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CONHECIMENTO CLÁSSICO E

CONHECIMENTO CIENTÍFICO

4 Conhecimento...

Imagens da capa: https://pixabay.com/pt/figura-de-linguagem-prov%C3%A9rbio-1997128/

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Ademir Menin José Francisco de Assis Dias

Leomar Antonio Montagna (Organizadores)

AUTORES: Augusto José Luciani

Bruno Henrique Ferreira Leomar Antônio Montagna

Rodrigo Hayasi Pinto

CONHECIMENTO CLÁSSICO E

CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Primeira Edição E-book

Toledo - PR 2017

6 Conhecimento...

Copyright 2017 by

José Francisco de Assis Dias EDITORA:

Editora Mundo Hispânico Ltda. CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Daniela Menengoti Ribeiro - UNICESUMAR Prof. José Beluci Caporalini - UEM

Prof. Lorella Congiunti – PUU - Roma REVISÃO ORTOGRÁFICA:

Prof. Antonio Eduardo Gabriel CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Daniela Valentini Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi

Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores.

Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida! Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro

Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Conhecimento clássico e conhecimento científico.

C749 / organizadores Ademir Menin, José Francisco de

Assis Dias, Leomar Antonio Montagna; autores,

Augusto José Luciani ... [et al]. – 1. ed.

e-book – Toledo, PR: Indicto, 2017.

204 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-99061-11-4

1. Conhecimento. 2. Filosofia. 3. Agostinho,

Santo, Bispo de Hipona. 3. Bacon, Francis,1561-

1626. Título.

CDD 22. ed. 100

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...........................................................

PRIMEIRA PARTE: O CONHECIMENTO NO PENSAMENTO DE

SANTO AGOSTINHO INTRODUÇÃO À PRIMEIRA PARTE............................ I - CONTEXTUALIZAÇÃO BIOGRÁFICA DE SANTO AGOSTINHO..................................................... II - O CONHECIMENTO NA PERSPECTIVA PLATÔNICA E NEOPLATÔNICA.................................. 2.1 O CONHECIMENTO PARA PLATÃO........................ 2.2 O NEOPLATONISMO DE PLOTINO.........................

2.2.1 O Conhecimento para Plotino...................... III - SANTO AGOSTINHO E O CONHECIMENTO.............. 3.1 A QUESTÃO DA VERDADE..................................... 3.2 DO CONHECIMENTO DE SI AO CONHECIMENTO DE DEUS.............................. 3.3 LINGUAGEM E CONHECIMENTO: BREVE ANÁLISE DO LIVRO O MESTRE................ 3.4 A TEORIA DA ILUMINAÇÃO.................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PRIMEIRA PARTE........................................................ REFERÊNCIAS DA PRIMEIRA PARTE...........................

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SEGUNDA PARTE: FRANCIS BACON E

O CONHECIMENTO CIENTÍFICO INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE.............................. I - O POSICIONAMENTO DE FRANCIS BACON ACERCA DA LÓGICA ARISTOTÉLICA E DO PENSAMENTO ESCOLÁSTICO...................... 1.1 A CRÍTICA DE BACON A ARISTÓTELES.................

1.1.1 A crítica à lógica aristotélica............................. 1.1.1.1 A perspectiva de indução segundo Aristóteles...................................................

1.2 A CRÍTICA DE BACON À ESCOLÁSTICA.................. 1.2.1 A Teoria do Conhecimento na perspectiva de Tomás de Aquino................................

1.3 APROXIMAÇÕES ENTRE O PENSAMENTO DE ROGER BACON E FRANCIS BACON...................................................

II - A PRESENÇA DE ASPECTOS

MÁGICO-ALQUÍMICOS NO PENSAMENTO DE BACON E O ALVORECER DE UMA NOVA METODOLOGIA CIENTÍFICA........................

2.1 AS INFLUÊNCIAS DA ALQUIMIA NA FILOSOFIA BACONIANA...........................................

2.2 A ÓTICA BACONIANA ACERCA DAS FÁBULAS E MITOS..................................................

2.3 A INEFICÁCIA DO INTELECTO DEVIDO À INFLUÊNCIA DOS ÍDOLOS........................

2.3.1 A classificação dos ídolos

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III - OS PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES DO MÉTODO INDUTIVO EXPERIMENTAL....................... 3.1 A ATIVIDADE INTELECTUAL CONJUGADA COM A EXPERIÊNCIA NO ESTUDO DA NATUREZA................................. 3.2 A TEORIA DAS TÁBUAS NO MÉTODO BACONIANO......................................... 3.3 O DISTANCIAMENTO ACERCA DA CONCEPÇÃO DE FORMA BACONIANA EM RELAÇAO À ARISTOTÉLICA......................... 3.4 O ENTENDIMENTO DAS FORMAS COMO MEIO BASILAR DA REPRODUÇÃO TÉCNICA DO CONHECIMENTO.............................

CONSIDERAÇÕES FINAIS DA SEGUNDA PARTE..................................................... REFERÊNCIAS DA SEGUNDA PARTE..........................

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APRESENTAÇÃO

Com alegria indizível, apresentamos aos amantes

da gnosiologia clássica e da epistemologia moderna, esta obra coletânea que põe em harmonia os trabalhos dos professores Bruno Henrique Ferreira e Leomar Antônio Montagna, autores da primeira parte; os trabalhos dos professores Augusto José Luciani e Rodrigo Hayasi Pinto, autores da segunda parte.

Na primeira parte, intitulada “o conhecimento no pensamento de Santo Agostinho”, os Autores explicitam o conceito agostiniano de “conhecimento”.

Para que tal intuito pudesse ser realizado, partiram de uma análise biográfica de Agostinho, destacando sua conversão, que culminou em sua grande produção literário-filosófica. A partir do segundo capítulo, os Autores evidenciam as teorias que precederam e influenciaram a teoria do conhecimento de Agostinho.

Platão e Plotino foram importantes na construção do conhecimento para Agostinho, pois, estes sempre entenderam que para que obtivéssemos o conhecimento verdadeiro, era necessário nos desvincularmos de todos os dados corpóreos para podermos contemplar o Uno – em Plotino – e enxergarmos as verdadeiras realidades – em Platão.

Em Agostinho é semelhante: é preciso a purificação da alma para chegar a Deus e, assim, podermos, por sua mediação, obter o conhecimento. O conhecimento na visão do doutor de Hipona é analisado pelos Autores a partir da sua constatação da prova da existência de Deus. Deus existe e por isso é que conhecemos. Ao conhecermos a verdade, conhecemos a Deus, a Verdade por excelência possibilita ao homem conhecer todas as demais verdades.

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A Verdade atua sobre o homem possibilitando a

este conhecer-se. Essa atuação, realizada por Deus, se dá através da iluminação, onde Deus, por meio de sua graça, transmite ao homem todas as verdades que ele pode conhecer, assim como o capacita para conhecer todas as coisas que ele tem contato no mundo presente. O conhecimento perfeito é compreendido por Agostinho como aquele que pode ser obtido através da interioridade, onde Deus habita, atua sobre o homem e o concede conhecer-se, conhecer a Ele e, por conseguinte, também ser iluminado, para que adquira por meio de um ato de sua vontade o conhecimento.

Na segunda parte, intitulada “Francis Bacon e o conhecimento científico”, os Autores buscam compreender a concepção epistemológica do filósofo inglês Francis Bacon, bem como seu objetivo e finalidade dentro do âmbito da ciência moderna. Tendo em vista que a concepção científica do Período Antigo, Medieval e até do Renascimento, expresso no saber defendido pelos alquimistas, sofreu grandes críticas por parte de Bacon inglês.

Em relação ao pensamento aristotélico, Bacon dirá que o caráter universal que permeia e envolve as conclusões silogísticas pouco contribuíram para que a ciência obtivesse avanços de cunho prático. Já os pensadores medievais preocuparam-se apenas com a eficácia da argumentação que revela, sobremaneira, o caráter lógico do pensamento, deixando pouco espaço para a experimentação científica.

No pensamento mágico-alquímico, a perspectiva alterou-se apenas um pouco, porque, ainda que tenham considerado a empiria, esta não foi induzida de modo adequado, segundo as diretrizes de um método. Além disso, os alquimistas acreditavam na ação de forças transcendentes capazes de transgredir a ordem natural das coisas.

Apresentação 13

Ao contrário dos filósofos que o precederam, Bacon

faz alusão a um novo prospecto acerca da ciência, no qual a empiria metódica deveria ser usada para investigar a natureza e descobrir nela as suas formas que seriam as leis regentes de cada natureza em específico. Apenas a partir de tais desvelamentos, podemos obter a certeza da direção a percorrer e reproduzi-la de modo técnico, tendo como consequência o aspecto criativo e inventivo da ciência, a qual estaria apta a produzir novos recursos dispostos como amparo para a vida prática da humanidade.

Boa leitura!

14 Conhecimento...

Apresentação 15

PRIMEIRA PARTE:

O CONHECIMENTO NO PENSAMENTO DE

SANTO AGOSTINHO

Bruno Henrique Ferreira Leomar Antônio Montagna

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Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem.

(CONFISSÕES, 2015, p. 299)

INTRODUÇÃO À PRIMEIRA PARTE Neste trabalho nos propomos a explicitar o conceito

de conhecimento na visão de Santo Agostinho. Para que esta proposta fosse efetivada, da melhor forma possível, dividimos o tema em capítulos para estruturar o trabalho, de modo que pudesse ser compreendido com maior facilidade. No primeiro capítulo nos empenhamos em explicitar a vida de Agostinho, que foi marcada por uma busca incessante pela verdade e que, quando ele a encontrou, culminou em sua conversão, onde ele iniciou toda a sua produção literária respondendo às diversas questões filosóficas de seu tempo.

Assim, após discorrermos sobre a sua vida, posteriormente, no segundo capítulo, adentramos mais a fundo na questão do conhecimento. Neste capítulo explicitamos a concepção de conhecimento de Platão e de Plotino, que foram as bases de onde ele partiu para formar sua teoria. No que diz respeito a Platão, embora sua teoria gnosiológica seja ampla, nos dedicamos mais à da reminiscência, que foi primordial para Agostinho formar sua teoria da iluminação, onde ele substitui a teoria da reminiscência pela da iluminação. Em Plotino explicitamos os graus do conhecimento compreendidos por este filósofo, que também foram importantes para o filósofo da patrística formar sua teoria do conhecimento.

Por fim, no terceiro capítulo, iniciamos a questão do conhecimento na visão de Santo Agostinho, dando enfoque aos elementos a que ele se dedicou para que se formasse sua teoria. Ao formar sua tese, prova ao mesmo tempo a existência de Deus, princípio de todo conhecimento. Nos propusemos, ainda, a analisar o problema da verdade levantado por ele, que é a base primordial para a prova de Deus, pois, se Ele existe, e tendo Agostinho compreendido o Criador como a Verdade, esta necessariamente existirá.

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Após termos levantado o problema da verdade,

explicitamos o processo levantado pelo filósofo que culmina no conhecimento de Deus. Basicamente, o autor identifica elementos em si que também estão contidos no Criador, assim como chega ao seu próprio conhecimento a partir da refutação dos céticos e isso contribuirá fortemente para que ele conheça a Deus, ou seja, ao conhecer a si, ele encontrará o caminho para chegar a Deus: a interioridade. Com este processo explicitado, realizamos em seguida, uma breve análise da possibilidade ou não de se conhecer através da linguagem.

Terminado todo este processo, explicitamos a teoria da iluminação de Santo Agostinho que é uma visão cristã da tese platônica da reminiscência. Onde, o autor cristão atribui ao ser divino o ato de iluminar as mentes humanas, Ele possibilita aos seres vivos compreender e conhecer todas as coisas, sem precisar de nenhuma recordação de outras vidas, tal como foi sustentada por Platão. A partir da desconstrução da teoria da reminiscência platônica, agostinho inova com sua teoria da iluminação pois ele compreende que o ser humano embora seja um ser que é limitado, pode ser iluminado por Deus na medida em que ele se dispõe a viver uma vida pura e plena, desvinculando-se de todo erro e de toda impureza. A partir desta vida pura, se torna possível ao homem, que se dispõe a ser iluminado por Deus, ter a possibilidade de o Criador agir sobre ele, iluminando-o e possibilitando a ele conhecer as coisas. Diante disso, cabe ao homem exercitar o seu intelecto, para que Deus atue sobre ele, e ele possa conhecer. Deus não transmite o conhecimento ao ser humano e este apenas recebe e não tem participação nenhuma na obtenção do conhecimento. Cabe a nós nos dispormos a conhecer. Assim sendo, devemos ter vontade e estar de acordo com as condições necessárias para conhecer, ou seja, se desvincular dos

Introdução à primeira parte 19

erros mundanos, nos voltarmos para Deus e permitir que ele atue em nós para conhecermos e assim sermos felizes.

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- I -

CONTEXTUALIZAÇÃO BIOGRÁFICA DE

SANTO AGOSTINHO Agostinho, Santo venerado pela Igreja Católica

Apostólica Romana, tem o nome de Aurélio Augustinus. Ele nasceu na cidade de Tagaste, no dia 13 de novembro de 354. Tagaste era uma província que pertencia à Numídia, que por sua vez era território do Império Romano. Atualmente tal cidade chama-se Souhk-Ahrás, localizada, na Argélia1. Ele falava duas línguas: o púnico e também o latim.

Seu Pai, chamado Patrício2, um pagão, membro do conselho municipal, era um homem que não dispunha de muitas riquezas3 e tinha uma personalidade muito forte, o que acabara por contribuir para que ele fosse um “grande peso” para a sua mulher. Muitas vezes a traía com outras mulheres; sua mulher, porém, nada dizia, guardava tudo em seu coração, sempre mantendo o respeito para com o marido, pois entendia que era submissa a ele. Em 371 morre Patrício, convertendo-se ao cristianismo em seu leito de morte. A mãe de Agostinho, de nome Mônica4, era uma fervorosa cristã. Teve papel importante na conversão de seu filho e de seu marido. Dedicava-se muito ao seu

1 MONTAGNA, Leomar Antonio. A ética como elemento de harmonia social em Santo Agostinho. 3ª ed. Maringá: Vivens, 2014. 2 Embora ele fosse uma pessoa de personalidade forte, Patricio se orgulhava muito de Agostinho: “Orgulhava-se exageradamente do filho: era admirado por todos pelos sacrifícios que fazia para levar a cabo a educação de Agostinho” BROWN, 2015, p.35. 3 “Seu Pai, Patrício, era um homem pobre” BROWN, 2015, p.25. 4 “Pelo que tudo indica, a mãe de Agostinho nasceu na Numídia, Norte da África, e era de descendência berbere, seu nome, Mônica, é atribuído a uma das divindades autóctones, Monnica” MONTAGNA, 2014, p.24.

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filho, no sentido de que queria sempre estar junto dele5. Sempre desejou que seu filho estivesse no caminho correto, isto é, no caminho de Deus; assim diz Agostinho ao se referir à sua mãe: “Minha mãe desejava ardentemente que eu Vos considerasse, a Vós, meu Deus, como pai, mais do que àquele que ainda não tinha fé”6.

Juntos, Patrício e Mônica tiveram quatro filhos, sendo dois meninos Navígio e Agostinho e duas meninas; uma dessas meninas7 seria mais tarde superiora de um convento em Hipona.

Ademais, quando nasceu, aconteceu que Agostinho foi atacado por uma febre muito alta devido a um problema de estômago, tal fato fez com que sua mãe o encaminhasse a uma Igreja próxima a fim de que ele fosse batizado. Lá recebeu apenas o sinal da cruz, isto é, passou a ser candidato ao batismo. Passado o problema de saúde, a intenção de batizá-lo foi ficando de lado até que foi esquecida8. Ele lamenta o fato de não ter sido batizado imediatamente, em suas Confissões.

Desde pequeno Agostinho dava trabalho a seus pais. Muitas vezes acabava roubando de seus próprios pais para se vangloriar de seus furtos aos seus amigos, que muitas vezes, junto dele, cometiam delitos. Corroborando tal afirmação, o filósofo de Hipona descreve em suas Confissões o episódio do roubo de peras:

Havia, próximo da nossa vinha, uma pereira carregada de frutos nada sedutores, nem pela beleza nem pelo

5 “Ela, segundo os costumes das mães, e mais ainda que muitas outras me desejava sempre junto de si, desconhecendo as grandes alegrias que Vós lhe iríeis causar com a minha ausência” AGOSTINHO, 1999, p.100. 6 AGOSTINHO, 1999, p.24. 7 “Houve uma irmã cujo nome Agostinho nunca incluiu em seus volumosos escritos. (Sem qualquer fundamento histórico, o nome Perpétua tem sido muitas vezes atribuído a ela por uma questão de conveniência literária)” AUGNET, 2010. 8 AGOSTINHO, 1999.

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sabor. Alta noite, [...] fomos sacudi-la para lhe roubarmos os frutos. Tiramos grande quantidade, não para nos banquetearmos, se bem que provamos alguns, mas para os lançarmos aos porcos. Todo o nosso prazer, portanto, consistia em praticarmos o que nos agradava, pelo facto do roubo ser ilícito9.

Na cidade de Tagaste, ele iniciou seus primeiros

estudos; lá adquiriu conhecimento em gramática, assim como aritmética e latim10. Aprendeu também um pouco de grego, porém esta língua não lhe era muito admirável. Não gostando do estudo do grego, muitas vezes era obrigado a estudá-lo, e isso acabava por gerar nele certo desconforto: “[...] e para me fazerem aprender [o grego], ameaçavam-me com terríveis castigos e crueldades”11. Santo Agostinho gostava muito de jogos e isso foi um fator que colaborou para que ele não desenvolvesse, quando criança, gosto pelos estudos: “não gostava do estudo e tinha horror de ser a ele obrigado”12.

Em 365, com seus 11 anos de idade, fora enviado a Madaura13, uma cidade vizinha de Tagaste, a fim de que continuasse seus estudos. Lá obteve conhecimentos em gramática e literatura. Intelectual que era, e dedicado nos estudos, mesmo deixando muitas vezes levar-se pelas paixões carnais, não demorou em se destacar entre os alunos de sua classe. Por ser um aluno de destaque, os professores o elogiavam muito. Acreditavam que com a capacidade intelectual, ele teria um grande futuro pela

9 AGOSTINHO, 1999, p. 40. 10 MONTAGNA, 2014, p. 25. 11 AGOSTINHO, 1999, p.28. 12 Ibid., p.25. 13 “Situada aos pés dos montes de Tebassa e distante cerca de trinta quilômetros de Tagaste, Madaura era então uma pequena cidade voltada para o que hoje chamaríamos de vida universitária (seu nome atual é M’daurush, e fica na província argelina de Constantine), e tinha orgulho de ser a terra de um grande escritor do século II chamado Apuleio, autor de O Asno de Ouro, fábula a um só tempo satírica e

mística SESÉ, 2008, p. 14.

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frente. No que tange a sua capacidade intelectual, Brown salienta que “Graças a esta educação, desenvolvera uma memória fenomenal, uma atenção tenaz para com os detalhes e uma arte de abrir o coração que ainda nos comove ao lermos suas confissões”14.

Dividindo sua vida entre os estudos e uma vida voltada para os prazeres carnais, na cidade de Madaura, deparou-se com uma situação que não estava esperando: devia interromper os seus estudos por falta de recursos da parte de seu Pai Patrício. Diante de tal situação, no ano de 370 volta para Tagaste, para casa de seus pais até que estes consigam os recursos necessários para enviá-lo novamente aos estudos, desta vez em Cartago15.

A estadia na casa de seus pais durou cerca de um ano. Neste período, o filósofo hiponense viveu uma vida desregrada, totalmente voltada para os erros mundanos: “Foi um ano desolador, marcado por um ato inquietante de vandalismo e toldado pelo súbito ataque de uma adolescência atrasada [...]”16. Suas atitudes fizeram com que a preocupação de sua mãe aumentasse ainda mais. Neste mesmo período, conseguira arranjar um relacionamento com uma mulher chamada Melania, Agostinho manteve este relacionamento até os seus trinta anos17. Deste relacionamento, no ano de 372, nasceu um filho, o qual se chamou Adeodato.

