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Universidade Federal Fluminense Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Curso de História Disciplina: Seminário de Historiografia Brasileira Professor: Renato Franco A “PRÉ-HISTÓRIA” DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA: O PROBLEMA DA CONSTRUÇÃO DE UMA NAÇÃO Apresentado por: DOUGLAS COUTINHO DIAS Niterói 28/08/22

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Page 1: Trabalho Seminário de Hist. Bras. 2

Universidade Federal FluminenseInstituto de Ciências Humanas e FilosofiaCurso de HistóriaDisciplina: Seminário de Historiografia BrasileiraProfessor: Renato Franco

A “PRÉ-HISTÓRIA” DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA: O PROBLEMA DA CONSTRUÇÃO DE UMA NAÇÃO

Apresentado por:

DOUGLAS COUTINHO DIAS

Niterói 二〇二三 * 四五五 R 五 F 四五四二十二 T

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INTRODUÇÃO

Neste presente trabalho, buscarei apresentar as principais tendências de

nossa produção historiográfica do século XIX, com enfoque particular no problema

da construção de uma identidade nacional, a partir da criação do IHGB (Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro) em 1838. Atento para o uso do termo “pré-história”

da historiografia, que utilizei em meu título. Trata-se de uma referência à famosa

análise de José Jóbson de Arruda e José Manuel Tengarrinha, em Historiografia

luso-brasileira contemporânea. A periodização estabelecida pelos autores faria

menção à tudo que fôra produzido entre os anos de 1838 e 1930. A primeira data

demarcando a criação do Instituto, e a segunda a criação das primeiras

universidades no Brasil, contexto que impulsionou o surgimento dos primeiros

pesquisadores e historiadores “de saber específico”, formados em tais instituições. O

meu uso do termo, no entanto, segue orientação um tanto quanto distinta.

Primeiramente serve para estabelecer, assim como Arruda e Tengarrinha, a

diferenciação da escrita de nossa História a partir da data célebre de 1838. Com a

criação do IHGB, a História não só passa a ser escrita com uma problemática a ser

resolvida (a “formação da Nação”), como também assume um caráter coletivo,

possuindo agora um lugar social, estabelecido pela existência de uma instituição

responsável por contá-la. Perde a predominância da perspectiva individual, óbvia

tônica dos relatos de viagem, para adquirir um estatuto de disciplina, pautando-se

em uma inspiração iluminista e uma pretensão cientificista (melhor observada em

Varnhagen). Preferi, no entanto, delimitar o período um pouco mais, por entender

que as expressões que demarcam o contexto de busca pela afirmação do Estado

Nacional merecem exame mais destacado.

Para tanto, busco realizar uma breve definição sobre o conceito histórico de

“nação”, no afã de melhor definir a circunscrição dos trabalhos analisados em nossa

temática central. Em seguida, utilizando-me da bibliografia sugerida pelo curso, farei

a análise das obras de dois autores que talvez sejam os melhores representantes do

contexto em pauta: Carlos Frederico Von Martius e Francisco Adolfo Varnhagen.

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DO CONCEITO DE NAÇÃO

Falar sobre que seria a definição de nação é tarefa tão imperiosa quão

complicada. O que é uma nação? Que elementos compõem uma nacionalidade?

Todos os países se constituem em nações? Existe nação sem Estado? “Nação”,

“nacionalidade”, “nacionalismo”, “questão nacional” são indiscutivelmente fenômenos

políticos que estão entre os mais complexos de serem analisados.1 Em seu clássico

livro sobre as origens do sentimento nacional, o historiador Benedict Anderson dá

esta definição para o termo “nação”: “uma comunidade política imaginada – e

imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana.”2

Seria, em suma, uma representação, construída pelos agentes históricos. Cabe

frisar outro grande contributo do autor à questão quando afirma que na América tal

conceito desenvolveu-se antes do que na maior parte da Europa. Se as nações são

comunidades imaginadas, podemos concluir que a manutenção de sua legitimidade

depende da forma como essa imaginação é construída. A coesão de uma nação

depende da forma como os membros dessa comunidade imaginada mantêm-se

juntos por um sentimento em comum de pertencimento ao mesmo espaço

imaginário.3

O sentimento nacional seria então uma espécie de identidade coletiva,

sensação de pertencimento. Identidade esta que, historicamente, foi organizada em

torno da instituição dos Estados nacionais, especialmente a partir do século XIX.

