvolvimento da razão. Mas para a clareza da exposição era necessário descrever primeiro os estados de equilíbrio finais do pensamento, de molde a examinar depois os fatores genéticos suscetíveis de explicar a constituição deles. Sob o risco de uma enumeração um tanto abstrata e esquemãtica, vamos assim completar as reflexões precedentes pela relação dos principais grupamentos, ficando claro que esse quadro representa tão-somente a estrutura terminal da inteligência, e que permanece inteiro o problema de compreender sua formação.

1. Um primeiro sistema de grupamentos é constituído pelas operações chamadas lógicas, isto é, aquelas operaçõ es que partem dos elementos individuais considerados como invariantes, e se limitam a classificá-los, seriá-los, etc.

1. 0 grupamento lógico mais simples é o da classificação ou arranjo hierárquico das classes. Ele repousa

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numa primeira operação fundamental: a reunião dos indivíduos em classes, e das classes entre si. 0 modelo acabado é constituído pelas classificações zoológicas ou botânicas, mas toda classificação qualificativa procede segundo o mesmo esquema dicotômico:

Suponhamos uma espécie A que faça parte de um gênero B, de uma família C, etc. 0 gênero B conterá outras espécies diferentes de A: vamos chamá-las de A’ (donde A’ = B - A). A família C conterá outros gêneros diferentes de B; vamos chamá-los de BI (donde BI = C - B), etc. Tem-se então a composição: A + A’ = 13; B + BI = C; C + C’ = D, etc.; a reversibilidade B A’ = A, etc.; a associatividade (A + AI) + BI = A + (A’ + BI) C, etc. e todos @os demais caracteres do grupamento. Esse primeiro grupamento é que engendra o silogismo clássico.

2. Um segundo grupamento elementar põe em atividade uma operação que consiste não mais em reunir entre si os indivíduos considerados como equivalentes (como em 1), mas em ligar as relações assimétricas que exprimem suas diferenças. A reunião dessas diferenças supõe, então, uma ordem de sucessão, e o grupamento constitui, portanto, uma “seriação qualitativa”:

Chamemos de a a relação 0 < A; b a relação 0 < 13; e a relação0 < C. Pode-se, então, chamar de a’ a relação A < B; bI a relação B < C, etc. e se tem o grupamento: a + a’ = b; b + V = e, etc. A operação inversa é a subtração de uma relação, o que equivale à adição de sua contrária. 0 grupamento é paralelo ao precedente, com a única diferença de que a operação de adição implica uma ordem de sucessão (e não é, pois, comutativa) ; é nessa transitividade própria a essa seriação que se funda o raciocínio A < B; B < C; logo, A < C.

3. Uma terceira operação fundamental é a de substituição, fundamento da equivalência que reúne os diversos indivíduos de uma classe, ou as diversas classes simples reunidas numa classe composta:

Com efeito, entre dois elementos A, e A, de uma mesma classe Bi não há igualdade como entre unidades matemáticas. Há simplesmente equivalência qualitativa, isto é, substituição possível, mas na medida em que se substitui também A’,, isto é, os “demais” elementos em relação a A, os A21 isto é, os “demais” elementos em. relação a A2. Daí o grupamento: Ai + A’, = A2 + A'2 (= B) ; B, + W, = B2 + W,

C), etc.

Ora, traduzidas em relações, as operações precedentes engendram a reciprocidade própria das relações simétricas.

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A NATUREZA DA INTELIGÊNCIA 53

Com efeito, estas não passam das relações que unem entre si os elementos de uma mesma classe; portanto, relações de equivalência (em oposição às relações assimétricas que assinalam a diferença). As relações simétricas (por exemplo: irmão, primo-irmão, etc.) grupam-se, por conseguinte, segundo o modelo do grupamento precedente, mas a operação inversa é idêntica à operação direta, o que vem a ser a própria definição da simetria: (Y _= Z) (Z = Y).

Os quatro grupamentos precedentes são de ordem aditiva; dois deles (1 e 3) referem-se a classes, e os dois outros às relações. Existem, ademais, quatro outros grupamentos com base em operações multiplicativas, isto é , que englobam mais de um sistema de classes ou relações ao mesmo tempo. Esses grupamentos correspondem, termo a termo, aos quatro precedentes:

5. Pode-se, em primeiro lugar, dadas duas séries de clases, emparelhadas AI B, C, . . . e A2 B2 C1 . . . distribuir os indivíduos segundo as duas séries ao mesmo tempo: é o processo das tabelas de dupla entrada. Ora, a “multiplicação das classes” que constitui a operação própria a esse gênero de grupamento desempenha um papel essencial no mecanismo da inteligência; essa operação é que Spearman descreveu em termos psicológicos sob o nome de “educação dos correlatos”.

A operação direta é, para as duas classes Bi e B2, o produto Bi X B2 = BIB, (= A1A2 + A1A1, + A'jA, + A'jA'2). A operação inversa é a divisão lógica B1B2: B2 = B1, o que corresponde à “abstração” (B.B2 “abstração feita de B2 é B,”).

6. Pode-se, inclusive, multiplicar entre si duas séries de relações, isto é, encontrar todas as relações existentes entre objetos seriados segundo duas espécies de relações ao mesmo tempo. 0 caso mais simples nada mais é que a “correspondência biunívoca” qualitativa.

7 e 8. Pode-se, enfim, grupar os indivíduos, não segundo o prmcipio das tabelas de dupla entrada como nos dois casos precedentes, mas fazendo corresponder um termo a vários, como um pai a seus filhos. 0 grupamento assume assim a forma de uma árvore genealógica e se exprime ou em classes (7) ou em relações (8), sendo estas últimas, então, assimétricas segundo uma das duas

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dimensões (pai, etc.) e simétricas segundo a outra (irmão, etc.).

Obtêm-se, assim, segundo as combinações mais simples, oito grupamentos lógicos fundamentais, sendo uns aditivos (1-4), os outros multiplicativos (5-8), uns referinda-se a classes e outros a relações, e uns deslocando-se em seriações, emparelhamentos ou correspondências simples (1,2 e 5,6), os demais em reciprocidades e correspondências do tipo, de um a vários (3, 4 e 7, 8). Donde2 x 2 x 2 = 8 possibilidades ao todo.

Observemos, ainda, que a melhor prova do caráter natural das totalidades constituídas por esses grupamentos de operações é que ele basta para fundir entre si os grupamentos do emparelhamento simples das classes (1) e da seriação (2) para obter não mais um grupamento qualitativo, mas o “grupo” constituído pela seqüência dos números inteiros positivos e negativos. Com efeito, reunir os indivíduos em classes consiste em considerá-los como equivalentes, ao passo que seriá-los segundo uma relação assímétrica qualquer exprime suas diferenças. Ora, considerando-se as qualidades dos objetos, não se poderia grupá-los simultaneamente como equivalentes e diferentes no mesmo momento. Mas se fizermos abstração das qualidades, tornamo-los por isso mesmo equivalentes entre si e seriáveis segundo uma ordem qualquer de enumeração: transformamo-los, pois, em “unidades” ordenadas, e a operação aditiva constítutíva do número inteiro consiste precisamente nisso. Igualmente, ao fundir os grupamentos multiplicativos de classes (5) e de relações (6), obtemos o grupo multiplicativo dos números positivos (inteiros e fracionários).

II. Os diferentes sistemas precedentes não esgotam todas as operações elementares da inteligência. Esta não se limita, com efeito, a operar sobre os objetos, para os reunir em classes, seriã-los ou enumerá-los. Sua atividade recai igualmente na construção do objeto como tal e, como veremos (Cap. 4), essa obra é nutrida desde inclusive as inteligências sensõrio-motoras. Decompor o objeto e o recompor constitui, asim, o trabalho próprio de um segundo conjunto de grupamentos, cujas operações fundamentais podem portanto ser chamadas “infralógicas”, visto que as operações lógicas combinam os objetos considerados como invariantes. Essas operações infralógicas têm im-

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portãneia tão grande quanto as operações lógicas, porque são constitutivas das noções de espaço e tempo, cuja elaboração ocupa quase toda a infância. Contudo, ainda que bem distintas das operações lógicas, elas lhes são exatamente paralelas. A questão das relações de desenvolvimento entre esses dois conjuntos operatórios constitui assim um dos mais interessantes dos problemas relativos ao desenvolvimento da inteligência:

1. Ao emparelhamento das classes corresponde o das partes reunidas.. em totalidades hierárquicas, cujo termo final é o objeto inteiro (seja em que escala for, inclusive o próprio universo espaço-temporal). ]@ o primeiro grupamento de adição partitiva que permite ao espírito conceber a composição atomística anterior a qualquer experiência propriamente científica.

2. A seriação das relações assimétricas correspondem as operações de posicionamento (ordem espacial ou temporal) e de deslocamento qualitativo (simples mudan-4ça de ordem, independentemente da medida).

3-4. As substituições e as relações simétricas espaçotemporais correspondem às substituições e às simetrias lógicas.

5-8. As operações multiplicativas combinam simplesmente as precedentes segundo vários sistemas ou dimensõ es.

Ora, assim como as operações numéricas podem ser consideradas como exprimindo uma simples fusão dos grupamentos de classes e de relações assimétricas, do mesmo modo as operações de medida traduzem a reunião num só todo das operações de partição e deslocamento.

III. Podem-se encontrar as mesmas repartições quanto às operações referentes aos valores, isto é, exprimindo as relações de meios e fins que desempenham papel essencial na inteligência prática (e cuja quantificação traduz o valor econõmico).

IV. Finalmente, o conjunto desses três sistemas de operações (I a III) pode traduzir-se sob forma de simples proposições, donde uma lógica das proposições na base de implicações e incompatibilidades entre funções proporcionais: é o que constitui a lógica, no sentido habitual do termo, assim como as teorias hipotético-dedutivas próprias das matemáticas.

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Equílíbrio e gênese

PrGpusemo-nos, neste capítulo, encontrar uma ínterpretação do pensamento que não se choque com a lógica como contra um dado primeiro e inexplicável, mas que respeite o caráter de necessidade formal próprio da lógica axiomática, conservando ao mesmo tempo, na inteligência, a sua natureza psicológica essencialmente ativa e construtiva.

Ora, a existência dos grupamentos e a possibilidade de sua axiomatização rigorosa satisfazem a primeira dessas condições: a teoria dos grupamentos pode atingir o rigor formal, enquanto ordenando o conjunto dos elementos logísticos e das operações em totalidade comparáveis aos sistemas gerais de que se valem as matemáticas.

Por outro lado, do ponto de vista psicológico, sendo as operações atividades componíveis e reversíveis, mas ainda atividades, a continuidade entre o ato de inteligência e o conjunto dos processos adaptativos continua assim assegurada.

Mas com isso o problema da inteligência está apenas apresentado, e sua solução está ainda totalmente dependente de ser encontrada. Tudo o que a existência e descrição dos grupamentos nos ensinam é que, em certo nível, o pensamento atinge um estado de equilíbrio. Sem dúvida, eles nos informam sobre o que vem a ser este equilíbrio: um equilíbrio ao mesmo tempo móvel e permanente, tal como a estrutura das totalidades operatórias se conserva quando assimilam a si elementos novos. Sabemos, ainda, que esse equilíbrio móvel supõe a reversibilidade, o que é, de resto, a definição mesma de um estado de equilíbrio de acordo com os físicos (é segundo esse modelo físico real e não segundo a reversibilidade abstrata do esquema logístico que se deve conceber a reversibilidade dos mecanismos da inteligência constituída) . Mas nem a constatação desse estado de equilíbrio nem mesmo o enunciado de suas condições necessárias constituem ainda uma explicaçã o.

Explicar psicologicamente a inteligência consiste em historiar seu desenvolvimento, mostrando como este chega, necessariamente, ao equilíbrio descrito. Desse ponto de vista, o trabalho da psicologia é comparável ao da enibriologia, trabalho a princípio descritivo e que consiste em analisar as fases e os períodos da morfogênese

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A NATUREZA DA INTELIGÊNCIA 57

até o equilíbrio final constituído pela morfologia adulta, mas pensamento que se toma “causal” desde que os fatores que asseguram a passagem de um estágio ao seguinte são postos em evidência. Nossa tarefa é clara, portanto: trata-se agora de reconstituir a gênese ou as fases de formação da inteligência, até poder elucidar o nível operatório final cujas formas de equilíbrio acabamos de descrever. E, como não se reduz o superior ao inferior -

salvo sob condição de mutilar o superior ou enriquecer de antemão o inferior - a explicação genética só poderia consistir da demonstração de como, em cada novo degrau, o mecanismo dos fatores sob confronto e conducentes a um equilíbrio ainda incompleto leva ao nível seguinte mediante a própria operação de os equilibrar. É desse modo que, aos poucos, podemos esperar nos darmos conta da constituição paulatina do equilíbrio operatório sem a preformar desde o início ou a fazer surgir do nada durante o seu itinerário.

A explicação da inteligência equivale, pois, em resumo, a pôr as operações superiores em continuidade com o desenvolvimento, sendo este concebido como uma evolução dirigida pelas necessidades internas do equilíbrio. Ora, essa continuidade funcional alia-se muito bem à distinção das estruturas sucessivas. Como vimos, podemos representar a hierarquia das condutas, do reflexo e das percepções globais de início, como uma extensão progressiva das distâncias e uma complicação progressiva dos trajetos que caracterizam as trocas entre o organismo (sujeito) e o meio (objetos) : cada uma dessas extensões ou complicações representa, pois, uma nova estrutura, ao passo que sua sucessão está sujeita às necessidades de um equilíbrio que deve ser sempre mais móvel, em função da complexidade. 0 equilíbrio operatório realiza essas condições ao ensejo do máximo de distâncias possíveis (visto que a inteligência procura abranger o universo) e da complexidade dos trajetos (visto que a dedução é capaz dos maiores “desvios”): assim, deve-se conceber eses equilíbrio como o termo de uma evolução cujas fases ficam carentes de um histórico.

Desse modo, a organização das estruturas operatórias mergulha suas raizes muito aquém do pensamento refletido e até as fontes da própria atividade. E, devido a que as operações sejam grupadas em totalidades bem estruturadas, são todas as “estruturas” de nível inferior, perceptivas e

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motoras às quais se trata de as comparar. 0 caminho a seguir está pois inteiramente delineado: analisar as relaçõ es da inteligência com a percepção (Cap. 3), com o hábito motor (Cap. 4). Em seguida, estudar a formação das operações no pensamento da criança (Cap. 5) e sua socialização (Cap. 6). Só então a estrutura de “grupamento” que caracteriza a lógica viva em atuação revelará sua verdadeira natureza, seja inata, seja empírica e simplesmente imposta pelo meio, seja, enfim, expressão das trocas sempre mais numerosas e complexas entre o sujeito e os objetos: trocas de inicio incompletas, instáveis e irreversíveis, mas que adquirem, aos poucos, pelas próprias necessidades do equilíbrio a que estão adstritas, a forma de composição reversível própria do grupamento.

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SEGUNDA PARTE

A INTELIGÊNCIA

E AS FUNÇõES, SENSóRIO-MOTORAS

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3

A Inteligência

e a Percepção

A percepção é o conhecimento que adquirimos dos objetos, ou de seus movimentos, pelo contato direto e atua4 ao passo que a inteligência é um conhecimento subsistente quando intervêm os desvios e aumentam as distâncias espaço-temporais entre o sujeito e os objetos. Poderia, portanto, acontecer que as estruturas intelectuais, e sobretudo os grupamentos operatórios que caracterizam o equilíbrio final do desenvolvimento da inteligência, preexistissem no todo ou em parte desde o início, sob a fon-na de organizações comuns à percepção e ao pensamento. Essa é, em particular, a idéia central da “Teoria da Forma” que, se por um lado despreza a noção de grupamento reversivel, por outro descreveu as leis de estruturação de conjunto que regem simultaneamente, segundo ela, tanto a percepção, a motricidade e as funções elementares como o próprio raciocínio e em especial o silogismo (WertheiMer). É, pois, indispensável que partamos das estruturas percepetivas, para examinar se não seria possível extrair delas uma explicação de todo o pensamento, inclusive dos grupamentos como tais.

Histórico

Na história da Psicologia, desde o início foi sustentada por alguns autores a hipótese de uma relação estreita entre a percepção e a inteligência, hipõtese afastada por

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outros também desde o início. Só mencionaremos aqui os autores de estudos experimentais, em oposição aos numerosos filósofos que se limitaram a “refletir” sobre o assunto. Exporemos também o ponto de vista dos experimentadores que pretenderam explicar a percepção mediante intervenção da inteligência, assim como dos que procuram deduzir esta daquela.

Sem dúvida, foi Helmholtz quem primeiro formulou o problema das relações entre as estruturas perceptivas e as estruturas operatórias, sob a forma moderna. Sabe-se que a percepção visual é suscetível de atingir certas “constâncias% que suscitaram e continuam sempre suscitando uma série de trabalhos: uma grandeza é percebida quase corretamente em profundidade, não obstante o encurtamento notável da imagem retiniana e a diminuição perspectiva; uma forma é percebida não obstante as inversões; uma cor é percebida e discernida tanto na sombra como em plena luz, etc. Ora, Helrnholtz procurava explicar essas constãneias perceptivas pela intervenção de um “raciocínio inconsciente% que viria corrigir a sensação imediata apoiando-se nos conhecimentos adquiridos. Quando se recordam as preocupações de Helmho?'z quanto à formação da noção de espaço, imagina-se bem como essa hipótese devia ter uma significação determinada em seu pensamento, e Cassirer supôs (ele mesmo retomando a idéia por sua conta) que o grande fisiologista, físico e geômetra procurava explicar constâncias perceptivas mediante uma espécie de “grupo” geométrico imanente a essa inteligência inconsciente em atuação na percepção. Ora, a coisa é de grande interesse para o confronto, que empreendemos aqui, dos mecanismos intelectuais e perceptivos. De fato, as íteonstãneias” perceptivas são comparáveis, no plano sensório-motor, ao que são as diversas noções de “conservação”, que caracterizam as primeiras conquistas da inteligência (conservação dos conjuntos, da substância, do p-so, do volume, etc., ao ensejo de deformações intuitivas) : ora, essas noções de conservação, sendo sempre devidas à intervenção de um “grupamento” ou de um “grupo” de operações, se as constâncias visuais fossem por sua vez atribuíveis a um raciocínio inconsciente em forma de “grupo”, haveria assim continuidade estrutural direta entre a percepção e a inteligência.

Só Hering já respondia a Helmholtz quanto a que a intervenção do conheci@nento intelectual não modifica uma

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A INTELIGÊNCIA E As FUNÇõES SENSóRIO-MOTORAS 63

percepção: tem-se perceptivelmente a mesma ilusão de ótica, ou de peso, etc., quando se conhecem os valores objetivos dos dados percebidos, Disso ele conclui, assim, que o raciocínio não intervém, absolutamente, na percepção, e que as “constâncias” são devidas a puras regulações fisiológicas.

Mas tanto Helniholtz como Hering acreditavam na existência de sensações anteriores à percepção e então concebiam a “constância” perceptiva como uma correção das sensações, atribuindo-lhes, pois, um à inteligência, e o outro aos mecanismos nervosos. 0 problema renovou-se depois que Von EhrenfeIs descobriu, em 1891, as qualidades, perceptivas de conjunto (Gestalqualitãten), tais como as de uma melodia reconhecível não obstante transposição para tonalidade diferente da partitura (portanto, nenhuma sensação elementar podendo continuar a mesma). Ora, dessa descoberta surgiram duas escolas: uma continuando Helmholtz em seu recurso à inteligência, e a outra acompanhando Rering na sua negação do papel da inteligência. A “Escola de Gratz”, com efeito (Meinong, Benussi, e outros), continua acreditando nas sensações e interpreta então a qualidade de conjunto como o produto de uma síntese: sendo esta síntese transportável, é concebida como devida à inteligência em si. Meinong foi ao ponto de elaborar, sobre essa interpretação, toda uma teoria do pensamento, calcada na idéia de totalidade (sendo que os “objetos coletivos” asseguram a ligação do perceptivo com o conceitual). A “Escola de Berlim”, pelo contrário, que está no ponto de partida da “Psicologia da Forma”, inverteu as posições: as sensações não mais existem para ela a título de elementos anteriores à percepção ou independentes dela (trata-se de “conteúdos estruturados” e não mais í4estruturantes”), e a forma total, cuja noção é então generalizada para toda percepção, não mais é concebida como resultado de uma síntese, mas, isto sim, como fato primitivo, de produção inconsciente e de natureza tanto fisiológica como psicológica: essas “formas” (Gestalt) encontram-se inclusive em todos os estágios da hierarquia mental, e pode-se pois esperar, segundo a Escola de Berlim, uma explicação da inteligência a partir das estruturas perceptivas, em vez de fazer intervir, de maneira incompreensível, o raciocínio na percepção como tal.

Na seqüência das pesquisas, uma escola chamada da GeIstalkreis (von Weizsãcker, Auesperg e outros) tentou

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ampliar a idéia de estrutura de conjunto, nela englobando desde o início a percepção e o movimento concebidos como necessariamente solidários: a percepção suporia, então, a intervenção de antecipações e de reconstituições motoras, que, sem implicar a inteligência, no entanto a anunciam. Pode-se, portanto, considerar essa corrente como renovando a tradição helmholtziana, ao passo que outros trabalhos contemporâneos permanecem fiéis à inspiração de Rering de uma interpretação. da percepção pela fisiologia pura (Piérc>n e outros).

A Teoria da Forma e sua interpretação da inteligência

Menção especial deve ser feita do ponto de vista da Forma, não somente porque essa escola renovou a posição de grande número de problemas, mas sobretudo porque ofexeceu uma teoria completa da inteligência, que continuará mesmo para seus adversários, como modelo de interpretação psicológica coerente.

A idéia central da Teoria da Forma é que os sistemas mentais jamais se constituíram pela síntese ou associação de elementos dados no estado isolado antes de sua reunião, mas consistem sempre de totalidades organizadas desde o início sob uma “forma” ou estrutura de conjunto. Assim -é que uma percepção não é a síntese de sensações prévias: ela é regida em todos os níveis por um “campo” cujos elementos são interdependentes pelo próprio fato de que são percebidos juntos. Por exemplo, um único ponto negro visto numa grande folha de papel não poderia ser percebido como elemento isolado, por mais só que esteja, visto que se destaca a título de “figura” sobre um “fundo” constituído pelo papel, e que essa relação figura e fundo supõe a organização do campo visual inteiro. Isso é tanto mais verdadeiro quanto se poderia, a rigor, perceber a folha como o objeto (a “figura”) e o ponto negro como um furo, isto é, como a única parte visível do “fundo”. Por que se prefere, então, o primeiro modo de percepção? E por que, se em vez de um único ponto vêem-se três ou quatro bastante próximos, é impossível deixar de reuni-los em formas virtuais de triângulos ou de quadriláteros? É que os elementos percebidos num mesmo campo são imediatamente ligados em estruturas de conjunto sujeitas a leis precisas, que são as 9eis de organização”.

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Essas leis de organização, que regem todas as relações de um campo, nada mais sao, na hipotese “gestaltista” , que leis de equilíbrio regendo ao mesmo tempo as correntes nervosas desencadeadas pelo contato psíqwco com os objetos exteriores, e pelos próprios objetos, reunidosnum, circuito total que abrange, pois, simultaneamente, o organismo e seu meio circundante próximo. Desse ponto de vista, um “campo” perceptivo (ou motor, etc.) é comparável a um campo de forças (eletromagnéticas, etc.) e é regido por princípios anáiogos, de mínimum, de mínima atividacie, etc. Diante de uma multiplicidade de elementos, nós lhes imprimimos, entã o, uma forma de conjunto que não é uma forma qualquer, mas a mais simples forma possível que exprima a estrutura do campo: serão, portanto, regras de simplicidade, de regularidade, de proximidade, de simetria, etc. que determinarão a forma percebida. Donde uma lei essencial (chamada lei de “pregnância”): de todas as formas possíveis, a forma que se impõe é sempre a “melhor”, isto é, a mais bem equilibrada. Além do mais, uma “boa forma” é sempre suscetível de ser “transposta” como uma melodia cuja tonalidade seja alterada. Mas essa transposição, que demonstra a independência do todo em relação às partes, também se explica pelas leis do equilíbrio: são as mesmas relações entre os novos elementos que chegam à mesma forma de conjunto como as relações entre os elementos anteriores, não graças a uma atividade de compa- ração, mas por uma constituição do equilíbrio, como a água de um canal assume a mesma forma horizontal, mas em niveis diferentes, depois da abertura de cada comporta. A caracterização dessas “boas formas” e o estudo dessas “transposições” ensejaram uma multidão de trabalhos experimentais de certo interesse, em cujo pormenor é inútil entrar rio presente livro.

Por outro lado, o que importa observar com cuidado, como essencial à teoria, é que as “leis de organização” são concebidas como independentes do desenvolvimento e, por conseguinte, como comuns a todos os níveis. Essa afirmação é evidente se a limitarmos à organização funcional, ou equilíbrio “sincrônico” das condutas, porque a necessida@ de deste último se impõe em todos os degraus, donde a continuidade funcional sobre a qual ternos insistido. Mas, habitualmente se contrapõem a esse funcionamento invariante as estruturas sucessivas, encaradas do ponto de vista “diaerõnico” e que variam precisamente de um degrau

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a outro. Ora, o peculiar da Gestalt é o reunir num todo a função e a estrutura sob o nome de “organização% e considerar as leis desta como invariáveis. Assim é que os psicólogos da Forma se esforçaram por uma acumulação impressionante de materiais, em mostrar que as estruturas perceptivas são as mesmas na criancinha e no adulto, e sobretudo nos vertebrados de todas as categorias. A única diferença entre a criança e o adulto seria a importância, relativa de certos fatores comuns de organização, da pro-@ ximidade, por exemplo, mas o conjunto dos fatores permanece o mesmo, e as estruturas que resultam desses fatores obedecem às mesmas leis.

Sobretudo, o famoso problema das constâncias perceptivas deu ensejo a uma solução sistemática cujos dois pontos seguintes devem ser ressaltados. Em primeiro lugar, uma constância tal como a da grandeza não constituiria a correção de uma sensação inicial deformante, ligada a uma imagem retiniana reduzida, visto que não existe sensação inicial isolada, e que a imagem retiniana não passa de um elo não privilegiado na cadeia, cujo circuito total liga os objetos ao cérebro por meio das correntes nervosas em jogo: é, pois, imediata e diretamente aue se assegura ao objeto, visto em profundidade, sua grandeza real simplesmente em virtude das leis de organização que tornam essa estrutura a melhor de todas. Em segundo lugar, as constâncias perceptivas não seriam adquiridas, mas dadas tais quais em todos os níveis, no animal e no lactente como no adulto. As aparentes exceções experimentais seriam devidas ao fato de que o “campo perceptivo” nem sempre é bastante estruturado. A melhor constãncia é achada quando o objetivo fez parte de uma “configuração” de conjunto, como uma seqüência de objetos seriados.

No que se refere à inteligência, ela recebeu, desse ponto de vista, uma interpretação notavelmente simples e que seria suscetível, caso verdadeira, de relacionar quase diretamente as estruturas superiores (e sobretudo os “grupamentos operatórios” que descrevemos) às “formas” mais elementares de ordem sensório-motora e mesmo perceptiva. São especialmente dignas de nota três aplicações da teoria da Forma ao estudo da inteligência: a de KoehIer à inteligência sensório-motora, a de Wertheimer à estrutura do silogismo e a de Dunker ao ato de inteligência em geral.

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A INTELIGÊNCIA E AS FUNÇõES SENSóRIO-MOTORAS 67

Para Koeliler, a inteligência aparece quando a percepção não se prolonga diretamente em movimentos suscetíveis de assegurar a conquista do objetivo. Um chimpanzé em sua jauia procura atingir o truio situado fora cie seu alcance: será necessário, então, um intermediário, cujo emprego definirá a complicação própria da ação inteligente. Em que consiste esta? Se uma vara for posta à disposição do rnLeaco, mas numa posição qualquer, ela é vista como um objeto indiferente: colocada paralelamente ao braço cio animal, será bruscamente percebida como um prolongamento possível da mão. Até então neutra, a vara receberá assim uma significação devido à sua incorporação na estrutura do conjunto. 0 campo será, pois, “reestruturado”, e são as reestruturaçõ es súbitas que, segundo KoehIer, irão caracterizar o ato de inteligência: a passagem de uma estrutura menos boa e uma estrutura melhor é a essência da compreensão, simples continuação, por conseguinte, mas mediata ou indireta da própria percepção.

Trata-se do princípio explicativo que encontramos em Wertheimer em sua interpretação “gestalista” do silogisnio. A premissa maior é uma “forma” comparável a certa estrutura perceptiva: “todos os homens”, no exemplo clássico de silogismo, constituem assim um conjunto que se representa centrado no interior do conjunto dos “mortais”. A premissa menor procede igualmente: “Sócrates” é um indivíduo centrado no círculo dos “homens”. A operação que irá tirar a conclusão dessas premissas: “logo Sócrates é mortal” equivale pois simplesmente à reestruturação do conjunto, fazendo desaparecer o círculo intermediário (os homens), após tê-la situado com seu conteúdo no círculo grande (os mortais). 0 raciocínio é, portanto, uma “recentralização11: l'Sócrates” é como que descentrado da classe dos “homens” para ver-se recentrado na classe dos mortais. 0 silogismo, desse modo, decorre simplesmente da organização geral das estruturas: é análogo nisso às reestruturações que caracterizam a inteligência prática de que fala Koehler, mas procede em pensamento e não mais em ação.

Duncker, finalmente, estuda a relação dessas compreensões bruscas (Einsicht ou restruturação inteligente), com a experiência, de modo a dar o golpe de misericórdia no empirismo associacionista, que a noção de Gestalt contradiz desde o princípio. Para esse fim, ele analisa diversos problemas da inteligência e acha em todos

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os domínios que a inteligência adquirida desempenha função apenas subalterna no raciocínio: a experiência jamais apresenta significação para o pensamento a não ser em. função da organização atual. É esta última, isto é , a estrutura do campo presente, que determina os recursos possíveis às experiências passadas, seja tornando-as inúteis, seja ordenando uma evocação e utilização das lembranças. 0 raciocínio é, assim, “um combate que forja suas próprias armas”, e tudo nele se explica por leis de organização, independentes da história do indivíduo e assegurando no total a unidade natural das estruturas de todo nível, das “formas” perceptivas elementares com as do pensamento mais elevado.

Crítica da Psicologia da Forma

Só se poderia concordar com a Psicologia da Forma no que se refere à boa furidamentação de suas descrições. o caráter de “totalidade” próprio das estruturas mentais, tanto perceptivas como inteligentes; a existência da “boa forma” e suas leis; a redução das variações de estrutura a formas de equilíbrio, etc. têm apoio de tão numerosos trabalhos experimentais que essas noções adquirirana o merecicio prestígio em tocia a psicologia contemporãnea. Sobretudo, o modo de anãlise que consiste em sempre traduzir os fatos e termos de “campo” total é o único legítimo, sendo que a redução em elementos atomísticos altera sempre a unidade do real.

Mas deve-se ter clara compreensão de que, se as “leis de organização” não decorrem, além da psicologia e da biologia, de “formas físicas” absolutamente gerais (Koe.hler),6 então a linguagem das totalidades não passa de um modo de descrição, e a existência das estruturas totais exige uma explicação que não está absolutamente incluída no fato da própria totalidade. Foi o que admitimos quanto aos nossos próprios “grupamentos”, e impõe-se admiti-lo também quanto às “formas” ou estruturas elementares.

0 As “formas físicas”, segundo Koehler, desempenham o mesmo papel em relação às estruturas mentais como as idéias eternas, de Russell, em relação aos conceitos, ou como os quadros a priori em relação à lógica viva.

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Ora, a existência geral e mesmo “física” das “leis de organização” implica, pelo menos - e os teóricos da Forma são os primeiros a afirmar isso - sua invariância no transcurso do desenvolvimento mental. A questão prévia, para a doutrina ortodoxa da Forma (atemo-nos aqui a essa ortodoxia, mas é preciso notar que certo número de partidários mais cautelosos cia Gestalt, tais como Gello e Goldstein, rejeitaram a hipótese de “formas fí sicas”), é pois, a da permanência, durante o desenvolvimento mental, de certas formas essenciais de organização: sobretudo a das “constâncias” perceptivas.