No fim de 370, já estava com 16 anos, então foi enviado por seus pais a Cartago18, graças à ajuda de

14 BROWN, 2015, p.43-44. 15 AGOSTINHO, 1999. 16 Ibid., p. 44. 17 MONTAGNA, 2014, p. 27. 18 “[...] Cartago era a maior cidade do ocidente latino, depois de Roma. Sua importância era tal que recebeu o nome célebre de Carthago Veneris(Cartago de Vênus). ‘Os romanos haviam construído Cartago graças à prosperidade africana. César e Augusto a haviam povoado com colonos procedentes da capital e das províncias da Itália, fazendo-a uma verdadeira Roma de ultramar’” MONTAGNA, 2014, p.28.

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Romaniano19, para iniciar seus estudos superiores. Nesta cidade, estudou retórica, música, dialética, matemática e direito romano.

Ao chegar a Cartago20, estava totalmente perdido, a ponto de não demorar em se misturar com pessoas erradas. Foi nesta cidade que ele passou a “fazer parte de um grupo de jovens que se autodenominava ‘demolidores’21, os quais arrumavam confusão em toda parte”22. Cartago o aprofundou ainda mais em uma vida totalmente errônea, voltada para a busca dos prazeres pessoais. Em suas Confissões descreve a situação de miséria em Cartago:

Vim para Cartago. De todos os lados fervia a sertã (sartago) de criminosos amores. Ainda não amava e já gostava de amar. Impelido por uma necessidade secreta, enraivecia-me contra mim mesmo por não me sentir mais faminto de amor. Gostando de amar, procurava um objeto para esse amor; [...] Era para mim mais doce amar e ser amado, se podia gozar do corpo da pessoa amada. Deste modo, manchava com torpe concupiscência aquela fonte de amizade23.

Foi também nesta cidade que a paixão de

Agostinho pelo teatro se despertou: “Arrebatavam-me os espetáculos teatrais, cheios de imagens das minhas

19 “Romaniano – Homem rico de Tagaste. Pagou os estudos de Agostinho em Cartago. Mostrando sua gratidão, Agostinho tomou a seu cargo a educação de Trigécio e Licencio, filhos de seu mercenas” RUBIO,1995, p.394 apud MONTAGNA, 2014, p. 28. 20 “[...] A vida decerto era mais excitante em Cartago. Os estudantes eram turbulentos, como se poderia esperar de rapazes vindos de pequenas cidades provincianas espalhadas por toda a África, tendo sua primeira experiência de liberdade numa cidade grande [...]” BROWN, 2015, p.44. 21 “Agostinho, como lhe era característico, ficou muito tempo chocado com a violência deles e ansioso por parecer ‘fazer parte’ de seu grupo: é que ser um “demolidor” era “um notável distintivo de elegância”. Ibid. 22 MONTAGNA, 2014, p.28. 23 AGOSTINHO, 1999, p. 49-50.

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misérias e de alimento próprio para o fogo das minhas paixões”24. Mesmo vivendo uma vida totalmente desregrada em Cartago, não demorou muito para que ele se destacasse em seus estudos.

Durante seu período de estudos em Cartago, com 19 anos de idade, teve contato com a obra Hortensius25, de Cícero26. Esta obra foi como que uma alavanca que o levou para a filosofia. Ao ler esta obra, passou a ter gosto pela filosofia e o desejo pela verdade aumentava cada vez mais. Em suas Confissões relata o momento em que teve contato com a obra de Cícero:

24 AGOSTINHO, 1999, p. 50. 25 “Neste livro, em diálogo, de que, hoje, só se conhecem fragmentos, Cícero respondia às dificuldades de Hortênsio contra a filosofia” (Nota de Rodapé número 6 de AGOSTINHO, 1999). 26 “Marco Túlio Cícero nasce em 106 e morre em 43 a.C., nas proximidades de Arpino. [...] Sua carreira como filósofo foi muito discutida: considerado por longo tempo uma das mais preeminentes figuras do pensamento antigo, insistiu-se depois em sua falta de originalidade e se reduziu ao mínimo seu papel na história da filosofia. A verdade acha-se provavelmente entre as duas posições: a filosofia de Cícero não é, sem dúvida, original, mas a influência que exerceu faz dela uma peça indispensável na história. Com efeito, ele não apenas divulgou para o mundo romano o mais importante da tradição intelectual grega, como muitas de suas obras foram lidas com frequência pelos filósofos posteriores, tanto pagãos como cristãos. [...] No que diz respeito ao conteúdo, o pensamento filosófico de Cícero foi considerado essencialmente eclético, embora seja costume tê-lo como um dos membros da nova Academia platônica. [...] Na doutrina do conhecimento, Cícero rejeitava o ceticismo extremo, pois o moderado tinha, a seu ver, uma razão de ser, como escudo contra o dogmatismo desmedido. As razões dadas por Cícero contra os céticos extremos não eram, porém, de natureza epistemológica, mas antes moral e social; é necessário, pensava ele, que haja noções inatas e consenso universal se se quer que a sociedade mantenha sua coesão; [...] A obras de Cícero mais importantes do ponto de vista filosófico são: De natura deorum, De divinatione, De officiis, De finibusbonorum et malorum, De amicitia, Cato maior, De gloria, De fato, Tusculanaedisputationes, De republica, De legibus, Academica priora et posterior” MORA, 1994, p.

453.

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Seguindo o programa do curso, cheguei ao livro de Cícero, cuja linguagem mais do que o coração, quase todos louvam. Esse livro contém uma exortação ao estudo da filosofia. Chama-se “Hortênsio”. Ele mudou o alvo das minhas afeições e encaminhou para Vós, Senhor, as minhas preces, transformando as minhas aspirações e desejos. Imediatamente se tornaram vis, a meus olhos, as vãs esperanças. Já ambicionava, com incrível ardor do coração, a Sabedoria imortal. Principiava a levantar-me para voltar para Vós27.

A obra de Cícero foi para Agostinho: uma espécie de revelação que o levou a defrontar-se com as verdades eternas; verdades que o perturbariam até a sua conversão. Entretanto, naquele momento, o famoso livro não foi capaz de dar a paz que Agostinho tanto procurava em seu coração inquieto28.

Após o contato com o livro de Cícero, a inquietude

interior aumentou. Cristo, desde a infância, fez parte da vida de nosso autor, graças à sua mãe. Por já ter certa noção a respeito de Jesus Cristo, ele tinha a esperança de que na obra de Cícero encontraria algo a respeito do Cristo que lhe fora apresentado por sua mãe, porém ele não encontra nada e lamenta: “Uma só coisa me magoava no meio de tão grande ardor: não encontrar aí o nome de Cristo”29.

Não encontrando o nome de Cristo na obra ciceroniana, o filósofo de Hipona se põe a estudar as Sagradas Escrituras, a fim de compreendê-las: “Determinei, por isso, dedicar-me ao estudo da Sagrada Escritura, para a conhecer”30. Entretanto, ao se deparar com o livro sagrado, ficou insatisfeito. Julgou ser a Bíblia muito pequena se comparada à obra magnânima de

27 AGOSTINHO, 1999, p. 53. 28 MONTAGNA, 2014, p.30. 29 AGOSTINHO, 1999, p.54. 30 Ibid., p. 55.

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Cícero. Além disso, como o próprio Agostinho nos diz, ele mesmo não estava preparado para compreender a escritura:

A sua simplicidade repugnava ao meu orgulho e a minha argúcia não lhe penetrava no íntimo. Na verdade, esta devia crescer com as crianças; eu, porém, de nenhum modo queria passar por criança e, enfatuado pelo orgulho, tinha-me na conta de grande!31.

Após o contato com a obra ciceroniana, a decepção

com a Sagrada Escritura, ele continuava a busca incessante pela Verdade, acabou por buscá-la na seita conhecida por Maniqueísmo32, que foi fundada por Mani33. Durante nove anos Agostinho foi membro do maniqueísmo. Nesta seita, a princípio, pensava ter encontrado a solução para seus anseios: “De certa forma,

31 Ibid. 32 “[...] a doutrina maniqueísta apresentava-se, e nisso aparentava-se ao cristianismo do qual pretendia ser a forma acabada, como uma religião da salvação com vocação à universalidade. O fundamento da doutrina consistia num dualismo radical que opunha, para todo o sempre, o princípio do Bem (simbolizado pela Luz) ao princípio do Mal (simbolizado pelas trevas). Tidos como em permanente conflito no coração do homem, esses dois princípios deviam ser separados por uma moral rigorosa que, também ela, opunha de forma intransigente o domínio da matéria, onde reinava o Príncipe das Trevas, ao domínio do espírito, onde reinava o Deus de Luz. O jejum, a abstinência e o vegetarianismo deveriam ser praticados pelos adeptos dessa religião. A Igreja dos maniqueus era fortemente estruturada: tinha um chefe supremo que residia em Babilônia, e os seus fiéis repartiam-se em duas categorias, a saber, os eleitos, inteiramente voltados para o seu ideal, e os ouvintes, cuja regra de vida era menos exigente. Apesar de numerosas perseguições que sofria, o maniqueísmo estendeu-se até a China e a África do Norte, e durou até o século XIV” SESÉ, 2008, p. 26-27. 33 “[conhecido como] ‘O Apóstolo de Jesus Cristo’. Na Mesopotâmia, Mani havia recebido uma mensagem inspirada e, no ano de 276, fora executado pelo governo persa. A disseminação de sua religião no mundo cristão romano foi um sintoma notável da turbulência religiosa da época” BROWN, 2015, p.52.

Contextualização... 29

o maniqueísmo respondia, pelo menos num primeiro momento, às grandes preocupações de sua vida: encontrar uma explicação ou justificativa para seus erros e contradições, a força que o impulsionava a praticar o mal”34.

Pensando que no maniqueísmo encontraria respostas suficientes para as suas questões, não via a hora de se encontrar com Fausto, líder dos maniqueus, para que ele respondesse de modo satisfatório todas as suas dúvidas e anseios:

Durante cerca de nove anos, em que o meu pensamento errante escutava a doutrina maniqueísta, ansiosamente esperava a vinda de Fausto. Se por acaso encontrava alguns dos sequazes de Manés, sentiam-se embaraçados com as minhas objeções acerca daqueles problemas. Mas asseguravam-me que, quando viesse Fausto, facilmente me resolveria numa simples conversa todas estas dificuldades e ainda outras mais intrincadas que lhe propusesse35.

Num primeiro momento, teve uma impressão

positiva de Fausto, influenciada por outros membros do maniqueísmo, que muito elogiavam este líder. Entretanto, ao surgir a possibilidade de um contato mais pessoal com Fausto, Agostinho se decepciona com a escassez de conhecimento deste:

Notei que de artes liberais apenas sabia a gramática e, ainda esta, de modo nada extraordinário. Porque ele tinha lido alguns trechos de poetas e os poucos livros da seita elegantemente escritos em latim e, além disso, porque se exercitava quotidianamente na oratória, tinha adquirido esta facilidade de falar que o bom emprego do seu talento e certa graça natural tornavam mais agradável e sedutora36.

34 MONTAGNA, 2014, p. 32. 35 AGOSTINHO, 1999, p. 95. 36 Ibid., p. 96.

30 Conhecimento...

Não tendo encontrado, por meio de Fausto,

respostas suficientes para os seus anseios, abriu-se o caminho para o abandono desta seita, entretanto não havia chegado a hora para que isso se consumasse, devido ao fato de que “[...] não encontrando outro caminho melhor que aquele por onde desesperadamente me lançara, resolvera contentar-me com ele, até que brilhasse outra via de preferível escolha”37.

No ano de 374, Agostinho volta para Tagaste e lá abre uma escola de gramática. Um ano após, abre uma escola de retórica em Cartago onde leciona para os alunos38 que vinham de diversas regiões. Na cidade de Cartago, sua sede pela verdade continua e isso faz com que “a paixão pela verdade o encaminha para a filosofia, e ele estuda em profundidade a obra de Cícero, e começa a ler Aristóteles. A astrologia também o fascina”39.

No ano de 383, já com 29 anos de idade, abandona a função de professor de retórica e se muda para Roma40. Ele havia decidido ir para Roma pelo fato de que os alunos de lá, segundo ele havia ouvido, eram mais comportados.

37 Ibid, p. 98. 38 “Seus alunos eram, em sua maioria, jovens herdeiros alvoroçados, mandados de toda a África para Cartago por suas famílias abastadas (e até, num dos casos, do Oriente grego) para receber uma educação ‘adequada’ – isto é, algumas tinturas de Cícero” BROWN, 2015, p.79. 39 SESÉ, 2008, p. 39. 40 “Roma, cidade cristã desde a conversão de Constantino em 313, mas que já não era a residência do imperador. A sede do império era a cidade de Milão, cujo bispo Ambrósio a transformara em rival religiosa de Roma. Mas a Cidade das sete colinas oferecia ao olhar seus esplêndidos monumentos, como o Palatino, o Fórum, o Coliseu, as termas de Caracala, o Capitólio e seu templo etrusco, o jardim de Trajano, o teatro de Marcelo, o Panteão etc. Roma guardara também a sua preeminência cultural. Agostinho teria podido encontrar Jerônimo que por lá estava, encarregado pelo papa Dâmaso I de fazer a revisão da Bíblia; ou o historiador de origem grega Amião Marcelino, que empreendera a elaboração de uma grande obra repartida em 31 livros através da qual pretendia continuar a obra histórica de Tácito” SESÉ, 2008, p. 45.

Contextualização... 31

Entretanto, ir para a cidade de Roma, foi para ele um tanto quanto difícil, pois ele teve que mentir a sua mãe, que não o queria deixar partir de nenhuma forma:

Como ela me agarrasse com violência para me fazer voltar ou para ir comigo, eu enganei-a, fingindo não querer separar-me dum amigo até que, soprando o vento, ele pudesse navegar. Assim me escapei, mentindo a minha mãe, e que mãe! [...] Recusando ela voltar sem mim, foi com grande dificuldade que a persuadi que permanecesse, [...] num lugar vizinho ao nosso navio [...] [então] parti ocultamente, enquanto ela ficou orando e derramando lágrimas41.

Chegando a Roma, ele é atacado por uma terrível

doença. Durante um período de tempo pensava ele que viria a perecer, entretanto, logo recuperou sua saúde. Entre os muitos afazeres em Roma, a tarefa principal era se dedicar ao ensino da retórica. Em um curto tempo improvisou um espaço em sua casa a fim de lecionar para alguns que o conheciam. Roma também trouxe ao hiponense infelicidade, porque os alunos que aprendiam com ele não eram fiéis: na hora de pagar o professor, mudavam de curso. Este fato só aumentava o seu desgosto pelo trabalho42.

Passado algum tempo, em que ele já estava lecionando, surgiu uma oportunidade mais formal de emprego em Milão, esta cidade necessitava de um professor de retórica. Para que obtivesse a vaga, Agostinho precisou passar por uma espécie de prova43 que foi proposta pelo prefeito de Roma, Símaco. Tendo o prefeito aprovado o seu discurso, ele foi enviado para Milão em 38444.

41 AGOSTINHO, 1999, p. 99-100. 42 AGOSTINHO, 1999. 43 Esta prova era “um discurso a ser declamado pelos candidatos diante do prefeito de Roma” SESÉ, 2008, p.48. 44 Ibid., p. 106.

32 Conhecimento...

A cidade de Milão tem papel importante na sua

vida, pois, é nesta cidade que seus tormentos interiores aumentam e também é nesta cidade que a sua vida passa por uma transformação; aqui ele será batizado. Milão era um dos principais cenários do período antigo medieval. Ela era:

a capital política de uma parte importante do império ocidental. Residência típica dos imperadores nessa época de emergências constantes, devia sua importância à localização estratégica nas estradas que atravessam os Alpes. Diplomatas e agentes secretos ali chegavam de locais tão distantes quanto Trier, ao norte, e a Pérsia, a leste45.

Estando em Milão, aos poucos sua vida se

estrutura, sua “carreira” encaminha bem, também sua função como professor se estabiliza. Ao mesmo tempo em que sua vida se organiza, surge em sua vida o bispo Ambrósio46. Este tinha fama de construir seus sermões a partir da tradição ciceroniana e seu pensamento tinha grande influência do neoplatonismo47. Tanto a influência ciceroniana, assim como a neoplatônica fizeram com que seus discursos fossem apreciados por muitos, e não foi diferente com Agostinho:

Desejando e atraído pela fama de orador do Bispo Ambrósio, Agostinho resolveu ouvi-lo, no início, não pela

45 Ibid., 85. 46 É um bispo e doutor canonizado pela Igreja Católica. “Ambrósio era uns quatorze anos mais velho que Agostinho e fazia onze anos que era bispo de Milão. À primeira vista, era o mais notável representante da classe dirigente romana de sua época – isto é, dos homens cuja posição dependia menos de seu nascimento patrício que de sua capacidade de agarrar e conservar o poder numa sociedade implacável. Filho de um administrador, Ambrósio estava residindo em Milão como governador da província (Ligúria) na ocasião em que foi subitamente convocado a ser bispo da cidade” BROWN, 2015, p. 97. 47 MONTAGNA, 2014, p. 37.

Contextualização... 33

fé, mas pela curiosidade. As pregações de Ambrósio, carregadas de conteúdos platônicos, não levaram, de imediato, Agostinho à Igreja Católica, mas lançaram luz sobre sua alma e, aos poucos, foram acabando com as dúvidas dos seus tempos de maniqueísmo e ceticismo48.

Aos poucos os sermões de Santo Ambrósio

aumentam os tormentos interiores de Agostinho, as dúvidas que ele tinha crescem ainda mais, o desejo pela verdade o inflama e isto o leva a querer conversar com Santo Ambrósio o quanto antes. Mesmo desejando falar com ele, não obteve, a princípio, sucesso devido a suas ocupações diárias:

As multidões dos homens de negócios, a quem ele acudia nas dificuldades, impediam-me de o ouvir e de lhe falar. No pouquíssimo tempo em que não estava com eles, refazia o corpo com o alimento necessário, ou o espírito com a leitura. [...] Nas muitas vezes que me achei presente – porque a ninguém era proibida a entrada, nem havia o costume de lhe anunciarem quem vinha – sempre o via ler em silêncio e nunca doutro modo49.

No ano de 385, ele resolve trazer para junto de si

seu filho, sua mulher e sua mãe e, influenciado pelo contato com Santo Ambrósio, decide viver em comunidade. Para que o desejo da vida comunitária fosse efetivado, traz para Milão seus amigos Alípio e Nebrídio50. Neste mesmo período sua mãe, que tinha grande fidelidade ao catolicismo, insiste para que ele não viva mais em condição de pecado, pois vivia com uma mulher, contudo não era casado com ela. Sua mãe insistia que ele se casasse o quanto antes. Devido a grande insistência de sua mãe ele decide casar; pede a mão de uma jovem rica.

48 Ibid. 49 AGOSTINHO, 1999, p.112. 50 MONTAGNA, 2014, p. 39.

34 Conhecimento...

Porém, esta jovem ainda não tinha idade para se casar: “Faltava-lhe, porém, quase dois anos para chegar à idade núbil. Mas, como ela agradava, ia-se esperando”51. Enquanto isso, sua comunidade passou a ter dez membros, dentre os quais, Romaniano, seu benfeitor e amigo. O próprio Agostinho conta em suas Confissões que esta vida em comunidade visava à partilha de todos os bens: “se alguma coisa possuíssemos, juntá-la-íamos para uso comum, combinando formar de tudo um só patrimônio, de tal forma que, por uma amizade sincera, não houvesse um objeto deste, outro daquele, mas de tudo se fizesse uma só fortuna, sendo tudo de cada um e tudo de todos”52. Entretanto, este projeto de vida comunitária não se efetivou, pois alguns de seus amigos eram casados, tornando este projeto inviável53. Agora, sem a possibilidade de uma vida comunitária, passa por outro problema: sua mulher o abandona54. Este fato marcou muito a vida de Agostinho, pois ele era uma pessoa totalmente voltada para os prazeres mundanos. Superado este episódio, aos 32 anos, o filósofo teve contato com Mânilo Teodoro55; este fora quem lhe possibilitou conhecer

51 AGOSTINHO, 1999, p. 129. 52 Ibid., p.129. 53 Ibid. 54 Ela o abandonou pois ele tentou casar com outra mulher. Sua mulher se sentiu traída. Agostinho conta que ela foi para a “África, fazendo-Vos voto de jamais conviver com outro homem e deixando-me o filho natural que dela tivera. E eu, miserável, não imitei esta mulher! Impaciente da dilação – porque só depois de dois anos receberia a que pedira em casamento – e porque não era amante do matrimônio, mas escravo do prazer, procurei outra mulher –mas não esposa – para assim manter e prolongar intacta ou mais agravada a doença da minha alma, patrocinado pelo mau habito que perduraria até à vinda do reino matrimonial AGOSTINHO, 1999, p. 130. 55 Era uma “personalidade política que chegou ao cargo de cônsul”. Era um homem culto e orgulhoso, amante da filosofia neoplatônica MONTAGNA, 2014, p. 40.