Talvez seja interessante falar também de Eric Hobsbawm, considerado por muitos o

maior historiador do século XX. Em seu Nações e nacionalismo desde 1780:

programa, mito e realidade, o autor britânico recusa qualquer conceituação de nação

feita a priori. Trabalha, outrossim, com a mutabilidade do conceito ao longo dos

processos históricos específicos, buscando estudá-los a partir dos significados

atribuídos pelos sujeitos ao longo do tempo, e a partir de suas classes sociais.

E é o próprio Hobsbawm quem demonstra a validade de tal proposta,

identificando um primeiro momento de construção de identidades nacionais na

1 SCHEIDT, Eduardo. “Debates historiográficos acerca de representações de naçãona Região Platina”. Revista Eletrônica da Anphlac, número 5.2 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Cia das Letras, 2008. p. 323 FILHO, João Carlos Escosteguy e SALLES, Ricardo. “Aula 2: A formação de uma consciência histórica e historiográfica noBrasil I (1808-1838).” In: História da historiografia brasileira v. 1. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2013

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chamada Era das Revoluções, a partir dos fins do século XVIII e início do XIX. Sem

divagar demais, relembro que o período revolucionário estudado pela famosa obra

traz impactos sensíveis e fatais ao nosso interesse. As consequências das

revoluções francesa e industrial, mas também da americana e – por quê não? –

haitiana, são sentidas quando estudamos o significado da palavra “nação”.

Anteriormente utilizada para designar, principalmente, grupos étnicos de origem

(“nação indígena”, por exemplo) ou reinos (a “nação portuguesa”), perde seu sentido

de mero domínio dinástico. Foi de fundamental importância, para essas

transformações, a Revolução Francesa, especialmente na associação que faz entre

“nação” e “povo”. Nas palavras de Eric Hobsbawm,

Na era das revoluções, fazia parte ou cedo se tornaria parte do conceito de nação que esta deveria ser “uma eindivisa” (...). Assim considerada, a “nação” era o corpo decidadãos cuja soberania coletiva constituía-os como um Estadoconcebido como sua expressão política. Pois, fosse o quefosse a nação, ela sempre incluiria o elemento da cidadaniae da escolha ou participação de massa (HOBSBAWM, 2004,p. 31).

As transformações advindas das diversas revoluções adicionam agora um

incômodo sujeito a ser considerado. O corpo dos cidadãos, o conhecido “povão”,

agora tem voz, e não pode ser mais deixado de lado. A “nação”, de entidade

inseparável do “reino”, sob domínio do monarca e de sua dinastia relacionada, passa

a significar o conjunto de cidadãos da mesma civitas, ou República, unidas por laços

comuns (“imaginados”, como definiu Benedict Anderson) e tendo no Estado

(compreendido agora como “nacional” e não mais “dinástico”, ou simplesmente

“monárquico”) sua expressão concreta.4

Pois bem. Como realizar tal incorporação identitária? De que maneira unir

sujeitos de origens, motivações e interesses às vezes tão distintos em um mesmo

“pertencer”? Uma das principais ferramentas de elaboração dessas identidades

coletivas em torno dos Estados nacionais foi a escrita de uma história nacional. A

História foi poderosa arma de construção de um passado comum, servindo de elo

entre os habitantes pela sensação de pertencimento a uma mesma origem – o que

acabava por diluir os conflitos internos e de classe. Em resumo, as grandes

narrativas históricas nacionais foram fundamentais para a formação das

consciências nacionais, seja na Europa, seja na América. Ganha força no âmbito da

4 Idem. Ibidem

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produção historiográfica a história política, “contra” a qual se insurgirá mais tarde o

movimento dos Annales. A valorização do nacional, a história dos grandes feitos e

dos grandes heróis.

