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História da Comuna de Oaxaca 1 História da Comuna de Oaxaca Pedro Carrano

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História da Comuna de Oaxaca

Pedro Carrano

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História da Comuna de Oaxaca

Pedro Carrano 2016

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Esta obra pode ser copiada, distribuída, citada livremente, desde que citado o autor. Não é permitido utilizar esta obra para fins comerciais, a menos que com a autorização do autor.

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Introdução. Parte Um. Dos sujeitos da história O cerco à Comuna de Oaxaca Encontro entre quatro olheiras Soledad Dois encontros com Florentino López Martínez Comunistas e indígenas juntos Atores do conflito em Oaxaca Parte Dois. De como se organizaram as barricadas De como se organizaram as barricadas O mosaico da força popular O abandono do campo As barricadas e os meios de comunicação De como as barricadas se organizavam Parte três. Da Guerra Suja Sobre a prisão de Flávio Sosa Primeiro relato desde Oaxaca Segundo relato de Oaxaca Para romper a película do terror Familiares exigem libertação de presos políticos Uma última crônica mexicana

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Introdução

A Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca

A insurgência do povo e do magistério no estado de Oaxaca, ao sul do México, completou seu décimo aniversário no dia 14 de junho de 2016. A memória de barricadas organizadas nas periferias da capital do estado - terceiro mais pobre do México –, os confrontos com a polícia federal, um amplo setor do povo reivindicando-se como Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), as megamarchas de 500 mil pessoas, soam hoje como algo relegado ao passado depois da repressão brutal contra o movimento popular. Como se fosse algo perdido em uma fotografia, em alguma manchete de jornal, ilustrado pela ideia de uma “confusão” passageira a ser resolvida com base nos valores democráticos, guardada a honra da propriedade privada. Não é assim, afinal, que a mídia monopolista costuma relatar esse tipo de coisa? A faísca que acendeu a revolta em Oaxaca começou com a greve da Seção 22 do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação (SNTE) por aumento de salários. A Assembleia Popular só toma forma depois da investida do governador Ulises Ruiz Ortiz, o famigerado URO, contra o movimento de professores. Este ataque desencadeou a convocatória dos estudantes, dos jovens, dos indígenas, dos pobres e “jodidos”, dos motoristas de ônibus, dos trabalhadores e dos precarizados, das mães, dos ex-imigrantes, que voltaram ao país e vivem nas colônias (bairros de periferia da capital). As demandas econômicas do sindicato avançaram então para a luta política. A queda do governador do Partido Revolucionário Institucional (PRI) passou a ser a reivindicação de milhares de oaxaquenhas e oaxaquenhos. Um momento fundamental foi a ocupação do canal estatal de televisão, durante a marcha das mulheres, quando 500 mulheres marcharam até a emissora em busca de espaço para uma entrevista, mas encontraram as portas fechadas. Decidiram tomá-la. Os técnicos da emissora debandaram e elas mesmas organizaram a nova programação, auxiliadas pelo movimento estudantil. A tomada dos meios de comunicação estendeu-se a treze estações de rádio e gerou a necessidade de proteção das antenas de transmissão, atacadas na calada da noite pelos “comboios da morte”, grupos mercenários contratados por URO. Como forma de defesa, as barricadas surgem, o que veio a se tornar uma forma de identidade do movimento. Assembleias populares locais eram colocadas em prática no espaço das barricadas. Como a polícia da capital estava aquartelada e o governador refugiado, a Assembleia Popular tomou a responsabilidade também pela segurança da cidade.

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Hoje, no momento de refluxo da luta, parece inacreditável que as massas populares controlaram Oaxaca e seus prédios oficiais por seis meses. Construção e contexto da luta dos professores O apelo de barricadas e automóveis incendiados ocultou – como é a regra na abordagem midiática –, a realidade de uma construção de 26 anos do sindicato de professores. A Seção 22 surge como dissidência importante da SNTE, uma das maiores bases sindicais latino-americanas de professores, porém até hoje um grupo de poder controlado pelo PRI, consorciado com seus governos. Isso foi nos anos 1980. Ainda assim, também os dissidentes do magistério vinham experimentando a burocratização. Há relatos de poucos avanços na luta do sindicato, que se renovou com os confrontos e a luta da Assembleia Popular. Nesse caso, a relação entre instrumento político e movimento de massas não seguiu apenas a regra geral, quando um novo levante de um movimento de massas determina o surgimento de novas ferramentas e espaços, de acordo com as necessidades da classe trabalhadora. A Seção 22, em Oaxaca, ganhou na realidade sobrevida e os professores foram uma das vértebras da luta. A experiência real desses comuneros aconteceu em uma encruzilhada na História mexicana. No ano de 2006 confluiu o início da Outra Campanha zapatista, que reivindicou um novo eixo político em contraposição às eleições presidenciais de 2006. Em abril, o movimento sofreu um duro golpe com o enfrentamento do Estado contra os trabalhadores de San Salvador Atenco, região metropolitana da Cidade do México, com prisões e criminalização. Na disputa institucional, o candidato da esquerda, Andrés Manoel Lopez Obrador (AMLO), enfrentava tentativas de inviabilização de sua candidatura, de onde surgiu o capítulo conhecido como “Desaforo”, quando AMLO convocava milhões de pessoas para dar a resposta nas ruas, até finalmente sofrer a fraude eleitoral e perder a disputa para o direitista Felipe Calderón. A Outra Campanha também pagou o preço do isolamento por não ter apoiado Obrador no momento quando o candidato da esquerda tinha chances de vitória. 2. Rever essas matérias e notas, no mínimo, leva a uma ponderação. Causa um estranhamento a consistência dessa insurreição popular, a empolgação e o ânimo causados em uma geração de jovens que nunca haviam presenciado algo semelhante. Só que, no fim das contas, é fato que pouco ficou daquela experiência na forma de registro.

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A experiência dos oaxaquenhos chama também a atenção para o debate colocado na esquerda latino-americana sobre a democratização dos meios de comunicação. Sabemos que esta pauta tem desdobramentos de acordo com a situação política de cada país. Em geral, as organizações que orbitavam em torno da APPO desenvolveram desde experiências próprias de comunicação – temos o exemplo da Radio Universidad, epicentro articulador do movimento -, mas não se contentaram com os limites: ocuparam e passaram a controlar também o Canal 9 estatal de televisão por 22 dias. O movimento em Oaxaca produziu também uma resistência cultural que respirava à agitação política. As músicas do estilo chamado corrido, frases espalhadas nos muros da cidade, faixas e cartazes irônicos exibidos nas megamarchas do movimento, a apropriação de personagens históricos, como o liberal do século dezenove, Benito Juárez – e não na forma de farsa, como sempre nos adverte Marx! - as festas do movimento em contraposição às festas turísticas do governo, em um estado marcado pelos corredores de livre comércio e turismo, eram manifestações populares surgidas com a própria velocidade com que as barricadas eram erguidas, em manifestações de resistência à cultura oficial. Em Oaxaca, o novo conteúdo trouxe a nova linguagem. Naquele momento memorável, luta política, barricadas e cultura avançavam na mesma velocidade. 3. Iniciei minha passagem por Oaxaca dois dias antes da desmobilização da última barricada do movimento, a de Cinco Señores, nas imediações da Universidade. Momento quando se abriu a perseguição de integrantes do movimento. Chamo esses trabalhos de matérias e não de reportagens ou artigos pelo fato de que eram escritas na velocidade dos fatos e dos encontros possíveis, enviados para a redação no Brasil sempre de uma lan house, depois das 22 horas, muitas vezes sob o risco de perder um fato importante. Nossa estadia equilibrou-se entre os relatos da repressão naquele momento e o que restou no imaginário popular de um povo que se lançou à luta, sem voltar atrás. Agora, divulgar novamente o livro tem um sabor especial: afinal, no Paraná, onde vivo, estudantes secundaristas neste exato momento ocupam mais de 200 escolas, enquanto os professores estaduais há dois anos vêm fazendo um movimento forte contra os ajustes e a truculência do governador Beto Richa (PSDB). Desde a década de 1990, vários estados ao sul do México produziram levantes populares. Trabalhadores em Chiapas, Atenco, Guerrero, Michoacán, Morelos e Oaxaca produziram organizações de tonalidades diferentes. Agora, as notícias do avanço do narcotráfico como um Estado paralelo são constantes, bem como relatos de ataques de paramilitares e priístas a comunidades indígenas. Nesse contexto,

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não podemos ter dúvida da capacidade de reinvenção e enfrentamento dos mexicanos. Os textos que seguem nesta publicação são uma compilação de matérias publicadas na edição impressa e no site do jornal Brasil de Fato, no período em que estive em Oaxaca, entre os dias 27 de novembro de 2006 e janeiro de 2007. Esse livro – que é um capítulo de um livro maior, sobre minhas experiências em Chiapas, América Central e Andes -, também foi publicado em 2011 pelos Cadernos Militantes do PSOL de Curitiba. Por fim, gostaria de reforçar todo o nosso tributo aos lutadores e lutadoras que tombaram nessas batalhas mexicanas. Pedro Carrano, Curitiba (2011, revisado em 2016).