Contextualização... 35

as obras neoplatônicas56 de Plotino57, de modo especial as Enseadas. Registra em suas Confissões o contato com este livro:

Encontrei escrito, se não com as mesmas palavras, certamente com o mesmo significado e com muitas provas convincentes, o seguinte: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus’ [...] Li escrito nesses livros que o Verbo, que é Deus, nasceu não da carne nem do sangue, não da vontade do homem, nem da vontade da carne, mas de Deus58.

Este contato com a obra plotiniana, de certa forma,

respondeu aos seus questionamentos acerca do mal. Foi nela que conheceu: é de Deus que emana todo o bem, e o mal não é uma substância59. Ainda, movido por inquietações interiores, o santo se sentiu instigado a procurar o bispo Ambrósio que o aconselhou a procurar Simpliciano60. Quando falou com ele, o filósofo hiponense

56 “Um século antes, se haviam desfeito e este, que era o ensinamento ‘mais refinado e esclarecido’ da filosofia, pudera reduzir com todo o seu brilho nos textos de Plotino – uma alma tão próxima de seu antigo mestre que, nele, Platão parecia reviver. Esses homens chegavam mesmo a ter sonhos em que os filósofos lhes expunham ‘máximas platônicas’ durante seu sono. Damos a esse movimento o nome de ‘neoplatonismo’, porém os participantes davam-se o nome de ‘platônicos’ – Platonici puros e simples, ou seja, herdeiros diretos de

Platão” BROWN, 2015, p. 110. 57 Nascido em 205 e Falecido em 270, Plotino nasceu em Licópolis – Egito. Durante 11 anos foi discípulo de Amônio Saccas. Em 245, após uma série de perseguições. Foi para Roma onde fundou sua própria escola, onde lecionou até o fim de sua vida; escreveu cinquenta tratados, que foram organizados por Porfírio, seu discípulo, em seis Enéadas, pois estes livros continham nove tratados cada um. MORA, 1994, p. 2297. 58 AGOSTINHO, 1997, p. 186-187. 59 MONTAGNA, 2014, p. 41. 60 “São Simpliciano era um sacerdote instruído que viera de Roma a Milão para instruir Santo Ambrósio nas Sagradas Escrituras como diretor espiritual. Por isto Agostinho se refere a este como pai de

36 Conhecimento...

lhe disse que teve contato com as obras neoplatônicas e revelou suas insatisfações. Simpliciano disse a Agostinho sobre os erros contidos nestas obras e “para exaltar o sentido da humildade e redenção divina, contou-lhe acerca da recente conversão de Vitorino (o que havia traduzido os escritos de Plotino), como exemplo de humildade”61.

Ao ouvir o relato da conversão de Vitorino, ele sentiu o desejo de imitá-lo. No findar do diálogo com Simpliciano, o hiponense foi aconselhado a ler a Bíblia, de modo especial as cartas de Paulo: “Lancei-me avidamente à venerável Escritura inspirada por ti, especialmente à do apóstolo Paulo [...] Começando a leitura, descobri que tudo o que de verdadeiro tinha encontrado nos livros platônicos, aqui é dito com a garantia da tua graça”62.

Toda esta conversa com Simpliciano e o contato com as cartas de Paulo, foram fatores que aumentaram ainda mais a inquietude interior de Agostinho. Quanto mais inquieto ele se sentia, mais se aproximava o tempo em que nosso filósofo passaria por uma mudança drástica em sua vida: a conversão. Peça importante na sua conversão foi Ponticiano63. Este, chegando à casa de Agostinho, alegrou-se ao deparar-se com uma bíblia em cima de uma mesa, ao vê-la, acreditou que estava em casa de pessoas que eram adeptas ao cristianismo64.

Estando na casa de Agostinho, durante a conversa, Ponticiano aproveitou o momento e relatou a seu amigo a vida de Santo Antão, que era um monge que até então era desconhecido do filósofo hiponense. Tendo escutado o relato da vida de Santo Antão por parte de Ponticiano, suas

Ambrósio. Mais tarde, em 397, com a morte de Ambrósio, este lhe sucedeu no bispado de Milão” (Nota de rodapé número 75 de MONTAGNA, 2014). 61 MONTAGNA, 2014, p. 41. 62 AGOSTINHO, 1997, p. 200. 63 “Um cristão fiel e compatriota africano que exercia um alto cargo no palácio e que viera visitar Agostinho e seus conterrâneos Alípio e Nebrídio” MONTAGNA, 2014, p. 43. 64 Ibid.

Contextualização... 37

inquietudes interiores aumentaram ainda mais. Em suas Confissões, ele relata este momento:

E tu, Senhor, enquanto ele falava, me fazias refletir sobre mim mesmo, [...] eu via, e me horrorizava, e não tinha como fugir de mim mesmo. [...] tu me colocavas diante de mim mesmo e me impelias, por assim dizer, para diante de meus próprios olhos, a fim de que eu descobrisse a minha iniquidade e a detestasse [...] Agora, no entanto, quanto mais ardentemente amava aqueles dois de quem conhecera a salutar decisão de se entregarem completamente a ti para serem curados, mais profundamente eu me detestava, ao comparar-me com eles. [...] Assim, eu me roía interiormente e sentia enorme vergonha, enquanto Ponticiano falava65.

Agostinho relatou tudo o que escutara da parte de

Ponticiano a Alípio, seu amigo. Após dirigir este relato a ele, retirou-se para um lugar solitário, o jardim de sua casa, para lá voltar-se para si, isto é, meditar sobre todas as transformações interiores que estava sentindo, devido à conversa com Ponticiano. Seu interior se encontrava muito perturbado, o filósofo nos diz que se retirou para seu jardim devido ao “tumulto do coração, onde ninguém podia interferir na luta violenta que travava comigo mesmo, e cujo resultado nem eu mesmo conhecia somente tu [...] Eu fremia de violenta indignação contra mim mesmo, por não ceder à tua vontade e à aliança contigo, meu Deus”66. Além de sofrer interiormente, ele se debatia fisicamente: “eu arrancava os cabelos, batia na testa entre os dedos entrelaçados, [...], no entanto, todos esses gestos, eu os fazia, mas neles o querer não era o mesmo que o poder”67. Em meio a esta grande luta consigo, ele já não mais suportava e, em prantos, questionava-se:

65 AGOSTINHO, 1997, p. 220 e 221. 66 AGOSTINHO, 1997, p. 222-223. 67 Ibid., p. 223.

38 Conhecimento...

Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora à minha indignidade? Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de repente, ouço uma voz vinda da casa vizinha. Parecia de um menino ou menina repetindo continuamente uma canção: ‘Toma e lê, toma e lê68.

Impulsionado por esta voz que o exortava,

recordou-se da fala que Ponticiano, a respeito da conversão de Santo Antão69. Contrastando o momento da conversão do Santo, com o momento que ele agora estava passando, acreditou que tudo isto era sinal de Deus. Neste mesmo instante pôs-se a correr ao encontro de Alípio que lhe entregou o novo testamento. Agostinho o abriu de modo espontâneo, a primeira página havia caído nas cartas de Paulo, esta dizia:

não em orgias e bebedeiras, nem na devassidão e libertinagem, nem nas rixas e ciúmes. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os desejos da carne. Não quis ler mais, nem era necessário. Mal terminara a leitura dessa frase, dissiparam-se em mim todas as trevas da dúvida, como se penetrasse no meu coração uma luz de certeza70.

Após ler esta passagem da escritura, conversando

com seu amigo Alípio, contou-lhe tudo o que havia ocorrido, assim como a leitura que fizera da carta de Paulo. Dirigiram-se até Mônica a fim de lhe contar o ocorrido; também contou a ela o desejo que ardia seu coração: queria ser batizado na igreja Católica. Ao converter-se ele ainda renunciou a todo o desejo de casar e prontamente quis abandonar a cadeira de retórica:

68 Ibid., p. 230. 69 MONTAGNA, 2014, p. 44. 70 AGOSTINHO, 1999, p. 231.

Contextualização... 39

Era verão de 386, três semanas antes do término do curso acadêmico. Anteriormente, ele já pensava em pedir demissão do cargo, no final do curso. Sua voz era fraca e alguma enfermidade dos brônquios que iria molestá-lo toda vida, agravada pelo frio da Itália, tinha aumentado e prejudicado seu desempenho como professor de retórica71.

Terminado o curso, Agostinho deixou a posição de

professor e passou a viver numa casa de campo em Cassicíaco, próximo a Milão, que fora emprestada por seu amigo Verecundo. Neste local também estavam seus amigos, seu filho e sua mãe. Este lugar foi muito produtivo para ele, pois foi lá que escreveu algumas obras e lá iniciou de fato o seu processo de conversão: “Quando Agostinho se recolheu a Cassicíaco, já tinha havido nele uma mudança nesse nível profundo. Por causa desta, ele tornou-se a se sentir livre, apto a ir em busca de seus interesses com energia e segurança renovadas”72.

Em Cassicíaco, Agostinho e seus companheiros fizeram assíduos estudos bíblicos, também foi lá que se prepararam para o batismo73, “sob as orientações do bispo Ambrósio”74. A sua produção literária foi grandiosa neste local: aqui ele escreveu algumas obras tais como o Contra os Acadêmicos, no ano de 386; De Beata Vita, também em 386; Deordine, em 386; e Soliloquia, libri duo em 387. No ano de 387, Agostinho, Alípio e seu filho retornam a Milão para serem batizados. O batismo ocorreu no dia 25 de Abril

71 ROCHA, 1989, p. 36 apud MONTAGNA, 2014, p. 36. 72 BROWN, 2015, p. 136. 73 “O batismo era uma cerimônia solene, que devia ser precedida por orações e jejuns. Na madrugada de 24 para 25 de abril de 387, a procissão dos catecúmenos avançou em direção à fonte batismal da catedral de Milão, em cujas águas cada um deles seria mergulhado para lavar-se do pecado. Seguindo o gesto do Cristo, o bispo lavava os pés dos novos cristãos; vestidos com túnicas brancas, eles recebiam a unção dos santos óleos antes de comungar pela primeira vez” SESÉ ,2008, p. 88. 74 MONTAGNA, 2014, p. 46.

40 Conhecimento...

de 387, Sábado Santo, por meio das mãos de Ambrósio. Ele relata em suas Confissões a experiência que tivera após ser batizado: “Quando chegou o momento em que devia dar o meu nome para o batismo, deixando o campo, voltamos para Milão. [...] Fomos batizados, e desapareceu qualquer preocupação quanto à vida passada”75.

Como católico, suas produções literárias tiveram significativo aumento, tanto é que em Milão ele escreveu o livro De Immortalitate Animae, no ano de 387. Neste mesmo ano ele tinha o desejo de retornar a Tagaste, para uma vida mais reclusa, uma vida monástica. Ainda neste período, se pôs a caminho de sua cidade natal, mas durante o caminho, na passagem por Óstia, ocorreu um fato marcante em sua vida. Tal fato ele nos diz que ocorreu quando “Procurando um lugar onde mais acomodadamente Vos servíssemos juntos, voltávamos à África, quando em Óstia, na foz do Tibre, faleceu minha mãe”76. Diferentemente de seu pai Patrício, a morte77 de Mônica comoveu Agostinho, pois foi ela que insistentemente desejou que ele mudasse de vida; em todos os momentos ela estava junto dele exortando-o a fazer o que era correto. Notamos ainda em suas Confissões, ele dedica algumas boas páginas para falar de sua Mãe, que segundo ele foi uma mulher fiel, que buscava em tudo viver retamente e orava incessantemente para a conversão dele.

Agostinho volta para Roma e fica por lá cerca de um ano. No ano de 388, vai para Tagaste. Em Tagaste ele se inicia na vida reclusa, na casa que foi de seus pais,

75 AGOSTINHO, 19997, p. 246-247. 76 AGOSTINHO, 1999, p. 198. 77 “[...] sua mãe faleceu tendo, então, 56 anos de idade. Mônica foi sepultada na igreja de Santa Áurea, em Óstia. Em 1430, seus restos mortais foram transferidos para Roma e depositados, primeiro, na Igreja de São Trifão, e, em 1455, transladados para a igreja de Santo Agostinho, construída pelos agostinianos. Em 1566, a urna que contém os restos mortais de Mônica foi colocada na capela dedicada à Santa, na mesma igreja de Santo Agostinho” MONTAGNA, 2014, p. 47.

Contextualização... 41

juntamente com os seus companheiros que sempre estavam junto dele. Tagaste também é palco de mais um triste fato na vida de nosso filósofo: seu filho com 17 anos falece. Em suas Confissões se refere a ele:

Juntamos também a nós Adeodato, filho carnal do meu pecado, a quem tinhas dotado de grandes qualidades. Com quinze anos apenas, superava em talento muitas pessoas maduras e eruditas [...] Escrevi um livro intitulado O Mestre (De Magistro), no qual meu filho conversa comigo. Tu bem o sabes, todos os pensamentos aí manifestados por meu interlocutor são realmente dele, então com dezesseis anos [...] Reconheço os teus dons, Senhor meu Deus, criador de todas as coisas e tão poderoso para corrigir nossas deformidades, pois, de meu, naquele rapaz, nada havia senão o pecado78.

Em Tagaste, dedica-se a vida religiosa, voltada

para o estudo da Sagrada Escritura. Toda a sua dedicação ao estudo, assim como suas exortações tiveram e tem ainda hoje grande influência na formação de diversas doutrinas da Igreja Católica Apostólica Romana; também muitos papas são adeptos do pensamento agostiniano, dentre eles está o recente Bento XVI79.

Em Tagaste, a população precisava de um sacerdote capacitado que auxiliasse o povo em suas necessidades espirituais, mas que também fosse capaz de defender a Igreja. Dada a necessidade, o povo fez uma armadilha para que Agostinho se tornasse padre. Mas ele não queria ser sacerdote, evitava até passar por cidades onde não havia sacerdotes, para não o elegerem como tal.

78 AGOSTINHO, 1997, p. 246-247. 79 Joseph Aloisius Ratzinger, nasceu no dia 16 de abril de 1927 na cidade de Marktl am Inn, distrito administrativo de Alltotting; no ano de 1939 ele vai para o seminário e em 29 de junho de 1951 é ordenado sacerdote juntamente com seu irmão Georg. Já no dia 19 de Abril de 2005, Joseph torna-se papa escolhendo por nome Bento XVI. BENTO XVI, 2011, p.221.

42 Conhecimento...

Ele queria sim estar a serviço da Igreja, mas apenas como uma pessoa leiga que anunciava a boa nova80.

O bispo Valério de Hipona, reunido com uma multidão, dizia que precisava de alguém capaz de auxiliá-lo no combate as heresias. Também Agostinho estava no meio desta multidão e, a população sabendo de suas capacidades, começam a exclamar: Agostinho! Agostinho! Estava feito, não tinha para onde correr, iria ser consagrado sacerdote, mesmo contra sua vontade. Diante de tal situação, o que restou foi aceitar e ver no desejo do povo, a vontade de Deus. Aceitou a indicação para ser sacerdote naquela cidade, mas com a condição de que ele tivesse um tempo de reclusão para se preparar espiritualmente, e pudesse nesta cidade formar a sua comunidade de vida monástica; ambas as condições foram aceitas pelo bispo81.

Passados alguns meses, foi ordenado sacerdote por meio de seu bispo Valério. Após sua ordenação ele continuou em Hipona exercendo suas funções de sacerdote, também foi depois de ordenado que:

o bispo Valério, atendendo ao seu desejo monástico, ‘entrega-lhe parte de um jardim junto à residência. Agostinho, presbítero da Igreja, estabelece aí a continuidade de sua experiência de vida comunitária’. Este mosteiro, de grande importância ficaria conhecido como o ‘mosteiro do jardim’82.

Nosso filósofo exercia em sua cidade as suas

funções de sacerdote dando o seu melhor, ajudava seu bispo no que era necessário, também as pessoas o admiravam muito. O fato de ele ser um excelente sacerdote, e tendo o bispo medo de perdê-lo para outra diocese, escreveu uma carta para o bispo Primaz da África

80 MONTAGNA, 2014, p. 48-49. 81 Ibid, p. 49. 82 ROCHA, 1989, p. 94 apud MONTAGNA, 2014, p. 51.

Contextualização... 43

solicitando que este ordenasse Agostinho bispo auxiliar de Hipona. Na carta, Valério alegava ao bispo “sua fraqueza corporal e o peso da idade, e suplicando-lhe que ordenasse Agostinho como bispo de sua sede, não como sucessor, mas como coadjutor. E conseguiu um rescrito a respeito do que desejou e pediu”83.

A princípio resistia ao desejo de seu insistente bispo, mas, passado algum tempo, em junho de 395 foi ordenado Bispo Coadjutor por Magálio, Bispo Primaz da África. Enquanto Coadjutor, aprendia muito com seu bispo, mas também o auxiliava na incessante batalha contra as heresias. Tendo passado um ano de sua ordenação, Valério veio a falecer, e Agostinho ficou em seu lugar, à frente da Diocese de Hipona.

Enquanto atuava como bispo, grande foi seu esforço para estar junto das pessoas, auxiliando-as em seus anseios, dirigindo-lhes sermões que tocavam a alma; também teve o duro trabalho de combater as heresias, participou também de inúmeros debates, entre estes, destaca-se de modo especial o debate contra o maniqueu Fortunato que fora seu amigo em tempos da vida herética.

Ademais, a vida ia passando e aos poucos sua vida nesta terra chegaria ao fim. Seus últimos anos foram também o período em que o Império Romano se extinguiria. Não demorou muito para que Hipona fosse invadida; ela começou a ser tomada em maio de 430 e também foi neste mesmo ano, no dia 28 de agosto, que Agostinho deixou esta terra84.

Sua vida foi longa. Quando jovem se dedicou aos prazeres mundanos, à vida no erro, entretanto quando se converteu, foi grande a mudança que ele operou na vida daqueles que junto dele estavam. Ele também converteu muitas pessoas ao catolicismo, combateu assiduamente os ataques contra a Igreja Católica Apostólica Romana. Enfim, foi grande, e é a influência de Agostinho na vida de

83 POSSÍDIO, 2014, p. 44. 84 SESÉ, 2008, p. 130.

44 Conhecimento...

todos os que estiveram com ele, assim como na vida da própria Igreja que perdura até hoje.

Ele nos deixou inúmeras obras que contribuem com a formação dos homens de nosso tempo, tanto filosófica quanto teologicamente, e até mesmo espiritualmente. Entre suas obras, especula-se que ele “escreveu 94 obras, dividas em 232 livros, mais algumas centenas de sermões e cartas, além de pequenos tratados”85. De todas as suas obras, temos algumas mais conhecidas como: suas Confissões, A Cidade de Deus, O Livre-Arbítrio e o De Magistro.

No próximo capítulo nos deteremos a respeito do platonismo e do neoplatonismo, que teve papel importante na formação das ideias de Agostinho. Por este motivo convém tratarmos de modo sucinto a questão do conhecimento na visão dos filósofos anteriores a Santo Agostinho, a saber: Platão e Plotino.

85 MONTAGNA, 2014, p. 53-54.

- II -

O CONHECIMENTO NA PERSPECTIVA PLATÔNICA E NEOPLATÔNICA

Dedicamo-nos nesta parte do trabalho a explicitar

o conceito de conhecimento na visão platônica bem como na perspectiva de Plotino, filósofo neoplatônico posterior ao nascimento de Cristo. 2.1 O CONHECIMENTO PARA PLATÃO

Embora o problema do conhecimento já tenha sido

tratado por filósofos anteriores a Platão, foi a partir dele que este tema ganhou maior estrutura e se desenvolveu a ponto de servir de base para a discussão do conhecimento, não só em Santo Agostinho, mas também em outros pensadores. Este tema é tratado em algumas obras platônicas de grande importância tal como Mênon, Teeteto, Fedro, Fedon e A República. Não nos delongaremos neste tema aqui, pois este é um tema muito abrangente. Daremos maior enfoque ao conceito platônico de reminiscência que influenciou muito Agostinho em sua doutrina gnosiológica.

