humanitas vivens ltda · 2014-11-17 · 0 ser", procurando nela respostas às questões...

102
Humanitas Vivens LTDA Uma Instituição a serviço da Vida!

Upload: others

Post on 14-Feb-2020

8 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Humanitas Vivens LTDA Uma Instituição a serviço da Vida!

2 2

3 3

A JUSTIÇA NA REPÚBLICA

DE

PLATÃO ((442277--334477 aa..CC..))

CAPA: Raffaello Sanzio, La Scuola di Atene, Platão, 1511.

4 4

5 5

Luiz Antonio BELINI

A JUSTIÇA NA REPÚBLICA

DE

PLATÃO ((442277--334477 aa..CC..))

Humanitas Vivens Ltda

Uma Instituição a serviço da Vida!

Sarandi (PR) 2009

6 6

Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda

EDITOR:

Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS

CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA

Prof. Ms. Fábio Inácio PEREIRA

Prof. Ms. Leomar Antônio MONTAGNA

REVISÃO GERAL:

André Luis Sena dos SANTOS

Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS

Paulo Cezar FERREIRA

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Agnaldo Jorge MARTINS

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Belini, Luiz Antonio

B431j A justiça na República de Platão

(427-347a.C.) [recurso eletrônico] /

Luiz Antonio Belini. -- Sarandi :

Humanitas Vivens, 2009.

98p.

ISBN: 978-85-61837-11-2

Modo de

acesso:<www.humanitasvivens.com.br>.

1. Filosofia. 2. Platão (427-

347a.C.) – Vida e obra. 3. Pensadores

pré-platônicos.

CDD 21.ed. 193

Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331 O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de

responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de

vista da Editora, seus representantes e editores.

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por

qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou

banco de dados sem permissão escrita do Autor e da

Editora Humanitas Vivens Ltda.

Praça Ipiranga, 255 B, CEP: 87111-005, Sarandi - PR

www.humanitasvivens.com.br – [email protected] Fone: (44) 3042-2233

7 7

Sumário

I. Introdução.......................................................................

II. A justiça em pensadores pré-platônicos...............................

III. A crítica histórica: Platão e sua obra..................................

IV. A justiça na república platônica..........................................

V. Análise da justiça platônica..................................................

VI. Conclusão...........................................................................

VII. Bibliografia.......................................................................

09

13

29

41

67

91

93

8 8

9 9

I. INTRODUÇÃO

Platão é um daqueles homens que marcaram

definitivamente a história, sobretudo a ocidental. O vigor e

profundidade de seu pensamento, o empenho e exemplaridade

de sua vida, conferiu-lhe um caráter permanente em nossa

cultura. Sua influência se fez notar nos mais amplos campos

do saber e do agir humanos, como em toda a história da

filosofia, da teologia e da política. Defensor de um homem

novo e uma sociedade nova inspirou muitos a não se

conformarem com os limites do presente, mas desejar e lutar

pelo ideal. E, no entanto, Platão vive intensamente o

acontecimento de seu tempo, valorizando aquilo que, após um

exame crítico, a tradição lhe pode oferecer, procurando na

crise grega sua superação.

Especialmente a Carta VII nos atesta que ele não se

escondeu em um "abstracionismo", mas "encarnou" suas

descobertas intelectuais em uma práxis política nem sempre

fácil e bem sucedidas. Embora seu pensamento político se

encontre condensado ainda no Político e nas Leis, é de forma

especial a República o lugar de síntese deste encontro:

concentra seu empenho político-social com a luz de sua

metafísica. Sua missão é como a daquele prisioneiro da

caverna que, libertando-se e contemplando o Bem, não

poderá senão retornar para auxiliar os demais ainda presos.

Na República Platão desenvolve paradigmaticamente

a constituição de um estado, ou seja, a partir do como "deve

10 1

0

ser", procurando nela respostas às questões primordiais

impostas pela crise de então. Irá definir com clareza os pontos

básicos e apresentará a solução, muitas vezes radicalizando-a.

Como a alma com suas partes devem ser una, assim também

o estado deverá estar unificado em suas classes. Embora cada

parte ou classe possua uma função determinada, isto não

deverá ser motivo de divisão, mas concorrer para a unidade.

Platão irá propor a unificação do indivíduo e do estado a

partir da justiça, que ele compreende como "executar a tarefa

própria e não se meter nas dos outros" (433 A).

Este ideal de unificação que será proposto para todo o

estado, Platão radicalizará em relação à classe dos

governantes e seus auxiliares, a ponto de fazê-los uma grande

família. A isto se unirá um segundo pressuposto: a

necessidade de desvincular o poder político do poder

econômico e refunda-lo a partir da capacidade para o

governo. Deve governar aquele que conhece o Bem e sabe

como se devem conduzir os cidadãos e instituições para

alcançar a felicidade, portanto, o legítimo governo está

intrinsecamente ligado ao filósofo. Pressupondo ainda uma

nova fundação do saber sobre as mais sólidas bases

epistemológicas. E de sua conseqüente educação. Na

edificação deste estado não se privilegia uma parte, mas a

totalidade, isto é, cada indivíduo ou classe está em função do

todo.

O tema que desenvolveremos concerne à justiça na

República que, porém, se imbrica com toda sua temática.

Após ter procurado brevemente indícios históricos da origem

e possível conceitualização do termo, faremos uma

apresentação da crítica histórica quanto às obras de Platão, em

especial da República; seguiremos à apresentação do

11 1

1

desenvolvimento do diálogo sobre a justiça, uma análise

crítica. Esta se concentrará, sobretudo, nos limites que a

concretização do ideal platônico da justiça encontra em sua

exemplificação, motivado muitas vezes pela radicalização de

seus pressupostos ou mesmo pelos limites intrínsecos que o

tempo impõe à obra. A bibliografia com seus contrastes de

interpretação exemplificam o seu caráter pertinente e

paradoxal.

12 1

2

13 1

3

II. A JUSTIÇA EM PENSADORES

PRÉ-PLATÔNICOS

O pensamento filosófico foi longamente gestado. As

grandes doutrinas morais da Grécia clássica e helênica

tiveram suas raízes nas fontes antigas e obscuras do

pensamento pré-filosófico onde o canal privilegiado foi a

poesia. Assim, antes do nascimento da filosofia os educadores

dos gregos foram, sobretudo, Homero e Hesíodo. Num

contexto onde a concepção mítica da vida e do universo e a

religião pública se imbricam1. E foi justamente através da

poesia, unida ao direito, que os gregos "tiveram a primeira

revelação da sacralidade da justiça"2.

Porque Platão é devedor de toda a tradição que a ele

chegou e para melhor compreendermos o contexto do debate

instaurado nos dois primeiros livros da República, faremos

alguns acenos à noção de justiça nos seus principais

antecessores.

Embora em Homero3 não se encontre ainda uma

1. REALE, G., Storia della filosofia antica. Vol.I: dalle origini a

Socrate, Milano 1991, 8ªEd., p.22: "Enfim, os poemas homéricos foram

decisivos no fixar uma determinada concepção dos deuses e do divino e

também no fixar alguns fundamentais tipos de vida e caracteres éticos

dos homens, que virão a ser verdadeiros e próprios paradigmas". Esta e

as próximas notas cuja obra não for em português a tradução será

minha.

2. BOSCO, N., Themis e Dike, em: "Filosofia", 1967, p.131.

3. Para uma crítica da pessoa e obra de Homero: JAEGER, W., Paidea,

14 1

4

noção elaborada de justiça, nem mesmo a palavra usada por

Platão para designá-la, dikaiosyne, é certo que a noção de

justo e injusto já estavam presentes. Alguns autores4 vêem no

primeiro livro da Odisséia, o documento mais antigo entre os

gregos que revela, ainda que incipientemente, uma

consciência da própria responsabilidade moral.

O texto é uma acusação dos deuses em relação à

prepotência humana (como por exemplo: Odisséia, XVI,

vv.386-388), causa de todas as suas desventuras. Debate que

pressupõe já uma certa familiaridade com as idéias de bem e

de mal, mérito e culpa, liberdade e ausência de liberdade. "A

consciência grega aparece já dividida entre a tentação de

imputar aos deuses a responsabilidade dos nossos males e a

repugnância em associar as idéias de divino e injusto"5.

Embora com variantes e outros matizes, principalmente no

que se refere à questão da vida após a morte, este mesmo

debate aparece no livro XIX da Ilíada.

Não obstante tendo em conta que os poemas

homéricos pertencem a períodos diversos e conseqüentemente

apresentem uma diversidade na sua concepção da justiça, bem

como na dos deuses e do próprio homem, no seu conjunto

pode-se dizer que a idéia de justiça apresenta elementos

bastante estáveis: a justiça é mencionada como harmonia,

equilíbrio de forças, resultantes das ações humanas e divinas

(o universo é regido pela justiça de Zeus, superior força

harmonizadora), conseqüentemente, a justiça em relação aos

vol.I, trad. it. de A. Setti, Firenze 1991, 4ªEd., pp.49-119; LEITE, J. M.,

Homero, Rio de Janeiro 1976.

4. Entre eles BOSCO, N., Themis e Dike, op. cit., p.132, menciona

Jaeger e Pasquali, referindo-se a Odisséia, I, 32ss.

5. BOSCO, N., Themis e Dike, op. cit., p.132.

15 1

5

deuses (piedade) e a justiça em relação aos homens são vistas

inseparavelmente. A simples violação das leis humanas

(consuetudinais) representa uma ofensa aos deuses, já que

estas são vistas como divinas, uma quebra da harmonia e,

portanto, injustiça6. Em geral, o piedoso e justo é sempre

salvo e o ímpio condenado7.

Os vocábulos que Homero utiliza para expressar a

idéia de justiça são dique e têmis, que se alternam entre a

evocação das pessoas de Dique e Têmis e os seus conceitos

correspondentes8.

6. Idem, p.134. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza,

trad. it. de M. Piccolomini, Roma-Bari 1981, p.234: "Um certo sentido

de justiça é o que cada um tem como direito em esperar dos

comportamentos humanos em determinados casos, e da parte de

determinadas pessoas. É um sentido que corresponde a Dique,

considerado como um procedimento legal para a reparação de ofensas e

a satisfação dos direitos".

7. DEL GRANDE, C., Omero, em: Enciclopedia Filosofica, aos

cuidados de Centro di studi filosofici di Gallarate, Firenze 1967, 2ªEd.,

p.1154.

8. Dique significa originalmente "decisão judicial", assumindo num

lento processo um significado preciso de vingadora inexorável e de

penalizadora. Na mitologia é a deusa dos juízes, irmã da Verdade, filha

de Júpiter e Têmis. Para a origem etimológica e desenvolvimento de

Dique: DEL VECCHIO, G., La Giustizia, Roma 1946, pp.14-15.

BRANDÃO, J. de S., Mitologia Grega, vol.I, Petrópolis 1986, p.158:

Dique como "maneira de ser ou de agir, hábito, costume, lei, justiça".

Têmis significa etimologicamente "pôr, colocar, estabelecer como

norma", expressando assim "o que é estabelecido como a regra, a lei

divina ou moral, a justiça ou direito divino... Têmis é a deusa das leis

eternas, da justiça emanada dos deuses" conforme BRANDÃO, J. de S.,

Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega, vol.II, Petrópolis

1992, p.417; Têmis é filha de Urano e Géia, sendo uma das Titânicas.

"Os mitógrafos e os filósofos imaginaram que Têmis, como

personificação da justiça, ou da Lei eterna, fosse conselheira de Zeus",

16 1

6

Ainda que o mundo de Hesíodo seja diverso do

homérico9, o ideal da justiça permanece inalterado: é justo

quem não ofende aos deuses e nem aos semelhantes. Toda sua

obra é um esforço para dar razão à existência do bem e do

mal no mundo. Sua concepção de Dique irá abrir caminho a

uma nova reflexão no que concerne à justiça. Além de

organizar os deuses em uma teogonia sistemática, fez da

justiça o problema central da existência humana e divina10.

Fora do contexto heróico de Homero, a injustiça que

suscita a sua reflexão é antes de tudo a maldade humana

conforme: GRIMAL, P., Dizionario di Mitologia Greca e Romana,

trad. it. de P. A. Borgheggiani, Brescia 1987, p.645.

9. Muito mais na questão sócio-econômica e geográfica que na

cronológica, conforme BOSCO, N., Themis e Dike, op. cit., p.144:

"Não é necessário pensar uma grande distância de tempo entre os

poemas homéricos e aqueles de Hesíodo. Se alguns estudiosos retém

Hesíodo posterior a Homero, outros são, ao invés, propensos a

considerá-lo como quase contemporâneo e colocam as suas obras logo

depois da Odisséia. Existe até quem inverta as posições, considerando

certas partes da Odisséia, as quais mostram evidentes afinidades com a

poesia de Hesíodo, posterior a esta". LESKI, A., Storia della literatura

greca, trad. it. de F. Codino, vol.I, Milano 1962, p.131, coloca Hesíodo

logo depois de Homero, o que é geralmente mais aceito. M.

TROMBINO, em: L'"Apologia di Socrate" di Platone e il problema

della giustizia da Omero a Platone, aos cuidados de PANCALDI, M. e

TROMBINO, M., Torino 1991, p.103: "Enquanto Homero é ligado ao

mundo da nobreza arcaica, Hesíodo exprime os valores e a cultura do

mundo agrário, o pobre mundo daqueles que - homens livres -

trabalham duramente a terra para viver. Os poemas homéricos nasceram

no mundo jônico, dominado pelo tráfego marítimo e pelos problemas

conexos à idade das grandes migrações gregas; as obras de Hesíodo são

ao invés natas na Beócia, região com vocação agrária e pastoril, longe

do mar e da sua cultura. O próprio Hesíodo é pastor e agricultor".

10. ESIODO, Teogonia, trad. it. de Graziano Arrighetti, Milano 1989,

2ªEd.

17 1

7

identificada com a mesquinhez do pobre que inveja o rico e

do rico que oprime o pobre11.

Hesíodo inova, particularmente, na insistência com

que descreve os sofrimentos causados pela injustiça. Bem

como nos frutos da justiça e da injustiça. Sua obra é uma

exaltação ao trabalho, dando-lhe uma atribuição moral e

religiosa toda nova12, assim, os frutos da justiça são a paz e a

prosperidade enquanto os da injustiça, ódio e contendas.

Exemplo singular neste sentido é sua obra Trabalhos e Dias13,

em que a idéia básica é o nexo entre justiça e trabalho14, que

não obstante ser um sofrimento imposto pelos deuses aos

homens como castigo, é ao mesmo tempo uma forma de

purificação.

A justiça no final triunfará, porque conta com a

proteção de Zeus, e isto é apresentado como uma boa razão

para vivê-la, afastando-se da injustiça15. Paradigmática é a

imagem da cidade justa e da injusta (vv.225-247) com a

11. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza, op. cit.,

p.250, sublinha que em Hesíodo a maldade tem conseqüências coletivas

e não apenas individuais: a maldade de um poderá ser paga por toda a

cidade.

12. JAEGER, W., Paidea, op. cit., vol.I, p.121.

13. ESÍODO, Le opere e i giorni, trad. it. de L. Magugliani, Milano

1988, 4ªEd.

14. JAEGER. W., Paidea, op. cit., vol.I, pp.136-137.

15. ESIODO, Le opere e i giorni, op. cit., Milano 1988, 4ªEd., vv.213-

218: "Ó Perse, escute a justiça e não alimente a Prepotência: a

prepotência é danosa ao homem fraco; nem mesmo o grande facilmente

a pode suportar, antes, ele mesmo permanece oprimido e vai ao

encontro da desventura. Melhor é a outra estrada, em direção à justiça; a

justiça no fim do seu curso vence a prepotência, e só sofrendo o estulto

aprende".

18 1

8

intervenção de Zeus e Dique: "se entre os animais vale a lei

natural do mais forte, entre os homens rege Dique"16.

Mesmo sendo a lírica arcaica de relativo interesse

ético, nos importa enquanto fez o trâmite entre a poesia épica

e a grande poesia trágica e a especulação filosófica,

principalmente na obra de Sólon, que é exemplarmente ático

inclusive pelo ideal da medida.

O pensamento de Sólon está intimamente relacionado

com a situação de Atenas de seu tempo, onde o

desenvolvimento econômico (basicamente agrário) possibilita

o acúmulo de riquezas de uma elite e torna a grande massa

miserável e escravizada. Sólon denuncia exatamente a

injustiça cometida em vista deste enriquecimento,

descrevendo seu processo psicológico: a injustiça reside na

alma humana, porém, seus efeitos atuam na realidade social.

Em Sólon a justiça como medida é virtude não só da

pessoa singularmente, mas também da cidade. O homem justo

e sábio é capaz de produzir boas leis e boas leis uma cidade

justa. A boa lei educa o cidadão para a justiça17. Por fim, a

16. DEL GRANDE, C., Esiodo, em: Enciclopedia Filosofica, aos

cuidados de Centro di studi filosofici di Gallarate, Firenze 1967, 2ªEd.,

p.959.

17. Segundo M. TROMBINO em: L'"Apologia de Socrate" di Platone e

il problema della giustizia da Omero a Platone, op. cit., p.118,

pertence a Sólon o conceito de eunomía, ou seja, o bom governo, o

governo segundo a justiça. Este conceito será importante para a idéia de

justiça no âmbito político. A este propósito afirma ISNARDI

PARENTE, M., Il pensiero politico greco dalle origini alla sofistica,

em: Storia delle idee politiche economiche e sociali, dirigida por L.

Firpo, vol.I, Torino 1982, p.140: "O conceito fundamental em torno ao

qual se concentra a sua especulação política é a eunomía, a boa ordem,

19 1

9

garantia está nos deuses, que darão paz e felicidade aos justos

e desventura aos injustos, sejam pessoas individuais, sejam

coletividades18.

Sólon chega ao poder em 594-593 a.C. e procura

concretizar seu ideal para salvar a cidade, em especial através

de leis justas. A função política é sentida por ele fortemente

como um fazer justiça, dar a sentença. Ele próprio afirma de

ter dado leis igualmente ao mal e ao bom, adaptando a cada

um a reta justiça19. Há quem veja na sua obra uma

prefiguração da República platônica20.

Em Anaximandro encontramos o termo dique

aplicado à sua visão geral do cosmos (fr.1)21, procedimento

comum entre os filósofos naturalistas. Muito discutida é a

a reta distribuição; na elegia que se dá exatamente o nome de Eunomía

(fr.3) ele dá uma descrição que permanece clássica desta reta ordem,

que tem para ele valor religioso, com a imagem de eunomía que rende

cada coisa ordenada e composta, faz cessar a avidez e a violência, põe

fim às obras da discórdia e ao ódio da disputa".

18. JAEGER, W., Paidea, op. cit., vol.I, pp.265 e 272, ressaltando a

influência do pensamento de Hesíodo sobre Sólon.

19. ISNARDI PARENTE, M., Il pensiero politico greco dalle origini

alla sofistica, op. cit., p.141.

20. BOSCO, N., Themis e Dike, op. cit., p.165: "Também sob outros

aspectos a cidade, ao mesmo tempo real e ideal, de Sólon, prefigura a

República platônica. Em ambas a virtude dos singulares e aquela da

comunidade se condicionam reciprocamente: a sociedade é justa

quando é feita de homens justos, e os homens mais facilmente serão

justos se viverem em uma cidade justa; em ambos a única justiça exige

virtudes diversas a quem efetua diversas funções: a sabedoria nos

governantes, a moderação nos governados; em ambas está junto

utilidade e justiça que os mais sábios governem".