A construção da identidade nacional é preocupação fundamental dos

dirigentes dos novos países americanos, inclusive no Brasil. Para a construção de

tal identidade, no caso do império brasileiro, a busca pela elaboração de uma

consciência historiográfica própria será de grande importância. Para citar Manoel

Luiz Salgado Guimarães,

Assim, é no bojo do processo de consolidação do Estado Nacional que se viabiliza um projeto de pensar a história brasileira de forma sistematizada. A criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) vem apontar em direção à materialização deste empreendimento, que mantém profundas relações com a proposta ideológica em curso. Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a "Nação brasileira", capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto mais amplo das " Nações", de acordo com os novos princípios organizadores da vida social do século XIX. (GUIMARÃES, 1988, p.6)

DO CONTEXTO HISTÓRICO À CRIAÇÃO DO IHGB

José Bonifácio talvez seja aquele que melhor exemplificou as dificuldades da

criação do Estado Nacional brasileiro. O novo país teria sua própria história, que

seria uma regeneração (portanto livre dos vícios que corrompiam a portuguesa).

Seria um espaço da novidade, mas não do rompimento total ou imprevisível que a

ideia de revolução dava. Seria um “rompimento moderado”, uma chance de

recomeçar do zero e restaurar a civilização perdida.5 Como realizar tal contenda, no

entanto, sem extirpar as heranças escravistas? É dele a frase “como poderá haver

uma constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma

multidão imensa de escravos brutais e inimigos?”. Preocupava Bonifácio os limites

que a herança escravista impunha à definição de uma verdadeira identidade

nacional e, por isso, o povo brasileiro seria incapaz de formar “liga sólida”.

"...amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo. como brancos,

mulatos, pretos livres e escravos, índios etc. etc. etc., em um corpo sólido e político".

(GUIMARÃES, 1988, p. 6)

5 Idem. Ibidem

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Isso tudo sem mencionar os problemas políticos internos, concernentes às

questão de centralização ou não do poder. A Insurreição Pernambucana já

prenunciara em 1817 os desafios na construção de um Estado coeso e unificado sob

a tutela do poder central do imperador. Quando D. Pedro I renuncia ao poder, em

1831, a questão da construção identitária se torna bastante mais evidente. Em meio

ao conturbado período regencial, marcado por diversas revoltas de cunho

separatista, é fundado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838.

A criação do IHGB relaciona-se a um conjunto de propostas (as quais

incluíam, ainda, a fundação do Colégio Pedro II e a do Arquivo Público, por exemplo)

em busca de instituições que servissem, simultaneamente, à tarefa de consolidar

uma tradição histórica no Império e a formar um consenso ao redor do projeto de

Império que era elaborado nas fileiras regressistas. Atende, assim, também à tarefa

de formar uma classe de cidadãos respeitáveis, uma elite dirigente capaz de assumir

os rumos do Estado sob a forma monárquico-constitucional, esvaziando alternativas

republicanas que pudessem ameaçar a ordem imperial.6 O IHGB deveria cumprir

igualmente funções de arquivo, produtor do conhecimento histórico, organizador

historiográfico das produções das diversas regiões do Brasil (as quais, no projeto do

IHGB, deveriam orbitar a Corte), elo entre a produção brasileira e a internacional

(notadamente a europeia e, em seu interior a francesa, fontes de civilização) e, por

fim, de divulgador desse conhecimento historiográfico, especialmente a partir da

publicação da revista.