Apenas, no fundamental, cremos poder sustentar que, no estado atual dos conhecimentos, os fatos se opõem a tal afirmação. Sem entrar em pormenores, e restringindonos ao terreno da psicologia da crianca e da constância das grandezas, é preciso ressaltar, com efeito, as poucas questões seguintes:

1.o) H. Franck7 acreditou poder estabelecer a constância das grandezas em crianças de 11 meses. Ora, a técnica de suas experiências suscitou discussão (Beyrl) e, mesmo que, no todo o fato fosse exato, 11 meses representam já considerável desenvolvimento da inteligência sensório-motora. E. Brunswick e Cruikshank verificaram um desenvolvimento progressivo dessa constância durante os seis primeiros meses.

2.o) Certas experiências que fizemos juntamente com Lembercier sobre crianças de 5 a 7 anos, e consistindo de comparações (duas a duas) de alturas em profundidade> permitiram-nos ressaltar um fator do qual os experímentadores não se haviam apercebido: existe, em qualquer idade, um “erro sistemático de padrão”, tal que o elemento escolhido como padrão seja superestimado, em relação às variáveis que ele mede, em virtude de sua própria função de padrão, e isso no caso em que esteja situado em

profundidade tanto quanto na situação próxima. Esse erro sistemático do sujeito, combinado com suas estimativas em profundidade, pode ensejar uma constância aparente (e ilusória) : tirante o “erro de padrão% nossos indivíduos de 5 a 7 anos apresentaram uma subestimativa média

7 P"chol. Forskung, VII, 1926, pp. 137-154.

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apreciável, em profundidade, ao passo que os adultos chegam, em média, a uma “superconstãneia".8

3.o) BurzIaff,11 que também obteve variações com a idade nas comparações dois a dois, acreditou poder sustentar a hipótese “gestaltista” de uma permanência da constância das grandezas no caso em que os elementos a comparar estejam englobados numa “configuração” de conjunto, e sobretudo quando estejam seriados. Em minucio. sas experiências, Lembercier retomou, por solicitação nossa, esse problema das comparações seriais em profundidade,10 e pôde mostrar que não existe uma constância relativamente independente da idade, a não ser num único caso (o único precisamente encarado por BurzIaff) : aquele em que o padrão é igual ao termo mediano dos elementos a comparar. Por outro lado, desde que se tenha escolhido um padrão perceptivelmente maior ou menor que o mediano, observam-se alterações sistemáticas em profundidade. É claro, então, que a constãncia do mediano decorre de outras causas que não seja a constância em profundidade: é a sua posição privilegiada de mediano que garante a sua invariância (ele é desvalorizado por todos os termos superiores a ele e revalorizado simetricamente por todos os termos inferiores, donde a sua estabilidade). As medidas feitas em outros termos mostram, no caso ainda, que a constância específica em profundidade não existe na criança, ao passo que se observa um aumento notável, com a idade, das regulações tendentes a essa constância.

4.0) Sabe-se que Beyr111, “ao analisar a constância das grandezas em estudantes, descobriu, por seu turno, um aumento médio dos casos de constãncia até cerca de 10 anos, degrau a partir do qual a criança reage, finalmente, à maneira do adulto (evolução paralela foi verificada por E. Brunswick no que se refere às constâncias da forma e da cor).

A existência de uma evolução, com a idade, dos mecanismos conducentes às constâncias perceptivas (e veremos mais adiante muitas outras transformações genéticas da percepção) conduz seguramente a uma revisão das

8 Arch. de Psychologie, XXIX (1943), pp. 255-308.9 Zeitschr. f. Psychol., vol. 119 (1931), pp. 177-235.10 Arch. de Psychol., XXXI (1946).11 Zeitschr. f. Psychol., vol. 100 (1926), pp. 344-371.

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explicações da Teoria da Forma. Em primeiro lugar, e sobretudo, se há de fato evolução, as estruturas perceptivas, não mais se poderia afastar nem o problema de sua formação, nem o papel possível da experiência no curso de sua gênese. Quanto a este último ponto, E. Brunswick pôs em evidência a freqüência das “formas (Gestalt) em. píricas” ao lado das “formas geornétricas”. Assim é que a figura intermediária entre a imagem da mão aberta e um esquema geométrico de cinco ramos exatamente simétrico deu, em visão taquistoscópica no adulto, 15.0% em favor da mão (forma empírica) e 50% em favor da “boa forma” geométrica.

Quanto à gênese das “formas”, que suscita pois uma questão essencial desde o momento em que se rejeite a hipótese das “formas físicas” permanentes, convám notar desde logo a ilegitimidade do dilema: ou “totalidades” ou atomismo das sensações isoladas. Há em realidade três termos possíveis: ou a percepção é uma síntese de elementos; ou constitui uma totalidade contínua; ou é um sistema de relações (sendo, cada relação em si mesma uma totalidade, mas tornando-se analisável a totilalidade do conjunto sem retornar com isso ao atomismo). Dito isso, nada impede de conceber as estruturas totais como produto de uma elaboração progressiva, procedendo não por “sínteses”, mas por diferenciações acomodadoras e assimilações combinadas, nem de pós essa elaboração em relação com uma inteligência dotada de atividade real em oposição ao jogo das estruturas pré-estabelecidas.

No que concerne à percepção, a questão crucial é a da “transposição”. Deveremos, com a Teoria da Forma, interpretar as transposições (de uma melodia de certa tonalidade a outra ou de certa forma visual por ampliaçã o) como simples reaparecimentos de uma mesma forma de equilíbrio entre novos elementos cujas relações se tenham conservado (ef. os degraus horizontais de um sistema de eclusas), ou nelas deveremos ver o produto de uma atividade assimiladora que integre elementos comparáveis num mesmo esquema? 0 próprio aumento da facilidade de transpor, em função da idade (veja-se fim deste capítulo), parece-nos impor esta segunda solução. Além do mais, convém, sem dúvida, juntar à transposição em geral encarada, que é externa em relação às figuras, as transposições internas entre elementos de uma mesma figura,

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,que explicam o papel dos fatores de regularidade, igual- ,dades, simetria, etc. inerentes às “formas boas”. Ora, essas duas possíveis interpretações da transposição comportam significações bem diferentes no que se refere às relacões entre a percepção e a inteligência e sobretudo à natureza desta última.

Procurando reduzir os mecanismos da inteligência àqueles que caracterizam as estruturas perceptivas, elas mesmas redutíveis a “formas físicas”, a Teoria da Forma retorna, no fundo, ao empirismo clássico, embora por vias muito mais requintadas. A única diferença (e, por considerável que seja, pouco influi perto de tal redução) é que a nova doutrina substitui as “associações” por “totalidades” estruturadas. Mas, nos dois casos, a atividade operatória é dissolvida no sensível em proveito da passividade dos mecanismos automáticos.

Ora, não se poderia insistir demasiado no fato de que, se as estruturas operatórias são ligadas por uma série contínua de intermediários às estruras perceptivas (e concordamos com isso sem dificuldade), há, porém, uma inversão fundamental de sentido entre a rigidez de uma “forma” percebida 8 a mobilidade reversível das operações. A comparação tentada por Wertheimer entre o silogismo e as “formas” estáticas da percepção corre, desse modo, o risco de permanecer insuficiente. 0 essencial, no mecanismo de um grupamento (de onde se extraem os silogismos), não é a estrutura revestida das premissas ou a que caracteriza as conclusões, mas antes o processo de composição que permite passar de uma às outras. Ora, esse processo estende, sem dúvida, as reestruturações e recentralizações perceptivas (tais como aquelas que permitem ver alternativamente em furo ou em relevo um desenho “equívoco”). Mas é bem mais ainda, visto que é constituído pelo conjunto das operações móveis e reversiveis de emparelhamento e desemparelhamento (A + A’- B; A = B - A”; A’ = B - A; B - A - A’ = 0 etc.) Não mais são as formas estáticas que contam na inteligência, nem a simples passagem de sentido único de um estado a outro (ou ainda a oscilação entre os dois), mas a mobilidade geral das operações que engedram as estruturas. Segue-se que as estruturas em jogo diferem nos dois casos: uma estrutura perceptiva é caracterizada como a teoria da Forma insistiu, por sua irredutibilidade à com-

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posição aditiva: ela é, pois, irreversível e não associativa. Há, portanto, muito mais que uma “recentração11 (Umzentrierung) num sistema de raciocínios: há uma descentração geral, que supõe uma espécie de dissolução ou degelo de formas perceptivas estáticas em proveito da mobilidaele operatória, e, por conseguinte, há possibilidade de uma construção infinita de estruturas novas, perceptíveis ou ultrapassando os limites de qualquer percepção real.

Quanto à inteligência sensõrio-motora descrita por, KoehIer, é claro que as estruturas perceptivas desempenham nela um papel muito maior. Mas, devido ao próprio fato de que a Teoria da Forma se vê obrigada a considerá-las como surgindo diretamente das situações como, tais, sem gênese histórica, KoehIer viu-se forçado a retirar do domínio da inteligência, por um lado, as tentativas: que precedem a descoberta das soluções e, por outro, as correções e controle que as seguem. Quanto a isso, o estudo dos dois primeiros anos da criança nos levou a uma visão diferente das coisas: é certo que há também estruturas de conjunto ou “formas” na inteligência sensóriomotora da criança muito nova, mas, longe de serem estáticas e sem história, elas constituem “ esquemas” que procedem uns dos outros por diferenciações e integrações sucessivas, e que devem assim ser acomodadas sempre às situações, por tateios e correções, ao mesmo tempo que eles as assimilam a si. A conduta da vara é assim preparada por uma série de esquemas anteriores tais como atrair para si o objeto por meio de seus prolongamentos (barbante ou suportes) ou o de bater um objeto contra outro.

Torna-se necessário, então, fazer à tese de Duncker as restrições seguintes: não há dúvida de que um ato inteligente só é determinado pela experiência anterior na medida em que a ela recorre. Mas esse relacionamento supõe esquemas de assimilação, por sua vez decorrentes de esquemas anteriores, por diferenciação e coordenação. Os esquemas têm, pois, uma história: há mútua reação entre a experiência anterior e o ato presente de inteligência, e não ação de sentido único do passado sobre o presente, como o pretendia o empirismo, nem recurso de sentido único do presente ao passado, como o quer Duncker. É, inclusive, possível esclarecer essas relações entre o presente e o passado, dizendo que o equilíbrio é atingida

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quando todos os esquenias anteriores são eiicaixados nos atuais e que a inteligência pode então indiferentemente reconstruir os antigos por meio dos presentes e reciprocamente.

No todo, vê-se então que, embora correta em sua descrição das formas de equilíbrio ou totalidades bem estruturadas, a teoria da Forma relega a plano subalterno a realídade do desenvolvimento genético e a construção efetiva que a caracteriza, tanto no domínio perceptivo como no da inteligência.

As diferenças entre a percepção e a inteligência

A Teoria da Forma renovou o problema das relações entre a inteligência, e a percepção, ao mostrar a continuidade que liga as estruturas características desses dois domínios. Para resolver o problema, respeitando a complexidade dos fatos genéticos, é preciso fazer o inventário das próprias diferenças antes de recorrer às analogias conducentes a explicações possíveis.

A estrutura perceptiva é um sistema de relações interdependentes. Pode-se sempre traduzir as totalidades em relações, quer se trate de formas geométricas, pesos, cores, ou de sons, sem destruir a unidade do todo. Basta então, para destacar tanto as diferenças como as serneihanças entre as estruturas perceptivas e operatórias, exprimir ,essas relações na linguagem do “grupamento”, à maneira pela qual os físicos, formulando em termos reversíveis os fenômenos termodinâmicos, constatam que eles são intraduzíveis em tal linguagem, porque irreversíveis, a não correspondência dos simbolismos sublinhando assim, tanto melhor, as diferenças em jogo. Quanto a isso, basta tomar as diversas ilusões geométricas conhecidas, fazendo variar os fatores em jogo, ou os fatos decorrentes da lei de Weber, etc. e formular em termos de grupamento todas as relações, assim como suas transformações em função das modificações exteriores.

Ora, os resultados assim obtidos mostraram-se muito nítidos: nenhuma das cinco condições do “grupamento” acha-se realizada no nível das estruturas perceptivas, e, no caso em que parecem mais perto de estar, como no terreno das “constâncias” anunciando a conservação opera-

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tõria, a operação é substituída por simples regulações, não inteiramente reversíveis (e, por conseguinte, a meio caminho da irreversibilidade espontânea e da própria regulação operatória).

Tomemos como p-4meiro exemplo uma forma siniplificada da ilusão de Delboeuf: 12 um círculo A de 12 nim de raio inscrito num círculo B de 15nim, parece maior que um círculo isoladq A, igual * Ai. Façamos variar o círculo B, dando-lhe sucessivamente de 15 * 13 nim de raio, e de 15 a 40 ou 80 mm: a ilusão diminui de 15 * 13 mm; ela diminui também de 15 a 36 mm, para tornar nula perto de 36 mm. (isto é, quando o diâmetro de Ai iguala a dimensão da zona compreendida entre B e A,) e negativa além (subestimativa do círculo interior A,). Ora:

1.0) Ao traduzir em linguagem operatória as relações em jogonessas transformações perceptivas, é evidente, primeiro, que sua composição não poderia ser aditiva, dado não haver conservação dos elementos do sistema. Nisto, de resto, consiste a descoberta fundamental da Teoria da Forma, e é o que caracteriza, segundo ela, a noção de “totalidade” perceptiva. Se chamarmos de A’ a zona intercalar que assinala a diferença entre os círculos Ai e B, não se poderia pois@ escrever Ai + A’ = B, visto que Ai é deformado por sua interseção, em B, que B é deformado pelo fato de envolver Ai e que a zona A’ está mais ou menos dilatada ou comprimida segundo as relações entre A’ e B. Pode-se comprovar essa não conservação da totalidade do modo seguinte: se, partindo de certo valor de A, de A’ e B, ampliamos (objetivamente) Ai, reduzindo, pois, A’, mas deixando B constante, pode acontecer que todo B seja visto menor que antes: ter-se-á perdido, portanto, alguma coisa durante a transformação; ou, pelo contrário, ele será visto maior e ocorrerá alguma coisa de mais. Trata-se, então, de encontrar um meio de formular essas “transformações nã o compensadas”.

2.0) Para esse fim, traduzamos as transformações em termos de composição de relações, e verificaremos a natureza irreversível dessa composiçã o; e essa irreversibilidade exprime, sob outra forma, a ausência de composição aditiva. Chamemos de r o aumento de semelhança (dimensional) entre Ai e B e d o aumento de diferença (dimensional) entre os mesmos termos. Essas duas relações deveriam ser e permanecer o inverso uma da outra, isto é, +r = -d e +d = -r (o sinal negativo indica a diminuição de diferença ou de semelhança). Ora, se partirmos da ilusão nula (A, = 12 Mni e B 36 mm), verificamos que, ao aumentar as semelhanças objetivas restringindo os círculos), o indivíduo ainda as percebe reforçadas: por conseguinte, a percepção aumentou de muito as semelhanças durante seu aumento objetivo e não manteve suficientemente as diferenças durante sua diminuição objetiva. Igualmente, se aumentarmos as diferenças objetivas (ao abrir os círculos), esse aumento é também exageraáo.

12 Ver Piaget, Lambercier e outros. Arch. de Ps-ychol., t. XXIX (1942), pp. 1-107.

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Ocorre, então, portanto, uma falta de compensação durante “ transformações. Convirá então escrever estas últimas sob a forma seguint@e. destinada a assinalar seu caráter incomponível, do ponto de vista lógico:

r> - d ou d> - r.

Com efeito, se, em cada figura tomada isoladamente, as rela?ões de semelhança são, naturalmente, sempre o inverso das relações de ,diferença, a passagem de uma figura a outra não mantém constante -a soma das semelhanças e das diferenças, visto que as totalidades não se conservam. É nesse sentido que se pode legitimamente consi- ,derar os aumentos de semelhança como sobrepujando as diminuições de diferença, ou o inverso.

Nesse caso, é possível exprimir a mesma idéia de modo mais conciso, dizendo simplesmente que a transformação das relações é irreversível, visto que se acompanha de uma “transformação não compensada” P tal que:

r = - d + Prd ou d = -r + Prd.

3.0) Mais ainda, nenhuma composição de relações perceptivas é independente do caminho percorrido (associatividade), mas cada relação percebida depende daquelas que imediatamente a precederam. Assim é que a percepção de um mesmo círculo A dará resultados sensivelmente diferentes segundo seja comparado a círculos de referência seriados em ordem ascendente ou descendente. Nesse caso, a medida mais objetiva é de ordem concêntrica, isto é, procedendo por elementos ora maiores ora menores que A, de modo a compensar umas pelas outras as deformações devidas às comparações anteriores.

4.0 e 5.0) É, pois, evidente que um mesmo elemento não permanece idêntico a si mesmo, segundo seja comparado a outros, diferentes dele ou de mesmas dimensões: seu valor irá variar incessantemente em função das relações dadas, tanto atuais como anteriores.

Há, pois, a impossibilidade de reduzir um sistema perceptivo a um “grupamento”, a menos que reduzindo as desigualdades a igualdades pela introdução de “transformações não compensadas” P que constituam a medida das deformações (ilusões) e atestem a não aditividade ou não transitividade das relações perceptivas, sua irreversibilidade, sua não associatividade e sua não identidade!

Essa análise (que nos ensina, de resto, o que seria o pensamento se suas operações não fossem “grupadas”!) mostra que a forma de equilíbrio inerente às estruturas perceptivas é bem diferente da forma das estruturas operatórias. Nestas últimas, o equilíbrio é ao mesmo tempo móvel e permanente, as transformações interiores ao sistema não o modificam, visto que são sempre exatamente compensadas, graças às operações inversas reais ou vir-

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tuais (reversibilidade). Pelo contrário, no caso das percepções, cada modificação do valor de uma das relações em jogo acarreta uma transformação do conjunto, até que este constitua novo equilíbrio, distinto daquele que caracterizava o estado anterior: há, pois, “dezlocamento de equilíbrio” (como se diz em física, no estudo dos sistemas írreversíveis como os sistemas termodinâmicos) e não mais equilíbrio permanente. É o caso, por exemplo, de cada novo valor do círculo exterior B, na ilusão há pouco descrita: a ilusão aumenta, então, ou diminui, mas não conserva seu valor inicial.

Ademais, esses “deslocamentos de equilibrio” obedecem a leis de maxima: determinada relação não cria uma ilusão, e portanto não produz uma transformação não compensada P, até certo valor teve a ver com a das demais relações. Passado esse valor, a ilusão diminui, porque a deformação é então compensada, em parte, sob o efeito de novas relações do conjunto: logo, os deslocamentos de equilíbrio ensejam regulações, ou compensações parciais, que se podem definir pela troca de sinal da quantidade P (por exemplo, quando os dois círculos concêntricos estejam demasiado próximos ou demasiado distanciados, a ilusão de Delboeuf diminui). Ora, essas regulações, cujo efeito é pois de limitar ou “moderar” (como se diz em física) os deslocamentos de equilíbrio, sob certos aspectos são comparáveis às operações da inteligência. Se o sistema fosse de ordem operatória, todo aumento de um dos valores corresponderia à diminuição de outro, e reciprocamente (haveria então reversibilidade, isto é, terse-ia P == 0); se, por outro lado, houvesse deformação sem freio ao ensejo de cada modificação exterior, o sistema não mais existiria como sistema: a existência das regulações manifesta, assim, o aparecimento de uma estrutura intermediária entre a irreversibilidade completa e a reversibilidade operatória.

Mas como explicar essa oposição relativa (dotada de um parentesco relativo) entre os mecanismos perceptivos e inteligentes? As relações de que se compõe uma estrutura de conjunto, tal como a de uma percepção visual, exprimindo as leis de um espaço subjetivo, ou espaço perceptivo, que se pode analisar e comparar ao espaço geométrico, ou espaço operatório. As ilusões (ou transformações não compensadas do sistema das relações) podem

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ser então concebidas como deformações desse espaço, no sentido da dilatação ou da contração.13

Ora, desse ponto de vista, um fato fundamental domina tocias as reiaçoes entre a percepção e a inteligência. Quando a inteligência compara dois termos um ao outro, nem o comparante nem o comparado (em outras palavras,, nem a escala nem o medido) se deformam pela própria comparação. Pelo contrário, no caso da comparação perceptiva, e sobretudo quando um elemento serve de padrão fixo de avaliação de elementos variáveis, produz-se uma deformação sistemática que denominamos com Lambercier “erro de padrão”: o elemento a que mais se liga o olhar (em geral, o próprio padrão de medida, quando a variável está distante dele, mas à s vezes também a variável, quando o padrão de medida está perto dela e já conhecido) é sistematicamente superestimado, e isso nas comparações feitas tanto num plano frontoparalelo quanto em profundidade14

Fatos como esse são apenas casos particulares de um processo muito geral. Se o padrão de medida for superestimado (ou, em certos casos, a variável), deve-se simplesmente a que o elemento por mais tempo olhado (ou, no mais das vezes, o olhado mais intensamente, etc.) é por isso mesmo ampliado, como se o objeto ou a região sobre a qual se dirige o olhar apresente uma dilatação do espaço perceptivo. Basta, quanto a isso, olhar alternativamente dois elementos iguais para ver que reforçamos cada vez as dimensões daquele que fixarmos, para que essas deformações sucessivas se compensem no total. Portanto, o espaço perceptivo não é homogéneo, mas é, a cada instante, centrado, e a zona de centração corresponde a uma dilatação espacial, ao passo que a periferia dessa

13 Assim é que, na ilusão de Delboeuf, a superfície do círculo inscrito Ai é dilatada pela vista às custas da superfície da zona A> compreendida entre esse círculo e o círculo exterior B, se essa zona À” for de dimensão inferior ao de diâmetro de A,: se A’> A, o efeito será inverso.14 A prova de que se trata realmente de um erro relacionado com a situação funcional do mensurante é que basta, para diminuir ou mesmo anular esse erro, dar a impressão de mudar o padrão de medida ao ensejo de cada comparação (sempre recolocando-o cada vez)Basta, inclusive, para inverter o erro perceptivo, mandar fazer o julgamento verbal sobre o mensurante e não mais sobre o que é medidc> (se o indivíduo disser A< B, pede-se o julgamento B> A), o qUe, inverte as posições funcionais.

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zona central é tanto mais reduzida quanto nos afastamos do centro. Esse papel da centração e do erro do padrão de mectida verilica-se no domínio do tato.

Mas se a “centração” é, assim, causa de deformações, várias centrações distintas corrigem os efeitos de cada uma. A “descentração”, ou coordenação de centrações diferentes é, por conseguinte, fator de correção. Vemos, então, de pronto, o princípio de uma explicação possível para as deformações irreversíveis e as regulaçõ es de que falamos há pouco. As ilusões da percepção visual podem explicar-se pelo mecanismo das centrações quando os elementos da figura estão (relativamente) muito próximos uns dos outros para que haja descentração (ilusões de Delboeuf, Oppel-Kundt e outros). Inversamente, há regulação na medida em que houver descentração, automática ou por comparações ativas.

Ora, percebemos agora a relação entre esses processos e aqueles que caracterizam a inteligência. Não é apenas no domínio perceptivo que o erro (relativo) tem a ver com a centração e a objetividade (relativa) com a descentração. Toda a evolução do pensamento da criança, cujas formas intuitivas iniciais são precisamente vizinhas das estruturas perceptivas, caracteriza-se pela passagem de um egocentrismo geral (a que voltaremos de novo no capítulo 5) à descentração intelectual; portanto, por um processo comparável àquele cujos efeitos constatamos. Mas a questão, por ora, é de captar a diferença entre a percepção e a inteligência acabada, e, para esse fim, os fatos que precedem permitem circunscrever ainda mais a principal dessas oposições: aquela do que poderíamos chamar de “relatividade perceptiva” com a relatividade intelectual.

De fato, se as centrações se traduzem por deformações cujo modo de formular em referência (e por contraste) com o grupamento já vimos, o problema é, ademais, de medi-las quando isso for possível, e interpretar essa qualificação. Ora, isso é fácil no caso em que dois elementos homogéneos sejam comparados entre si, tais como duas linhas retas que se prolonguem uma à outra. Pode-se, então, estabelecer uma lei das “centraçõ es relativas% independente do valor absoluto dos efeitos da centração, e exprimindo as deformações relativas sob a forma de simples valor provável, isto é, pela relação das centrações reais com o número das centraçõ es possíveis.

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so PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

Sabe-se, de fato, que uma linha A, comparada a outra linha A’, é desvalorizada por esta última caso esta seja maior que a primeira (A< A’), e supervalorizada no caso inverso (A> A’). 0 princípio do cálculo é, então, considerar, em cada um desses dois casos, as centrações sucessivas em A e em A’ como dilatando alternativamente essas linhas proporcionalmente a seus comprimeDtos: a diferença dessas deformações, expressa em grandezas relativas de A e A’, dá assim a supervalorização ou a desvalorização bruta de A, as quais devem ser, em seguida, divididas pelo comprimento total das linhas contíguas A + A’, visto que a descentração é proporcional ao tamanho da figura de conjunto. OUcanos então:

(A - A’) A'/A (A’ - A)A/A’

se A>A1 e se A<A’ A + A’ A + A’

Além do mais, se a medida for feita sobre A, deve~se multiplicar essas relações por A2/(A + A')2, isto é, pelo quadrado da relação entre a parte medida e o todo.

A curva teórica obtida desse modo corresponde bem às medidas empíricas das deformações e, além do mais, equivale com bastante exatidão às medidas da ilusão de Delboeuf15 (se A for inserido entre dois A’ e se duplicarmos então esse valor A’ na fórmula).

Essa lei das centrações relativas, expressa em linguagem qualitativa, significa simplesmente que toda diferença objetiva é acentuada subjetivamente pela percepção, mesmo no caso em que os elementos comparados sejam igualmente centrados peia vista. -ti;m outras palavras, todo, contraste é exagerado pela percepção, o que indica de imediato a intervenção de uma relatividade especial desta última e distinta da relatividade da inteligência. Isso nos leva à lei de Weber, cuja análise é sobremodo instrutiva sob esse aspecto. Tomada em sentido estrito, a lei de Weber exprime, como se sabe, que a grandeza dos “limiares diferenciais” (as menores diferenças percebidas) é proporcional à dos elementos comparados: se uma pessoa distingue, por exemplo, 10 e 11 mm, porém não 10 e 10,5 mm, só distinguirá lo e 11 mm e não 10 e 10,5 em.

Suponhamos, assim, que as linhas precedentes A e A’ sejam de valores muito próximos ou iguais. Se forem iguais, a centração sobre A dilata A e desvaloriza A’; depois, a centração sobre M dilata A’ e desvaloriza A segundo as mesmas proporções: donde a anulação das deformações. Por outro lado, se forem ligeiramente desiguais, mas sua desigualdade continuando inferior às deformações devidas à centração, a centração sobre A dará a percepção A>A’ e a centração A’

15 Veja-se nota da p. 84.

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a visão A'>A. Nesse caso, há contradição entre as estimativas (contrariamente ao caso geral em que uma desigualdade, comum aos dois pontos de vista, aparece simplesmente mais ou menos forte segundo se a fixe em A ou A’). Essa contradição se traduz, então, por uma espécie de hesitação (comparável à ressonância em física) que não poderia chegar ao equilíbrio perceptivo senão pela igualação A = A’. Mas essa igualação permanece subjetiva e é, pois, ilusória: ela equivale a dizer que dois valores quase iguais são confundidos pela percepção. Ora, essa indiferenciação é precisamente o que caracteriza a existência dos “limiares diferenciais” e, como é prop,)i-cional, em virtude da lei das centrações relativas, aos comprimentos de A e de A’, deparamo-nos assim com a lei de Weber.

A lei de Weber, aplicada aos limiares diferenciais, explica-se, pois, pela lei das centrações relativas. Além do mais, como essa lei se estende às diferenças quaisquer (seja que as semelhanças sobrepujem as diferenças, como no interior do limiar, seja o inverso como no caso há pouco discutido), pode-se encará-la em todos os casos como exprimindo simplesmente o fator de proporcionalidade inerente às relações de centrações relativas (para o tato, peso, ete., como para a visão).

Eis-nos, pois, em via de anunciar mais claramente a oposição, sem dúvida essencial, que separa a inteligência da percepção. Traduz-se freqüentemente a lei de Weber dizendo que toda percepção é “relativa”. Não se apreendem diferenças absolutas, visto que 1 g juntado a 10 g pode ser percebido, ao passo que essa percepção não ocorre juntando-se 1 g a 100 g. Por outro lado, quando os elementos diferem de modo considerável, os contrastes são então acentuados, como o mostram os casos comuns de centrações relativas, e esse reforço é de novo relativo às grandezas em jogo (um ambiente parece quente ou frio segundo se venha de um lugar de temperatura mais baixa ou mais elevada). Quer se trate de semelhanças ilusó rias (limiar de igualdade) ou de diferenças ilusórias (contrastes), tudo é, portanto, “relativo” do ponto de vista da percepção. Mas não acontecerá o mesmo com a inteligência? Uma classe não será relativa à classificação? E uma relação, não será relativa ao conjunto das demais? Na realidade, a palavra “relativo” apresenta um sentido bem diferente nos dois casos.

A relatividade perceptiva é uma relatividade deformante, no sentido de que a linguagem corrente diz “tudo é relativo% para negar a possibilidade da objetividade: a relação perceptiva altera os elementos que liga, e agora compreendemos a razão disso. Pelo contrário, ‘a relatividade da inteligência é a própria condição da objetividade-

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assim, a relatividade do espaço e do tempo é a condição de sua própria medida. Tudo se passa, pois, como se a percepção, obrigada a proceder passo a passo, por contato, imediato, mas marcial, com o seu objeto, o deformasse pelo próprio ato de o centrar, pronta a atenuar essas deformações por descentrações igualmente parciais, ao passo que a inteligência, abrangendo num único todo um número bem maior de realidades, segundo trajetos móveis e flexíveis, atinge a objetividade por uma descentração muito maior.

Ora, essas duas relatividades, uma deformante e a ou- :tra objetiva, são sem dúvida a expressão, ao mesmo tem- ,po, de uma oposição profunda entre os atos da inteligência e as percepções, e de uma continuidade que pressupõe, de resto, a existência de mecanismos comuns. Por que, com efeito, as relações são deformantes num caso e não em outro se a percepção assim como a inteligência consistem ,ambas em estruturar e estabelecer relações? Não será pelo ,fato de que as relações deformantes são não apenas incompletas, mas insuficientemente coordenáveis, ao passo ,que as relações não deformantes repousam numa coordenação infinitamente generalizável? E se o “grupamento” é o princípio dessa coordenação, e que sua composição reversível prolongue as regulações e descentrações perceptivas, não será preciso, então, admitir que as centrações são deformantes, visto que pouco numerosas, em parte fortuitas e resultantes assim de uma espécie de sorteio entre as que fossem necessárias para garantir a descentração inteira e a objetividade?

Somos, pois, levados a indagar se a diferença essencial entre a inteligência e a percepção não teria a ver com o fato de que esta seja um processo de ordem estatística, relacionado a certa escala, ao passo que os processos de ,ordei-n intelectual determinariam as relações de conjunto relacionados a uma escala superior. A percepção seria para a inteligência o que é em física o domínio do irre-versível (isto é, precisamente, do acaso) e dos deslocamentos de equilíbrio, em relação ao da mecânica propriamente dita.