21. I presocratici. Testemonianze e frammenti da Talete a Empedocle,

aos cuidados de A. Lami, Milano 1991, p.139.

20 2

0

interpretação deste fragmento. Para Heidegger22, por

exemplo, este fragmento não pode ser interpretado

simplesmente como alguma coisa de exclusivamente físico-

naturalístico como o movimento das estações, mas é

expressão de um pensamento sobre o ser dos entes,

colocando-se, portanto, entre os primeiros documentos da

tradição a respeito da formação da metafísica ocidental.

Havelock pensa que este fragmento deve ser interpretado sem

se recorrer ao conceito filosófico de justiça cósmica, antes,

para ele o princípio da justiça como conceito filosófico não se

apresenta em nenhum pré-socrático23.

O fragmento simplesmente descreveria, portanto, com

um linguajar transportado das composições de litígios

judiciários, o ciclo dos eventos naturais, como o ciclo das

estações. Em todo caso, pode-se entender neste fragmento um

paralelismo entre a justiça como princípio do relacionamento

humano com os acontecimentos cósmicos, como afirma

Jaeger:

"como na República de Platão o estado é a estrutura

da alma humana escrita em grandes caracteres assim

para Anaximandro o universo tende a ser uma ordem

social escrita maior. Esta é, porém somente uma

tendência, já que só Heráclito vê com plena clareza

na filosofia do predecessor este paralelismo e o

elabora sistematicamente"24. Interpretação que

22. HEIDEGGER, M., Il detto di Anassimandro, em: Sentieri interrotti,

trad. it. de P. Chiodi, Firenze 1968, p.302ss.

23. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza, op. cit.,

pp.325-326.

24. JAEGER, W., Paideia, vol.I, op. cit., pp.301-302 nota 54.

ISNARDI PARENTE, M., Il pensiero politico greco dalle origini alla

21 2

1

aproxima o pensamento de Anaximandro à

concepção da Dique em Sólon.

Para Heráclito, dique teve um notável significado

simbólico, aparecendo em quatro dos seus ditos que chegaram

até nós25. Sua concepção de dique desenvolve a intuição de

Anaximandro da unidade do todo regulada pela dinâmica da

compensação das forças: uma força cede alternativamente a

uma outra, segundo uma necessidade interna, explicando toda

realidade através desta luta. A harmonia exprime a lei da

natureza cósmica, tanto humana quanto divina, da dique.

Segundo Havelock a justiça no pensamento pré-

socrático não ultrapassa os limites daquelas regras de

comportamento e de regularidade que eram as normas

fundamentais da sociedade homérica; que "coisa a justiça é

formalmente e definitivamente, não nos vem dito"26.

Em Heródoto encontra-se um elemento novo quanto à

terminologia. Em casos excepcionais ele usa para designar a

justiça o termo dikaiosyne, que aparece oito vezes empregado

em sua obra, com significados diferentes em conformidade

com o contexto em que se encontram, sempre com

conotações moralizantes27. Será o termo geralmente usado por

Platão. É possível que Heródoto seja também o primeiro a

sofistica, op. cit., p.150: "Não é difícil reconhecer sob esta teorização

cosmológica um ideal de justiça que é típica da cidade, com as suas

relações igualitárias e anti-monárquicas, a justiça da isótes e do

equilíbrio: Anaximandro pressupõe claramente o desenvolvimento da

cidade jônica".

25. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza, op. cit.,

p.326.

26. Idem, p.334.

27. ERODOTO, Le storie, trad. it. de L. Annibaletto, Milano 1988.

22 2

2

empregar nomes que indicam "não-justiça" em sentido

abstrato (a-dikia, a-dikema). Segundo Havelock, todo seu

"vocabulário sobre a justiça reflete seguramente as

conseqüências de uma aumentada prática e

procedimento legal na cidade-estado, que podemos

imaginar como leis e fórmulas legais que se

multiplicam sempre que venham escritas"28.

O significado desta mudança na nomenclatura ainda

não é claro, porém, "o aparecimento de dikaiosyne no texto

do histórico assinala o ponto de partida de um outro processo

intelectual"29. Embora a justiça ainda não haja a condição de

conceito, a formulação do termo dikaiosyne indica que existe

uma justiça interior ao homem e uma que opera socialmente.

"Dikaiosyne é uma qualidade pertencente ao dikaios, isto é

'homem de justiça', cujas características vêm descritas no mito

da Odisseia..."30 Platão levará a termo este processo de

interiorização da justiça como qualidade humana

considerando-a uma virtude da alma.

Com os sofistas temos um enriquecimento temático e

os interlocutores mais próximos de Sócrates e Platão31.

28. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza, op. cit.,

p.365.

29. Idem, p.366. DEL VECCHIO, G., La Giustizia, op. cit., p.16: "o

primeiro grau de elaboração puramente conceitual é representado,

provavelmente, no formar-se daquele conceito de dikaiosyne, que

acolhe em si o fundo comum das representações míticas primitivas: ou

seja, a idéia de uma proporção e de uma ordem, onde surge uma

determinada harmonia".

30. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza, op. cit.,

p.377.

31. Contudo, de suas obras chegaram até nós apenas fragmentos. Muito

23 2

3

Embora não tenham constituído uma escola e apresentem um

panorama muito variado, seja sob o aspecto filosófico-cultural

como no teórico-político, e se desenvolva num período de

tempo bastante longo, "tiveram em comum a característica de

pôr ao centro da especulação o homem nos seus vários

aspectos de sujeito cognoscitivo e volitivo"32.

Muitos fatores contribuíram ao surgimento dos

sofistas, "a pesquisa de uma gênese exterior, não filosófica da

sofística pode demonstrar que esta corrente de pensamento

simboliza verdadeiramente a expressão de um determinado

clima histórico, no qual o tom é dado exatamente pelos fatos

sociais... os sofistas, sem haver intenção, foram os filósofos

da história de sua época, que interpretaram com uma

fidelidade perfeita"33. A vitória sobre os persas abriu o

período de maior florescência da potência ateniense, centro da

cultura grega.

O declínio da aristocracia punha em crise valores e

das informações que temos provém de seus adversários, principalmente

de Platão, o que influenciou o caráter negativo que a eles historicamente

foi atribuido, conforme CORBATO, C., La sofistica, em: Questioni di

storiografia filosofica, vol.I, aos cuidados de V. Mathieu, Brescia 1975,

pp.116.

32. CORBATO, C., Sofisti, em: Enciclopedia Filosofica, aos cuidados

de Centro di studi filosofici di Galarate, Firenze 1967, 2ªEd., p.1524;

quanto a um possível denominador comum, afirma Corbato na p.1525:

"este é o seu modo de pensar e o seu método, voltado à physis total

enquanto se mostra ao homem, isto é, um tesouro de experiências das

quais cada um examina e desenvolve um aspecto particular e aos

problemas comuns dão soluções diversos e opostos".

33. UNTERSTEINER, M., Le origini sociali della sofistica, em: Studi

di filosofia greca in onore di R. Mondolfo, aos cuidados de V. E. Alfieri

e M. Untersteiner, Bari 1950, pp.178-179.

24 2

4

virtudes tradicionais e o crescente ordenamento democrático

possibilitava a participação dos cidadãos à vida política. Neste

contexto se fez importante a retórica como poder de

persuasão. Os sofistas serão os mestres da nova cultura,

voltada para a classe dirigente.

O comércio abriu as fronteiras para um

cosmopolitismo também cultural. A experiência dos viajantes

possibilitou o contato com outros costumes e leis, onde suas

próprias leis poderiam não ter sentido, provocando aquele

relativismo dos valores que dá uma determinada unidade à

sofística. De maior interesse para nós, entre outras coisas, é a

crise do conceito ainda muito vago de dique, mas que era um

dos princípios fundamentais do agir que constituía a

aristocracia.

Protágoras que é uma figura central na Atenas de

Péricles abandona o tema da relação entre dique e os deuses,

entre dique e a ordem do mundo. Para ele a idéia de

moralidade e justiça pertence naturalmente a todo homem e é

fundamental o ensino baseado seja em disposições naturais

seja simplesmente sobre o exercício. Seu discurso filosófico

sobre a justiça está centrado na consciência do homem.

No Teeteto (167 C) Platão afirma que para Protágoras

o que é justo para uma cidade o é somente enquanto a cidade

mesma o retém como tal. Mas seu relativismo não é

simplesmente uma desvalorização da justiça, é melhor um

redimensionamento, "ele defende a validade da lei da cidade

(o nomos) não pelas suas ligações com a justiça divina, mas

enquanto condição necessária à manutenção da sociedade

25 2

5

humana"34.

Com a corrente naturalística da sofistica se encontra

a radicalização da oposição entre nomos e physis, ou seja,

entre lei e natureza, que é exaltada em detrimento da lei

reduzida a mera convenção. Antes dos sofistas a tradição

grega dos antigos poetas ligava a lei humana com a ordem

cósmica; os filósofos viam a lei em relação à natureza das

coisas, ou seja, "como quer que fosse entendido o cosmo,

naturalisticamente ou religiosamente, este era visto como sede

de uma ordem superior - um superior princípio de dique - e

assim lei humana e cosmo eram vistos em acordo"35.

O relativismo defendido pelos sofistas, que cada polis

tem as suas leis próprias, fruto de convenção, e que justiça é

se adequar às próprias leis, punha em crise esta visão

tradicional. Antifonte sofista contrapõe a physis à lei. Um de

seus fragmentos em sua parte central representa bem isto:

"este essencialmente é o objeto da nossa pesquisa que a maior

parte de quanto é justo segundo a lei, se encontra em contraste

com a natureza" (fr.44).

34. TROMBINO, M., em: L"Apologia di Socrate" di Platone e il

problema della giustizia da Omero a Platone, op. cit., p.198. Mesmo do

ponto de vista do seu ensino de retórica não se pode dizer que fosse um

mero "contestador" das virtudes tradicionais. Segundo REALE, G.,

Storia della filosofia antica, vol.I, op. cit., p.233, mesmo no seu ensino

de contrapôr argumentação fazendo prevalecer o próprio, não

significava "que ele ensinasse a injustiça e a iniqüidade contra a justiça

e a retidão, mas simplesmente que ensinava os modos com os quais era

possível sustentar e levar à vitória o argumento (qualquer que fossee o

seu conteúdo) que na discussão, em dadas circunstâncias, poderia

resultar mais fraco".

35. Idem, p.202.

26 2

6

É com um grupo de sofistas que G. Reale denomina

de polícos-sofistas que a justiça vem radicalmente

desvalorizada. Estes políticos-sofistas "são homens políticos e

aspirantes ao poder político, que, sem mais algum retenho

moral, usaram, ou melhor abusaram de certos princípios

sofísticos para teorizar um verdadeiro e próprio imoralismo,

que desembocou no desprezo da assim chamada justiça, de

toda lei constituída, de todo princípio moral: mas estes mais

que o espírito autêntico da sofística representam a

excrescência patológica da sofistica mesma"36. Estes, como

Trasímaco e Cálicles serão interlocutores do Sócrates

platônico na República e no Górgias37, analisados mais à

frente.

Não obstante a difícil questão socrática, podemos

enunciar alguns dados básicos da justiça em Sócrates. Nele a

justiça esta certamente ligada à questão do estado, é

conjuntamente virtude moral e política38. Como outras

virtudes (temperança e piedade) se dissolve na ciência porque

ele "concebe a ciência e toda virtude essencialmente como

justiça interior, isto é, como consciente vontade do bem"39.

Neste contexto se inscreve sua missão: tornar os concidadãos

36. REALE, G., Storia della filosofia antica, vol.I, op. cit., p.229.

37. Idem, p.275. Embora como Cálicles venha apresentado no Górgias

de Platão é personagem literário e não histórico, mas que de qualquer

forma deve representar perfeitamente a expressão desta corrente.

38. BOSCO, N., Nè Themis nè Dike, em: "Filosofia", 1967, p.472.

39. Idem, p.473. REALE, G., Storia della filosofia antica, vol.I, op. cit.,

pp.314-315: "A tese da identidade das virtudes e ciência implicava em

primeiro lugar, em primeiro lugar, a unificação das tradicionaid

virtudes, como a sapiência, a justiça, a sabedoria, a temperança, a

fortaleza em uma só e única virtude, exatamente porque, na medida em

que são virtudes, cada uma e todas se reduzem essencialemente ao

conhecimento".

27 2

7

melhores e conseqüentemente, justos. A isto empenhou sua

vida radicalmente.

Frente a polis e suas leis, Sócrates "reconfirma sem

hesitação o princípio segundo o qual os privados não podem

pretender se fazer superiores às leis e às sentenças públicas...

que a cidade pode salvar-se e reger-se somente se os cidadãos

saibam acolher as sentenças e respeitar as normas

estabelecidas"40. Sócrates pressupõe as leis como garantia da

justiça entre os cidadãos.

Nestas referências históricas quanto à origem e

evolução da justiça pré-platônica, percebe-se um

entrelaçamento com realidades afins. Em uma visão de cunho

religioso, com a vontade e ordenamento dos deuses; em uma

visão naturalista, com a ordem cosmológica. Quando se

reflete sobre a vida do homem na polis, a justiça se entrelaça

com sua organização: a forma de governo, principalmente

dique como virtude aristocrática; com as leis que regem as

relações entre os cidadãos e dos cidadãos com o estado; sobre

o caráter das virtudes, sua origem e possibilidade de ensino,

etc.

Enfim, Sócrates é o melhor exemplo de homem que

pautou sua vida sobre esta concepção e concentrou sobre este

pilar os mais diversos elementos: a justiça como consciência

no agir em direção aos deuses e aos concidadãos; como

virtude que conduz ao bem e à felicidade; como sabedoria que

possibilita a vivência das leis com liberdade; que conduz a

uma missão.

40. ISNARDI PARENTE, M., Socrate e Platone, em: Storia delle idee

politiche economiche e sociali, dirigida por L. Firpo, vol.I, Torino 1982,

p.232.

28 2

8

Estes elementos serão retomados por Platão que, na

República, fará uma profunda análise da justiça e de sua inter-

relação: desde a análise dos mitos à educação, das leis às

formas de governo41.

41. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza, op. cit., p.19,

afirma que "depois de Hesíodo, Platão parece ter sido o primeiro a

afrontar a justiça como um tema próprio, e o primeiro em absoluto a

transformá-lo em um princípio normativo e um problema de caráter

filosófico"; e, na p.307, afirma que a República é o primeiro texto que

tenta dar uma definição sistemática da justiça.

29 2

9

III. A CRÍTICA HISTÓRICA:

PLATÃO E SUA OBRA

Platão com seus escritos tem fascinado o pensamento

humano até hoje que, de uma forma ou de outra, tem alguma

relação com ele. Um filósofo contemporâneo pode dizer que

toda a história da filosofia não é mais que anotações ao

rodapé de página de seus escritos. Assim também F. Adorno

entende a "história da crítica" de Platão, escrevê-la seria

reescrever uma "história da filosofia"42. Seus escritos,

patrimônio literário da humanidade, não são reduzíveis a um

esquema, nem a exposições sistemáticas ou manualísticas43.

Não obstante, na tentativa de entender como

historicamente Platão foi estudado e interpretado se pode

acenar a alguns pontos chaves. Em senso estrito, no que se

refere a Platão, se pode demarcar o início de uma história da

crítica com a tradução de todas as suas obras nos primeiros

anos do século XIX por Schleiermacher que, com seus

estudos, traduções, comentários e introduções, abre um novo

caminho na leitura de Platão, mais precisa e filologicamente

mais complexa44. Ele compreendeu qual era o estilo de

filosofar próprio de Platão: o diálogo socrático. Mostrando o

42. ADORNO, F., Introduzione a Platone, Roma-Bari 1986, 3ª Ed.,

p.242.

43. POPPER, K. R., La società aperta e i suoi nemici. vol.I: Platone

totalitario, trad. it. de R. Pavetto, Roma 1993, 4ªEd, p.337 nota 45, é

contra esta afirmação comumente aceita.

44. Idem, p.245.

30 3

0

quanto é inadequado a tentativa de construir um sistema

platônico acabado45 pois Platão deve ser estudado diálogo por

diálogo; errando, porém, ao pensar que Platão, quando

começou a escrever, já houvesse pronto o plano do seu

filosofar e o distribuído programaticamente, diálogo por

diálogo, segundo um plano didático46.

Esta via filológica e histórico-filosófica aberta por

Schleiermacher será uma das percorridas pelos maiores

estudiosos de Platão no século XIX, a outra será a aberta com

as "Lições sobre História da Filosofia" de Hegel, que com sua

impostação provocou um novo modo de estudar Platão47.

Outro nome que se deve lembrar é o de K. F.

Hermann, que teve uma importância decisiva na descoberta

do "verdadeiro" Platão, compreendendo que, contrariamente à

distribuição lógica proposta por Schleiermacher, os diálogos

platônicos respeitam uma verdadeira e própria evolução

cronológica. Porém, mais que na classificação dos diálogos,

em Hermann "...é felicíssima a intuição que vê Platão evoluir

espiritual e historicamente considerando os vários diálogos

como espelho desta evolução"48.

45. JAEGER, W., Paideia, vol.II, trad. it. de A. Setti, Firenze 1990,

3ªEd., p.131: "Permanece mérito de Schleiermacher o haver

reconhecido, com o vivo sentido de um romântico pela forma como

expressão da individualidade espiritual, o elemento específico do

filosofar platônico no fato que esse precisamente não tende ao sistema

fechado, mas se apresenta como investigação filosófica em ato, como

diálogo".

46. REALE, G., Platone, em: Questioni di storiografia filosofica, vol.I,

Milano 1975, pp.182-183.

47. ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., p.248.

48. REALE, G., Questioni di storiografia filosofica, op. cit., vol.I,

p.183.

31 3

1

Significativo ainda, no século passado, no que respeita

à exegese de Platão, foi o trabalho de Lewis Campbell.

Partindo de características estilísticas encontradas no livro das

Leis, seguramente a última obra de Platão, ele pode

estabelecer um critério para a cronologia das obras platônicas,

que a esta última se assemelhavam49. "A obra de Campbell

abre toda uma nova prospectiva, relativamente à evolução e à

crise do pensamento platônico"50.

Será, no entanto, W. Lutoslawski que levará o método

"estilométrico" às últimas conseqüências, avançando ao

trabalho de Campbell que não havia fornecido nenhum

elemento para decidir quanto à cronologia dos diálogos

anteriores àqueles dialéticos. É mérito de Lutoslawski o

fundamento científico da estilometria51.

Neste nosso século houve uma verdadeira "explosão"

de estudos platônicos e anti-platônicos52, concentrando-se

principalmente em setores particulares (as tentativas de

síntese se fizeram mais raras). Platão é lido e interpretado a

partir dos mais variados pontos de vista53: neokantiano,

49. JAEGER, W., Paidea, op. cit., vol.II, p.134: "Em conclusão,

também se, com este método, não é possível determinar as relações

cronológicas de todos os diálogos entre si, pode-se porém, claramente

indicar três grupos principais, dos quais ao menos os diálogos mais

importantes podem, com grande verossimilhança, serem estabelecidos".

50. ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., p.251.