E como bem demonstra Guimarães, um estudo dos 27 membros do estudo

permite a tecitura de algumas considerações. Tratava-se de grupo homogêneo,

marcado em grande parte por antigos partidários de Pedro I. Caracterizava o grupo

uma aproximação à figura do menino Pedro, aliada à crença na fulcralidade da figura

do monarca enquanto centralizadora política. Essa direção gerou resultados: a partir

de 1839, o Instituto ficou sob “imediata proteção” de Sua Majestade. Não à toa,

membros do IHGB marcaram presença nos dois primeiros gabinetes ministeriais

após a maioridade. Pedro II tornar-se-ia, ainda, assíduo frequentador das reuniões

do Instituto, especialmente nas sessões públicas de aniversário ou comemorativas.7

As principais obras historiográficas da segunda metade do século XIX

sairiam ligadas ao IHGB e, também por isso, acabariam consideradas como os

6 Idem. Ibidem7 Idem. Ibidem

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“primeiros estudos históricos” sobre o Brasil. Quais seriam as características

principais de tal produção na busca da identidade nacional?

Primeiramente, a tentativa de inserção do Brasil na matriz civilizatória

europeia, como já comentado. E Manoel Guimarães é certeiro ao estabelecer que tal

inserção vem acompanhada de um tratamento excludente do “Outro”, como sóis

acontecer em quase todos os nacionalismos no globo. Internamente, subordinam-se

os elementos indígena e negro (africano em especial), ao português, ao contrário

das pretensões do Romantismo à época, que defendia o indígena como “modelo” de

brasileiro. Externamente, a associação entre Império, nação e civilização,

fundamental no caso brasileiro, apontará os adversários, aqueles que ameaçam com

a barbárie e a fragmentação: as repúblicas latino-americanas.8 Em suma, a proposta

inicial do IHGB consiste nessa defesa de uma determinada matriz civilizatória de

base europeia como suporte para a identidade nacional brasileira a ser construída.

Essa matriz é exposta, tanto na influência do Instituto Histórico de Paris, na

concepção do IHGB, quanto na integração entre o Instituto e o Estado imperial, que

logo se torna sua principal fonte de financiamento.

Consciente da importância da escrita de uma História nacional para a

consolidação da nova nação e do Estado imperial, o IHGB abre, em 1840, um

concurso com o objetivo de premiar o melhor trabalho acerca do modo de se

escrever a História do Brasil. O trabalho vencedor, de autoria de Carl von Martius,

pesquisador alemão, delimitaria alguns padrões a serem seguidos pelos

historiadores ligados ao Instituto nos anos seguintes.

DE COMO SE DEVE ESCREVER A HISTÓRIA DO BRASIL

Carl Friedrich Phillip Von Martius foi um botânico alemão que veio ao Brasil

em 1817 em expedição científica, e acabou se tornando um dos principais nomes de

nossa historiografia, ao escrever a vencedora dissertação Como se deve escrever a

história do Brasil, premiada pelo concurso promovida pelo IHGB. Segundo Martius,

“qualquer um que se encarregar de escrever a História do Brasil, paiz que tanto

promette, jamais deverá perder de vista quaes os elementos que ahi concorrerão

8 GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Estudos Históricos. n. 1, 1988. p. 7

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para o desenvolvimento do homem”9 Que elementos seriam esses, pergunta agora o

leitor. Eis aí a maior contribuição de Martius à formação de nossa identidade: o

conceito das três raças, que convergiram de modo particular para a constituição do

que hoje chamamos Brasil. Foi a mistura dessas “três raças” que fundou o tipo

brasileiro, caminho sem igual na história da humanidade.