Ora, a estrutura probabilista das lei perceptivas de que acabamos de falar cai precisamente sob o sentido, e ,explica o caráter irreversível dos processos da percepção em oposição às composições operatórias, ao mesmo tempo

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bem determinadas e reversíveis. Por que, com efeito, a sensação apareceria como o logaritmo da excitação (o que, exprime sem mais a proporcionalidade enunciada pela iei de Weber)? Sabe-se que a lei de Weber não se aplica apenas aos fatos de percepção e aos fatos de excitação fisiolõgica, mas também, entre outras, à sensibilização de uma enapa fotográfica: neste último caso, ela significa simplesmente que as intensidades de sensiblização são função, da probabilidade de encontro entre os fótons que bombardeiam a chapa e as partículas de nitratos de prata que a compõem (donde a forma logarítmica da lei: relação entre a multiplicação das probabilidades e adição das intensidades). No caso da percepção, é fácil, igualmente, conceber uma grandeza, tal como o comprimento de uma linha, como um conjunto de pontos de fixação possível do@ olhar (ou de segmentos oferecidos à concentração). Quando se comparam duas linhas desiguais, os pontos correspondentes ensejarão combinações ou associações (no sentido matemático) de semelhança, e os pontos não correspondentes a associações de diferença (caso em que as associações aumentam em razão geométrica, enquanto o@ comprimento das linhas aumenta em razão aritmética). Se a percepção procedesse segundo todas as combinações possíveis, não haveria então deformação alguma (as associações chegariam a uma relação constante e se teria r = d). Mas tudo se passa, ao contrário, como se o olhar real constituísse uma espécie de sorteio e como se ele fixasse apenas certos pontos da figura percebida, desprezando os demais. l@ fácil de interpretar, então, as leis precedentes em função das probabilidades segundo as quais as centraç&es orientam-se num sentido de preferência a outro. No caso de, diferenças notáveis entre duas linhas, é evidente que a maior das duas atrairá mais o olhar, donde o excesso das associações de diferenças (lei das centrações relativas no sentido do contraste), ao passo que, no caso das diferenças mínimas, as associações de semelhança sobrepujarão as, outras, donde G limiar de Weber.16 (Pode-se mesmo calcular essas diversas combinações e chegar à s fórmulas mencionadas anteriormente).

Notemos, finalmente, que esse carãter probabilist& das composições perceptivas, oposto ao caráter determi-

16 Veja-se Piaget, Ensaio de interpretação probabilista da lei de, Weber, Arch. de Psychol., XXX (1944), pp. 95-139.

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naao aas composiçoes operatórias, não explica apenas a relatividade deformante das primeiras e a relatividade objetiva das segundas. Explica, sobretudo, o fato capital sobre o qual insistiu a Psicologia da Forma: que, numa estrutura perceptiva, o todo é irredutível à soma das partes. Com efeito, na medida em que o acaso intervém num sistema, este não poderia ser reversível, visto que essa ocorrência do acaso traduz sempre, de um modo ou de outro, a existência de uma mistura, e que uma mistura é irreversível. Disso resulta que um sistema que comporte um aspecto fortuito não poderia ser suscetível de composição aditiva (na medida em que a realidade despreza as combinações extremamente pouco prováveis), em oposição aos sistemas determinados, que são reversíveis e componíveis operatoriamente. 17

No todo, podemos pois dizer que a percepção difere da inteligência em que suas estruturas são intransitivas, irreversíveis, etc., portanto, íncomponíveis segundo as leis do grupamento, e isso porque a relatividade deformante que lhes é inerente traduz sua natureza essencialmente estatística. Essa composição estatística, pró pria das rela@ ções perceptivas, é o mesmo que sua irreversibilidade e sua não aditividade, ao passo que a inteligência orienta-se no sentido da composição completa, portanto, reversível.

As analogias entre a atividade perceptiva e a inteligência

Como, então, explicar o inegável parentesco entre as duas espécies de estrutura, ambas as quais implicam uma atividacie construtiva do indivíduo e constituem sistemas de conjunto de relações, alguns dos quais culminam, nos dois domínios, em “constâncias” ou em noções de conservação? Como, sobretudo, explicar a existência de inumeráveis intermediários que relacionam as centrações e des-

17 0 mais belo caso de composição não aditiva de ordem perceptiva é sem dúvida fornecido por certa ilusão de peso em que se percebe a parte A (um punhado de sucata) como mais pesada que todo o B constituído de A mais A’ (uma caixa vazia de madeira leve, exatamente das mesmas dimensões de A). Tem-se então B< A + W, e A>B, ao passo que objetivamente B = A + AI

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centrações elementares, assim como as regulações resultantes destas últimas, nas próprias operações intelectuais?

Ao que parece, é preciso distinguir, no domínio perceptivo, a percepção como tal - o conjunto das relações dadas em bloco e de modo imediato, ao ensejo de cada centração - e a atividade perceptiva interferindo entre outras no fato mesmo de centrar o olhar ou de mudar de centração. É claro que essa distinção permanece relativa, mas é digno de nota que cada escola seja obrigada a reconhecê-la sob uma forma ou outra. Assim é que a Teoria da Forma, da qual todo o espírito leva a restringir a atividade do sujeito em proveito das estruturas de conjunto que se imporiam em virtude de leis de equilíbrio ao mesmo tempo físicas e fisiológicas, foi obrigada a conceder uma função às atitudes do sujeito: a “atitude analítica” é invocada para explicar como as totalidades podem dissociarse parcialmente, e sobretudo a Einstellung, ou orientação do espírito do sujeito, é reconhecida como causa de numerosas deformações da percepção em função dos estados anteriores. Quanto à escola de Von. Weizãcker, Aeursperg e Bulirmester invocam antecipações e reconstituições perceptivas, que suporiam a intervenção necessária da motricidade em toda percepção. E assim por diante.

Ora, se uma estrutura perceptiva é, em si mesma, de natureza estatística e incomponivel aditivamente, é evidente que toda atividade que dirige e coordena sucessivas centrações diminuirá a parte do acaso e transformará a estrutura em jogo no sentido da composição operatória (em graus diversos, é claro, e sem atingi-la completamente). Ao lado das diferenças manifestas entre os dois domínios, existem, pois, analogias não menos evidentes, a ponto de se ter dificuldades em dizer exatamente onde cessa a atividade perceptiva e onde começa a inteligência. Eis por que não se poderia falar hoje de inteligência sem esclarecer suas relações com a percepção.

0 fato lunctamental, quanto a isso, é a existência de um desenvolvimento das percepções em função da evoluçã o mental em geral. A Psicologia da Forma insistiu com razão na invariância relativa de certas estruturas perceptivãs: a maior parte das ilusões encontra-se em qualquer idade, e tanto no animal quanto no homem; os fatores que determinam as “formas” de conjunto parecem igualmente comuns a todos os níveis, etc. Mas esses mecanismos co-

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muns abrangem sobretudo as percepções, de certo modo receptivas e imediatas,18 ao passo que a atividade perceptiva em sí e seus eleitos mamiestam transformações prolundas em função do nível mental. Além das “constâncias” da grandeza, etc., que a experiência atesta, não obstante a Teoria da Forma, se elaborarem progressivamente em função de regulações cada vez mais precisas, a simples medida das ilusões mostra a existência de modificações devidas à idade, que seriam inexplicáveis sem uma estreita relação da percepção com a atividade intelectual em geral.

Aqui, é preciso distinguir dois casos, correspondendo,, de um modo geral, ao que Binet chamava de ilusões inatas e ilusões adquiridas, e que é preferível chamar de ilusões primárias e secundárias simplesmente. As ilusões primárias são redutíveis aos simples fatores de centração e decorrem, assim, da lei das centrações relativas. Ora, elas diminuem muito regularmente de valor em função da, idade (”erro de padrão”, ilusões de Delboeuf, de Oppel, de MüIler-Lyer, etc.), o que se explica facilmente pelo aumento das descentrações e das regulações que elas comportam, em função da atividade do sujeito diante de figuras. A criancinha fica de fato passiva no caso em que crianças maiores e adultos comparam, analisam e assim se dedicam a uma descentraçã o, ativa que se orienta no sentido da reversibilidade operatória. Mas há, por outro lado, ilusões que aumentam de intensidade com o transcurso da idade Ou o desenvolvimento, tais como a ilusão de peso, ausente nos anormais graves e que aumenta com o fim da infãneia, para em seguida diminuir um pouco. Mas sabe-se que ela comporta, precisameníe, uma espécie de antecipação das relações de peso e de volume, é claro que essa antecipação supõe uma atividade cujo aumento é natural que se dê com a evolução intelectual. Uma ilusão como essa, produto de uma interferência entre os fatores perceptivos primários e a atividade perceptiva, pode portanto ser chamada de secundária, e veremos logo a seguir outras que são do mesmo tipo.

Dito isso, a atividade perceptiva assinala-se, em primeiro lugar, pela intervenção da descentração, que corrige os efeitos da centração e constitui, assim, uma regulação das deformações perceptivas. Ora, elementares e depen-

18 0 que não significa “Passiva”, visto que dá provas já de 9eis de organização”.

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dentes das funções sensório-motoras que sejam essas descentrações e regulações, é claro que el:@Cs constituem toda uma atividade de comparação e de coordenação, aparentando-se à da inteligência: olhar um objeto é já um ato, e conforme uma criança nova fixe seu olhar no primeiro ponto que surge ou o dirija de modo a abranger o conjunto das relações, pode-se quase julgar quanto ao seu nível mental. Quando se trata de confrontar objetos muito distantes de modo a poderem ser abrangidos nas mesmas centrações, a atividade perceptiva prolonga-se sob a forma de “transportes” no espaço, como se a visão de um dos objetos fosse aplicada a outro. Esses transportes que constituem assim aproximações (virtuais) de centrações, ensejam “comparaçõ es” propriamente ditas, ou duplos transportes que descentram, por suas idas e vindas, as deformações devidas ao transporte em sentido único. 0 estudo desses transportes nos mostrou, com efeito, uma nítida diminuiçã o das deformações devidas à idade,19 isto é, um nítido progresso na avaliação das grandezas a distância, e isso se explica por si mesmo, dado o coeficiente de atividade verdadeira que no caso ocorre.

Ora, é fácil mostrar que são essas descentrações e esses duplos transportes, com as regulações específicas que suas diversas variedades ensejam, que asseguram as famosas “constâncias” perceptivas da forma e da grandeza. É de fato muito notável que quase nunca se obtenham em laboratório constâncias absolutas da grandeza: a criança subestima as grandezas a distância (tendo em vista o “erro de padrão”), mas o adulto quase sempre as superestima ligeiramente! Essas “superconstãneias” que os autores não deixam de assinalar, mas sobre as quais não se detêm, em geral, como se elas constituíssem exceções difíceis, pareceram-nos ser a regra, e nenhum fato poderia atestar melhor a intervenção de regulações propriamente ditas na elaboração das constâncias. Ora, quando se vêem bebés, precisamente na idade em que se notou o início dessa constância (ao mesmo tempo exagerando muito o valor de sua precisão), dedicar-se a tentativas propriamente ditas, que consistem em aproximar ou distanciar intencionalmente de seus olhos os objetos que

19 Arch. de Psychol., XXIX (1943), pp. 173-253.

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olham,20 som-os levados a pôr a atividade perceptiva dos, transportes e das comparações em relação com as manifestações da própria inteligência sensório-motora (sem com isso voltar aos “raciocínios inconscientes” de Helmholtz). Por outro lado, parece evidente que a constância da forma dos objetos esteja relacionada com a própria elaboração do objeto, sobre o que voltaremos a falar no capítulo seguinte.

Em suma, as “constâncias” perceptivas parecem ser o produto de ações propriamente ditas, que consistem em deslocamentos reais ou virtuais do olhar Ou dos órgãos em jogo: os movimentos são coordenados em sistemas cuja organização pode variar, do simples tateio dirigido até uma estrutura que lembre o “grupamento”. Mas, no plano perceptivo, o grupamento verdadeiro jamais é atingido,, e ocorrem apenas as regulações devidas a esses deslocamentos reais ou virtuais. Eis por que as “constãneias” perceptivas, ao mesmo tempo em que lembrando as invariantes operatórias, ou noções de conservação apoiando-se em operações reversíveis e grupadas, não chegam ao rigor ideal que só a completa reversibilidade e mobilidade da inteligência lhe asseguraria. Todavia, a atividade perceptiva que as caracteriza está já próxima da composição intelectual.

Essa mesma atividade perceptiva anuncia igualmente, a inteligência no domínio dos transportes temporais e das antecipações propriamente ditas. Numa interessante experiência sobre as analogias visuais da ilusão de peso, Usnadze-’>’ apresenta a seus sujeitos dois círculos de 20@ e28 mm de diâmetro Í, durante algumas frações de segundos, e depois dois círculos de 24 mm: o círculo, de 24 mm,, situado no local em que se achava o de 28 mm, é então visto como menor que o outro (e o de 24 mm, que substitui o de 20 mm é superestimado), por um efeito de contraste devido ao transporte no tempo (o que Usnadze chama de EinstelIung). Retomando, com Lambercier, as medidas dessa ilusão com crianças de 5 a 7 anos e com adultos,22 verificamos os dois resultados seguintes, cuja reunião é muito sugestiva quanto às relações da percepção

20 A Construção do Real na Criança (publicado em português por esta Editora).21 P"chol. Forsch., XIV (1930), P. 366-22 Arch. de Ps-ychol., XXX (1944), p. 139-196.

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com a inteligência: de um lado, o efeito Usnadze é sensivelmente mais forte no adulto que nas crianças (como a própria ilusão de peso), mas, por outro lado, desaparece mais rapidamente. Após algumas apresentações de24 + 24 mm, o adulto volta aos poucos à visão objetiva, ao passo que a criança arrasta consigo um efeito residual. Não se poderia explicar essa dupla diferença por simples traços mnésicos, a menos que obrigados a dizer que a memória do adulto é mais forte, mas seu esquecimento é mais rápido! Pelo contrário, tudo se passa como se uma atividade de transposição e de antecipação se desenvolvesse com a idade, no duplo sentido da mobilidade e da reversibilidade, o que constitui um novo exemplo de evolução perceptiva orientada no sentido da operação.

Uma elegante experiência de Auersperg e Buhrmester consiste em apresentar um simples quadrado desenhado em traços brancos que se faz mover girando num disco negro. Em pequenas velocidades, vê-se diretamente o quadrado, embora a imagem retiniana consista já de urna cruz dupla envolvida por quatro traços dispostos em ângulo reto. A grandes velocidades, vê-se unicamente a imagem retiniana, mas a velocidades intermediárias vê-se uma figura de transição constituída de unia cruz simples, cercada de quatro traços. Como ressaltaram os autores, ocorre nesse fenômeno, sem dúvida, uma antecipação sensório-rnotora que permite ao sujeito reconstituir todo o quadrado (primeira fase), parte dele (segunda fase) ou que fracas-se (terceira fase), perturbado pela velocidade muito grande. Ora, com Lambercier e Demetriades, verificamos que, medida com crianças de5 a 12 anos, a segunda fase (cruz simples) aparece cada vez mais tarde (isto é, para um número de voltas sempre mais elevado), em

função da idade: a reconstituição ou antecipação do quadrado em movimento é, pois, tanto melhor (isto é, se faz a velocidades &~-e maiores) quanto mais desenvolvido for o indivíduo.

Melhor ainda, porém. Apresenta-se aos sujeitos duas hastes para comparar em profundidade, A a 1 metro, e C a 4 metros. Mede-se primeiro a percepção de C (subestimativa ou superconstância, ete.), depois coloca-se aquém de C uma haste B ‘igual a A, com 50 em de afastamento lateral, ou ainda coloca-se entre A e C uma série de intermediários B1, B, e B3, todos iguais a A (com o mesmo afastamento lateral). 0 adulto, ou a criança depois dos 8 a 9 anos, vê imediatamente A :::-- B= C (ou A = B, = B2 = B, =C), pois ele transporta igualmente as igualdades perceptivas A = B e B = C para a reação C - A, fechando, dessa forma, a figura sobre ela mesma. As crianças, ao contrário, vêem A = B; B = C e A dife-

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rente de C, como se não transpusessem as igualdades vis-tas ao longo do desvio ABC na relação AC. Ora, antes dos6 a 7 anos, a criança também não é capaz da composição operatória das relações transitivas A=i3; B=C, portanto, A=C. Mas, o que é curioso, existe, entre 7 e 8 a 9 anos, uma fase intermediária tal que o sujeito conciui de pronto,. pela inteligência, sobre a igualdade A = C enquanto vendo perceptivamente C ligeiramente diferente cie A! Esse exemplo deixa claro que também a transposição (que é um “transporte” das relações por oposição ao transporte de um valor isolado) decorre da atividade perceptiva, e não da estruturação automática comum a todas as idades, e que entre a transposição perceptiva e a transitividade Operatória existem ainda relações a determinar.

Ora, a transposição não é simplesmente exterior às figuras percebidas: ao lado dessa transposição externa, é preciso distinguir as transposições internas que permitern reconhecer, no próprio interior das figuras, as relações que se repetem, as simetrias (ou relações invertidas), etc, No caso, ainda haveria muito a dizer sobre o papel do desenvolvimento intelectual, sendo que as crianças não são absolutamente aptas a estruturar as figuras complexas como se pretendeu afirmar.

Por todos esses fatos, é lícito concluir que: o desenvolvimento das percepções prova a existência de uma atividade perceptiva originadora de descentrações, de transportes (espaciais e temporais), de comparações, de transposições, antecipações e, de modo geral, de análise, cada vez mais móvel e tendendo no sentido de reversibilidade. Essa atividade aumenta com a idade, e é por falta de possuí-la em grau suficiente que as crianças percebem de modo “sincrético” ou “global”, ou ainda por acumulação de pormenores não ligados entre si.

Sendo a percepção assim, caracterizada por sistemas irreversíveis e de ordem estatística, a atividade perceptiva introduz, pelo contrário, em tais sistemas, condicionados por uma dispersão fortuita ou simplesmente provável das centrações, uma coerência e um poder de composição progressivos. Constituirá já essa atividade uma forma de inteligência? Vimos (Cap. 1 e fim do Cap. II) a poLica significação que comporta uma questão desse gênero. Pode-se, entretanto, dizer que, em seu ponto de partida, as atividades que consistem em coordenar os olhares no sentido da descentração, em tranportar, comparar, antecipar e so-

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bretudo em transpor, são estreitamente solidárias com a imeligência sensorio-motora de que falaremos no capíuulo seguinte. Em particular, a transposição, interna ou exterila, que resume toclos os demais atos de orciem perceptiva, é muito comparável à assimilação que caracteriza os esquemas sensõrio-motores e sobretudo à assimilação generalizadora que permite a transferência desses esquemas.

Mas, se podemos aproximar a atividade perceptiva da inteligência sensório-motora, seu desenvolvimento a conduz até o limiar das operações. Ã medida que as regulaços perceptivas devidas às comparações e transposições tendem à reversibilidade, elas constituem um dos suportes móveis que permitirão o lançamento do mecanismo operatório. Este, uma vez constituído, agirá de novo sobre elas ao integrá-las, por um ricochete análogo àquele que acabamos de exemplificar a propósito das transposições de igualdades. Mas, antes dessa reação, elas preparam a operaçãG, introduzindo sempre mais mobilidade nos mecanismos sensório-motores que constituem sua subestrutura: bastará, com efeito, que a atividade mobilizadora da percepção ultrapasse o contato imediato com o objeto, e se aplique a distâncias crescentes no espaço e no tempo, para que ela transborde o próprio campo perceptivo e se liberte, assim, das limitações que a impedem de atingir a mobilidade e a reversibilidade completas.

A atividade perceptiva não é o único meio de incubação de que dispõem, em sua gênese, as operações da inteligência: resta examinar o papel das funções motoras que produzem hábitos, e de resto relacionadas de muito perto com a própria percepção.

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Hábito e Inteligência Sensório@Motora

Só para fins de análise, é lícito distinguir funções motoras e perceptiva. Como o mostrou V. Weizãcker2-1 com profundidade, a divisão clássica dos fenõmenos em excitantes sensoriais e em respostas motoras que o esquema do arco reflexo admite é tão enganadora e refere-se a produtos de laboratório tão artificiais quanto a própria noção de arco reflexo concebido em estado isolado: a percepção é, desde o início, influenciada pelo movimento, como este o é por aquela. Foi o que afirmamos, de nossa parte, ao falar de “esquemas” sensório-motores, para definir a assimilação ao mesmo tempo perceptiva e motora que caracteriza as condutas do lactente .24

Impõe-se, portanto, colocar em seu contexto genético real o que acabamos de aprender do estudo das percepções, e indagar como se elabora a inteligência antes da linguagem. Uma vez que ele ultrapasse o nível dos equipamentos puramente hereditários que são os reflexos, o lactente adquire hábitos em função da experiência. Cabe então perguntar: esses hábitos preparam a inteligência ou nada têm a ver com ela? Trata-se de problema paralelo ãquele que apresentamos a propósito da percepção. A resposta dá a impressão de ser a mesma, o que nos permite avanÇar mais rapidamente e situar o desenvolvimento da inteligência sensório-motora no conjunto dos processos elementares que a condicionam.

23 Der Gestalkreis, 1941.24 0 Nascimento da Inteligência na Criança (publicado por esta Editora).

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Hábito e inteligência. I. Independência ou derivações diretas

Nada mais próprio a fazer sentir a continuidade que liga o problema do surgimento da inteligência ao da formação dos hábitos que o confronto das diversas soluções apresentadas a essas duas questões: as hipóteses são as mesmas, como se a inteligência prolongase os mecanismos cuja automatização constitui o hábito.

Com efeito, verificamos, a propósito do hábito, os esquemas genéticos da associação, das tentativas e erros ou da estruturação assimiladora. Do ponto de vista das relações entre hábito e inteligência, o associacionismo. equivale pois a fazer do hábito um fato primeiro que explica a inteligência. 0 ponto de vista das tentavias e erros reduz o hábito a uma automatização dos movimentos selecionados após os tateio, sendo estes característicos da própria inteligência. 0 ponto de vista da asimilação concebe a inteligência como uma forma de equilíbrio da mesma atividade assimiladora, cujas formas de início constituem o hábito. Quanto às interpretações não gen-,_-tica@-., encontramos as três combinações correspondentes ao vitalismo, ao apriorismo e ao ponto de vista da Teoria da Forma: o hábito decorrente da inteligência; o hábito sem relação com a inteligência e o hábito explicando-se, como a inteligência e a percepção, por estruturações cujas leis restam independentes do desenvolvimento.

Sob a perspectiva das relações entre hábito e inteligência (única questão que nos interessa aqui), importa examinar primeiro se as duas funções são independentes, depois se uma decorre da outra e, finalmente, de que formas comuns de organização hábito e inteligência emanariam em níveis diversos.

É próprio da lógica da interpretação aprioristica das operações intelectuais negar-lhes qualquer relação com os hábitos, dado que estes teriam origem numa estrutura interna independente da experiência, ao passo que as operações intelectuais são adquiridas mediante a experiência. Verifica-se, de fato, na introspecção dos dois tipos de realidade em seu estado de acabamento que suas oposições parecem profundas e suas analogias superficiais. H. Delacroix sutilmente observou umas e outras: aplicando-se a circunstâncias renovadas, um movimento habitual parece envolver certa espécie de genralização, mas a inteli-

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.gência substitui o automatismo inconsciente deste por certa genralidade de uma qualidade totalmente diferente feita de opções intencionais e de compreensão. Tudo isso é perfeitamente exato, porém, quanto mais se analisa a formação de um hábito, em constraste com a .sua prática automatizada, mais se verifica a complexi- ,dade das atividades que entram em jogo de início. Por outro lado, retornando-se às origens sensório-motoras da inteligência, verificamos o contexto do learning em geral. É, pois, indispensável, antes de concluir pela irredutibilidade dos dois tipos de estruturas, indagar, ao mesmo ,tempo distinguindo verticalmente uma série de condutas de níveis diferentes e tendo em mente seu grau de novidade e automatização, se não existiria certa continuidade entre as coordenações curtas e relativamente rígidas que se costuma chamar de hábitos e as coordenações em termos extremos mais distantes e de mobilidade maior que caracterizam a inteligência.

Foi o que Buytendijk observou muito bem, analisando com sagacidade a formação dos hábitos animais elementares, sobretudo nos invertebrados. Apenas, quanto mais ele descobre a complexidade dos fatores do hábito, mais tende a subordinar a coordenação peculiar aos hábitos à própria inteligência, em virtude do sistema de interpretação vitalista adotado por Buytendijk. Nesse caso, a inteligência seria uma faculdade inerente ao próprio organismo. Para que se constitua, o hábito supõe sempre uma relação fundamental de meio a fim: uma ação jamais é uma seqüência de movimentos associados mecanicamente, mas orientada no sentido de uma satisfação, tal como o contato com o alimento, ou como a libertação, à maneira dos caracóis que são colocadosem posição contrária e que cada vez mais rapidamente encontram sua posição normal. Ora, a relação, meios e fins caracteriza as ações inteligentes: o hábito seria pois expressão de uma organização inteligente, de resto coextensiva a toda estrutura viva. Assim como Helmholtz explicava a percepção pela intervenção de um raciocínio inconsciente, o vitalismo chega a fazer do hábito o resultado de uma inteligência orgãnica inconsciente.

Mas se devemos dar plena razão a Buytendijk quanto à complexidade das aquisições mais simples e irredutibilidade da relação entre a necessidade e a satisfação, ori-

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gem, e não efeito das associações, será temerário explicar, tudo através de =a inteligência apresentada a título de fato primeiro. Uma tese como essa acarreta =a série de dificuldades que são exatamente as mesmas da interpretação paralela no domínio da percepção. Por um lado, o hábito, como a percepção, é irreversível, porque sempre dirigido em semido único para o mesmo resultado, ao, passo que a inteligência é reversível: inverter um hábito, (escrever ao inverso ou da direita para a esquerda, etc.) consiste em adquirir novo hábito, ao passo que uma “operação inversa” da inteligência é psicologicamente compreendida ao mesmo tempo que a operação direta (e constitui logicamente a mesma transformação, mas em outro sentido). Em segundo lugar, assim como a compreensão@ inteligente modifica apenas pouco uma percepão (o saber não influi numa ilusão, como o respondia já Hering a HelInholtz) e que, reciprocamente, a percepção elementar não se estende simplesmente em ato de inteligí-',ncia, também a inteligência modifica apenas pouco um hábito adquirido e sobretudo a formação de um hábito não é imediatamente seguida do desenvolvimento da inteligência.Há, igualmente, uma distãneia sensível, na ordem genética, entre o aparecimento dos dois tipos de estrutura. As anênionas do mar, de Piéron, que se fecham com a maré baixa e conservam assim a água que lhes é necessária, não mostram inteligência muito móvel, e conservam em particular, no aquário, o hábito adquirido e que poucos dias depois naturalmente desaparece. Os gobiões de GoIdschmidt, para buscar alimento, aprendem a passar pelo furo de uma chapa de vidro e conservam seu itinerário mesmo depois de retirada a chapa: pode-se chamar essa conduta de inteligência não-cortical, mas de qualquer modo trata-se de uma inteligência bem inferior à que comumente chamamos de inteligência em seu sentido pleno.,

Daí a hipótese que há muito pareceu a mais simples: o hábito deveria constituir um fato primeiro, explicável em termos de associações sofridas passivamente, e a inteligência dele decorreria aos poucos, na razão da complexidade crescente das associações adquiridas. Não julgaremos aqui o associacionismo. As objeções a esse modo de interpretação são tão comuns quanto suas ressurreições sob formas diversas e não raro disfarçadas. Contudo, é indispensável lembrar como os hábitos mais elementares se tornam irredutíveis ao esquema da associação passiva,

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para atingir as estruturas da inteligência em seu desenvolvimento real.

Ora, a noção do reflexo condicionado, ou do condicionamento em geral, revitalizou o associacionismo ao lhe proporcionar ao mesmo tempo um modelo fisiológico preciso e uma nova terminologia. Donde uma série de aplicações tentadas pelos psicólogos na interpretação das funções intelectuais (linguagem, etc.) e às vezes do próprio ato integente.

Mas se é um fato a existência das condutas condicionadas, e mesmo muito importante, sua interpretação não implica o associacionismo reflexolõgico de que se as torna tão freqüentemente solidárias. Quando um movimento está associado a certa percepção, nessa conexão há mais que associação passiva, isto é, que se grave apenas em função da repetição: há um jogo de significações, porque a associação só se constitui em função de uma necessidade e de sua satisfação. Todos sabem, na prática, mas muitos se esquecem na teoria, que um reflexo condicionado só se estabiliza na medida em que confirmado ou san- ,cionado: um sinal associado a certo alimento só produz uma reação durável se os alimentos continuarem a ser apresentados periodicamente em associação com o sinal. A associação vem, assim, inserir-se numa conduta total ,cujo ponto de partida é a necessidade e o ponto de chega- ,da é sua satisfação (real, antecipada ou ainda lúdica, etc.) . Isto equivale a dizer que não se trata de uma associação, no sentido clássico do termo, mas da constituição de um esquema de conjunto ligado a uma significação. Mais ainda, se estudarmos um sistema de condutas condicionadas em sua sucessão histórica (e aquelas que interessam a psicologia apresentam sempre tal sucessão, em contraste com os condicionamentos fisiológicos muito simples), vemos melhor ainda o papel da estruturação total. Assim é que André Rey, colocando uma cobaia no compartimento A de uma caixa de três compartimentos sucessivos, ABC, produziu-lhe um choque elétrico precedido de um sinal: ao repetir o sinal, a cobaia saltou para o compartimento B, depois voltou a A; mas bastaram algumas excitações a mais para que ela saltasse de A a B, de B a C e voltasse de C a B e a A. A conduta condicionada não é, pois, no caso, a simples transposição dos movimentos de início @devidos ao reflexo simples, mas uma conduta nova que

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só atinge a estabilidade por uma estruturação de todo o meio.2,5

Ora, se assim acontece com os tipos mais elementares de hábito, o mesmo acontece a fortiori quanto às “transferências associativas” cada vez mais complexas que o conduzem ao limiar da inteligência: sempre que haja assoeição entre movimentos e percepções, a pretendida associação, consiste, na realidade, em integrar o novo elemento num esquema anterior de atividade. Seja esse esquema anterior de ordem reflexa, como no reflexo condicionado, -ou de níveis sempre mais elevados, em todos os casos a associação é de fato assimilação, de tal modo que jamais o vínculo associativo é simples decalque de uma relação -dada inteiramente feita na realidade exterior.

Essa a razão pela qual o exame da formação dos hábitos, assim como da estrutura da percepção, interessa no mais elevado grau ao problema da inteligência. Se a inteligência incipiente consistisse apenas em exercer sua atividade, tardia e situada numa escala superior, num mun- ,do acabado de associações e de relações, correspondendo termo a termo às relações inscritas de uma vez por todas no meio exterior, essa atividade seria em realidade ilusória. Pelo contrário, na medida em que a assimilação organizadora que chegará finalmente às operações próprias ao :intelecto intervém desde o início na atividade perceptiva e na gênese dos hábitos, os esquemas empiristas que se procura dar da inteligência acabada são insuficientes em todos os níveis, porque desprezam a construção assimiladora.

Sabe-se, por exemplo, que Mach e Rignano concebem o raciocínio como uma “experiência mental”. Essa descrição, correta em seu princípio, perderia o sentido de uma solução explicativa se a experiência fosse a cópia de uma realidade exterior completa. Mas como tal não se dá e já que, no plano do hábito, a acomodação ao real supõe urna assimilação deste aos esquemas do sujeito, a explicação do raciocínio pela experiência mental encerra-se num círculo: é preciso toda a atividade da inteligência para ,fazer uma experiência, tanto efetiva como mental. No estado acabado, uma experiência mental é a reprodução em pensamento não da realidade, mas das atividades ou ope-

25 A. Rey, “As condutas condicionadas da cobaia” (Arch. Ps-ych., XXV [1936], pp. 217-312).

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rações que sobre ela se exercem, e o problema de sua gêne. se portanto permanece inteiro. Só no nível dos inícios do pensamento da criança se pode falar de experiência mental no sentido de simples imitação interior do real: mas nesse caso o raciocínio ainda não é p-i,ecisamente lógico.

Igualmente, quando Spearman reduz a inteligência aos três momentos essencais: “apreensão da experiência” ; “educação das relações” e “educação dos correlatos”, é pre- ciso acrescentar que a experiência não se apreende sem a mediação de uma assimilação construtiva. As chamadas “educções11 de relações devem ser concebidas, então, como operações propriamente ditas (seriação ou ajuste de relações simétricas). Quanto à educção dos correlatos (”a apresentação de um aspecto junto a uma relação tende a evocar imediatamente o conhecimetIno. do aspecto correlato1126) @ é solidária com os grupamentos bem definidos, que são os da multiplicação das classes ou das relações (Cap. 2).