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Parte um O cerco à Comuna de Oaxaca Caça às bruxas? Estado de sítio? Estado de exceção, nas palavras da lei mexicana? Estado democrático de direito? nenhum desses termos faz sentido neste exato momento em Oaxaca. Sem um mecanismo legal, o presidente Vicente Fox encerrou qualquer direito individual em Oaxaca ao exigir que a polícia federal preventiva (PFP) desmantele a resistência da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) e persiga qualquer pessoa minimamente envolvida nas megamarchas de protesto feitas ao longo de novembro. Certamente um novembro histórico para a assembleia popular e para a luta dos mexicanos. Neste momento, mesmo os jornalistas de meios de comunicação empresariais não se arriscam a sair dos hotéis. Na rua está a polícia, que tem usado lança-granadas e disparado gases lacrimogêneos na direção dos corpos dos manifestantes. Nas ruas estão os paramilitares do Partido Revolucionário Institucional (PRI), estão os chamados porros, os infiltrados do partido no meio universitário para arrumar confusão e, finalmente, gente armada e mercenária. Tudo isto acontece às vésperas da entrega do mandato de Vicente Fox para Felipe Calderón, os dois do Partido de Ação Nacional (PAN), que reparte o poder com o PRI. Ativistas, membros ou simpatizantes da APPO estão encurralados. Os membros das comunidades do entorno de Oaxaca não descem para a capital. Se alguém suspeito sai nas ruas, logo é preso. Neste momento, no Distrito Federal, membros dos meios de comunicação independentes se articulam, por meio de mensagens no celular, para saber a situação dos ativistas que seguem no estado, buscando ajudar na sua fuga e monitorar os desaparecidos. No miolo da cidade está a Polícia Preventiva, na serra o exército mexicano. Ontem a polícia saiu pelas ruas da capital com uma lista de apreensão de cem internacionalistas, como já havia feito com oaxaquenhos membros do movimento. E isto implica entrar nas casas das famílias sem autorização, bastando apenas uma denúncia dos priístas. Desde a sétima megamarcha no sábado, dia 25 de novembro, a polícia resolveu partir para cima da população, com o pretexto de resposta ao incêndio de prédios públicos. Porém, a APPO declara que os atos violentos partiram justamente dos infiltrados na marcha. Assim como o assassinato do cinegrafista estadunidense Brad Will, no dia 27 de outubro, justificou a entrada da polícia federal na cidade, desde o dia 29 de outubro, agora novamente forjou-se um segundo pretexto, quando houve a queima de prédios públicos e a polícia passou a confrontar os manifestantes. A postura da APPO segue sendo pelos atos pacíficos, o que até já foi motivo de discordâncias internas entre o Conselho Estadual e os que seguiam nas barricadas. A

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última barricada, a de Cinco Señores, nas imediações da universidade de Oaxaca, teve de ser abandonada ainda nesta semana. Os estudantes e as poucas cem pessoas que ainda aguentavam o tranco corriam risco sério de vida. A resistência precisa se reinventar. Ontem o último espaço ocupado pela APPO, a Rádio Universidad, considerada o coração da resistência, foi devolvida para a reitoria da universidade Benito Juárez, que a abrigava. A instituição está cercada pela PFP, mas ainda está imune à sua ação devido à autonomia deste espaço de ensino. Os militantes sentem muito, pois a rádio Universidad dava voz a uma população que, neste momento, está incomunicável. Restou a rádio Ciudadana, a serviço dos priístas, fazendo denúncias e incitando a queima de casas de membros do conselho estadual da APPO – entre eles Flávio Sosa, um dos principais dirigentes do movimento. Números não dizem tudo, mas são reveladores. Na verdade, eles não dão conta dos relatos de torturas sobre os presos transferidos para a prisão em outro estado, chamado Nayarit, uma prisão de alta segurança, 1300 quilômetros longe de Oaxaca. Até o momento, estamos falando de mais ou menos 400 detidos nos seis meses da Comuna - 179 deles só no dia 25 e transferidos para o norte – 100 feridos, 50 desaparecidos e 20 mortos nos seis meses da Comuna de Oaxaca. Os números ganham carne e desespero quando amigos contam a historia de Eliuth Amni Martinez Sanchez, de 21 anos. No dia 20 de novembro, quando simplesmente caminhava com a família por uma rua perto do centro da capital, foi detido pelos policiais que o golpearam em várias partes do corpo, causando hematomas e derrame nos olhos, perda de sensibilidade nos dedos. Ou então quando escuto que os prisioneiros transferidos são ameaçados de ser jogados do alto dos helicópteros no mar. "- A onda de terror vai a arrastar a todos nós", exclama o conselheiro estadual da APPO (um dos 262 constituídos neste mês), German Mendonza Nube, primeiro preso político oaxaquenho. O futuro? Incerto, ainda mais agora que foi nomeado para a futura Secretaria de Governo de Felipe Calderón o ex-governador de Guadalajara, Franciso Ramírez Acuña, conhecido pela perseguição promovida em Guadalajara (2004). Foram agredidos na época os manifestantes contra a Terceira Reunião da América Latina, Caribe e União Europeia. Pelo acampamento da APPO instalado em frente ao senado da República, no Distrito Federal, acompanhado por Izabel, professora responsável pelo contato com a

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imprensa, ouso perguntar qual a possibilidade de ir-me acompanhar os acontecimentos em Oaxaca. - "Se arrisca a tua vida", é a sua resposta, quase distraída. Encontro entre quatro olheiras Ele me recebe com paciência, no acampamento da APPO no Distrito Federal. Olheiras profundas. É desses que aproximam o rosto do interlocutor para explicar uma posição. Deixamos esfriando os pratos que a cozinheira do acampamento prepara para nós, e não nos voltamos para a mesa por um bom tempo. O professor German Mendonza Nube foi o primeiro preso político desde o dia 14 de julho, quando estourou a Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca. Liberado há pouco, esteve em varias prisões, internado numa área especial, dedicada aos militantes dos movimentos sociais. Por lá encontrou lutadores sociais há cinco anos na cadeia. Logo ele fez de tudo para criar uma rede de comunicação via bilhetes, para que saísse das grades a notícia de onde e como ele estava. Mais do que contar sua história, Nube prefere fazer um balanço do movimento. Lamenta que a repressão é detonada quando a Comuna está na sua melhor forma. Não só por ter atingido os seis meses enfrentando a repressão, oferecendo mobilizações importantes, como a do dia 02 de novembro. O conselheiro, na verdade, enfatiza o caráter do movimento de construir uma força política, de organização de massas, já que, para ele, o poder ainda não está nas mãos do povo neste estado. "O estado já vivia um ambiente de ingovernabilidade, mas tampouco há nesse momento um poder da APPO, apesar de o movimento ter ações de exercício de poder. No momento quando tivermos 10 mil assembleias populares, vamos a ver que tanto”. Fala sobre a questão da mobilidade: de como pequenas assembleias se formam e se dissolvem neste momento do confronto, decidindo sobre a criação de uma barricada. É uma herança do modo de organização das comunidades originárias. A "polícia do magistério", um corpo formado em defesa própria, para tomar prédios públicos como forma de rechaçar aos paramilitares. Este movimento, de acordo com Nube, está dentro das resoluções da APPO e é como se a violência não fosse um pretexto, mas sim uma resposta a um processo repressivo desencadeado pelas

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elites quando o povo está organizado. O propósito, nas palavras de Nube, é a organização popular e a luta política de massas, "cuja força é moral". “Uma revolução concreta, legítima e vinda do povo, se desenvolve a partir da luta política e, somente a partir disso, a luta armada" E cita Lênin, mais de uma vez durante a conversa, para quem as armas – em condições de miséria como a que vive o país – se disparam sozinhas. "Se o povo não toma formas de organização que o fortaleçam, está perdido. Por isso dizemos que acudimos como APPO porque surgimos como instrumento de poder real, do povo para o povo. A APPO é uma nova força social que vai ajudar em uma mudança profunda", diz, quando lembra que a carne apimentada estava esfriando. Enquanto isso, no acampamento se organiza marchas e volantes para tentar deter a repressão. “Romper o cerco”, uma expressão já utilizada na resistência mexicana de San Salvador Atenco, volta agora com toda a força, nas palavras de tantos, agoniados, tendo notícias da repressão desde a capital mexicana. Penso em tirar uma foto de Nube, mas desisto de pedi-la. O movimento, afinal, não é de bases e de todos, como se canta? *** Pelo menos 80 por cento da produção industrial do país está concentrada no norte do país. "O desenvolvimento de uma classe operária é muito pequeno. Tem, então, nascimento uma experiência nova, encabeçada pela Seção 22 do Sindicato de Professores, que se organizam há 26 anos, ao mesmo tempo em que a situação na região chega a estourar", descreve Nube. "Existe um programa único que é a queda de um tirano, num primeiro momento, e um programa de luta, no segundo. Os professores têm uma força moral na comunidade, não surge do nada, pois, por isso o povo sai em defesa dos professores. Dentro do movimento há posições anarquistas, zapatistas, magonistas (anarquistas seguidores de Ricardo Flores Magón), marxistas", enumera. Há um processo no qual os camponeses rumam para as cidades ou para outros países, na constante falta de lugar. Proletarização. Ele explica a ideia citando o dado de que mais de três por cento do Produto Interno Bruto (PIB) do país vem dos dólares enviados pelos imigrantes. Tempera a conversa com um pensamento mítico de que um século é o suficiente para o povo mexicano se rebelar. Foi assim em 1910, na revolução mexicana pela queda da ditadura de Porfírio Dias, e um século antes, na luta pela independência, de 1810. Agora novamente se vê uma ebulição que para Nube é pré-revolucionária.

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Soledad O acampamento da APPO foi erguido ao lado do senado mexicano depois da chegada da marcha desde Oaxaca até a capital. Hoje, afora os refugiados do estado e militantes que chegam para manifestar-se contra a posse do novo presidente Felipe Calderón, estão por ali pessoas de outras partes para se solidarizar com a assembleia popular. Uma delas é Soledad, olhos e cabelos escuros, quem passaria despercebida nos metrôs lotados da capital. Descendente do povo nautleca, Soledad veio de Guerrero, dos estados mais pobres e reprimidos do México, vizinho a Oaxaca e semelhante na sua conjuntura. Um possível palco de nova rebeldia no México. A organização do povo em assembleias é um ponto em comum. A experiência da "polícia comunitária" já completa mais de 10 anos. Forma de defesa e aplicação da lei entre os povos originários, a polícia comunitária de Guerrero dá outro tipo de punição aos infratores e também oferece uma defesa das comunidades contra a repressão do exército. Pois as tropas oficiais entram nas casas das famílias associando-as à plantação de papoulas para o narcotráfico. Soledad é professora de História, filiada ao sindicato nacional dos trabalhadores da educação, de uma outra seção. Ela explica que a Comuna de Oaxaca foi um divisor de águas porque "a luta estava dispersa". A história não começa aí. Lembramos juntos da guerrilha formada no fim dos anos 1960 pelo professor rural Lucio Cabañas, uma revolta que se alimentava de tortilhas. Uma revolta não reconhecida por um setor da esquerda, para quem faltava a presença da classe operária e a aplicação do marxismo científico. Cabañas respondia que aos pesquisadores faltava saber andar nas montanhas e ser picado pelos mosquitos. "Ele dizia que a fome não era um conceito", lembra a professora. "Guerra no Paraíso" é o nome de livro sobre Lucio Cabañas, pelo escritor mexicano Carlos Montemayor. Sejam os povos indígenas ou rurais, eles tomam suas decisões por assembleias, cujos delegados reivindicam os direitos junto ao município. Os anciãos são os primeiros a ser consultados nas decisões, o que para ela vai contra a lógica do neoliberalismo. “São os mais velhos quem elegem o representante que vai levar adiante as propostas da comunidade”. "A classe política não representa os interesses do povo, nem da esquerda", diz. Soledad concorda que uma pista da luta dos povos originários do México está em 2001, quando os três partidos todos juntos não reconheceram a autonomia e as propostas de leis indígenas. Ela não aparenta desânimo. Estávamos sentados embaixo de monumento onde amarram as tendas dos acampamentos. Soledad crê que Oaxaca abriu uma porta que não se vai a fechar. "Como que se abriram as brechas, como que Oaxaca é um baluarte da luta, não se vai a acabar, ao contrário do passado, quando nos reprimíamos e nós dávamos um passo atrás. Ainda que com todos os mortos, eles demonstraram a fortaleza. É como a ponta de lança", pensa. Fica a foto do seu rosto, que não pode ser tirada.