Martius aponta que, nessa mistura, o branco foi o elemento fundamental. Foi

o elemento português que “deu as condições e garantias moraes e physicas para

um reino independente”, e por isso se apresentava o português como “o mais

poderoso e essencial motor” do desenvolvimento humano brasileiro. Foi em relação

a essa “raça predominante” que reagiram os indígenas e os negros, cuja

participação no “desenvolvimento histórico do povo brasileiro”, contudo, não pode

ser menoscabada, se o desejo é produzir-se uma “historiographia philosophica do

Brasil”. Ninguém poderia duvidar que tal mescla fora produto da “vontade da

providência” e que, nesse processo, o “sangue portuguez, em um poderoso rio,

deverá absorver os pequenos confluentes das raças Índia e Ethiopica”.10

Muito embora o autor declare a primazia da raça branca, é por demais

fascinante perceber a ousadia em atribuir à origem do brasileiro a participação de

uma raça escravizada e tida como inferior pela “ciência” da época, quando não um

braço não-humano da evolução. Não há aqui a degeneração que não daria liga,

como temerosamente prenunciou Bonifácio. O português é o motor dessa mistura,

logo, o resultado firme está garantido.

Dos índios, aponta a necessidade de pesquisas que possam buscar, no

passado remoto, os traços de civilizações perdidas. Para Martius, os indígenas

contemporâneos seriam resquícios de um povo em “estado florescente de

civilização, [que] decahiu para o actual estado de degradação e dissolução”.11

Martius achava que logo poderiam ser descobertos monumentos dessa “civilisação

superior”, que seriam semelhantes às dos demais países americanos.

Quanto aos portugueses, são para Martius guerreiros cujo espírito afastou

riscos de sucesso nas invasões holandesa e francesa, aventureiros que

empreenderam a colonização do Brasil a partir da ação de “príncipes, nobres e

povo”.12 Aponta Martius a relação direta entre colonização do Brasil e espírito 9 MARTIUS, Carlos Frederico Von. Como se deve escrever a História do Brasil (1843). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. n. 24, janeiro de 1845. p. 6310 Idem. Ibidem. p. 64-6511 Idem. Ibidem. p. 6912 Idem. Ibidem. p. 73

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português, pois “o período da descoberta e colonisação primitiva do Brasil não pode

ser comprehendido senão em seu nexo com as façanhas marítimas, commerciaes e

guerreiras dos portuguezes”.13 Destaca a ação das ordens religiosas e seu contato

com os indígenas, atitude que levantou informações importantes para a busca pela

história passada daqueles povos. Afirma que a ação dessas ordens era, muitas

vezes, “os únicos motores de civilização e instrucção para um povo inquieto e

turbulento”.14 Para Martius, a tarefa do historiador pragmático seria mostrar “como

ahi se estabeleceram e desenvolveram as sciencias e artes como o reflexo da vida

europea”.15 Percebe-se aqui claramente o elogio declarado à colonização

portuguesa, traço marcante da produção de História Conservadora, para citar Lúcia

Bastos das Neves16, que deu a tônica da lógica do IHGB.

Por fim, a “raça africana” ganha em Martius um espaço à parte, como as

duas anteriores. Diz o autor que não há dúvida de que sem os africanos o

desenvolvimento histórico do Brasil seria muito diferente. Caberia ao historiador

ponderar acerca das influências africanas no “desenvolvimento civil, moral e político

da presente população”, a fim de concluir se tais influências seriam positivas ou

negativas.

Em Martius, o tráfico e as relações portuguesas na África ganham destaque

para a compreensão da formação histórica do povo brasileiro. Lamenta Martius a

escassez de documentação a respeito dessas relações, tratadas em parte maior

pelos ingleses e sem grande amplitude, a seu ver. Este ainda seria assunto a ser

estudado pelas gerações futuras, aponta o autor, a fim de se alcançar um

entendimento maior acerca do Império.17

No parecer final do Instituto, tratava-se de uma obra “onde todas as

exigências da história se acham satisfeitas”. Martius desenhou as linhas gerais que

serviriam de referência para a historiografia brasileira sob a égide do IHGB, porém,

apesar de haver proposto o programa, não foi o autor da primeira História do Brasil.

