universidade estadual do oeste do paranÁ campus de...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ CAMPUS DE TOLEDO SERVIÇO SOCIAL _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ GABRIELA DE JESUS SILVÉRIO O DIREITO A MORADIA, A POLITICA NACIONAL DE HABITAÇÃO E A IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO MUNICIPAL DE HABITAÇÃO DE CASCAVEL, PARANÁ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ TOLEDO - PR 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARAN

CAMPUS DE TOLEDO SERVIO SOCIAL

_______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

GABRIELA DE JESUS SILVRIO

O DIREITO A MORADIA, A POLITICA NACIONAL DE HABITAO

E A IMPLEMENTAO DO PLANO MUNICIPAL DE HABITAO DE

CASCAVEL, PARAN

_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

TOLEDO - PR

2016

http://www.unioeste.br/

1

GABRIELA DE JESUS SILVRIO

O DIREITO A MORADIA, A POLITICA NACIONAL DE HABITAO

E A IMPLEMENTAO DO PLANO MUNICIPAL DE HABITAO DE

CASCAVEL, PARAN

Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao

curso de Servio Social, Centro de Cincias Sociais

Aplicadas da Universidade Estadual do Oeste do

Paran UNIOESTE Campus Toledo/PR, como

requisito parcial obteno do grau de Bacharel em

Servio Social.

Orientadora: Prof M Ineiva Terezinha Kreutz.

TOLEDO-PR

2016

2

GABRIELA DE JESUS SILVRIO

O DIREITO A MORADIA, A POLTICA NACIONAL DE HABITAO E A

IMPLEMENTAO DO PLANO MUNICIPAL DE HABITAO NO MUNICPIO

DE CASCAVEL, PARAN

Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao

curso de Servio Social, Centro de Cincias Sociais

Aplicadas da Universidade Estadual do Oeste do

Paran UNIOESTE Campus Toledo/PR, como

requisito parcial obteno do grau de Bacharel em

Servio Social.

Orientadora: Prof M Ineiva Terezinha Kreutz.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________

Prof M Ineiva Terezinha Kreutz

Universidade Estadual do Oeste do Paran

_____________________________________

Prof M Cristiane Konno

Universidade Estadual do Oeste do Paran

_____________________________________

Prof M Ester Taube Torreta

Universidade Estadual do Oeste do Paran

Toledo, 17 de Fevereiro de 2016.

3

Dedicado a todos que compreendem a importncia do direito a moradia digna.

4

AGRADECIMENTOS

Agradeo a Deus, pois o sinto comigo em todos os momentos da vida e, neste em

especfico, no foi diferente. Tudo vem Dele e para Ele.

Aos meus pais e meu irmo, Pedro Silvrio, Sandra Silvrio e Gustavo Silvrio.

Realmente, vocs so o presente mais lindo concedido a mim, meu bem maior. Obrigada por

todo apoio, incentivo e amor que desde sempre encontrei em vocs, esse o combustvel dos

meus trabalhos e das minhas realizaes. Amo vocs, famlia.

As minhas amigas Ana Caroline e Gisele Caroline, pelo companheirismo dos ltimos

quatro anos, principalmente no ltimo, o mais difcil pra ns. A faculdade no teria graa sem

a presena de vocs. Amo vocs, minhas louquinhas preferidas.

Tambm a minha amiga Alice, nossa mascotinha, por estar ao meu lado todas as

manhs e me socorrer em vrios momentos, tua ajuda foi essencial. Acompanhei teu

crescimento e amadurecimento intelectual. Continue assim, tu vai longe!

A voc amigo Bencio, pela pessoa que s, uma pea rara e um gnio incompreensvel

(rsrs). Obrigada pela parceria cotidiana na facul, na van e no estgio, no foi fcil aguentar

(inmeras vezes) tua lentido e teu sossego com tudo, mas foi divertido e me ajudou bastante,

erramos e aprendemos muito.

Agradeo pela oportunidade de conhecer e de compartilhar bons momentos durante a

faculdade, com pessoas queridas e especiais: Jssica, Carol, Cleo, Vanessa, Alan, Isabel,

Joana, Luana, Cris, Fer, Celsa, gmeas, Carla, Dani, Fran... Enfim, toda a turma contribuiu

para que as manhs, trabalhos, projetos e provas (se no fossem mais leves) ao menos mais

divertidas. Cada um com sua forma peculiar de ser, mas de alguma forma vocs foram

importantes em minha trajetria.

Agradeo a toda equipe da SEPLAN (inclusive aqueles que j saram, mas que

passaram algum tempo trabalhando comigo), onde realizei meu estgio e tambm, onde

despertou meu interesse em estudar e aprofundar o tema Habitao. Especialmente, a

assistente social e coordenadora Marilda Thom Paviani, que sempre esteve disposta a

ensinar, ajudar e aconselhar seus estagirios em todas as etapas da formao acadmica.

Agradeo a minha querida orientadora, Mestra e futura Doutora Ineiva Terezinha

Kreutz. Que mesmo em meio a mudanas significativas em sua vida pessoal e profissional,

no abandonou suas orientandas, nos acompanhando com compromisso e dedicao. Prof,

no seria possvel construir este trabalho sem tuas orientaes, elas foram fundamentais para

meu crescimento e amadurecimento acadmico.

5

Desde j agradeo a Prof M Cristiane Konno e a Prof M Ester Taube Toretta, que

gentilmente aceitaram formar a banca examinadora do TCC, vocs so Professoras

exemplares.

Por fim, deixo minha gratido a todos vocs que, direta ou indiretamente contriburam

para a construo deste Trabalho de Concluso de Curso, cada um foi indispensvel. Sou

grata a todos que acreditam em meu potencial.

6

7

SILVRIO. Gabriela de Jesus. O direito a moradia, a Poltica Nacional de Habitao e a

implementao do Plano Municipal de Habitao no municpio de Cascavel, Paran. Trabalho

de Concluso de Curso (Bacharelado em Servio Social). Centro de Cincias Sociais

Aplicadas. Universidade Estadual do Oeste do Paran Campus Toledo/PR, 2016.

RESUMO

O presente Trabalho de Concluso de Curso (TCC) tem como objeto de estudo o

direito a moradia, materializado atravs da Poltica Nacional de Habitao. A temtica foi

instigada a partir da realizao do processo de Estgio Supervisionado em Servio Social I e

II na Secretaria de Planejamento e Urbanismo (SEPLAN) da cidade de Cascavel, Paran e

problematizada pelas seguintes questes norteadoras: Considerando que a problemtica do

dficit habitacional e a falta de condies dignas de moradia so expresses da questo

social, vivenciadas pela classe trabalhadora no contexto da sociedade capitalista de

produo, em que medida o Estado brasileiro garante este direito?. Quais os desafios e

avanos presentes na implantao e implementao do Plano Municipal de Habitao de

Cascavel, Paran?. O objetivo geral deste estudo apreender os processos scio-histricos

determinantes da problemtica habitacional e a interveno do Estado na garantia ou no -

do direito a moradia e, objetivos especficos so: a) discutir os fundamentos sociais, polticos

e econmicos da sociedade de produo capitalista e os impactos na condio de vida da

classe trabalhadora e nas condies de habitao; b) compreender o processo histrico da

instituio do direito a moradia no Brasil e; c) conhecer o processo de implantao e

implementao Poltica Municipal de Habitao no municpio de Cascavel. Este TCC

resultado da pesquisa teve o mtodo dialtico como referncia para a compreenso da

realidade, ao buscar analisar o objeto na sua totalidade e dinamicidade, gestado por

multideterminaes e contradies e compreendendo-o a partir de sua insero em um

processo scio-histrico determinado e determinante. Quanto aos procedimentos

metodolgicos, este trabalhado caracterizado pela pesquisa exploratria, que proporciona

uma viso geral e aproximativa acerca do objeto. Para a coleta de dados foi feita a pesquisa

bibliogrfica para a fundamentao terica, associada anlise documental de documentos

pblicos j produzidos pela SEPLAN. Este TCC composto de trs captulos e seus

principais resultados esto relacionados: 1) falta de habitao e o no acesso ao direito

moradia como expresso da questo social; 2) a histrica ausncia do Estado no trato das

questes sobre moradia e habitao e, por fim; 3) os avanos e desafios pertinentes a

instituicionalizao da Poltica Municipal de Habitao em Cascavel, materializada no Plano

Municipal de Habitao de Cascavel.

Palavras chave: Direito a Moradia; Poltica Habitacional; Plano Municipal de Habitao.

8

LISTA DE GRFICOS

GRFICO I - CRESCIMENTO DEMOGRFICO DA POPULAO BRASILEIRA

ENTRE FINAL DO SCULO XIX E INCIO DO SCULO XXI ......................................... 35

LISTA DE TABELAS

TABELA I - DOMICLIOS URBANOS INADEQUADOS*, SEGUNDO GRUPOS DE

MUNICPIOS - GRANDES REGIES E BRASIL 2000 ................................................... 43

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - LINHAS PROGRAMTICAS PREVISTAS NO PLANO NACIONAL DE

HABITAO .......................................................................................................................... 54

QUADRO 2 - AES DEFINIDAS PARA O OBJETIVO 3 DO PROGRAMA 1 DA

POLTICA MUNICIPAL DE HABITAO DE CASCAVEL, PARAN LINHA

PROGRAMTICA LPA5 ....................................................................................................... 55

QUADRO 3 - AES DEFINIDAS PARA O OBJETIVO 2 DO PROGRAMA 2 DA

POLTICA MUNICIPAL DE HABITAO DE CASCAVEL, PARAN LINHA

PROGRAMTICA LPA1 ....................................................................................................... 56

QUADRO 4 - AES DEFINIDAS PARA O OBJETIVO 1 DO PROGRAMA 3 DA

POLTICA MUNICIPAL DE HABITAO DE CASCAVEL, PARAN LINHA

PROGRAMTICA LPA1/LPA2 ............................................................................................. 58

QUADRO 5 - AES DEFINIDAS PARA O OBJETIVO 1 DO PROGRAMA 4 DA

POLTICA MUNICIPAL DE HABITAO DE CASCAVEL, PARAN LINHA

PROGRAMTICA LPA3 ........................................................................................................ 60