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"A repressão nunca é normal, estamos na mesma posição de Oaxaca", diz Soledad.

Dois encontros com Florentino López Martínez

Aos 23 anos. Florentino López Martínez, indígena mixteco, não pôde concluir o curso de Direito na Universidad Autonoma Benito Juárez, a poucos meses da graduação. Ele deixou também o movimento estudantil para ser um dos conselheiros e o atual porta-voz da APPO.

Nosso encontro aconteceu no pátio de uma escola que deu guarida a uma reunião clandestina da APPO. Não foi possível ficar muito tempo no local e a comissão de segurança me acompanhou até um ponto longe dos policiais à paisana que circundavam o lugar.

Em meio a um turbilhão de ameaças de perseguição e de tortura contra os simpatizantes e integrantes do movimento, do qual ele mesmo foi vítima há poucos dias, Martínez enfatizou a mobilização popular para que a APPO engrene outra vez. Disse que as barricadas voltariam a ser erguidas de acordo com as circunstâncias, se o povo julgasse necessário.

"Não há um trâmite legal para a APPO, por isso a dinâmica da luta permanentemente muda, não há um limite, nem sequer um padrão para saber o número de pessoas que estão participando. A APPO não tem o seu desenvolvimento interno acabado e se fortalece constantemente mediante as Assembleias Populares", explica.

Utiliza a palavra assembleia no plural. Porém existe um órgão máximo para a organização, que seria a Assembleia Estadual, integrada por 215 conselheiros. Participam ao menos dez representantes de cada uma das oito regiões de Oaxaca; um Estado de geografia complexa, dividido entre as áreas da costa, mixteca e istmo.

Independência

Por princípio, não há envolvimento com os partidos políticos, ainda que individualmente as pessoas possam ser partidárias do movimento em torno de Andrés Manuel López Obrador (AMLO, candidato à Presidência pelo PRD que alega ter sofrido fraude nas eleições de 2006). "Entre os princípios aprovados, está a

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independência política entre a APPO e os partidos, e é muito clara esta decisão de independência política", reforça.

Pergunto, então, qual seria a relação com a Outra Campanha, impulsionada pelo Exército Zapatista de Liberação Nacional (EZLN), cujo pensamento já estava materializado desde a década de 1990, quando os zapatistas pregavam a impossibilidade de um caminho institucional no México, sobretudo via partidos políticos e institucionais. "Compartilhamos com a Outra Campanha o objetivo de uma nova constituinte, um novo pacto social em Oaxaca, entre os trabalhadores do campo e da cidade", pensa.

Martínez não hesita em afirmar que o movimento tem um caráter amplo e que o nome APPO seria um processo de expressão da unidade. Também é despreocupado e sucinto na hora de situar qual seria a voz dos indígenas entre as tonalidades que caracterizam o movimento: "Não há um mecanismo especial para privilegiar os povos indígenas, a maioria dos professores são indígenas. A APPO somos os indígenas na luta para conservar a nossa identidade", comenta.

O espaço do poder popular

Uma questão me intriga e obriga a marcar uma segunda entrevista com o porta-voz da APPO. O tema do poder popular e como ele foi operado ao longo dos seis meses de mobilização e ações populares nas ruas. Embora, depois do dia 25, toda a capital oaxaquenha tenha sido recuperada pelo Estado e o próprio Martínez sofrido na pele a perseguição e a tortura aplicadas contra militantes, trabalhadoras, trabalhadores.

O segundo encontro ocorreu em uma das sedes do magistério, pouco antes de nova reunião do Conselho Estadual da APPO, quando ele ensaiava alguns minutos de distração frente à TV.

Martínez conta que, a partir da ação do movimento no dia 20 de junho de 2006, as secretarias e os escritórios do governo foram fechados, os governantes não podiam aparecer em nenhuma parte do Estado, "porque os povos não permitiam a aterrissagem de helicópteros". Na mesma data foi conformada a APPO, agrupando forças sociais que se somaram à luta reivindicativa dos professores da Seção 22, uma seção dissidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação (SNTE - reconhecido em plano nacional pelas relações de submissão aos partidos no poder).

Desde o mês de maio, a Seção 22 promovia mais uma paralisação que a caracterizou ao longo dos 26 anos de existência. Até que, na madrugada do dia 14 de junho, os professores foram desalojados violentamente do centro da cidade (o zócalo capitalino), a mando do governador Ulises Ruiz Ortiz (URO), iniciando uma luta para

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recuperar o zócalo. Nisto surge a APPO, um tecido de organizações que foi além da luta dos professores. Primeiro participaram as organizações de caráter político, pouco depois as massas populares, indígenas e campesinas somaram.

"No dia 20 de junho, na faculdade de direito Benito Juárez, se deu uma estrutura única para o movimento. A partir daí se juntaram dezenas de comunidades, elegeram-se os representantes e o movimento foi crescendo de maneira impressionante. Tem espaço para as organizações sociais, políticas e autoridades municipais das comunidades autônomas, todas as pessoas em particular têm um lugar", narra Martínez.

Controle popular

O controle da capital de Oaxaca era feito pelo povo. Os policiais estavam aquartelados ou atuando à paisana. De igual modo, as secretarias do governo estavam fechadas ou atuando fora do espaço físico oficial. "As pessoas olhavam a APPO como a responsável para gerar ordem entre a sociedade e, a partir daí, passaram a vê-la como um espaço de poder, ainda que isto não estivesse sistematizado", explica.

A dita segurança pública era um assunto dos próprios colonos, nos bairros da periferia, articulados para detectar crimes e levá-los à assembleia popular. "A assembleia verificava qual o dano, que então o ladrão o pagasse ou devolvesse o objeto que roubou", comenta.

Há um forte trabalho do movimento social de compartilhar e criar relações com o cotidiano dos trabalhadores. Na região mixteca de Oaxaca, 70 táxis foram comprados pela Assembleia Popular em conjunto com os trabalhadores, para que os trabalhadores de transporte e o movimento social se apoiassem mutuamente.

Na capital de Oaxaca, nos meses que precederam a repressão, os ônibus durante a noite eram cedidos pelos choferes para fechar e dar corpo às barricadas, desde que pudessem retirá-los pela manhã e seguir rumo ao trabalho. "Ocupamos uma boa parte dos órgãos públicos, comerciantes e transportes públicos nos acudiam, porém a ocupação total confrontava-se com o poder federal", reflete Martínez.

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Comunistas e indígenas juntos

(para Gastão da Luz) As barricadas erguidas nas colônias da periferia, nos municípios distantes, uma forma de barrar o ataque policial e paramilitar, foram a hora e a vez dos descendentes dos povos índios que vivem nos arredores da cidade. Foram eles, ao lado de outras forças populares, quem criaram e alimentaram as barricadas, literalmente, com suas tortilhas e café oaxaquenho. Assim, a Assembleia Popular ganhava de herança as tradições indígenas. O zapoteco Nicéforo Umbieta reivindica a visão indígena na linha política da APPO, valoriza a diversidade, que também deve se dar junto aos dirigentes da Seção 22 do Sindicato Nacional de Trabalhadores da Educação. Militante da organização Conselho Indígena, descreve que a conexão entre o levante de hoje e os povos indígenas remonta aos anos 1980, quando colônias ao redor da capital de Oaxaca eram formadas. Culpa da competição entre os produtos camponeses e os alimentos e mercadorias que chegavam dos EUA. O recurso então era olhar para o norte. Gente das 16 etnias indígenas do estado (das 60 existentes em todo o país) pode ser encontrada vivendo no grande irmão do norte. Quando regressavam, a casa na comunidade já não era a mesma, os migrantes partem em busca dos parentes na periferia das cidades. E a cultura viajava junto na maleta. “Não só migraram as pessoas e sim as culturas, a produção e a ajuda mútua”, descreve. Não é a primeira vez que ouço a palavra mosaico para descrever gênese da luta em Oaxaca. Este senhor indígena fala das tradições comunitárias como a “guelaguetza”, uma festa que recorda a troca de alimentos nos mercados segundo a necessidade. “Cada pessoa responde às festas desde o seu rincão”, onde se concentra cada etnia. A verdade é que o centro histórico e a catedral de Oaxaca não dizem nada da essência do povo, que está ali, fora da cidade. Comunismo é uma prática do seu povo, assim ele pensa. “Os marxistas é quem tem de aprender com a gente. Pois os professores falam de socialismo, mas não se

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utilizam de exemplos concretos, então não é espontâneo”, ele reflete. Na sua visão, não pode haver dualismo, sujeito e objeto, numa cultura onde o máximo valor seja o outro, o “indivíduo comunitário”, nas suas palavras, sempre criativas, à la Guimarães Rosa. “As pessoas na comunidade são muito orgulhosas, por mais que sejam pequenas, são únicas, e estão seguras de que ali tem um super valor”, fala. O velho indígena diz que a luta segue no mesmo pé que a resistência contra a invasão espanhola. Entre os 70 mil professores da Seção 22, pensa que a maioria são descendentes indígenas, o que se verifica pelos seus sobrenomes, mas ele faz a ressalva de que a educação que receberam ainda esteve sob o molde capitalista, o que significa: vertical. O Fórum Indígena, do qual participou recentemente, é o espaço para que as organizações indígenas que conformam o movimento sigam o seu caminhar a seu tempo e modo, e a tendência é seguir com os congressos e encontros filosóficos para ensinar o modo de pensar dos povos originários e o conceito de comunalidade. Para que o símbolo da APPO, o estigmatizado punho fechado, não prevaleça sobre o símbolo do bastão de mando das comunidades. - “Fazemos a recuperação desta raiz pela poesia. Para recuperar a nós mesmos”, comenta. - E existe possibilidade de que essas duas linhas da APPO sigam juntas? Nicéforo conta a história de um professor da comunidade. Mesmo sendo ateu, participava da mística dos cultos junto à comunidade, onde estava inserido e possuía referência.