51. STEFANINI, L., Platone, vol.I, Padova 1949, 2ªEd., p.LXIII. Na

p.LXX Stefanini reproduz uma tabela com as características estilísticas

examinadas por Lutoslawski.

52. REALE, G., Questioni di storiografia filosofica, op. cit., vol.I,

pp.191-192.

53. ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., pp.254-265.

32 3

2

idealista, existencialista, fenomenológico, espiritualista54,

ético-político e, sobretudo, após 1960, se desenvolve uma

pesquisa de caráter sociológico e antropológico55.

Quanto ao estado atual desta questão apresentamos

aqui, em seus três principais filões, uma síntese de Adorno56.

O primeiro que desenvolve a tese de Kramer e de Gaiser,

referente principalmente à "doutrina não escrita" de Platão57.

O segundo filão é baseado em um "retorno à única e

sistemática filosofia de Platão (em paralelo ao retorno à única

e sistemática filosofia de Aristóteles), filosofia platônica

54. Idem, p.267. Segundo Adorno, entre os representantes deste ponto

de vista estão L. Stefanini e M. F. Sciacca.

55. Idem, p.271.

56. Idem, pp.274-277: "ao lado de outros estudos sobre Platão mais

manualísticos e narrativos vêm se delineando três filões principais de

pesquisa..."

57. Aqui não muito valorizada por ADORNO, F., Introduzione a

Platone, op. cit., p.274: "sem grandes acréscimos ou probantes

confirmações...", que, porém, publica em 1978. Esta linha de

interpretação vem sendo hoje muito desenvolvida em especial, na Itália,

pelo Centro de Pesquisa de Metafísica da Universidade Católica do

Sagrado Coração, em Milão, tendo à frente Giovanni Reale e já uma

vasta publicação, em especial: REALE, G., Per una nuova

interpretazione di Platone, rilettura della metafisica dei grande

dialoghi alla luce delle 'dottrine non scritte', Milano 1989, 6ªEd.

Reservas a esta linha de interpretação e obras desta corrente é

manifestado, por exemplo, por ISNARDI PARENTE, M.,

principalmente na recessão ao livro de KRAMER, H., Platone e i

fondamenti della metafisica, trad. it. de G. Reale, Milano 1982,

publicada em "Gnomon", LVII (1985) 120-127; Idem, Il "Platone non

scritto" e le autotestemonianze. Alcune note a proposito di un libro

recente, em: "Elenchos", V (1984) 201-209; Idem, Il problema della

"dottrina non scritta" di Platone, em: "La Parola del Passato", XLI

(1986) 5-30; Idem, La VII Epistola, em: L'eredità di Platone

nell'Accademia antica, Milano 1989, pp.79-94.

33 3

3

fundada sobre uma visão ontológico-sistemática de tudo

escandente em tramas de idéias ordenadas como é bom e

justo que sejam"58. Alguns nomes deste segundo filão são: O.

Wichmann, E. A. Wjller, H. E. Pester, L. Paquet e R. Marten.

O terceiro filão procura a unidade da filosofia

platônica unilateralmente, assumindo motivos diversos, ou na

dialética, ou na função dada às técnicas em vista de

estruturações sociológicas, ou na doutrina das idéias, ou em

uma determinada lógica. Pensadores deste terceiro filão são,

por exemplo, G. Cambiano e C. Diano.

Quanto aos escritos de Platão, segundo o que o que é

possível saber através de citações de autores antigos, todos

chegaram até nós. O problema de sua autenticidade foi centro

de vivacíssimo debate no século passado59, em que

determinadas posições se radicalizaram negando a

autenticidade de muitas destas obras. No nosso século ao

invés, está se difundindo nos estudiosos a convicção que a

maior parte, senão certamente todas, são autênticas60. As

dúvidas que permanecem se referem às obras secundárias que

não comprometem a globalidade dos estudos platônicos61.

58. ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., pp.274-275.

59. JAEGER, W., Paidea, op. cit., vol.II, p.136: "Se bem sempre se

soubesse, desde à antiguidade, que o nosso apanhado dos escritos

platônicos compreendia também obras não autênticas, contudo, somente

no século XIX, a crítica atingiu vera importância e profundidade sobre

este terreno".

60. REALE, G., Storia della filosofia antica, vol.V, Milano 1991,

8ªEd., p.476.

61. REALE, G., Introduzione generale al pensiero di Platone, em:

Platone. Tutti gli scritti, Milano 1992, 3ªEd., p.LXIII: "os escritos

sobre os quais permanecem dúvidas acerca de sua autenticidade são já

poucos, além do mais de limitado relevo e, todavia, não de decisiva

34 3

4

Do que foi acima mencionado resta fora de dúvida a

autenticidade da República62, obra que temos em primeiro

plano63. Complicado, porém, é fixar a cronologia desta obra.

Nem mesmo é fácil estabelecer o que de real existe neste

diálogo que Sócrates narra e o quanto é apenas recurso

literário platônico. A própria cronologia dos personagens é

objeto de conjecturas e contradições64.

importância para os temas que tratam". Consideração feita já por

JAEGER, W., Paidea, op. cit., p.137.

62. POPPER, K. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., p.132,

contesta a tradução deste título da obra platônica. Segundo ele, a

palavra grega que intitula a obra seria melhor traduzida por A

Constituição ou A Cidade-Estado ou ainda O Estado. No seu entender a

palavra República induz o leitor a uma idealização da obra.

63. Ainda que Diógines Laércio a tenha considerado plágio: Vita dei

filosofi III, 37: "Euforine e Panécio sustentaram que o início da

República foi encontrado com frequentíssimas correções e

modificações. E Aristosseno afirma que quase toda a República se

encontra escrita nas Antilogias de Protágoras", e ainda em III, 57: "o

mesmo Trasilo diz que os seus diálogos genuínos são ao todo 56, com a

República dividida em 10 livros, afirma Favorino no segundo livro das

Histórias várias que se encontra quase toda nas Antilogias de

Protágoras". A respeito destas afirmações de Diógines Laércio, comenta

REALE, G., Storia della filosofia antica, op. cit., vol.I, p.239 nota 16:

"Protágoras teria, em resumo, antecipado a idéia que o governo do

Estado deve ser confiado aos filósofos. Mas... além desta possível

tangência entre o Estado protagórico e aquele platônico existe um

abismo".

64. ROCHA PEREIRA, M. H. de, Introdução à República, em: A

República, Lisboa s/d, 6ªEd., p.XII, retomando D. J. Allan (que por sua

vez aceita a cronologia de A. E. Taylor) afirma serem os personagens

possivelmente os melhores indícios cronológicos; enquanto LOZZA,

G., Introduzione, em: La Repubblica, Milano 1990, pp.VI-VII, vê

nestes personagens um flagrante anacronismo com o qual Platão não se

preocupou.

35 3

5

À parte algumas reservas os estudiosos concordam

atualmente em afirmar que a República é uma obra da

maturidade de Platão65 e isto por uma série de razões, entre

elas seu conteúdo66 e sua relação com o último livro de

Platão, as Leis. Algumas reservas que podemos mencionar

são: o fato de Platão continuamente retomar seus escritos, o

que em relação à República é atestado também por Diógenes

Laércio67; a característica platônica de desenvolver uma obra

ao nível da oralidade e somente em uma fase posterior a fixá-

la por escrito68; que uma obra da espessura da República não

deve ter sido elaborada e escrita em pouco tempo69, e a

principal reserva, quanto à unidade de composição da obra,

ou seja, se o primeiro livro é um diálogo autônomo e de época

juvenil ou não, problema que desenvolveremos em seguida.

Embora o progresso da crítica desde Schleiermacher e

Hermann até nossos dias tenha sido enorme e tenha

contribuído muitíssimo para o avanço na interpretação de

Platão, em alguns pontos ainda não se chegou a um consenso,

permanecendo aberta a discussão. É o caso do primeiro livro

65. REALE, G., Storia della filosofia antica, op. cit., vol.II, p.43:

"Tem-se ulteriormente estabelecido que a República pertence à fase

central da produção platônica, que é precedida pelo Simpósio e pelo

Fédon e que é seguida do Fedro".

66. LOZZA, G., Introduzione, op. cit., p.XI: "é certo ao invés que na

República, a partir do livro VI está já plenamente desenvolvida a teoria

das idéias e que todos os temas da filosofia platônica venham fundidos

em harmoniosa unidade: é sobretudo por isso que o diálogo vem já

unanimemente atribuído à plena maturidade de Platão".

67. Vita dei filosofi, III, 37.

68. REALE, G., Storia della filosofia antica, op. cit., vol.II, p.46.

69. ROCHA PEREIRA, M. H. de, Introdução à República, op. cit.,

p.XV.

36 3

6

da República, que uma parte da crítica separou do conjunto da

obra, considerando-o um diálogo autônomo e por suas

características, juvenil. No entanto, outros críticos têm

insistido na unidade de estrutura e de composição da grande

obra platônica.

Já Schleiermacher apresentou sua impressão quanto a

uma relativa autonomia do primeiro livro70, mas foi Hermann

quem por primeiro formulou e aprofundou esta questão.

Percebendo que o diálogo parece concluir-se no primeiro

livro, levantou a hipótese não apenas de sua autonomia, mas

também quanto à sua cronologia: seria obra juvenil, já que

apresenta duas características fundamentais às obras tidas

como "diálogos socráticos": examinar uma areté e sua

conclusão aporética71.

Dummler retomando e aprofundando esta via

70. SZLEZÁK, T. A., Platone e la scrittura della filosofia. Analisi di

struttura dei dialoghi della giovinezza e della maturità alla luce di un

nuovo paradigma ermeneutico, trad. it. de G. Reale, Milano 1989,

2ªEd., p.361 nota 14.

71. GIANNANTONI, G., Il primo libro della Repubblica di Platone,

em: Rivista Critica di Storia della Filosofia, 02 (1957) 124. SCIACCA,

M. F., La giustizia e l'idea del bene, em: Platone, vol.I, Milano 1967,

2ªEd., p.296, parte da convicção desta hipótese que lhe parece

praticamente incontestável. É interessante que POPPER, K. R., La

società aperta e i suoi nemici, op. cit., pretende demonstrar, entre outras

coisas, um afastamento de Platão em relação ao pensamento socrático

não simplesmente como uma definição e maturação do seu próprio

pensamento, o que por demais é comumente aceito, mas como uma

"mudança de tonalidade", o que implica uma diferença de postura entre

as obras juvenis e as da maturidade (nas pp.272ss. Platão é apresentado

como traidor de Sócrates), e especificamente no que concerne à justiça,

a diferença entre o Górgias (que seria mais socrático) e a República,

baseando-se em argumentos que envolvem o Iº livro (pp.153ss.), e no

entanto não faz nenhuma menção quanto ao problema de sua datação.

37 3

7

levantou a hipótese, seguindo a lógica dos outros escritos

platônicos, com boa aceitação, de que este diálogo autônomo

poderia ter sido intitulado Trasímaco72, mas o retendo como

incompleto, já que no seu parecer Platão concluiria esta obra

com um mito escatológico, quem sabe o livro décimo.

Hipótese esta que, segundo G. Giannantoni73, não encontrou

ressonância entre os críticos.

Avanço à hipótese da autonomia do primeiro livro

veio dado pelo trabalho de H. von Arnim, que através de um

exame lingüístico estabeleceu sua semelhança com o Laquete

e com outros diálogos da juventude, situando-o

posteriormente ao Protágoras e o Laquete e anterior ao

Liside. Ainda segundo von Arnim, o Górgias dependeria

deste suposto Trasímaco. Coube, no entanto, a U. von

Wilamowitz-Moellendorff explicar a conexão deste livro com

o resto da obra: Platão era muito ligado ao que havia

produzido e não queria que nada se perdesse e portanto deve

ter reelaborado este Trasímaco para fazê-lo prólogo aos livros

seguintes da República74. Friedlaender assume e defende esta

72. Assim comenta esta hipótese SCIACCA, M. F., Il problema della

giustizia nel primo libro della Repubblica, op. cit., p.298: "é então nas

primeiras obras ou naquelas da primeira maturidade, de transição quase,

que Platão polemiza com a tese trasimaquéia da justiça, e tudo faz supor

que lhe tenha dedicado um diálogo, que em seguida lhe será idôneo pôr

como introdução a uma obra de amplo respiro. Com razão alguns

consideraram este primeiro livro um diálogo autônomo, ao qual talvez

Platão teria dado o título de Trasímaco". Quanto à autonomia do

primeiro livro, JAEGER, W., Paidea, op. cit., vol.II, p.156, escreve

somente que esta "... opinião, hoje aceita por muitos, não é, certo, mais

que uma hipótese inteligente".

73. GIANNANTONI, G., Il primo libro della Repubblica di Platone,

op. cit., p.125.

74. SZLEZÁK, T. A., Platone e la scrittura della filosofia, op. cit.,

38 3

8

tese, aprofundando-a num confronto com o Clitofonte. Tese

que é levada ao seu limite extremo por R. Preiswerk que

acaba, inclusive, por denegrir a imagem de grande escritor de

Platão75.

A posição radical de Preiswark suscitou fortes reações

de críticos que reivindicam a unidade da obra. A este parecer

já haviam se pronunciado Zeller, J. Hirmer, Th. Gomperz.

Mas principalmente H. Raeder que argumentou contra as

objeções à unidade da República, demonstrando que estas

justamente indicam o caráter introdutório do primeiro livro, e

se Platão utilizou um material anterior, isto, a seu ver, não

vêm ao caso, já que na forma atual é parte integrante da

obra76.

Mesmo W. Lutoslawski, que estabeleceu diferenças

estilísticas entre o primeiro livro e o restante da obra, negou

que este fosse uma composição à parte77. R. Shaerer explicou

p.362. ISNARDI PARENTE, M., Rileggendo il Platon di Ulrich von

Wilamowitz-Moellendorff, em: Annali della scuola normale superiore

di Pisa, vol.III.1, Pisa 1973, p.150: Wilamowitz "aceita teses

composicionais típicas da pesquisa do século XIX como aquela sobre a

complexa composição cronológica da República, com a hipótese,

aventada por Hermann em 1839 e rebatida por von Arnim em 1914, do

caráter independente do livro I, o Trasímaco".

75. GIANNANTONI, G., Il primo libro della Repubblica di Platone,

op. cit., p.128.

76. Idem, p.126.

77. Na tabela cronológica dos escritos platônicos conforme as

afinidades estilísticas elaborada por W. Lutoslaweski e reproduzida por

STEFANINI, L., Platone, op. cit., vol.I, p.LXX, a República aparece

composta ininterruptamente, ainda que em sua classificação quádrupla

os separe: o primeiro livro é classificado como o último componente da

segunda fase, que ele denomina como Primeiro Grupo Platônico, e os

livros restantes como os primeiros da terceira fase, que denomina como

39 3

9

a diferença entre o primeiro livro e o restante da obra

afirmando que neste último não se quer mostrar a ignorância

de um sofista presunçoso, mas de ajudar dois jovens filósofos

(Adimanto e Gláucon)78. Por fim, Rudberg rebateu as críticas

separatistas demonstrando quanto o primeiro livro está

intrinsecamente relacionado com o restante da obra, o que

justifica sua função de introdução79.

Por outra via Dornseiff observou que todas as

características que possibilitam a hipótese de uma redação

juvenil do primeiro livro são igualmente explicáveis retendo

como uma consciente retomada por Platão de sua maneira

juvenil. Hipótese que foi assumida e desenvolvida por F.

Adorno80.

Como conclusão do que foi apresentado para este

trabalho sobre a justiça na República de Platão, pode-se reter

o seguinte: a autenticidade de toda a obra está fora de

discussão. Quanto à sua unidade, ou seja, se toda a obra foi

pensada e escrita conjuntamente ou se o primeiro livro é um

diálogo autônomo e anterior que só posteriormente foi

inserido como livro introdutório ao diálogo, como se mostrou,

a crítica está longe de chegar a um consenso que encerre a

questão, o que não altera para nós o valor do seu uso, pelo

Grupo Platônico Médio.

78. Que Platão possa elaborar um diálogo com fins pedagógicos, o

adaptando à capacidade dos personagens é defendido, por exemplo, por

REALE, G., Storia della filosofia antica, op. cit., vol.II, p.46. No que se

refere em específico à República, sua apresentação dos personagens, em

Platone. Tutti gli scritti, op. cit., p.1080.

79. SZLEZÁK, T. A., Platone e la scrittura della filosofia, op. cit.,

pp.354-370, faz uma análise pormenorizada desta relação.

80. GIANNANTONI, G., Il primo libro della Repubblica di Platone,

op. cit., p.131.

40 4

0

fato de ele estar ligado intrinsecamente ao restante da obra.

Mesmo assumindo a hipótese "separatista", isto implicaria

numa revisão e adaptação por Platão a ponto de lhe servir ao

escopo pretendido de fazê-lo introdução à sua obra-prima81.

Quanto à cronologia, respeitando a possibilidade de um fundo

juvenil no primeiro livro, a República como obra em sua

forma atual é concordemente um livro da maturidade de

Platão.

81. GIANNANTONI, G., Platone e l'accademia, em: Storia della

filosofia, aos cuidados de Mario Dal Pra, Milano 1975, pp.175-176:

"Como quer que se avalie estas observações, porém, é certo que a

unidade de pensamento e do escopo dos dez livros em que foi por

Trásilo dividida a República, está fora de qualquer contestação, e neste

quadro também o Iº livro vem sempre mais assumindo o caráter de um

documento testemunhante de uma consciente retomada da parte do

Platão maduro dos temas fundamentais do socratismo..."

41 4

1

IV. A JUSTIÇA NA REPÚBLICA PLATÔNICA

A República inicia-se com Sócrates narrando a um

grupo anônimo82 sua descida83 ao Pireu no dia anterior para a

festa da deusa que, tudo leva a crer, seja a deusa Bêndis. Ali

permanecendo por intervenção de Polemarco que o hospeda e

em sua casa se desenvolve o diálogo. O primeiro

interlocutor84 de Sócrates será Céfalo, pai de Polemarco, Lísia

82. Dando-se crédito à relação desta obra com o Timeu, se concluiria

que Sócrates estaria narrando a Timeu, Crícia, Ermócrates e a um

quarto personagem que permanece anônimo.

83. Conforme mencionamos anteriormente, uma parte da crítica vê

nesta introdução uma profunda relação com o restante da obra. Na

análise de SZLEZÁK, T. A., Platone e la scrittura della filosofia, op.

cit., p.354, a palavra "descida" que abre o livro da República tem uma

função toda especial: não representa apenas um dado topográfico, mas

significa a "humildade" do filósofo, que desce com "benévolo interesse"

pela festa e oração à deusa (327 A), ligado ao fato que no Estado ideal

também o filósofo não permanecerá no "alto", mas tendo contemplado a

idéia de Bem deverá retornar, "descer" junto aos prisioneiros da caverna

para alí cumprir sua missão, em vista da felicidade de todo o Estado

(519 D - 520 A). A tradução portuguesa de ROCHA PEREIRA, M. H.

da, A República, op. cit., é neste sentido de toda inadequada,

eliminando a idéia de "descida": "Ontem fui até o Pireu com

Gláucon..."(327 A), enquanto o texto grego usa a palavra "kateben",

conforme, PLATONE, LA Repubblica, trad. it. de G. Lozza, Milano

1990, com texto grego à frente.