9

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

BNH Banco Nacional de Habitao

CEF Caixa Econmica Federal

COHABs Companhias de Habitao

COHAPAR Companhia de Habitao do Paran

DUDH Declarao Universal dos Direitos Humanos

FCP Fundao da Casa Popular

FGTS Fundao da Casa Popular

FNHIS Fundo de Garantia por Tempo de Servio

IAP Instituto de Aposentadorias e Penses

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

IPARDES Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econmico e Social

MBES Ministrio da Habitao e do Bem-Estar Social

MDU Ministrio de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente

MHU Ministrio da Habitao, Urbanismo e Meio ambiente

PAIH Plano de ao Imediata para Habitao

PlanHab Plano Nacional de Habitao

PMCMV Programa Minha Casa, Minha Vida

PMH Plano Municipal de Habitao de Cascavel

PNH Poltica Nacional de Habitao

PROFILURB Programa Financeiro de Lotes Urbanizados

PROMORAR Programa de Erradicao de Submoradia

SEPLAN Secretaria de Planejamento e Urbanismo

SERFHA Servio Especial de Recuperao de Habitaes Anti-higinicas

SFH Sistema Financeiro de Habitao

SHIS Subsistema de Habitao de Interesse Social

10

SHM Subsistema de Habitao de Mercado

SNH Sistema Nacional de Habitao

11

SUMRIO

RESUMO ................................................................................................................................... 7

LISTA DE GRFICOS............................................................................................................ 8

LISTA DE TABELAS .............................................................................................................. 8

LISTA DE QUADROS ............................................................................................................. 8

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ............................................................................. 9

INTRODUO ...................................................................................................................... 12

1 CAPITALISMO, ESTADO E QUESTO SOCIAL: FUNDAMENTOS PARA A

COMPREENSO DA PROBLEMTICA HABITACIONAL ......................................... 16

1.1 CONSIDERAES ACERCA DO MODO DE PRODUAO CAPITALISTA E

QUESTO SOCIAL: DETERMINAES DE EXPLORAO DA CLASSE

TRABALHADORA ................................................................................................................. 16

1.2 AS FUNES DO ESTADO E DA POLTICA SOCIAL NO CAPITALISMO

MONOPOLISTA: DA PRESERVAO E CONTROLE DA FORA DE TRABALHO S

POSSVEIS GARANTIAS DOS DIREITOS .......................................................................... 25

2 A MORADIA COMO DIREITO SOCIAL NO BRASIL E A POLTICA NACIONAL

DE HABITAO: UM PROCESSO EM CONSTRUO............................................... 32

2.1 AS PRIMEIRAS INICIATIVAS DE INTERVENO DO ESTADO NA

PROBLEMTICA HABITACIONAL (1920-1980) ............................................................... 33

2.2 O DIREITO SOCIAL A MORADIA E A ESTRUTURAO DA POLTICA

NACIONAL DE HABITAO NO BRASIL ........................................................................ 40

3 A IMPLANTAO E IMPLEMENTAO DA POLTICA MUNICIPAL DE

HABITAO NO MUNICPIO DE CASCAVEL-PR: A MATERIALIDADE

EXPRESSA NO PLANO MUNICIPAL DE HABITAO............................................... 46

3.1 O MUNICPIO DE CASCAVEL, PARAN: NOTAS INTRODUTRIAS ................... 46

3.2 A ESTRUTURA DO PLANO MUNICIPAL DE HABITAO DO MUNICPIO DE

CASCAVEL ............................................................................................................................. 49

3.3 ANLISE DOS PROGRAMAS DO PLANO MUNICIPAL DE HABITAO DE

CASCAVEL: A MATERIALIDADE (OU NO) DO DIREITO A MORADIA ................... 53

CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 65

REFERNCIAS...................................................................................................................... 68

12

INTRODUO

O presente Trabalho de Concluso de Curso (TCC) resultado da aproximao com o

tema Poltica Habitacional atravs do campo de estgio realizado no ano de 2014 e 2015/2016

na Prefeitura Municipal de Cascavel PR na Secretaria de Planejamento e Urbanismo/Setor

de Regularizao Fundiria. Neste perodo de grandes experincias e aprendizados, o contato

foi constante com o Programa Federal Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) desenvolvido

pelo municpio, cujo objetivo central o incentivo a produo e aquisio de novas unidades

habitacionais urbanas ou rurais, especialmente as famlias de baixa renda. No entanto, os

conjuntos habitacionais construdos pelo Programa no atendem a grande demanda pelo

direito a moradia, isto , por moradia digna, que chega at a Secretaria.

Diante das diversas leituras, trabalhos e discusses que esse momento da formao

acadmica propiciou, foi despertada a inquietao sobre a temtica Poltica Habitacional,

objeto de estudo deste TCC, que foi problematizado atravs das seguintes questes

norteadoras: Considerando que a problemtica do dficit habitacional e a falta de condies

dignas de moradia so expresses da questo social, vivenciadas pela classe trabalhadora

no contexto da sociedade capitalista de produo, em que medida o Estado brasileiro garante

este direito?. Quais os desafios e avanos presentes na implantao e implementao do

Plano Municipal de Habitao de Cascavel, Paran?.

A moradia um direito social, expresso na Constituio Federal e se difere do acesso a

habitao, uma vez que o direito a moradia garantido e materializado atravs de uma

Poltica Social e, neste caso, a Poltica de Habitao, exigindo-se muito alm da construo de

paredes e telhados ao se tratar do direito a moradia digna. Por sua vez, o dficit habitacional

significativo no pas e impacta diretamente na condio de existncia e de vida da classe

trabalhadora que vende sua fora de trabalho e no da classe burguesa. Ou seja, ao se

tratar de programas habitacionais sob responsabilidade do Estado (neste caso a co-

responsabilidade entre os trs ente federados: unio, estados e municpios), todos eles esto

destinados a programas habitacionais de interesse social, voltados para a classe trabalhadora

de baixa renda. Significa que o estado reconhece a destituio histrica deste direito?. Que

reconhece o processo de explorao da classe trabalhadora e de sua falta de condio para

construir sua habitao, sua moradia?. Certamente no!. Se existe uma Poltica Social de

Habitao, absolutamente recente no Brasil uma vez que o direito a moradia s foi

reconhecido no ano 2000, esta resulta da presso da classe trabalhadora no seu histrico

13

enfrentamento a ordem burguesa existente, cuja produo socializada e a apropriao do que

se produz privado, ou seja, todos ajudam a produzir e poucos tm acesso ao que se produz.

Conhecer e entender as determinaes sociais, polticas e econmicas da sociedade

capitalista de produo, da configurao do Estado neste contexto torna-se, ento, fundante

para entender a falta de habitao e toda infraestrutura necessria para a garantia do direito

social a moradia.

Neste sentido, delimitou-se como objetivo geral desta pesquisa apreender os

processos scio-histricos determinantes da problemtica habitacional e a interveno do

Estado na garantia ou no - do direito a moradia e, objetivos especficos: a) discutir os

fundamentos sociais, polticos e econmicos da sociedade de produo capitalista e os

impactos na condio de vida da classe trabalhadora e nas condies de habitao; b)

compreender o processo histrico da instituio do direito a moradia no Brasil e; c)

conhecer o processo de implantao e implementao Poltica Municipal de Habitao no

municpio de Cascavel, Paran.

O mtodo utilizado no estudo busca analisar o objeto na sua totalidade e dinamicidade

entre as suas multideterminaes e contradies, compreendendo o mesmo inserido em um

processo histrico. Este mtodo se constituiu no mtodo dialtico de compreenso da

realidade. Para Minayo (1994) [...] o conhecimento uma construo que se faz a partir de

outros conhecimentos sobre os quais se exercita a apreenso, a crtica e a dvida. (MINAYO,

1994, p. 89). Assim, a metodologia constitui-se no tipo exploratrio que, de acordo com Gil

(2008), tem [...] o objetivo de proporcionar viso geral, de tipo aproximativo, acerca de

determinado fato. (GIL, 2008, p. 29). Considerando ser este um estudo terico, se fez

necessrio a leitura e estudos bibliogrficos e anlise de documentos, por possibilitar o

dilogo com os autores para construir a fundamentao terica, bem como, a apropriao de

processos concretos sobre a Poltica de Habitao, neste caso do municpio de Cascavel, a

partir de materiais j elaborados e publicizados pela SEPLAN.

Assim, no primeiro captulo trabalha-se com autores que discutem categorias

analticas fundamentais para apreender o processo scio-histrico de construo da Poltica

Social de Habitao: o modo de produo capitalista, Estado, Poltica Social e Questo

Social.

O desenvolvimento do modo de produo capitalista no mundo trouxe profundas

modificaes na esfera poltica, econmica e cultural das sociedades, mas foi principalmente

na esfera social, que os rebatimentos - negativos - foram sentidos com maior impacto,

especificamente na classe sustentadora desse modelo, a classe trabalhadora. Desde o primeiro

14

estgio de evoluo do capitalismo, iniciado no sculo XVI, denominado de comercial e/ou

mercantil, passando pelo estgio concorrencial, at chegar ao mais elevado grau de

desenvolvimento, concretizado pelos monoplios, o capital se difunde e se amplia pelos

pases, firmando diversas estratgias de dominao (quase inabalveis) sob o intuito de

aumentar seus lucros e, assim, torna-se o grande capital com potncia hegemnica mundial.

Cabe ressaltar, dentre as estratgias estabelecidas, a captura do Estado, enquanto Poder

Pblico, para agir em favor dos interesses burgueses, de tal modo a assegurar as condies

necessrias produo e reproduo do capitalismo, configurando-o em, nos termos de Netto,

o Comit Executivo da burguesia e, ainda, novas aes e ideologias so colocadas em

prtica, especialmente diante das crises cclicas do capital, como a reestruturao produtiva

sob os ditames do neoliberalismo, a partir da dcada de 1970, que impactaram diretamente no

mundo do trabalho e na vida da classe trabalhadora.

Para que ocorresse o amadurecimento do capitalismo, a explorao da fora de

trabalho intensificada e as desigualdades sociais foram acirradas, expressas nas mais

variadas expresses da questo social, com destaque a falta de moradia, fundadas na

contradio capital (representados pela minoria, donos dos meios de produo) e trabalho

(representados pela maioria detentora somente da fora de trabalho). neste contexto recente

da sociedade capitalista de produo que ocorre a destituio de direitos sociais,

historicamente conquistados s custas de lutas, enfrentamentos e organizao de movimentos

dos trabalhadores, bem como, a ampliada desresponsabilizao do Estado na garantia desses

direitos. Desresponsabilizao esta que faz parte dos ajustes neoliberais que, tambm,

reconfiguram a funo do Estado no contexto capitalista neoliberal.