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Segunda Parte

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Atores do conflito em Oaxaca

Seção XXII. A Seção XXII, surgida em 1980, é uma dissidência do Sindicato Nacional de Trabalhadores da Educação (SNTE), o maior sindicato de professores da América Latina, controlado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI). Para se ter uma ideia, em Oaxaca era o governador que nomeava o secretário geral do sindicato. "Se convidavam às eleições professores escolhidos pelo governo e o eleito era o candidato do governador", explica o conselheiro da APPO da região Mixteca, Francisco Anzola Alfora.

No dia 12 de maio de 1980, a Seção XXII promove uma greve que dura 44 dias, para negociar reajustes salariais. Essa situação se repetiria em 2006 e, em virtude da repressão do governo de Ulises Ruiz Ortiz (URO), desencadeou o surgimento da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). O que quer dizer: o movimento não é de 2006, na verdade a sua espinha vem sendo construído há 26 anos.

Fonte: La Insurgencia Magisterial en Oaxaca 1980, de Gloria Zafra e Isidoro Yescas Martínez, ed. UABJO, 134 páginas.

Partido Revolucionário Institucional (PRI). O Partido Revolucionário Institucional (PRI) define-se por sua influência em organizações sociais e fraudes eleitorais. É um partido hegemônico, que se manteve na presidência do México por sete décadas (1929 a 2000) e, em estados como Oaxaca chega aos 76 anos.

A origem do partido é a Revolução Mexicana, de 1910. A agremiação tem então a condução das linhas de mudança social do país, como a nacionalização do petróleo e a realização de uma reforma agrária. A partir de 1940, porém, o PRI afasta-se dessa linha, tornando-se burocrático, conservador e corrupto.

Ao longo da sua história, o PRI criou novos sindicatos e ocupou os antigos. Nos municípios, impôs caciques, que praticavam o voto de cabresto e assim garantiam a perpetuação do partido. Utilizaram a figura de Emiliano Zapata, Pancho Villa e outros revolucionários para manter a imagem de partido revolucionário. Em 1988, foi protagonista de uma eleição suspeita, quando foi eleito o neoliberal Salinas de Gotari e derrotado o candidato democrático Cuáltemoc Cárdenas.

Andrés Manuel López Obrador (AMLO). Candidato à Presidência pelo Partido da Revolução Democrática (PRD) em 2006, AMLO fermentou um massivo apoio popular para ter o direito de ser candidato, já que, em 2005, o poder federal tentou impedi-lo de concorrer como presidente, no capítulo da história mexicana conhecido como "Desaforo", caracterizado pela manipulação do Judiciário com fins políticos por parte do então presidente Vicente Fox.

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Candidato favorito em 2006, AMLO definiu-se como um político de centro-esquerda, embora o movimento zapatista tenha acusado seu partido (e AMLO particularmente) de equivaler aos políticos de direita.

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O mosaico da força popular

A Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) pode ser comparada a um mosaico, um tecido social complexo e até paradoxal. São diferentes organizações com um tempo político próprio que encontraram um ponto comum na luta pela queda do governador de Oaxaca, Ulises Ruiz Ortiz (URO). O desafio é mostrar sua capacidade de organização e reinvenção nesta hora de ataque por parte do governo de Felipe Calderón, que apenas se inicia.

Luiz Hernandez Navarro é editor do La Jornada, principal jornal de esquerda mexicano, que despontou durante a guerra de Chiapas, em 1994. De acordo com a análise de Navarro, antes da rebelião iniciada pelos professores, o cenário era de um governo comandado pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), que só fazia crescer o “caciquismo” na região, com uma prática coronelista no interior de governo e municípios. Tal política já havia atingido o seu ápice com o governador José Murat Casab, também do PRI, que antecedeu Ulises Ruiz. Só que, ao mesmo tempo, existiam organizações comunitárias, camponesas e políticas maduras em Oaxaca. Existiam trabalhos ligados à Teologia da Libertação e comunidades eclesiais de base, no que Navarro apelida de um tecido de organizações, algo que forma um caso particular entre os estados mexicanos, uma experiência que não vai se aplicar como um modelo pronto para outras regiões do país – em que pese a tentativa de construção da Assembleia Popular dos Povos do México.

Os professores encabeçaram a luta da APPO, agrupados em um sindicato corporativo como o Sindicato Nacional de Trabalhadores da Educação (SNTE). Com forte inserção nas comunidades indígenas, os professores têm a confiança das famílias. A APPO reflete rigorosamente as demandas das entidades indígenas, que, ainda assim, apoiam o movimento. No entanto, seu tempo dentro da organização é outro e, até por isso, organizaram recentemente o “Fórum Indígena”, debatendo a sua presença dentro da Assembleia.

O editor do La Jornada compara os dias da Comuna ao que foi a guerra do gás na Bolívia, em 2003.

Único estado do país onde a autonomia é reconhecida por lei

Silvia Ribeiro, pesquisadora uruguaia radicada no México, do grupo ETC, reflete que organizações, camponesas e indígenas, que compõem a Assembleia Popular, são

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oriundas de articulações independentes. Dá como exemplo a Unorca, organização camponesa que compõe a Via Campesina no México e se mantém independente do governo, organização da qual, segundo Silvia, faz parte Flavio Sosa, um dos dirigentes mais conhecidos da APPO, preso no dia 4 de dezembro. Silvia aponta a herança da organização campesina e indígena. “É uma forma de funcionamento real, discutida por consenso. No caso de Oaxaca, o único estado do país onde a autonomia é reconhecida por lei, a organização funciona de maneira autônoma do governo. Se não fosse assim tal organização acabaria ficando nas mãos do PRI”, avalia.

Ao falar dos setores do povo que integram a APPO, Silvia acentua uma questão crucial, a presença dos “filhos do zapatismo” na Comuna de Oaxaca, a geração jovem que cresceu e teve sua formação política lendo os comunicados do Subcomandante Marcos. “Eram os jovens que estavam se pegando nas barricadas com a polícia, são eles os que dão a cara para bater”, comenta.

O abandono do campo

Pesquisadora do tema da invasão das sementes transgênicas em territórios camponeses, Silvia Ribeiro refaz o trajeto de uma história de repressão nas zonas rurais para analisar o cenário incendiado pela insurreição popular de Oaxaca, estado marcado desde há muito tempo pela repressão contra os povos indígenas e o campesinato. "A violação dos direitos humanos era algo cotidiano", define Ribeiro, para quem a APPO é uma resistência contra a estrutura dominada pelos "caciques", uma elite ligada ao Partido da Revolução Institucional (PRI) e, em estados como Chiapas, ligada ao latifúndio. A revolução mexicana, iniciada em 1910, possibilitou o reconhecimento da propriedade comunal, aquela organizada pelas próprias comunidades. Mais tarde, nos anos 1930, no governo de Lázaro Cardenas, o sistema dos chamados ejidos assegurou a permanência destas comunidades. Os camponeses podiam trabalhar a terra coletivamente ou sozinhos, só não era permitido vendê-la. Em poucos Estados

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mexicanos o latifúndio subsiste. Porém, o PRI, com a sua estratégia de poder que perdurou por sete décadas seguidas, controlou o crédito e o subsídio para os agricultores. A situação da população piorou com o governo de Carlos Salinas de Gotari (1988-1994) que transformou uma aparente socialdemocracia em um neoliberalismo selvagem. "O campo começou a ficar abandonado", descreve Silvia. Até 1993 existia a Comissão Nacional de Subsistências Populares (Conasupo), órgão que dava garantias ao campesinato, comprando as safras por um melhor preço. No entanto, a instituição perdeu espaço com a chegada de corporações como a Cargill, ADM, Grupo Maseka (famigerado fabricante de tortilhas com milho transgênico) etc. "A Conasupo era nacional e fomentava o mercado agrário interno. Já as transnacionais compram o milho em qualquer país onde esteja mais barato", explica.

Atirados ao deus-dará do mercado, os camponeses "estão desarmando a estrutura do campo. As pessoas que produzem já não podem vender seus produtos", diz. Para Silvia, 30% do milho consumido no México vêm dos Estados Unidos. O crédito agrícola baixou em 80% e os camponeses estão endividados. A economia do camponês tem base na troca de alimentos. "O campesinato produz e vende quase tudo, vive da colheita para poder comprar roupas, sal, mas vende por um preço não competitivo", informa.

As barricadas e os meios de comunicação

As rádios comunitárias cumpriram uma função medular na revolta de massas latino-americana. Os exemplos se multiplicam, mas basta citar o papel da Rádio La Luna, em Quito, no Equador, na mobilização que iniciou a queda do presidente Lúcio Gutierrez (2005).

Do sul do México, no entanto, veio uma inovação: além de ocuparem as rádios e transmitirem as mensagens rebeldes, o povo criou barricadas para defendê-las. Não apenas um ponto de combate contra as tropas de choque federais, mas uma necessidade diante da urgência de proteger as radiodifusoras tomadas pela APPO, vulneráveis ao ataque de grupos paramilitares que buscavam destruir suas antenas de transmissão.

Das mais de mil barricadas criadas no auge do movimento, as principais delas se organizaram ao redor das antenas de transmissão, formando comissões de segurança encarregadas de protegê-las. A autodefesa do povo se dava com técnicas simples: bazucas feitas de tubo de plástico que soltavam rojões e fogos de artíficio, molotovs.

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O estopim

Em 14 de junho, dia quando os professores da Seção 22 do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação foram expulsos do zócalo (centro da cidade), um grupo de universitários tomou uma rádio no recinto da Universidad Autonoma Benito Juárez (UABJO), prontamente convocando a outros estudantes para se somar ao movimento.

Estava criada a Radio Universidad, uma ferramenta essencial para a mobilização da APPO, nos seis meses de ações pela queda do governo de Ulises Ruiz Ortiz (URO) e pela reforma do Estado oaxaquenho. Só mais tarde as barricadas tiveram a sua gênese, em agosto, quando começam a circular madrugada adentro os denominados "comboios da morte", carregando policiais e paramilitares que varavam a cidade para disparar contra as antenas e as cabines das rádios ocupadas.

Exatamente no dia 20 de agosto, o canal estatal 9, que havia sido ocupado pelas mulheres da APPO e transformado na rádio “Cacerola” (panela) - em referência às panelas usadas numa marcha convocada por elas - teve a sua antena destruída. "Neste momento, todo o povo se inteirou da destruição e tomaram outras 13 rádios transmissoras, ou seja, todas as rádios locais foram ocupadas", relata Florentino Martínez, porta-voz do movimento.