É certo que Platão de certo modo tratou do tema do conhecimento de um modo totalmente distinto dos filósofos empíricos86. Para ele o verdadeiro conhecimento

86 Alguns filósofos modernos concebiam que o conhecimento passava pelo âmbito sensível onde nós deveríamos ter a experiência na realidade sensível para de fato conhecer. Sendo assim para melhor compreensão podemos entender o empirismo a partir de duas concepções comuns “a experiência como informação proporcionada pelos órgãos dos sentidos, e a experiência como aquilo que logo foi chamado de ‘vivência’ isto é, o conjunto de sentimentos, afeições, emoções etc. que são experimentados por um sujeito humano e se acumulam em sua memória, de modo que o sujeito que dispõe de um

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se dava a partir de uma busca desligada de toda a sensibilidade. Em sua concepção, a necessidade de se desvincular deste mundo era fundamental para atingir aquele lugar em que se encontravam os conhecimentos puros, destituídos de toda corruptibilidade e mutabilidade.

A questão do conhecimento, tratada por Platão em seu diálogo Mênon tem como principais interlocutores Sócrates e Mênon. Este último trava um longo diálogo com Sócrates acerca da virtude. Num dado momento, o conhecimento passa a ser pauta do diálogo e Mênon apresenta o seguinte argumento a Sócrates: é impossível promover uma investigação acerca daquilo que já conhecemos, justamente por já conhecermos bem como o erro de investigar aquilo que não se conhece, pois não há como saber o que investigar87.

A partir da tentativa de pontuar o erro do argumento de Mênon, é que Sócrates influenciado por sua doutrina da imortalidade da alma, usa dela para expor seu pensamento acerca do conhecimento. O conhecimento e a imortalidade da alma em Platão são temas que não podem ser desvinculados. É importante notar no que tange à questão da imortalidade da alma, fica evidente o fato de que para Platão, a alma do homem conhece as coisas que não mudam e são eternas. Mas, para que isso ocorra, a alma deve ser da mesma natureza, ou seja, imutável e eterna. Assim, a alma vive como que num ciclo onde ela morre, vive num mundo suprafísico, e depois volta para esta terra e, é nesse processo de sair deste e, para este

bom aprovisionamento desses sentimentos, emoções etc. é considerado ‘uma pessoa com experiência [...] Costuma-se considerar dois aspectos no empirismo. Segundo um deles, o empirismo afirma que todo conhecimento deriva da experiência, e particularmente da experiência dos sentidos. Segundo o outro aspecto, ele defende que todo conhecimento deve ser justificado recorrendo-se aos sentidos, de modo que não é propriamente conhecimento a menos que aquilo que é afirmado seja confirmado (testificado) pelos sentidos” MORA, 1994, p. 821. 87 PLATÃO (Mênon), 2010.

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mundo voltar que ela contempla a verdadeira essência das coisas, que são eternas88.

Influenciado por esta doutrina da imortalidade da alma, de herança órfico-pitagóricas89, e da doutrina da metempsicose, que concebe que a alma não permanece em um único corpo, mas ao contrário, transmigra de corpos em corpos bem como renasce em diversos seres vivos, Platão, por meio das palavras atribuídas a Sócrates, afirma que o homem obteve outrora conhecimento acerca das coisas, tanto nesta terra quanto fora dela e por isso ele apenas recorda aquilo que num outro momento ele contemplou. Mas, “isso não poderia acontecer se nossa alma não existisse em algum lugar antes de assumir, pela geração, forma humana”90.

Esse processo de recordação de conhecimentos anteriores é conhecido por anamnese. Também, este ato de recordação pode ser traduzido em outros termos como a atitude em que a alma “extrai de si mesma” a verdade das coisas91, ou seja, a alma retira de si tudo aquilo que é necessário para conhecer, visto que outrora já havia conhecido.

88 REALE; ANTISERI, 1990, p. 156-157. 89 O que é o orfismo? “Chama-se ‘orfismo’ a doutrina propagada pelos adeptos dos mistérios órficos e dos ritos ligados a essa doutrina. Esses ritos se baseiam numa mitologia: a de Dionísio, filho de Zeus e de Perséfone, que foi devorado pelos Titãs, mas cujo coração não o foi tendo sido dado a Zeus por Atena. Destruídos os Titãs pelos raios de Zeus, emergiam de suas cinzas os homens, cuja existência abriga dentro de si o mal dos Titãs e o bem de Dionísio. Dionísio renasceu do coração ingerido por Zeus. Essa ressurreição é fundamental na doutrina órfica e em seus ritos; por um lado, levou à crença na transmigração; por outro, à abstinência da carne. [...] Do ponto de vista filosófico, interessam sobretudo os testemunhos que há sobre o orfismo em Pitágoras, em Empédocles (As Purificações) e em Platão. [...] Até há relativamente pouco tempo, acreditava-se que o orfismo filosófico era uma depuração do orfismo mitológico. Supunha-se, além disso, que existira uma seita órfica de cujos ensinamentos Pitágoras teria feito parte” MORA, 1994, p. 2166. 90 PLATÃO (Fédon), 2000, p. 61. 91 Ibid., p. 146.

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Toda essa afirmação acerca da questão da

formação do conhecimento e a sua relação com a imortalidade da alma, fica evidente nesta passagem do Diálogo:

Considerando-se que a alma é imortal, renasceu muitas vezes e contemplou todas as coisas tanto neste mundo como no mundo subterrâneo dos mortos, nada há que não haja apreendido; disso se conclui que não é de se surpreender que seja capaz de lembrar-se de tudo que apreendeu anteriormente a respeito da virtude bem como sobre outras coisas. Como o todo da natureza tem afinidade, e a alma aprendeu todas as coisas, nada há que nos impeça, após lembrarmo-nos de uma única coisa – processo que os seres humanos denominam aprendizado - de descobrir tudo o mais por nós mesmos, se formos corajosos e não fraquejarmos na investigação, isso porque investigação e aprendizado, como um todo, consistem em reminiscência92.

Nesta citação fica evidente a preocupação de

Platão em demonstrar o seu conceito de reminiscência, onde o indivíduo recorda aquilo que outrora já havia contemplado. Durante o decorrer do diálogo, Sócrates para demonstrar melhor este conceito usa um escravo de Mênon. Por meio de incessantes perguntas - processo denominado de maiêutica - Sócrates leva o escravo a buscar em seu interior as respostas para as questões por ele propostas. Escravo este que não tinha conhecimento de nada, porém, ao ser indagado responde corretamente todas as questões propostas e resolve de modo plausível um problema de geometria93. Com esta tese, fica claro que Platão sustentava uma visão de conhecimento inatista94.

92 PLATÃO (Mênon), 2010, p. 127. 93 Ibid, p. 128. 94 Inatismo é a “doutrina segundo a qual existem certas ideias, certos princípios, noções, máximas – sejam ‘especulativos’ ou ‘práticos’ – que são inatos, isto é, possuídos pela alma, pelo espirito etc., de todos os homens sem exceção” MORA, 1994, p. 1467.

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O conhecimento, enquanto ato de reminiscência, não fica muito bem estruturado na obra Mênon, por este motivo Platão retoma este tema na obra Fédon e depois, sustenta-a novamente na obra Fedro.

Em Fédon, há dois momentos de suma importância onde o filósofo grego trabalha o tema do conhecimento. Num primeiro momento o filósofo parece não gostar de estar num corpo. Mas por quê? A tese apresentada por ele é que o corpo é vítima dos prazeres, das paixões, da corrupção, e por isso ele é imperfeito. Além disso, os dados que o corpo recebe através dos sentidos não são confiáveis. Embora os dados sensíveis sejam um tipo de conhecimento, é um tipo incerto. Por esse motivo, ele exorta para a necessidade de o homem se desvincular deste corpo e, separando-se deste, obterá o conhecimento perfeito. A partir daí ele continua seu raciocínio, convidando o indivíduo a alcançar este conhecimento. O método que ele propõe é que só o alcançaremos se fizermos uma profunda reflexão, através do raciocínio; aí sim o indivíduo encontrará o conhecimento verdadeiro. Este conhecimento só é encontrado se usarmos a alma como meio, pois é por ela que o raciocínio acontece95. Ele orienta:

- E, sem dúvida alguma, ela [a alma] raciocina melhor precisamente quando nenhum empeço lhe advém de nenhuma parte, nem do ouvido, nem da vista, nem dum sofrimento, nem sobretudo dum prazer, mas sim quando se isola o mais que pode em si mesma, abandonando o corpo96. [Grifo nosso]

Portanto, fica claro que é necessário renunciar

completamente a este corpo se quisermos obter o conhecimento verdadeiro. E, sendo esta a única forma, Platão acaba por concluir que o conhecimento verdadeiro

95 PLATÃO (Fédon), 2000. 96 Ibid., p. 54.

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se encontra no mundo das ideias e sendo assim, só estará em nossa posse esse conhecimento, de modo definitivo, no momento em que deixarmos este mundo.

A reminiscência platônica é novamente sustentada aqui. Este conceito proposto por Platão é elaborado através da origem da alma. Como já dissemos, a alma viveu em outro mundo e veio para este, e, neste mundo, ela apenas recorda daquilo que outrora havia contemplado.

Para Platão, tudo aquilo que aprendemos, seja por meio da visão, da audição, ou por meio de outro tipo de sensação, nos leva a recordarmos não apenas desta coisa em questão, mas nos traz à mente “a imagem de uma outra coisa, que não é objeto do mesmo saber, mas de um outro”97. De modo mais claro, Platão quer dizer que quando entramos em contato com algum objeto e o igualamos a outro, o fato de o igualarmos a outro pressupõe que já temos um conhecimento. E qual conhecimento seria esse? O conhecimento do igual. E, tendo conhecimento do igual é que poderemos fazer uso deste conceito98. Mas, onde é que obtivemos o conhecimento deste igual, se ninguém nos ensinou? Foi no outro mundo onde o contemplamos, e neste, apenas nos recordamos dele. Isso fica evidente nesta passagem:

- Sim, por certo; isso é indiferente. Desde que, vendo uma coisa, a visão desta faz com que penses numa outra desde então, quer haja semelhança ou dessemelhança, necessariamente o que se produz é uma recordação? - Necessariamente99. Em Fédon, Platão explica que o conhecimento não

foi adquirido ao nascermos, mas sim anteriormente ao

97 Ibid., p. 61. 98 Ibid., p. 63. 99 Ibid.

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nosso nascimento. Entretanto, o esquecemos no exato momento em que nascemos100. Tendo esquecido o que aprendemos, ele propõe que: quando nascemos os conhecimentos que obtemos são apenas recordações. Vejamos então:

de duas uma: ou nascemos com o conhecimento das ideias e este é um conhecimento que para todos nós dura a vida inteira, ou então, depois do nascimento, aqueles de quem dizemos que se instruem nada mais fazem que recordar-se; e neste caso a instrução seria uma reminiscência. - É exatamente assim, Sócrates!101

Sócrates acaba por concluir que: tudo o que

relacionamos, igualamos, somamos, concluímos, enfim, todos os resultados que tivemos ou questionamentos que levantamos são consequências de nossos conhecimentos, obtidos em outro momento de nossa vida, quando nossa alma estava com os deuses.

O conhecimento é tratado numa outra perspectiva na obra de Platão A República. Nesta obra o conhecimento é explicado a partir do mito da caverna102. Platão é o

100 PLATÃO (Fédon), 2000, p.65. 101 Ibid., p.64. 102 Platão para descrever o mito, convida os seus interlocutores a imaginar homens que viviam em uma caverna. Os que na caverna viviam estavam com pernas e pescoço amarrados de tal maneira que não podiam se mover. A impossibilidade do movimento forçava-os a olhar somente para o fundo da caverna. No fundo da caverna se encontrava um muro e atrás desse muro haviam homens que se moviam e levavam consigo estátuas que representavam coisas variadas. Ademais, se encontrava por trás dos homens uma fogueira e no alto um sol a brilhar. A caverna também possibilitava que um eco soasse e sendo assim, os homens ao passarem do outro lado do muro, ao falarem, faziam ecoar sua voz no fundo da caverna. Dado tal acontecimento, aqueles que estivessem presos só veriam as estátuas no fundo da caverna e ouviriam somente o eco das vozes. Acreditariam assim, que as sombras seriam a realidade e o eco das vozes proviam destas mesmas sombras. Se um dos prisioneiros se libertasse, com

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filósofo ‘do outro mundo’, ou seja, é aquele filósofo que se preocupava em direcionar todo o seu ser para aquilo que há além deste mundo. Por este motivo, ele pregava a necessidade de o homem direcionar-se para o que ele chamava de filosofia verdadeira103. Nesta obra ele alude para o fato de nos preocuparmos com o que é verdadeiro, pois aquilo que vemos aqui nada mais é do que cópia do outro mundo104. Assim, com o mito, ele faz uma analogia para interpretar o que vemos e o que não vemos:

dificuldade se adaptaria à nova realidade; ao habituar-se compreenderia que as estátuas são mais reais que as sombras que outrora acreditara como sendo real. Supondo que este prisioneiro seja levado por alguém para fora da caverna, além do muro. Este teria dificuldade de enxergar devido à luz nova que lhe estava sendo apresentada, mas ao habituar-se veria as próprias coisas e depois a própria luz solar. Dado o ocorrido, o homem compreenderia que essas são as verdadeiras realidades e que o sol causa as coisas visíveis. REALE; ANTISERI, p. 167, 1990. 103 PLATÃO (A República), 1949, p. 326. 104 Este é o mundo das ideias de Platão. Neste local habitam a verdadeira essência do que vemos, ou seja, as realidades inteligíveis que são somente apreendidas pelo pensamento através do desprendimento do sensível. "Neste ‘mundo’ existem idéias para todas as coisas (Idéias de valores estéticos, Idéias de valores morais, Ideais de entes corpóreos, etc). Estas idéias caracterizam a chamada ‘substância’, que é desprovida de cor, forma ou qualquer outro aspecto físico. O importante é que todas elas são incorruptíveis e não estão sujeitas a geração. [...] Para Platão, ninguém poderia alcançar este mundo ‘superceleste’, a não ser que possuísse as condições necessárias para tal feito, no caso, possuir o conhecimento das verdadeiras causas. Apenas o filósofo, aquele que consegue desenvolver a ‘parte mais elevada de sua alma’ poderia conhecer o Mundo Inteligível. [...] a teoria das Idéias de Platão pretendeu sustentar que o sensível só pode ser explicado mediante o recurso do supra-sensível, o relativo mediante o absoluto, o sujeito a movimento mediante o imutável, o corruptível mediante o eterno. Esta é a meta do pensamento de Platão, a busca de uma ‘condição incondicionada’ para o conhecimento, o encontro com o absoluto fundamento da verdade. O ‘verdadeiro ser’ é constituído pela “realidade inteligível” MAIRINQUE, 2003, p. 3.

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- Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu- deve agora aplicar-se a tudo quanto dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la105.

O verdadeiro conhecimento para Platão é aquele

que conduz o homem para a ideia do Bem, de onde provêm todas as coisas. Aqui, a interpretação feita por Platão sugere que tanto as sombras quanto os sons, não seriam reais. O homem, porém, é levado a acreditar que aquilo que não é real (sombras e sons) seria real, ou seja, traduzindo nos termos de Platão, o não ser seria tido como sendo ser. Por haver estes dois extremos: ser de um lado e não ser do outro, Platão acaba por afirmar a existência de um conhecimento intermediário entre aquilo que não é, portanto, a ignorância, e aquilo que verdadeiramente é, a ciência. Este, por ser um tipo de conhecimento, mas não um conhecimento verdadeiro, um conhecimento seguro, Platão o denomina de doxa106.

A doxa é um conhecimento que está relacionado ao mundo sensível. Tal como o mundo está em um constante vir a ser, a doxa, está sempre mudando. E por ser inconstante, sempre nos engana107. Este conhecimento nos leva a não compreender o real, leva-nos sempre ao caminho do erro. Platão busca dar maior segurança ao conhecimento apresentado pela doxa. Ele almeja garantir esta segurança por meio do encontro, daquilo que originou o que vemos: a ideia das coisas. Deste modo, o que outrora era tido como opinião, a partir do momento em que encontramos a ideia da coisa por nós vista, torna o conhecimento que outrora era incerto em

105 PLATÃO (A República), 1949, p. 319. 106 REALE; ANTISERI, 1990. 107 Ibid., p. 148.

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conhecimento mais seguro. Quando isso acontece, este conhecimento passa agora a ser uma ciência (epistéme)108.

Plãtão atribui à doxa e à epistéme dois graus diferentes: a opinião (doxa) se divide em eikasia, que é a pura imaginação e pistis, que é a crença. Já a ciência (epistéme) se divide em dianóia que é a ciência intermediária e em noesis que é a intelecção pura. Cada forma ou grau de conhecimento diz respeito a “um grau ou forma de realidade e de ser”109. Giovanni Reale ao explicar o mito, postula que podemos dizer que tanto a eikasía quanto a pistis dizem respeito ao sensível. A eikasia diz respeito àquilo que os homens acorrentados veem, ou seja, as sombras e as imagens sensíveis que geram as sombras. A pistis, diz respeito aos objetos sensíveis. A diánoia diz respeito a um grau do conhecimento inteligível, o conhecimento advindo da matemática e da geometria. Já a noesis diz respeito a outro grau do conhecimento inteligível que é “o conhecimento dialético das Idéias110”. A dianóia ainda se ocupa do conhecimento sensível, daquilo que podemos enxergar e de hipóteses. Já a noesis trabalha em cima do conhecimento puro, da ideia, daquilo que gera o que vemos bem como daquilo à qual tudo se direciona: a Ideia do Bem111. 2.2 O NEOPLATONISMO DE PLOTINO

Santo Agostinho foi muito influenciado pela filosofia

neoplatônica, de modo especial pela filosofia de Plotino. Por conter um caráter espiritualista, o Neoplatonismo influenciou fortemente a formação do cristianismo primitivo. Destarte, de modo sucinto, neste segmento de nosso trabalho explicitaremos acerca do Neoplatonismo –

108 Ibid. 109 Ibid. 110 Ibid. 111 Ibid.

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de modo especial à filosofia de Plotino com sua doutrina do conhecimento.

O neoplatonismo ou a Escola Neoplatônica fora fundada por Amônio Saccas112 no século II d.C. Embora fosse Amônio o fundador do neoplatonismo, este ganhou maior destaque através do discípulo de Amônio: Plotino. Ademais, com relação a esta escola, evidencia-se o fato de que o neoplatonismo reinterpretava os conceitos platônicos que ganhavam um “aspecto religioso e místico”113. Esta doutrina filosófica teve contato com doutrinas como: o cristianismo, gnosticismo, o pensamento do médio oriente. Este movimento ainda foi também influenciado pelo pensamento judaico114.

Diversas são as escolas neoplatônicas. A de maior destaque, bem como a primeira, é a escola alexandrina, que foi fundada por Amônio Saccas no século II, como já salientamos. Abbagnano constata que o objetivo dos neoplatônicos era interpretar o pensamento platônico, a fim de defender aquilo que se tinha como verdade, e se revelava ao homem na medida em que este as descobria no íntimo de sua consciência, em seu interior115.

Abbagnano considera ainda, que o neoplatonismo se fundamenta a partir de quatro pontos: primeiro ele se caracteriza por meio da revelação da verdade; isto implica dizer que esta verdade tem origem religiosa, assim como

112 Nasceu no ano de 175 e morreu em 242. Foi mestre de Plotino e influenciou outros filósofos contemporâneos. Por ser grande o número de filósofos influenciados por ele, alguns autores o consideram o fundador do neoplatonismo (isto é muito discutido pois alguns dão este título a Numênio de Apaméia e outros à Plotino). Os ensinamentos que de Amônio provinham, que eram transmitidos oralmente, tinha uma tendência a um sistema eclético que se combinava, de maneira harmônica, elementos platônicos e aristotélicos. Nemésio afirma que os problemas tratados por Amônio foram: a natureza da alma e sua relação com a inteligência de uma maneira semelhante ao que Plotino desenvolveria mais tarde. MORA, 1994, p. 106. 113 PECORARO, 2008, p. 87. 114 BRUN, 1988. 115 ABBAGNANO, 2007.