No entanto, em busca de legitimao frente aos conflitos e tenses entre as classes

sociais e, tambm, para preservao e controle da fora de trabalho, o Estado passa a intervir

nas expresses da questo social, via Poltica Social, de forma parcial e fragmentada, no

trazendo solues, apenas amenizando os problemas decorrentes desse processo de

acumulao.

Nesse sentido, tm-se na complexa totalidade do desenvolvimento do modo de

produo capitalista mundial, as determinaes essenciais que firmam historicamente a

Poltica Social de Habitao, tratada no segundo captulo. Para tanto, so utilizados autores

que discutem as aes estatais no mbito habitacional em determinado perodo, ou seja, que

trazem reflexes acerca da construo scio-histrica desta Poltica no Brasil, como meio de

acesso (ou no) ao direito social a moradia.

15

Aborda-se as mais variadas intervenes e propostas do Estado, na maioria parciais e

fragmentadas, frente s reivindicaes da classe trabalhadora em relao problemtica da

habitao, a partir do crescimento demogrfico urbano brasileiro desenfreado durante o sculo

XX, quando a populao migrante que chega a cidade, sem recursos e sem alternativas, so

obrigadas a abrigar-se em lugares inadequados, insalubres e at mesmo desumanos.

O direito a moradia sequer foi discutido ou entrou em pauta no captulo que trata dos

Direitos Sociais na Constituio Federal de 1988. Por isso a regulamentao tardia do direito

social moradia, atravs da Emenda Constitucional n 26 de 2000, quando to somente neste

ano (2000), foi inclusa a moradia no conjunto dos direitos sociais previstos no artigo 6 da

Constituio Federal. Consequentemente, a materialidade do direito social, pelo menos no

marco legal, exige a implantao e implementao de uma Poltica Pblica, neste caso, a atual

Poltica Social de Habitao, aprovada em 2004.

No terceiro e ltimo captulo, as discusses so centradas na implantao e

implementao da Poltica Municipal de Habitao de Cascavel PR, que ocorreu em 2010,

materializada no Plano Municipal de Habitao, um importante instrumento de planejamento

e norteador da execuo desta Poltica Pblica. Apresenta-se a forma de planejamento,

elaborao e estruturao do Plano, feito pela gesto municipal junto aos diversos setores da

sociedade civil, bem como, revelado como ocorre o acesso (ou no) ao direito da moradia

em nvel municipal, atravs da anlise dos objetivos, metas e indicadores, se estes foram

alcanados ou no, traados nos Programas que compe o Plano Municipal de Habitao e

definidos para atendimento do histrico dficit habitacional existente no municpio, tendo um

horizonte temporal de dez anos (2010-2020).

Por fim, entende-se que este trabalho no est concludo. Merece aprofundar anlises e

fazer relaes com outras variveis, com outros indicadores. Portanto, este estudo, ainda que

exploratrio, pretende contribuir para a produo de conhecimentos sobre o tema e estimular

a construo de novos questionamentos para avanar no debate sobre a problemtica no

contexto da formao profissional e acadmica e, contribuir, especialmente, na garantia do

direito a moradia ao disponibilizar este trabalho para o domnio pblico, priorizando a classe

trabalhadora e para os profissionais atuantes na rea, de forma que contribua para a luta em

defesa da garantia e efetivao dos Direitos Sociais, neste caso a moradia. A pesquisa nesta

rea torna-se relevante, a medida que trar a tona uma discusso pouco valorizada no mbito

dos gestores, da sociedade e dos usurios da poltica, oferecendo maior visibilidade s

particularidades do Plano Municipal de Habitao de Cascavel, como os fatores que levaram a

construo do mesmo no ano de 2010.

16

1 CAPITALISMO, ESTADO E QUESTO SOCIAL: FUNDAMENTOS PARA A

COMPREENSO DA PROBLEMTICA HABITACIONAL

Para tratar dos aspectos que envolvem a problemtica relacionada ao direito moradia

- que se instrumentaliza e materializa pelo direito habitao - da classe trabalhadora, bem

como os desafios, a implementao da Poltica Social de Habitao, objeto de estudo

delimitado neste Trabalho de Concluso de Curso (TCC), faz-se necessrio discutir os

fundamentos sociais, polticos e econmicos da sociedade de produo capitalista e os

impactos na condio de vida da classe trabalhadora e nas condies de habitao, objetivo

especfico problematizado neste Captulo. Entende-se que a problemtica que envolve a falta

ou as condies inadequadas de moradia/habitao da e para a classe trabalhadora encontra

seus fundamentos determinantes e determinados pelo modo de produo capitalista e na

configurao do Estado por ele capturado (NETO, 1992). As contradies e desigualdades

sociais so intrnsecas a esse modelo de produo, manifestas na Questo Social1, dentre

estas, a falta de habitao ou o no acesso a moradia digna da classe trabalhadora uma de

suas expresses evidenciadas. Nessa direo, ocorre uma determinada e consequente

interveno pblica estatal, via Polticas Sociais, no sentido de garantir a reproduo da fora

de trabalho e/ou como espao de luta e garantia de direitos dos trabalhadores.

1.1 CONSIDERAES ACERCA DO MODO DE PRODUAO CAPITALISTA E

QUESTO SOCIAL: DETERMINAES DE EXPLORAO DA CLASSE

TRABALHADORA

O desenvolvimento do modo de produo capitalista no mundo, de acordo com Neto e

Braz (2011, p. 180), inicia-se no sculo XVI com o estgio denominado capitalismo

comercial e/ou mercantil, momento em que a burguesia e o proletariado2 se consolidam como

classes sociais3 distintas e antagnicas medida que a classe burguesa, formada a partir de

alguns grupos mercantis, possuidora dos meios fundamentais de produo, enquanto a

1 Concorda-se com Netto (2001, p. 45) na utilizao das aspas ao se referir a expresso da questo social para

diferenciar do uso da mesma expresso pelo pensamento conservador, indicando a anlise da questo social na

perspectiva crtica. 2 Para Marx, por proletrio [...] deve entender-se economicamente o assalariado que produz e expande o capital

e lanado rua logo que se torna suprfluo s necessidades de expanso do monsieur capital (MARX, 1980,

p. 714). 3 No entender de Batista, Com a fora de trabalho livre no mercado e com o capital primitivo acumulado em

algumas ramificaes produtivas e reprodutivas, foi colocado em movimento o desenvolvimento do modo de

produo capitalista. nesse cenrio que a fora de trabalho, ao se relacionar com o capital, ampliou seus

potenciais [...]; porm, ao mesmo tempo, os operrios avanavam como classe social e ganhavam autonomia

para combater e negar a prpria classe que a criou. (BATISTA, 2014, p. 36).

17

classe trabalhadora possui apenas a fora de trabalho, isto , a energia fsica e mental

depreendida pelo trabalhador no processo de produo - em troca de um salrio, geralmente

mnimo - necessrio para gerar e maximizar os lucros dos capitalistas, detentores dos meios

de produo. Acumular capital , portanto, aumentar o proletariado, manifesta Marx (1980,

p. 714), isto porque, a fora de trabalho tem de incorporar-se continuamente ao capital [...]

como meio de expandi-lo, no pode livra-se dele. Sua escravizao ao capital se dissimula

apenas com a mudana dos capitalistas a que se vende, e sua reproduo constitui, na

realidade, um fator de reproduo do prprio capital. (MARX, 1980, p. 714).

Este estgio inicial do capitalismo vai at meados do sculo XVIII, quando o

capitalismo concorrencial entra em cena, revelando as principais caractersticas estruturais

deste modo de produo, como as lutas de classes4 fundadas na contradio capital5 e

trabalho6, decorrentes da explorao desenfreada da fora de trabalho do proletariado - pelos

burgueses - com a finalidade de aumentar seus lucros, evidenciando o acirramento das

desigualdades sociais provocadas pelo capitalismo que se expressam em diferentes

manifestaes da questo social7.

Este modo de produo, na sua expanso para alm do circunscrito em um

determinado espao geogrfico ou Estado Nao, cria e amplia o potencial da produo com o

surgimento do processo de produo industrial, deflagrado especialmente com o irromper da

Revoluo Industrial8, com nfase a partir dos anos de 1850. Respectivamente, seu mercado

4 As primeiras lutas de classe (trabalhadores x burguesia) no dispunham de conscientizao, conforme

avanaram adquiriam uma politizao. Porm, a reao da burguesia aos primeiros protestos operrios foi a

represso e brutalidade, alm de ameaas de desemprego junto a reduo de trabalho vivo no interior das

fbricas, considerando as novas tecnologias empregadas na produo. (NETTO e BRAZ, 2011, p. 183). 5 No contexto capitalista de produo, o capital entendido como uma relao social, no tido como uma coisa

ou um conjunto de objetos, ele s existe na medida em que subordina a fora de trabalho; mesmo que se expresse

atravs de coisas, tais como dinheiro, objeto, mercadorias, etc. (NETTO e BRAZ, 2011, p. 30-34). 6Em relao ao trabalho, os autores argumentam que uma atividade teleolgica, isto , que idealizada

anteriormente pelo sujeito, que transforma a natureza, ao mesmo tempo em que transforma o homem que a

executa, o trabalho o mediador da relao homem e natureza, constituindo o ser social. (NETTO e BRAZ,

2011, p. 108). 7A questo social, de acordo com Iamamoto, refere-se ao Conjunto das expresses das desigualdades sociais

engendradas na sociedade capitalista madura, impensveis sem a intermediao do Estado. Tem sua gnese no

carter coletivo da produo, contraposto apropriao privada da prpria atividade humana - o trabalho -, das

condies necessrias sua realizao, assim como de seus frutos. indissocivel da emergncia do trabalhador

livre, que depende da venda de sua fora de trabalho como meio de satisfao de suas necessidades vitais.