Não foi preciso muito tempo para tal ação acontecer. Os tiros contra a Rádio Cacerola foram disparados às duas da manhã e logo às cinco a população estava nas ruas tomando todas as rádios comerciais e estatais de Oaxaca, mais tarde devolvendo algumas e mantendo outras, por questões de estrutura.

Os marcos da luta

O dia 2 de novembro é uma das datas fundamentais que resiste na memória coletiva em Oaxaca, data da resistência vitoriosa contra a Polícia Federal Preventiva (PFP). A outra é a repressão brutal após a megamarcha do dia 25 novembro.

Naquele dia, a polícia tinha a ordem de desbloquear a extensa Avenida Universidad, onde se localiza a Universidad Autônoma Benito Juárez de Oaxaca e, consequentemente, a Rádio Universidad. O caminho estava tomado por barricadas e fileiras de carros queimados deixavam o asfalto borbulhando com o calor dos incêndios.

Peças de ferro-velho foram colocadas de um lado a outro da pista. Há meses, a avenida estava fechada. Finalmente, ao chegar perto da universidade e passar as barreiras, a polícia decidiu não recuar e desarmar a Rádio Universidad.

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"Fizemos chamados, cadeias de mensagens por celular. A rádio não era o ponto político do movimento, mas pela capacidade de convocatória que tem, as pessoas se defendiam com ímpeto", afirma o membro da APPO Estudantil, Francisco Pedro Garcia, quem fala de milhares de pessoas dos bairros populares somando-se para conter o avanço policial que sucumbiu naquele momento diante da mobilização popular.

A APPO celebrou a vitória do dia 02 sobre as forças federais, transmitida via Rádio Universidad para vários países do ocidente. Porém, a batalha vencida debilitou a resistência. Muitas barricadas foram perdidas e a repressão naquele momento apenas se iniciava.

De como as barricadas se organizavam

Marco Antonio é casado com uma professora da Seção 22. Indígena mixteco, vive com a família em Santa Lucía Del Camino, colônia na periferia da capital histórica de Oaxaca. Nos últimos tempos este trabalhador de artesanato teve de se esconder e evitar comparecer a uma convocatória da Justiça, uma vez que não havia garantia de segurança à população.

Esteve presente desde o início na barricada de Rosário, erguida na madrugada em seguida ao ataque de paramilitares contra a Rádio Cacerola, sob controle da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO).

A missão da barricada era defender a antena da Rádio La Ley, até então comercial e logo tomada pelo movimento junto a outras 12 radiodifusoras. A ocupação perdurou por um bom tempo, localizada numa parte da estrada que conduz ao município de Santa Lucía del Camino. "As pessoas baixaram dos morros em abundância para apoiar", recorda Marco Antonio. Todas as saídas da estrada e caminhos estavam fechados. O único medo era que os paramilitares ou a polícia entrassem pelo rio Salado, que corre pelo local.

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O risco se devia a que presidente municipal de Santa Lucia del Camino, Manuel Martínez Feria, é aliado de Ulises Ruiz Ortiz, governador de Oaxaca. O relato de Marco Antonio aponta para as relações de poder de caráter coronelista geradas pelo PRI. "Mas tapamos a entrada do município justamente com outdoors que faziam propaganda do partido", ironiza.

Dentro da barricada, havia uma divisão de tarefas por grupos, pessoas responsáveis por fazer bebida de leite quente, o atole, grupos responsáveis pela limpeza, etc. Traçavam estratégias nos momentos de reflexão sobre a forma de defesa, influenciados pelas experiências de outras barricadas.

A velocidade de mobilização dentro das barricadas por vezes superava e ia além do que determinava a direção constituída do movimento. Na verdade, era algo que partia do consenso popular num dado instante e circunstância da luta.

"As pessoas tinham isto muito presente, não podiam dizer algo em nome das barricadas, a direção não podia tomar decisões sem antes falar com as pessoas. Sabemos que os líderes se vendem, então preferimos as bases, creio que isto foi o mais marcante", coloca.

Nos dois encontros que teve com o porta-voz do movimento, Florentino López Martínez, questionei justamente isso: como fazer para respeitar e não reprimir uma organização claramente horizontal e independente?

"A direção orienta, de maneira geral, as pessoas nas colônias executam e claro que existe uma necessidade cotidiana, concreta, que vai mais além das colocações do conselho estatal. Mas existem infiltrados e provocadores, algo que temos que considerar. De acordo com a necessidade se pode construir uma série de regras. Mas deixamos que a imaginação das pessoas nas barricadas possa fluir e materializar-se no movimento", respondeu, à época, Martínez.

Outro aspecto na organização das barricadas e na sobrevivência do movimento foi o sistema de informações alimentado desde várias partes. Bastava um telefone. "Todas as pessoas do povo se converteram num sistema de inteligência da assembleia, em vigilantes, com isto sabíamos os passos dos inimigos com antecipação. Foi uma participação na qual o povo conseguia informação, não sabíamos nem como, e entregava à APPO", explicou Martínez.

Marco Antonio agrega que um outro exercício de democracia foi posto em prática nos espaços da APPO, inspirado nos pilares da tradição indígena da comunalidade. "Nas barricadas conviviam muita gente, o que era difícil, todos podiam opinar e ser

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levados em conta. Não havia isto de classe social, todos tínhamos que sentar no piso e tomar café juntos", dispara.

Os principais usos e costumes das comunidades são:

Guelaguetza. Comércio indígena feito com o princípio da troca e da necessidade. A guelaguetza dá nome a uma festa que revaloriza esta prática.

Tequio. De acordo com Marco Antonio: "Na hora quando eu preciso construir uma casa ou cortar o mato do terreno, todos vêm para ajudar, mas não se cobra, pedem apenas que você prepare uma comida para todos", explica.

Assembleias Populares. A comunidade decide o será feito com os recursos que chegam para os municípios autônomos de Oaxaca. A assembléia é a máxima autoridade. Nela, as decisões são por consenso e não por maioria de pessoas. Único estado mexicano onde a autonomia é reconhecida juridicamente.

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Terceira Parte

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Sobre a prisão de Flávio Sosa Há oito dias na Cidade do México onde acordo cedo (se é que durmo), onde como pouco, um corrido, num comedor, entre fotos de Frida, Zapata e Villa, (se é que como). aqui onde devoro o La Jornada, ainda no metrô. Na “casa livre”, sempre há um colchão, um computador sobrando, as mensagens no celular dos amigos muitos compas escondidos da polícia em Oaxaca, outros escapando por pouco. aqui reencontrei o movimento, entre uma estação e outra, ou um encontro debaixo das tendas do acampamento cortando o vento de inverno. a velocidade na ponta dos dedos, na página mal escrita, nas vozes que preenchem minhas entrevistas, nas ondas de rádios livres se cruzando. justo no fim do dia descobrimos que os dirigentes da APPO foram presos e o acampamento dos professores no centro está cercado. Hoje é meu aniversário? não há data, não há tempo, estamos em movimento. Traição. Foi assim como repercutiu a prisão de mais um dos conselheiros estaduais da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca, Flávio Sosa Villavicencio, quem nos últimos tempos virou uma das vozes da APPO mais conhecidas entre a opinião pública. Preso junto com o irmão, Horacio, e mais Ignácio Garcia Sosa e Marcelino Coache, todos representantes do movimento. Os dois últimos inclusive foram levados sem que a polícia tivesse ordem de detenção contra eles. Sobre Sosa, até o momento pesam cinco acusações de uma soma de 44 contra os 260 conselheiros da

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assembleia oaxaquenha. A ação da polícia recebeu o aplauso do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e do Partido de Ação Nacional (PAN). Tudo aconteceu no dia 4 de dezembro, no fim da tarde, e pegou a todos de surpresa, depois de Sosa ter participado de uma entrevista coletiva na capital federal. Isto porque estava marcada para o dia seguinte uma reunião de diálogo entre a APPO e a Secretaria de Governo, que em realidade não ofereceu soluções para as demandas deste tecido de organizações sociais. O secretário recém-nomeado pelo novo governo, Francisco Ramirez Acuña, é conhecido pela repressão contra os movimentos em outros episódios. E o governo de Felipe Calderón opta logo no seu início pela política de “mano dura”, e ainda enterra o que havia dito sobre dialogar com todos os setores sociais, durante a sua posse, há somente cinco dias atrás. A política de repressão do governo Calderón segue a linha deixada pelo seu antecessor, Vicente Fox, mas tem contornos diferentes daquela organizada por outros governos na história recente mexicana. A análise é do editor do La Jornada, Luiz Hernández Navarro, para quem o país já não está vivendo a conhecida “guerra de baixa intensidade”, aplicada, por exemplo, com táticas de efeito moral contra as organizações populares, em Chiapas, no sudeste do país. Agora o que está em jogo é promover o medo, o terror para desmantelar o movimento, analisa Navarro. A reportagem veio ao México para acompanhar a experiência organizativa da APPO, mas topou com um cenário de repressão e de um movimento cujos conselheiros estão detidos, escondidos ou sob ameaça. A perseguição aos líderes parte de uma compreensão por parte do poder de que, desta forma, reprimindo o que seriam os representantes populares, cortaria a cabeça do movimento. O desafio atual da APPO é mostrar aquilo que opinam os que vivenciaram os mais de seis meses da experiência de mobilização massiva: as bases do movimento dirigem a si próprias, algo ainda não absorvido pela classe política mexicana. “O governo de Fox nunca decifrou um novo conflito social, uma nova subjetividade, nunca entendeu o que tem diante de si, por isso Calderón inicia com a ‘mano dura’”, afirma Navarro. Tal fato evoca o que ocorreu em fevereiro de 1995, durante o governo de Ernesto Zedillo, do PRI. Foi em meio a um processo de negociação com a direção do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), quando Zedillo simplesmente armou a arapuca e a comunidade de Guadalupe Tepeiac, em território zapatista, foi atacada e teve uma biblioteca destruída por soldados. Com ordem de detenção decretada, os zapatistas ao final não foram capturados. Agora é o mesmo Zedillo um dos organizadores da política de Felipe Calderón contra os movimentos sociais, como aponta Navarro. Outra comparação corrente entre os mexicanos é feita com a perseguição do estado maquinada contra estudantes no final dos anos 1960. Rogelio Vargas pertence à comissão de imprensa da APPO, presente no plantão da APPO no dia seguinte à detenção de Sosa. Nas suas palavras, a Assembleia de