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tem a sua manifestação nas instituições religiosas e também no próprio homem que reflete sobre si; também há a concepção de absolutismo divino, ou seja, Deus. Este, para os neoplatônicos, está acima de qualquer explicação ou compreensão racional, é visto como um ser indescritível, devido a sua grandeza; além disso, concebe a teoria da emanação, esta diz respeito a todas as coisas existentes. Tais coisas vêm de Deus, e somente por meio da proximidade dessas coisas com Deus é que elas se aperfeiçoam. Entretanto, as coisas que existem perdem sua perfeição na medida em que Dele se afastam. Também creem que o mundo inteligível, que é composto por Deus, o intelecto e a alma, não se assemelha ao mundo físico; por fim, creem que, por meio do homem, o mundo retorna a Deus e isso acontecerá na medida em que o próprio ser humano se interioriza; tal interiorização é progressiva e chega ao seu cume no momento em que o homem se une totalmente a Deus116.

Ampla foi a formação e o aprendizado proporcionado pela Escola Neoplatônica, enquanto Plotino habitava esta terra. Entretanto, com sua morte, a escola acabou por se dividir. Esta divisão foi feita da seguinte forma: na Síria a escola continuou por meio de Jamblico e em Atenas por meio de Proclo. Aos poucos, devido ao grande crescimento do cristianismo, esta escola foi perdendo sua força, até que no ano de 529 ela é fechada pelo Imperador Justiniano117.

Feitas estas breves considerações, podemos notar que o neoplatonismo foi influência certa no pensamento agostiniano. Esta influência fica evidente no conceito de interiorização que Agostinho desenvolveu. O homem, na concepção neoplatônica, se completa quando ele se une a Deus e esta união ocorre quando o homem retorna a Deus por meio da interiorização118.

116 Ibid. 117 HAMLYN, 1987. 118ABBAGNANO, 2007.

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2.2.1 O Conhecimento para Plotino O tema do conhecimento na perspectiva do filósofo

de Licópolis é muito amplo. Para pesquisarmos acerca do conhecimento, para este autor, tivemos contato com a obra de Reinholdo Aloysio Ullmann, intitulada Plotino: Um estudo das Enéadas. Esta obra foi para nós de grande ajuda, pois nela o autor trata exatamente do tema em que nos propusemos neste segmento do trabalho a pesquisar: o conhecimento na visão de Plotino. Esta obra foi a base, também utilizamos mais alguns comentadores que nos auxiliaram nesta pesquisa.

O conhecimento em Plotino é subdividido por ele em quatro graus, a saber: o autoconhecimento, o conhecimento do mundo sensível, o conhecimento do mundo inteligível e o conhecimento místico119. O objetivo de Plotino sempre foi atingir o Uno de modo pleno. Mas o que seria este Uno? Vejamos:

O tò pántôs hén (o simplesmente Uno) [...] não se identifica com o mundo, com o múltiplo. Ele está “acima de tudo” (epékeina tôn pántôn), ultra omnia, mas, ao mesmo tempo, presente em toda a parte [...] o Uno não é ente, o Uno não é espírito. Do Uno só logramos “dizer o que ele não é, mas não dizemos o que ele é. Dele não há nome, ele é inefável (árretôn). Nada podemos dizer dele. Dele não temos pensamento nem conhecimento (oudè gnôsin oudè noésin échomen autoû)120.

Assim, podemos dizer que os diferentes graus de

conhecimento eram para Plotino uma espécie de ponte, que levaria, a passar por cada grau, à união com o Uno, desejo de todo ser humano.

No primeiro grau, o grau do autoconhecimento, Plotino entendia que conhecer a si mesmo significava a experiência necessária para ter acesso ao caminho interior

119ULLMANN, 2008, p. 59. 120PECORARO 2008, p. 89.

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que se deveria traçar, para que pudessem elevar-se a níveis gnosiológicos superiores. Por este motivo, cumpre lembrar que em Plotino não há nenhuma incoerência entre o conhecimento, enquanto teoria, e a ideia religiosa121.

Segundo Porfírio122, Plotino não gostava de estar num corpo123. Mas, qual o motivo que levava Plotino a ser totalmente contrário a um corpo? De acordo com o livro que por nós foi consultado, o que o levava a uma aversão ao corpo era “uma emotividade excessiva, acrescida de traumas psíquicos”124. Plotino desejava viver voltado para aquilo que está além deste ambiente material, viver em uma contemplação eterna. Em relação a isso o filósofo das Enéadas comenta:

Muitas vezes (pollákis), quando acordo, saindo do que eu não sou para entrar em mim, eu contemplo no meu íntimo uma beleza maravilhosa, convencido de que participo de uma natureza superior, vivendo uma vida excelente, tornado um com a divindade, fundamentado nela e exercendo uma atividade, que me eleva acima de todo o inteligível; quando, após esse repouso na divindade, eu desço da Inteligência (Noûs) à razão,

121Ibid. 122 Discípulo de Plotino em Roma nasceu no ano 232/233 e faleceu em 304. Foi Porfirio que elaborou a biografia de Plotino, além disso, escreveu muitos tratados que trata de temas diversos, como a matemática, a lógica, a astrologia, a religião, a história, a retórica e a moral. Também é autor de comentários a Platão e Aristóteles. MORA, 1994, p. 2321. 123 O próprio Plotino apresenta em sua obra sua posição a respeito do corpo: “Mas talvez digam: a nossa doutrina inspira afastamento e repulsa do corpo, enquanto a vossa reúne o corpo à alma. É como se dois hóspedes habitassem ao mesmo tempo uma bela casa, e um deles criticasse a planta e o construtor, e continuasse a viver nela, e o outro não se queixasse, elogiasse a competência do construtor, e aguardasse pelo dia que fosse deixar essa casa quando já não precisasse dela” PLOTINO, (Enéadas) II, p.99. 124 ULLMANN, 2008, p. 60.

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então não sei como pude descer e de que modo a alma pôde entrar no corpo125.

Em relação ao conhecimento de si mesmo dizia

que era necessário ao homem enfraquecer o corpo para aprender, que o homem verdadeiro é distinto das coisas exteriores126.O autoconhecimento não é apenas conhecer sobre si mesmo, o que sou, o que desejo ser, e o que serei, mas é também uma compreensão da realidade que nos circunda. Plotino cita a necessidade de conhecer o ambiente em que se vivia, assim como os problemas que afloravam a sociedade. Cumpre destacar o que ele passou naquele período:

[Era um período totalmente angustiante] devido ao generalizado desgaste psicológico. De fato, o Império romano estava ameaçado, do exterior, pelos bárbaros do Norte e pelos persas do Leste; internamente, fez sentir-se uma comoção moral, social e intelectual, que abalou os valores os quais haviam sustentado o velho mundo; pestes, fomes e guerras despovoaram e empobreceram o Império e debilitaram as elites; o politeísmo pagão entrava em agonia, dando lugar aos cultos do Oriente. Ao mesmo tempo, o cristianismo desferia um golpe de morte à religião politeísta e à tradição127

Todo este ocorrido influenciou na formação do

pensamento de Plotino. Os problemas que havia em sua época serviam apenas de pano de fundo, pois Plotino era firme em seu pensar: o homem é quem tem responsabilidade por seu destino e por sua liberdade; este mesmo homem é dotado de uma capacidade que o leva, já nesta vida, a unir-se, por meio do êxtase, ao Absoluto. Sumariamente ele quer demonstrar a imensa distinção que

125 Em IV, 8, 1, 1-10 apud PECORARO, 2008, p. 87. 126 En I, 4, 14, 11-22 apud ULLMANN, 2008, p. 60-61. 127 ULLMANN, 2008, p. 61.

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há entre o mundo sensível e o mundo inteligível. Partindo daí é que se pode falar num dualismo ontológico em Plotino, mas que não se assemelhava ao dualismo gnóstico. Para Plotino, deter-se neste mundo material, era como que uma aceitação deste mundo como a verdadeira realidade. Mas, o objetivo era atingir o eterno e imutável, ou seja, o Uno, como que isso se daria se o homem entende o mundo físico como sendo a realidade? O homem precisaria se desvincular da matéria, para isso precisaria superar o dualismo e ver este mundo apenas como um meio que o levaria até o inteligível128.

Feitas estas considerações acerca do primeiro grau do conhecimento em Plotino, passemos agora ao segundo grau: o conhecimento do mundo sensível.

Para que se possa obter uma melhor compreensão acerca deste grau do conhecimento, é preciso que tenhamos uma ideia clara de como ele entendia o homem. Plotino argumenta que a alma humana preexiste na Alma Universal. A alma movida por seu desejo de independência se separa do mundo inteligível. Foi por este motivo que ela teve como destino um corpo. Tal como o filósofo do Mundo das Ideias, Plotino crê na união da alma com o corpo “não como substancial, mas como justaposição, como composto129”. É no corpo em que a alma fica presa. Habitar num corpo, esta é a pena da alma. O fato de Plotino crer na preexistência da alma leva-nos ao problema da origem das ideias. Imbuído de conceitos platônicos, Plotino usa o termo “reminiscência obscura”, e o termo aristotélico “passagem de potência para o ato”, para expressar o problema da origem das ideias130.

O processo de passagem da potência para o ato em Plotino é a saída da escuridão para a luz, este processo é descobrir o que há de oculto na alma, pois ele mesmo diz “a alma possui os objetos, mas não em ato,

128 Ibid, p. 61-62. 129 ULLMANN, 2008, p. 62-63. 130 Ibid, p. 63.

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depostos numa região obscura”131. Plotino afirma que a alma possui o ser de alguma maneira, mas ainda não o descobriu. Para que se descubra o ser em si, é preciso uma luz que clarifique o que a alma já carrega consigo. Mas afinal, que luz é esta que ilumina o que está escuro? Ullmann postula que: é a alma que toca e ilumina com uma luz própria e o coloca em evidência para que possamos perceber o que ela possui. Esses objetos que a alma possui, quando clarificados, mais evidentes ficam e passam da potência para o ato132.

Para além, o homem necessita obter o conhecimento sensível. Este conhecimento, o sensível, é o grau mais baixo, pois ele contém somente dados externos. Plotino compreende que a sensação atua como receptiva, onde ela percebe as formas externas dos objetos e suas qualidades que existem, mesmo sem nossa participação. Ademais, o conhecimento sensível ocorre também por meio dos órgãos corporais. Mediante estes órgãos, “que estão como que em continuidade com as coisas sensíveis”133, a alma, por meio da sensação, chega à união com tais coisas. A partir disso, inicia-se uma unidade entre a alma e as coisas.

Plotino não pode ser visto como subjetivista, no sentido de que o que aprendemos por meio dos sentidos, constitui-se a partir de imagens provenientes do mundo exterior, vistas como subjetivas. Também não deve ser considerado idealista, pois o idealista crê na inexistência do mundo exterior, que tenha forma e espaço, que não dependem do indivíduo. O mundo objetivo existe sim e não é criado pelo sujeito cognoscente. Mas, qual o grau de certeza que a sensação pode nos oferecer? Ullmann, comentando a este respeito nos diz que primeiro de tudo, ela nos oferece a dóxa, que não devemos depositar excessiva confiança. Seguido à dóxa, nos oferece a pístis,

131 En. I, 2, 4, 22-23 apud ULLMANN, 2008, p. 63. 132 ULLMANN, 2008, p. 65. 133 En. IV, 5, 1, 10-14; En. IV 6, 1, 23-32 apud ULLMANN, 2008, p. 64.

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que é superior e um tanto mais segura que a dóxa por causa da intervenção da razão. Entende-se por pístis uma persuasão que ainda não pode ser tida como certeza total. Ela precisa ser demonstrada, pois a demonstração se chega por meio do auxílio da razão134.

Cumpre lembrar que as sensações são a principal culpada de nossos erros135. Para Plotino, o mundo sensível é um engano. A verdade deve ser procurada no criador de tudo: o Uno. Para que isso ocorra devemos alcançar o eu interior por meio da renúncia a tudo. Quando o homem renuncia a tudo, ele se direciona para o seu interior. Ao se direcionar para o interior, o homem, cada vez mais se assemelha ao Uno, que, na visão de Plotino, deve ser o objetivo a ser alcançado pelo ser humano136. Tratemos agora do terceiro grau, o conhecimento do mundo inteligível.

Com o conhecimento do mundo inteligível, Plotino desejava um ápice que não poderia ser ultrapassado. Este lugar, de modo natural, impulsionava-o. Mas que lugar é este? Segundo Plotino, é um lugar invisível, que não é dotado de extensão espacial e que só pode ser conhecido por meio do intelecto. Este lugar, o mundo inteligível, é composto pelo Uno, pela Inteligência e a alma do mundo. Estas são a tríade plotiniana, que foi interpretada como Trindade cristã por alguns cristãos137.

Para que cheguemos a este mundo, Plotino propõe quatro passos. O primeiro requer uma posição dogmática onde não se deve admitir discussão, ou seja, deve-se adotar uma posição cética. Tal posição impõe algumas verdades indiscutíveis: a) “O Uno existe necessariamente antes de tudo”; b) “Se existe o múltiplo, é mister que antes

134 ULLMANN, 2008, p. 64-65. 135 Ibid, p. 66. 136 Ibid, p. 68. 137 ULLMANN, 2008, p. 69.

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exista um”; c) “Não é possível existirem muitas coisas, não existindo o um”; d) “é necessário que exista o Noûs”138.

Com o exposto acima, percebe-se que ele não faz uso de deduções lógicas, mas sim uma intuição direta. Ele não diz é assim porque está comprovado por mim, mas sim, é assim porque deve ser e porquê de outra forma é impossível139.

Com o segundo passo, Plotino faz uso de um argumento a posteriori, onde ele usa o exemplo da beleza deste mundo, que nada mais é do que o reflexo do belo em si que, por consequência, é um resquício da verdadeira beleza, da beleza inteligível. No terceiro passo, Plotino faz uso de um argumento de autoridade, embasado no período grego anterior a ele: “É mister crer com certeza, que alguns dos antigos e felizes filósofos descobriram a verdade”140 – destaca-se entre estes filósofos Platão. Por fim, no quarto passo, Plotino faz uso da analogia ou causalidade, pois o Uno não se assemelha às coisas por ele produzidas. O Uno é tido por ele como transcendente, que é infinito, ilimitado e anterior a tudo. Este Uno não se relaciona com as coisas, mas ao contrário, as coisas se relacionam com o Uno e são distintas dele141.

Após o acima exposto, resta-nos responder a uma questão: como atingir a verdade? Onde ela se encontra? Plotino é categórico: no Noûs142. Este, assim como se conhece, conhece as ideias das coisas. O Noûs se autorrevela, se conforma apenas consigo, é a verdade real, nele é que está a verdade143. O Noûs então é como que semelhante ao Uno, pois é o Noûs que ordena todas as coisas, sabe todas as verdades, assim como é nele que as verdades estão contidas.

138 En. V, 4, 2, 2. apud ULLMANN 2008, p. 69-70. 139 ULLMANN, 2008, p. 70. 140 En. III, 7, 1, 13-14 apud ULLMANN, 2008, p. 72. 141 Ibid. 142 Pode o Noûs ser chamado também de segunda hipóstase. 143 ULLMANN, 2008, p. 74.

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Plotino postula que o intelecto do homem deseja

não aquilo que passa e sim o que surge no mundo da sensibilidade, ele também não se contenta com o “mundo das idéias do Noûs144”. A alma deseja obter um conhecimento de caráter imediato, onde se possa apreender o todo rapidamente. A alma, para Plotino, sente-se como que impulsionada para a Verdade “subsistente e pessoal145”, que todos os homens desejam, ou seja, o Uno. Este Uno ao qual o homem deseja impõe condições para que seja atingido. O Uno não é dotado de forma, por este motivo, a alma que deseja contemplá-lo deve desvincular-se de toda forma que ela própria contém. Feito isto, tem-se a união e a semelhança com o Uno146. Feitas estas considerações, passemos ao último grau do conhecimento, o conhecimento místico.

Plotino elucida que a alma só conseguirá unir-se misticamente ao Uno (que pode ser chamado também de Deus, Bem, Supra-Ser, Super-Belo), quando alcançar a simplificação interior. O pensamento do filósofo licopolitano tem como referência o Absoluto, por esse motivo, o atingimento da união mística com o Uno complementa ainda mais a formação de suas ideias147. Seu objetivo sempre foi chegar ao Uno e unir-se a ele.

De modo gradativo, pode-se ascender de grau em grau até retornar ao Uno. Para Plotino o primeiro grau consiste na purificação (kátharsisem grego), que requer simplificação e, o segundo grau implica o ápice, ou seja, a união mística. Para que se possa atingir a união mística, o indivíduo deve passar pela purificação (katharsis), onde ele será libertado de tudo que há no mundo sensível e

144 Entre PLATÃO e PLOTINO, estabelece-se uma diferença, quanto ao mundo das ideias: o primeiro coloca-as num “mundo” à parte; o segundo inclui-as no Noûs, estando contidas nele; mas têm sua origem última no Uno. (Citação número 86 extraída do Livro de ULLMANN: Plotino: Um Estudo das Enéadas). 145 ULLMANN, 2008, p. 74. 146 Ibid., p. 75. 147 ULLMANN, 2008.

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abandonará as coisas deste mundo e, ao ser purificado se torna semelhante a Deus que é o ser semelhante por excelência. Consequentemente, a alma se recolhe em si a fim de encontrar a imagem do Uno que ela carrega consigo. E, é a partir da libertação do homem das coisas exteriores que ele se encontra pronto para que possa, misticamente148, unir-se ao Uno149.

Finalizando este segmento de nosso trabalho, é importante ressaltar que todo este desenvolvimento de Plotino, acerca do conhecimento místico, que implicava renunciar-se a si, ao corpo, às coisas exteriores para encontrar Deus, influenciou grandemente a mística cristã. A linguagem plotiniana foi adotada também por muitos Santos da Igreja Católica, para se dirigirem a Deus, para orientarem seus seguidores no caminho da perfeição. Vemos muitas vezes nos escritos de Santa Teresa de Ávila a palavra êxtase e em Santo Agostinho a palavra interior. E, por este motivo podemos dizer com segurança que em Plotino “não existe uma diferença essencial entre filosofia e religião, apenas uma diferença de grau”150. Podemos dizer que uma completa o que falta à outra.

Após este capítulo se dedicar aos filósofos que influenciaram Agostinho em sua formação da doutrina do conhecimento, passemos agora ao terceiro capítulo, onde explicitaremos o que entende Santo Agostinho por conhecimento.

148 A união mística consiste na forma por excelência de contemplação. 149 ULLMANN, 2008, p.76-77. 150 Ibid, p.81.

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- III -

SANTO AGOSTINHO E O CONHECIMENTO O conhecimento, na perspectiva do filósofo cristão,

abarca uma série de outras questões que estão implícitas em sua teoria do conhecimento. Com efeito, o autor pesquisado ao tratar do problema gnosiológico, trata ao mesmo tempo da prova da existência de Deus. Neste sentido, é mister afirmar que: provar a existência de Deus e obter o conhecimento, estão tão unidos que ambos são encontrados quando o retorno a si acontece, ou seja, a partir do caminho de interioridade traçado por Agostinho, este encontra o conhecimento verdadeiro que ansiava, mas também encontra o ser que lhe proporciona o conhecimento. Neste sentido, podemos dizer que:

Pelo que precede de início, é evidente que não se pode distinguir em santo Agostinho o problema da existência de Deus do problema do conhecimento; é uma única e mesma questão saber como concebemos a verdade e conhecer a existência da Verdade151; [...].

Dado que o conhecimento se confunde com a

prova da existência de Deus, pode-se dizer então que: para que haja conhecimento verdadeiro é necessária a fé, pois a fé é que dará ao indivíduo a certeza da existência do ser divino. Assim podemos dizer, tal como o filósofo estudado, que a fé é o ponto de partida para o conhecimento152 e, a partir desta fé é que se chega ao conhecimento pleno. Neste processo que conduz ao conhecimento e a Deus, o indivíduo passa pela interioridade. A interioridade é um percurso que ele se

151 GILSON, 2010, p. 46. 152 AGOSTINHO (A Trindade IX), 1995, p. 286.

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propõe a fazer a partir do auxílio divino que o guia. Devido à limitação humana, ele reconhece que Deus é quem auxilia durante o caminho interior. Caminho este que culminará no encontro com Deus. O encontro que o levará a provar a sua existência:

Deus, pois, existe, ele é a realidade verdadeira e suma, acima de tudo. E eu julgo que essa verdade não somente é objeto inabalável de nossa fé, mas que nós chegamos a ela, pela razão, como sendo uma verdade certíssima, ainda que sua visão não nos seja muito profunda, pelo conhecimento153.