84. Ao quanto de real possuem os interlocutores de Sócrates, nos

contentamos em reportar uma significativa frase de R. L. Nattleship: "as

figuras do diálogo são, por um lado, simplesmente expressões ideais de

certos princípios; por outro lado, trazem consigo muito do seu caráter

real", citado por ROCHA PEREIRA, M. H. da, Introdução à

42 4

2

e Eutidemo. De sua vida sabemos pouco. Proveniente de

Siracusa, chamado à Atenas de Péricles, constrói uma fábrica

de armas (escudos), na qual trabalhavam muitos escravos. No

diálogo é apresentado já em idade avançada.

Interrogado por Sócrates sobre a velhice, Céfalo se

apresenta feliz por ter podido viver de modo "justo",

restituindo aos deuses e aos homens o que lhes era devido.

Sócrates percebe na resposta de Céfalo uma concepção de

justiça que é, senão inadequada, ao menos insuficiente (331

C-D), momento em que Polemarco entra no diálogo e Céfalo

o abandona, retirando-se.

Este pequeno diálogo entre Sócrates e Céfalo tem sido

alvo das mais variadas e contraditórias interpretações.

Giannantoni apresenta uma visão otimista85: Céfalo

representa a classe aristocrática, à qual Platão permanece

unido. Emblema de uma vida justa e velhice serena, própria

da aristocracia soloniana, Platão o teria apresentado para

contrastar aos seus contemporâneos e por isso não deixa

Sócrates confutá-lo, mas o retira de cena. Radicalmente

negativa é a interpretação de Rosen86: para ele Céfalo

representa o cabeça (= Céfalo) de uma família monárquica,

que tendo vivido entregue aos prazeres é na velhice um

"libertino arrependido que procura alívio na religião para as

suas recordações de precedente paixão"87.

República, op. cit., p.VII.

85. GIANNANTONI, G., Il primo libro della Repubblica di Platone,

op. cit., pp.132-133.

86. ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica di Platone, Napoli 1990,

pp.24-30.

87. Idem, p.27.

43 4

3

Nele, a honestidade e a disciplina aparecem somente

quando as paixões desaparecem. Durante o domínio das

paixões, a justiça está ausente. "Em outras palavras, ele é

justo pelo menor tempo possível. A justiça não é então um

bem em si, mas um mal necessário"88. Segundo Rosen, a

justiça tem "uma posição muito baixa na economia psíquica

de Céfalo. Ele fala da injustiça (330 D), mas não da justiça...

No melhor dos casos, a justiça tem para Céfalo uma

conotação negativa"89. Sua visão, de "pio hipócrita", não

passa de utilitarista.

Uma visão "intermédia" pode ser a de Sciacca90 que o

faz em uma "chave" ética: Céfalo é um homem sereno,

comedido na palavra e no gesto; a intenção de Sócrates é

saber se a esta postura exterior corresponde uma ordem moral

interior, constatando, segundo Sciacca, que o ponto de vista

de Céfalo "não é uma doutrina moral, mas um conjunto de

considerações ditadas por um modesto senso comum,

acompanhado de uma fácil honestidade"91.

Céfalo apresenta uma moral utilitária, no fundo é um

"fariseu bonachão". Para Sciacca, Céfalo tinha que se retirar

por reconhecer justas as observações de Sócrates e como as

suas não passavam de "senso comum", não podiam se

contrapor à argumentação filosófica de Sócrates, que

aproveita para levantar a questão: o que é a justiça?

Concluindo, Céfalo, rico meteco, apresenta da justiça

88. Idem, p.27.

89. Idem, p.27-28.

90. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., pp.300-

304.

91. Idem, p.301.

44 4

4

uma opinião comum que, como se evidenciará adiante, é

atribuída ao poeta Simônides, de ser a justiça o "dizer a

verdade e o restituir aquilo que se tomou" (331 C). Mas

Sócrates confuta esta definição porque há casos em que seu

cumprimento é causa propriamente de injustiça, como o

restituir armas a alguém em estado de loucura (331 C-D).

Polemarco, filho de Céfalo, é o herdeiro da discussão

em favor do pai. Ao argumento que Céfalo aludiu como

justiça, pertencente ao senso comum, Polemarco chama em

defesa Simônides que, apesar de todas as reservas platônicas

contra os poetas, é tido em boa conta. Sócrates o chama de

"homem divino e sapiente" (331 E). A famosa máxima sobre

a justiça a ele atribuída por Polemarco: "é justo restituir a

cada um o que se lhe deve" (331 E)92.

Entra assim em cena um filósofo, Polemarco93, com

quem Sócrates poderá discutir. Sócrates diz não ter entendido

bem o que queria dizer Simônides com esta máxima (331 E),

92. Conforme tradução de ROCHA PEREIRA, M. H. de, Introdução à

República, op. cit., p.10. Embora a autora tente uma localização desta

máxima entre os fragmentos de Simônides, esta não se encontra,

conforme RADICE, R., em: Platone, Tutti gli scritti, op. cit., pp.1329

nota 12.

93. Polemarco no Fedro 257 B é apresentado como adepto da filosofia.

Em relação a esta saída de Céfalo e entrada de Polemarco, comenta

SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., p.304: "esta

filosofia miúda do senso comum (em relação a Céfalo) é invencível,

porque não é filosofia: Sócrates não pode ter razão; da sofística sim, que

é uma filosofia. Platão, com duas batidas a mete fora da discussão e faz

entrar no seu lugar, os verdadeiros interlocutores de Sócrates, os

Sofistas: uma posição especulativa contra outra". Para Sciacca, a

exceção de Céfalo, os interlocutores de Sócrates são todos Sofistas (em

especial quanto a Polemarco, p.306).

45 4

5

e assim começa a interrogar Polemarco, pois o poeta

certamente não a teria formulado sem nenhuma restrição,

como no caso da objeção já apresentada a Céfalo.

Concordemente Polemarco diz que Simônides é convicto de

que se deve fazer o bem aos amigos e não o mal. Assim se

chega à primeira definição de justiça: restituir ao amigo o que

lhe é devido quando isto não lhe seja um mal. Logo se tirarão

as conseqüências passando a soar assim: "a justiça consiste no

beneficiar os amigos e no fazer mal aos inimigos" (332 D)94.

Como Polemarco insiste nesta definição, Sócrates a

reexamina perguntando-lhe o que entende por amigo. A

conclusão é que amigo é aquele que aparenta e de fato nos faz

o bem. Com isto se precisa ainda mais a definição de

Polemarco: "o justo consiste em fazer o bem ao amigo que é

bom e o mal ao inimigo que é mal" (335 A), mas que Sócrates

94. Um definição semelhante aparece no Menon, 71 E. O próprio

Sócrates de Xenofonte, nos Memoráveis II 6, 35 define assim a virtude,

e em IV 2, 16 a justiça. Schmid-Staehlin e Henderickx consideraram

esta definição como pertencente ao Sócrates histórico. Contra esta

hipótese Zeller já notava que ela é apenas sugerida mas não sustentada

por Sócrates e que Xenofonte a põe em sua boca como eco de opinião

comum, conforme: GIANNANTONI, G., Il primo libro della

Repubblica di Platone, op. cit., p.134 nota 34. Também Adam afirma

que "a opinião que a justiça consiste no fazer o bem aos amigos e mal

aos inimigos, é um fiel reflexo da moralidade grega prevalente", citado

por POPPER, k. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., p.346

nota 13. ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit.,

p.29, além de fazer uso sem reservas desta passagem de Xenofonte,

estabelece este paralelo: "Fazer o bem aos próprios amigos e trazer

dano aos inimigos é de tudo apropriado para os guerreiros, e esta

apropriação virá mais tarde às claras com o exemplo portado por

Sócrates ao cão nobre, que é gentil com os amigos e o oposto com os

estranhos (375 A-E)".

46 4

6

refuta (através de um sofisma95) mostrando o quanto é

errônea. Um especialista em sua arte não pode, por executá-la

bem, tornar outrem ignorante. Antes é propriamente o

contrário. Como o calor não tem a função de refrescar nem o

seco de umedecer, assim, não é próprio do justo fazer dano ao

inimigo, nem a qualquer um que seja, o que o renderia injusto

também, mas fazer o mal é próprio do injusto (335 D).

O próprio Sócrates apresenta uma conclusão de seu

diálogo com Polemarco sobre a justiça: "Não é então sábio

quem sustenta que a justiça consiste no restituir a cada um o

que lhe pertence, e com isto entenda que o homem justo deve

restituir mal por mal aos inimigos e bem por bem aos amigos.

Estes verdadeiramente não dizem a verdade, porque a nós é

resultado claro que em nenhum caso é justo fazer o mal a

qualquer um"(335 E).

Desta conclusão de Sócrates se reafirma o que já é

notório sobre sua concepção de virtude: quem conhece o bem

não pode fazer o mal96, por isso "não é sábio" quem pratica a

injustiça. Ninguém pode ter prazer em fazer o mal pelo mal e,

sobretudo, em fazer o mal a si mesmo, ora, como Sócrates

afirmará, a injustiça não é tanto um mal para quem a sofre

quanto para quem a comete, portanto o injusto é o ignorante

que comete o maior mal a si mesmo.

Apenas Sócrates e Polemarco interromperam o

95. ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit.,

pp.32-34.

96. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., p.319 nota

31, considera este primeiro livro um diálogo juvenil e portanto

socrático: "a tese justiça-sapiência é socrática: a sapiência é virtude e a

virtude é sapiência..."

47 4

7

diálogo, Trasímaco97 , que já havia tentado intervir, mas foi

contido pelos outros que queriam ouvir a argumentação até o

fim, levantou-se furiosamente contra Sócrates (336 B). Não

lhe agrada o seu método que consiste, segundo ele, em fazer

perguntas para posteriormente confutar seu interlocutor, sem

dar uma resposta, "já que é mais fácil perguntar que

responder" (336 C)98. E pede a Sócrates que dê a sua

definição de justiça, em um modo claro e conciso, sem se

exprimir por meio de frivolidades como ser a justiça "o dever,

ou a utilidade, ou a vantagem, o proveito ou a conveniência"

(337 A)99.

Sócrates defende seu método reiterando sua

97. Trasímaco, cujo nome significa "audaz na batalha", nasceu em

Calcedônia na Bitínia (colônia de Megara). UNTERSTEINER, M., I

sofisti, vol.II, Torino 1949, pp.373-374, conjectura quanto a sua

cronologia: porque é mais velho que Lísia e exercitou sua atividade em

Atenas primeiro que Górgias, o que possibilitou sua menção por

Aristófanes em uma obra seguramente de 427 aC., pode-se estabelecer

como data limite para seu nascimento 459 aC. A data limite para sua

morte é dada pelo Discurso aos Lariseus, que não pode ser anterior a

413 aC. Deve portanto ter desenvolvido suas atividades nas últimas três

décadas do século V. Embora haja quem afirme que ele tenha se

enforcado, Untersteiner acha que não se deve dar crédito. Foi advogado

mas parece não ter publicado seus discursos. A Suda enumera um

elenco de suas obras, mas até nós chegaram somente alguns

fragmentos, conforme: I presocratici. Testemonianze e frammenti,

vol.II, aos cuidados de G. Giannantoni, Roma-Bari 1975, 2ªEd., pp.963-

970. Como retórico ficou famoso, podendo se auto-denominar de

"mestre de eloqüência".

98. Esta reprovação do método socrático é freqüente, por exemplo,

Protágoras, 337 D.

99. Comentando este início de diálogo entre Trasímaco e Sócrates,

ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica, op. cit., p.37, vê no primeiro

uma antecipação de Maquiavel.

48 4

8

ignorância no que concerne ao assunto em questão e sua

sincera disponibilidade em aprender, provocando Trasímaco a

que o ensine e aos presentes. Evidentemente Trasímaco

queria falar, embora para isto tenha pedido um pagamento100.

Como mestre de eloqüência tinha ali uma boa oportunidade,

diante de um público qualificado, de demonstrar seus dotes,

dominar a conversa e arrancar elogios. Trasímaco demora em

atender ao pedido, também dos outros, mas é só para

valorizar-se. De fato, o próprio Sócrates havia notado que

"Trasímaco, evidentemente desejava falar para se cobrir de

glória, pois supunha que daria uma resposta admirável" (338

A).

Assegurado o pagamento Trasímaco apresenta sua

definição de justiça: "afirmo que a justiça não é outra coisa

senão a conveniência do mais forte" (338 C), ao que Sócrates

jocosamente dá um sentido restritivo, interpretando como

conveniência do que é superior em força física: se para

Polidamas, o lutador de Pancrácio, que é o mais forte de

todos, lhe convém, para o seu físico, comer carne bovina, tal

alimento será justo e conveniente também para os outros,

ainda que a ele inferiores (338 C-D).

Trasímaco protesta contra a má interpretação de

Sócrates e precisa sua definição: o mais forte é quem governa

e faz leis úteis a si próprio. "Certamente que cada governo

estabelece as leis de acordo com a sua conveniência... uma

vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os

governos aquilo que lhes convém, e castigam os

transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram uma

100. Platão não se cansa de criticar os sofistas por só ensinarem

mediante remuneração, conforme: Apologia 20 A; Górgias 519 C;

Hípias Maior 282 B-E; Laqués 186 C; Crátilo 384 B, 391 B-C.

49 4

9

injustiça" (338 E), portanto se pode "afirmar que há um só

modelo de justiça em todos os Estados - o que convém aos

poderes constituídos. Ora estes é que detêm a força" (339 A).

A definição de justiça dada por Trasímaco é eivada de

pessimismo, aplicando como princípio geral que ninguém

procura o útil para os outros, mas sim a si próprio101 . Por

isso, os governantes que têm o poder maior, de fazer a lei e

punir quem não as cumpra, submetem os súditos à sua

vontade e utilidade. Trasímaco afirma o direito de natureza,

"do mais forte", sobre as convenções sociais102, ou seja, a

diferença entre os fracos e subjugados e os fortes e

dominadores não é positiva, mas natural.

O seu princípio, a justiça como conveniência do mais

forte, tem, portanto, uma fundamentação natural: é justo que o

mais forte governe em benefício próprio e é justo que o mais

fraco se deixe governar em seu prejuízo. Rebelar-se contra

esta lei que tem fundamento natural é injustiça, e

conseqüentemente, merece punição103. Em outras palavras, a

101. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., p.310

nota 23.

102. Esta contraposição entre natureza, ou direito natural e convenção

ou direito positivo é o centro do pensamento também de Hípias,

conforme UNTERSTEINER, M., I sofisti, op. cit., pp.337-344.

Cálicles, no Górgias, desenvolve esta questão diferentemente de

Trasímaco: para ele a lei é instrumento dos mais fracos como proteção

contra os mais fortes. MARTINEZ, T. C., De los sofistas a Platon:

politica y pensamiento, Madrid 1986, p.83, afirma que Trasímaco, em

sua exposição, não recorre explicitamente à contraposição entre nomos

e physis, o que será feito somente por Glaucon quando diz retomar seu

argumento.

103. Não se pode dizer se esta teoria é especificamente de Trasímaco ou

da sofística em geral. Em todo caso, que seja justo que o mais forte

50 5

0

justiça para Trasímaco é egocêntrica, é a satisfação dos

próprios desejos, e aquele que consegue satisfazer seus

desejos é por definição o mais forte104.

Sócrates faz um balanço das afirmações de

Trasímaco, lembra que o termo "conveniência" era um dos

quais Trasímaco havia feito restrições (339 A). Sua definição

tem, portanto, de inovador somente a especificação: "do mais

forte" (339 A). Concordes em que a justiça é uma

conveniência, alguma coisa de útil, deve-se analisar o "mais

forte". Sócrates o faz perguntando se os governantes são

falíveis, ao que Trasímaco consente. Ora, se eles também

erram, alguma vez formularão leis que não os beneficie, mas

que lhes cause prejuízos. A conclusão é evidente, como os

domine sobre o mais fraco era opinião corrente, como atesta Tucídides,

segundo LEVI, A., Storia della sofistica, Napoli 1966, p.10. POPPER,

K. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., p.105, atribui esta

definição de justiça a Píndaro. Esta teoria pode ser apenas uma

adequação de Trasímaco à realidade de Atenas naquele momento

histórico, conforme SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op.

cit., p.310, nota 23: "a teoria denuncia um vivo senso da realidade

efetiva e um forte pessimismo histórico. Trasímaco talvez fosse

convicto que a justiça não é o útil do mais forte, mas constatava que

assim acontece na sociedade e que é inútil opôr-se ao 'fato': melhor

aceitar o jogo e tirar todas as vantagens possíveis. Para Sócrates, ao

invés, é tarefa do filósofo e do governante modificar o dado, instaurar

uma sociedade justa, ou ao menos de propô-la como ideal. A Trasímaco

falta este otimismo..." De fato, quanto à tese apresentada ser realmente

de Trasímaco paira muita dúvida, já que ela não se encontra entre os

seus fragmentos, e pelo contrário, um fragmento seu diz que a justiça é

o maior dos bens humanos (DK, 85) o que leva a concluir com LEVI,

A., Storia della sofistica, op. cit., p.20 nota 22, "se pode suspeitar que

Platão não apresente o seu pensamento de modo exato".

104. ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit.,

p.40, vê nisto uma prefiguração da vontade de poder de Nietzsche.

51 5

1

mais fracos deverão obedecer sempre, alguma vez será justo

fazer o que não convêm ao mais forte (339 D).

E assim Sócrates coloca-o em xeque: "ora, pois, ó

Trasímaco, não será forçoso que resulte daí a seguinte

situação: que é justo fazer o contrário do que você diz? Pois

não há dúvida que se prescreve aos mais fracos que façam o

que é prejudicial aos mais fortes" (339 E)105. Conclusão que

tem o assentimento da platéia (340 A-B). Mas Trasímaco

discordando da conclusão de Sócrates precisa ainda mais sua

definição: quem erra não é forte quando erra (340 C), como o

médico não é médico quando se engana relativamente ao

paciente, precisamente pelo fato de se enganar; ou hábil

calculador aquele que erra os seus cálculos, precisamente pelo

fato de errar. Conseqüentemente, artífice, sábio ou governante

algum se engana enquanto estiver nesta condição. Assim, "o

governante, na medida em que está no governo, não se

engana; se não se engana, promulga a lei que é melhor para

ele e é essa que deve ser cumprida pelos súditos" (340 E - 341

A).

Partindo do próprio argumento de Trasímaco,

Sócrates demonstra que toda arte procura o bem de outrem,

não o próprio, exemplo paradigmático é a medicina: o médico

possui a ciência médica para curar os enfermos, ou seja, "a

medicina não procura a conveniência da medicina, mas do

corpo" (342 C).

A esse ponto Sócrates pode concluir: nenhuma ciência

105. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., p.312

nota 24: "Sócrates e Trasímaco são concordes acerca do absoluto

respeito à lei da parte dos súditos, diferem no definir qual lei seja justa e

mereça obediência".

52 5

2

procura ou prescreve o que é vantajoso ao mais forte, mas sim

ao mais fraco e ao que é por ela governado. Portanto, "...

nenhum chefe, em qualquer lugar de comando, na medida em

que é chefe, examina ou prescreve o que é vantajoso a ele

mesmo, mas o que o é para seu subordinado, para o qual

exerce a sua profissão, e é tendo esse homem em atenção, e o

que lhe é vantajoso e conveniente, que diz o que diz e faz

tudo quanto faz" (342 E)106.