(IAMAMOTO, 2001, p. 16-17). 8 A substituio das ferramentas pelas mquinas, da energia humana pela energia motriz e do modo de

produo domstico pelo sistema fabril constituiu a Revoluo Industrial; revoluo, em funo do enorme

impacto sobre a estrutura da sociedade, num processo de transformao acompanhado por notvel evoluo

tecnolgica. Distinguem-se trs etapas no processo de industrializao: na primeira Revoluo Industrial (1760

a 1850), preponderam a produo de bens de consumo, especialmente txteis, e a energia a vapor; na segunda

(1850 a 1900), a indstria de bens de produo de desenvolve, as ferrovias se expandem; surgem novas formas

de energia, como a hidreltrica e a derivada do petrleo, bem como o transporte se revoluciona, com a inveno

18

toma amplitude mundial, com o estabelecimento de relaes econmicas entre diversos

povos, Estados e naes. Ao final do sculo XIX, o estgio concorrencial se esgota, sendo

elevado ao capitalismo monopolista e/ou imperialista, ainda em vigor, com caractersticas

especficas que sero objeto de anlise no decorrer do texto. (NETTO e BRAZ, 2011, p. 179-

189).

O capitalismo um sistema no qual os meios de produo so predominantemente de

propriedade privada e seus elementos fundantes consistem na propriedade privada, na diviso

social e tcnica do trabalho e na produo e troca de mercadorias. (CATANI, 1984, p. 20). As

relaes, as pessoas e as coisas fazem parte de um movimento em que so transformadas em

mercadorias, comercializveis e possibilitadoras de lucro e, o mesmo acontece com a fora de

trabalho, vendida pelo operrio em troca de um salrio, porm, ela torna-se uma mercadoria

especial na medida em que detm a condio de produzir valor de uso e valor de troca9.

Neste sentido, a realidade social de cada regio, territrio ou pas, pouco a pouco foi se

modificando, em momentos distintos, at o modo de produo capitalista se tornar

hegemnico, considerando as particularidades histricas, regionais e culturais de cada qual.

Se, por um lado, a formao dos centros urbanos aumentou a riqueza socialmente produzida,

por outro, concomitantemente, expandiu a pobreza, a misria, desemprego, a falta de garantias

e direitos sociais da populao (e aqui, ressalta-se a falta do direito moradia), isto , as

mazelas sociais vieram tona, dando forma e contedo questo social, cujas expresses

s podem ser entendidas no contexto capitalista de produo, incluindo-se a, tambm, o

contingente da classe trabalhadora excedente, que constitui o exrcito industrial de reserva,

igualmente necessrio reproduo do capital. Nesta perspectiva, de acordo com Marx,

[...] se uma populao trabalhadora excedente produto necessrio da

acumulao ou do desenvolvimento da riqueza no sistema capitalista, ela se

torna, por sua vez, a alavanca da acumulao capitalista, e mesmo condio de existncia do modo de produo capitalista. Ela constitui um exrcito

industrial de reserva disponvel, que pertence ao capital de maneira to

da locomotiva e do barco a vapor; e a terceira (1900 at hoje) a automatizao, a comunicao, a indstria

qumica e eletrnica, a engenharia gentica e a robtica avanam significativamente. (PILETTI, 1996, p. 178). 9 De acordo com os autores, Netto e Braz (2011), [...] s constituem mercadorias aqueles valores de uso que

podem ser reproduzidos, isto : produzidos mais de uma vez, repetidamente. E ainda, [...] a mercadoria um

valor de uso que se produz para a troca, para a venda; os valores de uso produzidos para o autoconsumo do

produtor no so mercadorias somente valores de uso que satisfaam necessidades sociais (humanas) de

outrem e, portanto, sejam requisitados por outrem, constituem mercadoria; esta, pois, dispe de uma dimenso

que sempre vem vinculada ao seu valor de uso: a sua faculdade de ser trocada, vendida (o seu valor de troca).

Assim, portanto, a mercadoria uma unidade que sintetiza valor de uso e valor de troca. (NETTO e BRAZ,

2011, p. 89-90). Assim, considera-se valor de uso, quando a mercadoria produzida para usofruto (suprir suas

necessidades) prprio do produtor; e valor de troca, quando para alm se suas prprias necessidades, o produtor

vende ou troca a mercadoria para usofruto de outrem.

19

absoluta como se fosse criado e mantido por ele. Ela proporciona o material

humano a servio das necessidades variveis de expanso do capital e

sempre pronto para ser explorado [...]. (MARX, 1980, p. 733-734).

Neste contexto, o trabalho passa a ser assalariado e o espao urbano sobrepe-se ao

espao rural, de maneira diferenciada em cada pas, dada instalao e ampliao da presena

das grandes indstrias emergentes nas cidades - a partir da Revoluo Industrial - que

enfraquecem os pequenos ofcios, obrigando os trabalhadores, que anteriormente conseguiam

o seu sustento atravs da manufatura ligado a terra ou ao tear manual, arriscar sua vida e da

famlia nos centros industriais em busca de um salrio para garantir a sobrevivncia. Nessas

circunstncias, ocorre o crescimento absoluto do proletariado urbano, na condio de

trabalhador desempregado ou parcialmente empregado.

Ao analisar o mecanismo da produo capitalista e seu impacto na realidade social

inglesa da dcada de 186010, Marx na sua obra O Capital (1980, p. 746), especialmente no

Captulo XXIII que trata sobre A lei Geral da Acumulao Capitalista, afirma que Esta lei

da sociedade capitalista no se encontra entre selvagens, nem entre colonos civilizados.

Lembra a reproduo em massa de espcies animais cujos indivduos so dbeis e

constantemente perseguidos. E argumenta ainda que, [...] o mais profundo sedimento da

superpopulao relativa vegeta no inferno da indigncia, do pauperismo. [...] O pauperismo

constitui o asilo dos invlidos do exrcito ativo dos trabalhadores e o peso morto do exrcito

industrial de reserva. (MARX, 1980, p. 746-746).

Desse modo, conhecendo os mecanismos e condies indispensveis para a

acumulao de capital possvel compreender a conexo direta com a situao habitacional

na qual a classe trabalhadora se encontra desde os primrdios do modo de produo

capitalista, quando os centros urbanos e seu processo de industrializao atraram inmeros

trabalhadores para perto das nascentes indstrias e, por consequncia da prpria explorao da

fora de trabalho e da falta completa de infraestrutura e condies dignas para viver, os

trabalhadores so obrigados a se aglomerar em locais subumanos para morar com a famlia.

Afirma Marx que, [...] quanto maior a centralizao dos meios de produo, tanto maior o

amontoamento correspondente de trabalhadores no mesmo espao e, portanto, quanto mais

rpida a acumulao capitalista, tanto mais miserveis as habitaes dos trabalhadores.

(MARX, 1980, p. 764).

10 De acordo com Marx, ao estudar a condio da classe trabalhadora inglesa, no ltimo semestre de 1866, em

Londres, foram despedidos 80 a 90 mil trabalhadores, vivendo em situao de penria, mal nutridos e vivendo

em habitaes superlotadas e inadequadas. (MARX, 1980, p.744, Nota de Rodap n. 85).

20

medida que ocorre o avano do modo de produo capitalista, com centralidade nos

espaos urbanos, tem-se concomitante as mudanas significativas da configurao espacial

das cidades e seus entornos, no compasso progressivo apropriao privada da riqueza

socialmente produzida. Neste sentido se justifica, por um lado, a construo de ferrovias,

palcios, lojas, centros comerciais, praas, abertura de estradas e alargamento de ruas e, por

outro lado, as demolies de velhas casas, o aumento dos preos dos aluguis e imveis e a

expulso da populao pauperizada s ruas, s quais acompanhadas de seus poucos pertences,

buscam um novo lar, que geralmente so peas, becos ou ptios confinados bem piores se

comparados a antiga moradia, totalmente insalubres (sem espao, luz, ventilao, limpeza),

onde homens, mulheres e crianas dormem aglomerados e ainda pagam um aluguel carssimo

em relao s condies de habitabilidade oferecidas. (MARX, 1980, p. 764-769). Sendo

assim, Marx explicita bem essa relao entre capital e a questo social referente

precariedade da moradia, quando afirma:

Quanto mais rpido se acumula o capital numa cidade industrial ou

comercial, tanto mais rpido o afluxo do material humano explorvel e

tanto mais miserveis as habitaes improvisadas dos trabalhadores. [E,

ainda, devido ao] fluxo e refluxo do capital e do trabalho, a situao

habitacional de uma cidade industrial pode ser hoje suportvel, para se tornar

repugnante amanh. (MARX, 1980, p. 769).

Portanto, a misria habitacional agravada e estendida conforme as bases de produo

e reproduo do capital se intensificam no decorrer da histria. O modo de produo

capitalista cria modelos diferentes para garantir o lucro e, desde o incio do sculo XX at a

dcada de 1970, tem-se como referncia o binmio fordismo11/taylorismo12 que diz respeito

ao sistema produtivo baseado na produo em massa de mercadorias, caracterizando uma

produo homogeneizada e verticalizada, com o trabalho parcelar e fragmentado, fazendo

11Por fordismo entende-se: ser uma mudana tcnica ocorrida no mundo do trabalho atravs da introduo da

linha de montagem e da eletricidade, bem como, uma nova forma de regulao das relaes sociais. Ford

combinava produo em massa com consumo de massa, isto , uma nova forma de reproduzir a fora de trabalho

foi posto em prtica. (BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 87). 12No entender de Neto, o taylorismo prope a dissoluo do processo de trabalho das especialidades dos

trabalhadores; a separao de concepo e execuo e a utilizao do monoplio do conhecimento para controlar

cada fase do processo de trabalho e seu modo de produo, ou seja, o capital passa a controlar o trabalho atravs

do controle das decises que so tomadas no curso do trabalho. J o fordismo caracteriza-se como um

desenvolvimento do taylorismo, pois a administrao pelo capital da forma de execuo das tarefas individuais

se d de uma forma coletiva, pela via da esteira. (NETO, 1984, p. 21-26). Ainda, vale ressaltar, que neste

momento ocorre a incorporao da cincia ao processo de trabalho, por um lado, no fordismo aperfeioam a

mquina, atravs da cientificidade, ampliando o tempo de trabalho excedente da produo, por outro, no

taylorismo o conhecimento cientfico serve para que o capital explore as particularidades do homem enquanto

mquina, bem como para aperfeioar os mecanismos de controle dos passos do trabalhador coletivo. (NETO,

1984, p. 28-34).