Muitas são as discussões acerca do conhecimento,

posteriores a Agostinho. Sabemos que existem filósofos que compreendem o conhecimento de diferentes maneiras. Para uns ele se dá a partir do contato com os objetos, outros o compreendem como aquilo ocorrido anteriormente a nossa vida sensível, outros compreendem que a gnose ocorre a partir da intuição intelectual, ou seja, no puro exercício do raciocínio. Em relação ao mencionado, existem diversos tipos de conhecimento, nosso autor compreende da mesma maneira. Para ele, o conhecimento se divide em três graus; que estão subdivididos hierarquicamente.

Em sua obra O livre-arbítrio, nos apresenta estes graus: o primeiro é o sentido corporal (tato, olfato, visão, paladar, audição), que apenas é ponto de partida para o conhecimento, pois ele serve como “instrumento” para perceber os dados sensíveis. O segundo é o sentido interior, ou comum, que não é autoconsciente. Este rege o sentido corporal, assim como através de seus próprios meios, percebe os sentidos externos. E o terceiro, é o grau máximo do conhecimento, o conhecimento por excelência, que Agostinho denomina de razão154. Ela abarca os dois

153 AGOSTINHO (O Livre-Arbítrio), 2014, p. 125. 154 AGOSTINHO (O Livre-Arbítrio), 2014, p. 83.

Santo Agostinho e o conhecimento 69

graus de conhecimento anteriores. Conhece “a operação dos cinco sentidos corporais e seus objetos, e também o sentido interior”155. É também através da razão que a ciência é possível, diferentemente do sentido interior, ela tem autoconsciência.

Assim, a razão é excelente, pois além de conhecer-se e possibilitar o conhecimento ela rege todos os demais conhecimentos. Com relação a excelência da razão nos diz:

Tudo o que nós sabemos, só entendemos pela razão – aquilo que será considerado ciência. Ora, sabemos, entre outras coisas, que não se pode ter a sensação das cores pela audição; nem a sensação do som pela vista. E esse conhecimento racional nós não o temos pelos olhos, nem pelos ouvidos, e tampouco por esse sentido interior, do qual os animais não estão desprovidos. Por outro lado, não podemos crer que os animais conheçam a impossibilidade de sentir, seja a luz pelos ouvidos, seja os sons pelos olhos; visto que nós mesmos só o discernimos pela observação racional e pelo pensamento156.

É importante destacarmos que para o filósofo da

patrística existe o conhecimento imperfeito e também o perfeito. O primeiro é aquele proveniente dos sentidos, aqueles que estão vinculados à exterioridade. Para nosso autor este tipo de conhecimento deve ser evitado, pois ele sempre nos confunde e constantemente nos conduz ao erro. O segundo é o conhecimento das realidades matemáticas. São perfeitos, pois eles são lógicos e certos. Eles sempre chegam a uma mesma finalidade, independentemente de nossa capacidade sensível e, por isso eles são necessários e, por serem necessários, são verdadeiros. Para este tipo de conhecimento, Agostinho cita como exemplo a seguinte equação: 6+1=7. Esta é uma

155 Ibid., p. 260. 156 Ibid., p. 84.

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somatória que necessariamente chegará ao resultado sete. Ele não considera que seis mais um terá como resultado sete, mas que esta soma, em seu resultado final, necessariamente e imutavelmente será sete157. E por isso esse conhecimento é universal.

Para o autor o verdadeiro conhecimento se dá a partir da visão de Deus, pois é ele quem nos possibilita o conhecimento da verdade. Por este motivo, podemos dizer que a teoria do conhecimento de Santo Agostinho compreende que a razão, enquanto instrumento para o conhecimento, deve se unir à fé, pois esta é que capacita o indivíduo a atingir o verdadeiro conhecimento. Assim, com os tópicos que se seguem, pretendemos abordar as principais discussões elaboradas por Agostinho, que tratam especificamente do conhecimento. 3.1 A QUESTÃO DA VERDADE

A verdade é um tema que permeia toda a vida do

Santo. O problema da verdade o atormentou mais ainda quando ele leu o livro de Cícero, o Hortensius, pois este suscitou nele ainda mais o desejo de conhecer a verdade. Mas onde afinal está a verdade? Qual o objetivo de a conhecermos?

Em suas Confissões, ele argumenta que a verdade é o objetivo de todo ser que deseja a felicidade. Feliz é aquele que encontrou a verdade. Com efeito, num primeiro momento, antes de sua conversão, a verdade era buscada por ele nas coisas exteriores. Participou da seita maniqueísta pensando que havia encontrado a verdade, e esta verdade, que ele pensava ter encontrado, dissiparia todo o anseio que outrora ele teve nesta busca. Entretanto, nada disso ocorreu. A “verdadeira verdade” não foi encontrada no maniqueísmo. Os erros e contradições encontradas nesta seita colaboraram para que, posteriormente, o hiponense abandonasse esta seita. E, o

157 AGOSTINHO (Contra os Acadêmicos), 2008, p. 125.

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fato de não ter encontrado aí a verdade, aumentava ainda mais o desejo pela verdade, que somente seria encontrada com sua conversão.

Ao percorrer um caminho sensível na busca da verdade, após se converter, reconhece o erro de ter seguido tal caminho158. Se este caminho sensível foi um caminho de erro então não encontramos a verdade nas coisas sensíveis e exteriores.

É importante notarmos que Agostinho, depois de convertido, compreenderá que Deus é a Verdade que ele tanto buscava159. Portanto, a procura da Verdade está relacionada com a procura de Deus. Entretanto, antes de convertido seu pensamento não era esse, ele se dedicava a buscá-la no exterior. Em suas Confissões nosso autor mostra que antes buscava o Criador nas coisas sensíveis:

E o que é isso? Perguntei à terra, e esta me respondeu: “Não sou eu”. E tudo o que nela existe me respondeu a mesma coisa. Interroguei o mar, os abismos e os seres vivos, e todos me responderam “Não somos o teu Deus; busca-o acima de nós. [...] Pedi a todos os seres que me rodeiam o corpo: ‘Falai-me do meu Deus, já que não sois o meu Deus; dizei-me ao menos alguma coisa sobre ele’. E exclamaram em alta voz: ‘Foi ele quem nos criou’”160.

Como já mencionado, não encontramos a verdade

no âmbito sensível. Assim, qual o argumento que o filósofo usa para sustentar a existência da Verdade, dado que exteriormente ela não existe em sua plenitude? O argumento que sustenta a existência da Verdade está posto em seu livro Solilóquios. Vejamos.

158 “Meu pecado era não procurar nele, e sim nas suas criaturas – isto é, em mim mesmo e nos outros – os prazeres, as honras e a verdade” AGOSTINHO, 2015, p. 46 [Grifo nosso]. 159 “É dessa verdade, ou seja, de Deus, que retiramos todas as nossas verdades” GILSON, 2010, p. 23. 160 AGOSTINHO (Confissões), 2015, p. 275.

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Agostinho postula que a verdade é quem

possibilita-nos todos os demais conhecimentos. Por este motivo é mister que conheçamos em primeiro lugar esta verdade, para depois sim conhecer as demais coisas161. A concepção apresentada, acerca da verdade, parte primeiro do pressuposto de que ela existe. Em Solilóquios a comprovação de tal colocação gira em torno do seguinte argumento: para que algo seja verdadeiro, este algo deve existir em algum lugar.

Se a verdade existe162, ela existe em algum lugar, mas este lugar não é físico, pois a sua concepção é a de que as coisas sensíveis estão em uma constante transformação, ora são e ora deixam de ser, devido a sua imutabilidade, a verdade não se relaciona com as coisas sensíveis. Neste sentido, a concepção levantada é a de que a verdade “subsiste ainda que as coisas pereçam. Logo, ela não está nas coisas que perecem. Contudo, a verdade existe e encontra-se em algum lugar. Logo há coisas imortais”163. A verdade, portanto, é imortal, e a encontramos nela mesma164, ou seja, em Deus. E para que a encontremos é necessário percorrermos um caminho interior que nos levará até a Eterna Verdade165.

Este caminho interior é proposto por Agostinho após ler os livros dos platônicos, principalmente Plotino. Descreve em suas Confissões a experiência com o próprio

161 AGOSTINHO (Solilóquios) 1993, p. 61. 162 Dado que a verdade existe, é graças a ela que as demais coisas são verdadeiras. AGOSTINHO (Solilóquios), 1993, p. 69. 163 AGOSTINHO (Solilóquios), 1993, p. 63. 164 Vejamos a nota 59 do livro Solilóquios de Agostinho que sustenta a

imortalidade da verdade: “As coisas verdadeiras são perecíveis na natureza, mas a verdade, não morre. [...]. Onde, pois, se encontra a verdade? Em si mesma, ela não está nem em corpo, nem em algum lugar que corpo supõe. Portanto, não está nas coisas perecíveis, e sim nas imortais”. 165 De fato Agostinho, crê que Deus é a Verdade. Ele sustenta esta tese em suas Confissões: “Onde encontrei a verdade, aí encontrei o meu Deus que é a própria verdade, da qual nunca mais me esqueci, desde o dia em que a conheci”. AGOSTINHO (Confissões), 2015, p. 297.

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intimo ao procurar a verdade: “Entrei e, com os olhos da alma, acima destes meus olhos e acima de minha inteligência, vi uma luz imutável”166. Os platônicos declaravam que o homem devia desvincular-se das coisas corruptíveis e retornar a si. Etienne Gilson, ao comentar a respeito da doutrina dos platônicos, postula que o filósofo recebeu influência deles para formar seu conceito de iluminação, que nos conduz a Verdade167. Para os platônicos havia uma luz de caráter puramente espiritual, desvinculada, portanto, de toda corporeidade168.

De fato, para Plotino, o Uno, que é Deus, só é encontrado depois que o homem se desvincula deste mundo, das coisas temporais e volta-se a si e promove uma autorreflexão, tendo em vista unir-se ao Uno. Neste sentido, no santo estudado ocorre o mesmo. É necessário o desapego do que é corpóreo e, por meio do caminho interior, ir ao encontro do Deus-Verdade. Por isso é que Santo Agostinho propõe em seu livro A verdadeira religião, que a verdade é encontrada nela mesma, através do caminho interior:

Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem. E se não encontras senão a tua natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo. Em te ultrapassando, porém, não te esqueças que transcendes tua alma que raciocina. Portanto, dirige-te à fonte da própria luz da razão. Aonde pode chegar, com efeito, todo bom pensador senão até à Verdade? Se a Verdade não é atingida pelo próprio raciocínio, ela é justamente, a finalidade da busca dos que raciocinam169.

166 AGOSTINHO (Confissões), 2015, p. 190. 167 A verdade “pode ser considerada como um tipo de luz, que nem é nossa nem vossa, nem de algum homem em particular, mas ao mesmo tempo secreta e pública, possuída por qualquer um e, portanto, a mesma em todos que percebem, no mesmo momento, as mesmas verdades imutáveis” GILSON, 2010, p. 42. 168 BOEHNER; GILSON, 1972, p. 146. 169 AGOSTINHO (A verdadeira religião), 1987, p. 106-107.

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E ainda complementa em suas Confissões: Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem.170 [Grifo nosso]

A verdade sempre foi o propósito último da filosofia

dele. É a partir da busca por ela que o homem se encaminha para Deus. Tendo se encaminhado ao ser divino, o homem se encontra em sua plenitude, onde gozará eternamente de vida e felicidade. Na busca pelo Deus-Verdade, podemos dizer que: “Deus e alma não constituem duas investigações separadas. Com efeito, Deus está na alma e revela-se na sua interioridade”171. Pode-se dizer que por meio da visão da verdade, do contato que temos com esta verdade, conceberemos as demais verdades172. Portanto, as verdades são consequência daquela Verdade que atua no homem como luz, que é contemplada pelo homem de alma purificada.

A partir destas breves laudas que trataram da verdade em Agostinho, explicitaremos no tópico a seguir acerca do conhecimento de Deus. Tal conhecimento passa inicialmente pelo conhecimento do próprio ser para aí sim direcionar-se a Deus.

170 AGOSTINHO (Confissões), 2015, p. 299. 171 DE BONI, 2000, p. 43. 172 GILSON, 2010, p. 169.

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3.2 DO CONHECIMENTO DE SI AO CONHECIMENTO DE DEUS

Santo Agostinho decide-se, após sua conversão, a

se dedicar somente a Deus por meio do estudo e oração. De fato, percebemos que na medida em que sua vida muda ele passa pela experiência da interioridade que o levará a Deus. Isto é constatado pelo fato de que ele deseja o Criador sempre mais e, este desejo o lança para o seu íntimo onde se encontra consigo mesmo. Este encontro é possibilitado por meio do esforço pessoal do filósofo africano, que visava buscar a Deus. No processo de busca do ser transcendente, ao encontrar a si, ele se depara com uma realidade além da sensível. Nesta realidade, Deus lhe ilumina e lhe permite enxergar todas as características de seu próprio ser. Ao se enxergar, enxerga também a Deus. Isto significa que, quando ele entende a si mesmo, também conhecerá a Deus, pois foi Ele quem lhe possibilitou a graça de conhecer-se. Neste sentido, pode-se dizer que a busca de si leva a um duplo conhecimento: o Eu e a Deus. Portanto, podemos dizer que o conhecimento de si traz a implicação de conhecer a Deus, ou ainda, podemos dizer como sustenta Fernandes, o conhecimento de si se confunde com o conhecimento de Deus, pois é conhecer o que se ama e para Agostinho o seu objeto de amor é Deus173.

É importante notar que Agostinho considera que o homem tem algumas características: a mente, o conhecimento e o amor, que são semelhantes à Trindade174, ou seja, assim como a Trindade é uma união consubstancial de três pessoas, o homem também tem em si três características, que o assemelham à Trindade. Então, é pelo fato de o hiponense reconhecer em si características semelhantes ao ser divino, que é possível conhecê-lo.

173 FERNANDES, 2007, p. 72. 174 AGOSTINHO (A Trindade IX), 1995, p. 287.

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Para o filósofo, conhecer a si implica o amor, pois

este torna o conhecimento perfeito e pleno. Em sua plenitude, este conhecimento de si se equipara a Deus, pois este é perfeito e pleno. Para que se possa conhecer a Deus é necessário amar, amar primeiramente a si, pois quem ama se conhece, e quem se conhece é levado a Deus. Vejamos então o percurso que ele faz para admitir o autoconhecimento e posteriormente o conhecimento de Deus.

Para iniciar o percurso do conhecimento, Agostinho promove uma análise de si e evidenciará a existência de dois homens: um exterior e outro interior. O bispo de Hipona relata esta análise de si em suas Confissões: “Dirigi-me então a mim mesmo e me perguntei: ‘E tu, quem és’? E respondi: ‘Um homem’. Tenho à minha disposição um corpo e uma alma, o primeiro é exterior e a outra é interior”175. O primeiro homem é imperfeito, pois está sujeito a corruptibilidade, conhece apenas as realidades exteriores; o segundo homem é perfeito, pois não está sujeito a corruptibilidade, conhece as realidades inteligíveis provenientes do ser divino que atua sobre ele. Ao analisar-se e constatar a existência de dois homens, ele dá maior enfoque ao homem interior, pois este é mais excelente que o homem exterior, que está sujeito a coisas corruptíveis. Mas, como Agostinho conhece a si? Ele parte da dúvida e da existência. Estas, além de conduzi-lo ao conhecimento da própria existência, são a chave para que se possa refutar o argumento dos Acadêmicos, de que é impossível obtermos conhecimento, pois tudo é incerto176.

Se para os Acadêmicos não é possível obter uma verdade, nosso autor confronta-os com a possibilidade e a

175 AGOSTINHO (Confissões), 2015, p. 276. 176 Na obra Contra os Acadêmicos, Agostinho apresenta-nos o pensamento dos acadêmicos onde estes compreendiam que não se pode chegar a verdade, e consequentemente ao conhecimento, pois a verdade por mais que existisse era obscura e incerta. Em suma, eles sustentam a impossibilidade do conhecimento.

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capacidade de assentirmos que existe dúvida, e não está em condições de ser rejeitada, ou seja, se existe dúvida há um conhecimento, um conhecimento existente é o da minha própria dúvida. Quem duvida, está diante de sua consciência, diante do seu próprio pensamento. Descobre-se o pensamento a partir da dúvida, este mesmo pensamento me conduz para a constatação de minha própria existência. Para sustentar esta afirmação o autor argumenta acerca da existência da dúvida:

Quem, porém, pode duvidar que a alma vive, recorda, entende, quer, pensa, sabe e julga? Pois, mesmo se duvida, vive; se duvida lembra-se do motivo de sua dúvida; se duvida, entende que duvida; se duvida, quer estar certo; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, julga que não deve consentir temerariamente. Ainda que duvide de outras coisas não deve duvidar de sua dúvida. Visto que se não existisse, seria impossível duvidar de alguma coisa177.

A partir da constatação da dúvida pode-se chegar

então a um conhecimento possível, que no caso é o conhecimento da própria dúvida. Tendo o reconhecimento da própria dúvida, tem-se o conhecimento da existência. O conhecimento da existência, além de ser sustentado a partir da dúvida, também o é a partir de uma análise feita pelo bispo de Hipona, de nossa capacidade de nos enganarmos – coisa que os Acadêmicos sustentavam. Diz Agostinho:

Pois, se me engano, existo. Quem não existe não pode enganar-se; e por isso, se me engano, existo. Logo, se existo, se me engano, como me enga no, crendo que existo, quando é certo que existo, se me engano? Embora me engane, sou eu que me engano e, portanto,

177 AGOSTINHO (A Trindade X), 1995, p. 328.

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no que conheço que existo, não me engano. Como conheço que existo, assim conheço que conheço178.

A partir da dúvida e do engano que nos possibilitam

o próprio conhecimento, ou seja, de nossa própria existência, como Agostinho passa desse conhecimento - de si - para o conhecimento de Deus? Fernandes sustenta que o conhecimento de si, que evidenciamos, e o conhecimento de Deus, requerem o esforço do próprio intelecto humano179. Com este argumento, podemos dizer então que o conhecimento de Deus é proveniente do desejo do homem de conhecê-lo.

Sabemos que o ser humano é vinculado aos dados exteriores, e que por isso frequentemente ele se depara com o erro e a corrupção. Estas condições afetam o homem quando este se dedica ao conhecimento de Deus, pois as condições citadas limitam o ser humano no que diz respeito à capacidade de conhecê-lo. Então, ele deve se desvincular da corporeidade para acontecer. Feito isso, para que haja o conhecimento de Deus, dado que o homem é limitado, este se dá, tal como cita Fernandes, por meio da Imagem de Deus180. Em relação a isso diz o santo:

Se nos esforçamos em imaginar a Deus, na medida em que ele nos dê a graça e o dom, não pensamos em contatos ou abrangências e espaços locais, como se ele fosse um ser em três corpos. Nele não há estruturas de peças reunidas como em Gerião que, segundo a fábula, era dotado de três corpos. Pelo contrário, tudo o que ocorrer ao espírito que importe em maior grandeza nos três, do que em cada um; mas inferioridade em um, do que nos dois outros; deve ser rechaçado, sem qualquer tentação de dúvida, assim como se deve repudiar da mente todo elemento corpóreo [...] Pois Deus certamente não é nem a terra, o céu, nem algo parecido

178 AGOSTINHO (A Cidade de Deus), 1990, p. 47. 179 FERNANDES, 2007, p. 58. 180 Ibid., p. 62.

Santo Agostinho e o conhecimento 79

ao que vemos no céu, nem ao que aí não vemos, e que talvez ali esteja181.

Desta forma, podemos dizer que o conhecimento

de Deus se dá a partir do momento em que o homem, reconhecendo-se um ser proveniente do ser divino e que tem nele elementos semelhantes a ele, consegue a partir da constatação de sua própria existência chegar a Deus. Entretanto, dado que o homem está sujeito aos elementos exteriores do mundo, ele só o conhece através da imagem de Deus, pois este não é corpóreo, não tem em si elementos exteriores perceptíveis através do sentido. O criador, na verdade, é um ser desvinculado do mundo sensível e que por isso só é conhecido a partir da interioridade do homem, que encontra em si elementos semelhantes aos que o ser divino contém. 3.3 LINGUAGEM E CONHECIMENTO: BREVE ANÁLISE DO LIVRO O MESTRE

De certo modo, Agostinho sempre esteve envolvido

com o problema da linguagem. Isso fica claro ao percebermos que antes de tornar-se sacerdote, esteve envolvido com a educação, tanto é que ensinou retórica por algum tempo182. No início de sua obra O Mestre, trata do problema da linguagem, mas de um modo mais específico: a fala. Esta ele entende que tem um único intuito: ensinar. Mas, afinal, seria possível que a linguagem, presente na vida de todo ser humano,

181 AGOSTINHO (A Trindade VIII), 1995, p. 262. 182 “De fato, ele dedicou anos de sua juventude às letras, à literatura e à retórica, quando atribuía grande valor à linguagem e ao estudo da linguagem. Mas ele próprio não tardou a fazer a crítica da adesão às letras, arrependendo-se da dedicação imoderada à profissão de orador e de professor de oratória. Ora, isso não impediu que encontrasse nas mesmas disciplinas liberais certa utilidade, à medida que pudessem servir à filosofia” NOVAES FILHO, 2009, p. 35.