Hábito e Inteligência: II. Tateio e estruturação

Vimos, pois, que nem o hábito nem a inteligência podem explicar por um sistema de coordenações associativas correspondente sem mais nada a relações já dadas na realidade externa; por outro lado, vimos também que hábitos e inteligência pressupõem ambos uma atividade do próprio sujeito. Sendo assim, acaso a interpretaçã o mais simples não consistirá em reduzir essa atividade a uma série de tentativas feitas ao acaso (isto é, sem relação direta com o meio), mas selecionadas aos poucos graças aos êxitos ou aos fracassos aos quais acabam por chegar? Assim é que Thorndièe, para captar o mecanismo da aprendizagem, coloca animais num labírinto e mede a aquisição pelo número decrescente dos erros. Primeiro o animal tateia. isto é. faz tentativas fortuitas, mas os erros são gradualmente eliminados e mantidas as tentativas bem sucedidas, até que fiquem determinados os itinerários posteriores. 0 princípio dessa seleção mediante o resultado obtido chama-se “lei do efeito”,

26 The nature of intelligence, 1923, p. 91 (trecho traduzido po-r Claparède, La Genèse de 1'hypothèse, p. 42).

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A hipótese é, pois, sedutora: a atividade do sujeito inter. vém nas tentativas; a do meio nas seleções, e a lei do efeito sustenta a função das necessidades e suas satisfações que enquadram toda conduta ativa.

Mais que isso ainda: um esquema como esse é de molde a elucidar a continuidade que liga os hábitos mais elementares à inteligência mais evoluída: Claparède retomou as noções do tateio e do controle empírico obtido com a repetição dos tateios bem sucedidos e transformou essas noções no princípio de uma teoria da inteligência, aplicada sucessivamente à inteligência animal, à inteligência prática da criança e até ao problema da “Gênese da hipótese"27 em psicologia do pensamento adulto. Mas, nos numerosos escritos do psicólogo suíço, assiste-se à evolução significativa, dos primeiros aos últimos, ao ponto em que por si só o exame desse desenvolvimento de suas idéias já constitui uma crítica suficiente da noção de tateio.

Claparède começa por contrastar a inteligência - que ele considera como função vicariante de adaptação nova- ao hábito (automatizado) e ao instinto (que se constitui de adaptações às circunstâncias que se repetem). Ora, como se comporta o sujeito diante de circunstâncias novas? Desde os mais elementares infusórios de Jennings até o homem (e ao próprio cientista que defronte o imprevisto), o sujeito primeiro tateia. Esse tateio pode ser puramente sensõrio-motor ou se interiorizar sob a forma de “tentativas” apenas do pensamento; mas sua função é sempre a mesma: criar soluções, que a experiência irá selecionar com o passar do tempo.

0 ato completo da inteligência pressupõe, assim, três momentos essenciais: a questão que orienta a busca; a hipótese que prevê as soluções; o controle que as seleciona. Só se podem distinguir duas formas de inteligência: uma, prática (ou “empirica”); a outra, a inteligência refletida (ou “sistemática”). Na primeira, a questão se apresenta sob as espécies de simples necessidade, a hipótese de um tateio sensório-motor e o controle, de simples seqüência de fracassos e êxitos. É na inteligência refletida ou sistemática que a necessidade se reflete em questão, que o tateio se interioriza em procura de hipóteses e que o controle antecipa a sanção da experiência por meio de uma “consciência das relações% suficiente

27 Arch. de Psychol., XXIV (1933), pp. 1-155.

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para afastar as hipóteses falsas e a conservar as apropriadas.

Esse era o quadro da teoria quando Claparède tratou do problema da gênese da hipótese em psicologia do pensamento. Ora, ao mesmo tempo em que ressaltal-icio o papel evidente que o tateio mantém nas formas de pensamento mais evoluídas, Claparède foi levado, por seu método da “reflexão falada”, a não mais situá-lo no próprio ponto de partida da procura inteligente, mas, por assim dizer, à margem, ou na frente, e apenas quando os dados ultrapassam demais a compreensão do sujeito, Pelo contrário, o ponto de partida parece-lhe dado poi uma atitude cuja importância até então ele não havia notado: diante dos dados do problema, e uma vez orientada a procura pela necessidade ou a questão (graças a um me. canismo considerado, de resto, ainda misterioso), há em primeiro lugar a compreensão de um conjunto de relações por simples “implicação”. Essas “implicações” podem ser corretas ou falsas. Corretas, elas serão conservadas pela experiência. Falsas, serão contraditadas por essa última, e só então começa esse tateio. 0 tateio só ocorre, portanto, a título de suplemento, isto é, de conduta derivada em relação às implicações iniciais. Conclui pois Claparède que o tateio jamais é puro: ele é em parte orien.tado pela questão e implicações, e só se torna realmente fortuito na medida em que os dados ultrapassam em muito os esquemas antecipadores.

Em que consiste a “implicação”? Nessa questão é que a doutrina assume o sentido mais amplo e relaciona o problema do hábito tanto quanto da própria inteligência. No fundo, a “implicação” é quase a antiga “associação” dos psicólogos clássicos, mas revestida de um sentimento de necessidade vindo de dentro e não mais de fora. Ela consiste na manifestação de uma “tendência primitiva”, fora da qual o sujeito não poderia, em nível algum, tirar proveito da experiência (p.'104). Ela não se deve à “repetição de um par de elernentos”, mas, pelo contrário, deriva da repetição do semelhante, e “nas<.-e ‘in-5 ao erseio do primeiro encontro dos dois elementos desse par” (T).

105). A experiência, portanto, só ipode rompê-la. or, ronfirmâ-la, mas não a cria. Porém, é auando a ex~oeriènc@a impõe, uma aproximação que o sujeito a reveste de uma im,olicação: com efeito, suas raízes deveriam ser -orocuradas na “lei de coalescência” de William James (lei preci-

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samente pela qual W. James explicava a associação!) : “A lei de coalescência engendra a implicação no plano cia ação e o sincretismo no plano da representação” (p. 105). Claparède vai, assim, ao ponto de interpretar o reflexo condicionado pela implicação: o cão de Pav1ov saliva ao ouvir o som do sino, depois de ter ouvido esse som ao mesmo tempo em que via seu alimento, porque então o som “implica” o alimento.

Mereec exame atencioso essa inversão progresiva da teoria do tateio. Começando por uma questão aparentemente secundária, não haveria falso problema, talvez, no indagar de que maneira a questão ou a necessidade orientam a procura, como se questão e necessidade existissem independentemente da procura? A questão e a própria necessidade são, com efeito, expressão de mecanismos já constituídos de antemão, e que se acham apenas em estado de desequilíbrio momentâneo: a necessidade de mamar pressupõe a organização completa dos aparelhos de sucçã o, e, na outra extremidade, questões como “que “onde?”, etc. exprimem classificações, estruturas espaciais, etc. já construídas no todo ou em parte (veja-se Cap. 2). Daí o esquema que orienta a procura ser aquele cuja existência é necessária para explicar o aparecimento da necessidade ou da questão: estas, como a procura de que assinalam a tomada de consciência, traduzem, pois, um único ato de assimilação do real a esse esquema.

Dito isso, será legítimo conceber a implicação como um fato primeiro, ao mesmo tempo sensório-motor e intelectual, fonte do hábito como da compreensão? r@, em primeiro lugar sob a condição, é claro, de não tomar esse termo no sentido lógico de vínculo necessário entre julgamentos, mas no sentido muito geral de urna relação de necessidade qualquer. Ora, acaso dois elementos vistos juntos pela primeira vez darão essa relação? Tomando um exemplo de Claparède, será que um gato preto visto por um bebé acarretará sem mais nada, quqndo percebido pela primeira vez, a relação “gato implica preto”? Se os dois elementos forem realmente vistos pela primeira vez, sem analogias nem antecipacões, iá estarão, certamente, englobados num todo perceptivo, ‘numa Gestalt, o que é expresso sob outra forma pela lei de coalescencia de James ou o sincretismo invocado por Claparède. É claro ainda que haja no caso uma associação, na medida em que o todo resulta não da reunião dos dois

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elementos já percebidos cada um à parte, mas de sua fusão imediata por estruturação de conjunto. Só que não é um vínculo de necessidade: é o início de um esquema possível, mas que não criará relações percebidas como necessárias, a menos que sob condição de se constituir a título de esquema real, por uma transposição ou uma generalização (portanto, uma aplicação a novos elementos); em suma, enísejando uma assimilação. Assimilação é, pois, o que está na origem do que Claparède chama de implicação: falando de modo esquemático, o sujeito não chega, portanto, ao relacionamento “A implica x” ao ensejo do primeiro A percebido com a qualidade x, mas será levado à relação “A, implica x” na medida em que assimile A2 ao esquema (A), sendo esse esquema preci- samente criado pela assimilação A2 = A. 0 cão que sãliva, ao ver seu alimento, portanto, só salivara ao som do sino se assimilar o alimento ao esquema dessa ação a título de indício ou de parte do ato total. Claparède tem muita razão ao dizer que não é a repetição que gera a implicação, mas que apenas no curso da repetição ela aparece, porque a implicação é o produto interno da assimilação que garante a repetição do ato exterior.

Ora, essa intervenção necessária da assimilacão reforça ainda as reservas que o próprio Claparède foi levado a formular quanto ao papel geral do tateio. Em primeiro lugar, é evidente que o tateio, quando se apresenta, não poderia explicar-se em termos mecânicos. Do ponto de vista mecânico, isto -é, na hipótese de simples ato sexual, os erros deviam reproduzir-se tanto quanto as tentativas coroadas de êxito. Se tal não é o caso, isto é, se a “lei do efeito” atua, é que ao ensejo das repetições o sujeito antecipa seus fracassos e êxitos. Em outras palavras, cada tentativa age sobre a seguinte não como um canal abrindo caminho a novos movimentos, mas como um esquema permitindo atribuir significações às tentativas ulteriores.28 Portanto, o tateio não exclui de modo algum a assimilação.

Há mais, porém. As próprias primeiras tentativas dificilmente serão redutíveis ao simples acas0.29 DX. Adams

28 Veja-se 0 Nascimento da Inteligência na Criança (publicado no Brasil por esta editora), Cap. V, e Guillaume, A Formação dos Hábito8, pp. 144-154.29 A Formação dos Mbitos, pp. 65-67.

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acha nas experiências de labirinto movimentos de uma só vez orientados. W. Dennis, e depois J. Dashiell insistem na continuação das direções inicialmente adotadas. Tolman e Krechewsky falam mesmo de “hipóteses” para descrever os movimentos dos ratos, etc. Donde as importantes interpretações a que foram levados C. Hull e C. E. Tolman. Hull insiste na oposição entre os modelos psíquiccs que implicam meios e fins e os modelos mecânicos de reprodução: enquanto nestes últimos se impõe a linha reta, os primeiros dispõem de um nú mero de caminhos possíveis tanto maior quanto mais complexo for o ato. Isto aquivale a dizer que, desde o nível das condutas sensório-motoras fazendo transição entre a aprendizagem e a inteligência, é preciso ter em conta o que virá a ser a Ilassociatividade” das operações em seus “grupamentos” finais (Cap. 2). Por sua vez, Tolman põe em evidência o papel da generalização na formação dos próprios hábitos: assim é que diante de um novo labirinto, diferente daquele que o animal conhece, este percebe analogias de conjunto e aplica a esse novo caso as condutas que lhe foram bem sucedidas no precedente (itinerários particulares). Há sempre, pois, estruturações de conjunto, mas as estruturas em jogo não são simples “formas” para Tolman, no sentido da teoria de KoehIer: são Sign-Gestalt, isto é, esquemas providos de significações. Esse duplo caráter generalizável e significativo das estruturas encaradas por Tolman demonstra bem que se trata daquilo que chamamos de esquemas de assimilação.

Desse modo, da aprendizagem elementar até a inteligência, a aquisição parece implicar uma atividade assimiladora tão necessária à estruturação das formas mais passivas do hábito (condutas condicionadas e transferências associativas) quanto ao desenrolar das manifestações visivelmente ativas (tateios orientados). Quanto a isto, o problema das relações entre o hábito e a inteligência é bem paralelo ao das relações entre esta e a percepção. Assim como a atividade perceptiva não -à idêntica à inteligência, mas a encontra tão logo se libera da centração sobre o objeto imediato e atual, do mesmo modo a atividade que engendra os hábitos não se confunde com a inteligência, mas chega a esta tão logo os sistemas sensório-motores irreversíveis e sem solução de continuidade se diferenciam e se coordenam em articulações móveis. Quanto ao mais, o parentesco dessas duas espécies de ati-

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vidades elementares é evidente, visto que percepções e movimentos habituais estão sempre indissociavelmente reunidos em esquemas de conjunto e que a “transferência” ou generalização própria do hábito é o equivalente exato, na ordem motora, da “transposição” no plano das figuras espaciais, ambos supondo a mesma assimilação generalizadora.

Assimilação sensório-motora e nascimento da inteligência na criança

Procurar como nasce a inteligência a partir da ativi’ dade assimiladora que engendra anteriormente os hábi’ tos é mostrar como essa assimilação sensório-motora se realiza em estruturas sempre mais móveis e de aplicaçã o cada vez mais extensa, a partir do momento em que a vida mental se dissocia da vida orgânica.

Ora, desde os equipamentos hereditários, assiste-se, ao lado da organização interna e fisiológica dos reflexos, a efeitos cumulativos do exercício e aos inícios de procura que assinalam as primeiras distâncias, no espaço e no tempo, por meio das quais definimos a “conduta” (Cap. 1). Um recém-nascido alimentado com a colher terá dificuldade, depois, em tomar o seio. Quando ele mama desde o inicio, sua habilidade aumenta regularmente; colocado ao lado do bico do seio, ele irá procurar a posição apropriada e a encontrará cada vez mais rapidamente. Sugando qualquer coisa, logo rejeitará, contudo, um dedo, mas conservará o seio. Entre as refeições, ele sugará sem nada a sugar, etc. Essas observações banais mostram que, já no interior do campo fechado dos mecanismos regulados hereditariamente, surge um início de assimilação reprodutora de ordem funcional (exercício), de assimilação generalizadora ou transpositiva (extensão do esquema reflexo a novos objetos) e assimilação recognitiva (discriminação, das situações).

É nesse contexto já ativo que vêm inserir-se as primeiras aquisições em função da ex-periência (sendo que o exercício reflexo não conduz a uma aquísição real, mas a simples consolidação). Quer se trate de uma coordenação aparentemente passiva, tal como um condicionamento (por exemDlo, um sinal que desencadeia uma atitude anteciDadora de sucção), ou de uma extensão espontânea do

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campo de aplicação dos reflexos (por exemplo, sucção sistemática do polegar por coordenação dos movimentos do braço e da mão com os da boca), as formas elementares do hábito advém de uma assimilação de elementos novos aos esquemas anteriores, que são no caso esquemas reflexos. Mas importa apreender que a extensão do esquema reflexo pela incorporação do novo elemento acarreta, por isso mesmo, a formação de um esquema de ordem superior (o hábito como tal), o qual integra a si, portanto, o esquema inferior (o reflexo). A assimilação de um novo elemento a um esquema anterior implica, pois o retomo à integração deste num esquema superior.

Entretanto, não se poderia, evidentemente falar de inteligência ao nível desses primeiros hábitos. Comparado aos reflexos, o hábito apresenta um campo de aplicaçãQ a distância maiores, no espaço e no tempo. Mesmo ampliados, porém, esses primeiros esquemas são contínuos, sem mobilidade interna nem coordenação uns com os ou-tros. As generalizações a que são suscetíveis não passam, ainda de transferências motoras comparáveis às transposições perceptivas mais simples e, não obstante sua continuidade funcional com as fases seguintes, nada permite ainda compará-las por sua estrutura à própria inteligência.

Por outro lado, ao ensejo de um terceiro nível, que começa com a coordenação da visão e da preensão (entre 3 e 6 meses de idade, comumente em torno de 5 a seis meses), surgem novas condutas, que fazem a transição entre o hábito simples e a inteligência. Suponhamos um bebé em seu berço, do qual pendem chocalhos e um cordão livre: a criança pega o cordão e o puxa sem nada esperar nem compreender do pormenor das relações espaciais ou causais do conjunto do dispositivo. Surpresa com o ruído do movimento dos chocalhos, procura o cordão e recomeça tudo várias vezes. J. M. Baldwin chamou de “reação circular” essa reproduçã o ativa de um resultado obtido pela primeira vez ao acaso. A reação circular é, assim, um exemplo típico de assimilação reprodutora. 0 primeiro movimento executado seguido de seu resultado, constitui uma ação total, que cria uma nova necessidade tão logo os, objetos sobre os quais ela recai voltam a seu estado ini.cial: estes são então assimilados à ação precedente (prormovida por isso à categoria de esquema), o que desencadeia sua produção, e assim por diante. Ora, esse meca.-

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nismo é idêntico àquele que se encontra já no ponto de partida dos hábitos elementares, salvo que, nesse caso, a reação circular recai sobre o corpo próprio (chamemos pois de reação circular primária aquela do nível precedente, tal como o esquema de chupar o polegar), ao passo que doravante, graças à preensão, ela recai sobre objetos externos (chamemos de reação circular secundária essas condutas relativas aos objetos, lembrando-nos, ao mesmo tempo, de que elas ainda não são, absolutamente, substancializadas pela criança).

Portanto, a reação circular participa ainda, em seu ponto de partida, das estruturas próprias dos simples hábitos. Condutas sem solução de continuidade, que se repetem em bloco, sem objetivo previsto de antemão e com utilização dos acasos surgidos durante o trajeto, elas nada têm, com efeito, de um ato completo de inteligência, e é preciso precaver-se de projetar no espírito do sujeito as distinções que faríamos em seu lugar entre um meio inicial (puxar o cordão) e um objetivo final (sacudir o cortinado), assim como de lhe atribuir as noçõ es de objeto e de espaço que ligamos a uma situação, que para a criança é global e não analisada. Entretanto, tão logo a conduta seja repetida várias vezes, verificamos que ela apresenta uma dupla tendência no sentido da desarticulação e da rearticulação interna de seus, elementos, e no sentido da generalização ou transposiçã o ativa diante de novos dados, sem relação direta com os precedentes. Sobre o primeiro ponto, verifica-se, com efeito, que após haver acompanhado os acontecimentos na ordem: cordão - sacudida -

brinquedos, a conduta toma-se suscetível de um princípio de análise: a visão dos chocalhos imóveis e em particular a descoberta de um novo objeto que se acaba de pendurar no teto irão desencadear a procura do cordão. Sem que nisso haja, ainda, verdadeira reversibilidade, é claro que há progresso na mobilidade, e que há quase articulação da conduta em um meio (reconstituído depois, com o passar do tempo) e um objetivo (fixado depois). Por outro lado’ se colocamos a criança diante de uma situação inteiramente nova, tal como o espetáculo de um movimento situado a dois ou três metros de distância dela, ou mesmo de som que se faça ouvir no quarto, acontece que ela procura e puxa o cordão, como para fazer continuar à distância o espetãculo interrompido. Ora, essa nova con-

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duta (que bem confirma a ausência de contatos espaciais e de causalidade inteligível) constitui, seguramente, uni início de generalização propriamente dita. Tanto a articulação interna quanto essa transposição externa do ésquema circular anunciam, assim, o aparecimento proximo da inteligência.

De fato, as coisas se esclarecem num quarto nível. A partir dos oito a dez meses, os esquemas construidos pelas reações secundárias, no curso do estágio precedente, tornam-se suscetíveis de se coordenarem entre si, uns utilizados como meios e outros determinando uma finalidade pQ-r,,L a ação. Assim é que, para apreender um objetivo situado atrás de uma tela que o oculta total ou parcialmente, a criança irá primeiro afastar a tela (utilizando os esquemas de captar ou bater, ete.), e depois se apoderar do objetivo. Por conseguinte, daí por diante o objetivo. é determinado antes dos meios, visto que o sujeito tem a intenção de apreender o objetivo antes de ter a intenção de remover o obstáculo, o que pressupõe uma articulação móvel dos esquemas elementares que compõem o esquema total. Por outro lado, o novo esquema total torna-se suscetível de generalizações bem mais amplas que anteriormente. Essa mobilidade, juntamente com esse progresso na generalização, assinala-se em partÍcular no fato de que, diante de um novo objeto, a criança tenta sucessivamente os últimos esquemas adquiridos anteriormente (captar, bater, sacudir, esfregar, etc.), sendo estes últimos utilizados, portanto, a título de conceitos sensório-motores, se assim podemos falar, como se o sujeito procurasse compreender o novo objeto mediante a utilização (à maneira das “definições pelo uso” que iremos verificar bem mais tarde no plano verbal).

As condutas desse quarto nível dão provas, assim, de um duplo progresso: no sentido da mobilidade e da extensão do campo de aplicação dos esquemas. Esses trajetos percorridos pela ação, mas também pelas antecipações e reconstituições sensório-motoras, entre o sujeito e os objetos, não mais são como nos estágios precedentes dos trajetos diretos e simples: retilínios, como na, percepção, ou estereotipados e de sentido único, como nas reações circulares. Os itinerários começam a variar e a utilização dos esquemas anteriores a percorrer distâncias maiores no tempo. É o que caracteriza a conexão dos

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meios e fins, agora diferençados, e a razão pela qual pode-se começar a falar de inteligência verdadeira. Mas, além da continuidade que a relaciona às condutas precedentes, é preciso. observar a limitação dessa inteligê ncia nascente: não há invenção nem descoberta de novos meios, mas simples aplicação dos meios conhecidos às circunstâncias imprevistas.

Duas aquisições caracterizam o nível seguinte, ambas relativas à utilização da experiência. Os esquemas de assimilação até aqui descritos são, naturalmente, acomodados de modo continuo aos dados exteriores. Mas essa acomodação é, por assim dizer, mais sofrida que procurada: o sujeito age de acordo com suas necessidades e essa ação se ajusta ao real ou depara com resistências que sua atividade procura contornar. Os movimentos que surgem fortuitamente são desprezados ou assimilados a esquemas anteriores e reproduzidos por reação circular. Advêm, pelo contrário, um momento em que a novidade ínteressa por si mesma, o que pressupõe, seguramente, urn equipamento suficiente de esquernas para que sejam possíveis as comparações e que o fato novo seja bastante semelhante ao conhecido para interessar e bastante diferente para escapar à saturação. As reações circulares consistirão, então, de uma reprodução do fato novo, mas com variações e experimentação ativa, destinadas e extrair delas precisamente as possibilidades novas. Tendo assim descoberto a trajetória da queda de um objeto, a criança irá procurar jogá-lo de modos diferentes ou de pontos de partida distintos. Pode-se chamar de “reação circular terciária” esta assimilação reprodutora com acomodação diferençada e intencional.

A partir de então, quando esquemas forem coordenados entre si a título de meios e objetívos, a criança não mais se limitará a aplicar os meios conhecidos às novas situações: irá diferençar esses esquemas que servem de meios, por uma espécie de reação circular terciária, e, por conseguinte, virá a descobrir novos meios. É desse modo que são elaboradas séries de condutas cujo caráter de inteligência ninguém contesta: levar a si o objetivo por meio do suporte sobre o qual esteja situado, um barbante que lhe seja o prolongamento ou mesmo uma vara Utilizada como intermediário independente. Mas, por mais cowplexa que seja essa última conduta, é preciso ter

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bem claro que, nos casos comuns, ela não surge ex abrupto, e se acha, pelo contrário, preparada por uma seqüência completa de relações e de significações devidas à atividade dos esquemas anteriores: a relação de meios a fim, a noção de que um objeto pode pôr outro em movimento, etc. A conduta do suporte é a mais simples quanto a isso: não podendo atingir diretamente o objetivo, o sujeito recorre a objetos situados entre dois (a toalha sobre a qual está o brinquedo desejado, etc.). Os movi- ,mentos que a preensão da toalha imprime ao objetivo permanecem sem significação nos nível anteriores: de posse das relações necessárias, o sujeito compreende, porém, de uma só vez, a possível utilização do suporte. Sabe-se, em tais casos, a verdadeira função do tateio no ato de inteligência: ao mesmo tempo orientado pelo esquema que atribui um objetivo à açã o, e pelo esquema escolhido a título de meio inicial, o tateio, é, além do mais, sempre orientado, no curso de tentativas sucessivas, pelos esquemas suscetíveis de dar uma significação aos acontecimentos fortuitos, desse modo utilizados inteligentemente. Portanto, o tateio jamais é puro, mas constitui apenas a margem de acomodação ativa compatível com as coordenações assimiladoras que constituem o essencial da inteligência.

Finalmente, um sexto nível, que abrange parte do segundo ano de vida, assinala a culminação da inteligência sensório-motora: em vez de os meios novos serem descobertos exclusivamente por experimentação ativa, como no nível precedente, pode haver invenção daí por diante, mediante coordenação, interior e rápida, de processos ainda não conhecidos do sujeito. A esse último tipo é que pertencem os fatos de brusca reestruturação descritos por KoehIer nos chipanzés e a Aha-Erlebnis de K. BühIer, ou o sentimento de compreensã o súbita. Em crianças que não tiveram anteriormente a oportunidade de experimentar a utilização de varas, acontece que o primeiro contato com uma vara desencadeia a compreensão de suas relações possíveis com o objetivo a atingir, e isso sem tateio real. Por outro lado, parece evidente que certos sujeitos estudados por KoehIer inventaram a utilização cia vara praticamente sob seus olhos e sem exercício anterior.

0 grande problema é, então, captar o mecanismo dessas cordenações interiores, que pressupõem ao mesmo tempo a invenção sem tateio e uma antecipação mental

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vizinha da representação. Já vimos como a Teoria da Forma explica a coisa sem se referir à experiência adquirida e por simples reestruturação perceptiva. Mas no caso do bebé é impossível não enxergar nos comportamentos da sexta fase a culminação de todo o desenvolvimento que caracteriza as cinco fases precedentes. l@ claro, com efeito, que uma vez habituada às reações circulares terciárias, e aos tateios inteligentes que constituem verdadeira experimentação ativa, a criança, cedo ou tarde, torna-se capaz de uma interiorização dessas condutas. Quando, cessando de agir em presença dos dados do problema, o sujeito parece refletir (uma das crianças por nós estudada, após tentar sem êxito aumentar o furo de uma caixa de fósforos, interrompe sua ação, olha o buraco com atenção, depois abre e fecha a própria boca), tudo parece indicar que ele continua a procurar, mas por tentativas internas ou ações interiorizadas (os movimentos imitativos da boca, no exemplo citado, são índice muito nítido desse tiDo de reflexão motora). Que se passa então, e como explicar a invenção em que consiste a solução súbita? Os esquemas sensório-motores, tendo-se tornado suficientemente móveis e coordenãveis entre si, ensejam assimilações recíprocas bastante espontâneas para que não haja mais necessidade de tateios efetivos, e bastante rápidas para dar a impressão de reestruturações imediatas. A coordenação interna dos esquemas estaria, pois, para a coordenação externa dos níveis precedentes como a linguagem interior, simples esboço interiorizado e rápido da fala efetiva, está para a linguagem externa.

Mas bastarão a espontaneidade e velocidade maiores da coordenação assimiladora entre os esquemas para explicar a interiorizacão das condutas,. ou um início de representação já se produzirá no presente nível, anuncilando assim a passagem da inteligência sensório-motora ao pensamento propriamente dito? Independentemente do aparecimento da linguagem, que a criança começa a adquirir nessas idades (mas que falta aos chimpanzés, emboi@a aptos a invenções notavelmente inteligentes), há dois tipos de fatos que, neste sexto estágio, dão provas de um esboça de representação, embora não ultrapasse o nível da representação bastante rudimentar própria dos chim panzés. Por um lado, a crianca se torna capaz de imitação adiada, isto é, de uma có pia que surge pela primeira vez após o desaparecimento perceptivo do modelo: ora, seja

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A INTELIGÊNCIA E As FUNÇõES SENSóRIO-MOTORAS 111

a imitação adiada decorrente da representação imaginada ou seja sua causa, seguramente lhe está relacionada de perto (voltaremos a este problema no Cap. 5). Por outro lado,, ao mesmo tempo, a criança chega à forma mais elementar do jogo simbólico, que consiste em suscitar por meio do corpo próprio uma ação estranha ao contexto atual (por exemplo, fingir que dorme por brincadeira, estando totalmente desperta). Aqui, surge novamente uma espécie de imagem desempenhada e, logo, motora, mas já quase representativa. Essas imagens em ação próprias da imitação adiada e do símbolo lúdico nascente acaso não ocorem como significantes, na coordenação interiorizada dos esquemas? É o que parece mostrar o exemplo citado há pouco da criança que imita com a boca o aumento da fenda visível, numa caixa que na realidade procura abrir.

A construção do objeto e relações espaciais

1 Acabamos de verificar a notável continuidade funcional que relaciona as estruturas sucessivas construídas pela criança a partir da formação dos hábitos elementares até os atos de invenções espontãneas e súbitas características dás formas superiores da inteligência sensório-motora. 0 parentesco do hábito com a inteligência toma-se, assim, manifesto, ambos procedentes, mas em níveis distintos, da assimilação sensório-motora. Resta reunir o que dissemos há pouco (Cap. 3) sobre o parentesco entre inteligência e atividade perceptiva, ambas apoiando-se igualmente na assimilação sensório-motora, e em níveis distintos: uma, à qual essa assimilação engendra a transposiçãó perceptiva (parente próxima dos movimentos habituais), e a outra que se caracteriza pela generalização especificamente inteligente.

Ora, nada é mais próprio para pôr em evidência os vínculos ao mesmo tempo tão simples em sua origem comum e tão complexos em suas diferenciações múltiplas, da percepção, do hábito e da inteligência, que analisar a construção sensório-motora dos esquemas fundamentais do objeto e do espaço (de resto, indissociãveis da causalidade e do tempo). Essa construção é, com efeito, estreitamente correlata com o desenvolvimento, que acabamos de lembrar, da inteligência pré-verbal. Mas, por outro

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112 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

lado, ela exige, em elevado grau, uma organização de estruturas perceptivas, e estruturas inteiramente soIidária_Z@ com a motricidade exibida em hábitos.

Que vem a ser, de fato, o esquema do objeto? Tratase, por um aspecto essencial, de um esquema da inteligência: ter a noção do objeto é atribuir à figura percebida a um suporte substancial, tal que a figura e a substância de que ela seja assim o índice continuem a existir fora do campo perceptivo. A permanência do objeto, encarada sob esse ângulo, é não apenas produto da inteligência, mas contitui mesmo a primeira dessas noções fundamentais de conservação, cujo desenvolvimento veremos no seio do pensamento (Cap. 5). Mas, pelo fato de que se conserva e que se reduz mesmo a essa conservação como tal, o objeto sólido (o único a considerar de início) conserva também suas dimensões e sua forma: ora, a constãneia das formas e da dimensão é um esquen-ia decorrente da percepção pelo menos tanto quanto da inteligência. Finalmente, parece claro que, tanto sob as espécies da constância perceptiva como sob as da conservação além das fronteiras do campo perceptivo atual, o objeto esteja ligado a uma série de hábitos motores, ao mesmo tempo origens e efeitos da construção desse esquema. Percebe-se, assim, o quanto ele é de natureza a esclarecer as verdadeiras relaçõ es entre a inteligência, a percepção e o hábito.

Ora, como se constrói o esquema do objeto? Ao nível do reflexo, certamente não há objetos; o reflexo não passa de resposta a uma situação. E nem o estímulo nem o ato desencadeado pressupõem outra coisa que não seja qualidades atribuídas a quadros perceptivos, sem substrato substancial necessário: quando o lactente procura e encontra o seio materno, não é necessário que faça dele um objeto, e a situação precisa da mamada assim como a permanência das posições bastam, sem intervenção de esquemas mais complexos, para explicar esses comportamentos. No nível dos primeiros hábitos, a identificação não implica também o objeto, porque reconhecer um quadro perceptivo não pressupõe qualquer crença quanto à existência do elemento percebido, fora das percepções e reconhecimentos atuais; por outro lado, o chamado pelo grito a uma pessoa ausente exige simplesmente a previsão de seu Possível retorno, a título de quadro perceptivo conhecido, e não a localização espacial, numa realidade or-

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ganizada, dessa pessoa na medida em que o objeto substancial. Por outro lado, acompanhar com os olhos uma figura em movimento e continuar a procura no momento de seu desaparecimento, girar a cabeça para olhar na direção de um som, etc., constituem inícios de permanência prática, mas unicamente relacionada à atividade em curso: trata-se de antecipações perceptivo-motoras e expectativas, mas determinadas pela percepçã o e pelo movimento imediatamente anteriores, e de modo algum são ainda buscas ativas distintas do movimento já esboçado, ou, determinado pela percepção atual.