21

com que o trabalhador repetisse demasiadamente uma dada atividade. As esteiras introduzidas

na linha de produo impunham - e impe - o ritmo e os tempos necessrios realizao das

tarefas. De acordo com Antunes, [...] Esse processo produtivo caracterizou-se [...] pela

mescla da produo em srie fordista com o cronmetro taylorista, alm da vigncia de uma

separao ntida entre elaborao e execuo. (2002, p. 37). Tal processo produtivo iniciou

na indstria automobilstica dos Estados Unidos da Amrica, espalhando-se logo aps para

quase todo processo industrial capitalista mundial e, no final dos anos 1960 e incio dos anos

1970, sinalizava seu esgotamento13 devido a alguns fatores centrais, como a constante luta de

classes ocorridas neste perodo. De acordo com Antunes,

Alm do esgotamento econmico do ciclo de acumulao (manifestao

contingente da crise estrutural do capital), as lutas de classes ocorridas ao

final dos anos 60 e incio dos anos 70 solapavam pela base o domnio do

capital e afloravam as possibilidades de uma hegemonia (ou uma contra-

hegemonia) oriunda do mundo do trabalho. (2002, p. 42).

Este entendimento reiterado por Batista (2014, p. 58-59), ao afirmar, tambm, que a

partir da dcada de 1970 houve o esgotamento do padro de acumulao fordista e taylorista.

Todavia, estes modelos de produo consolidaram a indstria e o processo de trabalho,

fundamentado na explorao da classe da classe trabalhadora, at a segunda metade do sculo

XX, com a mundializao do capital baseado em elevados ndices de lucro, associados a

concentrao urbana da classe trabalhadora, a superproduo e ao consumo de mercadorias

criadas pelo capital, dentre outros. Para tal, foi imprescindvel a mxima explorao da fora

de trabalho, seja ela ocupada ou excedente (exrcito industrial de reserva), dentre as quais o

destaque ao pagamento mnimo da jornada de trabalho, sob forma de salrio, o que dificulta

as condies de vida da classe trabalhadora, isto , impossibilita o atendimento das

necessidades bsicas e condies mnimas de existncia, incluindo-se neste contexto a

impossibilidade de acesso a moradia digna.

Mesmo diante da potncia mundial do capitalismo, preciso considerar as crises

cclicas inerentes e que impactam no mundo do trabalho, isto , na vida dos trabalhadores. A

histria demarca vrios perodos de crises gerados por esse modo de produzir e, conforme

Batista (2014, p. 39), estas so intrnsecas ao capital. Para fins deste estudo destaca-se a crise

estrutural iniciada na dcada de 1970, que estimulou os capitalistas a reordenarem os

processos de trabalho e implantarem novas regras poltico-econmicas de interesse

13 O que no significa seu desaparecimento, considerando que ainda existem processos industriais neste estes

modelos de produo.

22

sociedade burguesa, denominada de reestruturao produtiva14, como um dos indicadores do

capitalismo monopolista para atender os ditames do neoliberalismo15. Este processo -

neoliberalismo e reestruturao produtiva - no pode ser tratado de forma isolada ou

autnoma, uma vez que so unificados pela mundializao financeira do capital em curso,

pois, nos termos de Iamamoto, [...] o capitalismo financeiro integra, na expanso

monopolista, processos econmicos, polticos e ideolgicos, que alimentam o crescente

movimento de valorizao do capital. (IAMAMOTO, 2008, p. 114).

Ressalta-se que na era dos monoplios, que perdura at os dias atuais, ocorrem

profundas transformaes na dinmica da sociedade, onde as contradies e antagonismos j

existentes no estgio concorrencial so aprofundadas e (re)combinadas com novas

contradies, tais como, a ampliao da explorao da fora de trabalho, a preservao do

exrcito industrial de reserva, a flexibilizao do trabalho, a financeirizao mundial do

capital, a destituio dos direitos sociais historicamente conquistados pela classe trabalhadora

e, a consequente desresponsabilizao do Estado na garantia destes direitos.

no capitalismo monopolista, em especial a partir da dcada de 1970, que a produo

e o capital so centralizados nas mos dos grupos industriais com um novo parceiro, que

so as instituies financeiras e o setor bancrio, vitais na organizao monoplica, tendo em

vista que o objetivo principal o de aumentar os lucros pelo controle monopolista dos

mercados. (NETTO, 1992, p. 16). Ou seja, a essncia do modo de produo permanece a

mesma, todavia, os monoplios industriais surgem concomitantemente alterao do papel

dos bancos e de outras instituies financeiras, quando estes passam a se associar aos

capitalistas industriais, ocorrendo assim, a fuso do capital industrial e o bancrio, formando o

capital financeiro, o qual determina na idade do monoplio as relaes polticas, econmicas e

sociais dos pases capitalistas.

Na expanso monopolista, de acordo com Netto, ocorre a internacionalizao da

produo, conduzindo [...] ao pice a contradio elementar entre a socializao da produo

e a apropriao privada (1992, p. 20), onde grupos de monoplios controlam a produo para

14 Entende-se por Reestruturao Produtiva uma Revoluo tecnolgica e organizacional ocorrida na esfera

produo, como resposta do capital frente aos dficits de lucros da dcada de 1970. Sua principal caracterstica

a gerao de um desemprego crnico e estrutural. Esse desemprego implicou uma atitude defensiva e ainda

mais corporativa dos trabalhadores formais e um intenso processo de desorganizao poltica de resistncia

operria e popular (BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 124). 15 Com base nas autoras, Behring e Boschetti, o neolieralismo torna-se hegemnico a partir de 1970 e se

caracteriza pela defesa de princpios contra a interveno estatal na regulao das relaes de trabalho, expresso

nos cortes dos gastos sociais; nas reformas fiscais; na naturalizao das taxas de desemprego; nas privatizaes;

etc, pois para os neoliberais, as polticas sociais impedem o desenvolvimento econmico. Ou seja, o livre

movimento de capitais a tnica deste modelo ideolgico. (BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 126).

23

alm das fronteiras nacionais. Iamomotto tambm argumenta que a mundializao da

economia

[...] est ancorada nos grupos industriais transnacionais, resultantes de

processos de fuses e aquisies de empresas em um contexto de

desregulamentao e liberalizao da economia. Esses grupos assumem

formas cada vez mais concentradas e centralizadas do capital industrial e se

encontram no centro da acumulao. As empresas industriais associam-se s

instituies financeiras [...] que passam a comandar o conjunto da

acumulao, configurando um modo especfico de dominao social e

poltica do capitalismo, com suporte dos Estados Nacionais. (IAMAMOTO,

2008, p. 108).

Para assegurar a mxima dos lucros e diante das crises cclicas deste modo de

produo capitalista, ocorre o amadurecimento do processo produtivo com a imerso na era

da acumulao flexvel, capitaneada como modelo Toyota16 que [...] articula um conjunto de

elementos de continuidade e descontinuidade que acabam por conformar algo relativamente

distinto do padro taylorista/fordista de acumulao. (ANTUNES, 2002, p. 52). A nova

forma de organizao do trabalho tem a finalidade de intensificar as condies de explorao

da fora de trabalho, fortalecendo a extrao da mais-valia absoluta e da mais-valia relativa17.

Diminui-se o contingente de trabalhadores nas empresas, aumentando os ndices de

produtividade em menor tempo e apropriando-se das atividades intelectuais do trabalho, com

a incorporao da maquinaria automatizada e informatizada. Destaca-se ainda a destruio do

sindicalismo de classe, que convertido em sindicalismo corporativo de parceria e/ou

empresa, enfraquecendo a classe operria.

O toyotismo, segundo Antunes (2002), possui algumas caractersticas prprias: a

produo variada e heterognea, atendendo a todo tipo de demanda; baseia-se no trabalho

operrio em equipe, com multifuncionalidades, polivalncia e qualificao; o operrio opera

simultaneamente vrias mquinas, tornando o trabalho flexvel; seu princpio norteador o

just in time, que otimiza o tempo de produo; seus estoques so mnimos se comparados ao

fordismo; as empresas so estruturadas horizontalmente; as fbricas/indstrias ordenadas com

base no modelo toyotista, estende parte da produo a empresas terceirizadas ou

16 O Toyotismo (ou ohnismo, de Ohno, engenheiro que o criou na fbrica Toyota), como via japonesa de

expanso e consolidao do capitalismo monopolista industrial, uma forma de organizao do trabalho que

nasce na Toyota, no Japo ps-1945, e que, muito rapidamente, se propaga para as grandes companhias daquele

pas. (ANTUNES, 2002, p. 54). 17Conforme explicitado por Netto e Braz (2011, p. 116 a 119) a mais-valia valor excedente, apropriado pelo

capitalista, advindo do tempo de trabalho que excede o tempo de trabalho necessrio produo do valor

referente ao salrio do trabalhador, durante sua jornada de trabalho. O incremento da extrao da mais-valia

tanto pode ser absoluta, consistindo na ampliao da jornada de trabalho ou na intensificao do ritmo de

trabalho (controle impostos aos operrios), quanto relativa, na qual as inovaes tecnolgicas e as conquistas

cientficas contribuem para o aumento do tempo de trabalho excedente sem aumentar a jornada de trabalho.

24

subcontratadas; criam-se os Crculos de Controle de Qualidade (CQQs) constitudos por

grupos de trabalhadores instrudos pelo capital para avaliar seu trabalho e desempenho a fim

de melhorar a produtividade e, ainda, encontra-se no padro Toyota18 a estabilidade do

emprego para uma parcela nfima dos trabalhadores, isto , cerca de 25 a 30% da populao

trabalhadora encontra-se no contexto da estabilidade do emprego, com destaque aos

trabalhadores homens e considervel excluso das trabalhadoras, alm de ganhos salariais

intimamente vinculados ao aumento de produtividade. (ANTUNES, 2002, p. 54-55).

O modelo japons rapidamente estendeu-se pelo mundo Ocidental, iniciado nos pases

centrais at chegar aos perifricos, adaptando-se conforme as condies especficas

econmicas, sociais, polticas e culturais de cada pas. Antunes (2002) chama ateno para as

transformaes que se operam dentro do processo produtivo e repercutem no mundo do

trabalho, afetando principalmente a classe trabalhadora, tais como:

Desregulamentao enorme dos direitos do trabalho, que so eliminados

cotidianamente em quase todas as partes do mundo onde h produo

industrial e de servios; aumento da fragmentao no interior da classe

trabalhadora; precarizao e terceirizao da fora humana que trabalha;

destruio do sindicalismo de classe e sua converso num sindicalismo dcil,

de parceria (partnership), ou mesmo em um sindicalismo de empresa.