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Oaxaca contabilizou até agora uma baixa de 300 presos, 20 assassinatos (certamente por grupos paramilitares atuando na região) e mais 50 desaparecidos. “Flávio é o primeiro preso da APPO do período Calderón”, comenta. E descreve: “Há bandos de paramilitares detendo as pessoas casa por casa, torturando, fazendo uma repressão direta, contra o Estado de Direito”, diz o porta-voz. Flavio Sosa O oaxaquenho Flavio Sosa Villavicencio ficou conhecido pelas entrevistas para os meios de comunicação, nas quais traduziu o sentido da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca. De acordo com informações de jornais mexicanos à esquerda e à direita, Sosa é militante do PRD (Partido da Revolução Democrática), um de seus fundadores, pelo qual já chegou a ser deputado. Nas eleições de 2000, renunciou ao cargo no PRD e resolveu ingressar nas fileiras do então candidato e futuro presidente Vicente Fox, do neoliberal Partido de Ação Nacional (PAN), na época em oposição ao PRI. Em 2004, junto com o Movimento Unificador de Lucha Triqui (Mult), formou o partido político local Unidad Popular, que lançou o candidato e ex-senador perredista Héctor Sánchez López, adversário de Ulises Ruiz Ortiz (URO) nas eleições. Depois de se desligar da Unidade Popular, Sosa voltou a solicitar a sua admissão no PRD, em 2005, e foi designado como conselheiro nacional. Em junho de 2006, com outras organizações civis, sociais, camponesas e sindicatos, integrou a Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). Além dele, seus irmãos Horácio, Erick e o primo Jorge Sosa Campos estão detidos. Polícia vigia o plantão da APPO no centro da Cidade do México À noite, no dia 04 de dezembro, havia no ar a ameaça de que as tropas oficiais fechassem a única rua de saída do plantão da APPO e prendessem os outros membros do movimento que estavam ali acampados. Logo ativistas armaram uma estratégia para retirar os militantes em meio ao cerco policial que vasculhava o centro da cidade. O carro onde estávamos foi parado pelo menos duas vezes por policiais. As ruas do centro da cidade estavam com pilhas de lixo por toda a parte. A cidade, gigantesca, naquela hora ficou pequena. Com dois companheiros já retirados do plantão e dentro do carro, a questão era: onde havia um lugar seguro para levá-los? Primeiro relato desde Oaxaca

Hoje, dia 6 de dezembro, chego até a cidade de Oaxaca. Melhor dizendo, a cidade da Comuna ou da Assembleia Popular de Oaxaca, como deverá ser lembrada. Chego

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com uma dose de receio, acompanhado de um jornalista estadunidense. Contamos com o fato de que temos o visto oficial de jornalista, neste momento no qual os ativistas dos meios independentes, rádios livres e coletivos são agredidos sem pudor pela polícia federal preventiva. No momento dos confrontos, a polícia simplesmente avança sobre todos.

Vividos nove dias na Cidade do México, a indiferença da sociedade civil em relação ao estado de sítio em Oaxaca é mais sufocante do que a fumaça que paira no ar da capital, resquício do incêndio de carros e prédios públicos. Chegamos de madrugada, tudo ainda escuro, mas o suficiente para perceber a grande quantidade de táxis, cafés e hotéis típicos de uma cidade colonial e turística. O taxista tenta nos animar, os dois supostos turistas: “- Já deram um jeito nas pessoas más, agora está tudo tranquilo”.

Nas ruas, topamos com um silêncio incômodo por parte das pessoas e dos policiais que apenas nos olham discretamente. A fileira de casas tem as paredes borradas, na tentativa de apagar o que foi escrito nas paredes da cidade. A rua Alcalá foi uma das principais arenas das batalhas entre a APPO e a Polícia Federal Preventiva. Num dos grafites restou apenas um “por que” escrito. A praça, no zócalo, onde antes havia um acampamento dos professores, está ocupada por cabanas e caminhões da Polícia Federal Preventiva.

Pela Alcalá chegamos até a Igreja de Santo Domingo de Guzmán. As calçadas estão esburacadas, como dentes expostos, pois forneceram munição para os carros de supermercado que levavam as pedras para as barricadas. Faz sol, o céu está demasiadamente azul e a polícia toma conta do centro da cidade. Qualquer turista pode chegar por aqui sem nem imaginar o que aconteceu e ainda dar uma olhada no jardim de flores plantado no zócalo.

Justamente na rua Alcalá, cerca 141 manifestantes foram encurralados, presos e torturados pela polícia. Apenas mais tarde houve a queima de prédios públicos, por aqueles que escaparam e pelos infiltrados nas barricadas. Visito a Liga Mexicana em Defesa dos Direitos Humanos (Limedh), das poucas que atua neste momento quando os direitos individuais foram caçados. A aparente normalidade do centro da cidade nada diz da perseguição promovida nas “colônias”, algo como a periferia ao redor de Oaxaca. “As pessoas das colônias estão assustadas”, me diz um jovem da organização, seguramente espanhol, numa história que também contou com o apoio dos internacionalistas, agora escondidos. “Vizinhos denunciam vizinhos de terem participado das barricadas”, ele completa. O cerco está armado e é também invisível. Como o medo. Não consigo tirar fotos, tampouco conversar com as pessoas. Talvez a oitava megamarcha seja o termômetro para verificarmos se o

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terrorismo policial surtiu efeito entre as bases do movimento. Mas como romper este cerco tão real e tão silencioso? Material e concreto como o medo.

A juventude rebelde em Oaxaca

Levado a um cárcere feminino, uma hora distante da capital histórica de Oaxaca, a impressão inicial era de que não havia por ali o terror que caracteriza as instalações de uma cadeia tradicional. Já no primeiro dia, porém, Francisco Pedro Garcia foi submetido a uma tortura de oito horas. Os policiais passavam uma chama de aerosol acendida com isqueiro rente às suas costas.

Porta-voz do movimento estudantil dentro da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), Garcia ficou pouco tempo na prisão, do dia 1º a 8 de outubro, graças a uma campanha de difusão vinda da Rádio Universidad. Sorte distinta de outros presos políticos da APPO.

O motivo foi que os estudantes, aos montes, ameaçaram fazer uma marcha a pé até a cidade onde ficava o cárcere. O reitor da Universidade Benito Juárez, confirmando a sua postura a favor do movimento, pressionou o então secretário de Governo de Vicente Fox. "Ele disse ao secretário que imaginasse milhares de pessoas chegando na cidadezinha", conta Garcia.

O engajamento dos jovens na formação das barricadas em Oaxaca foi essencial. Algo mil jovens participaram das tarefas do dia-a-dia e nas madrugadas das barricadas.

A Terceira Megamarcha da APPO reuniu sete mil universitários e três mil do ensino médio. Nem todos eram politizados. Na melhor das hipóteses, eram o que ele chama de "chavos banda", jovens com o seu grupo e a sua cultura de rua.

As barricadas foram um exercício de politização.

Retomadas as aulas, hoje, há cartazes espalhados pelo campus universitário perguntando pelos 10 estudantes detidos no cárcere distante de Tepic (estado de Nayarit), isto depois que o clima de terror chegou ao seu auge com a ofensiva policial do dia 25 de novembro, causando terror e desmobilização.

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Além dos estudantes detidos e torturados, pelo menos outros 15 estão desaparecidos. A chamada APPO estudantil agrega os estudantes de nível médio e universitário, identificados com a luta dos professores. Porém, no momento, existe uma dispersão, em meio ao corte de liberdades individuais promovido pelo Estado, o que força a APPO a se organizar na clandestinidade.

Os estudantes organizados de Oaxaca possuem 10 representantes entre os 215 do Conselho Estadual da APPO, eleito em novembro. Estão divididos entre sete representantes de diferentes organizações estudantis de nível médio e acadêmico e os outros três são da Escola Tecnológica de Oaxaca (ITO).

Segundo relato de Oaxaca

Hoje, dia 7 de dezembro, caminho pelas ruas de Oaxaca com menos tensão. Arrisco até mesmo tirar três ou quatro fotos. Sinto que meus companheiros jornalistas preferem trabalhar sozinhos e guardar as informações e os contatos para si. Ao menos por enquanto ainda sou novo no lugar, não há risco em andar durante o dia, apesar de os olhares da Polícia Federal Preventiva, donos do centro da cidade. Infelizmente tenho que passar por ali para comprar os jornais.

Sem dúvida o dia de hoje foi dos pintores, um batalhão deles reforçando as cores cromáticas das casas. Resta pouco ou quase nenhum indício dos mais de seis meses da Comuna. A estratégia da Sétima Megamarcha do dia 25 de novembro foi ousada, uma data a ser lembrada pois a partir daí a caça às bruxas se intensificou. Naquele dia os appistas queriam cercar todo o Zócalo (praça do poder) e manter a polícia dentro do círculo humano e massivo. Um dos problemas foi os infiltrados do movimento que causaram a onda de violência não prevista pela APPO.

A oficina do centro de direitos humanos onde estou também recebe uma mão de tinta, mas pelo motivo oposto. Nas suas paredes chegaram a pixar: “Aqui se reúnem os da APPO”. Ainda ontem recaiu uma ordem de detenção sobre a advogada e coordenadora do centro, pelo motivo de ter participado de ação da APPO – a razão de sempre. Converso com uma radialista, há quase um mês na cidade. A maioria dos jornalistas dos meios de comunicação empresarial já debandou, em parte porque esta guerra já não vende uma primeira página.

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Tenho a impressão de que um movimento tem de estar preparado para este tipo de refluxo do povo e avanço do braço repressivo. Pois os mecanismos da sociedade civil estão desgastados (meios de comunicação, mobilização civil). Não são pouco infalíveis para barrar o terror.

Duas pessoas chegam ao centro de direitos humanos assustados, pois seu irmão foi preso sem motivo aparente, numa ação típica de crime organizado. O irmão detido era simpatizante do movimento, vivia numa das colônias onde montaram uma barricada.

- “As barricadas eram uma forma de expressão, nada mais”, exclama um deles.

Um carro negro, sem placa, parou em frente ao lava-carros, onde quatro homens com traje oficial da polícia perguntaram o preço do serviço, logo empurrando-o para dentro do carro. A acusação foi de roubo. Nós contribuímos tomando o relato das famílias que buscam o centro. O Estado mostra a sua verdadeira e oculta face. Uma acusação banal para justificar a prisão da pessoa e técnicas de tortura para criar uma confissão que tire a legitimidade da APPO. Nas páginas do jornal do dia sete de dezembro, Arturo Reyes García, simpatizante do movimento como tantos cidadãos, foi obrigado a dizer em frente às câmeras da polícia que havia recebido 1000 pesos mexicanos para figurar nas agora extintas barricadas.