Durante o terceiro estágio (reações circulares secundárias), o fato de a criança tornar-se capaz de apreender o que vê permite controlar essas interpretações. De acordo com C. Bühler, a criança desse nível chega a retirar um, pano com que se cobre seu rosto. Mas tivemos ensejo de mostrar que, no mesmo estágio, a criança não procura de modo algum retirar uma cobertura colocada sobre o objeto de seus desejos, e isso mesmo quando ela já esboçou um movimento de preensão em relação ao objeto ainda visível: ela se conduz, pois, como se o objeto se reabsorvesse no pano e deixasse de existir no momento preciso em que sai do campo perceptivo; ou ainda, o que é a mesma coisa, ela não possui qualquer conduta que lhe permita procurar> pela ação (retirar a tela) ou pelo pensamento (imaginar), o objeto desaparecido. Entretanto, nesse nível mais que no precedente, ela atribui ao objetivo de uma atividade em curso uma espécie de permanência prática ou de continuação, momentânea: voltar a um brinquedo depois de tê-lo deixado (reação circular adiada), prever a posição do objeto er--caso de queda, etc. Mas então trata-se de ação que confere uma conservação momentânea ao objeto, e este deixa d(,@ possuí-la ao fim da ação em curso.

Por outro lado, no quarto estágio (coordenação dos es-

quemas conhecidos), a criança começa a procurar o objeto por trás de uma tela, o que constitui o início das condutas diferençadas relativas ao objeto desaparecido e, por conseguinte, o começo da conservação substancial. Mas então observa-se frequentemente uma reação interessante que, mostra que essa substância nascente não está ainda indi. vidualizada e, em conseqüência, permanece ligada à açãG como tal: se a criança procura um objeto em A (por exemplo, sob uma almofada situada à sua direita) e se retira de sua vista o mesmo objeto para colocá-lo em B

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114 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

(outra almofada, porém à sua esquerda), ela primeiro vai a A como se o objeto desaparecido em B se achasse em sua posição inicial! Em outras palavras, o objeto está ainda solidário com uma situação de conjunto caracterizada pela ação que foi bem sucedida, e não comporta sempre a individualização substancial nem a coordenação dos movimentos sucessivos.

No quinto estágio, essas limitações desaparecem, exceto no caso em que uma representação de trajetos invisí veis seja necessária para a solução do problema, e no sexto estágio essa condição mesma não é mais redibitõria.

É, pois, evidente que, preparada pela continuação dos movimentos usuais, a conservação do objeto é produto das coordenações de esquemas, em que consiste a inteligência sensório-motora. Em primeiro lugar, prolonga,mento das coordenações próprias do hábito, o objeto é, pois, construido pela própria inteligência, da qual ele constitui o primeiro invariante: invariante necessário para a elaboração do espaço, da causalidade espacializada e, de um modo geral, todas as formas de assimilação que ultrapassam o campo perceptivo atual.

Mas, se as conexões com o hábito e a inteligência são evidentes, as relações do objeto com as constâncias perceptivas da forma e da grandeza não o são menos. No terceiro dos níveis distinguidos precedentemente, uma criança a quem se apresenta a mamadeira do lado contrário tenta sugar o fundo do vidro, caso não veja, do outro lado, a chupeta de borracha. Se ela vir a chupeta, vira a mamadeira do lado certo (prova de que nã o há obstáculo de ordem motora); mas, se, após haver sugado o lado errado, olhar o conjunto da mamadeira (que se lhe mostra verticalmente), não consegue virá-Ia, mesmo se assiste à sua rotação, desde que a chupeta fique invisível: a chupeta, portanto, parece-lhe integrante do vidro, a menos que a veja. Esse comportamento, típico da não conservação do objeto, acarreta assim uma não conservação das próprias partes da mamadeira, isto é, uma não conservação da forma. No estágio seguinte, pelo contrário, em correlação com a construção do objeto permanente, a mamadeira é virada com facilidade para o lado certo, e é percebida, portanto, como forma que permanece, em geral, constante, não obstante suas rotações. Ora, nesse mesmo, nível, vê-se também a criança interessar-se, deslocan-

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do lentamente a cabeça, pelas mudanças de f orma do objeto sob a influéncia da perspectiva.

Quanto à constância das dimensões, de que Brunswick verificou recentemente a ausência durante os primeiros meses, ela se elabora também durante o quarto, e sobretudo no quinto estágio. Assim é que se percebe, freqüentemente, o bebé distanciar e aproximar de seus olhos um objeto que segura, como para lhe estudar as mudanças de dimensões em função da profundidade. Eã pois, uma correlação entre a elaboração dessas constâncias perceptivas e a conservação inteligente do objeto.

Ora, é fácil captar a relação que une essas duas espécies de realidades. Se as constâncias são bem o produto de transportes, de transposições, e de suas regulações, 6 claro que esses mecanismos reguladores decorrem tanto, da motricidade quanto da percepção. As constâncias perceptivas da forma e da grandeza seriam, assim, asseguradas por uma assimilação sensõrio-motora “transportando” ou transpondo as relações em jogo ao ensejo das modificações de posição ou de distanciamento dos objetos percebidos, assim como o esquema do objeto permanente seria devido a uma assimilação sensõrio-motora, provo--cando a procura do objeto, uma vez saído do campo da. percepção, e lhe atribuindo, pois, uma conservação surgida da continuação das açõ es próprias, em seguida projetada em propriedades exteriores. Assim, pode-se admitir que os mesmos esquemas de assimilação regem, por “transportes” e transposições, a constância das formas e dimensões do objeto percebido, e que determinam sua procura quando deixa de o ser: seria, então, pelo fato de que o objeto é percebido como constante que é procurado, após seu desaparecimento, e seria porque enseja uma, procura ativa quando não mais é perceptível que é percebido como constante quando reaparece. Os dois aspectos da atividade perceptiva e de inteligência são, com efeito, muito menos diferençados no plano sensório-motor, do que no caso entre a percepção e a inteligência reflexiva, visto que esta se apóia em significantes que consistem em palavras ou imagens, ao passo que a inteligência sensório-motora só se apóia nas próprias percepções e nos, movimentos.

Pode-se, pois, conceber a atividade perceptiva em g--ral, bem como no exemplo das constâncias, como sendo, um dos aspectos da inteligência sensório-motora em si -

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aspecto limitado ao caso em que o objeto entra em relações diretas e atuais com o sujeito, ao passo que a inteligència sensórío-motora, transbordando o campo perceptiv,o, antecipa e reconstitui as relações a perceber ulteriormente ou percebidas anteriormente. A unidade dos mecanismos relativos à assimilação sensório-motora fica, assim, completa, o que a Teoria da Forma, aliás, teve o mérito de pôr em evidência, mas que é preciso interpretar no sentido da atividade do sujeito, portanto da assimilação, e não no sentido de formas estáticas impostas independentemente do desenvolvimento mental.

Todavia, aparece então um problema, cuja discussão leva ao estudo do espaço. As constâncias perceptivas são o produto de simples regulações, e viu-se (Cap. 3) que a ausência, em que qualquer idade, de constâncias absolutas e a existência das “superconstãneias” adultas atestam o caráter regulatório e não -operatório do sistema. Com mais forte razão, assim é durante os dois primeiros anos de idade. A construção do espaço, pelo contrário, acaso não chega bem rápido a uma estrutura de grupamento e mesmo de grupos, conforme a célebre hipótese de Poincaré sobre a influência, psicologicamente primeira, do <’grupo dos deslocamentos”?

A gênese do espaço, na inteligência sensõrio-motora, é dominada inteiramente pela organização progressiva dos movimentos, e estes tendem efetivamente no sentido de uma estrutura de “grupo”. Mas, contrariamente ao que pensava Poincaré sobre o caráter a priori do grupo dos deslocamentos, este se elabora paulatinamente, enquanto forma de equilíbrio final dessa organização motora: são as coordenações sucessivas (composiçã o), os retornos (reversibilidade), os desvios (associatividade) e as conservações de posições (identidade) que aos poucos engendram o grupo, a título de equilíbrio necessário das ações.

Ao nível dos dois primeiros estágios (reflexos e hábitos elementares), nem mesmo se poderia falar de um espaço comum aos diversos domínios perceptivos, porque há tantos espaços, heterogéneos entre si, quanto campos qualitativamente distintos (bucal, visual, tãtil, etc.). Só durante o terceiro estágio, a assimilação recíproca desses diversos espaços torna-se sistemática, devido à coordenação da vista com a preensão. Ora, na medida em que se dão essas coordenações, assiste-se à constituição de sis-

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temas espaciais elementares, que anunciam já a composi. ção própria do grupo: assim é que, em caso de reação circular interrompida, o sujeito volta ao ponto de partida para recomeçar; acompanhando com o olhar um objeto móvel que o ultrapassa em velocidade (queda, etc.), o sujeito encontra o objetivo, às vezes, por deslocamentos próprios que corrigem os do móvel exterior.

Mas é preciso compreender bem que, situados do ponto de vista do sujeito e não apenas da perspectiva do observador matemático, a construção de uma estrutura de grupo supõe duas condições pelo menos: a noção de objeto e a descentração dos movimentos por correção e mesmo conversão do egocentrismo, inicial. É claro, com efeito, que a reversibilidade própria do grupo pressupõe a noção de objeto e, de resto, reciprocamente, porque encontrar um objeto é ter a possibilidade de um retorno (por dslocamento do próprio objeto ou do próprio corpo) : o objeto não passa de invariante devido à composição reversível do grupo. Por outro lado, como Poincaré demonstrou muito bem, a noção de deslocamento como tal supõe a possível diferenciaçã o entre as mudanças de posição precisamente caracterizadas por sua reversibilidade (ou por sua possível correção graças aos movimentos do corpo próprio). É, pois, evidente que, sem a conservação dos objetos, não poderia haver “grupo”, visto que então tudo aparece “mudando, de estado”: o objeto e o grupo de deslocamenots são, pois, indissociáveis, um constituindo o aspecto estático e o outro o aspecto dinâmico da mesma realidade. Há mais, porém: mundo sem objeto é um universo tal que não há qualquer diferenciação sistemática entre as realidades subjetivas e exteriores; um mundo, por conseguinte 11aduaIístico” Q. M. Baldwin). Por isso mesmo, esse universo será centrado na ação própria, ficando o sujeito tanto mais dominado por essa perspectiva egocêntrica quanto mais seu eu permaneça inconsciente de si mesmo. Ora, o grupo pressupõe precisamente a atitude inversa: uma descentração completa, tal que o próprio corpo se ache situado, a titulo de elemento, entre os demais num sistema de deslocamentos que permita distinguir os movimentos do sujeito dentre os

próprios objetos.

Dito isso, é claro que durante os primeiros estágios, e no próprio terceiro estágio, nenhuma dessas condições é satisfeita: o objeto não é constituído, e os espaços, depois

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118 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

espaço único que tende a coordená-los, permanecem centrados no sujeito. A partir de então, mesmo no caso em que pareça haver retomo (prático) e coordenação em forma de grupo, não é difícil dissociar a aparência da realidade, esta demonstrando sempre certa centração privilegiada. Assim é que um bebé do terceiro nível, ao ver passar um objeto móvel no sentido AB para a direita, para entrar em B por trás de uma tela, não o procura mais em C, na outra extremidade da tela, mas de novo em A e assim por diante. 0 móvel não é, pois, ainda, um “objeto” independente que percorra uma trajetória retilínia, dissociada do sujeito, mas permanece dependente da posição privilegiada A em que o sujeito o viu pela primeira vez. No que se refere à rotação, vim-os há pouco o exemplo da mamadeira invertida, que é sugada por trás em vez de ser virada, o que novamente atesta o primado da perspectiva egocêntrica e ausência da noção de objeto explicando a ausência de “grupo”.

Com a procura dos objetos desaparecidos por trás de telas (quarto estágio) começa a objetivação das coordenações e, portanto, a construção do grupo sensóriomotor. Mas o fato mesmo de o sujeito não se dar conta dos deslocamentos sucessivos do objetivo e procurá-lo debaixo da primeira das telas (veja-se adiante) mostra suficientemente que esse grupo nascente permanece em parte “subjetivo”, isto é, centrado na ação própria, visto que o objeto também continua dependente dessa última e a meio caminho de sua construção específica.

Só com o quinto nível, isto é, quando o objeto é procurado em função de seus deslocamentos sucessivos, G grupo é realmente objetivado: a composição dos deslocamentos, sua reversibilidade e a conservação da posição (”identidade”) são adquiridas. Falta ainda apenas a possiblidade dos desvios (”associatividade”), por falta de Drevisões suficientes, mas essa capacidade de antecipar se generaliza no transcurso do sexto estágio. Além do mais, em correlação com esse progresso, elabora-se um conjunto de relações entre os próprios objetos, tal como, as relações “situado sobre% “dentro” ou “fora”, “na frente”, “atrás” (com ordenação dos planos em profundidade correlativa da constância das dimensões), etc.

Por conseguinte, é lícito concluir que a elaboração das constâncias perceptivas do objeto, por regulações sensó-rio-motoras, segue paralelamente com a progressiva cons--

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trução de sistemas igualmente sensório-motores, mas ultrapassa o domínio perceptivo e tende no sentido da estrutura - inteiramente prática e não representativa, evi. dentemetne - do grupo. Assim, por que a própria percep. ção também não se beneficia dessa estrutura e permanece no nível de simples regulações? A razão disso agora se esclarece: por “descentrada” que ela seja, em relação às centrações iniciais do olhar ou de seu ó rgão especíal, uma percepção é sempre egocêntrica e centracia num objeto presente em função da perspectiva própria do sujeito. Além do mais, o gênero de descentração que caracteriza a percepção, isto é, de coordenação entre centrações sucessivas, só chega a uma composição de ordem estatística, e portanto incompleta (Cap. 3). A composição perceptiva não poderia, pois, ultrapassar o nível do que há pouco chamávamos de grupo “subjetivo”, isto é, um sistema centrado em função da ação própria, e suscetível, além do mais, de correções e de regulações. E isto é verdade mesmo ao nível em que o sujeito, quando ultrapassa o campo perceptivo para antecipar e reconstituir os movimentos e objetos invisíveis, chega a uma estrutura objetivada de grupo no domínio do espaço prático próximo.

De um modo geral, podemos assim concluir pela profunda unidade dos processos sensório-motores que engendram a atividade perceptiva, a formação dos hábitos e inteligência pré-verbal ou pré-representativa em si. Esta não aparece, pois, como um poder novo, superpondo-se ex abrupto a mecanismos anteriores inteiramente feitos, mas é apenas expressão desses mesmos mecanismos quando, ultrapassando o contato atual e imediato com as coisas (percepção), assim como as conexões curtas e rapidamente automatizadas entre as percepções e os movimentos (hábito), enveredam pela via da reversibilidade e da mobilidade, a distâncias cada vez maiores e segundo trajetos cada vez mais complexos. A inteligência nascente nada mais é, portanto, que a forma de equilíbrio móvel no sentido a que tendem os mecanismos próprios da percepção e do hábito, fas estes não a atingem senão saindo de seus respectivos campos iniciais de aplicação. Além do mais, desde esse primeiro degrau sensório-motor da inteligência, esta já chega a constituir, no caso privilegiado, do espaço, essa estrutura equilibrada que é o grupo dos deslocamentos, sob forma inteiramente prática ou empírica, é verdade, e naturalmetne permanecendo no plano muito

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restrito do espaço próximo. Mas é evidente que essa organização, assim circunscrita pelas limitações da própria ação, não constitui ainda uma forma de pensamento. Todo o desenvolvimento do pensamento, do aparecimento da linguagem ao fim da primeira infância, é, pelo contrário, necessário para que as estruturas sensório-motoras acabadas, e mesmo coordenadas sob forma de grupos empíricos, se prolonguem em operações propriamente ditas, que irão constituir ou reconstituir esses grupamentos e os grupos no plano da representação e do raciocinio reflexivo.

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TERCEIRA PARTE

0 DESENVOLVIMENTO

DO PENSAMENTO

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5

A Elaboração do Pensamento. Intuição e Operações

Verificamos, nas primeiras partes deste livro, que as operações do pensamento atingiam sua forma de equilíbrio quando se constituíam em sistemas de conjunto caracterizados por sua composição reversível (grupamentos ou grupos). Mas, se uma fonna ele equilíbrio assinala o termo de uma evolução, não explica suas fases iniciais nem o seu mecanismo construtivo. A ssegmida parte permitiu-nos, depois, discernir nos processos sensõrio-motores o ponto de partida das operações, os esquemas da inteligência sensório-motora que constituem o equivalente prático dos conceitos e das relações, e sua coordenação em sistemas espaço-temporais de objetos e de movimentos que chegam, inclusive, sob forma também inteiramente prática e empírica, à conservação do objeto, assim como a uma estrutura correlata do grupo (o grupo experimental dos deslocamentos, de Henri Poincaré). Mas é evidente que esse grupo sensório-motor constitui simplesmente um esquema de comportamento, isto é, o sistema equilibrado dos diversos modos possíveis de se deslocar materialmente no espaço próximo, e que ele não atinge absolutamente a categoria de um instrumento de pensainento.30 É claro que a inteli-

-30 Se dividirmos as condutas em três grandes sistemas: estruturas orgânicas hereditárias (instinto), estruturas sensório-motoras (suscetíveis de aquisição), e estruturas representativas (que constituem o pensamento), podemos situar o grupo dos deslocamentos sensório-

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124 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

gência sensório-motora situa-se na origem do pensamento, e continuará a atuar sobre ele, durante toda a vida, através das percepções e das atitudes práticas. 0 papel das percepções sobre o pensamento mais evoluído, em particular, não poderia ser desprezado, como o fazem eventualmente certos autores quando saltam muito rapidamente da neurologia à sociologia, e basta para atestar a influência persistente dos esquemas iniciais. Mas resta ainda um longo c--minho a percorrer entre a inteligência pré-verbal e o pensamento operatório, para que se constituam os grupamentos reflexivos, e, se houver continuidade funcional entre os extremos, a construção de uma série de estruturas, intermediárias continua indispensável em degraus múltiplos e heterogéneos.

Diferenças de estrutura entre a inteligênc@a conceptual e a inteligência sensório-motora

Para captar o mecanismo de formação das operações, importa antes compreender o que está por construir, isto é, o que falta à inteligência sensório-motora para que se prolongue em pensamento conceitual. Nada seria mais superficial, com efeito, que supor a elaboração da inteligência já acabada no plano prático e então apelar apenas para a linguagem e representação carregada de imagens para explicar como essa inteligência já construtiva irá interiorizar-se em pensamento lógico.

Na realidade, é exclusivamente do ponto de vista funcional que se pode achar na inteligência sensório-motora o equivalente prático das classes, das relações, dos raciocínios e mesmo dos grupos de deslocamentos sob a forma empírica dos próprios deslocamentos. Do ponto de vista do estrutura e, por conseguinte, da eficiência, permanece entre as coordenações sensório-motoras e as coordenações, conceituais um certo número de diferenças fundamentais, ao mesmo tempo quanto à natureza das próprias coordenações e quanto às distâncias percorridas pela ação, ísto, é, na zona de seu campo de aplicação.

motores no cume do segundo desses sistemas, ao passo que os grupos e grupamentos operatórios de ordem formal situam-se no cume do terceiro.

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0 DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO 125

Em primeiro lugar, os atos de inteligência sensóriomotora, que consistem unicamente em coordenar entre si percepções sucessivas e movimentos reais, igualmente sucessivos, esses atos não podem reduzir-se senão a sucessões de estados, ligados por curtas previsões e reêonstituições, mas sem jamais chegar a uma representação de conjunto: esta só poderia constituir-se sob condição de tornar simultâneos os estados, pelo pensamento, e, por conseguinte, de retirã-los do transcurso temporal da ação. Em outras palavras, a inteligência sensório-motora procede como um filme em câmara lenta, do qual se vêem todos os quadros, mas sem fusão da imagem; portanto, seni a visão continuada necessária para a compreensão do conjunto.

Em segundo lugar, e por isso mesmo, um ato de inteligência sensório-motora só tende à satisfação prática, isto, é , ao êxito da ação, e não ao conhecimento propriamente dito. Ele não procura a explicação, a classificação, ou a constatação por si mesmas, e não relaciona casualmente, nem classifica ou constata, a não ser em vista de um fim subjetivo estranho à procura do verdadeiro. A inteligência sensório-motora é, pois, uma inteligência vivida, e de modo. algum reflexiva.

Quanto a seu campo de aplicação, a inteligência sensório-motora só opera sobre as próprias realidades, cada um de seus atos só comportando, assim, distâncias muito curtas entre o sujeito e os objetos. Sem dúvida, ela é capaz de desvios e retornos, mas não se trata sempre senão de movimentos realmente executados e de objetos reais para procurar abranger a totalidade do universo, até o invisível e às vezes mesmo o irrepresentável: é nesta multiplicação infinita das distâncias espaço-temporais entre o sujeito e os objetos que consistem a principal novidade da inteligência conceptual e a força específica que a tornará apta a engendrar as operações.

Assim, as condições da passagem do plano sensóriomotor ao plano reflexivo são essencialmente três: primeira, um aumento das velocidades que permita fundir num todo simultâneo os conhecimentos ligados às fases sucessivas da ação. Depois, uma tomada de consciência, não mais apenas quanto aos resultados desejados da ação, mas quanto a seus próprios empenhos, permitindo assim revestir a procura do êxito pela constatação. Finalmente, uma multiplicação das distâncias, permitindo prolongar as

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açoes relativas às próprias realidades por meio de ações simbólicas referentes às representações, e ultrapassando assim os limites do espaço e do tempo próximos.

Percebe-se, então, que o pensamento não poderia ser uma tradução, nem mesmo uma simples continuação do sensório-motor em representativo. Trata-se muito mais de formular ou prosseguir a obra começada: primeiro é necessário reconstruir o todo em um novo plano. Só a percepção e a motricidade efetiva continuarão a se exercer da mesma forma, prontas a carregar-se de significações novas e a integrar-se em novos sistemas de compreensão. Mas restam a ser inteiramente reedificadas as estruturas da inteligência antes que possam ser completadas: saber revirar um objeto (ef. o caso da mamadeira citado no Cap.4) não implica que se possa representar em pensamento uma seqüência de rotações; deslocar-se materialmente segundo desvios complexos e voltar a seu ponto de partida não acarreta a compreensão de um sistema de deslocamentos simplesmente imaginados; e mesmo antecipar a conservação de um objeto, na ação, não leva por si só ao entendimento das conservações referentes a um sistema de elementos.

Bem mais ainda: para reconstruir essas estruturas em pensamento, o sujeito vai defrontar-se com dificuldades idênticas, mas transpostas a esse novo plano, às que já superou na ação imediata. Para construir um espaço, um tempo, um universo de causas e de objetos sensório-motores ou práticos, a criança teve que libertar-se de seu egocentrismo perceptivo e motor: é por uma série de descentrações sucessivas que ela chegou aorganizar um grupo empírico de deslocamentos materiais, situando seu corpo e seus movimentos próprios no conjunto dos demais. A construção desses grupamentos e grupos operatórios do pensamento vai precisar de uma inversão de sentido análogo, mas no curso de itinerários infinitamente mais complexos; irá tratar-se de descentrar o pensamento, não apenas em relação à centração perceptiva atual, mas em relação à atividade própria total. 0 pensamento, nascendo da ação, é, com efeito, egocêntrico, em seu ponto de partida exatamente pelas mesmas razões que a inteligência sensõrio-motora é primeiro cenrada nas percepções ou movimentos presentes de que ela procede. Assim, a construção das operações transitivas, associativas e reversiveis suporá uma conversão desse egocentrismo inicial em um sistema de relações

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e de classes descentradas em relação ao eu, e essa descen. tração intelectual (sem falar de seu aspecto social, que encontraremos no Cap. 6) ocupará, de fato, toda a primeira infância.

0 desenvolvimento do pensamento verá, pois, primeiro repetir-se, de acordo com um vasto sistema de decalagens, a evolução que parecia culminada no terreno sensómotor, antes de se exibir, num campo infinitamente mais vasto no espaço e mais móvel no tempo, até a estruturação das próprias operações.

As fases da construção das operações

Para entender o mecanismo desse desenvolvimento, cujo grupamento operatório constitui, pois, a forma de equilíbrio final, distinguiremos (simplificando e esquematizando as coisas) quatro períodos principais em seqüt-,iicia àquele que é caracterizado pela constituição da inteligência sensório-motora.

A partir do aparecimento da linguagem, ou, mais precisamente, da função simbólica que torna possível sua aquisição (1 a dois anos), começa um período que se estende até perto de 4 anos e vê desenvolver-se um pensamento simbólico e pré-conceptual.

De 4 a 7 ou 8 anos, aproximadamente, constiWi-se, em continuidade íntima com o precedente, um pensamento intuitivo cujas articulações progressivas conduzem ao limiar da operação.

De 7 ou 8 até 11 ou 12 anos de idade, organizam-se as “operações concretas”, isto é, os grupamentos operatórios do pensamento recaindo sobre objetos manipuláveis ou suscetíveis de serem intuídos.

A partir dos 11 a 12 anos e durante a adolescência, elabora-se por fim o pensamento formal, cujos grupamentos caracterizam a inteligência reflexiva acabada.

0 pensamento simbólico e pré-conceptual

Desde os últimos estágios do período sensório-motor, a criança é capaz de imitar certas palavras e de atribuirlhes uma significação global, mas só por volta de fins do segundo ano ela começa a aquisição sistemática da linguagem.

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Ora, tanto a observação direta da criança como a análise de certos distúrbios da fala põem em evidência o fato de que a utilização do sistema dos sinais verbais deve-se ao exercício de uma “função simbólica” mais geral, cuja especificidade é de permitir a representação do real por intermédio de “significantes” distintos das coisas “signifi-cadas”.

Convém, com efeito, distinguir os símbolos e os signos, por um lado, e os índices ou sinais, por outro. Não apenas, todo pensamento, mas toda atividade cognitiva ou motora, da percepção e do hábito ao pensamento conceptual e reflexivo, consiste em relacionar significações, e toda significação pressupõe uma relação entre um s!gnificaW,@ e uma realidade significada. Apenas, no caso do índice, o signíficante constitui parte ou aspecto objetivo do sígnifícado, ou ainda lhe está ligado por um vínculo de causa e efeito; pegadas na neve são, para o caçador, índice da caça, e a extremidade visível de um objeto quase totalmente escondido é, para o bebé, índice de sua presença. 0 sinal, também, mesmo artificialmetne provocado pelo experimentador, constitui para o sujeito um simples aspecto parcial do fato que ele anuncia (numa conduta condicionada, o sinal é percebido como um antecedente objetivo). Pelo contrário, o símbolo e o signo implicam uma diferenciação, do ponto de vista do próprio sujeito, entre o significante e o significado: para uma criança que brinca de fazer comidinha, uma pedra repersentando uma guloseima é conscientemente reconhecida como simbolizante, e a guloseima como simbolizada; e quando a mesma criança considera, por “aderência do signo”, um nome como inerente à coisa nomeada, ela no entanto considera esse nome como um significante, mesmo que faça dele uma espécie de etiqueta atribuída substancialmente ao objeto designado.

Esclareçamos ainda que, de acordo com um hábito dos lingüístas útil de acompanhar-se em psicologia, um símbolo deve definir-se como implicando um vínculo de semelhança entre o significante e o significado, ao passo que ,o signo é “arbitrário” e repousa necessariamente numa convenção. 0 signo exige, pois, a vida social para se constituir, ao passo que o símbolo já pode ser elaborado pelo indivíduo sozinho (como no brinquedo das criancinhas). É evidente, de resto, que os símbolos podem ser sociali- ,zados, sendo um simbolo coletivo, então, em geral meio

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signo e meio símbolo; por outro lado, um puro signo é sempre coletivo.

Dito isso, importa constatar que, na criança, a aquisição da linguagem, e portanto do sistema dos signos coletivos, coincide com a formação do símbolo, isto é, do sistema dos significantes individuais. Com ef eito, não se poderia falar propriamente de jogos simbólicos durante o período sensório-motor, e K. Gross foi um pouco mais além ao atribuir aos animais a consciência da ficção, 0 jogo primitivo é simples brinquedo de exercício e o verdadeiro símbolo só começa quando um objeto ou gesto representam, para o próprio sujeito, algo além dos dados perceptíveis. Desse ponto de vista, vê-se aparecer, no sexto estágio da inteligência sensório-motora, “esquemas simbólicos”, isto é, esquemas de ação saídos de seu contexto e evocando uma situação ausente (por exemplo, fingir que dorme). Mas o símbolo propriamente só começa com a representação destacada da ação própria: por exemplo, fazer uma boneca ou ursinho dormir, Ora, precisamente, no nível em que aparece, no brinquedo, o símbolo no sentido estrito, a linguagem desenvolve, de resto, a compreensão dos signos.

Quanto à gènese do símbolo individual, ela é esclarecida pelo @desenvolviinento da imitação. Durante o período sensório-motor, a imitação não passa de um prolongamento da acomodação própria dos esquemas de assimilação: o sujeito, quando sabe executar um gesto, ao perceber um movimento análogo (sobre outro ou sobre outras -coisas), assimila-o ao seu, e essa assimilação, sendo tanto motora quanto perceptiva, desencadeia o esquema próprio. Em seguida, o novo modelo provoca uma reação assimiladora análoga, mas o esquema ativado é então acomodado às novas particularidades; no sexto estágio, essa acomodação imitativa torna-se mesmo possível no estado adiado, o que anuncia a representação. A imitação propriamente representativa, pelo contrário, só começa no nível do jogo simbólico porque, como ele, ela pressupõe a imagem: Mas será a imagem causa ou efeito dessa interiorização do mecanismo ímitatívo? A imagem mental não é um fato primeiro, como por muito tempo o acreditou o associacíonísmo: ela é, como a própria imitação, uma acomodação dos esquenlas sensório-motores, isto é, urna cópia ativa, e não um traço ou resíduo sensorial dos objetos percebidos. Ela é, assim, imitação interíor, e prolonga a acomodação dos esquemas próprios da atividade perceptíva (em contraste com a percepção como tal), assim como a imitação exterior dos níveis precedentes prolonga a acomodação doi§ ,esquemas sensório-motores (os quais estão precisamente na origem da atividade perceptiva propriamente dita).

Daí poder-se explicar a formação do símbolo como segue: a imitação adiada, isto é, acomodação se prolongan-

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do em esboços imitativos, fomece os significantes, que o jogo ou a inteligência aplicam a significados diversos, segundo os modos de assimilação, livre ou adaptada, que caracterizam essas condutas. 0 jogo simbólico sempre comporta, assim, um elemento de imitação, funcionando como significante, e a inteligência, em seus primórdios, utiliza igualmente a imagem a título de símbolo ou de significante.3.1

Compreende-se, então, por que a linguagem (que também se aprende por imitação, mas por imitação de signos inteiramente feitos, ao passo que a imitação das formas, etc. f ornece apenas a matéria significante do simbolismo individual) é adquirida ao mesmo tempo em que se constitUi G símbolo: é que o emprego dos signos, como o dos símbolos, pressupõe essa aptidão, inteiramente nova em contraste com as condutas sensório-motoras, que consiste, em representar alguma coisa por outra. Pode-se, então, aplicar à criança essa noção de uma “função simbólica” geral, de que se fez às vezes a hipótese a propósito da afasia, porque é a formação desse mecanismo que caracterizaria, em resumo, o aparecimento simultâneo da imitação representativa, do jogo simbólico, da representação com imagem e do pensamento verbaL32

No todo, o pensamento nascente, ao mesmo tempo em que prolongando a inteligência sensório-motora, procede, pois, da diferenciação dos significantes e dos significados, e se apóia, por conseguinte, ao mesmo tempo na criação dos símbolos e na descoberta dos signos. Mas é evidente que, quanto mais jovem a criança, menos lhe bastará o sistema desses signos coletivos inteiramente feitos, porque, em parte inacessíveis e difíceis de manejar, esses signos verbais permanecerão por muito tempo inadequados para exprimir o individual sobreo qual o indivíduo continua centrado. Eis por que, na medida em que domina a assimilação egocêntrica do real à atividade própria, a criança terá necessidade de símbolos: donde o jogo símbólicG, ou o jogo de imaginação, a mais pura forma de pensamento egocêntrico e simbólico, assimilação do real aos interesses próprios e expressão do real graças ao emprego de imagens modeladas pelo eu.