(ANTUNES, 2002, p. 53).

Desse modo, fica ntido que quem sofre os impactos das profundas modificaes

realizadas no sistema capitalista a classe trabalhadora, com seus direitos sendo restringidos,

enquanto a classe burguesa se beneficia dos lucros advindos da intensa explorao dos

operrios. Este processo de reestruturao produtiva do capital torna-se a base material do

projeto ideopoltico neoliberal19, incluindo-se a propagao deste pelo Estado Burgus.

(ANTUNES, 1992, p. 57-58). Nesta direo, importante compreender de que ou de qual

Estado se trata, uma vez que este , a priori, o responsvel pela interveno nas expresses da

18 No sistema ou padro Toyota a produo se sustenta num processo produtivo flexvel , permitindo ao operrio

operar vrias mquinas, em mdia cinco mquinas, rompendo com a relao um homem por mquina

fundamentada no fordismo. (ANTUNES, 1997, p. 26). 19 O liberalismo predomina a partir de meados do sculo XIX at as primeiras dcadas do sculo XX,

caracteriza-se pela regulao das relaes sociais pelo mercado, supondo a ausncia de interveno estatal.

(BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 56). No alterando profundamente as concepes liberais, posteriormente,

o neoliberalismo entra em cena, tornando-se hegemnico a partir do final dos anos 1970, quando diversos pases

da Europa e dos Estados Unidos assumem seus princpios, caracteriza-se pela no interveno do Estado na

regulao no comrcio exterior, nem na regulao de mercados financeiros, garantindo maior eficincia na

redistribuio de recursos internacionais, ainda objetivam a estabilidade monetria, atravs da conteno dos

gastos sociais, da manuteno de uma taxa constante de desemprego, e da reduo de impostos para os altos

rendimentos (reformas fiscais). (BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 126).

25

questo social e pela garantia dos direitos, dentre os quais se destaca o direito a habitao,

assunto abordado na prxima seo.

1.2 AS FUNES DO ESTADO E DA POLTICA SOCIAL NO CAPITALISMO

MONOPOLISTA: DA PRESERVAO E CONTROLE DA FORA DE TRABALHO S

POSSVEIS GARANTIAS DOS DIREITOS

No contexto do capitalismo monopolista, para os burgueses atingirem seu principal

objetivo com xito, faz-se necessrio uma interveno contnua e sistemtica extra-

econmica, neste caso o Estado, diferentemente das intervenes j feitas pelo Estado nos

estgios anteriores do modo de produo capitalista. (NETTO, 1992, p. 20-21). Nesta direo,

a lgica do capital monopolista capturar o Estado com o intuito de organizar a economia,

imbricando organicamente suas funes polticas com suas funes econmicas, tornando-se

o comit executivo dos interesses da burguesia, na medida em que opera no sentido de

manter condies necessrias acumulao e valorizao do capital.

Netto (1992) explicita quais as funes econmicas diretas e indiretas que o Estado

assume na idade do monoplio:

O elenco de suas funes diretas largussimo. Possuem especial relevo a sua insero como empresrio nos setores bsicos no rentveis

(nomeadamente aqueles que fornecem aos monoplios, a baixo custo,

energia e matrias-primas fundamentais), a assuno do controle de

empresas capitalistas em dificuldades (trata-se, aqui, da socializao das

perdas, a que frequentemente se segue, quando superadas as dificuldades, a

reprivatizao), a entrega aos monoplios de complexos construdos com

fundos pblicos, os subsdios imediato aos monoplios e a garantia explcita

de lucro pelo Estado. As indiretas [...] esto relacionadas s

encomendas/compras do Estado aos grupos monopolistas, assegurando aos

capitais excedentes possibilidades de valorizao; no se esgotam a, no

entanto recordem-se dos subsdios indiretos, os investimentos pblicos em

meios de transporte e infraestrutura, a preparao institucional da fora de trabalho requerida pelos monoplios e, com salincia peculiar, os gastos com

investigao e pesquisa. (NETTO, 1992, p. 21-22).

Este o Estado capturado e refuncionalizado pelo capital. Com a crise no modo de

produo capitalista de 1970-1980, os pases centrais inseriram novas regras aos Estados

Nacionais e s empresas que operam no mercado, isto , implantaram [...] um receiturio,

capaz de viabilizar aes objetivas para que a taxa tendencial mdia de lucros retornasse ao

cenrio com valores desejados. (BATISTA, 2014, p. 69). Para os donos do capital foram as

crescentes lutas e as conquistas de direitos a classe trabalhadora, durante a vigncia da poltica

26

Keynesiana20, que culminou na crise fiscal do Estado e, de acordo com Batista (2014), afetou

a economia capitalista aps a dcada de 1970, referindo-se ao entendimento do Estado

capitalista que argumenta em relao a um grande dficit nos cofres do governo com gastos

[sociais] maiores em relao ao que recebiam. (BATISTA, 2014, p. 70). Nesse sentido,

acreditavam ser impossvel recuperar o crescimento econmico sem reduzir os gastos do

Estado no setor pblico, bem como, a desregulamentao do mercado; a eliminao do Estado

como agente econmico e sua diminuio de tamanho e dos gastos sociais, conformaram

algumas aes realizadas pelos pases que adotaram este receiturio21. (BATISTA, 2014, p.

69-70). Alguns anos aps a implantao do receiturio, a classe trabalhadora j pode sentir os

resultados apresentados: houve um aumento significativo das desigualdades sociais,

concentrando e centralizando capitais em uma classe somente, isto , a burguesa; os

investimentos do setor pblico passaram para o setor privado, destituindo a garantia de

direitos sociais; amplia-se o grau de dependncia de pases perifricos aos pases centrais

devido dvida externa com bancos internacionais, alm do crescimento incontrolvel do

desemprego, da pobreza e da desumanizao. (BATISTA, 2014, p. 69-72). Soares destaca que

o modelo neoliberal inclui:

[...] a informalidade no trabalho, o desemprego, o subemprego, a

desproteo trabalhista e, consequentemente, uma nova pobreza. [...] os

direitos sociais perdem identidade e a concepo de cidadania se restringe;

aprofunda-se a separao do pblico-privado e a reproduo inteiramente

devolvida para este ltimo mbito; a legislao trabalhista evolui para uma

maior mercantilizao da fora de trabalho, a legitimao [do Estado] se

reduz ampliao do assistencialismo. (SOARES, 2002, p. 12-13).

Assim, as consequncias do neoliberalismo foram desastrosas na esfera econmica e

social e, Batista (2014, p. 73) ressalta que na esfera poltica o sucesso surpreendeu, pois se

consolidou de forma homognea no mundo at a atualidade, considerando os distintos nveis e

momentos em que cada pas passou a utiliz-la. De acordo com Gorender (apud BATISTA,

2014, p. 73) s ser possvel alterar este projeto, rompendo com aes destruidoras classe

20Com o Keynesianismo, o Estado se tornou o regulador das relaes de trabalho - leis que regulamentam a

contratao dos trabalhadores - e das crises deste modo de produo, porm, sem abandonar os interesses do

capitalismo centrado na socializao da produo e apropriao privada dos frutos do trabalho. Keynes

defendeu a liberdade individual e a economia de mercado, mas dentro de uma lgica que rompia com a

dogmtica liberal-conservadora da poca. (BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 84). 21 As primeiras potncias representantes do novo projeto foram os Estados Unidos e a Inglaterra, sob os

governos de Reagan e Thatcher, respectivamente. No entanto, nesses governos a no interveno do Estado na

economia no ocorreu totalmente conforme pregado pelo ajuste neoliberal, ao contrrio, aperfeioou-se o papel

estatal de controlador das relaes de trabalho claramente a favor da classe dominante. (BATISTA, 2014, p. 70-

72).

27

trabalhadora, se colocado em prtica princpios basilares da construo de uma sociedade

democrtica. A classe operria ainda no conseguiu propor um projeto alternativo fundado em

uma nova e real sociabilidade. Particularmente no Brasil, durante a dcada de 1980, houve um

esgotamento do Estado Desenvolvimentista22, adotado a partir da dcada de 1930. Soares

(2002) salienta que,

A expresso mxima do esgotamento do Estado Desenvolvimentista deu-se

ao final do governo Sarney, quando culminou o processo de transio

democrtica em que, apesar da evidente hegemonia conservadora na sua

conduo, tambm encontramos movimentos sociais ativos e propostas

alternativas de gesto pblica em alguns nveis e setores do governo. A

eroso da autoridade governamental com a ausncia crescente de

legitimidade, enfrentando uma sociedade carente de consensos e

hegemonias, sem parmetros de ao coletiva, sofrendo os impactos de uma

economia destruda pela hiperinflao, tudo isso levou insustentabilidade

da situao poltica e econmica e a um sentimento generalizado da

necessidade de uma mudana radical de rumo. (SOARES, 2002, p. 38).

Com o final do perodo ditatorial (1985), instaurado pelo golpe militar de 1964, os

movimentos populares ganham fora, todavia, a situao econmica nacional encontra-se

devastada. O receiturio neoliberal comea tardiamente a ser implantado no Brasil, a partir de

sua participao no Consenso de Washington, em 1989, onde novas regras neoliberais foram

acordadas e adotadas durante os governos de Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco

(1992-1994) e, especialmente, durante o governo presidencial de dois mandados de Fernando

Henrique Cardoso (1 mandato: 1994-1997 e 2 mandato: 1998-2002) que foi marcado pela

efetiva implantao da poltica Neoliberal no Brasil. (BATISTA, 2014, p. 89).

Soares (2002, p. 37-41) acrescenta que Collor inicia a proposta de mudana radical na

estrutura poltica, econmica e social do Brasil e que Fernando Henrique Cardoso,

posteriormente, concretiza o receiturio instituindo medidas de Reforma do Estado (ou

contrarreforma23), segundo o projeto neoliberal global. Dentre as medidas mudancistas tem-se

o Plano de Estabilizao que objetivava o controle da inflao e a retomada do crescimento do

pas, estagnado na dcada anterior; a desregulamentao da economia com a retirada da

22 Este foi um novo modelo de desenvolvimento econmico adotado no Brasil no governo de Getlio Vargas,

transformando o Estado no financiador e responsvel pela criao do parque industrial nacional. Tal modelo

atingiu ndices de crescimento expressivo at a dcada de 1980, momento no qual transformaes polticas e

econmicas mundiais emergiram e dificultaram sua continuao. (BATISTA, 2014, p. 76). 23No sentido que, de acordo com Behring e Boschetti, embora o termo reforma tenha sido largamente utilizado

pelos precursores do projeto neoliberal no Brasil, na dcada de 1990, refere-se a uma apropriao indbita e

fortemente ideolgica da ideia reformista, a qual destituda de seu contedo redistributivo de vis social-

democrata, sendo submetida ao uso pragmtico, como se qualquer mudana significasse uma reforma, no

importando seu sentido, suas consequncias sociais e sua direo scio-histrica. (BEHRING e BOSCHETTI,

2008, p. 149).