A este ponto ficou claro que a definição de justiça

dada por Trasímaco havia se voltado ao contrário107. Já que

do confronto entre as duas possibilidades, ou o governante

não é sábio, erra e neste caso não faz o que lhe é conveniente;

ou é sábio, não erra, e propriamente por isso não faz o que lhe

convém, mas o conveniente aos outros (pois quem conhece o

bem não pode fazer o mal), só resta a conseqüência de que o

governante justo não faz apenas o que lhe é conveniente, mas

aquilo que convém aos súditos, estes por sua vez, obedecendo

as leis colaboram com o bem e o progresso da comunidade108.

106.Idem, pp.313-314: "aqui a força do raciocínio socrático: se o

governante como tal é sábio, não pode fazer o útil próprio porque

contraditório. Só quem não tem o conceito de justiça, o ignorante, pode

identificar o justo com o próprio útil". Também ROSEN, S.,

Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit., p.38.

107. Para ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica di Platone, op.

cit., p.39: "... a confutação de Trasímaco da parte de Sócrates é um

insucesso filosófico. De outra parte porém é um sucesso retórico".

Rosen (p.45) contesta a lógica de argumentação de Sócrates, para ele

claro sofisma, já que não se pode confundir as técnicas (como a do

timoneiro, do marinheiro, da equitação, etc.) com a justiça: "O modelo

das tecnai como tal não é apto a pôr luz sobre a política em geral e

sobre a justiça em particular. Isto porque a techne é politicamente

neutra, se pode fazer um uso bom ou ruim". VEGETTI, M., L'etica

degli antichi, Roma-Bari 1994, 3ªEd., pp.112-113.

108. Nos Memoráveis de xenofonte, Sócrates discutindo com Hípias

53 5

3

Trasímaco não se dá por vencido e reage à

argumentação de Sócrates, à "maneira sofística"109, contra a

justiça. Para ele quem exerce uma arte a exerce em função

própria, e um bom exemplo é o pastor, que zela e engorda as

ovelhas, não para o bem delas, mas para o seu próprio. Como

os pastores são os governantes. Afirma enfaticamente a

respeito de Sócrates:

"é tão profundamente versado em questões de justo e

justiça, de injusto e injustiça, que desconhece serem a

justiça e o justo um bem alheio, que na realidade

consiste na vantagem do mais forte e de quem

governa, e que é próprio de quem obedece e serve ter

prejuízo; enquanto a injustiça é o contrário, e é quem

manda nos verdadeiramente ingênuos e justos; e os

súditos fazem o que é vantajoso para o mais forte e,

servindo-o, tornam-no feliz, a ele, mas de modo

algum a si mesmos. E assim, ó meu simplório, basta

reparar que o homem justo em toda a parte fica por

baixo do injusto" (343 C-D).

Seguindo seu tempestivo discurso Trasímaco enumera

uma série de situações em que o injusto leva vantagem sobre

o justo. É o que a experiência de todo dia ensina. A maior

sobre a justiça afirma "que é justo o que é conforme a lei" (IV 4, 13);

"Então quem age segundo a lei é justo, quem viola é injusto" (IV 4, 14);

e mais a frente, "e entre aqueles que governam os estados... que são

capazes de fazer com que os cidadães obedeçam às leis, estes são os

melhores, e que o estado no qual os cidadães mais obedecem às leis

vive no modo melhor em paz e em guerra..." (IV 4, 15); "então eu, ó

Hípias, declaro que é a mesma coisa 'ser conforme às leis' e 'ser justo"

(IV 4, 18).

109. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., p.314.

54 5

4

felicidade pertence ao completamente injusto. Quem é

parcialmente injusto é castigado, mas o perfeitamente injusto

é maximamente feliz110.

De fato, esta forma de Trasímaco argumentar, embora

trágica e eivada de pessimismo histórico, é uma maneira

angustiada de pôr o problema do mal, comum a muitos

pensadores. "Os justos não o são por virtude, mas por medo:

aqueles que criticam a injustiça não a criticam por recearem

praticá-la, mas por temerem sofrê-la" (344 C). Após este

discurso Trasímaco queria retirar-se, mas não lhe permitiram

(344 D).

Do discurso de Trasímaco surgirá uma nova questão:

que o injusto seja mais feliz que o justo. Principalmente a

partir de 344 D é flagrante a alternância do discurso de

Trasímaco, que passará a utilizar os termos justo e injusto em

seu significado tradicional, ou seja, como a justa medida nas

relações111. Sócrates não o refuta no mesmo campo em que

levantou a questão, em outras palavras, Sócrates não elenca

uma série de situações demonstradas pela experiência em que

o justo leva vantagem sobre o injusto. Ele continuará a lógica

110. Esta tese é defendida também por Pólo, ainda que mais

atenuadamente, no Górgias platônico (em especial: 471 A-D).

111. Interessante que SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene,

op. cit., em seus comentários não faz esta observação. ROSEN, S.,

Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit., p.49.

GIANNANTONI, G., Il primo dibro della Repubblica di Platone, op.

cit., p.135 nota 38: "se Trasímaco fosse coerente deveria ter

argumentado: justo é o que é conveniente ao mais forte, forte no sentido

mais completo é o tirano, então a justiça perfeita é o útil ao tirano e em

tal modo sustentar que a justiça é mais útil que a injustiça. Para

sustentar o contrário ele deve devolver aos termos justiça e injustiça o

significado tradicional".

55 5

5

de seu argumento, penetrando no ponto central da questão:

entre a justiça e a injustiça, qual é a virtude e qual o vício? Ou

seja, qual é conforme a lei moral? Das premissas de

Trasímaco não era possível outra conclusão: a injustiça é

virtude e sabedoria e a justiça vício e ignorância (348 E).

Trasímaco é obrigado pela lógica de seu raciocínio a

inverter a ordem moral tradicional. Sócrates não precisou de

muitas intervenções para demonstrar que a verdade é o

contrário: "logo, o justo se revela como bom e sábio e o

injusto como ignorante e mau" (350 C). É o xeque-mate que

faz Trasímaco corar. Mas Sócrates ainda demonstra que o

completamente injusto não existe, porque ao menos com seus

companheiros de injustiça deverá ser justo, de outro modo, os

inteiramente injustos seriam incapazes de atuarem juntos (352

D).

Portanto, o homem injusto não pode viver melhor que

o justo e ser mais feliz. Ainda uma argumentação: cada órgão

tem sua atividade, que pode desempenhar por uma virtude

que lhe é própria, assim, não se explica a atividade dos olhos

pelo vício (que seria a cegueira). Também a alma tem sua

atividade que desempenha por meio de uma virtude que lhe é

própria: a justiça é a virtude da alma enquanto a injustiça seu

vício112. "Logo, a alma justa e o homem justo viverão bem, e

o injusto mal... Então, o homem justo é feliz e o injusto é

desgraçado" (353 E - 354 A). Encerrando o discurso: "jamais

a injustiça será mais vantajosa que a justiça, ó bem-

aventurado Trasímaco" (354 A).

Ao término da discussão (e encerrando o primeiro

112. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., p.320.

Este argumento é desenvolvido também no Críton 47 E - 48 A.

56 5

6

livro), Sócrates conclui que se desviou do caminho e não

respondeu a questão central: que é a justiça? (354 B-C). Mas

se não se sabe ainda o que seja a justiça, sabe-se o que ela não

é: a justiça não é o restituir o que se é devido; não é o fazer

bem aos amigos e mal aos inimigos, não é a conveniência do

mais forte; a vida do injusto não é mais feliz que a do justo.

Glauco, não convencido pelos argumentos nem de

Trasímaco nem de Sócrates (358 B), retoma a problemática.

Como habitualmente escuta pessoas defendendo idéias como

as de Trasímaco, quer ouvir de Sócrates um convincente

discurso em favor da justiça. Propõe-se metodologicamente

retomar as opiniões comuns e defender a injustiça (358 D).

Distingue os bens em três categorias: primeiro, aqueles

estimados em si mesmos (357 B); segundo, aqueles que se

deseja por si mesmos e por seus efeitos, como a vista, a saúde

(357 C); por fim, aqueles que não se deseja por si mesmos

mas somente pelos seus efeitos, como a ginástica e o

tratamento das doenças (357 C).

Embora para Sócrates a justiça seja um bem da

segunda espécie, ou seja, desejada em si mesma e pelas suas

conseqüências (358 A), a maioria das pessoas são de opinião

de que ela pertença à terceira espécie, ou seja, "pertence à

espécie penosa, a que se pratica por causa das aparências, em

vista do salário e da reputação, mas por si mesma se deve

evitar, como sendo dificultosa" (358 A). Sócrates deverá

apresentar argumentos convincentes de sua posição.

Segundo Glauco, "dizem que cometer uma injustiça é

por natureza um bem, e sofrê-la, um mal, mas que ser vítima

de injustiça é um mal maior do que o bem que há em cometê-

la" (358 E). Por isso, as pessoas, principalmente para não

57 5

7

serem vítimas de injustiça sem poder cometê-la,

estabeleceram as leis que regulam a vida social, designando

de legal e justo aquilo que é conforme a lei e convenção. Essa

é "a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho

entre o maior bem, não pagar a pena das injustiças, e o maior

mal, ser incapaz de se vingar de uma injustiça" (359 A).

Glauco apresenta uma idéia nitidamente sofística da

justiça113. Ela é apenas um pacto entre os homens por

natureza destinados a receberem injustiças sem poder cometê-

las. Estabelecidas as leis, é justo quem lhes obedece, injusto

quem desobedece. Assim, se é justo por incapacidade de

cometer injustiça, logo, a justiça não é estimada por si mesma,

mas é necessariamente praticada pelos incapazes, vale dizer,

pelos mais fracos (359 B). Ilustração disso é a história de

Giges com o anel mágico (359 D - 360 B).

Se dois homens, um tido por justo e outro por injusto,

tivessem a mesma oportunidade, os dois seriam injustos.

Conclui-se "que ninguém é justo por sua vontade, mas

constrangido, por entender que a justiça não é um bem para

si, individualmente, uma vez que, quando cada um julgar que

lhe é possível cometer injustiças, comete-as. Efetivamente,

todos os homens acreditam que lhes é muito mais vantajosa,

individualmente, a injustiça do que a justiça" (360 C-D).

Glauco ainda retoma numa série de exemplos a tese já

apresentada por Trasímaco de que a vida daquele que é

perfeitamente injusto (a perfeita injustiça segundo Glauco é

ser injusto e parecer justo) é muito mais feliz da que a do

justo, que não se importa com a aparência, mas com a

113. Idem, p.323.

58 5

8

realidade (360 C - 362 C).

Terminada a argumentação de Glauco, Adimanto, seu

irmão, a reforça (362 D). No processo educacional se ensina a

justiça, não como um bem em si mesmo, mas pelas vantagens

que trás, ou seja, aquele que aparenta ser justo é feliz: "os pais

apregoam e recomendam aos filhos, bem como todos aqueles

que têm alguém a seu cargo, a necessidade de ser justo, sem

elogiarem a coisa em si, a justiça, mas o bom nome que dela

advém, a fim de que aquele que parece ser justo receba desta

fama magistraturas, desposórios e quantas outras vantagens...

e que o justo tem, devido à sua reputação" (363 A).

Retomando os dizeres de leigos e poetas, profetas da

divindade (366 B), demonstra que o injusto não tem nem

mesmo que se preocupar com uma vida no além, pós-morte,

já que com o fruto de suas injustiças poderá oferecer

sacrifícios aos deuses e ainda granjear, além do perdão, outras

vantagens:

"efetivamente, se formos justos, só estaremos livres de

castigo por parte dos deuses, mas afastaríamos assim

os lucros provenientes da injustiça. Ao passo que, na

qualidade de homens injustos, não só teremos lucros

como também, se houvermos feito transgressões e

cometido faltas, por meio das nossas preces os

persuadiremos a deixarem-nos escapar incólumes"

(366 A).

Sócrates lembra a dificuldade da empresa - responder

a todos os detratores da justiça - mas não pode deixar de fazê-

lo, o que seria "impiedade" (368 B). Para tanto estabelece

uma analogia, analisá-la primeiro numa macro-estrutura

59 5

9

(estado) e com isso iluminar a microestrutura (indivíduo):

"entendo que devemos conduzir a investigação da mesma

forma que o faríamos, se alguém mandasse ler de longe letras

pequenas a pessoas de vista fraca, e então alguma delas desse

conta de que existiam as mesmas letras em qualquer outra

parte, em tamanho maior e numa escala mais ampla" (368 D).

Como a justiça que existe no indivíduo deve existir também

no estado "talvez exista uma justiça numa escala mais ampla,

e mais fácil de aprender" (368 E)114.

Estabelecida esta analogia Sócrates inicia a

construção de um estado imaginário, onde deve se revelar a

justiça. Começa explicando a origem do estado: porque

ninguém é auto-suficiente, mas tem necessidade de muita

coisa (369 B). Assim, os indivíduos se unem para resolverem

suas necessidades de alimento, habitação e coisas do gênero

(369 D). Também logo se nota que todo homem é diferente

um do outro, ou seja, possuem "naturezas diferentes, cada um

para a execução de sua tarefa" (370 B).

Cada um nasce com determinadas qualidades,

habilidade para executar um trabalho, e é isto que sempre

deverá fazer, especializando-se: "o resultado é mais rico, mais

belo e mais fácil, quando cada pessoa fizer uma só coisa, de

114. MARTINEZ, T. C., De los sofistas a Platon: politica y

pensamiento, op. cit., p.165: "A coincidência básica entre as estruturas

do estado e da alma individual estava já presente em Sócrates, em sua

afirmação de que uma polis somente pode ser justa e moderada se na

alma de seus cidadães há justiça e moderação. Isto pressupõe uma

identidade básica de estrutura (além disso, facilmente constatável) já

que tanto no estado como na alma existem duas partes, a que governa e

a que é governada. A conexão com efeito, entre o estado e o indivíduo

aparece, por exemplo, em um dos momentos mais dramáticos da

discussão de Sócrates com Cálicles no Górgias platônico".

60 6

0

acordo com a sua natureza e na ocasião própria, deixando em

paz as outras" (370 C). Uma pessoa desempenhando uma só

arte, aquela que condiz com sua natureza, poderá atingir nela

a perfeição, o que não é possível para quem desempenham

diversas (374 A).

Este princípio de especialização funcional115 tem uma

importância decisiva na teoria do estado platônico. Embora

sua justificação que por primeiro salta aos olhos seja de

caráter pragmático, isto é, que com a divisão de trabalho e

conseqüente especialização aumentam-se a eficácia e o

rendimento, Platão a fundamenta em um princípio ontológico,

ou seja, na natureza mesma das pessoas ou instituições116.

Será a partir deste eixo que Platão construirá seu estado e que

determinará sua definição de justiça.

Aplicando, portanto, este princípio, aparece os estados

platônico constituídos dos mais diversos artesãos ou operários

(campesinos, sapateiros, padeiros, pedreiros, comerciantes,

navegantes, etc.). Com a sofisticação do bem-estar, é

necessário também ampliar o território (373 A-D), possível

somente com a guerra, que tem aí sua origem (373 E). E com

a guerra surge a necessidade de preparar homens para este

trabalho. Logo, à classe dos operários deve se unir uma nova

classe, a dos guerreiros. Já que cada um deverá desenvolver

115. Idem, p.166, utiliza esta expressão a enunciando assim: "cada

indivíduo e cada classe social tem de desempenhar somente uma

função, aquela para a qual estejam mais capacitados".

116. Idem, p.168: "os distintos seres naturais possuem uma determinada

estrutura natural e de acordo com esta lei corresponde o exercício de

certas funções (...) E se a especialização se traduz em vantagens de

caráter pragmático, a razão disto está em que responde à natureza das

coisas".

61 6

1

unicamente a arte com a qual condiz sua natureza (374 A-B),

também para guerreiros se deverá escolher aqueles "de

qualidades e natureza apropriadas para a custódia da cidade"

(374 E). Seu modelo é o cão de boa raça (375 E), brando com

os conhecidos e feroz com os estranhos (375 C). É ressaltada

por Platão a necessidade do elemento intelectual, o

"conhecimento", que permitirá identificar os amigos e os

inimigos. O guardião deve ser dotado, portanto, além do

instinto agressivo, de uma atitude filosófica (375 E).

Platão analisa ainda longamente como devem ser

educados e treinados para o desempenho de sua função117. E

por fim se constitui a terceira classe, a dos governantes118.

Grupo reduzido de homens capazes para governar que sairão

de entre os melhores guardiões (412 D). Como para os

guerreiros, também para os governantes se exige dotes e

educação adequada119.

117. Idem, p.175: "Não basta, pois, com assinalar a cada qual a função

mais de acordo com sua natureza e caráter. É necessário além disso,

dispor os meios oportunos para que os indivíduos não se corrompam e

para que se desenvolvam adequadamente com vistas à função que tem

de desempenhar na cidade. E, sem dúvida, o maio mais eficaz para isto

é a educação"

118. Esta tripartição apresentada por Platão, ainda que assumindo

significado diverso, bem como outros elementos, pode ser influência de

Hipódamo de Mileto, conforme ISNARDI PARENTE, M., Socrate e

Platone, op. cit., p.251; BERTELLI, L., L'utopia greca, em: Storia

delle idee politiche economiche e sociali, dirigida por L. Firpo, vol.I,

Torino 1982, pp.507-520.

119. Escreve quanto à classe "reitora" do estado platônico DODDS, E.

R., Los griegos y lo irracional, trad. esp. de M. Araujo, Madrid 1993,

6ªEd., p.198: "Finalmente, quiçá compreenderemos melhor os

criticadíssimos 'guardiões' de Platão se pensarmos neles como uma

nova espécie de chamanes racionalizados que, como seus predecessores

primitivos, se preparam para sua alta função mediante uma espécie de

62 6

2

Tendo construído imaginariamente a cidade (427 D),

Sócrates deverá evidenciar nela a justiça. Propõe a seguinte

metodologia: se a cidade tem bons fundamentos deve também

ser absolutamente boa e, portanto, será sapiente, corajosa,

temperante e justa (427 E). Ora, bastará proceder por via de

exclusão: quando na cidade se tiver identificado as três

primeiras a que restar será a justiça (428 A)120.

O que torna uma cidade sábia é a ciência da

vigilância, ou seja, dos chefes que são os guardiões perfeitos

(428 D) e em número reduzidíssimo. A coragem é o

conhecimento daquilo que deve ser temido e daquilo que não

deve ser temido. É a virtude que possui sabiamente a classe

dos guerreiros (429 B).

A temperança, que é harmonia (431 E), não é própria

de uma classe, mas se estende a toda a cidade, pondo todos os

cidadãos "a cantar em uníssono na mesma oitava... de

maneira que poderíamos dizer com toda a razão que a

disciplina idealizada para modificar toda a estrutura psíquica, como

aqueles, devem submeter-se a uma consagração que os afaste em

grande medida das satisfações normais da humanidade, como aqueles,

têm que renovar seu contato com as fontes profundas da sabedoria

mediante 'retiros' periódicos, e como aqueles, serão recompensados

depois da morte com uma posição e classe espiritual no mundo dos

espíritos. É provável que nas sociedades pitagóricas existisse já uma

aproximação a este tipo humano altamente especializado; mas Platão

sonhou com levar o experimento muito mais longe, subministrando-lhe

uma séria base científica e emprega-o como instrumento de sua contra-

reforma".