31 Ver I. Meyerson, Les Images, em Dumas, Nouveau Traité de Psychologie.32 Cf. Piaget, A Formação do Símbolo na Criança (Zahar Editores).

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Mesmo, porém, no terreno do pensamento, adaptado, isto é, a partir dos primórdios da inteligência representativa, ligada, de perto ou de longe, aos signos verbais, importa notar o papel dos símbolos com imagens e constatar o quanto o sujeito fica longe de atingir, durante os primeiros anos, os conceitos propriamente ditos. Do aparecimento da linguagem até por volta dos 4 anos, -é preciso, com efeito, distinguir um primeiro período da inteligência pré-conceptual, e que se caracteriza pelos pré-conceitos ou participações, e no plano do raciocínio nascente, pela “transducção” ou raciocínio pré-conceptual.

Os pré-conceitos são as noções relacionadas pela criança aos primeiros signos verbais cujo emprego ela adquire. 0 caráter próprio desses esquemas é permanecer a meio caminho entre a generalidade do conceito e a individualidade dos elementos que o compõem, sem atingir nem um nem outro. A criança de 2 a 3 anos dirá indiferentemente “a” lesma ou “as” lesmas, assim como “a” lua ou “as” luas, sem concluir se as lesmas encontradas durante um mesmo passeio ou os discos vistos de tempos em tempos no céu são um só indivíduo, lesma ou lua única, ou uma classe de indivíduos distintos. Por um lado, com efeito, ela ainda não maneja as classes gerais, por lhe faltar a distinção entre “todos” e “alguns”. Por outro lado, se a noção do objeto individual permanente é acabada no campo da ação próxima, nada é quanto ao espaço distante e reaparecimentos em durações espaçadas: uma montanha está sujeita ainda a se deformar realmente durante uma excursão (como anteriormente a mamadeira, durante suas rotações), e “a” lesma reaparecerá em pontos diferentes. Donde, às vezes, verdadeiras “participações” entre objetos distintos e distanciados uns dos outros: aos 4 anos, ainda, a sombra que se faça sobre urna mesa, num quarto fechado, por meio de uma tela, é explicada por aquelas que se acham “debaixo das árvores do jardim” ou de noite, etc., como se essas últimas interviessem de modo imediato no momento em que se coloca a tela sobre a mesa (e sem que o sujeito procure de f orma alguma esclarecer o “como” do fenômeno).

Claro está que um esquema assim, a meio caminho entre o individual e o geral, não é ainda um conceito lógico e continua a fazer parte do esquema de ação e da assimilação sensório-motora. Mas trata-se de um esquema representativo e que, em particular, chega a evocar grande nú-

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mero de objetos por meio de elementos privilegiados tidos por exemplares típicos da coleção pré-conceptual. Esses individuos-tipos, sendo eles próprios concretizados pela imagem tanto e mais que pela palavra, o pré-conceito implica, por outro lado, o símbolo, na medida em que ele recorre a esses tipos de exemplares genéricos. É, pois, no todo, um esquema situado a meio caminho entre o esquema sensõrio-motor e o conceito, quanto a seu modo de assimilação, e participante do símbolo com imagem quanto a sua estrutura representativa.

ora, o raciocínio que consiste em relacionar tais préconceitos exibe precisamente essas mesmas estruturas, Stern chamou de “transducção'1 esses raciocínios primitivos, que não procedem por dedução, mas por analogias imediatas. Há mais ainda, porém: raciocínio pré-conceptual, a transducção só repousa em ajustamentos incompletos, e fracassa desse modo em toda estrutura operatória reversível. Por outro lado, se ela tem êxito na prática, é que não constitui senão uma seqüência de ações simbolizadas em pensamento, uma “experiência mental” no sentido próprio, isto é, uma imitação interior dos atos e de seus resultados, com todas as limitações que essa espécie de empirismo da imaginação comporta. Deparamo-nos, assim, na transducção, ao mesmo tempo com a falta de generalidade inerente ao pré-conceito e seu carãter simbólico ou pleno de imagem que permita transpor as ações em pensamento.

0 pensainento, intuitivo

Só a observação permite analisar as formas de pensamento descritas há pouco, porque a inteligência das crianças continua muitíssimo instável para que se lhes possa interrogar proveitosamente. A partir dos 4 anos de idade, por outro lado, breves experiências que se façam com o sujeito, fazendo-o manipular os objetos sobre os quais essas experiências recaem, permitem obter respostas singulares e acompanhar a conversação. Esse fato, por si só, já constitui índice de uma nova estruturação.

Com efeito, de 4 a 7 anos, assiste-se a uma coordenação paulatina das relações representativas; portanto a uma conceptualização crescente que, da fase simbólica ou pré-coneptual, levar a criança ao limiar das operações. Mas, o que -é notável, essa inteligência, cujo pro-

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0 DEsENvoLVIMENTO DO PENSAMENTO 133

gresso se pode acompanhar, continua constantemente prélógica, e isso em terrenos em que ela chega a seu máximo de adaptação :33 até o momento em que o Ilgrupamentoll assinaia a culminação dessa seqüência de equilibrações sucessivas, ela supre ainda as operações inacabadas por um forma semi-simbólica de pensamento, que é o raciocínio intuitivo; e ela só controla os juizos por meio dt, “regulaçôes’> intuitivas, análogas, no plano de representaçao, ao que são as regulações perceptivas no plano sensório-motor.

Tomemos como exemplo uma experiência que fizemos há tempos com A. Szeminska. Dois pequenos vasos A e A, de forma e dimensões iguais são enchidos com a mesma quantidade de pérolas, sendo que essa equivalência é reconhecida pela criança, pois ela mesma as colocou- por exemplo, colocando coma mão direita uma pérola em A toda vez que, com a esquerda, colocava outra pérola em Ai. Depois disso, deixando o vaso A como prova, derrama-se A, num vaso B de forma diferente. As crianças de 4 a 5 anos concluem, então, que a quantidade de pérolas mudou, mesmo estando bem certos de que nenhuma foi retirada ou acrescentada: se o vaso B for fino e alto, elas dirão que há “mais pérolas que antes”, porque “está mais alto”, ou que há menos pérolas porque ilestá mais fino”; o fato é que estarão de acordo quanto à não-conservação do todo.

Observemos, em primeiro lugar, a continuidade dessa reação com as de níveis precedentes. De posse da noção de conservação de um objeto individual, o sujeito ainda não está de posse da noção de um conjunto de objetos: a classe total não está, pois, construída, visto que nem sempre é invariante, e essa não-conservação prolonga, assim, ao mesmo tempo as reações iniciais ao objeto (com deslocamento, no tempo e no espaço, devido ao fato de que não mais se trata de elemento isolado, mas de uma coleção) e ausência de totalidade geral de que falamos a propósito do pré-conceito. È claro, por outro lado, que as razões de erro são de ordem quase perceptiva- é a elevação de nível que engana a criança, ou estreiteza da coluna, etc. Apenas não se trata de ilusões perceptivas: a

33 Deixamos de lado, aqui, as formas puramente verbais de pensainento, tais como o animismO, 0 artificialismo infantil, o realisnio nominal, etc.

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percepção das relações de modo geral é exata, porém enseja uma elaboração intelectual incompleta. Esse esquemadsmo pré-lógico, imitando ainda de perto os dados perceptivos ao mesmo tempo em que os recentrando a seu próprio modo, é que se pode chamar de pensamento intuitivo. Percebe-se logo suas relações com o caráter pleno de imagens do pré-conceito e das experiências mentais que caracterizam o raciocínio transductivo.

Contudo, esse pensamento intuitivo progride em relação ao pensamento pré-conceptual ou simbólico: referindo-se essencialmente às configurações de conjunto e não mais a figuras simples semi-individuais, semigenéricas, a intuição leva a um rudimento de lógica, mas sob a forma de regulações representativas e não ainda de operações. Desse ponto de vista, existem “centrações” e “descentrações11 intuitivas análogas aos mecanismos de que falamos a propósito dos esquemas sensório-motores da percepção (Cap. 3). Suponhamos uma criança avaliando que em B as pérolas são mais numerosas que em A porque o nível subiu: ela “centra” assim seu pensamento, ou sua atenção@34 na relação entre as alturas de B e A, e despreza as larguras. Mas derramemos B nos vasos C ou D, etc., ainda mais finos e mais altos; chega necessariamente um momento em que a criança responderá: “este tem menos, porque é muito estreito”. Haverá, assim, correção da centração sobre a altura por uma descentração da atenção sobre a largura. No caso em que o sujeito avalie a quantidade menor em B que em A por causa da estreiteza, o alongamento em C, D, etc. o levará, pelo contrário, a inverter seu julgamento em favor da altura. Ora, essa passagem de urna única centração às duas sucessivas anuncia a operação: desde que raciocine sobre as duas relações ao mesmo tempo, a criança deduzirá, com efeito, a conservação. Apenas não há ainda, no caso, nem dedução nem operação real: um erro é amplamente corrigido, mas com retardo e por reação ao seu próprio exagero (como no domínio das ilusões perceptivas), e as duas relações são encaradas alternativamente em vez de serem multiplicadas logicamente. Só ocorre, então, uma espécie de regulação intuitiva e não um mecanismo propriamente operatório.

34 A atenção monoidéica nada mais é que uma centração do pensamento.

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Há mais, porém. Para estudar ao mesmo tempo as diferenças entre a intuição e a operação, e a passagem de uma a outra, pode-se enfocar não apenas o relacionamento das qualidades a duas dimensões, mas a correspondência mesma, sob forma lógica (qualitativa) ou matemática. Apresenta-se ao sujeito ao mesmo tempo os vasos de formas distintas A e B e se lhe pede para pôr uma pérola simultaneamente em cada vaso; uma com a mão esquerda, outra com a mão direita: se as pérolas forem em número pequeno (4 o u5), a criança acredita de pronto na equivalência dos dois conjuntos, o que parece anunciar a operação, mas quando as formas dos conteúdos variam muito, ainda que a correspondência continue, ela deixa de admitir a igualdade! A operação latente é, pois, suplantada pelas exigências abusivas da intuição.

Alinhemos agora seis fichas vermelhas sobre a mesa e ofereçam-os ao sujeito uma coleção de fichas azuis, pedindo-lhe para depositar outro tanto de vermelhas. De 4 a 5 anos mais ou menos, a criança não elabora correspondência e se contenta com o enfileiramento de comprimento igual (com elementos mais juntos que o modelo). Por volta de 5 a 6 anos, em média, o sujeito alinhará seis fichas azuis em relação a seis vermelhas. Estará adquirida a operação como parece? De modo algum: basta desmembrar os elementos de uma das séries, ou amontoá-los, etc., para que o sujeito deixe de acreditar na equivalência. Na medida em que dure a correspondência ótica, a equivalência será evidente: desde que a primeira seja alterada, a segunda desaparece, o que nos leva à não-conservação do conjunto.

Ora, essa reação intermediária é plena de interesse.0 esquema intuitivo tornou-se bastante flexível de modo a permitir antecipação e construção de uma configuração exata de correspondência, o que, para um observador não advertido, apresenta todos os aspectos de uma operação. E no entanto, uma vez modificado o esquema intuitivo, a relação lõgica de equivalência, que seria o produto necessário de uma operação, confirma-se inexistente. Achamonos, assim, diante de uma forma de intuição superior à do nível precedente, e que se pode chamar de “intuição articulada”, em contraste com as intuições simples. Mas essa intuição articulada, ao mesmo tempo em que se aproximando da operação (e chegando a ela depois por fases não raro insensíveis), continua rígida e irreversível como o

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pensamento intuitivo inteiro: ela é, pois, apenas o produto das regulações sucessivas, que terminaram por articular as relações globais e inanalisãveis do início, e não ainda de um “grupamento” propriamente dito.

Pode-se acGmpanhar mais de perto essa diferença entre os métodos intuitivos e operatórios fazendo com que a análise recaia nos ajustamentos de classes e seriações de relações assimétricas, constitutivas dos grupamentos mais elementares. É claro, porám, que se trata de apresentar o problema no próprio terreno intuitivo, único acessível neste nível, em contraste com o domínio formal, ligado apenas à linguagem. Quanto ao que se refere aos ajustamentos de classes, colocaremos numa caixa uma vintena de contas, que o sujeito reconhecerá serem “todas de madeira” e que constituem assim um todo B. A maioria dessas contas é de cor castanha e constitui a parte A, e algumas delas são brancas, constituindo a parte complementar X. Para determinar se a criança é capaz de compreender a operação A + A’= B, isto é, a reunião das partes no todo pode-se fazer esta simples pergunta: há nesta caixa (estando visíveis todas as contas) mais contas de madeira ou mais contas castanhas, portanto A < B?

Ora, a criança responde, quase sempre, até cerca de 7 anos de idade, que há mais de cor castanha “porque há apenas duas ou três brancas”. Então se esclarece: “As castanhas são de madeira?- Sim. - Se retiro todas as contas de madeira para colocá-las aqui (outra caixa), ficará alguma conta na (primeira) caixa? --

Não, porque são todas de madeira. - Se retiro as castanhas, ficai-á alguma conta? - Sim, as brancas.” Em seguida, repete-se a pergunta inicial e o sujeito recomeça a afirmar que há na caixa mais contas castanhas que contas de madeira, porque há apenas duas brancas, etc.

0 mecanismo desse tipo de reações é fácil de deslindar: o sujeito centra facilmente sua atenção no todo B, à parte, ou nas partes A e A’, uma vez isoladas em pensamento, mas a dificuldade é que, ao centrar em A, ele destrói por isso mesmo o todo B, de tal modo que a parte A não pode então ser comparada a não ser com a outra parte A’. Há, portanto, de novo, a não-conservação do todo, por falta de mobilidade nas centrações sucessivas do pensamento. Há mais ainda, porém. Forçando a criança a imaginar o que aconteceria fazendo-se um colar, seja com as contas de madeira B, ou com as castanhas A, encontram-se as dificuldades precedentes, mas com esta

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precisão: se faço um colar com as de cor castanha, responde às vezes a criança, não poderia fazer outro colar com as mesmas contas, e o colar de contas de madeira terá apenas as brancas! Esse gênero de reflexões, que nada têm de absurdas, põe em evidência, no entanto, a diferença que ainda separa o pensamento intuitivo do pensamento operatório: na medida em que a primeira imita as ações reais por experiências mentais plenas de imagens, ela defronta o obstáculo de que não se poderia de fato fazer dois colares ao mesmo tempo com os mesmos elementos, ao passo que, na medida em que o pensamento operatório procede por ações interiorizadas que se to m-aram totalmente reversíveis, nada impede de construir simultaneamente duas hipó teses e de compará-las entre si.

A seriação de réguas pequenas A, B, C, etc., de dimensões distintas, mas vizinhas (a serem comparadas duas a duas), também enseja ensinamentos úteis. As crianças, de 4 a 5 anos só chegam a construir pares não coordena, dos entre si: BD, AC, EG etc. Depois a criança constrói séries curtas, e só consegue a seriação de dez elementos por tentativas sucessivas. Além do mais, quando seu enfileiramento está concluído, ela é incapaz de intercalar novos termos sem desfazer o todo. É preciso esperar o nível operatório para que a seriação seja conseguida de pronto, por um método que consista, por exemplo em procurar o menor dos termos, depois o menor dos restantes etc. Ora, é também nesse nível que o raciocínio (A < B) + + (B < C) == (A < C) se torna possível, ao passo que nos níveis intuitivos o sujeito se recusa a concluir das duas desigualdades constatatadas perceptivamente, A < B e B < C, a previsão A < C.

As articulações progressivas da intuição e as diferenças que as separam ainda da operação são sobremodo nítidas nos domínios do espaço e do tempo, de resto muito instrutivas quanto às comparações possíveis entre as reações intuitivas e as reações sensório-motoras. Lembrase, assim, a aquisição pelo bebé da ação que consiste em virar a mamadeira. Ora, virar um objeto por uma ação inteligente não leva por si só a saber virá-lo em pensamento, e as fases dessa intuição da rotação constituer-@ mesmo uma repetição, em linhas gerais, das fases da rotação efetiva ou sensõrio-motora: nos dois casos, verifJLr_a-s@um mesmo processo de descentraçã o progressiva a partir da perspectiva egocêntrica, sendo essa descentração sini-

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plesmente perceptiva e motora, no primeiro caso, e represericativa no segundo.

Pode-se, quanto a isso, proceder de dois modos: ou por rotação, em pensamento, do sujeito em torno do objeto, ou por rotação, em pensamento, do próprio objeto. Fara efetuar a primeira situação, serão apresentadas, por exemplo, à criança, montagens em papelão sobre uma mesa quadrada, e se fará com que escolha, entre alguns desenhos muito simples, aqueles que correspondem às perspectivas possíveis (a criança sentada a um dos lados da mesa vê uma boneca mudar de posição e deve encontrar os quadros que lhes correspondem) : ora, as crianças ficam sempre dominadas pelo ponto de vista que é o seu no momento da escolha, mesmo quando circularam antes de um lado a outro da mesa. As inversões de trás para frente e da esquerda para a direita são de uma dificuldade a princípio insuperável e só se tomam possíveis aos poucos, por volta dos 7 a 8 anos, por regulações intuitivas.

A rotação do próprio objeto pode, por outro lado, ensejar interessantes constatações relativas à intuição da ordem. Por exemplo, enfiam-se por um fio de ferro três bonecas de cores diferentes, A, B e C, ou se faz com que entrem num tubo de papelão (sem cavalgamentos possíveis) três bolas, A, B e C. Faz-se com que a criança desenhe o todo a título de lembrete. Depois se faz passar os elementos A, B e C por trás de uma tela ou através do tubo e se faz prever a ordem direta de saída (na outra extremidade) e a ordem inversa de retorno. A ordem direta é prevista por todos. Por outro lado, a ordem inversa só é prevista em torno de 4 a 5 anos de idade, no fim do período pré-conceptual. Depois disso, imprime-se um movimento de rotação de 180 graus ao conjunto do dispositivo (fio de ferro ou tubo) e se faz prever a ordem de saída (que está, assim, invertida). Tendo a própria criança controlado o resultado, recomeça-se e depois efetuam-se duas meia-rotações (360 graus ao todo) depois três, etc.

Ora, essa prova permite acompanhar passo a passo todo o progresso da intuição até o surgimento da operaçã o. De 4 a 7 anos, o sujeito começa por não prever que uma meia-rotação mudará a ordem ABC, em CBA; depois, tendo constatado a mudanca, admitirá que duas meiasrotações darão também CBÁ. Desmentido pela experiên-

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cia, ele não mais saberá prever o efeito de três meias-rotações. Mais ainda, as crianças (de 4 a 5 anos), após terem visto que tanto A como C saem na frente, imaginam que B terá sua vez de prioridade (ignorando o axioma de Hilbert segundo o qual se B estiver “entre” A e C, estará necessariamente também “entre” C e A!). A noção da invariância da posição “entre” adquire-se também por regulações sucessivas, fontes de articulação da intuição. Só por volta dos 7 anos é que o conjunto das transformações vem a ser compreendido, e não raro muito subitamente quanto à última fase, por um “grupamento'1 geral das relações em jogo. Notemos de pronto que a operação procede, assim, da intuição, não apenas quando a ordem direta (+) pode ser invertida em pensamento (-), por uma primeira articulação intuitiva, mas ainda quando duas ordens, inversas uma em relação à outra, dão de novo a ordem direta (menos multiplicado por menos dá mais, o que, no caso particular, é compreendido aos 7 ou 8 anos!).

As relações temporais ensejam constatações do mesmo gênero. 0 tempo intuitivo é um tempo ligado aos objetos e movimentos particulares, sem homogeneidade nem transcurso uniforme. Quando dois móveis, partindo do mesmo ponto A, chegam a dois lugares diferentes, B e B’, a criança de 4 a 5 anos admite a simultaneidade das partidas, mas contesta muito geralmente a simultaneidade das chegadas, muito embora ela seja facilmente perceptível: ela reconhece que um dos móveis não andava mais quando o outro parou, mas nega-se a compreender que os movimentos terminaram “ao mesmo tempo”, porque ainda não há, precisamente, tempo comum para velocidades diferentes. Do mesmo modo, ela avalia o “antes” e o “depois” de acordo com uma sucessão espacial e não ainda temporal. Do ponto de vista das durações, “mais depressa” acarreta “mais tempo”, mesmo sem implicação verbal e à simples inspeção dos dados (porque mais depressa é igual a mais longe, que é igual a mais tempo). Quando essas primeiras dificuldades são vencidas por uma articulação das intuições (devidas a descentrações do pensamento, que se habitua a comparar dois sistemas de posições ao mesmo tempo, donde uma regulação. gradual das estimativas), subsiste entretanto uma incapacidade sistemática para reunir os tempos locais num tempo único. Duas quantidades iguais de água es@

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correndo em quantidades iguais, por dois ramos de um tubo em Y, em torneiras de formas diferentes, ensejam, por exemplo, os seguintes juizos: a criança de 6 a 7 anos reconhece a simultaneidade das saídas e paradas, mas contesta que a água tenha corrido tanto tempo num vaso como no outro. As idéias relativas à idade dão lugar às mesmas contestações: Se A nasceu antes de B, isso não significa que seja mais velho, e, se é mais velho, isso não exclui que B o iguale em idade ou mesmo o ultrapasse!

Essas noções intuitivas são paralelas àquelas que se encontram no domínio da inteligência prática. André Rey mostrou como indivíduos de idade igual, defrontando problemas de combinações de instrumentos (tirar objetos de um tubo com ganchos, combinar translações de desenhos, rotações, etc.) apresentam igualmente condutas irracionais antes de descobrir essas soluções adaptadas.35. Quanto às representações sem manipulações, tais como a explicação do movimento dos rios, das nuvens, da flutua-4o dos barcos, etc., pudemos constatar que as ligações causais desse tipo calcavam-se em atividade própria: os movimentos físicos mostram finalidade, uma força dinâmica interna: o rio “toma impulso” para passar sobre as pedras, as nuvens fazem o vento, que as empurra de volta, etc.36

Assim é, pois, o pensamento intuitivo. Como o Pensamento simbólico de ordem pré-conceptual, de que decorre diretamente, ele prolonga em certo sentido a inteligência sensório-motora. Assim como o último assimila os objetos aos esquemas da ação, do mesmo modo a intuição é sempre, em primeiro lugar, uma espécie de ação executada em pensamento: transvasar, fazer corresponder, encaixar, seriar, deslocar, etc. são ainda esquemas de ação, aos quais a representação assimila o real. Mas a acomodação desses esquemas aos objetos, em vez de permanecer prática, fornece os significantes imitativos ou plenos de imagens, que permitem precisamnte essa assimilação em pensamento. A intuição é, pois, em segundo lugar, um pensamento com imagem, mais requintado que durante o período precedente, porque recai sobre configurações

35 André Rey, VIntelligence pratique chez Penfant, Alcan, 1935.36 La Causalité physique chez Venfant, Alcan, 1927.

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de conjunto e não mais sobre simples coleções sincréticas simbolizadas por exemplares típicos; mas ainda utiliza o simbolismo representativo e sempre apresenta, Pois, uma parte das limitações que lhe são inerentes.

Essas limitações são claras. Relação imediata entre um esquema de ação interiorizada e a percepção dos objetos, a intuição só chega a configurações “centradas” nessa relação. Impedida de ultrapassar esse domínio das configurações com imagens, as relações que ela constrói são, assim, íncomponíveis entre si. 0 indivíduo nã o chega à reversibilidade porque uma ação traduzida em simples experiência com imagem continua em sentido único, e porque uma assimilação centrada numa configuração perceptiva também o é, necessariamente. Daí a ausência de @ransitividade, porque cada centração deforma ou abole as demais, e a ausência de associatívidade, visto que as relações dependem do caminho percorrido pelo pensamento para elaborã-las. No todo, não há, pois, nem iden~ tidade certa dos elementos, nem conservação do todo, à falta de composição transitiva, reversível e associativa. Desse modo, pode-se também dizer que a intuição continua fenornenista, porque imita os contornos do real sem os corrigir, e egocêntrica, porque constantemente centrada em função da ação do momento: falta-lhe, por isso, o equilíbrio entre a assimilação das coisas aos esquemas do pensamento, e a acomodação deste à realidade.

Mas esse estado inicial, que se acha em cada um doS domínios do pensamento intuitivo, é progressivamente corrigido graças a um sistema de regulações que preludia as operações. Dominada primeiro pela relação imediata entre o fenômeno e o ponto de vista do sujeito, a intuição evolui no sentido da descentração. Cada deformação levada ao extremo acarreta a reintervenção das relações desprezadas. Cada relacionamento feito favorece a possibilidade de um retorno. Cada desvio chega a interferências que enriquecem os pontos de vista. Toda descentração de uma intuição se traduz, assim, numa regulação, que tende na direção da reversibilidade, da composição transitiva e da associatividade, no todo, da conservação por coordenação dos pontos de vista. Donde as intuições articuladas cujo progresso se dirige no sentido de mobilidade reversível e prepara a operação.

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As operações concretas

0 aparecimento das operações lógíco-aritinéticas e espaço-temporais suscita um problema de grande interesse quanto aos mecanismos próprios ao desenvolvimento do pensamento. Não é, com efeito, por simples con-*,enção, com base em definições previamente escolhidas, que é preciso delimitar o momento em que as intuiçõ es articuladas se transformam em sistemas operatórios. Há coisa melhor a fazer do que decompor a continuidade do desenvolvimento em fases identificáveis com critérios exteriores quaisquer: no caso do início das operações, o problema decisivo manifesta-se por uma espécie de equilibração, sempre rápida, e por vezes súbita, que altera o conjunto das noções de um mesmo sistema, e que se trata de explicar em si mesma. Há, no caso, algo de comparável às bruscas estruturações de conjunto descritas pela Teoria da Forma, salvo que, na ocorrência, produzse o contrário de uma cristalização abrangendo o conjunto das relações numa única rede estática: as operações nascem, pelo contrário, de uma espécie de degelo das estruturas intuitivas, e da súbita mobilidade que anima e coordena as configurações até então rígidas em graus diversos, não obstante suas articulações progressivas. Assim é que o momento em que as relações temporais se reúnem na idéia de um tempo único, ou aquele em que os elementos de um conjunto são concebidos como constituindo um todo invariante, ou ainda em que as desigualdades que caracterizam um complexo de relações são seriados numa só escala, constituem momentos muito reconhecíveis no desenvolvimento: à imaginação tateante, sucede, às vezes, bruscamente, um sentimento de coerência e de necessidade, a satisfação de chegar a um sistema ao mesmo tempo fechado em si mesmo e infinitamente extensível.

Por conseguinte, o problema é compreender segundo que processo interno se efetua essa pasagem de uma fase de equilibração progressiva (o pensamento intuitivo) a certo equilíbrio móvel atingido como, no limite da primeira (as operações). Se a noção de “grupamento”, descrita no Capítulo 2, tem verdadeiramente uma significação psicológica, é precisamente neste ponto que ela deve nianifestá-lo.

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Dada a hipótese, pois, de que as relações intuitivas dum sistema considerado sejam, em determinado mo@ mento, subitamente “grupadas”, a primeira questão é sa. ber em que cribério interno ou mental se reconhecerá o grupamento. A resposta é evidente: onde houver “grupamento” haverá conservação de um todo, e essa conservação em si não será simplesmente suposta pelo indivíduo a título de indução provável, mas por ele afirmada como uma certeza de seu pensamento.

Tomemos quanto a isso o primeiro exemplo citado a propósito do pensamento intuitivo: o transvasamento das contas. Após um longo período em que cada transvasamento é suscetível de alterar as quantidades, após uma fase intermediária (intuição articulada) em que certos transvasamentos são capazes de alterar o todo, ao passo que outros, entre vasos pouco diferentes, conduzem o sujeito a supor que o conjunto se conservou, chega sempre um momento (entre 6, 6 e 7; e 8 anos) em que a criança muda de atitude: não há mais necessidade de reflexão. Ela decide; até mesmo se espanta de que se lhe proponha a questão. Ela está certa da conservação. Que se terá passado? Se lhe perguntamos sobre suas razões, ela responcie que nada retirou nem acrescentou; mas os menores também sabiam, e no entanto não concluíam pela identidade: a identificação não é, pois, um processo primeiro, não obstante E. Meyerson, mas um resultado da assimilação pelo grupamento inteiro (produto da operação direta por seu inverso). Ou ela responde que a largura perdida pelo novo vaso é compensada em altura, etc. -

mas a intuição articulada já levava a descentrações de uma relação dada, sem que chegasse à coordenação simultãnea das relações nem à conservação necessária; ou então, sobretudo, responde que um transvasamento de A em B pode ser corrigido pelo transvasamento inverso, e essa reversibilidade é seguramente essencial, mas as criancinhas já admitiam, às vezes, um possível retorno ao ponto de partida, sem que esse “retomo empírico” constituísse uma reversibilidade total. Só há, pois, uma resposta legítima: as diversas transformações invocadas -

reversibilidade, composição das relações compensadas, identidade, etc. - apóiam-se de fato umas nas outras, e é porque se fundem num todo organizado que cada qual é realmente nova, não obstante seu parentesco com a

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relação intuitiva correspondente, já elaborada no nível precedente.

Outro exemplo. No caso dos elementos ordenados ABC que se submetem a uma rotação de meia volta (1.8G graus), a criança descobre intuitivamente, e aos poucos, quase todas as relações: que B fica invariavelmente “entre” A e C e entre C e A; que uma volta muda ABC em CAB e que duas voltas fazem voltar a ABC, etc. Mas as relações descobertas umas após as outras continuam intuições sem vínculo de necessidade. Por volta dos 7 e 8 anos de idade, já vemos crianças que antes de qualquer tentativa prevêem: 1) que ABC se inverte em CBA; 2) que duas inversões restauram a ordem direta; 3) que três inversões equivalem a uma, etc. No caso, ainda, cada unia das relações pode corresponder a uma descoberta intuitiva, mas todas juntas constituem uma realidade nova, porque se tornou dedutiva e não mais consistindo de experiências sucessivas, concretas ou mentais.

Ora, é fácil ver que em todos esses casos, e eles são inúmeros, o equilíbrio móvel é atingido quando as seguintes transformações se produzam simultaneamente: 1) duas ações sucessivas podem coordenar-se em uma única; 2) o esquema de ação, já em operação no pensamento intuitivo, torna-se irreversível; 3) um mesmo ponto pode ser atingido, sem ser alterado, por duas vias diferentes;4) o retomo ao ponto de partida permite encontrar este idêntico a si mesmo; 5) a mesma ação, ao se repetir, nada acrescenta a si mesma, ou é nova ação, com efeito cumulativo. Reconhecemos aí uma composição transitiva, a reversibilidade, a associatividade e a identidade, com (em5), seja a tautologia lógica, seja a iteração numérica, que caracterizam os “grupamentos11 lógicos ou os “grupos” aritméticos.