A conclusão de tão penosa tarefa ficaria para outro intelectual, que, contudo, não

13 Idem. Ibidem. p. 7414 Idem. Ibidem. p. 7715 FILHO, João Carlos Escosteguy e SALLES, Ricardo. “Aula 3: A formação de uma consciência histórica e historiográfica noBrasil II (1808-1838).” In: História da historiografia brasileira v. 1. Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 201316 NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das et al. (org.). Estudos de historiografia brasileira. Rio de Janeiro, 2011.17 FILHO, João Carlos Escosteguy e SALLES, Ricardo. Idem. Ibidem

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agiria seguindo à risca as recomendações presentes na dissertação de Martius.

Esse intelectual foi Varnhagen.

DA HISTÓRIA GERAL DO BRASIL

Francisco Adolfo de Varnhagen, paulista de nascimento, passou boa parte

de sua infância em Portugal, para onde seu pai foi transferido em 1822, a fim de

prestar serviços à Coroa portuguesa, e para onde Varnhagen transferiu-se junto à

mãe, em 1823. Dedicou-se à pesquisa histórica, publicando seu primeiro trabalho,

Notícias do Brasil, em 1838, obra que recebeu o reconhecimento da Academia Real

de Ciências de Lisboa e serviu-lhe para ser admitido junto àqueles intelectuais.

Retornou ao Brasil, em 1840, aos 24 anos, pleiteando a nacionalidade brasileira ao

governo imperial (obtendo êxito em 1844) e sendo indicado para integrar, como

sócio correspondente, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Varnhagen chegou ao IHGB num momento em que o Instituto começava a

preocupar-se em enviar estudiosos aos arquivos europeus em busca de

documentação sobre a história do Brasil. Tendo já feito pesquisa por conta própria

no acervo da Torre do Tombo, em Portugal, e desejoso de ingressar na carreira

diplomática, Varnhagen cairia como uma luva nas intenções do Instituto.18

Em pouco tempo ganhou notoriedade dentro do Instituto, tornando-se

primeiro-secretário em 1851, e conquistando assim contato direto com o imperador.

Tornou-se diplomata e viajou por diversos países da Europa em missão de exame

de manuscritos e pesquisas realizadas pelo Instituto. Varnhagen deixou como

herança intelectual, ao longo de sua carreira, diversas obras, entre livros, artigos,

memórias etc. A mais famosa delas foi a História Geral do Brazil (HGB), dividida em

dois volumes, cujo primeiro foi publicado em Madri, em 1854.

Podemos começar a análise da concepção histórica presente em Varnhagen

a partir da conclusão a que chega o historiador ao final de sua obra. Para

Varnhagen, a monarquia é a única forma capaz de levar o Brasil a fazer parte do

conjunto da civilização europeia. A associação entre monarquia e civilização em

Varnhagen não é gratuita. Como vimos, tal ligação já estava presente nos primeiros

18 Idem. Ibidem

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passos dados pelo IHGB, desde sua criação. Resta entendermos por que tal relação

fazia-se tão necessária naqueles tempos.

A conjuntura entre 1838, ano de fundação do IHGB, e 1854, quando

Varnhagen lança o primeiro volume de sua História Geral, é marcada por aquilo que

ficou conhecido na historiografia como “regresso conservador”. Foi um momento de

viragem na história do Império, quando os conflitos da Regência levaram o avanço

liberal pós-abdicação do primeiro imperador a arrefecerem, dando lugar a uma

ideologia que, cada vez mais, buscava tornar-se hegemônica no país.19 Em outras

palavras, a conjuntura entre 1838 e 1854 foi aquela em que o ethos senhorial-

escravista da classe senhorial foi organizado, principalmente pelos regressistas,

como projeto que contemplava, como necessidades da nação, a escravidão, o café,

a monarquia, a centralização política, o monopólio da leitura da Constituição e das

leis etc. Foi, em suma, uma época em que os dirigentes regressistas buscavam sair

vitoriosos do calor de disputas políticas da Regência, a partir de um processo de

“convencimento” da sociedade por meio de uma determinada direção moral e

intelectual. A vitória conservadora não poderia obter sucesso apenas pela força das

armas ou pela repressão a propostas alternativas (ou seja, pela coerção). Seria

preciso alcançar um consenso por meio de uma vitória na batalha de concepções de

mundo – e foi aqui que Varnhagen (tal como o IHGB) teve um papel crucial.