120. POPPER, K. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., p.143,

mostra a fragilidade deste tipo de raciocínio analisando-o em sua

conclusão (433 B). Na nota 22, p.350, correspondente a este texto cita

uma concludente frase de Adam: "Platão raramente deixa tanto a

desejar mentalmente em seu raciocínio".

63 6

3

temperança é esta concórdia, harmonia entre os naturalmente

piores e os naturalmente melhores, sobre a questão de saber

quem deve comandar quer na cidade quer no indivíduo" (432

A).

Tendo determinado o que são e onde se encontram as

primeiras três virtudes se conclui também quanto à justiça: é o

próprio princípio que se estabeleceu como fundamento da

cidade, ou seja, "executar a tarefa própria, e não se meter nas

dos outros" (433 A). Concisamente, Sócrates define a justiça

como o "desempenhar cada um a sua tarefa" (433 B).

Assim, a construção do estado ideal constituído de

três classes com função específica a cada uma, desemboca na

concepção da justiça como cumprimento adequado do

princípio de especialização. Cada um é dotado naturalmente

para desenvolver determinada tarefa, deve desenvolvê-la e

somente a ela, alcançando a perfeição naquilo que faz. A

justiça assume assim um caráter generalíssimo121. É ela quem

dá às outras virtudes - sabedoria, coragem e temperança - a

força para se constituírem, e, uma vez constituída, as preserva

enquanto se mantém nelas (433 B).

Certamente esta forma de entender a justiça tem

121. DEL VECCHIO, G., La Giustizia, op. cit., p.18 chama a atenção

para este caráter universalizante da justiça em Platão. Segundo ele, este

conceito, que vinha se desenvolvendo e assumindo a cada passo um

significado mais restrito e definido, retorna com Platão a um significado

generalizante: "o caráter da justiça como forma ética ou deontológica

em geral tem a sua máxima expressão no sistema platônico. Para elevar

a justiça a princípio reguladora de toda a vida individual e social, Platão

não valoriza ou mesmo rejeita, todas as concepções que tendiam a

assinalar-lhe uma função específica ou uma particular esfera de

aplicação".

64 6

4

alguma novidade própria de Platão, mas não deixa de estar

em conformidade com a grande tradição grega122. A este

propósito escreveu Havelock: "pode ser que Platão revele no

seu emprego de onde a fórmula deriva: nós a tínhamos diante

do nariz; a tínhamos nas mãos; não falamos somente nós;

temos escutado falar a tanto tempo.

Estas afirmações não se referem às formulações

precedentes das obras de Platão, mas a atitudes desenvolvidas

na tradição grega, que foram expressas na dique de Homero e

de Hesíodo e que se tornaram aspectos permanentes dos

mores sociais e individuais da polis"123.

Tendo definido o princípio, facilmente se localiza a

justiça e a injustiça na cidade: cada indivíduo e cada classe

122. Segundo Mario Trombino em L'"Apologia di Socrate" di Platone e

il problema della giustizia da Omero a Platone, op. cit., p.232, nota 12:

"Platão então está no fundo em linha com a tradição conservadora

grega: a novidade é a conceitualização da antiga práxis e o ser

destacada de considerações de ordem religiosa". A justiça como virtude

universal já havia sido enunciada pelos poetas Focílides e Teognides:

"Na justiça recolhida junta toda virtude se encontra", citado por: DEL

VECCHIO, G., Giustizia, em: Enciclopedia filosofica, aos cuidados de

Centro di studi filosofici di Galarate, Firenze 1967, 2ªEd., p.251.

123. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza, Roma-Bari

1981, p.394. Uma opinião diversa é apresentada por POPPER, K. R.,

La società aperta e i suoi nemici, op. cit., pp.136-137, onde afirma que

"o modo grego de emprego da palavra 'justiça' era na verdade

surpreendentemente símile ao nosso próprio uso individualista e

igualitário (...) Com base nesta documentação, creio se possa afirmar

que a interpretação holística e anti-igualitária da justiça na República

foi uma inovação e que Platão tentou apresentar o seu governo

totalitário de classe como 'justo' enquanto as pessoas, em geral,

entendiam por 'justiça' exatamente o contrário".

65 6

5

executando sua tarefa edificam ordenadamente a cidade e este

é seu maior bem, tornando a cidade justa; o inverso, a

confusão e mudança dos indivíduos e classes na execução de

suas tarefas é o maior dos danos para a cidade e, portanto, é a

injustiça (434 C).

Definida e localizada a justiça na cidade, transfere-se

a aplicação do princípio para o indivíduo (435 A)124, se

também no indivíduo ele se revelar, estará confirmado em sua

legitimidade, porque "o homem justo, no que respeita à noção

de justiça, nada diferirá da cidade justa, mas será semelhante

a ela" (435 B).

Sendo assim, também a alma deverá se revelar

constituída de três partes: "porventura não é absolutamente

forçoso que concordemos que em cada um de nós estão

presentes as mesmas partes e caracteres que na cidade?" (435

E)125.

124. Idem, p.384, Havelock afirma ser uma novidade de Platão

considerar a justiça uma virtude também da alma. BELLINO, F., Giusti

e solidali. Fondamenti di etica sociale, Roma 1994, p.26: "A novidade

que Platão introduz é a consideração da justiça como uma virtude da

alma e não somente como virtude da polis. Tal consideração não

pertence à tradição anterior a Platão".

125. A este ponto, no entanto, Platão apresenta a dificuldade em seguir

com a mesma metodologia e a necessidade de uma mais apta (435 D).

Sobre isto comenta TROMBINO, M., em: L'"Apologia di Socrate" di

Platone e il problema della giustizia da Omero a Platone, op. cit.,

p.235 nota 16: "A analise do mundo interior do homem implica um

método de análise de derivação socrática, diferente do percorrido na

indagação sobre a pólis... A tentativa de transferir diretamente a

definição política da justiça na psique deve deixar o lugar a uma teoria

mais complexa. A passagem é essencial em Platão. Somente na

racionalidade da alma poderemos encontrar o sólido ancoradouro da

justiça, e por isto o discurso ético-político se transfere para o plano

66 6

6

A alma humana, portanto, é constituída de três

elementos: o racional, o irascível e o concupiscível (441 A), o

que faz com que o indivíduo seja sábio, corajoso e temperante

(441 C)126. Aplicando o princípio da justiça ao indivíduo

cada uma destas partes deverá desempenhar sua tarefa: à

razão compete governar (441 E); à parte irascível, conforme à

qual o indivíduo é corajoso, cabe preservar "em meio de

penas e prazeres, as instruções fornecidas pela razão sobre o

que é temível ou não" (442 C); e será o indivíduo temperante

"devido à amizade e harmonia desses elementos, quando o

governante e os dois governados concordam em que é a razão

quem deve governar e não se revoltam contra ela" (442 C-D).

Pelo contrário a injustiça será "uma sedição dos

elementos da alma, que são três, uma intriga, uma ingerência

no alheio, e uma sublevação de uma parte contra o todo, a fim

de exercer nela o poder, sem lhe pertencer..." (444 B).

teorético-metafísico". Quanto a esta impostação teorética-metafísica

escreve KELSEN, H., Che cos'è la giustizia? em: I fondamenti della

democrazia, trad. it. de A. M. Castronuovo, Bologna 1970, pp.408-409:

"A justiça é o problema central de toda sua filosofia. E para a solução

deste problema ele desenvolve a sua famosa doutrina das idéias... A

idéia do bem inclui em si aquela da justiça; daquela justiça ao

conhecimento da qual tendem quase todos os diálogos de Platão".

126. DODDS, E. R., Los griegos y lo irracional, op. cit., p.136, ressalta

como originalidade platônica a inclusão da razão na psique: "antes de

Platão raramente se menciona, se se menciona alguma, como a sede da

razão".

67 6

7

V. ANÁLISE DA JUSTIÇA PLATÔNICA

Uma vez assentado o que é a justiça e a injustiça, seja

no estado que no indivíduo, Platão propõe investigar "se é

proveitoso exercitar a justiça, praticar belas ações e ser justo,

quer passe despercebido ou não nosso procedimento, ou

cometer a injustiça e ser injusto, ainda que se não tenha de

pagar a pena nem nos tornemos melhores com o castigo" (445

A).

Questão já levantada na discussão com Trasímaco

(353 E - 354 A). Com isso se passa a analisar o princípio da

justiça em sua concretização na constituição dos diversos

aspectos da vida do estado e do indivíduo. E é este o

momento de saber se de fato esta conceitualização é a melhor,

se é possível e desejável em sua concretização, o que

pressupõe uma análise intrínseca de elementos da República.

O ideal ético de Platão é evidente. Sua atuação em

favor da justiça indiscutível. Porém, como este ideal vem

concretizado no desenvolvimento do diálogo, apresenta

muitos limites. Principalmente devidos à própria concepção

antropológica de Platão:

"... permanece verdadeiro que, por quanto fosse

nobre o fim que Platão perseguia (unificar uma

cidade como uma grande família, tirando à raiz tudo

aquilo que fomenta os egoísmos humanos), os meios

que apontou não somente resultam inadequados, mas

equivocados. Em todas estas doutrinas, a bem julgar,

o erro de fundo é o mesmo, e consiste no considerar

68 6

8

a raça mais importante que o indivíduo, a

coletividade mais que o singular. Platão, como todos

os gregos anteriores a ele (e também depois dele, até

o surgimento das correntes helenísticas), não teve

claro o conceito de homem como indivíduo e como

irrepetível singular, e não pode então entender que

próprio neste ser uma individualidade singular e

irrepetível está o valor supremo do homem"127

Quanto à dificuldade em constituir um estado a partir

deste enfoque, o estado absolutamente justo, o próprio Platão

alerta para o seu caráter "paradigmático" (472 C)128. Já na

Crítica da Razão Pura, Kant se indignava de que se

condenasse a República "sob esse pretexto absolutamente

miserável e triste de que ela é irrealizável"129.

127. REALE, G., Storia della filosofia antica, vol.II, op. cit., pp.309-

310; ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., p.262: no estado se

fagocita o indivíduo. ISNARDI PARENTE, M., Socrate e Platone, op.

cit., p.245 de certa forma atenua esta impostação.

128. VEGETTI, M., L'etica degli antichi, op. cit., p.127: "A ótima

constatação representa um modelo, um paradigma da justiça em si e do

homem perfeitamente justo; este paradigma tem uma função

independente da demonstração da sua realizabilidade (472 C - D). Se

trata no entanto de uma função crítica". ISNARDI PARENTE, M.,

Socrate e Platone, op. cit., p.239: "Nada nos diz que Platão tenha

alguma vez, no curso de sua vida, pensado seriamente na concretização

do seu primeiro estado, do estado ótimo e perfeito".

129. KANT, I., Critica della razone pura, trad. it. de G. Gentile e G.

lombardo-Radice, Roma-Bari 1993, 7ªEd., p.248. ISNARDI

PARENTE, M., Socrate e Platone, op. cit., p.242-243: "Platão... diz

claramente que a cidade da República, primeiro que um programa para

a cidade, é um modelo ético para a atuação da ordem interior na alma

do síngulo; e proclama com a mesma clareza a irrelevância da sua

possiblidade ou não de efetuação no real empírico, o que equivale a

esclarecer o seu caráter de tudo apriorístico e deontológico. À luz deste

69 6

9

Porém, ainda que não se considere a República como

um programa de estado a ser implantado em sua globalidade,

mas simplesmente como uma instância crítica, permanece a

questão do seu significado para uma realidade concreta, para

quem fazendo uso dela saiba discernir os caminhos para o

estado justo e feliz. Platão é claro no afirmar que a única

possibilidade de felicidade, particular ou pública, está na

constituição deste estado (473 E). E que ele somente será

possível quando os filósofos forem reis ou os reis filósofos

(473 D)130.

Este problema da dificuldade em concretizar o estado

justo é por si já um grande ponto de interrogação quanto à

"naturalidade" da definição de justiça platônica. Afinal, é de

se supor que todo indivíduo encontre interesse em

desenvolver aquilo que lhe é próprio, justamente porque faria

aquilo que gosta e que, portanto, lhe dá prazer e

conseqüentemente, de algum modo, felicidade. Ora, onde

tudo deverá acontecer em conformidade com a natureza de

cada um, também o estado justo deveria ser natural. Ao invés,

é eivado de elementos arbitrários e de falsidades. Sobre isto

escreveu Del Vecchio:

"exatamente o desenho da República, qual é traçado

por Platão, constitui neste propósito tantos elementos

discurso, tudo aquilo que na República é fundação do estado ideal

aparece de valor paradigmático e não programático".

130. ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit.,

p.19: "Insisto então em dizer que sobre bases socráticas ou platônicas

filosofia e política são essencialmente incompatíveis. O problema assim

tão discutido do fato se o estado descrito na República seja ou não seja

possível, ou se seja por Sócrates tido como possível, é portanto de

secundário interesse. O ponto decisivo é que esse é indesejável, e em

particular que é indesejável para o filósofo".

70 7

0

empíricos e arbitrários, que é por si a melhor

demonstração da insuficiência daquele princípio

para resolver plenamente o problema da justiça"131.

Quanto à sua arbitrariedade, a própria definição de

justiça é um bom exemplo: "executar a tarefa própria e não se

meter nas dos outros" (433 A). Conseqüentemente, uma

classe detém o poder de governar, de decidir soberanamente

quanto ao que é o melhor para os demais cidadãos a quem

cabe somente obedecer132.

Outro elemento arbitrário encontra-se em sua censura

à literatura: tudo aquilo que não for de acordo com o ideal do

estado justo, no fundo de acordo com os governantes, deverá

ser extirpado133. Sua proposta exerce, por exemplo, sobre as

fábulas um verdadeiro controle: "logo, diz Sócrates, devemos

131. DEL VECCHIO, G., La giustizia, op. cit., p.21.

132. POPPER, K. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., pp.134-

135: "esta afirmação significa que Platão identifica a justiça com o

princípio do governo de classe e do privilégio de classe. De fato, o

princípio que toda classe deve atender à atividade que lhe compete, dito

breve e brutalmente, significa que o estado é justo se o governante

governa se o trabalhador trabalha e se o escravo serve... Platão chama

'justo' o privilégio de classe". De fato, Platão não entende o governo

como privilégio mas como serviço árduo ao filósofo. REALE, G.,

Storia della filosofia. Vol. II, op. cit., p.318: "o supremo 'poder político',

na visão platônica, vem a ser, então, o supremo e necessário 'serviço'

daquele que, contemplado o Bem, o cala na realidade e, através da

práxis política, o dispensa aos outros". Mesmo entendendo o trabalho

do filósofo no governo como serviço, não deixa de ser um serviço

executado arbitrariamente.

133. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., pp.361-

362: "poetas e artistas em geral são perigosos em um estado governado

por homens sapientes; para eles, até quando não demonstrem que a arte,

além de ser deleitável é também útil, no estado não há lugar".

71 7

1

começar por vigiar os autores de fábulas, e selecionar as que

forem boas, e proscrever as más. As que forem escolhidas

persuadiremos as amas e as mães a contá-las às crianças, e a

moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito mais

cuidado do que os corpos com as mãos. Das que agora se

contam, a maioria deve rejeitar-se" (377 C). Também a

música deverá ser controlada (424 c).

Platão intuiu melhor que ninguém de sua época a

importância da educação e da informação para a constituição

dos indivíduos e para a estabilidade social, levando este

"controle de informação" à radicalidade. Tendo definido

aquilo que é justo "devem os encarregados da cidade apegar-

se a este sistema de educação, a fim de que não lhes passe

despercebida qualquer alteração, mas que a tenham sob

vigilância em todas as situações, para que não haja inovações

contra as regras estabelecidas na ginástica nem na música"

(424 B).

É bem verdade que muito daquilo que se tem por arte,

ou informação acaba por ser deseducativo e deformador.

Neste sentido a preocupação de Platão é legítima e necessária.

Contudo, o método por ele proposto está longe do que

chamaríamos de "formação de uma consciência crítica" nos

cidadãos. Embora se diga que tudo é em vista do melhor, é

um processo de doutrinação estatal como qualquer outro. O

indivíduo não é levado a entender e optar por aquilo que lhe é

mais conveniente, o melhor, mas é levado a crer e conhecer

somente aquilo que o estado crê ser o melhor. Daí a

necessidade de controlar o ingresso à cidade de qualquer um

que tenha idéias diversas e contínuo uso da mentira e da

persuasão.

72 7

2

O estado justo, para existir, tem a necessidade de

recorrer continuamente à mentira. E isto é tanto mais

paradoxal quanto somente aos filósofos cabe fazer uso da

mentira: "portanto, se a alguém compete mentir, é aos chefes

da cidade, por causa dos inimigos ou dos cidadãos, para

benefício da cidade; todas as restantes pessoas não devem

provar deste recurso"(389 B).

Justamente os filósofos que são "aqueles que amam

contemplar a verdade"(475 E); que devem ter "aversão à

mentira e a recusa em admitir voluntariamente a falsidade,

seja como for, mas antes odiá-la e pregar a verdade"(485 C).

Quanto ao cidadão, se for pego mentindo será

"castigado, a título que introduz costumes capazes de derrubar

e deitar a perder uma cidade..." (389 D). É certo que o

contexto em que é apresentada a "concessão à mentira" é

muito atenuado pelos belos e nobres princípios, visando

sempre o melhor para o estado e para o cidadão, contudo não

deixa de ser uma mentira maquiavélica, onde os fins

justificam os meios134.

Quanto ao tipo de mentira que é do interesse do

estado, Platão mesmo dá exemplos: quando da união entre

134. POPPER, K. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., p.197,

define a moral platônica como utilitária e totalitária: "'No interesse do

estado' diz Platão. Mais uma vez encontramos portanto que o apelo ao

princípio da utilidade coletiva é a consideração ética suprema. A

moralidade totalitária anula toda outra coisa, também a definição, a

idéia, do filósofo". Uma posição atenuada, que procura entender esta

questão a partir de seus motivos internos, em coerência com todo o

desenvolvimento da República, se pode considerar a apresentada em:

VEGETTI, M., L'etica degli antichi, op. cit., pp.123-125; ISNARDI

PARENTE, M., Socrate e Platone, op. cit., pp.245-247.

73 7

3

homens e mulheres da classe dos guerreiros deve-se fazer de

tal modo que os melhores se unam entre si e mais vezes em

vistas do controle da qualidade da prole, lançando mão de

recursos como "tiragens à sorte engenhosas, de modo que o

homem inferior acuse, em cada união, a sorte, e não aos

chefes"(460 A).

Quando da amamentação de crianças nascidas de

guerreiras, isto deve ser organizado pelos governantes

"imaginando toda a espécie de artifícios, a fim de que

nenhuma pressinta qual é o seu filho"(460 C). Mas a maior e

mais grave mentira é aquela que Platão denomina de "nobre

mentira"135, com a qual explica e justifica a existência das três

classes no estado ideal: o mito da origem do homem no

interior da terra (414 C-415 C)136.

O deus ao modelar os homens misturou-lhes ouro na

composição daqueles que eram aptos para governar; prata na

dos auxiliares e ferro e bronze na dos lavradores e artífices.

Logo, o lugar que cada um deverá ocupar no estado e a

135. A expressão grega é "gennaion pseudos", que pode ser traduzida

também por "grande mentira". A tradução de RADICE, R., em:

Platone. Tutti gli scritti, op. cit., p.1156, por "belle storie" é se não

tendenciosa, ao menos inadequada. Uma discussão quanto às possíveis

traduções é apresentada por POPPER, K. R., La società aperta e i suoi

nemici, op. cit., p.367 nota 9.