80 Conhecimento...

possibilite-nos conhecimento? Isto é o que ele tenta responder em sua obra.

O debate neste diálogo ocorre entre Agostinho e seu filho Adeodato. Juntamente com este, o hiponense conduz o diálogo na busca de descobrir a funcionalidade dos sinais183. Para ele, as palavras184 também são sinais185. Estas palavras servem como meio para, num primeiro momento, ensinar. Mas, poderia os sinais ensinar-nos algo sem sermos auxiliados pelas palavras? De acordo com Agostinho sim, ele cita-nos o exemplo da parede:

Confesso que tens razão. Mas, se eu te perguntasse o que significam estas três silabas “paries” (parede), por acaso não poderias mostrar-me com o dedo? Assim, eu veria diretamente a própria coisa cujo sinal é esta palavra trissílaba, sendo que tu apenas a mostrarias sem proferir palavra alguma186.

Tendo nosso filósofo chegado a esta conclusão, da

possibilidade de ensinar sem o auxílio das palavras, por acaso estaríamos satisfeitos com o que está posto? As palavras nos transmitem o conhecimento? Devemos então nos contentar com o simples conhecimento das palavras ou deveríamos ‘avançar para um conhecimento mais profundo’? Ao decorrer do diálogo o assunto do

183 “Pois em geral dizemos sinais todas as coisas que significam algo, entre as quais se encontram os verbos. Igualmente dizemos sinais as insígnias militares, que se denominam sinais em sentido próprio mesmo não contendo palavras. Contudo, se eu te dissesse: assim como todo cavalo é animal, mas nem todo animal é cavalo, assim também toda palavra é sinal, mas nem todo sinal é palavra, creio que não terias nenhum motivo para duvidar” AGOSTINHO (O Mestre), 2008, p. 365. 184 “Pois quando dizemos palavras, significamos tudo o que com alguma significação se profere pela articulação da voz” AGOSTINHO (O Mestre), 2008, p. 375. 185 “as palavras não são outra coisa senão sinais” AGOSTINHO (O Mestre), 2008, p. 385. 186 AGOSTINHO (O Mestre), 2008, p. 365.

Santo Agostinho e o conhecimento 81

conhecimento das palavras passa para uma discussão mais aguçada. Agora a questão é outra: o que é melhor, conhecer as palavras ou os objetos que são denominados pelas palavras?

Este questionamento fica solucionado, de momento, pela afirmação do autor que crê que: “as coisas significadas devem ser tidas em maior apreço que os sinais”187. Entretanto, Adeodato objeta-o com o exemplo da palavra lama. A lama (enquanto matéria sensível) não é mais preferível que a palavra que designa lama, devido à sua impureza. Por este motivo aqui, a conclusão é que nem todas as coisas significadas são preferíveis às palavras188.

Este exemplo da lama desmonta o raciocínio de Agostinho, que preferia mais as coisas que as palavras, mudam totalmente o modo de pensar de nosso autor. Agora ele considera um erro preferir as coisas mais que as palavras, que designam tais coisas. Dado o exemplo da lama, então: “é falso que todas as coisas devem ser tidas em maior importância que seus sinais”189.

O que há de relevante neste argumento da preferência de uma coisa ou outra é que, embora seja certo conhecer o sinal, neste caso, é melhor do que a coisa em si, o importante é a existência de um conhecimento. Portanto, fica certo que algum conhecimento nos é possível. Deste modo a afirmação de ser impossível conhecer alguma já não se sustenta mais190.

O fato de preferir conhecer a palavra lama à lama (sensível), não exclui a afirmação de que o conhecimento do objeto em si seja mais excelente que simples palavras:

187 Ibid, p. 394. 188 Ibid. 189 Ibid. 190 Os Acadêmicos que Agostinho combateu em sua obra Contra os Acadêmicos, acreditavam que era impossível ao homem conhecer

alguma verdade.

82 Conhecimento...

Portanto, naquela nossa sentença anterior, embora seja falso que todas as coisas devem ser preferidas aos seus sinais, contudo não é falso que tudo o que existe em função de outra coisa seja de menor apreço que aquilo em função do qual existe. Pelo que o conhecimento da lama, em função do qual se estabeleceu este nome, deve ser tido em maior apreço que o próprio nome que, como vimos deve ser preferido à própria lama191.

A vida do filósofo foi marcada pela busca da

Verdade que ele mesmo descobriu em seu interior; Verdade esta que possibilita um conhecimento verdadeiro. Tal conhecimento é de caráter interior. Entretanto, até o exposto acima, ele se detém num tipo de conhecimento que se limita às coisas exteriores: lama, palavra, signos.

[Até aqui ele] esgota a hipótese de a linguagem ser analisada como uma relação exterior entre o signo e seu significado, ou melhor, entre o conhecimento do signo e o conhecimento do significado. O signo pretende nos levar ao significado, ou acreditamos que um signo nos leve ao conhecimento de seu significado. [...] o signo engendra apenas exterioridade192.

Este é considerado como o primeiro momento de

seu discurso, onde as coisas são significadas por palavras, que em algumas situações são preferíveis conhecer as palavras e em outras não, mas que se mantêm no âmbito da exterioridade. Daqui decorre também a importância de se ater às próprias coisas que são significadas pelas palavras, ou seja, ele levanta a necessidade de dar maior importância às coisas em si.

Analisemos o segundo momento de seu diálogo: agora ele apresenta novamente o problema do aprendizado por meio dos sinais. Como sabemos, fazemos uso dos sinais para ensinar. Por este motivo,

191 AGOSTINHO (O Mestre), 2008, p. 395. 192 NOVAES FILHO, 2009, p. 43.

Santo Agostinho e o conhecimento 83

novamente ele retoma a afirmação de ser impossível ensinar sem sinais, advertindo para o fato de que acima de tudo o conhecimento é preferível, seja se conhecemos a lama ou outras coisas mais excelentes: “Fica, portanto, estabelecido que nada se ensina sem sinais e que o próprio conhecimento nos é mais precioso que os sinais pelos quais conhecemos, embora nem tudo o que se significa possa ser melhor que seus sinais”193.

O pesquisado parece-nos muito impreciso em suas colocações194. Como vimos acima, ele afirmou veementemente a impossibilidade de ensinar sem fazer uso dos sinais. Entretanto, a partir de um exemplo dado a Adeodato, ele volta atrás. O exemplo apresentado consiste num homem que ensinava o outro sem fazer uso de nenhum sinal. Este homem, apenas prendendo o pássaro na gaiola, conseguiu instruir o observador, ensinando a este que a gaiola que ele portava, servia para prender pássaros (coisa que o observador não sabia)195.

Com este exemplo, Agostinho muda sua concepção e afirma que há coisas que podem ser ensinadas sem recorrer aos sinais: “conclui-se que algumas coisas podem ser ensinadas sem sinais e que é falso o que há pouco nos parecia evidente, isto é, que nada havia que se pudesse mostrar sem sinais”196.

Esta última afirmação foi como que um salto para chegar à conclusão de que as palavras não possibilitam um conhecimento novo. O autor apresenta o exemplo da palavra coifas. O fato de ele ter ouvido esta palavra e ter descoberto que ela servia para a cabeça, não leva a nenhum conhecimento novo, pois mesmo antes de saber

193 Ibid. 194 É apenas aparência pois como a obra é um diálogo, na medida em que vão aparecendo novos argumentos levantados por seu interlocutor, novos conceitos surgem e outros vão sendo deixados de lado ou reformulados. 195 Ibid, p. 401. 196 Ibid, p. 402.

84 Conhecimento...

que coifas servia para cobrir a cabeça, ele já conhecia o que era cabeça197.

Eu já conhecia estas coisas e tomei conhecimento delas não por terem sido mencionadas por outros, mas porque eu as vi. Pois ao ouvir pela primeira vez estas duas silabas, quando a palavra “caput” (cabeça) foi pronunciada, tampouco sabia eu o que significava, como quando pela primeira vez ouvi ou li a palavra coifas. Mas como se dizia com frequência a palavra cabeça e, notando e observando quando ela era pronunciada, descobri que palavra denotava uma coisa que já me era muito conhecida por a ter visto. Mas antes de descobrir isto, essa palavra era para mim apenas um som; aprendi que ela era um sinal quando descobri de que coisa ela era sinal; e esta coisa certamente fiquei sabendo, como disse, não pelo significado, mas porque a vi. Portanto, uma vez conhecida a coisa, mais se aprende o sinal que a coisa depois de ser dado o sinal198.

A partir desta colocação, Agostinho muda

totalmente o rumo de suas conclusões e “abre as portas” para o itinerário a ser percorrido para perceber que somente Deus é quem nos ensina. Conclui ele: “nada aprendemos pelos sinais que se chamam palavras porque, como já disse, pelo conhecimento da coisa significada é que aprendemos o valor da palavra, isto é, o significado que está por trás do sinal, e não que aprendemos coisa por meio do sinal199. Se pode concluir que as palavras não nos ensinam200, elas perdem sua utilidade? Não. Elas têm

197 Ibid, p. 403. 198 Ibid. 199 AGOSTINHO (O Mestre), 2008, p. 404. 200 “Portanto, qual o valor da palavra [...] ‘cabeça’? Apenas nos fazer dirigir a atenção para as coisas que significam, ou lembrar tais coisas quando não presentes. Mais importante é o conhecimento das coisas, ao qual se subordinam os signos. [...] Não só nada aprendemos com signos, como também os mesmos signos dependem do conhecimento das coisas” NOVAES FILHO, 2009, p. 79.

Santo Agostinho e o conhecimento 85

o papel de nos impulsionar a procurar os objetos que são conhecidos por nós. Elas, porém, não nos indicam os objetos conhecidos, quem tem este papel é aquele que “me apresenta aos olhos, ou a qualquer sentido do corpo, ou também à própria mente, o que desejo conhecer”201.

Quem seria, pois, aquele então que nos possibilita o conhecimento, dado que ficou acertado que não são as palavras? Primeiro, para descobrir quem é aquele que ensina, nosso filósofo argumenta que é preciso levar em consideração a passagem bíblica de Isaías 7,9: é necessário crer para entender. Tendo seguido esta condição é possível saber quem nos possibilita o conhecimento. Ele esclarece:

Sobre as muitas coisas que entendemos [conhecemos] consultamos não aquelas cujas palavras soam no exterior, mas a verdade que interiormente preside à própria mente, movidos talvez pelas palavras para que consultemos. E quem é consultado ensina, o qual é Cristo que, como se diz, habita no homem interior, isto é, a virtude incomutável de Deus e a eterna Sabedoria, que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada alma o quanto esta possa abranger em função da sua própria boa ou má vontade202.

Desde o início até chegarmos aqui, Agostinho

realizou uma imensa análise das palavras, passando pelos signos, pelos significados, pela preferência de conhecer uma coisa ou outra. Mas o mais importante é chegarmos até o final deste segmento do trabalho e poder afirmar com toda precisão: Na concepção agostiniana, o único que nos

201 AGOSTINHO (O Mestre), 2008, p. 405. 202 Ibid, p. 407.

86 Conhecimento...

ensina, que nos possibilita conhecer é o Cristo203, que habita em nosso interior204. 3.4 A TEORIA DA ILUMINAÇÃO

Para Platão, o homem que deseja atingir as ideias

verdadeiras deve desvincular-se das coisas sensíveis. Em Plotino ocorre o mesmo: o homem para chegar até o Uno deve purificar-se de todo dado exterior. Agostinho com sua teoria da iluminação mantém essa condição, ou seja, devemos nos distanciar do mundo sensível para poder chegar ao ser imutável e eterno que nos ilumina com sua própria luz. Este distanciamento consistia na atitude de não procurar o conhecimento nas coisas empíricas, mas, voltar-se ao íntimo e, por meio da reflexão pessoal, chegar a Deus e consequentemente ser iluminado por Este para entendermos as coisas e de fato conhecê-las.

Santo Agostinho embora tenha mantido algumas características da filosofia platônica e plotiniana no que diz respeito à questão do conhecimento, distancia-se deles em alguns aspectos: por ele ser um autor cristão-católico, recusa a ideia platônica da reencarnação e transforma a ideia da tríade plotiniana (Deus, Alma, Mundo) na Trindade cristã (Pai, Filho, Espírito Santo). Neste distanciamento merece destaque a importância que ele dá à Trindade, pois ela é quem nos ilumina para entendermos as coisas.

203 “Para tudo o que aprendemos, temos apenas um mestre: a verdade interior que preside a alma, ou seja, o Cristo, virtude imutável e sabedoria eterna de Deus” GILSON, 2010, p. 154. 204 “Realmente, de tudo o que falaste aprendi que as palavras não fazem senão estimular o homem a aprender e que, seja qual for o pensamento de quem fala, é muito pouco o que transparece através de suas palavras. Mas se se dizem coisas verdadeiras, isto só o pode ensinar aquele que, quando falava exteriormente, exortou-nos que ele habita em nosso interior, a quem, com a ajuda dele mesmo, amarei tanto mais ardentemente quando mais progredir no estudo” AGOSTINHO (O Mestre), 2008, p. 415.

Santo Agostinho e o conhecimento 87

Embora o acima exposto demonstre o

distanciamento do filósofo, em relação a alguns pontos, tanto da teoria platônica quanto da plotiniana, o filósofo hiponense é influenciado fortemente por estas filosofias. A filosofia plotiniana, de modo especial, foi que o instigou ainda mais a buscar a verdade, que culminou no encontro da luz imutável:

entrei e, com os olhos da alma, acima destes meus olhos e acima de minha própria inteligência, vi uma luz imutável. Não era essa luz vulgar e evidente a todos com os olhos da carne, ou uma luz mais forte do mesmo gênero. Era como se brilhasse muito mais clara e tudo abrangesse com sua grandeza. Não era uma luz como esta, mas totalmente diferente das luzes desta terra. Também não estava acima de minha mente como o óleo sobre a água nem como o céu sobre a terra, mas acima de mim porque ela me fez, e eu abaixo porque fui feito por ela. Quem conhece a verdade conhece esta luz, e quem a conhece, conhece a eternidade205.

Neste sentido, podemos perceber que existem

aspectos da filosofia plotiniana que influenciam Agostinho. Partindo deste pressuposto, em A Cidade de Deus o doutor de Hipona nos apresenta um argumento que aproxima o pensamento plotiniano à sua teoria da iluminação divina:

Trata-se de questão em que não há, em absoluto, diferença entre nós e os célebres platônicos [...] Fartas e repetidas vezes afirma Plotino, explanando o pensamento de Platão, que nem mesmo aquela que julgam alma do universo tem outro princípio de felicidade diferente da nossa. Tal princípio é luz que não é aquela a que deve seu ser e que, iluminando-a inteligivelmente, inteligivelmente brilha. Aplica às realidades incorpóreas imagem que pede de empréstimo aos resplendentes corpos da abóboda celeste. Deus é o Sol e a alma a Lua,

205 AGOSTINHO (Confissões), 2015, p. 190.

88 Conhecimento...

porque, segundo eles, a presença do Sol ilumina a Lua. O grande platônico pretende que a alma racional, ou antes, a alma intelectual (porque sob tal nome compreende também as almas dos bem-aventurados imortais, que não vacila em afirmar residentes no céu) não reconhece como natureza superior à sua senão a de Deus, autor do mundo e seu autor, e que os espíritos celestes não recebem a vida feliz e a luz de sua inteligência e verdade senão da mesma fonte de que nos vêm.206

Embora haja esta proximidade com os conteúdos

neoplatônicos, em relação à teoria da iluminação, ele se inspira no Evangelho de São João para formar sua doutrina do conhecimento, pois neste está explicito a luz que é guia do homem e que o ilumina. Neste sentido, a teoria da iluminação é construída tendo como base a seguinte passagem:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto de Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito. Nele havia vida e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. [...] [O Verbo] era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem207.

A teoria da iluminação não é simplesmente um

processo onde o indivíduo recebe de maneira sobrenatural208 o conhecimento das verdades eternas. Na realidade, o ato de iluminação requer o esforço do indivíduo, onde este por meio da reflexão pessoal

206 AGOSTINHO (A Cidade de Deus), 1990, p. 371-372. 207 AVE MARIA, 2012, p. 1384. 208 “O efeito da iluminação divina não é, ao menos normalmente, de uma iluminação sobrenatural; ao contrário, é a definição da natureza mesma do intelecto humano ser o sujeito receptor da iluminação divina” GILSON, 2010, p. 166.

Santo Agostinho e o conhecimento 89

enxergará o que é justo e verdadeiro209, as verdades imutáveis e eternas. Este mesmo indivíduo deve colocar a sua razão em atividade para ser iluminado, pois o ato da iluminação divina requer a atividade do intelecto210. Portanto, esta iluminação é o ato segundo o qual requer uma dupla ação: Deus que atua sobre o homem iluminando-o, e o próprio homem que ‘trabalha’ para que ele possa identificar as verdades eternas. E, para que tal identificação ocorra, é necessário a purificação da alma para que o homem possa contemplar a Deus, que contém tais verdades.

Há no homem duas verdades: as sensíveis e as inteligíveis. As verdades inteligíveis são as responsáveis por nos possibilitar o entendimento de todas as verdades sensíveis. Mas, como ocorre o entendimento possibilitado pelas verdades inteligíveis? Por meio da atividade racional. Entretanto, esta faculdade encontra-se no homem adormecida211. Devido a esta condição é que Deus opera no homem com a sua iluminação. Por meio da clarificação da razão humana Deus possibilita ao homem entender as coisas, e consequentemente conhecê-las.

A luz que ilumina a razão humana é totalmente distinta da luz do sol que ilumina e clarifica os objetos sensíveis para os percebermos. Santo Agostinho considera que a luz do sol tem por característica a corporeidade, enquanto a luz que nos ilumina é puramente espiritual212. Em Solilóquios ele faz uso de uma analogia para sustentar que é Deus quem nos permite entendermos as coisas, ou seja, é ele que, iluminando-as, as torna inteligíveis a nós:

Deus é inteligível: e inteligíveis são também as demonstrações das ciências, mas com diferenças

209 AYOUB, 2011, p. 99. 210 GILSON, 2010, p. 164. 211 Ibid., p. 103. 212 AGOSTINHO (A Trindade VII), 1995, p. 245.

90 Conhecimento...

captais. Com efeito, visível é a terra, e de igual modo a luz. Mas a terra não pode ser vista se não estiver iluminada pela luz. O mesmo se dá com as demonstrações enunciadas pelas ciências. Todo homem, logo que as compreende, admite-lhe a verdade sem hesitação. Mas cremos que a verdade não pode ser entendida a não ser que receba a irradiação de outro sol que lhe é próprio. Assim como com o sol visível, podemos distinguir três condições: que exista, que brilhe e que ilumine. De modo análogo, no Deus secretíssimo a cujo conhecimento aspiras, nele três coisas devem ser distinguidas: que existe, que é inteligível e que tornas as outras coisas inteligíveis213.

Portanto, ao percebermos a identificação que ele

faz da luz do Sol com a luz que ilumina o homem para obter as verdades inteligíveis, os conhecimentos verdadeiros, pode-se dizer então que: “Deus é para o nosso pensamento o que o sol é para nossa vista, como o sol é a fonte da luz, Deus é a fonte da verdade”214. Este Deus-Verdade é aquele que vem ao nosso encontro e nos possibilita obtermos todas as verdades em relação às coisas, tanto sensíveis quanto inteligíveis215.