A concepção de mundo de Varnhagen defendia a monarquia brasileira (isto

é, a casa de Bragança) como herança da monarquia portuguesa – e, portanto,

encarava a História do Brasil como produto da vitória da matriz portuguesa de

colonização e civilização. Tal herança era o elo a manter o Brasil no conjunto da

civilização europeia, e tal modo de interpretar a História nacional levaria Varnhagen

a descaracterizar as heranças indígena e africana, para ficarmos nas outras duas,

apontadas por Martius, como positivas.20

A natureza selvagem, a fauna, do país à época do descobrimento constitui

para Varnhagen um ambiente hostil e decididamente avesso ao exercício da

civilização. A conquista dessa natureza selvagem foi, aliás, ponto alto para o elogio

de Varnhagen à bravura dos portugueses. A consagração da percepção de uma

natureza exuberante, porém amedrontadora. Era esse ambiente hostil, inclusive, que

impedia o desenvolvimento de sentimentos amistosos nos índios. O

19 Idem. Ibidem20 Idem. Ibidem

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desenvolvimento na nacionalidade brasileira deve-se então, não ao indígena, mas

ao colonizador português. A recusa em considerar o índio como um “brasileiro

primitivo” levou Varnhagen a entrar em choque com concepções indigenistas que

começavam a ganhar força tanto no Romantismo (com Gonçalves Dias e José de

Alencar) quanto no próprio IHGB.

Sobre os africanos, Varnhagen é ainda menos amistoso: se ainda conseguia

ver nos índios vestígios de “civilizações anteriores”, de forma semelhante à

concepção de Martius, em relação aos africanos restava o lamento por tamanho mal

causado ao Brasil pelos traficantes de escravos, “entulhando suas cidades do litoral

e engenhos de escravaria”.21 Foi, para Varnhagen, um erro a introdução desses

cativos e a culpa recairia sobre os jesuítas, críticos que eram da escravização dos

índios. Varnhagen fez uma “das mais antigas (senão a primeira) manifestações a

favor da tese do branqueamento”22, afirmando que poderia chegar

um dia em que as cores de tal modo se combinem que venhama desaparecer totalmente no nosso povo as característicasda origem africana e, por conseguinte, a accusação daprocedência de uma geração, cujos troncos no Brazil vieramconduzidos em ferros do continente fronteiro e soffreram osgrilhões da escravidão, embora talvez com mais suavidadedo que nenhum paiz da America, começando pelos EstadosUnidos do Norte, onde o anathema acompanha não só acondição e a cor, como a todas as suas gradações; sendoneste ponto, como em muitos outros, a nossa monarchiamais tolerante e livre que essa arrogante república, que tantoblasona de suas instituições libérrimas, e cujo aristocráticocidadão não admitte a seu lado, nas reuniões políticas, nemnas civis e sociaes, o pardo mais claro, por maiores quesejam seus talentos e virtudes (VARNHAGEN, 1854, p. 183)

A citação deixa clara não apenas a posição de Varnhagen em relação à

escravidão (surge como desumana) e ao futuro do Brasil (ao esperar que a herança

dessa escravidão desapareça da sociedade brasileira). Deixa clara, também, mais

uma vez, a postura do autor em relação à monarquia brasileira, nitidamente, em

suas convicções, superior às alternativas republicanas da América. Nota-se a defesa

do predomínio português na herança deixada no sentimento nacional brasileiro.23

21 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 9ª edição ampliada.Rio de Janeiro: editora FGV, 2007. p. 4222 WEHLING, Arno. Estado, História, memória: Varnhagen e a construção da identidadenacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 16623 FILHO, João Carlos Escosteguy e SALLES, Ricardo. Idem. Ibidem