136. Este mito aparece também no Protágoras (320 D) e no Político

(269 B). ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit.,

p.9: "A mentira mais famosa da República é a 'nobre mentira' que

refere-se à natureza e à origem dos três tipos de almas possuídas pelos

cidadãos do estado justo (4l4 B). A mentira é 'nobre' porque é o

fundamento último do estado justo. É esta uma lição da República

verdadeiramente crucial, vale dizer, o fato que a justiça, na sua

concretização política, seja baseada sobre uma mentira".

74 7

4

função que desempenhará lhe é natural, é sua função própria

e, portanto, justa. Inverter esta ordem é injustiça. Justifica

ainda a rigidez e estabilidade da divisão em classes: "uma vez

que sois todos parentes, na maior parte dos casos gerareis

filhos semelhantes a vós" (415 A).

Permanece uma pequena possibilidade de alternância

de classe e função, mas somente para aqueles que

naturalmente assim foi determinado: "...pode acontecer que

do ouro nasça uma prole argêntea, e da prata, uma áurea, e

assim todos os restantes uns dos outros (415 B).

O próprio Platão percebeu que esta "fábula" não seria

facilmente aceita, daí a necessidade de um "sólido poder de

persuasão", que Popper chama de "propaganda mentirosa"137:

"tentarei persuadir, em primeiro lugar, os próprios chefes e os

guerreiros e seguidamente também o resto da cidade..."(414

D).

No parágrafo anterior se aludiu a uma questão que

mereceu muitas críticas, principalmente em nosso tempo,

relativa à divisão hierárquica da sociedade em classes, a sua

profunda estaticidade social. As classes sociais são

estruturadas conforme a função que cada um desempenha no

estado e esta, por sua vez, são natural a cada indivíduo, assim

sendo, o desempenhar cada um sua função própria significa

ao mesmo tempo em que cada um deve manter-se na sua

classe.

A mudança indevida de função e, portanto, de classe

social, é injustiça. Popper viu nesta conseqüente estaticidade

social uma proposta totalitária e do privilégio de classe: "que

137. POPPER, K. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., p.454.

75 7

5

coisa entendia Platão por justiça? Afirmo que na República

ele usou o termo 'justo' como sinônimo de 'o que é do

interesse do estado ótimo'. E que coisa é do interesse do

estado ótimo? Bloquear toda mudança mediante a

manutenção de uma rígida divisão das classes e de um

governo de classe"138; para Popper, com a República Platão

quer "fazer propaganda para o seu estado totalitário

persuadindo as pessoas que é o estado 'justo' (...)

Em resumo, Platão quer que os seus leitores tirem a

conclusão: 'é justo manter e exercitar aquilo que é próprio de

cada um. O meu posto (ou a minha atividade) é meu mesmo.

Então é justo para mim manter o meu posto (ou desenvolver a

minha atividade)'"139.

138. Idem, p.133.

139. Idem, pp.137-144. Uma contestação desta interpretação

popperiana se encontra em MARTINEZ, T. C., De los sofistas a

Platon: politica y pensamiento, op. cit., pp.206-210. REALE, G.,

Storia della filosofia antica, vol.II, op. cit., p.299, apresenta uma visão

diversa da de Popper: "Estas três classes sociais, muito célebres e

discutidas, não têm nada a que ver com as castas, enquanto não são

fechadas mas abertas, embora seja em modo muito moderado. De fato,

se é verdade que à base da distinção em classes está uma diferente

índole humana, é outro tanto verdadeiro que de pais de uma dada índole

podem, também se raramente, nascerem filhos de natureza e índole

diferente, e então, estes passarão à classe de correspondente índole, seja

da mais baixa à mais alta, seja vice-versa" (o segundo e o quarto

cursivos são meus). HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della

coscienza, op. cit., p.395, tenta uma explicação para a posição de

Platão: "A justiça de Platão, que vem escrita a grandes letras na cidade,

vem a ser o símbolo de uma estabilidade imutável... Essa é explicada

como uma conseqüência do seu ambiente social conservador. Uma

outra explicação pode ser encontrada no puro e simples esforço, seja

lingüístico que intelectual, de arrancar da tradição a sua definição da

justiça como sólida entidade conceitual. Esta exigência conceitual, que

76 7

6

A classe dos guerreiros possui um tratamento especial

na República que, aliás, do simples cidadão membro da classe

dos artesãos fala muito pouco ou quase nada; a maior classe

numericamente e para quem as outras duas estão a "serviço",

não mereceu um tratamento equivalente140.

A classe dos guerreiros é tanto mais importante

quanto é nela que se formará o filósofo, aquele que governará.

Platão a constituirá partindo do princípio que é necessário

desvincular o poder das riquezas ou simplesmente do desejo

de riquezas, para reestruturá-lo sobre o saber141 Segundo o

implica a união de sujeitos e predicados em proporções permanentes,

ele queria aplicá-la também à esfera das ações humanas".

140. JAEGER, W., Paideia, vol.II, op. cit., p.341: "A grande massa da

população, os seus movimentos de pessoas e de mercadorias, os seus

costumes e condições de vida, tudo isto é excluído da tratação, ou é de

tudo periférica. Traços de tudo isto se procurará talvez na tratação do

'terceiro estado' platônico, o qual, porém, é somente objeto passivo de

governo e não é, nem mesmo como tal, submetido a estudo particular".

E na nota correspondente a este texto Jaeger é ainda mais contundente:

"este fato é estritamente conexo com o rigoroso paralelismo instituído

entre estado e alma: o 'terceiro estado' interessa a Platão somente como

imagem do elemento instintivo da alma humana".

141. VEGETTI, M., L'etica degli antichi, op. cit., p.111. ISNARDI

PARENTE, M., Socrate e Platone, op. cit., p.248: "Platão é

profundamente preocupado com o problema do poder, para ele

atormentador não menos que para os pensadores do V século. Ele é

fortemente influenciado pela tradicional concepção aristocrática que o

desejo de ganho e da riqueza é a primeira fonte da hybris e da

pleonexía; e o seu ideal de classe política é todo concentrado no esforço

de evitar qualquer possível surgimento destes desejos, na destruição do

homem econômico e na sua rigorosa eliminação da psicologia daqueles

que deverão ser chamados a governar. É preciso, para isto, abolir

radicalmente todas as possibilidades de formação da propriedade dentro

do âmbito das duas classes superiores, os homens amantes do saber e os

seus auxiliares, os defensores e guerreiros, aos quais a cidade deve ser

77 7

7

princípio da justiça, os guerreiros deverão possuir os dotes

necessários para desempenhar esta função e desempenhará

somente ela. Receberão uma educação especial e sua vida não

será como a dos demais, diferenciando-se em muitos

aspectos, como por exemplo, a ausência de um núcleo

familiar particular, mas terão em comuns mulheres e filhos;

não possuirão qualquer bem, nem se preocuparão com sua

subsistência, suas necessidades deverão ser supridas pelos

artesãos; levarão uma vida austera, como soe ser a guerreiros,

etc.

Parece-nos que já o pressuposto fundamental sobre o

qual se estrutura a classe dos guerreiros comporta em si algo

de contraditório: ela pressupõe que existam homens e

mulheres que são dotados naturalmente para a guerra. E não

somente uma guerra de autodefesa - já que todo animal

naturalmente tende a sua auto-conservação e, portanto, à

defesa de sua vida - mas guerra de expansão, quando, por

exemplo, da necessidade de ampliar o território (373 D).

É bem verdade que Platão não exaltou a guerra, antes

explicitou as desgraças dela proveniente (373 E). Porém,

afirmando ser próprio de alguns a guerra, de alguma forma

admite ser a guerra natural. Quanto a ter uma vida

radicalmente em comum, isto é de tudo contraditório à

natureza humana. É próprio de todo homem e mulher amar e

ser amado, e este amor comportam um relacionamento

personalizado, uma exclusividade e particularidade tal, que

não é possível amar e se sentir amado igualmente por todo um

exército.

confiada".

78 7

8

Não quero aqui afirmar que a monogamia seja natural

ao homem, ou então a poligamia, mas somente afirmar que o

amor erótico é um sentimento particularizado entre pessoas.

Na verdade, Platão admite entre os guerreiros não um amor

erótico, mas apenas, ou no máximo, se assim pudermos

afirmar, um amor fraterno. Quanto à união sexual, esta

assume uma simples função procriadora, e é organizada de tal

forma a controlar racialmente a prole142

Em resumo, Platão tem uma visão mecanicista dos

seus guerreiros. São simples peças na engrenagem do estado,

sem vontade e sentimentos próprios. É otimista em pensar que

a razão doutrinada por uma educação calculada nos seus

mínimos detalhes poderá vencer os ímpetos dos sentimentos

que criarão desejos e rejeições entre os membros desta classe.

Outro tanto se poderá dizer da paternidade e maternidade.

Não é próprio de cada homem e mulher realizar-se na geração

e criação de seus filhos? Será possível amar todas as crianças

como filhos próprios?143

Embora como sempre o ideal almejado seja

"excelente" - privilegiar o todo sobre a parte, ou seja,

dissolver o pequeno núcleo familiar em vista de que todos se

sintam uma grande família, visando a união e empenho

142. TROUSSON, R., Una sintesi storica, em: Il destino della famiglia

nell'utopia, aos cuidados de A. Colombo e C. Quarta, trad. it. de L.

Tundo, Bari 1991, p.19: Platão "tratando a procriação como um dever

social e ato cívico, reduz a relação sexual a um simples fato biológico

independentemente da afetividade e subordinado ao bem-estar

coletivo".

143. ARISTOTELE, Politica, 1262 A: "Assim para cada cidadão

existem filhos, mas não no sentido que são filhos de cada um, mas um

qualquer será igualmente filho de um qualquer, com a conseqüência que

todos igualmente se desinteressam".

79 7

9

possibilitados por este sentimento familiar - nos parece

injusto (enquanto contrário àquilo que é próprio de cada um),

impossível e indesejável144.

Muitos outros problemas surgem desta forma de

conceber a classe dos guerreiros conforme o princípio de que

cada um deverá fazer o que lhe compete. Por exemplo, serão

eles os únicos autorizados a portar armas, os únicos

capacitados para a guerra. Como os filósofos que governarão

sairão desta classe, a classe dos simples cidadãos estará à

mercê. Estes podem possuir bens materiais - num

determinado limite - mas aqueles detêm o poder e a força.

Platão mesmo alude ao perigo que seria a classe dos

guerreiros se assemelharem aos lobos em vez de cães:

"logo, não devemos vigiar por todos os modos, não

vão os nossos auxiliares fazer assim aos seus

144. Muitos viram neste comunismo platônico uma motivação

espiritualista e quase ascética, comparando-o com ordens monásticas

militares da idade média, ou com o próprio clero católico, como o faz

JAEGER, W., Paideia, vol.II, op. cit., pp.418-419. REALE, G., Storia

della filosofia antica, vol.II, op. cit., p.309: "Em todo caso, para tornar à

questão de fundo, resta verdadeiro que, por quanto fosse nobre o fim

que Platão perseguia (unificar uma cidade como uma grande família,

tirando-lhe à raiz tudo aquilo que fomenta os egoísmos humanos), os

meios que apontou não somente resultam inadequados, mas

decepcionantes". Mas até mesmo o ideal perseguido é fortemente

criticado por Aristóteles, para quem tal unidade destrói o estado:

Politica, 1261 A 20; 1262 A 15. Sua impossibilidade também é

denunciada em 1262 A 15: "De outro modo, não é nem mesmo possível

evitar que alguém dê-se conta de seus irmãos, dos filhos, do pai, da

mãe, porque da semelhança entre os filhos e os pais trazem

necessariamente recíprocos indícios". Uma visão complexa da família

na República é apresentada por BERTELLI, L., Platone, em: Il destino

della famiglia nell'utopia, op. cit., pp.33-48.

80 8

0

concidadãos, visto serem mais fortes do que eles, e,

em vez de aliados benevolentes, assemelharem-se a

déspotas selvagens?" (416 B).

É problemática ainda sua atuação na condução interna

do estado. Já que os filósofos serão aqueles que farão as

leis145 , porque conhecem o que é o melhor para o estado; os

guerreiros atuarão como força repressiva, caso algum cidadão

não esteja contente com as leis146 . E prevendo este tipo de

desobediência é que deverão "examinar o lugar da cidade

onde acamparão melhor, de onde poderão conter

perfeitamente os de dentro dela, se alguém não quiser

obedecer às leis..."(415 D).

Segundo Aristóteles, admitida pois esta divisão entre

as classes dos guerreiros e dos artesãos, não será mais um

estado unificado mas "serão necessariamente em um só

estado dois estados, e, por demais, opostos entre si..."147.

Outro ponto delicado é quanto às disposições acerca

da procriação e controle da prole, onde se propõe "que a raça

dos guerreiros se mantenha pura" (460 C). O aborto e o

infanticídio são adotados na República seja a causa

145. Esta questão é mais bem trabalhada por Platão no Político (293 A -

294 A).

146. VEGETTI, M., L'etica degli antichi, op. cit., p.120: "Nesta

insistência sobre a base militar do novo poder chamado a sanear a

cidade, agem provavelmente as simpatias espartanas do aristocrático

Platão... Mas age sobretudo a consciência que a cidade não tornará a ser

sana sem o uso da força, e então não o permanecerá sem um poder que

a guie e a vigie... E o início do processo de saneamento poderá

exatamente requerer um ato violento..."

147. ARISTOTELE, Politica, 1264 A 25.

81 8

1

eugenética ou simplesmente como controle da natalidade148.

Também a "eutanásia" deverá ser aplicada aos doentes que

não poderão se restabelecer plenamente, em conformidade

com o princípio de que o que importa é o bem do estado, para

o qual os doentes irrecuperáveis é apenas um estorvo.

Justamente Platão que afirma não ser o corpo tratado pelo

corpo, mas o corpo através da alma. Segundo Popper149,

práticas como o infanticídio já havia sido abandonado por

Atenas, mas Platão prefere o modelo espartano, onde estas

práticas estavam ainda em vigor150.

Sua concepção de justiça não consegue resolver nem

mesmo o problema da escravidão que, embora na República

não seja uma instituição que apareça com a mesma clareza

que nas Leis (794 B; 806 D - E), é certamente pressuposta151.

148. ISNARDI PARENTE, M., Socrate e Platone, op. cit., p.249,

apresenta esta questão de tudo mitigada.

149. POPPER, K. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., p.315

nota 34.

150. REALE, G., Storia della filosofia antica, op. cit., vol.II, p.371:

"...à descoberta, também proclamada a nível intuitivo no Fédon, que a

vida é sacra e não pode ser por alguma razão suprimida, porque essa

não é posse nossa mas dos deuses, Platão retoma na República...

proclamando a necessidade de suprimir os malformados, os doentes

crônicos e os incuráveis. Admissão, esta, tanto mais desconcertante,

pelo fato que Platão não tem cessado de dizer-nos que o homem é a sua

alma e que os males do corpo não atingem a alma".

151. ISNARDI PARENTE, M., Socrate e Platone, op. cit., p.269:

"Desta instituição não se fala na República se não neste lugar, que não

concerne à organização da cidade ideal, tanto que se pode pensar que

Platão excluia a presença de escravos nessa; nada porém nos induz a

supô-lo, do momento em que a comunhão perfeita de vida e ds relações

sociais respeita somente às primeiras duas classes dos cidadãos; se a

classe inferior continua a ter relações econômicas de caráter privado e

de tipo comum, nada veta que essa possa também exercitar a

82 8

2

É possível para alguém ser naturalmente escravo? Segundo

Diógenes Laércio152 o próprio Platão foi feito prisioneiro de

guerra e vendido como escravo, sendo resgatado por amigos.

Não tivesse ele tido esta sorte, teria aceitado a condição de

escravo de algum escravagista de Égina, como algo próprio

seu? Certamente não. Aqueles a quem é próprio a escravidão

serão sempre os outros. Na República não admite que se

escravizem gregos (embora a motivação utilitária seja

enunciada juntamente com a norma), mas incentiva em

contrapartida a de bárbaros (469 B-C)153.

Analisemos por fim o motivo pelo qual foi constituído

o estado ideal: demonstrar que viver a justiça é o melhor e

que o justo é feliz. A constituição do estado ideal deve,

portanto, levar seus cidadãos à melhor vida possível e à

felicidade, sempre tendo em vista não uma classe apenas,

mas, o estado com um todo. Segundo Aristóteles, neste estado

platônico nem os guardiões nem os trabalhadores são

felizes154.

Na República a questão da felicidade dos guerreiros é

discutida principalmente em duas ocasiões: na primeira,

Sócrates diz não se surpreender se esta classe for muito feliz,

escravidão, nem na realidade Platão podia facilmente conceber uma

economia privada sem escravos".

152. Vita dei filosofi, III, 20.

153. Uma crítica áspera é feita por POPPER, K. R., La società aperta e

i suoi nemici, op. cit., p.72, segundo o qual em Atenas havia um forte

movimento anti-escravagista: "Ficará para sempre um dos maiores

triunfos da democracia ateniense o fato de haver tratado humanamente

os escravos e de ter chegado muito próxima à abolição da escravidão,

não obstante a desumana propaganda de filósofos como Platão e

Aristóteles".

154. ARISTOTELE, Politica, 1264 B 20.

83 8

3

mas não discute a questão, afirmando ser a finalidade do

estado não o fazer esta classe feliz, mas, todo o estado (419 A

- 420 B); na segunda, retomando a questão, rebaterá a

afirmação de que os guerreiros serão infelizes por causa do

seu estilo de vida, afirma que, pelo contrário, somente assim

poderão encontrar a felicidade (466 B).

A crítica de Aristóteles é justamente fundada na

ausência da propriedade privada, do prazer privado e,

podemos dizer, de uma família privada155. De fato, a única

garantia que temos da possível felicidade desta classe é a

afirmação de que, desempenhando aquilo que lhes é próprio

serão felizes, mas que não soluciona a questão, antes, é uma

petição de princípio. O próprio modo como é trabalhada na

República (nos dois passos supra citados) permite reservas:

no primeiro a necessidade de uma réplica à acusação de que

são infelizes, e a segunda, a infelicidade que experimentarão

se deixarem levar-se pela tentação da posse:

"se, sob o império de uma opinião insensata e infantil

acerca da felicidade for impelido a se assenhorar de

tudo quanto existe na cidade, perceberá como Hesíodo

foi realmente sábio ao afirmar que 'metade é mais do

que o todo'" (466 C).

Esta tentação ao guerreiro - de se assemelhar ao

simples cidadão que é livre para a propriedade e vida privada

- realmente deverá ser forte, já que para o guardião, além da

vida ser radicalmente comum, será ainda austera, como se

estivesse sempre em campanha (416 D). Suas habitações

"serão do tipo próprio de militares, e não de homens de

155. Idem, 1263 B.

84 8

4

negócios" (415 E). Um pouco antes havia mencionado que

seriam "tendas". Tudo isto somado a ausência de liberdade

própria do sistema militar156.

Quanto à infelicidade que o estado ideal porta aos

artesãos e lavradores, Aristóteles não aduz nenhuma razão,

embora Rosen pensa poder concluir que seja assim

basicamente porque esta classe não passou pelas reformas

radicais como a dos guerreiros; estão sujeitos a uma excessiva

liberdade que desemboca na tirania do desejo.