Mas, o que é preciso compreender bem para atingir a verdadeira natureza psicológica do grupamento, em contraste com sua formulação em linguagem lógica, é que essas diversas transformações solidárias são, de fato, expressões de um mesmo ato total, que é um ato de descentração completa, ou de conversão inteira do pensamento. 0 próprio do esquema sensõrio-motor (percepção, etc.), do símbolo pré-conceptual da própria configuração intuitiva, é que todos eles estão sempre “centrados” num estado particular do objeto e de um ponto de vista, particular do sujeito; portanto, que eles dão provas sem-

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pre, simultaneamente, tanto de uma assimilação egocêntrica ao sujeito como de uma acomodação fenomenista a<) objeto. 0 próprio do equilíbrio móvel que caracteriza o grupamento é, pelo contrário, que a descentraçã o, já preparada pelas regulações e articulações progressivas da intUiÇãG, torna-se bruscamente sistemática ao atingir seu limite: o pensamento não mais se liga, então, aos estados particulares do objeto, mas limita-se a acompanhar as, transformações sucessivas, segundo todos os seus desvios e seus retornos possíveis; e ele não mais procede de um ponto de vista particular do sujeito, mas coordena todos os pontos de vista distintos em um sistema de reciprocidades objetivas. 0 gruparnento realiza, assim, pela primeira vez, o equilíbrio entre a assimilação das coisas à ação do sujeito e a acomodação dos esquemas subjetivos às modificações das coisas. De início, com efeito, assimilação e acomodação atuam. em sentido contrário, donde o caráter deformante da primeira e fenomenista da segunda. Graças às antecipações e reconstituições, prolongando nos dois sentidos as ações a distâncias sempre maiores, desde as antecipações e reconstituições curtas próprias da percepçã o, do hábito e da inteligência sensório-motora, até os esquemas antecipadores elaborados pela representação intuitiva, assimilação e acomodação. equilibram-se aos poucos. É o acabamento desse equilíbrio que explica a reversibildade, do termo final das antecipações e reconstituições sensório-motoras e mentais, e com ela a composição reversível, característica do grupamento: o pormenor das operações grupadas não exprime, com efeito, senão as condições reunidas, ao mesmo tempo da coordenação dos pontos de vista sucessivos do indivíduo (com retorno possível no tempo e antecipação de sua seqüência) e da coordenação das modificações perceptíveis ou representáveis dos objetos (anteriormente, atualmente ou por transcurso ulterior).

De fato, os grupamentos operatórios que se constituem por volta de 7 a 8 anos de idade (às vezes um Pouco antes) chegam às seguintes estruturas: em primeiro lugar, eles conduzem às operações lógicas de ajustamento de classes (a questão das contas castanhas A menos numerosas que as contas de madeira B é resolvida POr volta dos 7 anos) e a seriação das relações assirnét~. Daí a descoberta da transitividade que fundamenta Os dcduções: A == B; B = C, logo A = C; ou A < B; B < C.

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logo A< C. Além do mais, tão logo adquiridos esses gruparnentos aditivos, os grupamentos multiplícativos são imediatamente compreendidos sob a forma de correspondências: sabendo seriar objetos segundo as relaçõ es A, < B., < C, ..., o indivíduo não mais achará difícil seriar duas ou várias coleções, tais como A2 < B2 <

C2- . ., correspondendo-se termo a termo: a uma seqüência de bonecos de dimensões crescentes que tenha ordenado, a criança de 7 anos saberá fazer corresponder uma seqüência de bengalas e chapéus, e mesmo encontrar, quando se mistura tudo, a que elemento de uma das seqüências corresponde este ou aquele elemento de outra (sendo que o caráter multiplicativo desse grupo não acrescenta dificuldade alguma às operações aditivas de seriação que acabam de ser descobertas) .

Mais ainda, a construção simultânea dos grupamentos de ajuste das classes e da seriação qualitativa acarreta o aparecimento do sistema dos números. Sem dúvida, a criança nova não espera essa generalização operatória para construir os primeiros números (segundo A. Descoetidres, ela elabora para si um novo número a cada ano, entre 1 e 6 anos de idade), mas os números 1 a 6 são ainda intuitivos, porque ligados a configurações perceptivas. Por outro lado, poder-se-á ensinar a criança a contar, mas a experiência mostrou-nos que o emprego verbal dos nomes de números continua sem grande relação com as próprias operações numéricas, sendo que es-

tas precedem às vezes a numeração falada ou lhe sucedem sem vínculo necessário. Quanto às operações constitutivãs do número, isto é, à correspondência biunívoca (com conservação da equivalência obtida, não obstante as transformações da figura), ou à interação simples da unidade (1 + 1 = 2; 2 + 1 = 3, etc.), elas nada mais exigem senão grupamentos aditivos de ajuste das classes e da seriação das relações assimétricas (ordem), mas fundidos num único todo operatório, tal que a unidade 1 seja simultaneamente elemento de classe (1 compreendido em

2; 2 em 3, etc.) e de série (o primeiro 1 antes do segundo 1, etc.). Na medida em que a pessoa encare os elementos individuais em sua diversidade qualitativa, ela pode, com efeito, reuni-los segundo suas qualidades equivalentes (construindo, então, classes), ou ordenã-los de acordo com suas diferenças (construindo, então, relações asSiMétricas), mas não as pode grupar simultanea-

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mente na medida em que equivalentes e diferentes. o nú. mero é, pelo contrário, Uma coleção de objetos concebi. dos ao mesmo tempo como equivalentes e seriáveis, sua& únicas diferenças reduzindo-se, então, a sua posição de ordem: essa reunião da diferença e da equivalência supõe, nesse caso, a eliminação de qualidades, donde precisa@ mente a constituição da unidade homogénea 1 e a passagem do lógico ao matemático. Ora, é muito interessante verificar que essa pasagem efetua-se geneticamente no, próprio momento da construção das operações lógicas : classes, relações e números constituem, assim, um todo psicológica e logicamente indissociável, cujos três termos completam, cada um, os demais.

Mas essas operações lógico-aritméticas constituem apenas um aspecto dos grupamentos fundamentais cuja, construção caracteriza a idade entre 7 e 8 anos. A essas, operações, que reúnem os objetos para os classificar, seriar ou enumerar, correspondem, com efeito, as operações constitutivas dos próprios objetos, objetos complexos e no entanto únicos tais como o espaço, o tempo e os sistemas materiais. Ora, não surpreende que essas operações, infralógicas ou espaço-temporais, se grupem em correlação com as operações lógico-aritméticas, visto que são as mesmas operações, mas em outra escala: o ajuste dos objetos em classes e das classes entre si torna-se, no caso, o ajuste das partes ou porções num todo; a seriação, exprimindo as diferenças entre objetos, apresenta-se aí sob. * forma de relações de ordem (operações de colocação) * de deslocamento, e o número, no caso, corresponde à medida. Ora, efetivamente, ao passo que se elaboram as classes, as relaçõ es e os números, vê-se construir, de modo notavelmente paralelo, os grupamentos qualitativos geradores do tempo e do espaço. É por volta dos 8 anos que as relações de ordem temporal (antes e depois) se coordenam com as durações (menos ou mais tempo), ao passo que os dois sistemas continuavam independentes no plano intuitivo: ora, tão logo ligados num único todo, elas engendram a noção de um tempo comum aos diversos movimentos de velocidades distintas (tanto interiores como exteriores). É também por volta dos 7 a 8 anos que se constituem sobretudo as operações qualitativas que estruturam o espaço: ordem de sucessão espacial e ajustamento dos intervalos ou distâncias; conservação dos comprimentos, superfícies, etc; elaboração de um sistema de coordena-

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das; perspectivas e seções, ete. Quanto a isso, o estudo da medida espontânea, que procede das primeiras estimativas por “transportes” perceptivos para chegar, por volta de 7 a 8 anos, à transitividade das congruências operatórias (A--B; B=, donde, A=C), e a elaboração da unidade (por síntese da participação e do deslocamento), demonstra da maneira mais clara como o transcurso contínuo das aquisições perceptivas, depois intuitivas, chega às operções reversíveis finais como a sua forma necessária de equilíbrio. p

Mas é importante notar que esses diferentes grupamentos lógico-aritméticos ou espaço-temporais ainda estão longe de constituir uma lógica formal aplicável a todas as noções e a todos os raciocínios. Há, no caso, um ponto essencial a destacar, tanto para a teoria da inteligência como para as aplicações pedagógicas, se quisermos adaptar o ensino aos resultados da psicologia do desenvolvimento em oposição ao logicismo da tradição escolar. Com efeito, as mesmas crianças que chegam às operações que acabamos de descrever são, em geral, incapazes delas quando deixam de manipular os objetos e são convidadas a raciocinar por simples proposições verbais. As operações de que se trata aqui são, pois, “operações concretas% e não ainda. formais: sempre ligadas à ação, elas as estruturam logicamente, inclusive as expressões que a acompanham, mas em nada implicam a possibilidade de elaborar um discurso lógico independente da ação. Assim é que a inclusão das classes está compreendida desde os 7 e 8 anos na questão concreta das contas (tenhase em mente o exemplo estudado antes), ao passo que um teste verbal de estrutura idêntica só vem a ser resolvido muito mais tarde (ef. um dos testes de Burt: “Algumas das flores do meu buquê são aniarelas% diz um menino a suas irmãs. A primeira responde: “Então, todas as flores são amarelas”; a segunda responde: “Uma parte é amarela”; e a terceira: “Nenhuma”. Qual delas tem razão?).

Há mais, porém. Os mesmos raciocínios “concretos”, tais como levando à conservação do todo, à transitividade das igualdades (A=B=C) ou das diferenças (A<B<C ... ), podem ser manejados com facilidade no caso de um sistema determinado de noções (como a quantidade de matéria) e ficar sem significação, nos mesmos indivíduos, por outro sistema de noções (como o peso). É sobretudo

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deste ponto de vista que é ilegítimo falar de lógica formal antes do fim da infância: os grupamentos” continuam relaiivos aos tipos de noções concretas (isto é, de ações mentalízadas) que foram efetivamente estruturados, mas a estruturação de outros tipos de noções concretas, de natureza intuitiva mais complexa porque ainda apoiandose em outras ações, exige uma reconstrução dos mesmos grupamentos com defasagem no tempo.

Exemplo particularmente claro é o das noções da conservação do todo (índices do próprio grupamento). Apresenta-se, assim, à pessoa duas bolotas de pasta de modelagem de formas, dimensões e pesos iguais, e depois se modifica uma delas (em espiral, etc.), perguntando se foram conservados a matéria (mesma quantidade de pasta), o peso e o volume (sendo que este é avaliado no deslocamento da água em dois vasos onde se mergulham os objetos). Ora, a partir dos 7 a 8 anos, a quantidade de matéria é reconhecida como se conservando necessariamente, em virtude de raciocínios já descritos a propósito da conservação dos conjuntos. Mas até 9 e 10 anos as mesmas crianças contestam que o peso se conserve, apoiando-se em raciocínios intuitivos que elaboravam até7 e 8 anos para motivar a não-conservação da matéria. Quanto aos raciocínios que acabam de elaborar (não raro, alguns instantes antes) para demonstrar a conservação da substãncia, em nada são aplicados ao peso: se a espiral é mais fina que a bolota, a matéria se conserva porque esse afinamento é compensado pelo alongamento, mas o peso diminui porque, desse ponto de vista, o afinamento atua de modo absoluto! Por volta de 9 a 10 anos, a conservação do peso é admitida, em virtude dos mesmos raciocínios quanto à matéria, mas, quanto ao volume, é negada ainda antes dos 11 a 12 anos, e em virtude dos raciocínios intuitivos inversos! Além do mais, as seriações, as composições de igualdade, etc. acompanham a mesma ordem de desenvolvimento: aos 8 anos, duas quantidades de matéria iguais a uma terceira são iguais entre si, mas i-ião dois pesos (independentes da percepção do volume, evidentemente)! E assim por diante. A razão dessas defasagens deve ser procurada, naturalmente, nos caracteres intuitivos da substância, do peso e do volume, que facilitam ou retardam as composições operatórias: uma mesma forma lógica ainda não é, portanto, antes dos 11 a 12 anos, independente de seu conteúdo concreto.

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As operações formais

As defasagens cujo exemplo acabamos de ver são relativas às operações de mesmas categorias, mas aplicadas a domínios distintos, de ações ou noções: apresentando-se durante o mesmo período, podem pois ser chamadas de “defasagens horizontais”. Por outro lado, a passagem das coordenações sensório-motoras às coordenações representativas dão lugar, como vimos, a reconstruções semelhantes, com defasagens, mas como estas não são mais relativas aos mesmos degraus podemos chamá-las de “verticais”. Ora, a constituição das operações formais, que começa por volta de 11 a 12 anos, necessita igualmente de uma reconstrução total, destinada a transpor os grupamentos “concretos” em um novo plano de pensamento, e essa reconstrução é caracterizada por uma série de defasagens verticais.

0 pensamento formal expande-se durante a adolescência. 0 adolescente, diferentemente da criança, é um individuo que reflete fora do presente e elabora teorias sobre todas as coisas, comprazendo-se sobretudo nas considerações intempestivas. Por outro lado, a criança só reflete ao ensejo da ação em curso, e não elabora teorias, mesmo que o observador, notando o retorno periódico de reações análogas, possa discernir uma sistematização espontânea em suas idéias. Ora, esse pensamento refletido, característico do adolescente, nasce a partir dos 11 a 12 anos, desde o momento em que o jovem se torna capaz de raciocinar de modo hipotético-dedutivo, isto é, com base em simples pressuposições sem relação necessária com a realidade ou com as crenças do indivíduo, confiando na inevitabilidade do próprio raciocínio (vi formae), em oposição ao acordo das conclusões com a experiência.

Ora, raciocinar segundo a forma e sobre simples proposições implica operações outras que raciocinar sobre a ação ou a realidade. 0 raciocínio referente à própria realidade consiste em um grupamento de operações de primeiro grau, por assim dizer, isto é, de ações interiorizadas que, se tornaram componíveis e reversíveis. 0 pensamento formal, pelo contrário, consiste em refletir (no sentido próprio) essas operações, portanto em operar sobre operações do segundo grau. Sem dúvida, trata-se dos mesmos conteúdos operatórios: o problema consistirá sempre em elassifi-car, seriar, enumerar, medir, colocar ou deslocar no espa-

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ço ou no tempo, etc. Mas não são essas classes, séries, e relações espaço-temporais, na medida em que estruturações da ação e da realidade, que serão grupadas pelas operações formais. Serão as proposições que exprimem -ou “refletem” essas operações. As operações formais consistirão, pois, essencialmente, em “implicações” (no sentido estrito do termo) e “incompatibilidades” estabelecidas entre proposições, sendo que estas exprimem classificações, seríações, etc.

Compreende-se, então, por que há defasagem vertical entre as operações concretas e as operações formais quando estas mesmas repetem, de certo modo, o conteúdo das primeiras: não se trata, absolutamente, com efeito, de operações de mesma dificuldade psicológica. Basta, assim, traduzir em proposições um simples problema de seriações entre três termos apresentados em desordem, para que essa adição serial se torne singularmente difícil, ao passo que ela é bem fácil a partir dos 7 anos de idade, sob a forma de seriação concreta e mesmo de coordenações transitivas pensadas a propósito da ação. Entre os testes de Burt, encontramos o belo exemplo seguinte: “Edith é mais clara (ou loura) que Suzana; Edith é mais escura (ou morena) que Lili; qual é a mais escura das três?” Ora, só por volta dos 12 anos essa questão é resolvida. Antes dessa idade, encontramos raciocínios deste tipo: Edith e Suzana são claras. Edith e Lili são morenas, então Lili é a mais morena. Suzana a mais clara e Edith fica entre as duas. Em outras palavras, a criança de 10 anos raciocina, no plano formal, como as criancinhas de 4 e 5 anos o fazem a propósito de varas a seriar, e só aos 12 anos relaciona em termos formais o que sabe fazer aos sete anos em termos concretos em relação a dimensões, e a causa disso é simplesmente que as premissas são dadas a título de puras hipóteses verbais e que a conclusão deve achar-se vi formae, sem recor-

rer às operações concretas.

Vê-se, assim, por que a lógica formal e a dedução matemática ficam inacessíveis à criança, parecendo constituir um domínio autônomo: o do pensamento “puro”, independente da ação. E, efetivamente, quer se tratasse dessa linguagem particular - a aprender como qualquer linguagem- que são os signos matemáticos (signos que nada têm de símbolos, no sentido definido há pouco), ou desse outro sistema de signos que são as palavras exprimindo simples proposições, as operações hipotético-dedutivas estão situa-

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das em outro plano que não o do raciocínio concreto, porque uma ação efetuada sobre signos destacados do real é, algo inteiramente diferente da ação referente à realidada em si ou sobre os mesmos signos ligados a essa realidade. Eis por que a lógica, dissociando esse estágio final d(> conjunto da evolução mental, limita-se, de fato a lhe axiomatizar as operações características, em vez de recolocálas em seu contexto vivo. Era, de resto, sua função, mas, essa função ganha certamente em ser desempenhada conscientemente. Por outro lado, a lógica era estimulada nessa via pela própria natureza das operações formais que, sendo do segundo grau e operando apenas sobre signos, enveredam pelo caminho da esquematização própria da axiomática. Cabe, porém, à psicologia recolocar o cânon das operações formais em sua perspectiva real, e mostrar que nã o poderia haver significação mental a não ser apoiando-se@ em operações concretas de que recebe ao mesmo tempo a preparação e o conteúdo. Desse ponto de vista, a lógica formal não é uma descrição adequada de todo pensamento vivo: as operações formais constituem exclusivamente a estrutura do equilíbrio final, no sentido do qual tendem as operações concretas quando elas se refletem em sistemas mais gerais que combinam entre si as proposições que os exprimem.

A hierarquia das operações e sua diferenciação progressiva

Vimos que uma conduta é um intercâmbio funcional entre o sujeito e os objetos, e pode-se seriar as condutas segundo uma ordem de sucessão genética fundada nas distâncias crescentes, no espaço e no tempo, que caracterizam os trajetos sempre mais complexos seguidos por esses intercâmbios.

Assimilação e acomodação perceptivas pressupõem, assim, tão-somente um intercâmbio direto, de trajetos retilínios. 0 hábito tem trajetos mais complexos, porém mais curtos, estereotipados e de sentido único. A inteligência sensório-motora introduz retornos e desvios; ela atinge o objeto fora do campo perceptivo e dos itinerários habituais, e

estende, desse modo, as distâncias iniciais no espaço e no tempo, mas fica limitada ao campo da ação própria. Com o início do pensamento representativo e sobretudo com o progresso do pensamento intuitivo, a inteligê ncia torna-se

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capaz de evocar os objetos ausentes e, por conseguinte, de se ligar aos resultados invisíveís, passados e, em parte, futuros. A essa altura, porém, ela procede mediante figuras mais ou menos estáticas, imagens meio Individuais, meio genéricas no caso do pré-conceito, configurações representativas de conjunto cada vez mais bem articuladas no período intuitivo, mas sempre figuras, isto é, instantâneos da realidade móvel e portanto só representando alguns estados ou alguns itinerários entre o conjunto de trajetos possíveis: o pensamento intuitivo fornece, assim, um mapa do real (o que não sabia fazer a inteligência sensório-motora enredada no próprio real imediato), mas ainda plena de imagens, com grandes espaços em branco e sem coordenadas suficientes para passar de um ponto a outro. Com os grupamentos de operações concretas, essas figuras se dissolvem ou se fundem no plano de conjunto, e um progresso decisivo se faz na conquista das distâncias e da difereneíãçao dos trajetos: não são mais os estados ou os itinerários fixos que o pensamento apreende, mas as próprias transformações, tais que de um ponto se possa sempre passar a outro, e reciprocamente. l@ toda a realidade que se torna acessível. Mas ainda é apenas a realidade representada: com as operações formais, chega a ser mais que a realidade, visto que o universo do possível abre-se à construção e o pensamento torna-se livre em relação ao mundo real. A criação matemáticaé uma ilustração desse último poder.

Ora, ao enfocar agora o mecanismo -dessa construção, e não mais apenas sua extensão progressiva, verifica-se que cada degrau é caracterizado por uma nova coordenação dos elementos fornecidos - já em estado de totalidades por sinal, mas de ordem inferior - pelos processos do nível precedente.

0 esquema sensório-motor, unidade própria do sistema da inteligência pr&simbólica, integra a si os esquemas perceptivos e os esquemas decorrentes da ação habitual (sendo esses esquemas da percepção e do hábito da mesma ordem inferior, uns ligados ao estado presente do objetivo e os demais às transformações elementares de estados).0 esquema simbólico integra a si os esquemas sensõrinmotores com diferenciação das funç5es, acomodação imitativa prolongando-se em significantes com imagens e assimilação determinando os significados. 0 esquema intuitivo é, ao mesmo tempo, uma coordenação e uma diferen-

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ciação dos esquemas dotados de imagens. 0 esquema operatório de ordem concreta é um gupamento de esquemas intuitivos, promovidos à categoria de operações reversíveis, devido ao, fato de seu próprio grupamento. Finalmente, o esquema formal nada mais é, como vimos, que um sistema de operações de segundo grau, portanto um grupamento que opera sobre grupamentos concretos.

Assim, cada uma dessas passagens de um desses níveis ao seguinte é caracterizada ao mesmo tempo por uma nova coordenação e por uma diferenciação dos sistemas que constituem a unidade no nível precedente. Ora, essas diferenciações sucessivas esclarecem, por sua vez, a natureza indiferenciada dos mecanismos iniciais, podendo-se, assim, simultaneamente, conceber uma genealogia dos grupamentos operatórios, por diferenciações graduais, e uma explicação dos níveis pré-operatórios pela indiferencíação dos processos em jogo: - .

Assim é que a inteligencia sensõrío-motora chega, como vimos no Cap. 4, a uma espécie de grupamento empí rico dos movimentos, caracterizado psicologicamente pelas condutas de retorno e desvio, e geometricamente por aquilo que Poincaré chamava de grupo (experimental) dos deslocamentos. Mas é evidente que nesse nível elementar, anterior a qualquer pensamento, não se poderia conceber esse grupamento como um sistema operatório, visto que é o sístema dos movimentos efetivamente realizados: ele é, de fato, indiferenciado, sendo os deslocamentos de que ele trata, sempre, ao mesmo tempo, movimentos orientados no sentido de um objetivo com finalidade prática. Poder-se-ia, pois, dizer que, nesse nível, os grupamentos espaço-temporais, lógico-aritméticos e práticos (meios e fins) constituem um todo global e que, por falta de diferenciação, esse sistema de conjunto não poderia constituir um mecanismo operatório.

No fim desse período e no início do pensamento representativo, o aparecimento do símbolo permite, pelo contrário, uma primeira diferenciação: os grupamentos práticos, de uma parte (fins e meios), e a representação, de outra. Mas esta última é ainda indiferenciada, não podendo as operações lõgico-matemãticas dissociar-se das operações espaço-temporais. No nível intuitivo, com efeito, não há classes nem relações propriamente ditas, ambas permanecendo ao mesmo tempo conjuntos espaciais ou relações espaço-temporais: donde seu caráter intuitivo e pré-opera-

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tório. No nível de 7 a 8 anos, pelo contrário, o aparecimento dos grupamentos operatórios é caracterizado precisamente pela diferenciação nítida das operações lõgico-aritméticas que se tornaram independentes (classes, relações e números desespacializados) e operações espaço-temporaís ou infralógicas. Finalmente, o nível das -operações formais assinala uma última diferenciação, entre as operações ligadas à ação real e as operaçõ es hipotético-dedutivas, referentes a puras implicações entre proposições enunciadas a títulos de suposições.

A determinação do “nível mentaV

Os conhecimentos adquiridos em psicologia da inteligência deram ensejo a três tipos de aplicações, que, em si, não têm a ver com nosso tema, mas cujos ensinamentos úteis devem ser assinalados a título de verificação das hipõteses teóricas.

Sabe-se de que forma Binet, com vistas a determinar o grau de retardamento dos anormais, foi levado a imaginar sua notável escala métrica da inteligência. Analista sutil dos processos do pensamento, Binet estava mais que ninguém perfeitamente cônscio das dificuldades para a medida do próprio mecanismo da inteligência. Mas, devido precisamente a esse sentimento de apreensão, recorreu a uma espécie de probabilismo psicológico, reunindo, com Simon, as provas mais diversas e procurando determinar a freqüênela dos êxitos em funçã o da idade: a inteligência é então avaliada pelos avanços ou retardos relacionados com a idade estatística média das soluções corretas.

É inegável que esses testes de nível de inteligência, de um modo geral, proporcionaram o que deles se esperava; uma avaliação rápida e prática do nível global de um indivíduo. É, porém, não menos evidente que eles medem tãosomente o ‘Irendiment0% sem atingir as operações criativas em si. Como muito bem o exprimiu Piéron, a inteligência assim concebida exprime essencialmente um juizo de valor sobre uma conduta complexa.

Por outro lado, multiplicaram-se os testes, desde Binet, e procurou-se diferenciá-los em função de diferentes aptidões especiais. No domínio próprio da inteligência, elaborou-se assim o teste de raciocínio, o de compreensão, o de conhecimentos, ete. 0 problema é, então, extrair as correlações entre esses resultados estatísticos, na esperança de

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dissociar e avaliar os diversos fatores em jogo no mecanismo Intimo do pensamento. Spearman e sua escola dedicaram-se especialmente a essa tarefa, mediante rigorosos métodos estatísticos,37 e chegaram à hipótese de uma intervenção de certos fatores constantes. 0 mais geral foi denominado por Spearman “fator g”, e seu valor está em relação com a inteligência do indivíduo. Mas, como esse mes mo autor insistiu, o fator g exprime simplesmente a “inteligência geral”, isto é, o grau de eficiência comum do conjunto de aptidões do sujeito, quase que se poderia dizer a qualidade da organização nervosa e psíquica que faz com que um indivíduo tenha mais facildade que outros para realizar determinado trabalho mental.

Por fim, procurou-se reagir de maneira diferente ao empirismo das simples medidas de rendimento, tentandose determinar as próprias operaçõ es de que dispõe determinado indivíduo, sendo então o termo da operação tomado num sentido limitado e relativo à construção genética, como fizemos neste livro. Assim é que B. Inhelder utilizou a noção de “grupamento” no diagnóstico do raciocínio. Ela pôde mostrar que nos débeis mentais a ordem de aquisição das noções de conservação da substância, do peso e do volume está presente de modo integral: não se encontra a última das três invariantes (de resto, presente apenas nos simples retardados e estranha ao débil) sem as duas outras, nem a segunda sem a primeira, ao passo que se acha a conservação da substância sem a noção de conservação de peso e volume, e a da substância e do peso sem a do volume. Ela pôde contrastar a debilidade com a imbecilidade, pela presença de grupamentos concretos (de que o imbecil é incapaz), e com o retardamento simples, pela incapacidade de raciocínio formal, logo, pela culminação da elaboração operatória.311 Há, no caso da obra dessa autora, a aplicação de um método que poderia ser desenvolvido na determinação dos níveis de inteligência ern geral.

37 Cálculo das “diferenças quádruplas” ou correlações entre correlações.38 B. Inhelder, Le Diagnostic du raísonnement chez les débiles mei&taux, Delachaux e Niestlé, 1944.

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Os Fatores Sociais do Desenvolvimento Intelectual

Desde o seu nascimento, o ser humano está mergulhado num meio social que atua sobre ele do mesmo modo que o meio físico. Mais ainda que o meio físico, em certo sentido, a sociedade transforma o indivíduo em sua própria estrutura, porque ela não só o força a reconhecer fatos como também lhe fornece um sistema de signos inteiramente acabado, que modifica seu pensamento; ela lhe propõe valores novos e lhe impõe uma seqüência infinita de obrigações. Não há dúvida alguma, portanto, de que a vida social transforma a inteligência pela tripla mediação da linguagem (signos), do conteúdo dos intercâmbios (valores intelectuais) e das regras impostas ao pensamento (normas coletivas lógicas ou pré-lógicas).

Sem dúvida é necessário que a sociologia enfoque a sociedade como um todo, embora esse todo, bem distinto da soma dos indivíduos, constitua o conjunto das relações ou das interações entre esses indivíduos. Cada relação entre indivíduos (a partir de dois) de fato os modifica, e cons. titui já uma totalidade, de tal modo que a totalidade constituída pelo conjunto da sociedade é menos uma coisa, um ser ou uma causa do que um sistema de relações. Mas essas relações são extremamente numerosas e complexas, visto que constituem, de fato, uma trama continua na história, pela atividade das gerações e suas influências umas sobre as outras, tanto quanto um sistema sincrôníco de

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equilíbrio a cada momento da história. É, pois, lícito adotar uma linguagem estatística e falar da “sociedade” como de um todo coerente (do modo como uma Gestalt é resultante de um sistema estatístico de relações). Apenas, é fundamental ter em mente o caráter estatístico das expressões da linguagem sociológica, porque, esquecendo-se esse fato, dar-se-ia às palavras um sentido mitológico. Na sociologia do pensamento, pode-se mesmo indagar se não haverá proveito em substituir a linguagem global comum pela menção dos tipos de relaçõ es em jogo (tipos também estatísticos, evidentemente).

Por outro lado, quando se trata de psicologia, isto é, quando a unidade de referência é o indivíduo modificado pelas relações sociais e não mais o conjunto ou os conjuntos de relações como tais, torna-se totalmente ilegítimo contentarmo-nos com termos estatísticos demasiado gerais. “Atuação da vida social” é uma noção exatamente tão vaga como seria a de “atuação do meio físico” se não a quiséssemos pormenorizar. 0 ser humano, do nascimento à vida adulta, é objeto de pressões sociais, é claro, mas essas pressões são de tipos extremamente variados e distintos, e se exercem segundo certa ordem de desenvolvimento. Assim como o meio físico não se impõe de uma só vez nem num único bloco à inteligência em evolução, mas se pode acompanhar passo a passo as aquisições em função da experiência, e sobretudo os modos, muito diferentes segundo o nível, de assimilação e acomodação que regem essas aquisições, do mesmo modo o meio social dá ensejo a interações entre o indivíduo em desenvolvimento e as circunstâncias que o rodeiam, as quais são extremamente diferentes umas das outras, e cuja sucessão obedece a leis. São esses tipos de interação e essas leis de sucessão que a psicologia deve estabelecer cuidadosamente, sob pena de simplificar-se a tarefa até a abdicação em favor da sociologia. Ora, não existe qualquer razão de conflito entre esta ciência e a psicologia, desde que se reconheça o quanto a estrutura do indivíduo é modificada por essas interações: ambas as disciplinas têm a ganhar com um estudo que ultrapasse a análise global para entrar na via da análise das relações.

A socialização da inteligência individual

De acordo com o nível de desenvolvimento do indivíduo, os intercâmbios que ele mantém com o meio social

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são de natureza muito diversa, e modificam, por conse@ guinte, em contrapartida, a estrutura mental individual de modo também diferente.

Durante a fase sensório-motora, o bebé já está sujeita a múltiplas influências sociais: são-lhe proporcionados os maiores prazeres que sua pouca experiência pode ter- do alimento ao calor do afeto do ambiente - ele é abraçado, sorriem para ele, brincam com ele, acalmam-no; inculcam-se-lhe hábitos e regularidades relacionadas com sinais e palavras, e já se lhe proíbem certas atitudes, ralha-se com ele. Em suma, visto de fora, o bebé de peito está no centro de uma multidão de relações que preludiam os signos, os valores e as regras da vida social ulterior. Mas, do ponto de vista do próprio sujeito, o meio social ainda não se diferencia essencialmente do meio físico, pelo menos até o quinto estágio que assinalamos na inteligência sensório-motora (Cap. 4). Os sinais de que se valem em relação a ele não passam de signos ou índices naquela fase de sua vida. As regras que se lhe impõem ainda não são obrigações de consciência e se confundem, para ele, com as regularidades próprias do hábito. Quanto às pessoas, trata-se de quadros análogos a todos aqueles que constituem a realidade, mas especialmente dinâmicos, imprevistos e fontes de sentimentos mais intensos.0 bebé atua sobre eles como sobre as coisas, por gestos eficazes, fazendo com que continuem as ações interessantes, e por gritos diversos, mas ainda não há, no caso, qualquer intercâmbio de pensamento, visto que a criança desse nível ignora o pensamento, nem, por conseguinte, qualquer modificação profunda das estruturas intelectuaís pela vida social ambiente.39

Com a aquisição da linguagem, por outro lado - isto é, com os períodos simbólico e intuitivo - novas relações sociais aparecem, enriquecendo e transformando o pensamento do indivíduo. Mas quanto a isso é preciso distinguir três questões.

0 sistema de signos coletivos, de fato, não cria a função simbólica, mas a desenvolve naturalmente, em proporções que o indivíduo por si só ignoraria. Todavia, o signo como tal, convencional (”arbitrário”) e inteiramente

39 No ponto de vista afetivo, é sem dúvida apenas no nível da elaboração da noção de objeto que há projeção da afetividade sobre, as pessoas, concebidas então, por sua vez, como centros de atuação independentes.