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Mas as contribuições de Varnhagen para a historiografia brasileira não se

limitam a seu papel em relação ao Estado imperial. Varnhagen foi um grande erudito

e não só estava atualizado com o que se fazia na Europa, como foi um dos pioneiros

da pesquisa arquivística e do método crítico que caracterizaram a produção

historiográfica do século XIX, imortalizada pela figura de Leopold von Ranke.

Varnhagen descobriu documentos em suas incursões em arquivos e foi o primeiro

historiador a estudar o século XVIII sistematicamente, a partir de documentos. O uso

de um método de cunho bastante científico evidencia a pretensão de verdade que

perpassa a escrita da história em Varnhagen. Era a história “como realmente

aconteceu”, tão cara a Ranke. A importância dada ao documento não impediu

Varnhagen de acreditar na interpretação do historiador como forma de suprir as

lacunas documentais, ou seja, à falta de documento verdadeiro, o historiador deveria

usar como recurso a sua imaginação.

Assim, o nosso “Heródoto brasileiro” destaca-se de forma flagrante. Juiz

rigoroso das revoltas e rebeliões, pretendia assim construir uma memória

apaziguadora do passado, de ode à colonização portuguesa. O passado seria

construído como um suporte para essa nação que “vale” pelo que virá a ser, tendo

como força motriz desse progresso a herança branca, portuguesa. Os traços de

identidade nacional, também a essa matriz cultural conectados.

CONCLUSÕES

Destaca-se assim a importância de nossos primeiros trabalhos

historiográficos e da concomitante criação do IHGB, no século XIX. No afã de criar

um sentimento de pertencimento que se estendesse a todo o território da antiga

América Portuguesa, com o objetivo de unificar todo o nascente país em origens

análogas, em busca da criação de uma identificação coletiva. A formação de uma

identidade, o nascimento de uma Nação.

Estudar o trabalho de von Martius é perceber a gênese do discurso das três

raças enquanto ponto-base da criação de nossa gente. Teoria que seria tornada

mais famosa por Gilberto Freyre, quase um século depois, e que até hoje recebe

aceitação de grande parte da nação. Somos a obra da miscigenação, o retrato da

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mistura de raças, de um encontro histórico que produziu o grande país Brasil. O

Canto das Três Raças, a entoar eternamente como nossa marca primordial.

Estudar Varnhagen é, dentre outras coisas, identificar o primeiro trabalho de

escrita da História de fato a seguir uma metodologia de trabalho bem identificada. É

observar o tratar dos documentos como fontes, de vital importância para a

reconstituição mais completa possível da verdade. É também, a conclusão do papel

da imaginação histórica, que em nada tiraria o mérito científico da disciplina. É

observar, em suma, a identificação de nossa identidade à cultura católica

portuguesa, de cujas influências não se pode negar em sã consciência qualquer

examinador sério de nossas raízes e heranças.

Estudar tais autores é, por fim, analisar o processo histórico de nosso

nascimento enquanto identidade. É perceber as nuances políticas de um projeto que

servia a interesses claros, e assim conhecer um pouco mais sobre a nossa própria

história, para melhor contextualizá-la. É diagnosticar a criação da Pátria Brasil,

unindo seus cidadãos, seu povo, em torno de uma imagem de herança uma.

Impossível estudar os autores que preocuparam-se em analisar os problemas e

características básicas do país a partir das heranças coloniais, como Freyre,

Buarque, Prado ou Faoro, sem buscar a compreensão daqueles que “fundaram” tal

Brasil a partir de problema distinto: a formação de uma Nação.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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