"O conceito de felicidade próprio da classe dos

trabalhadores deve então ser idêntico àquele próprio

da alma democrática. Por esta razão a sua felicidade

deve ser atentamente controlada ou frustrada pela

vigilância dos guardiões, de outra forma o estado

pode ser destruído. Não obstante a aparente

desatenção em Sócrates ... pode-se todavia supor que

não seja a eles permitido serem felizes segundo os

seus próprios cânones, e também que são incapazes

da felicidade que se diz caracterizar a classe dos

156. Quanto a esta ausência de liberdade pode ser ilustrativa a seguinte

passagem do livro das Leis, 942 A - C: "Sobre a arte militar não faltam

por certo indicações e leis úteis, mas o essencial é que ninguém jamais,

nem homem nem mulher, fique sem um chefe. É preciso que cada um

no seu íntimo se habitue em toda circunstância, seja em brincadeira que

séria, a nunca fazer nada sozinho e de própria iniciativa, mas sempre,

em todo momento de guerra e de paz, conduza a sua vida com o olhar

fixo no comandante, disposto a seguí-lo e a guiar-se por ele também nas

coisas mais banais, como por exemplo, parar à ordem, retomar a

marcha, fazer ginástica, lavar-se... Em resumo, é preciso absolutamente

habituar e educar a alma a não fazer, ou pensar, ou conhecer jamais

nada separadamente dos outros, de modo que a vida de todos seja o

mais possível em comum, associada e coletiva".

85 8

5

guerreiros"157.

Quanto à vida dos filósofos que governarão o estado,

ou seja, aqueles que contemplaram a verdade, de vontade

própria não vão querer retornar a um nível inferior

espontaneamente e desempenhar funções políticas. Tanto que

a esta proposta Glauco reage estarrecido: "- Que? Vamos

cometer contra eles a injustiça de os fazer levar uma vida

inferior, quando era possível ter uma melhor?" (519 D).

A justificativa de Sócrates é a mesma dada no caso

dos guerreiros: o que importa não é esta classe em particular

mas o bem do estado como um todo (519 E - 520 A).

Governar para o filósofo é sempre um peso. Espontaneamente

não o quereria fazer. Assim, permanece a dúvida se também

os governantes são felizes ou infelizes neste estado.

Podemos até mesmo questionar a natureza do

filósofo: será sua tarefa própria governar? Se o é, porque esta

relutância em assumir sua própria tarefa? Já que deverão ser

os "menos empenhados em ter o comando" (520 D); é o

gênero de vida que mais despreza o poder político (521 B), e

principalmente na afirmação de Glauco e confirmada por

Sócrates: "mais do que tudo, cada um irá para o poder

constrangido..." (520 E); são estes "forçados a ir para o

governo do estado" (521 B).

Se o governo do estado não é próprio do filósofo,

então o fato dele assumir o governo é já injustiça e, portanto,

motivo de infelicidade. A interrogação de Glauco

anteriormente portada (519 D), diz ser uma injustiça obrigá-

157. ROSEN, S., Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit.,

p.15.

86 8

6

los a governar, em que sentido deveremos entender esta

palavra? Parece lógico entendê-la no sentido em que foi

definida, ou seja, não realizar aquilo que é próprio mas se

meter no dever alheio (434 C)158.

Esta pergunta pode ser estendida também à classe dos

artesãos (como já o foi para os guerreiros): cada um deverá

cuidar daquilo que lhe é próprio, mas como definir o que lhe é

próprio? E será que entre os cidadãos de um estado a natureza

irá distribuir tão harmonicamente as índoles com as funções

necessárias? Não acontecerá que exista um contingente

grande com aptidão para funções que, porém, são de pouca

necessidade, ou vice-versa? Poderia se argumentar que o

próprio de cada um é o que lhe compete por determinação do

governo, que distribui as funções proporcionalmente às

necessidades159.

Ou ainda se poderia afirmar que esta questão não é

pertinente, já que em Platão entre o indivíduo e o estado

existe um paralelismo substancial, ou mesmo o fato de sua

concepção de natureza ser diferente da nossa. Mesmo com

esta reserva, parece claro que Platão afirma a necessidade de

dotes naturais, isto é, qualidades que o indivíduo traz consigo

158. Idem, p.17: "para mim o ponto decisivo é este: se a justiça é cuidar

das próprias ocupações, então é impossível para o filósofo ser justo se

ele cuida dos afazeres dos outros ao invés de se dedicar à filosofia".

159. HAVELOCK, E. A., Dike. La nascita della coscienza, op. cit.,

p.393: "que coisa é então o 'que lhe é próprio'? Nenhuma explicação

operativa parece possível: não parece possível explicar a fórmula senão

em virtude de seus próprios termos. Muito simplesmente esta sublinha o

fato que o cidadão deve aceitar fazer corretamente aquilo que está

fazendo, que deve aceitar, diremos nós, o rolo que lhe foi assinalado.

Quem, ou que coisa, pode lhe haver assinalado senão o estilo de vida

estabelecido do contexto social no qual vive?".

87 8

7

de nascimento, ou em termos mais platônicos, qualidades da

alma que não podem ser adquiridas, ao menos para

determinadas funções, como a dos guerreiros e dos filósofos

que governarão. O próprio mito da origem do homem no

interior da terra ilustra isto. Estando assim a questão, não nos

parece evidente que a justiça como é definida e concretizada

na República por Platão faça feliz o homem justo.

Problemático é ainda, neste sentido, o alijamento da

classe dos artesãos (bem como da dos guerreiros) de qualquer

participação política. São meros membros passivos no

governo dos filósofos. Equipara-se a capacidade de uma

decisão na condução da vida da Polis com a execução de uma

técnica, com o agravante de que uma exclui a outra: se um

cidadão é dotado para ser sapateiro, naturalmente ele não

deve ter condições para decidir corretamente sobre a sua vida

sócio-política.

A rigidez naquilo que se deve ou não fazer, no saber

com exclusividade uma arte, a não participação comunitária

nas decisões do estado, o próprio princípio de especialização

levado à radicalidade, conduzem a uma inibição da

criatividade humana e da interdisciplinaridade do saber.

Os elementos positivos apontados na República são

muitos, mencionaremos alguns. Platão analisa em

profundidade a vida sócio-política, detectando os problemas e

apontando possíveis soluções. Baseando-se na influência que

a sociedade exerce sobre o cidadão, afirmou a dificuldade em

ser justo vivendo numa sociedade injusta. Ou, em outras

palavras, e mais radicalmente, que somente é possível ser

justo em um estado justo. De fato, em uma sociedade

deteriorada, onde a corrupção invada todos os níveis, é difícil

88 8

8

manter-se justo.

Por outro lado, a construção de uma sociedade melhor

deve ser obra de todos os seus membros. E para isso a

educação é fundamental. Se anteriormente nos referimos ao

caráter "doutrinador" da educação na República, aqui cabe

valorizar o empenho como tal pela educação. Somente através

dela se formarão homens e mulheres livres e virtuosos. E

neste aspecto Platão é revolucionário. Percebeu que a

condição de inferioridade feminina é uma questão de

oportunidade e de educação; recebendo a mesma educação

(451 E) poderão desempenhar todas as funções que até então

foram reservadas aos homens, inclusive o governo, o que

significa que para Platão a mulher poderá ascender ao

conhecimento filosófico (embora fique a pergunta da

concretização desta opinião na vida de Platão: na Academia

havia alguma estudante?).

A diferença admitida entre a mulher e o homem é

apenas de robustez física: "não há na administração da cidade

nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto

mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades

naturais estão distribuídas de modo semelhante em ambos os

seres, e a mulher participam de todas as atividades, de acordo

com a natureza, e o homem também, conquanto em todas elas

a mulher seja mais débil do que o homem" (455 D-E)160.

160. Evidentemente a posição de Platão seria também questionável

hodiernamente, já que suprime as diferenças entre o masculino e o

feminino; podem desempenhar as mesmas funções, mas nem por isso a

educação deverá ser necessariamente a mesma. Este raciocínio, Platão

justifica com exemplo das fêmeas dos cães de guarda que vigiam,

caçam e fazem tudo em comum com os machos (451 D); o que mereceu

a ironia de Aristóteles na Política, 1264 B 5: "É absurdo pois tirar

89 8

9

A justiça, como Platão a define, não se levando a

radicalidade, poderá ser ainda valorizada como princípio de

integração interior e como projeto de auto-realização

humana161.

exemplos dos animais para demonstrar que as mulheres devem ter as

mesmas ocupações dos homens, no momento que os animais não têm

casa para administrar". REALE, G., Storia della filosofia antica, vol.II,

op. cit., p.305: "A reforma que Platão propõe é verdadeiramente

revolucionária para os seus tempos dado que, em geral o Grego

trancava a mulher no recinto dos muros domésticos, lhe confiava a

administração da casa e a educação da prole e a retinha longe das

atividades de cultura e daquelas gímnicas, das atividades bélicas e

daquelas políticas".

161. BOSCO, N., Nè Themis nè Dike, em: "Filosofia", 1967, p.502,

elenca entre estes pontos positivos a que conduz a definição platônica

de justiça "...a exigência do desenvolvimento integral da personalidade,

a valorização da competência e da especialização, o sentido da

responsabilidade individual no confronto à comunidade, o refuto de

uma moralidade que se exaure no âmbito privado, a aspiração à paz

interior e exterior".

90 9

0

91 9

1

VI. CONCLUSÃO

Por fim, em toda a República Platão deixa

transparecer seu empenho por um estado melhor, onde o

cidadão possa desenvolver-se e realizar-se. Neste sentido é

preciso discordar de Popper que interpretou negativamente

(ou totalitariamente) Platão. Jaeger afirma ser "a tentativa

filosófica de Platão fundar 'em teoria' um estado ideal que una

uma ordem ideal com um alto nível de liberdade espiritual

para o indivíduo"162.

De fato, a necessidade da justiça como princípio

integrador do agir humano e regulador das relações sociais

são uma constante na história humana, o que faz da República

uma obra sempre atual, mesmo que anacrônica em muitos dos

seus elementos ilustradores. Objeto das mais contraditórias

interpretações e polêmicas, reflete ainda hoje seu vigor e

pertinência, como escreveu Julia Annas, "é impossível ser

neutro frente à República"163.

162. JAEGER, W., Paideia, vol.I, op. cit., p.259 nota 5.

163. Citada por VEGETTI, M., L'etica degli antichi, op. cit., p.111.

92 9

2

93 9

3

VII. BIBLIOGRAFIA

ADORNO, F. Introduzione a Platone. 3. ed. Roma: Bari,

1986.

ARISTOTELE. Politica. 4. ed. Trad. it. de R. Laurenti.

Roma: Bari 1993.

BELLINO, F. Giusti e solidali: fondamenti di etica sociali.

Roma: [s.n.], 1994.

BERTELLI, L. Platone. In: COLOMBO, A.; QUARTA, C.

Il destino della famiglia nell'utopia. Roma: [s.n.], 1991.

p.33-48.

BERTELLI, L. L'utopia greca. In: FIRPO, L. (Dir.). Storia

delle idee politiche economiche e sociali. Torino: [s.n.],

1982. v. 1. p.463-578.

BOSCO, N. Themis e Dike. In: Filosofia. [S.l.: s.n.], 1967.

p.131-179.

BOSCO, N. Dike contro Themis. In: Filosofia. [S.l.: s.n.],

1967. p. 309-346.

BOSCO, N. Nè Themis nè Dike. In: Filosofia. [S.l.: s.n.],

1967. p.469- 510.

BOSCO, N. Mirabile piú che la stella della sera, piú che la

stella del mattino. In: Filosofia. [S.l.: s.n.], 1967. p.661-688.

94 9

4

CAMBIANO, G. Platone e le tecniche. 2. ed. Roma: [s.n.],

1991.

CORBATO, C. Sofisti. In: Enciclopedia filosofica. 2. ed.

Firense: Centro di Studi Filosofici di Galarate, 1967. p.1524-

1528.

CORBATO, C. La sofistica. In: MATHIEU, V. Questioni di

storiografia filosofica.: dalle origine all'ottocento. Brescia:

[s.n.], 1975. v. 2. p.115-1.35.

DEL VECCHIO, G. Giustizia. In: Centro di studi filosofici di

Galarate. Enciclopedia filosofica. 2. ed. Firenze: 1967.p.250-

259.

DEL VECCHIO, G. La giustizia. Roma: [s.n.], 1946.

GADAMER, H. G. La scienza del bene e la polis. In:

ROGGERONE, Giuseppe Agostino. Studi platonici. Trad. it.

de G. Moretto e Casale Monferrato. [S.l.]: Universita degli

studi di Lecce, 1984. v. 2. p.191-216.

GIANNANTONI, G. Il primo libro della Repubblica di

Platone. Rivista di Storia della Filosofia, [S.l.], n. 2, p. 123-

145, 1957.

GIANNANTONI, G. Platone e l'accademia. In: DAL PRA,

Mario. Storia della filosofia. Milano: [s.n.], 1975. p. 175-188.

HAVELOCK, E. A. Dike. La nascita della coscienza. Trad.

it. de M. Piccolomini. Roma: [s.n.], 1981.

95 9

5

ISNARDI PARENTE, M. Socrate e Platone. In: FIRPO, L.

Storia delle idee politiche economiche e sociali.

Torino: [s.n.], 1982. v.1. p.225-289.

ISNARDI PARENTE, M. Rileggendo il Platone di Ulrich

von Wilamowitz-Moellendorff. In: Annali della scuola

normale superiore di Pisa. Pisa, 1973. v. III.1, p. 147-167,

1973.

ISNARDI PARENTE, M. La VII Epistola e Platone

esoterico. Rivista Critica di Storia della Filosofia, [S.l.], v.

4, p. 416-431, 1969.

ISNARDI PARENTE, M. Il "Platone non scritto" e le

autotestemonianze. Alcune note a proposito di un libro

recente. In: Elenchos, Napoli, v. 5, p. 201-209, 1984.

ISNARDI PARENTE, M. La VII Epistola. In: L'eredita di

Platone nell'Accademia antica. Milano: [s.n.], 1989.

p.79-94.

ISNARDI PARENTE, M. Filosofia e Politica nelle lettere di

Platone. Napoli: [sn.], 1970.

ISNARDI PARENTE, M. Il pensiero politico greco dalle

origini alla sofistica. In: FIRPO, L. Storia delle idee

politiche economiche e sociali. Torino: [s.n.], 1982. v. 1,

p.127-223.

JAEGER, W. Paidea. 4. ed. Trad. it. De A. Setti.

Firenze:[s.n.], 1991. v. 3.

LEVI, A. Storia della sofistica. Aos cuidados de D. Pesce.

Napoli: [s.n.], 1966.

96 9

6

MARTINEZ, T. C. De los sofistas a Platon: politica y

pensamiento. Madrid: [s.n.], 1986.

PANCALDI, M.; TROMBINO, M. Apologia di Socrate di

Platone e il problema della giustizia da Omero a Platone.

Torino: [S.N.], 1991.

PLATÃO. A República. 6. ed. Trad. port. de M. H. da Rocha

Pereira. Lisboa: [s.n. 19--].

PLATONE. Politico. In: Tutti gli scritti. 3. ed. Trad. it. de C.

Mazzarelli. Milano: [s.n.], 1992.

PLATONE. Leggi. In: Tutti gli scritti. Trad. it. de R. Radice.

Milano: [s.n.], 1992.

PLATONE. Gorgia. In: Tutti gli scritti. 3.ed. Trad. it. G.

Reale. Milano: [s.n.], 1992.

PLATONE. Lettere. In: Tutti gli scritti. 3. ed. rad. it. de R.

Radice. Milano: [s.n.], 1992.

POPPER, K. La società aperta e i suoi nemici: platone

totalitario. 4. ed. Trad. it. de R. Pavetto. Roma: [s.n.], 1993. v.

1.

QUARTA, C. L'utopia platonica. Milano: [s.n.], 1985.

REALE, G. Storia della filosofia antica. 8. ed. Milano: [s.n.],

1991. v. 2, 2, 5.

ROSEN, S. Introduzione alla Repubblica di Platone.

Napoli: [s.n.], 1990.

97 9

7

SCIACCA, M. F. La giustizia e l'idea del bene. In: Platone.

Milano: [s.n.], 1967. v. 1.

STEFANINI, L. Platone. 2. ed. Padova: [s.n.], 1949. v. 1.

SZLEZAK, T. A. Platone e la scrittura della filosofia:

analisi di struttura dei dialoghi della giovinezza e della

maturità alla luce di un nuovo paradigma ermeneutico. 2. ed.

Trad. it. G. Reale. Milano: [s.n.], 1989.

TROUSSON, R. Una sintese storica. In: COLOMBO, A.;

QUARTA, C. Il destino della famiglia nell'utopia. trad. it.

de L. Tundo. Bari: [s.n.], 1991. p. 17-31.

UNTERSTEINER, M. I sofisti. Torino: [s.n.], 1949. v. 2.

UNTERSTEINER, M. Le origini sociali della sofistica. In:

ALFIERI, V. E.; UNTERSTEINER, M. Studi di filosofia

greca in onore di R. Mondolfo. Bari: [s.n.], 1950. p. 121-

180.

VEGETTI, M. L'etica degli antichi. 3. ed. Roma; Bari:

[s.n.], 1994.

98 9

8

99 9

9

O AUTOR:

Prof. Ms. Pe. Luiz Antonio BELINI, brasileiro, nascido

em Londrina-Pr, em 22 de Junho de 1963, de formação

escolar jesuíta, onde teve oportunidade de ler os grandes

clássicos da literatura brasileira.

Licenciado em Filosofia no Instituto Filosófico N. S. da

Glória de Maringá-Pr, 1983-1985; e em Teologia no

Instituto Teológico Paulo VI de Londrina-Pr, 1986-1989.

Mestre em Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana,

em Roma, 1993-1995, com a monografia A justiça na

100 1

0

0

República de Platão.

Atualmente ensina Metafísica e Antropologia no Curso de

Filosofia, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em

Maringá-Pr;

Suas áreas de interesse são a História da Filosofia grega e a

Antropologia Filosófica e Escatologia.

A originalidade do seu pensamento pode ser constatada a

partir dos seus vários artigos publicados.

Publicou ainda pela Editora Humanitas Vivens Ltda, a

obra Temas de Escatologia, Sarandi (PR) 2009, ISBN: 978-

85-61837-12-9.

101 1

0

1

102 1

0

2

Em toda a República Platão deixa

transparecer seu empenho por um

estado melhor, onde o cidadão possa

desenvolver-se e realizar-se. Neste

sentido é preciso discordar de Popper

que interpretou negativamente (ou

totalitariamente) Platão. Jaeger afirma

ser "a tentativa filosófica de Platão

fundar 'em teoria' um estado ideal que

una uma ordem ideal com um alto nível

de liberdade espiritual para o

indivíduo".

De fato, a necessidade da justiça como

princípio integrador do agir humano e

regulador das relações sociais são uma

constante na história humana, o que faz

da República uma obra sempre atual,

mesmo que anacrônica em muitos dos

seus elementos ilustradores. Objeto das

mais contraditórias interpretações e

polêmicas reflete ainda hoje seu vigor e

pertinência, como escreveu Julia Annas,

"é impossível ser neutro frente à

República".