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elaborado, não basta como meio de expressão para o pensamento da criança pequena: ela não se contenta em falar; é preciso que “desempenhe” o que pensa, que simbolize suas idéias por meio de gestos ou de objetos, que represente as coisas por imitação, desenho e construção. Em suma, do ponto de vista da própria expressão, a criança permanece, no início, em uma situação intermediária entre o emprego do signo coletivo e o do símbolo individual, ambos, de resto, sendo sempre necessários, mas o segundo bem mais necessário às crianças que aos adultos.

Em segundo lugar, a linguagem transmite ao indivíduo um sistema inteiramente elaborado de noções, classificações, relações; em suma, um potencial inesgotável de conceitos que se reconstroem em cada indivíduo no mo-delo multissecular que já moldou as gerações anteriores. Mas é óbvio que a criança começa a tirar desse conjunto apenas o que lhe é conveniente, desprezando soberbamente tudo o que ultrapassa o seu nível mental. Além disso, o que ela retira desse acervo é assimilado segundo sua estrutura intelectual: a palavra ou expressão destinada a veicular um conceito geral só engendra, a princípio, um pré~conceito, semi-individual e semi-socializado (a palavra “pássaro” evocará, assim, o canário da casa, etc.).

Em terceiro lugar, restam as próprias relações que o sujeito mantém com seu meio, relações, portanto, “sincrônicas”, em contraste com os processos “diacrônicos'1 cuja influência a criança sofre ao adquirir a linguagem e os modos de pensar que lhe estão ligados. Ora, essas relações sincrônicas são o essencial no “cio: conversando com as pessoas que lhe estão próximas, a criança verá, a cada instante, seus pensamentos aprovados ou contrariados, e descobrirá um mundo imenso de pensamentos exteriores a ela, que lhe instruirão ou impressionarão de modos diversos. Do ponto de vista da inteligência (o único que nos interessa aqui), ela será levada a um intercâmbio cada vez maior de verdades obrigatórias (idéias inteiramente feitas ou normas propriamente ditas de raciocínio).

Apenas, no caso, não se deve igualmente exagerar, nem confundir as capacidades de assimilação próprias do pensamento intuitivo com o que elas virão a ser no nível operatório. Vimos, com efeito, no que se refere à adaptação do pensamento ao meio físico, que o pensa-

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mento intuitivo dominante até o fim da primeira infância (7 anos) caracteriza-se por um desequilíbrio, ainda não reduzido, entre assimilação e acomodação. A relação intuítiva resulta sempre de urna Ilcentração11 do pensamento em função da atividade própria, em contraste com o “grupamento” de todas as relações em jogo. assim, a equivalência entre duas séries de objetos não é admitida senão relativamente à atividade de fazê-las corresponder e se perde tão logo essa ação é substituída por outra. Portanto, o pensamento intuitivo sempre dá provas de um, egocentrismo deformante, sendo a relação admitida relativa à ação do sujeito, e não descentrada num sistema objetivo.40 Reciprocamente, e pelo próprio fato de que o pensamento intuitivo está a cada instante “centrado” numa relação dada, é fenomenista e só atinge do real a sua aparência perceptiva: está, portanto, à mercê das sugestões da experiência imediata, que ele copia e imita, em vez de corrigir. - Ora, a reação da inteligência desse nível ao meio social, em si, é exatamente paralela à sua reação ao meio físico, o que, de resto, é óbvio, visto que as duas espécies de experiência são índissociáveis na realidade.

Por um lado, por mais dependente que seja das influências intelectuais ambientes, a criança nova as assimíla a seu modo. Ela as reduz ao seu ponto de vista e as deforma, pois, sem o saber, pelo simples fato de que não distingue ainda o seu ponto de vista do ponto de vista dos outros, por falta de coordenação ou de “grupamentos” dos próprios pontos de vista. A criança é, desse modo, egocêntrica pela inconsciência de sua subjetivídade, no plano social como no plano físico. Por exemplo, ela saberá mostrar sua mão direita, mas confundirá as relações sobre o parceiro situado diante dela, incapaz de se situar de outra perspectiva, social como geometricamente; comprovamos, igualmente, como, em problemas de perspectiva, a criança primeiro atribui aos outros a sua própria visão das coisas; nas questões de tempo, acontece até que uma criança, ao mesmo tempo declarando seu pai mais velho que ela, acredite que ele tenha nascido “depois” dela, por não “se lembrar” do que ele fazia antes! Em suma, a centração, intuitiva, contrariamente à des-

40 Heurí Walion, que criticou a noção de egocentrísmo, mantém contudo a idéia em si, que ele exprime muito bem ao dizer que a criança nova pensa no modo optativo e não no modo indicativo.

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centração operatória, reveste-se, assim, de um primado inconsciente, e tanto mais sistemático, do ponto de vista próprio. Esse egocentrismo intelectual, nos dois casos, nada mais é que falta de coordenação, uma ausência de “grupamento” das relações com os demais indivíduos, assim como com as coisas. Isso tudo é absolutamente natural: a supremacia do ponto de vista próprio, assim como a centração intuitiva em função da ação própria não passam de expressão de uma indiferenciação inicial, de uma assimilação deformante, porque determinada pelo único ponto de vista possível inicialmente. Tal indiferenciação, com efeito, é óbvia, visto que a distinção dos pontos de vista e sua coordenação pressupõem um trabalho completo da inteligência.

Mas, pelo fato de o egocentrismo inicial resultar de simples indiferenciação entre o ego e o alter, o sujeito acha-se exposto, exatamente durante -o mesmo período, a todas as sugestões e a todas as constrições do meio ambiente, às quais se acomodará sem crítica, precisamente por não estar consciente do caráter próprio de seu ponto de vista (assim acontece freqüentemente às criancinhas não terem consciência de imitar, acreditando terem tido a iniciativa do modelo, como também lhes acontece atribuir aos outros as idéias que lhes são particulares). Eis por que o apogeu do egocentrismo coincide, no desenvolvimento, com o da pressão dos exemplos e opiniões do meio, e a mistura de assimilação ao eu e de acomodação aos modelos ambientes é também explicável, da mesma forma que a do egocentrísmo e do fenomenismo próprios da intuição inicial das relaçõ es físicas.

Apenas, é óbvio que nessas condições (que se resumem todas à ausência de “grupamento”) as constrições do meio não poderiam bastar para engendrar uma lógica no espírito da criança, mesmo que as verdades que elas impõem fossem racionais em seu conteúdo: repetir as ideias corretas’mesmo acreditando que elas emanam de si mesmo, não equivale a raciocinar corretamente. Pelo contrário, para aprender com os outros a raciocinar logicamente, é indispensável que se estabeleçam entre as pessoas e a criança essas relações de diferenciação e de reciprocidade símultãneas que caracterizam a coordenação dos pontos de vista.

Em suma, nos níveis pré-operatõrios que se estendem desde o aparecimento da linguagem, aos 7 - 8 anos

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aproximadamente, as estruturas próprias do pensamento nascente excluem a formação das relações sociais de cooperação que por si acarretariam a constituição de uma lógica: oscilando entre o egocentrismo deformante e a aceitação passiva dessas constrições intelectuais, a criança ainda não é, portanto, objeto de uma socialização da inteligência que possa modificar-lhe profundamente o mecanismo.

É nos níveis da elaboração desses grupamentos de operações concretas, depois sobretudo lormaís, que se apresenta, por outro lado, em toda a sua acuidade, o problema dos papéis respectivos do intercâmbio social e das estruturas individuais no desenvolvimento do pensamento. A lógica verdadeira, que se constitui durante esses dois períodos, acompanha-se, com efeito, de duas espécies de caracteres sociais; trata-se, precisamente, de determinar se resultam do aparecimento dos grupamentos ou se são a causa deles. Por um lado, à medida que as intuições se articulam e acabam por se grupar operatoriam,@@nte, a criança se torna cada vez mais apta à cooperação, relação social distinta da constrição naquilo que pressupõe uma reciprocidade entre indivíduos que saibam diferençar seus pontos de vista. Na ordem da inteligência, a cooperação é assim a discussão travada objetivamente (donde essa discussão interiorizada que é a deliberação ou reflexão), a colaboração no trabalho, a troca de idéias, o controle mútuo (fonte da necessidade de verificação e de demonstração), ete. @, portanto, claro que a cooperação está no ponto de partida de uma série de condutas importantes para a constituição e o desenvolvimento da lógica. Por outro lado, a própria lógica não consiste, unicamente, do ponto de vista psicológico, que é o nosso, de um sistema de operações livres: ela se traduz por um conjunto de estados de consciência, de sentimentos intelectuais e de condutas, todos caracterizados por certas obrigações às quais é difícil negar um caráter social, seja ele primitivo ou derivado. Vista sob esse ângulo, a lógica comporta regras ou normas comuns: é a moral do pensamento, imposta e sancionada pelos outros. Assim é que a obrigação de não se contradizer não é simplesmente uma necessidade condicional (um “imperativo hipotético,,), para quem queira curvar-se às exigências das regras do jogo operatório: ela é também um imperativo moral (”categórico”), na medida em que exigida pelo intercâmbio in-

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telectual e pela cooperação. E, efetivamente, é primeiro para com os outros que a criança procura evitar a contradição. Assim como a objetividade, a necessidade de comprovação, a necessidade de conservar seu sentido das palavras e das idéias, etc. são outras tantas obrigações sociais como condições do pensamento operatório.

Uma questão se apresenta, então, necessariamente: será o “grupamento” causa ou efeito da cooperação? 0 grupamento é uma coordenação de operações, logo, de ações acessíveis ao indivíduo. A cooperação é uma coordenação de pontos de vista ou de ações que emanam, respectivamente, de diferentes indivíduos. Seu parentesco é, pois, evidente, mas será esse desenvolvimento operatório interior ao indivíduo que o toma suscetível de cooperar com oqtros, ou é a cooperação exterior, depois interiorízada nele, que o obriga a grupar suas ações em sistemas operatórios?

“Grupamentos” operatórios e cooperação

Impõem-se, sem dúvida, duas respostas distintas e complementares a essa questão. Urna é que, sem intercâmbio de pensamento e sem cooperação com os outros, o indivíduo não chegaria a grupar suas operações num todo coerente: nesse sentido, o grupamento operatório pressupõe, portanto, a vida social. Mas, por outro lado, os próprios intercâmbios de pensamento obedecem a uma lei de equilíbrio, a qual, por sua vez não poderia ser senão um grupamento operatório, visto que cooperar é também coordenar operações. 0 grupamento é, pois, uma form ade equilíbrio de ações interindividuais como de ações individuais, e ele encontra, assim, sua autonomia no próprio seio da vida social.

Com efeito, é muito difícil compreender como o indivíduo conseguiria grupar de maneira precisa suas operações e, por conseguinte, transformar suas representações intuitivas em operações transitivas, reversíveis, idênticas e associativas, sem intercâmbio de pensamentos. 0 grupamento consiste, essencialmente, em libertar do ponto de vista egocêntrico as percepções e as intuições espontâneas CIO indivíduo, para elaborar um sistema de relações tais que se possa passar de um termo, ou de uma relação, a outro, seja de que ponto de vista for. 0 grupa-

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mento é, pois, em seu princípio mesmo, uma coordenação dos pontos de vista, e isso significa, de fato, uma coordenação entre observadores, logo uma cooperação de vários indivíduos.

Suponhamos, entretanto, com o senso comum, que um indivíduo superior, ao mudar indefinidamente de pontos de vista, chegue sozinho a coordenar entre si esses pontos de vista de molde a garantir seu grupamento. Mas como um só indivíduo, mesmo dotado de experiência suficientemente vasta, poderia chegar a lembrar-se de seus pontos, de vista anteriores, isto é, do conjunto das relações, que ele percebeu, mas que não mais percebe? Se ele fosse capaz disso, teria conseguido constituir uma espécie de intercâmbio entre seus atos sucessivos e diversos, isto é, proporcionar a si, por convenções continuadas consigo mesmo, um sistema de notações suscetíveis de consolidar as lembranças e de traduzi-las numa linguagem representativa: ele teria, então, realizado uma “sociedade” entre os seus diferentes “eus1 De fato, é precisamente o intercâmbio constante de pensamentos com os outros que nos permite descentrar-nos dessa forma e nos garante a possibilidade de coordenar interiormente as relações que difundem pontos de vista distintos. Não se pode perceber, em particular, como, sem a cooperação, os conceitos poderiam conservar seu sentido permanente e sua definição: a própria reversibilídade do pensamento está, assim, relacionada a uma conservação coletiva, fora da qual o pensamento individual não poderia dispor senão de mobilidade infinitamente mais restrita.

Dito isso, porém, e tendo-se admitido que um pensamento lógico é necessariamente social, é claro também que as leis do grupamento constituem formas de equilíbrio gerais, que exprimem tão bem o equilíbrio dos intercâmbios interindividuais como o das operações de que se torna capaz todo indivíduo socializado quando raciocina interiormente, de acordo com as suas idéias mais pessoais e mais originais. Dizer que o indivíduo só chega à lógica graças à cooperação equivale, pois, a supor, simplesmente, que o equilíbrio de suas operações está subordinado a uma capacidade infinita de intercâmbio com outrem, e portanto a uma reciprocidade total. Mas essa afirmação só pode ser evidente, visto que o grupamento já é, precisamente, em si, um sistema de reciprocidades.

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Mais ainda. Se indagarmos o que vem a ser um intercâmbio de pensamentos entre indivíduos, nós nos aperceberemos de que ele consiste, essencialmente, em um sistema de colocação em correspondência; portanto, em4í grupamentos” bem definidos: a relação determinada, estabelecida do ponto de vista de A corresponde, após o intercâmbio, à relação do ponto de vista de B, e essa operação efetuada por A corresponde à operação efetuada por B (seja ela equivalente ou simplesmente recíproca). Essas correspondências é que determinam, para cada posição enunciada por A ou por B, o acordo (ou, em caso de não-correspondência, o desacordo) dos parceiros, a obrigação em que se encontram de conservar as proposições admitidas e a validade durável dessas depois dos intercâmbios. 0 intercâmbio intelectual entre indivíduos é, pois, comparável a uma imensa partida de xadrez que se jogasse sem parar e de tal modo que cada peça jogada num ponto acarretasse unia série de jogadas equivalentes ou complementares por parte do adversário: as leis do grupamento não são outra coisa senão as diversas reçras que asseguram a reciprocidade dos jogadores e a coerência de seu jogo.

Mais precisamente, cada grupamento interior aos indivíduos é um sistema de operações, e a cooperação constitui o sistema das operações efetuadas em comum, isto é., no sentido próprio das cooperações.

Entretanto, seria incorreto concluir que as leis do grupamento são superiores, ao mesmo tempo, à cooperaç e ao pensamento individual: elas não constituem, repitamos, senão leis de equilíbrio, e traduzem simplesmente essa forma particular de equilíbrio que é atingida, de uma parte, quando a sociedade não mais exerce constrições deformantes sobre o indivíduo, mas anima e entretém o livre jogo de suas atividades mentais, e, de outra parte, quando esse livre jogo do pensamento de cada um não mais deforma o dos outros nem as coisas, mas respeita a reciprocidade entre as diversas atividades. Assim definida, essa forma de equilíbrio não poderia ser considerada nem como resultado apenas do pensamento individual, nem como produto exclusivamente social: a atividade operatória interna e a cooperação exterior, no sentido, mais preciso dos termos, são os dois aspectos complementares de um mesmo e único conjunto, visto que o equilíbrio de um depende do equilíbrio do outro. Além

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do mais, como um equilíbrio real jamais é totalmente atingido na realidade, resta encarar a forma ideal que ele assumiria ao culminar-se, e é esse equilíbrio ideal que a lógica descreve axiomaticamente. 0 lógico opera, pois, no ideal (em contraste com o real) e nele tem o direito de deter-se, visto que o equilibrio de que ele trata jamais é inteiramente acabado, e devido a que é ininterruptamente projetado ainda mais alto, à medida que se efetuam novas construções. Quanto aos sociólogos e aos psicólogos, só podem recorrer uns aos outros quando procuram saber de que forma esse equilíbrio se realiza na realidade.

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CONCLUSÃO

Rit~ Regulações e Grupamentos

No todo, a inteligência aparece como uma estruturação que imprime certas formas aos intercâmbios entre o sujeito ou sujeitos e os objetos do meio ambiente, próximos ou distantes deles. Sua originalidade decorre, essencialmente, da natureza das formas que ela elabora para esse fim.

A própria vida já é “criadora de formas% como disse Brachet.41 Certamente, essas “formas” biológicas são as do organismo, de cada um dos seus órgãos e dos intercâmbios materiais que eles asseguram com o meio ambiente. Mas, com o instinto, as formas anatomo-fisiológicas revestem-se de intercâmbios funcionais, isto é, de “formas” de conduta. Com efeito, o instinto não passa de um prolongamento funcional da estrutura dos órgãos: o bico do picanço prolonga-se em instinto percutor; uma pata escavadora em instinto de escavar, etc. 0 instinto é a lógica dos órgãos, e é a esse título que chega a conduta cuja realização, no plano das operações propriamente ditas, implicaria quase sempre uma inteligência prodigiosa quando mesmo as “formas” podem parecer-lhe, à primeira vista, análogas (como na procura do objeto fora do campo perceptivo ou a distâncias diversas).

0 hábito, a percepção, constituem outras “formas”, como insistiu a teoria da Gestalt, delas extraindo as leis de sua organização. o pensamento intuitivo também apre-

41 E, desse ponto de vista, os esquemas de assimilação que dirigem o desenvolvimento da inteligência são comparáveis aos “organizadores” que ocorrem no desenvolvimento embriológico.

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170 PSICOLOGIA DA INTELIGÊNCIA

senta novas formas delas. Quanto à inteligência op2ratória, ela é caracterizada, como o vimos insistentemente, por essas “formas” móveis e reversíveis que constituem os grupos e os grupamentos.

Se quisermos recolocar nas considerações biológicas de que partimos (Cap. 1) o que aprendemos da análise das operações da inteligência, trata-se, pois, para concluir, de situar as estruturas operatórias no conjunto das “formas” possíveis. Ora, = ato operatório pode parecer de perto, por seu conteúdo, um ato intuitivo, um ato sensório-motor ou perceptivo, e mesmo um ato instintivo: uma figura geométrica pode, assim, ser o produto de uma construção lógica, de =a intuição pré-operatória, de uma percepção, de = hábito automatizado e mesmo de -um instinto construidor. A diferença entre os diversos níveis não se atém a esse conteúdo, isto é, à “forma” decerto modo materializada que é o resultado do ato@42 mas à “forma” do próprio ato e de sua organizaçã o progressiva. No caso da inteligência reflexiva que chegou ao seu equilíbrio, essa forma consiste em certo “ grupamento” de operações. Nos casos escalonados entre a percepção e o pensamento intuitivo, a forma da conduta é a de um ajustamento, mais ou menos lento ou rápido (às vezes quase imediato), mas procedendo sempre por “regulações”. No caso da conduta instintiva ou reflexa, trata-se, enfim, de um equipamento relativamente acabado, rígido, sem solução de continuidade, e que funciona por repetições periódicas ou “ritmos” . A ordem de sucessão das estruturas ou “formas” fundamentais que se aplicam ao desenvolvimento da inteligência seria assim: ritmos, regulações e grupamentos.

As necessidades orgânicas ou instintivas que constituem os móveis das condutas elementares são, com efeito, periódicas e obedecem por isso mesmo a uma estrutura de ritmo: a fome, a sede, o apetite sexual, etc. Quanto aos equipamentos reflexos que permitem sua satisfação e constituem a subestrutura da vida mental, sabe-se bem hoje em dia que eles constituem sistemas de conjunto e--não resultam da adição de reações elementares: a locomoção de um bípede, e sobretudo de um quadrÜpede (cuja

42 Deve-se notar que é justamente sobre essa forma exterior que mais insistiu a “Teoria da Forma”, o que devia levá-la a desprezar em demasia a construção genética.

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organização dá provas, segundo Graham Brown, de um ritmo de conjunto que domina e mesmo precede os reflexos diferenciados), os reflexos tão complexos que garantem a sucção no recém-nascido, etc., e até os movimentos impulsivos que caracterizam o comportamento do lactente, apresentam um funcionamento cuja forma rítmica é evidente. Os comportamentos instintivos do animal, não raro tão especializados, consistem também de ajustamentos bem determinados de movimentos que oferecem a imagem de certo ritmo, visto que se repetem periodicamente a intervalos constantes. 0 ritmo caracteriza, pois, os funcionamentos que estão no ponto de junção da vida orgânica e da vida mental, e isso é tão verdadeiro que, mesmo no domínio das percepções elementares ou sensações, a medida da sensibilidade põe em evidência a existência de ritmos primitivos, que escapam inteiramente à consciência do indivíduo; o ritmo é também a base de todo movimento, inclusive daqueles de que se compõe o hábito motor.

Ora, o ritmo apresenta uma estrutura que vale a pena lembrar, para situar a inteligência no conjunto das “formas” vivas, porque o modo de encadeamento que ele supõe já preludia, de modo elementar, o que virá a ser a própria reversibilidade, característica das operações superiores. Tenham-se em mente os reforços e inibições reflexos particulares, ou, em geral, uma sucessão de movimentos orientados em sentidos alternadamente contrários, o esquema do ritmo exige sempre, de um modo ou de outro, a alternância de dois processos antagônicos que funcionam um na direção A B e o outro na direção inversa B --> A. É certo que, num sistema de regulações perceptivas, intuitivas ou relativas a movimentos coordem nados em função da experiência, existem também processos orientados em sentidos inversos: mas eles se sucedem, então, sem regularidade e em relação com “deslocamentos de equilibrio” provocados por uma situação exterior nova. Os movimentos antagônicos próprios do ritmo são, pelo contrário, regulados pelo equipamento interno (e hereditário), e apresentam, por conseguinte, uma regularidade muito mais rígida e sem solução de continuidade. A diferenç a é ainda maior entre o ritmo e as “operações inversas” próprias da reversibilidade inteligente, que são intencionais e relacionadas a combinações infinitamente móveis do “gruparnento”.

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o ritmo hereditário assegura, assim, certa conservação das condutas que não exclui, de modo algum, sua complexidade nem mesmo uma relativa maleabílidade (exagerou-se a rigidez dos instintos). Mas, na medida em que se detém nos equipamentos inatos, essa conservação üos esquemas periódicos dá provas de uma indiferenciação sistemática entre a assimilação dos objetos à atividade do indivíduo, e a acomodação dessa atívidade à s possíveis modificações da situação exterior.

Com as aquisições em função da experiência, a acomodação se diferencia ‘por outro lado, e, na mesma medida, os ritmos elementares SãO integrados em sistemas mais vastos, que não mais oferecem periodicidade regular. Por outro lado, uma segunda estrutura geral apresenta-se, então, a qual prolonga a periodicidade inicial, e consiste de regulaçõeS43. São elas que encontramos, da percepção às próprias intuições pré-operatórias. Uma percepção, por exeMplG, constitui sempre um sistema de conjunto de relações, e pode assim ser concebida como a forma mGmentânea de equilíbrio de uma multidão de ritmos sensoriais, elementares, reunidos ou interferindo entre si de maneiras diversas. Esse sistema tende a se conservar na medida em que totalidade, enquanto não mudam os dados exteriores; mas, uma vez que esses se modifiquem, a acomodação aos novos dados acarreta um “deslocamento de equilíbrio”. Só que esses deslocamentos não são iiimitadOS, e o equilíbrio que se restabelece em função da assimilação aos esquemas perceptivos anteriores dá provas de uma tendência a atuar em sentido inverso da mo. ,dificação exterior.44 Há, pois, regulação, isto é, intervenção de processos antagônicos comparáveis aos que já se manifestam nos movimentos periódicos, mas o fenômeno se produz, então, em escala superior, muito mais complexa e mais ampla, e sem periodicidade necessária.

Essa estrutura caracterizada pela existência das regulações não é específica da percepção. É aquela que encontramos nas “correlações” próprias às aquisições motoras. De um modo geral, todo o desenvolvimento sensório-mo-

43 Referimo-nos aqui a regulações estruturais, evidentemente, e não a regulações energéticas, que caracterizam, segundo P. Janet e outros, a vida afetiva dos mesmos níveis.44 Tenha-se em mente, por exemplo, a ilusão de Deoboeuf, citada t)or nós neste trabalho.

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tor, até os diversos níveis da inteligência sensório-motora, inclusive, apresentam sistemas análogos. Só num caso privilegiado, o dos deslocamentos propriamente ditos, com retornos e desvios, o sistema tende a atingir a reversibilidade e prenuncia, assim, o gruparnento, mas com as restrições que já examinamos. Nos casos gerais, pelo contrário, uma regulação, ao mesmo tempo em que moderando e corrigindo as modificações perturbadoras e que se efetuam, pois, em sentido inverso das transformações anteriores, não atinge a reversibilidade total, por falta de ajustamento completo entre assimilação e acomodação.

No plano do pensamento nascente, em particular, as centrações intuitivas e o egocentrismo próprio das relaçõ es sucessivamene construídas mantêm o pensamento no estado ireversível, como vimos (Cap. 5) a propósito das não-conservações. As transformações intuitivas só são “compensadas”, portanto, por um jogo de regulaçõ es, harmonizando aos poucos a assimilação e a acomodação mentais, e assegurando por elas mesmas a regulagem do pensamento não-operatõrio, durante os tateios interiores da representação.

Ora, é fácil ver que essas regulações, cujos diversos tipos se escalonam, assim, a partir das percepções e hábitos elementares até o limiar das operações, procedem de “ritmos” iniciais de modo bastante contínuo. Convém, primeiramente, lembrar que as aquisições iniciais, sucedendo imediatamente o exercício dos equipamentos hereditários, apresentam ainda uma forma de ritmo: as “reações circulares”, que estão no ponto de partida dos hábitos adquiridos de maneira dinâmica, consistem de repetições com periodicidade bem visível. As medidas perceptivas referentes a dimensões ou formas complexas (e não apenas à sensibilidade absoluta) mostram ainda a existência de oscilações contínuas em torno de um ponto de equilíbrio dado. Por outro lado, pode-se supor que componentes análogos àqueles que determinam as fases alternativas e antagônicas próprias do ritmo (A -> B e B --> A) acham-se num sistema de conjunto suscetível de regulações, mas se apresentam, então, simultaneamente e em equilíbrio momentâneo uns com os outros, em vez de atuarem alternadamente: eis por que, quando esse equilíbrio se altera, há “deslocamento, de equilibrio” e aparecimento de uma tendência a resistir às modificações exteriores, isto é, a “moderar” a transformação sofrida (como se diz em físi-

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ca, no caso do conhecido mecanismo descrito por Le Chãtelier). Pode-se, pois, conceber que, quando os componentes da ação constituem sistemas estáticos de conjunto, os movimentos orientados em sentido inverso uns em relação aos outros (e cuja altemância ensejava as fases distintas e sucesivas do ritmo) sincronizam-se e representam os elementos do equilíbrio do sistema. Em caso de modificações exteriores, o equilíbrio se desloca por acentuação de uma das tendências em jogo, mas essa acetnuação é cedo ou tarde limitada pela intervenção da tendência contrária: essa inversão de sentido é que define, então, a regulação.

Compreende-se agora a natureza da reversibilidade pr& pria da inteligência operatória, e a maneira pela qual as operações inversas do grupamento procedem das regulações, não apenas intuitivas, mas ainda sensório-motoras e perceptivas. Os ritmos reflexos não são reversíveis em seu aspecto de conjunto, mas orientados segundo um sentido definido: executar um movimento (ou um complexo de movimentos), cessá-lo e voltar ao ponto de partida para repeti-lo no mesmo sentido, tais são as suas fases sucessivas, e, se a fase de retomo (ou antagônica) inverter os movimentos iniciais, não se trata, no caso, de uma segunda ação tendo o mesmo valor que a fase positiva, mas de uma retomada que determina um recomeço orientado na mesma direção. Contudo, a fase antagonica do ritmo está no ponto de partida da regulação e, além dessa última, das d4operações inversas” da inteligência, e já se pode conceber todo ritmo como um sistema de regulações alternativas e reunidas numa totalidade específica de sucessão. Quanto à regulação, que constituiria assim o produto de um ritmo de conjunto cujos componentes se teriam tornado simultâneos, ela caracteriza condutas ainda irreversíveis, mas cuja reversibilidade progrediu em relação às precedentes. Já no plano perceptivo, a inversão de uma ilusão pressupõe que uma relação (por exemplo, de semelhança) sobrepuje a relação inversa (diferença) a partir de certa exageração desta última, e reciprocamente. No domínio do pensamento intuitivo, a coisa é ainda mais clara: a rel."ção desprezada pela centração da atenção, quando esta se liga a outra relação, domina por sua vez esta última qmndo o erro ultrapassa certos limites. A descentração, fonte de regulação, chega nesse caso a um equivalente intuitivo das operações inversas, em particular quando as antecipações e reconstítUições representativas lhe aumentam o tamanho

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0 DEsENVOLV=NTO DO PENSAMENTO 175

e a tornam quase instantânea, o que se produz cada vez mais no nível das “intuições articuladas” (Cap. 5). Bastará, pois, que a regulação atinja a compensações completas (a que tendem precisamente as intuições articuladas) para que a operação apareça por isso mesmo: as operações não passam, com efeito, de um sistema de transformações coordenadas e que se tornaram reversíveis sejam quais forem suas combinações.

É, pois, no sentido mais concreto e mais preciso que se pode conceber os grupamentos operatórios da inteligência como a “forma” de equilíbrio final a que tendem as funções sensório-motoras e representativas no curso de seu desenvolvimento, e essa concepção permite compreender a profunda unidade funcional da evolução mental, ao mesmo tempo assinalando as diferenças de natureza que distinguem as estruturas próprias das etapas sucessivas. Tão logo atingida a reversibilidade completa, limite de um processo contínuo, mas limite com propriedades bem diferentes em relação às fases anteriores, visto que assinala a chegada ao próprio equilíbrio, os agregados, até então rígidos, tornam-se, com efeito, suscetíveis de uma mobilidade de composição que assegura precisamente sua estabilidade, porque a acomodação à experiência acha-se aí em equilíbrio permanente, sejam quais forem as operações efetuadas, com a assimilação promovida, por isso mesmo, à categoria de dedução necessária.

Ritmos, regulações e lIgrupamento” constituem, desse modo, as três fases do mecanismo evolutivo que liga a inteligência ao poder morfogenético da própria vida, permitindo-lhe realizar as adaptações, ao mesmo tempo ilimitadas e equilibradas entre si, impossíveis de realizar no

plano orgânico.

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COMPOSTO E IMPRESSO POR TAVARES & TRISTÃO - GRAFICA E EDITORA DE LIVROS LTDA., À RUA 20 DE ABRIL,28, SALA 1.108, RIO DE JA-

NEIRO, R.J., PARA

ZAHAR EDITORES

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(Continuação da 1.1 aba)

relações abstratas, é no contexto socíológic que a inteligência irá adquirir sua máxima potencialidade.

Neste livro, PIAGET volta, como CLAPARÈDE, a valorizar a af etividade,’ aspecto despreza@ em outras obras, reconhecendo o seu

papel na determinação de um objetivo pari a conduta, distintamente da inteligência, que é encarada como fornecendo apenas meios (a técnica) para atingi-lo. A dialétic@ de fins e meios leva necessariamente a uma escala de valores. Contudo, mesmo nesse campo sutil, o mestre suíço não perde em especulações estéreis e se mantém estritamente nos limites da metodologia científica, amparando todas as suas asserti com demonstração e prova.

Outras obras do autor nesta mesma coleção

* Construção do Real na Criança (2.a ed* Desenvolvimento das Quantidades Fí,

na Criança (2.<’ ed.)* Equilibração das Estruturas Cognitiva* Formação do Símbolo na Criança (2.a Gênese das Estruturas Lógicas Elementan

com B. Inhelder (2.11 ed.) * Gênese do Número na Criança/ coi A. Szeininska (2.11 ed.) * Nascimento da Inteligência na Criançi2.a ed.)

ZAHAR EDITORES a cultura a çerviço do progressO M

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