28

regulao do Estado brasileiro sobre os preos do mercado e sobre as relaes entre capital e

trabalho, estabelecendo o livre jogo do mercado; a onda de privatizaes das empresas

nacionais, bem como, de Polticas Sociais. Configurava a estratgia de reduo do setor

pblico e ampliao do setor privado, capaz de diminuir o tamanho do Estado e seus gastos

pblicos para eliminar o dficit pblico. Ainda na agenda de medidas reformantes da nao,

encontra-se a liberalizao do comrcio exterior, tornando a economia mais

internacionalizada e moderna, sob a tica capitalista, a fim ingressar no Primeiro Mundo e

favorecer a entrada de capitais estrangeiros. (SOARES, 2002, p. 37-41).

Os resultados das aes neoliberais propostas em grande parte do mundo, inclusive no

Brasil, no foram capazes [...] de resolver a crise do capitalismo nem alterou os ndices de

recesso e baixo crescimento econmico, conforme defendia (BEHRING e BOSCHETTI,

2008, p. 127), entretanto, seus efeitos impactaram diretamente as condies de vida da classe

trabalhadora e, no mbito brasileiro, ocorreu uma destruio dos direitos sociais dos cidados

assim como das Polticas Sociais de responsabilidade do Estado - os quais davam seus

primeiros passos, a partir da homologao da Constituio Federal de 1988 aps longos

perodos de autoritarismo. Portanto, o que houve no pas, a partir dos anos 1990, foi uma

contrarreforma neoliberal onde, no entendimento de Behring e Boschetti,

Houve o desmonte e destruio numa espcie de reformatao do Estado

brasileiro para a adaptao passiva lgica do capital. Revelou-se, sem

surpresas, a natureza pragmtica, imediatista, submissa e antipopular das

classes dominantes brasileiras. E foram medidas que, em alguns setores,

fizeram com que o pas evolusse de forma inercial e, em outros, o fizeram

permanecer no mesmo lugar ou at mesmo andar para trs [...]. (2008, p.

151-152).

Nesse sentindo, somente pode-se falar em verdadeiras reformas quando alteraes

democrticas acontecem na vida dos trabalhadores, desenvolvendo um Estado social, o qual

nem chegou a se constituir no Brasil. Ainda conforme Netto (1992, p. 22-24), entre as

condies asseguradas pelo Estado para a acumulao de capitais est a preservao e o

controle da fora de trabalho ocupada e excedente, via Polticas Sociais que, dado seu carter

contraditrio, tambm institucionalizam direitos e garantias sociais. O Estado obrigado e

compelido a assegurar a reproduo da fora de trabalho, alm de regular sua pertinncia a

algum nvel de consumo e sua disponibilidade para ocupao sazonal, assim como,

instrumentalizar mecanismo que garantam sua mobilizao e alocao em funo dos

monoplios. Nesse ponto, ocorre a articulao das funes econmicas e polticas do Estado

29

Burgus, pois ele legitima-se politicamente incorporando outros protagonistas scio-polticos,

apresentando a dinmica contraditria dentro do prprio aparelho estatal.

O desenvolvimento do capitalismo monopolista acompanha o surgimento de partidos

da classe trabalhadora e a consequente solidificao do processo reivindicativo, no entanto,

sua absoro pelo Estado no o caracteriza como democrtico por natureza, mas sim, indica

que demandas econmico-sociais e polticas de legitimao so suportveis pelo sistema

estatal, assim como, indispensveis para dar continuidade s funes econmicas por ele

desempenhadas. Com efeito,

O capitalismo monopolista, pelas suas dinmicas e contradies, cria

condies tais que o Estado por ele capturado, ao buscar legitimao poltica

atravs do jogo democrtico, permevel a demandas das classes

subalternas, que podem fazer incidir nele seus interesses e suas

reivindicaes imediatas. E que este processo todo ele tensionado, no s

pelas exigncias da ordem monoplica, mas pelos conflitos que esta faz

dimanar em toda a escala societria. (NETTO, 1992, p. 25).

Sob esta perspectiva, verifica-se que o principal objetivo da burguesia monoplica -

acrescer os lucros - o guia das transformaes ocorridas no interior do aparelho estatal,

conformando uma significativa mudana na forma de interveno do Estado no processo

econmico e social capitalista. E so nestas condies que as manifestaes da questo

social tornam-se objeto de interferncias estatais, contnuas e sistemticas, fragmentadas ou

pontuais, que tambm tem decorrncias quando se trata da questo habitacional no Brasil.

Como visto, a sociedade capitalista caracterizada pela contradio capital versus

trabalho, sendo o capital representado pela minoria detentora dos meios de produo e, o

trabalho, pela maioria que possui apenas sua fora de trabalho. Esta contradio o

fundamento da constante luta de classes, que coloca em evidncia as expresses da questo

social, em especial na ordem monoplica do capital. Netto (2001) ressalta que, a questo

social constitutiva do desenvolvimento do capitalismo. No se suprime a primeira

conservando-o o segundo. (NETTO, 2001, p. 45). No capitalismo monopolista, a questo

social internalizada na ordem econmico-poltica24 e respondida por meio da Poltica

24Para Netto, No apenas o acrescido excedente que chega ao exrcito industrial de reserva que deve ter a sua

manuteno socializada; no somente a preservao de um patamar aquisitivo mnimo para as categorias

afastadas do mundo do consumo que se pe como imperiosa; no so apenas os mecanismos que devem ser

criados para que se d a distribuio, pelo conjunto da sociedade, dos nus que asseguram os lucros

monopolistas tudo isso caindo no mbito das condies gerais para a produo capitalista monopolista

(condies externas, internas, tcnicas, econmicas e sociais), articula o enlace [...] das funes econmicas e

polticas do Estado burgus capturado pelo capital monopolista, com efetivao dessas funes se realizando ao

mesmo tempo em que o Estado continua ocultando a sua essncia de classe. (NETTO, 1992, p. 26).

30

Social pblica25, que [...] procura administrar as expresses da questo social de forma a

atender s demandas da ordem monoplica [...] (NETTO, 1996, p. 26-27).

No entender de Behring e Boschetti, a poltica social compreendida [...] como

processo e resultado de relaes complexas e contraditrias que se estabelecem entre Estado e

sociedade civil, no mbito dos conflitos e luta de classes que envolvem o processo de

produo e reproduo do capitalismo (2008, p. 36), porm, sem deixar de reconhecer que

[...] as polticas sociais podem ser centrais na agenda de lutas dos trabalhadores e no

cotidiano de suas vidas, quando conseguem garantir ganhos para os trabalhadores e impor

limites aos ganhos do capital. (BEHRING e BOSCHETTI, 2008, p. 38).

Ou seja, a Poltica Social apresenta uma caracterstica peculiar: ao mesmo tempo em

que fruto da mobilizao e organizao da classe operria, tornando-se a nica via de

supresso da forma de sociabilidade posta, por outro, o Estado a assume em seu leque de

aes de maneira estratgica para a manuteno da ordem dominante. um campo complexo

permeado por contradies, confrontos e conflitos e, nos termos de Netto, [...] elas so

resultantes extremamente complexas de um complicado jogo em que protagonistas e

demandas esto atravessados por contradies, confrontos e conflitos. (1996, p. 29). A

funo essencial da Poltica Social no capitalismo monopolista diz respeito preservao e ao

controle da fora de trabalho, mas no se limita a regular as relaes entre capitalistas e

trabalhadores (fora de trabalho ocupada) ou regular o exrcito industrial de reserva atravs

do seguro social (fora de trabalho excedente). Elas servem, tambm, para

[...] contrarrestar a tendncia ao subconsumo, para oferecer ao Estado

massas de recursos que doutra forma estariam pulverizados [...] e para

redistribuir pelo conjunto da sociedade os custos da explorao capitalista-

monopolista da vida til dos trabalhadores, desonerando seus nicos

beneficirios, os monopolistas. (NETTO, 1996, p. 27).

Nesse sentido, as funes das Polticas Sociais tm a finalidade de propiciar condies

necessrias ao desenvolvimento monopolista, bem como, legitimar a imagem do Estado frente

aos interesses em conflito. Porm, ressalta-se que a ao do Estado direcionada a questo

social se realiza, fragmentada e parcializada, pois no h possibilidade, na ordem do capital,

de tom-la numa totalidade processual especfica, seno a sociedade burguesa estaria em risco

iminente. Assim, de acordo com Neto (1996, p. 28), divide-se em Polticas Sociais,

25Para Netto, a poltica social pblica difere das polticas sociais privadas, pois so [...] conduzidas com carter

no imperativo e no oficial por organizaes religiosas (p. ex., as igrejas) e laicas (p. ex., associaes

profissionais, clubes de servio), com formas de interveno assistemticas e embasadas fundamentalmente em

motivaes tico-morais. (NETTO, 1996, p. 26).

31

recortando as expresses da questo social em problemticas particulares a serem

enfrentadas, como exemplo a carncia habitacional - assunto dos prximos captulos deste

estudo. Sob a mesma perspectiva, Behring e Boschetti argumentam que,

As polticas sociais e a formatao de padres de proteo social so

desdobramentos e at mesmo respostas e formas de enfrentamento em

geral setorializadas e fragmentadas s expresses multifacetadas da

questo social no capitalismo, cujo fundamento se encontra nas relaes de

explorao do capital sobre o trabalho. (2006, p. 51).

As polticas sociais no podem ser analisadas fora do contexto das relaes de

produo e reproduo do modo de produo capitalista, ao contrrio, esto intrinsecamente

ligadas a essas relaes, pois tornam-se uma mediao entre o capital e trabalho, conformando

ambas as classes mediante, de um lado, a manuteno dos interesses do modo capitalista de

produo (classe burguesa) e, de outro, a possibilidade de ampliao e garantia dos direitos da

cidadania (classe trabalhadora), apresentando assim seu carter contraditrio, conforme acima

mencionado.