Entre as prisões efetuadas no dia 25 de novembro, as pessoas lembram-se de uma senhora de 60 anos, conduzida direto para a cadeia, ensanguentada. Lembram também da “comandante do microfone”, a doutora Bertha, que dia e noite conduziu a rádio Universidad e ganhou o carinho das pessoas. Ela quem dizia, com seu bom humor e fala pausada: “Por que eu vou me preocupar, se eles vão invadir mesmo, se eles vão me golpear mesmo?” Bertha neste momento segue escondida.

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Para romper a película do terror

Como pode o terror se ocultar frente a um cenário azul e verde Atrás das casas e das montanhas ainda mais ancestrais? Como pode o terror agir em tão silêncio? Alimentado de um cerco que não vemos. Como pode o terror dar lugar ao turismo, Viver ali, aceso Debaixo de um oceano antes tão distraído?

Domingo, dia 10 de dezembro, milhares de mexicanos caminharam juntos, envoltos por uma corda que se estendia do começo ao fim da Oitava Megamarcha convocada pela Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO), cidade ao sul do país, palco de um levante rebelde. A marcha foi organizada como demonstração de força do movimento diante da política de “guerra suja” do presidente mexicano, Felipe Calderón. As pessoas em suas casas gritavam pela dissolução dos poderes do governador de Oaxaca, Ulises Ruiz Ortiz (URO), mostrando que as demandas do movimento se mantêm.

Havia um orgulho no ar pelo cerco repressivo que tentava ser rompido, um sentimento misturado a dor das pessoas que tinham alguém próximo preso. Familiares e amigos caminhavam na linha de frente da marcha e, logo atrás, vinha a multidão, os professores da Seção 22 do Sindicato Nacional de Trabalhadores da Educação, jovens e outros aderentes da APPO, além do Sindicato Mexicano de Eletricistas (SME).

Dias antes da megamarcha, Oaxaca amanhecia presenciando o movimento da Polícia Federal Preventiva (PFP) carregando a sua roupa pesada no centro histórico da cidade, dividindo espaço com os ambulantes do zócalo (praça do poder). As pessoas tratavam de tocar a sua vida. Alguns hotéis, vazios, ofereciam os quartos pela metade do preço. Os turistas voltavam a surgir como se nada houvesse acontecido. Havia poucos indícios dos seis meses de ação da APPO. As janelas do Tribunal Superior de Justiça, abandonadas e envoltas em negro deixado pela fumaça. O prédio foi incendiado no dia 25.

O estado de sítio na capital irrompeu no confronto do dia 25 de novembro entre a polícia e a população. Mais de 200 pessoas foram presas. A partir daí sucederam invasões policiais às casas dos colonos na calada da noite, perseguições aos

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dirigentes e também a simpatizantes do movimento. Pior: um levantamento recente aponta que 84% dos presos não tinham nada a ver com a APPO, apenas saíram na rua naquele dia.

A palavra é terror

Na arrancada da oitava Megamarcha, o porta-voz da APPO, Florentino Lopez Martinez, disse que neste atual “estado de exceção”, que ele qualifica como fascista, não são apenas os corpos policiais e militares que estão perseguindo casa por casa o povo, mas também os paramilitares e os policiais à paisana.

Lopez crê que a APPO se está reorganizando, mesmo com as 35 ordens recentes de busca e apreensão contra os conselheiros estaduais do movimento. Hoje, a Seção 22 do Sindicato de Professores – o cerne constitutivo da APPO – mostrou poder de convocatória, ainda que muita gente ficou em casa devido ao medo.

O imaginário da esquerda compara a situação ao que foi vivido no ano de 1968 no país, quando o governo de Gustavo Días Ordaz assassinou mais de 300 pessoas na Praça de Três Poderes, em Tlatelolco, em represália ao movimento estudantil. Ali começou a chamada “guerra suja” com perseguições individuais a qualquer suspeito de ser militante. Aspectos que agora se repetem.

“A apreensão está acontecendo de modo clandestino, demasiado premeditada, com o uso de armas de grosso calibre e violência”, comenta o advogado de direitos humanos, Izaac Carmona, que veste uma camisa do EZLN debaixo do terno e passa madrugadas em claro elaborando a defesa dos presos políticos de consciência.

A APPO somos todos

“Não deixes de lutar, por um governo operário, camponês e popular”, repetiam, em coro, as milhares de pessoas na marcha. Desta vez, os rostos estavam descobertos: ninguém cobria mais a cara para impedir a presença de infiltrados disfarçados.

Assim mesmo, os milhares ali presentes tinham o nome e o rosto dos desaparecidos e presos. Um dirigente que se ausenta – esteja preso ou foragido – rapidamente é substituído por outro.

Temerosos, os professores cobriam-se com sombrinhas quando alguém tentava tirar uma foto. Uma pergunta sobre o significado da APPO trazia a resposta de pronto: “Nós somos a APPO”.

Uma das características da APPO, em sua heterogeneidade, é a relação intrínseca entre os professores da Seção 22 e as etnias indígenas. Um exemplo é o dirigente

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magisterial Eliazar Rosette, que veio da costa do lado Pacífico para participar da marcha. Sua etnia é a chatina, “os descendentes dos peixes”, como ele relata. Rosette vem de uma oito regiões do estado representadas na Assembleia Popular.

Somos presos políticos

A megamarcha ganha o centro histórico de Oaxaca, aporta na Plaza de la Danza, buscando evitar o contato com Polícia Federal Preventiva (PFP), que instalou bloqueios perto do zócalo, algumas quadras longe dali. No palanque armado com o nome de “Fórum Contra a Repressão”, falaram as mães de jovens detidos e também os representantes da Frente Ampla Progressista (FAP) de esquerda no México. A Frente é o braço parlamentar que apoia ao governo “legítimo” e paralelo encabeçado por Andrés Manuel López Obrador (AMLO). É formado pelos partidos PRD, PT e Convergencia.

AMLO, após perder as eleições, no que é considerada a segunda fraude eleitoral na História recente mexicana, certamente não vai estar em Oaxaca. O seu chamado governo legítimo está respaldado na constituição do país e entre as massas. Quando o nome de Lopez Obrador foi mencionado recebeu gritos e aplausos dos presentes. Mas existe um limite claro para o movimento de AMLO: apoiar a um movimento como o de Oaxaca parece ter um peso político com o qual ele não pode arcar. O nome mais representativo entre as personalidades convidadas foi o de Rosário Ibarra, senadora do Partido da Revolução Democrática (PRD), quem teve o filho desaparecido em 1968. Disse que sente orgulho que o filho tenha participado do grupo de guerrilha urbana da época.

Mães, irmãs e namoradas dos detidos são as protagonistas do Fórum. Uma das mães lê o depoimento do seu filho, que lhe escreveu: “Somos presos políticos e somente pela via política vamos sair daqui”. Outras colocam, em seu próprio rosto, cartazes com o rosto de seus filhos. As mãos tremem de angústia. E pedem aos jornalistas para que coloquem “a imagem dos seus filhos na internet, para que as pessoas de outros países saibam o que está acontecendo no México”.

Em pouco tempo, a praça se esvazia, as pessoas vão para casa, sabem que é preciso ter cautela ao regressar. Restam as mães falando de seus filhos, um clima de melancolia, desolação. O filho de Reyna Martinez García se chama Miguel Angel e com apenas quinze anos foi enviado à prisão de Nayarit (1300 quilômetros para o Norte). “Me disseram que ele está por lá”, exclama a indígena zapoteca que não tem condições de pagar a fiança de 40 mil dólares, sequer pode comprar uma passagem para visitá-lo.

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A namorada de Pedro Antonio Jose Perez narra que o jovem, no dia 25 de novembro, estava para viajar quando foi agarrado pela polícia. Cometeu o pecado de sair à rua naquele dia. A mãe dele exibe uma foto publicada no jornal, o filho levado pelos cabelos ao lado de outro jovem ensanguentado. Perez estuda direito e trabalha para se sustentar. Vive numa casa na periferia da capital.

Familiares exigem libertação de presos políticos

São duas as prisões de Oaxaca que abrigam os presos políticos agarrados aleatoriamente em 25 de novembro. Ficam em uma região árida, nos Vales Centrais do Estado. De 20 de dezembro em diante, famílias se revezam madrugada adentro, esperando quem pode ser solto sem aviso, normalmente às 2h ou 3h, sob o frio cortante do deserto. Diante da falta de sinais de liberação dos presos, no primeiro dia do ano montaram um plantão permanente em frente aos centros de reclusão.

O presídio no município de Miahuatlán fica a duas horas da capital histórica de Oaxaca. Nos plantões, uniram-se estudantes vindos do Distrito Federal (DF) em apoio ao estudante de economia Cristian Marcel Cebolledo Gutiérrez, que há mais de três meses desceu para o sul do país para ingressar nas agora extintas barricadas.

Yolanda Gutierrez, mãe de Cristian, é uma das organizadoras do plantão. O mês de dezembro foi um exercício de politização para todas. As famílias criaram enlaces de comunicação entre si e com a imprensa, buscaram estratégias contra a repressão, como turnos de vigilância para filmar e tomar fotos dos carros suspeitos que circundam o acampamento, numa experiência parecida com a organização das pessoas nas barricadas, na defesa contra as ameaças de paramilitares e mercenários.

"A verdade é que nos sentimos sós, é um absurdo que tenham que vir pessoas de outras partes do mundo para ver as políticas que se aplicam aqui. Eu gostaria que tirassem o México da Comissão de Direitos Humanos da ONU", exclama Yolanda. No momento, as famílias não aceitam negociar e exigem a saída imediata de todos nuestros presos, como dizem, livres das acusações que pesam sobre eles.

Os ativistas, à noite, formavam um coro e gritavam diante dos muros das alas masculina e feminina as palavras de ordem que embalaram as megamarchas

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realizadas pela APPO, sob o olhar próximo dos vigias. "Já não temos mais medo", exclama Isauro, indígena mixe, um entre vários estudantes falando idioma originário, num cenário que juntava, naquela noite, camponeses, indígenas de comunidades montanhosas ou das periferias da capital, professores primários, desempregados, todos de certo modo os atores que deram corpo a APPO.