Portando, sob uma perspectiva de totalidade, torna-se possvel entender que a

significativa falta de moradia presente na sociedade brasileira (e mundial), uma das

expresses da questo social e tem seu fundamento na constante luta de classes (burguesia x

trabalhadores) provocada pelo modo de produo capitalista vigente, o qual chegando ao

estgio mximo de desenvolvimento, o imperialista e/ou monopolista, captura o Estado para

agir em favor da classe dominante a fim de multiplicar os lucros advindos da intensa

explorao da fora de trabalho. Ento, para que a valiosa fora de trabalho no acabe, o

Estado passa a garantir sua proteo e reproduo, atravs das contraditrias Polticas Sociais

e, dentre elas, encontra-se a Poltica Social de Habitao.

Na sociedade brasileira, o direito a moradia e habitao para a classe trabalhadora so

recentes e fruto de diferentes iniciativas, especialmente da sociedade civil. Neste mbito,

conforme os estudos revelam, tem-se uma significativa ausncia do Estado brasileiro at o

final do sculo XX. Somente a partir do ano 2000, com a Emenda Constitucional n 26, de

2000, que assegura a moradia como direito social, inicia-se o processo de elaborao da

Poltica Nacional de Habitao, que materializa o direito social a moradia, conforme estudos

apresentados no prximo captulo.

32

2 A MORADIA COMO DIREITO SOCIAL NO BRASIL E A POLTICA NACIONAL

DE HABITAO: UM PROCESSO EM CONSTRUO

A discusso deste captulo objetiva compreender o processo histrico da instituio

do direito a moradia no Brasil. Refere-se construo scio-histrica da Poltica Social de

Habitao no Brasil, como resposta tardia e muitas vezes pontual e fragmentada do Estado

frente mobilizao e luta dos trabalhadores pela garantia da moradia enquanto direito social

e expresso da questo social no contexto do modo de produo capitalista.

O direito moradia26, de acordo com Nunes de Souza (2012, s.p), define-se como

[...] um bem jurdico pertencente pessoa. , sob o aspecto do direito civil, um bem da

personalidade que compe o postulado ou princpio da dignidade da pessoa humana. Sob o

aspecto constitucional, define-se como direito social atribudo pelo artigo 6 do Captulo II -

Dos Direitos Sociais, da Constituio Federal de 198827 (redao dada pela Emenda

Constitucional n 26, de 2000). O direito moradia28 distingue-se do direito de habitao. De

acordo com Nunes de Souza (2012, s.p.), o direito de habitao [...] incide sobre um bem

26 O direito moradia digna integra o direito a um padro de vida digno. A moradia digna deve incluir:

Segurana da posse: Todas as pessoas tm o direito de morar sem o medo de sofrer remoo, ameaas

indevidas ou inesperadas; Disponibilidade de servios, infraestrutura e equipamentos pblicos: A moradia

deve ser conectada s redes de gua, saneamento bsico, gs e energia eltrica; em suas proximidades deve haver

escolas, creches, postos de sade, reas de esporte e lazer e devem estar disponveis servios de transporte

pblico, limpeza, coleta de lixo, entre outros; Custo acessvel: O custo para a aquisio ou aluguel da moradia

deve ser acessvel, de modo que no comprometa o oramento familiar e permita tambm o atendimento de

outros direitos humanos, como o direito alimentao, ao lazer etc.; Habitabilidade: A moradia adequada tem

que apresentar boas condies de proteo contra frio, calor, chuva, vento, umidade e, tambm, contra ameaas

de incndio, desmoronamento, inundao e qualquer outro fator que ponha em risco a sade e a vida das pessoas.

Alm disso, o tamanho da moradia e a quantidade de cmodos (quartos e banheiros, principalmente) devem ser

condizentes com o nmero de moradores; No discriminao e priorizao de grupos vulnerveis: A moradia

adequada deve ser acessvel a grupos vulnerveis da sociedade, como idosos, mulheres, crianas, pessoas com

deficincia, pessoas com HIV, vtimas de desastres naturais etc. As leis e polticas habitacionais devem priorizar

o atendimento a esses grupos e levar em considerao suas necessidades especiais. Alm disso, para realizar o

direito moradia adequada fundamental que o direito a no discriminao seja garantido e respeitado.

Localizao adequada: Para ser adequada, a moradia deve estar em local que oferea oportunidades de

desenvolvimento econmico, cultural e social. [...] A localizao da moradia tambm deve permitir o acesso a

bens ambientais, como terra e gua, e a um meio ambiente equilibrado; Adequao cultural: A forma de

construir a moradia e os materiais utilizados na construo devem expressar tanto a identidade quanto a

diversidade cultural dos moradores e moradoras. (CAZALIS, 2016, s.p.). 27 Art. 6o - So direitos sociais a educao, a sade, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurana, a previdncia

social, a proteo maternidade e infncia, a assistncia aos desamparados, na forma desta Constituio.

[Redao dada pela Emenda Constitucional n 26, de 2000]. (BRASIL, Constituio Federal de 1988). 28 O direito moradia tem previso tambm convencional. reconhecido na Declarao Universal dos Direitos

Humanos; na Conveno Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais; na Conveno Americana

de Direitos Humanos - Pacto de San Jos da Costa Rica; na Declarao sobre o Direito ao Desenvolvimento em

1986; na Conveno Relativa ao Estatuto dos Refugiados; no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos;

na Conveno Internacional sobre a Eliminao de todas as formas de discriminao racial; na Conveno sobre

os Direitos da Criana; na Declarao sobre Assentamentos Humanos de Vancouver e; no Estatuto de Pessoas

com Deficincia. (NUNES DE SOUZA, 2012, s.p).

33

imvel como instrumentalizao do direito moradia. Pode ser gratuito ou oneroso, com

carter de direito real ou de direito pessoal.

Compreender a trajetria do direito a moradia no Brasil significa apreender o processo

histrico da interveno do Estado que, somente a partir do ano de 2000 reconhece este

direito social. At ento s possvel identificar planos ou programas pontuais e

fragmentados de habitao, na maioria seletivos e destinados a trabalhadores formais e

contribuintes da Previdncia Social. Portanto, grande parte dos trabalhadores no teve acesso

ao direito de habitao e, muito menos, a moradia. Este captulo trata de consideraes acerca

da trajetria scio-histrica da sociedade brasileira, em especial do Estado brasileiro, no

tocante a sua interveno na problemtica habitacional e, consequentemente, na garantia do

direito (ou no) a moradia.

2.1 AS PRIMEIRAS INICIATIVAS DE INTERVENO DO ESTADO NA

PROBLEMTICA HABITACIONAL (1920-1980)

Dado os elementos essenciais do modo de produo capitalista apresentados no

captulo anterior, especialmente em seu estgio monopolista, pode-se situar como o espao

urbano brasileiro constitudo ao longo da histria, tecendo as relaes sociais que nele se

estabelecem. Evidentemente, esse espao se constri permeado por contradies intrnsecas

forma classista de sociabilidade, acabando por segregar a populao territorial e salientar a

falta ou condies indignas de moradia como uma manifestao visvel da questo social. O

Estado, como fonte de respostas as expressivas desigualdades sociais, tardiamente e

lentamente implementa a Poltica Social de Habitao, a qual fornece suporte as Polticas

Estaduais e Municipais de Habitao nos dias atuais.

Engels em sua obra A situao da classe trabalhadora da Inglaterra, j previa o

movimento de segregao socioespacial das camadas mais pobres da sociedade capitalista, a

partir do processo de industrializao europeia.

frequente a pobreza morar em vielas escondidas, muito perto dos palcios

dos ricos, mas, em geral, designaram-lhe um lugar parte, so organizadas

em toda a Inglaterra mais ou menos da mesma maneira, as piores casas na

parte mais feia da cidade na maior parte das vezes so construes de dois

andares ou de um s, de tijolos, alinhadas em longas filas, se possvel com

pores habitados e quase sempre irregularmente construdas. [...] De onde

provm a crise da habitao? Ela um produto da formao social burguesa?

Uma sociedade no pode existir sem problemas de habitao quando a

grande massa de trabalhadores dispe apenas do seu salrio, isto , da soma

dos meios indispensveis sua subsistncia e sua reproduo, em

34

semelhante sociedade, a crise da habitao no um acaso, mas um

instituio necessria, no pode ser eliminada com modificaes a nvel de

sade pblica etc., porm sim quando a ordem social que a originou for

transformada pela raiz. (ENGELS apud DUARTE, 2006, p. 79).

Assim, o processo industrial e comercial que marca a evoluo do capital e o

crescimento do espao urbano coopera para aprofundar a distino entre as classes sociais. A

partir da segunda metade do sculo XIX, o Brasil vivencia profundas transformaes, que vo

desde a substituio do trabalho escravo pelo assalariado, o aumento das imigraes

provenientes da Europa e, a instalao das primeiras indstrias nas cidades29, as quais se

expandiam. Vale destacar que nessa poca, ainda no se tem a expanso da industrializao

generalizada no pas, pois a economia brasileira continuava predominantemente agrcola

exportadora. O que houve foi um surto industrial, onde as indstrias recm surgidas tinham

seu desenvolvimento inclusive ameaado pela burguesia agrria. (ALENCAR, RAMALHO e

RIBEIRO, 1985, p. 148-149).

Entretanto, as cidades iam tomando forma e, desde ento, separando a habitao e as

moradias entre ricos e pobres, conforme os autores descrevem: [...] construam-se hotis e

jardins pblicos, multiplicavam-se os cafs. Ao que chegavam em busca de emprego nas

fbricas iam morar nos bairros pobres, onde proliferaram os cortios. (ALENCAR,

RAMALHO e RIBEIRO, 1985, p. 148). Os cortios e as vilas operrias se sobressaem no

incio do sculo XX como o local de residncia da classe social de trabalhadores de baixa

renda. Aqueles so formados dentro de [...] sobrados j velhos, onde mal se respirava, tantas

eram as camadas de gente que formavam sua populao compacta, comprimida, angustiada.

Uma latrina para dezenas de pessoas. (FREYRE apud VILLAA, 2001, p. 228). E as vilas

se caracterizavam,

[...] pela uniformidade, o alinhamento homogneo, bem como a aparncia

sombria e pesada. [...] Erguidas ao