Três dos irmãos de Alba Coca Gomez estão do lado de dentro dos muros de Miahuatlán. Ela é filha de um casamento entre etnias diferentes: mixteca e zapoteca. Segue a profissão do pai, é professora primária, sindicalizada na Seção 22 do SNTE. A eclosão do movimento se deve à observação do cotidiano dos alunos nos povoados. "Os alunos para quem dou aula falam com dificuldade o espanhol, seu idioma é o zapoteco, por isso os indígenas muitas vezes são enganados, principalmente pelo presidente de cada município, normalmente filiado ao PRI", comenta.

Revolta e armas guardadas

No recorrido até o centro de reclusão de Tlacolula, conforme a capital é deixada para trás, somam-se povoados dispersos, erguidos com casas de latão em meio ao terreno árido, ou então casas abandonadas ocupadas por carros do exército. Deixamos para trás a opulência da pequena burguesia da capital.

Na prisão de Tlacolula, uma hora longe da capital, os funcionários da prisão, armas em punho, desalojaram os familiares montavam o plantão como resposta à não liberação dos presos no final de 2006.

As conversas com as famílias dos presos políticos são um sintoma de como está o ânimo dos oaxaquenhos. Todos concordam que as mobilizações vão ser retomadas o mais breve e as barricadas erguidas de volta. Provada a repressão que deixou a todos indefesos, alguns cogitam o uso de armas para tirar Ulises Ruiz Ortiz do poder, como diz um estudante de arquitetura cujo irmão está preso. Ele vive no município de Santa Lucía del Camino, onde foi assassinado o cinegrafista estadunidense Brad Will, dia 27 de outubro. "O povo tem armas, mas não as usou até o momento", comenta.

No dia 12 de dezembro, entretanto, seis grupos guerrilheiros do Sul do México lançaram um comunicado posicionando-se pela ação pacífica e inclusive remetendo aos movimentos civis da “Outra Campanha” (puxado pelos zapatistas) e de Andrés Manuel López Obrador (“governo legítimo”), conclamando a uma união entre essas forças junto com a APPO.

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O que cria um impasse: por um lado reconhecidamente o país vive um estado de repressão, porém, os grupos que enfrentam o poder não acreditam na via armada.

Uma última crônica mexicana

Janeiro de 2007

De quem não calçou sapatos

(Com o pensamento na companheira Bety Cariño: as que se colocam na linha de frente)

Estive por apenas um fim de semana na região dos povos indígenas mixtecos, duas horas longe da capital de Oaxaca, passadas montanhas áridas, de um solo pedregoso e sem vida. Só dois dias, o necessário para saber que a capital foi apenas mais um espaço de luta da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). Isto porque outras sete regiões e 33 palácios de governo foram tomados pelos oaxaquenhos, até que a repressão do dia 25 de novembro tomou conta de todo o estado.

Na área mixteca, a vida segue o que a geografia manda. O solo desértico e a concentração de terras faz com que sete em cada dez mixtecos migrem para os EUA. Ao todo são 500 mil oaxaquenhos vivendo ao norte. A economia local então se movimenta com as remessas. Mesmo nos pequenos vilarejos, à noite, pessoas fazem filas para sacar o dinheiro do mês na agência Western Union. De dia o

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comércio local está dominado pelos chamados mestiços, ou ladinos, que historicamente exploram os indígenas. Se as casas de barro ao redor não tem luz, por outro lado o centro do município de Huajuapan, a cidade principal, hoje se assemelha a um reluzente mercado de produtos made in China.

Fui recebido por Bety Cariño no pequeno terminal de caminhonetes, rapidamente puxado pelo braço e levado a um táxi incomum, um dos 70 pertencentes à cooperativa que apoia a Assembleia Popular. No interior do carro não havia perigo de conversarmos. Noutros lugares sim, porque Bety possui uma ordem de detenção, ela e outros companheiros das cinco organizações políticas que compõe a APPO na região mixteca. A cooperativa de táxis foi uma solução para evitar o monopólio sobre o transporte por parte dos chamados "caciques"– elites locais ligadas ao Partido Revolucionário Institucional (PRI). As organizações sociais fizeram a aliança com os trabalhadores e compraram os carros. O motorista que nos leva, como não podia deixar de ser, é um antigo imigrante que voltou à cidade e estava desempregado.

Desde o início da repressão, pelo menos 32 presos políticos recentes são mixtecos, embora outras famílias reclamem pelos seus parentes, que não constam nos números oficiais. Apesar de tudo, Bety e seu companheiro, Omar, deixaram os filhos num lugar a salvo e resolveram ficar. A antiga casa era rodeada por bases do governador Ulises Ruiz Ortiz (PRI) e teve de ser abandonada. No escritório novo, em meio a obras de Paulo Freire, as coisas todas esparramadas. Ambos se mostravam desapontados com outras organizações por não ter feito o mesmo e ficado, apesar da clandestinidade.

À noite, no silêncio das ruas, visitamos a casa de um adolescente que a partir do dia 25 de novembro vivia sozinho. Seus pais são professores da Seção 22 do sindicato de professores. Naquele dia, eles viajaram à capital para a megamarcha organizada pela APPO, mas acabaram presos, levados a um cárcere 1000 quilômetros longe dali. Enquanto esperava pela absolvição dos pais, o jovem passou por um processo semelhante ao de todo oaxaquenho nos últimos meses: de repente se viu trazido ao centro do conflito.

Destruir o neoliberalismo por dentro

Bety e a organização na qual atua, chamada Cactus, são aderentes da Outra Campanha, impulsionada em 2005 pelos zapatistas. Seguem o pensamento da Sexta Declaração da Selva Lacandona como se o documento fosse deles próprios. Receberam o Subcomandante Marcos na passagem dele pela região. Bety e o marido buscam recuperar o pensamento indígena das comunidades, falam de autonomia para combater o capitalismo, criando mecanismos para implodi-lo por

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dentro. Os mecanismos seriam as assembleias populares, a força moral da convocatória das marchas, o apego a terra e o rechaço ao alimento industrializado. É isso o que ela defende, olhos firmes e jovens, enquanto sentávamos num café por um breve momento. Há pouco chorava: o pároco da região não quis receber suas denúncias de violações.

O estudante e porta-voz da APPO, Castro López, também mixteco de origem, aponta outra forma de poder alternativo e popular que a APPO vem fermentando ao longo dos sete meses de existência: são as festas tradicionais, antes monopolizadas pela indústria do turismo local, que ressurgem agora com o nome da Assembleia Popular. "Há um poder do povo que está sendo construído, que não é formal, mas dual. Ele se reflete no fazer o seu próprio Dia de Reis, a “Noche de Rábanos” (festa natalina), a Guelaguetza (celebração da troca)... Enquanto o governo diz que o poder sou eu, ele fala de um povo de Oaxaca, mas fala somente dos empresários", reflete.

O exemplo vivo de Zapata (1879-1919)

Emiliano Zapata é um símbolo vivo entre as organizações ao sul e sudeste do México. Ele que tomou o poder com as armas por duas vezes, mas retornou aos acampamentos guerrilheiros, até que se cumprisse o Plano de Ayala de 1911 e a terra fosse garantida para os camponeses. Declarou guerra a quatro presidentes do México. Conta-se que, durante a primeira entrada de Zapata na Cidade do México, em 1914, o general Pancho Villa, vindo do norte, ofereceu a cadeira presidencial a Zapata, quem teria dito que o melhor a fazer era queimá-la. Bety defende que uma análise da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca que não tome em conta o pensamento indígena, zapatista e autonomista, não reflete a realidade. Sua organização, por exemplo, definitivamente não acredita na via eleitoral como mecanismo de mudança. "As instituições não têm credibilidade no México", diz. Apesar de ter treinado nas montanhas e apesar de que nas aldeias "para cervejas e armas, sempre há", a via armada seria o último recurso, somente em defesa própria. A aposta de fato é na mobilização de massas.

A ideologia de Bety e Omar é baseada na negação. O consumo do milho transgênico é recusado para reafirmar o milho amassado nas comunidades – a base da alimentação mexicana. Os povos não são consumistas e dominam outra relação com o tempo. Uma das formas de descrever a autonomia dos povos originários foi dada por uma senhora indígena, quem disse que possuindo a terra sua comunidade não se tornava escrava do dinheiro.

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A senhora caminhava debaixo de um sol forte, passou por nós enquanto estávamos escondidos entre uma lanchonete ou outra, evitando caminhar pelo centro da cidade, à luz do dia. Mas ela encarava o sol pesado de frente.

Foi Bety quem apontou:

- “Está vendo os pés daquela senhora?”

Era como se o pé tivesse enrolado em várias camadas e crostas.

- “São pés de quem nunca calçou um sapato”

Quase quatro anos mais tarde, o contato mantido em algumas trocas tímidas de emails e telefonemas, no dia 27 de abril de 2010 eu soube que uma caravana humanitária, com perto de 100 militantes mexicanos e internacionalistas, foi atacada a balas por paramilitares, no município autônomo de San Juan Copala, na região mixteca do estado de Oaxaca. O grupo de direitos humanos tinha a tarefa de fornecer mantimentos e registrar as violações contra os povos indígenas Triquis, que vivem em estado de sítio: sem água, luz ou escola, cercados por paramilitares a serviço de organização ligada ao Partido Revolucionário Institucional (PRI) e ao famigerado Ulises Ruiz Ortiz, ainda hoje governador. Entre os dois assassinados, estava um jovem finlandês, Tyri Antero Jaakkola, e também a militante mexicana Beatriz Alberta Cariño Trujillo (Bety Cariño), de 35 anos, quem me abrigou quando estive pelo Brasil de Fato reportando o que naquela época apelidamos no Brasil de a “Comuna de Oaxaca”, em 2006, e os mexicanos reivindicavam como Assembleia Popular. Ao saber do assassinato, experimentei algo comum na vida de tantos militantes. A perda de Bety e a notícia da sua morte abalam quem a conheceu, porque volta mais vivo o seu exemplo de entrega militante.

Havia sido uma casualidade a presença do texto sobre Bety para finalizar esses relatos de resistências. Além de a sua generosidade ter fornecido minha última jornada no México, penso agora que os olhos escuros e indígenas de Bety sintetizam aquilo que me dispus a encontrar nos dias que perambulei pela nossa “maiúscula América”.

São os olhos de honestidade e entrega de todo um povo. Se a injustiça se repete em tantos outros rincões do continente e do mundo, também as sementes e pessoas como ela resistem e vagarosamente se multiplicam. A aparente fragilidade de Bety era inversamente proporcional à sua disposição à luta, dentro dessa realidade que, em nosso continente, definitivamente se assemelha a um conto de realismo mágico, e que por isso também nos fazem acreditar que ainda nos levantaremos. Em nome

de nossos mortos. Junto com eles.