Dado que o ato da iluminação advém de Deus, como ocorreria especificamente a iluminação divina? Sabemos que o ser humano é limitado e por isso ele precisa de Deus para que ele possa caminhar na verdade, e consequentemente livrar-se do pecado que sempre conduz o homem ao erro. A iluminação então é consequência de uma vida beata e pura. Assim, estando o homem purificado e tendo uma vida em conformidade com os desígnios divinos, o ser supremo vem ao encontro do homem e atua sobre ele, por meio de sua iluminação, agirá no homem a fim de que este o conheça.

213 AGOSTINHO (Solilóquios), 1993, p. 44. 214 GILSON, 2010, p. 160. 215 AGOSTINHO (A Vida Feliz), 1998, p. 156.

Santo Agostinho e o conhecimento 91

Ademais, para Agostinho somos seres mutáveis e

corruptíveis, mas que podem conhecer verdades imutáveis e incorruptíveis. Mas como? Somente Deus é imutável e incorruptível. Portanto, conhecemos estas verdades no repouso em Deus216. De fato, há ideias que nos servem de instrumentos para julgar as coisas sensíveis: se são boas, se não são, se são belas ou não, grandes ou pequenas, etc. Mas, como temos acesso a essas ideias que nos possibilitam julgar as coisas? A explicação provinda da reminiscência é um equívoco. O filósofo não aceita a tese platônica, segundo a qual “uma criança, quando habilmente interrogada, [é] capaz de resolver corretamente certos problemas matemáticos, embora não possua a menor instrução nessa disciplina217”.

Tal recusa é devido ao fato de que é muito improvável que, na época em questão, houvesse um número razoável de peritos em matemática. Podemos dizer que a questão da preexistência da alma humana, não explica o motivo pelo qual temos acesso às verdades imutáveis e incorruptíveis, que servem para julgar as coisas218. Onde residem as noções que nos são necessárias para julgar as coisas? Diz Agostinho:

Quais são as regras que inspiram esse juízo, senão aquelas normas eternas que deveriam nortear a vida de cada um, embora não se viva assim? Onde as encontramos? Certamente, não será em nossa própria natureza [...] Não será tampouco no estado habitual da alma [...] Onde, pois, estarão escritas essas regras? Elas que possibilitam ao injusto reconhecer o que é justo, descobrir que deve possuir aquilo que ele mesmo não possui? Onde hão de estar escritas senão no livro daquela luz que se chama Verdade? Nesse livro é que se baseia toda lei justa que é transcrita e se transfere para o coração do homem que pratica a justiça. Não

216 BOEHNER; GILSON, 1972, p. 163. 217 Ibid. 218 Ibid.

92 Conhecimento...

como se ela emigrasse de um lado para o outro, mas a modo de impressão na alma. Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera, se se apagar do anel. Entretanto, aquele que não pratica a justiça, apesar de saber que deve praticá-la, afasta-se daquela luz, pela qual, no entanto, é iluminado219.

Portanto, as noções necessárias e eternas para

julgar as coisas estão inscritas no Deus-Verdade. A iluminação advém de Deus que contém as verdades imutáveis e eternas, onde Ele imprime na alma essas mesmas verdades imutáveis e eternas, possibilitando à alma humana a capacidade de julgar, identificar, relacionar etc. A alma humana então deve purificar-se para que possa contemplar a Deus. A contemplação do ser divino exige uma busca pessoal, onde o homem inicia um caminho interior que o levará até Deus. Chegando a Deus, Ele o iluminará, e este poderá conhecer e entender tudo aquilo que lhe é apresentado, pois tal como a luz faz ver, Deus faz conhecer220.

219 AGOSTINHO (A Trindade XIV), 1995, p. 469-470. 220 GILSON, 2010, p. 163.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DA PRIMEIRA PARTE A partir da conversão de Agostinho, sua vida se

transformou. Ao elaborar sua teoria do conhecimento ele parte dos filósofos Platão e Plotino, que foram peças importantes do mundo antigo ao tratarem de diversos temas, dentre eles o conhecimento. Platão, com sua teoria do conhecimento, sempre se preocupou em relacionar o ser ao mundo suprafísico, onde habita todas as verdades. O conhecimento verdadeiro em Platão se dá a partir da desvinculação do homem deste mundo e, passando este mesmo homem a se orientar para o mundo das ideias, onde se encontram as essências, a realidade perfeita, o conhecimento verdadeiro. Platão tratou da reminiscência que nada mais é do que uma recordação. Tal recordação era de conhecimentos anteriores, onde o ser humano estava vinculado com o mundo das ideias na outra vida, e quando passou para esta vida esqueceu o que aprendeu no mundo das ideias. Por isso, ao ter contato com as coisas desta vida, tudo aquilo que ele conhece, aprende, sabe, nada mais é que a recordação daquilo que já havia aprendido outrora. E isso ele chama de reminiscência, recordação.

Plotino perpassa por quatro graus de conhecimento: o autoconhecimento, o conhecimento do mundo sensível, o conhecimento do mundo inteligível e o conhecimento místico. Estes graus são como etapas a serem vencidas, afim de que o homem chegue ao grau místico para se unir ao Uno, que Plotino entende como sendo desejado por todos os homens. Para que esta união com o Uno ocorra, é necessário que o homem se desvincule de todos os dados sensíveis para que ele possa estar puro e assim se unir plenamente com o Uno.

A partir destas colocações, o que evidenciamos é que a teoria agostiniana do conhecimento se utiliza de aspectos destes filósofos supracitados. Santo Agostinho,

94 Conhecimento...

antes de tudo, com sua teoria do conhecimento visa provar a existência de Deus. Portanto, conhecer significa também conhecer a Deus. Por isso, para que se possa conhecê-lo, é necessário estar puro para chegar até Ele. Estando o homem purificado, a partir de um processo interior, onde Agostinho encontra a Verdade que tanto buscava, ele chega a Deus. Segundo ele, é o autor e princípio de todo conhecimento. A partir da constatação de Deus como sendo a Verdade que possibilita ao homem o conhecimento, evidenciamos com este trabalho alguns tópicos importantes: o conhecimento não se dá pela linguagem, mas sim através de Deus e, isso é semelhante à iluminação, pois Deus atua sobre nós, nos capacitando para conhecer; o conhecimento de si, ele compreende que leva a Deus. Através da refutação cética de ser impossível obtermos conhecimento, Agostinho prova que podemos obter um conhecimento e para comprovar tal afirmação ele faz uso do seguinte raciocínio: o ato de duvidar é um pensamento, portanto não posso duvidar que tenho esta atitude de duvidar, e se eu tenho a dúvida, eu confirmo que um conhecimento é o da dúvida e, se confirmo este conhecimento, refuta-se então o argumento cético. A partir deste conhecimento, Agostinho é levado a também comprovar a sua existência, comprovada sua existência ele se volta para a existência perfeita, a interior, onde ele enxergará todas suas características, percebendo aí semelhanças a Deus. A partir da constatação de aspectos semelhantes ao Criador, ele compreende que é possível conhecer a Deus. Se o homem, ser limitado, pode conhecer a Deus, então o único meio é através da sua imagem. Esta imagem implica desvincularmo-nos de toda forma corporal para conhecê-lo, pois ele não tem forma corporal.

Por fim, o filósofo desenvolve sua teoria da iluminação. Esta nada mais é do que a ação de Deus no homem para que este conheça. Se Deus atua no homem, este deve estar purificado para que Ele possa ter contato

Considerações finais da primeira parte 95

com o homem e assim este conhecer. Deus agindo no homem, não significa que este conhecimento é algo puramente sobrenatural onde a ação do indivíduo é excluída. O ato da iluminação pressupõe a vontade do indivíduo de ser iluminado, capacitado por Deus. A partir do exercício do intelecto é que o homem será iluminado por Deus e por consequência obterá o conhecimento.

A gnose agostiniana pode ser resumida da seguinte forma: conhecemos quando nos purificamos de todos os dados sensíveis, nos voltamos a nosso interior, enxergamos a Deus e aí permitimos que Ele atue sobre nós e nos dê a capacidade de conhecer as coisas com as quais temos contato. Este conhecimento advindo do ser divino é o conhecimento perfeito e puro, o conhecimento verdadeiro que deve ser objeto de desejo de todo o ser que vive e respira sobre a face da terra.

96 Conhecimento...

REFERÊNCIAS DA PRIMEIRA PARTE ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: Contra os Pagãos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. I. (Coleção Pensamento Humano).

______. A Cidade de Deus: Contra os Pagãos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1990. v. II. (Coleção Pensamento Humano).

______. A Trindade. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. (Coleção Patrística, 07).

______. A verdadeira religião. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Edições Paulinas,1987.

______. Confissões. 13. ed. Braga: Apostolado da Imprensa, 1999.

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SEGUNDA PARTE:

FRANCIS BACON E O CONHECIMENTO CIENTÍFICO

Augusto José Luciani Rodrigo Hayasi Pinto

102 Conhecimento...

Atente-se para isto: o nosso caminho não é plano, há nele subidas e descidas. É primeiro ascendente, em direção aos axiomas, é descendente quando se volta para as obras.

(BACON, 1999, p. 80)

INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE O presente trabalho de pesquisa traz, como objeto

de discussão, um tema muito relevante intrinsecamente relacionado ao campo da investigação científica, bem como ao avanço que a ciência galgou ao longo dos séculos. Estamos nos referindo à questão da técnica, algo que, no pensamento do filósofo inglês Francis Bacon, foi considerado como imprescindível para se atingir, de modo concreto, resultados, no âmbito científico, que estivessem a serviço da humanidade, tendo em vista melhorias na sua vida prática.

Inserido historicamente num período de transição entre o Período Medieval e o Período Moderno, Bacon é considerado como precursor, no que diz respeito aos apontamentos realizados por ele referentes à necessidade de se tratar a pesquisa científica com rigor metodológico e experimental. Embora o filósofo não tenha realizado tais empreendimentos concernentes à empiria, ele teorizou um método intitulado como indutivo experimental, no qual se encontrariam apontamentos e diretrizes a serem trilhadas para se atingir o objetivo ao qual se propunha o filósofo, que seria o entendimento eficaz acerca da natureza enquanto campo investigativo.

Ao versar sobre o trabalho de investigação científica pautado na empiria, Francis Bacon ocasiona certa alteração no pensamento referente ao estudo da natureza, haja vista que, em épocas anteriores, tanto no Período Antigo quanto no Medieval, a natureza fora analisada apenas numa perspectiva contemplativa, na qual não havia o ideal de realizar operações sobre ela. Em outras palavras, não intencionavam transgredi-la, fazendo uso da empiria como método de pesquisa.

Partindo, portanto, do pressuposto de que a natureza não havia ainda sido estudada de modo metódico e empírico, expomos, no primeiro capítulo, as críticas

104 Conhecimento...

desferidas por Bacon ao filósofo grego Aristóteles. Esse aspecto crítico aparece, inclusive, no título de sua obra dedicada à estruturação do novo método científico, o Novum Organum, que seria uma espécie de contraposição à obra aristotélica, denominada Organon. No Organon, Aristóteles expõe o método silogístico que, para Bacon, não é algo de muita aplicabilidade quando se tem por propósito avançar efetivamente no conhecimento científico. A atribuição exacerbada às capacidades da mente, utilizando-a como um instrumento para se chegar ao conhecimento, foi outro ponto muito atacado por Bacon, principalmente, pelo fato de imputar relevância à universalização do conhecimento como consequência do método silogístico. Ainda neste primeiro capítulo, trabalhamos as influências do pensamento medieval que, não raro, sustentou pressupostos aristotélicos no pensamento escolástico, como, por exemplo, no pensamento de Tomás de Aquino. Entretanto, o autor Roger Bacon, que viveu durante o Período Medieval, já acenava para a importância da ciência experimental e da evolução técnica, visto que há nuances entre o seu pensamento e o de Francis Bacon.

No segundo capítulo, apresentamos a influência da alquimia presente no pensamento baconiano. Tais influências se referem a certos termos usados pelo filósofo inglês, bem como, alguns princípios, como, por exemplo, a ideia de que o homem é ministro e intérprete da natureza. No entanto, afirmar as influências mágico-alquímicas no pensamento de Bacon, não significa corroborar a ideia de escassez de originalidade em seu pensamento, haja vista que não havia a cogitação de um método indutivo experimental por parte dos alquimistas. Ainda neste capítulo, expomos a reinterpretação dos mitos antigos realizada por Bacon, na tentativa de incutir, na sociedade de sua época, de modo muito sutil, a importância de se investir em universidades que prezassem pelo fomento das ciências experimentais. A temática acerca dos ídolos

Introdução à segunda parte 105

presentes na mente do homem é outro ponto a ser trabalhado, visto a importância de se preparar o intelecto para dar início à pesquisa científica. Tal preparação teria como objetivo realizar uma espécie de purificação intelectual de tudo aquilo que viesse a ser prejudicial no momento de se aplicar a investigação pautada na empiria.

Por fim, no terceiro e último capítulo, aduzimos os pressupostos e diretrizes do método indutivo experimental baconiano, o que seria, de fato, o método e qual o seu principal objetivo. De antemão, é possível apontar para a conjugação que Bacon intenta realizar entre as faculdades intelectuais e o trabalho experimental, o racionalismo e o empirismo, visando um mesmo objetivo a atingir, investigar de modo acurado a natureza, dessa forma, o intelecto deveria ser bem orientado pela empiria. Ainda neste capítulo, o método indutivo experimental será detalhado, no que se refere às etapas que ele deve seguir para lograr o fim esperado. A finalidade do método baconiano é descobrir as formas presentes nas naturezas, as leis que ali estão ocultas e necessitam serem desveladas.

É nosso objetivo, também, demonstrar que o conceito de forma em Bacon é algo que se distancia do conceito de forma em Aristóteles, visto que o autor inglês atribuiu novo significado a ele, como sendo o funcionamento, a lei, ou, ainda, o esquematismo latente que cada natureza em específico possui. Desse modo, para Bacon, o descobrimento das formas da natureza seria um elemento basilar para se aplicar o conhecimento adquirido de modo técnico, tendo em vista que ele está aludindo para a inovação do conhecimento. Essa inovação se expressa de modo esclarecedor, quando ele usa a analogia da abelha como o inseto que não somente extrai da natureza o material de que necessita, mas que, posteriormente, o transforma, engendrando algo novo de modo criativo.

106 Conhecimento...

- I -

O POSICIONAMENTO DE FRANCIS BACON ACERCA DA LÓGICA ARISTOTÉLICA E DO

PENSAMENTO ESCOLÁSTICO No início deste trabalho, torna-se necessário

realizar um breve incurso sobre a vida do filósofo, a fim de que, antes de adentrarmos em sua teoria e pensamento, conheçamos alguns fatos de sua vida. De acordo com Andrade (1999), Francis Bacon nasceu em Londres, no dia 22 de janeiro de 1561. Foi, assim, chamado de o primeiro dos modernos e o último dos antigos, bem como o fundador da ciência moderna e do empirismo. Desde cedo, sofreu influências de forças opostas no que diz respeito à sua criação. Seu pai, Sir Nicholas Bacon, era detentor do cargo de guarda do Grande Selo. Sua mãe, Anna Cook, prezava por uma esfera totalmente contrária à de seu esposo. Foi uma mulher adepta da religião calvinista, tradutora de obras religiosas e grande conservadora de princípios morais. Desse modo, obrigava o filho a participar do culto religioso familiar e, também, a ler a bíblia diariamente.

Segundo Andrade (1999), no ano de 1573, com a idade de 12 anos, Francis Bacon ingressou na escola denominada Trinity College da Universidade de Cambridge, onde adquiriu vários conhecimentos acerca da filosofia antiga e escolástica, e, segundo seu secretário, William Rawley, desde cedo, já apresentava aversão ao pensamento aristotélico. Após a conclusão de seus estudos, Bacon foi enviado à França, por seu pai, para trabalhar. Contudo, devido às más negociações feitas pelo pai, o filósofo encontrou-se desamparado financeiramente na França e, logo, retornou para a Inglaterra.

Ao retornar, formou-se em advocacia, no ano de 1582, e, dois anos após, foi eleito deputado do parlamento

108 Conhecimento...

inglês. A partir disso, recebeu o título de Conselheiro da Coroa. Posteriormente, ao desferir críticas à rainha, devido à exigência na cobrança de impostos, é coibido por ela e não atinge o cargo de procurador da coroa. Porém, era protegido pelo conde de Essex que teve grande contribuição na sua ascensão política. Mas, tal vínculo não impediu Bacon de colaborar, quando o conde foi acusado por traição e, de fato, em 1601, sua morte tornou-se concreta (ANDRADE, 1999).

No ano de 1603, a Rainha Elizabeth falece e o Rei Jaime I assume o trono. Bacon atingiu o mais alto posto político no seu reinado, a chancelaria. Devido a isso, atraiu para si olhares inimigos, visto que, naquele período, o parlamento se encontrava muito insatisfeito com a administração do rei. Todavia, direcionar críticas diretas ao soberano não seria viável e, dessa maneira, os alvos seriam os conselheiros do rei, sobretudo, o chanceler. Assim, acusaram-no de ter recebido suborno para que influenciasse o rei a conceder autorizações para o comércio, era tarefa dos assistentes da corte, em especial do chanceler, dar ao rei sua opinião acerca das concessões comerciais. Por certo, Bacon reconheceu-se culpado, admitindo que ganhara presentes, mas que eles não o haviam influenciado no momento de opinar ao rei sobre tais concessões (ANDRADE, 1999).

Apesar disso, segundo Andrade (1999), ele perdeu seus cargos na administração do reino e foi preso na Torre de Londres, permanecendo apenas alguns dias em regime fechado, devido à intervenção do Rei. Francis Bacon perdeu sua fortuna e viu-se imerso em dívidas. A partir desse fato, ele se dedicou às pesquisas científicas e morreu no dia nove de abril do ano de 1626, vítima de uma bronquite contraída nos rigorosos invernos aos quais se expunha empreendendo experiências relacionadas à conservação da carne pela neve.

Como dito anteriormente, o pensamento de Bacon apresentava, desde cedo, certa rejeição ao pensamento

O pensamento de Francis Bacon... 109

filosófico tradicional. Encontramos, na teoria baconiana, a partir de sua proposta de indução experimental, certo afastamento da lógica Aristotélica e do pensamento escolástico. Em específico, em relação ao método dedutivo aristotélico e seu uso exacerbado de silogismos que fora também influente em algumas filosofias no Período Medieval, como, por exemplo, na filosofia tomista.

Francis Bacon criticou o pensamento antigo e medieval por uma grande falta de correspondência entre tais teorias e sua proposta, isto é, o seu ideal de ciência que visava avançar na evolução do conhecimento por meio da técnica1. Propõe o autor o método indutivo que traz nova roupagem e perspectiva. Segundo ele, seria eficaz em seu novo escopo de pesquisa acerca do conhecimento científico.

Não se pode atribuir apenas a Bacon o grande avanço alcançado pela ciência ocorrido posteriormente. Segundo Japiassú (1995), ele elaborou, de fato, diretrizes ou regras para a orientação de um raciocínio indutivo, porém, não dispôs de tempo ou oportunidade para realizá-lo. Outro motivo que assevera o não endeusamento do filósofo como o principal responsável pelo progresso científico é que ele não compreendeu a função da matemática como vetor para o avanço no conhecimento científico. Afirma o autor:

1 O termo “técnica” designa o significado que obviamente coaduna com o qual aludia Francis Bacon. “Diz respeito ao comportamento do homem em relação à natureza e visa à produção de bens. Portanto, para que qualquer grupo humano sobreviva, é indispensável certo grau de desenvolvimento da T.; e a sobrevivência e o bem-estar de grupos humanos cada vez maiores são condicionados pelo desenvolvimento dos meios técnicos. O primeiro filósofo a reconhecer essa verdade foi Francis Bacon, no começo do séc. XVII. Para ele, a atuação da ciência tinha em vista o bem-estar do homem e visava a produzir, em última análise, descobertas que facilitassem a vida do homem na terra. Quando, em Nova Atlântida, quis dar a imagem de uma cidade ideal, não sonhou formas perfeitas de vida social ou política, mas imaginou um paraíso da T., onde fossem levadas a efeito as invenções e as descobertas de todo o mundo” (ABBAGNANO, 1998, p. 940).

110 Conhecimento...

Não resta dúvida que o universo de Bacon ainda é bastante pré-científico. Mas ele contribuiu para lançar o homem na conquista da natureza. Homem de transição, uma espécie de novo Moisés, mostrou à humanidade a terra prometida. Mas não conseguiu entrar nela. Foi o profeta da revolução científica, não seu realizador, seu herói e seu mártir (JAPIASSU, 1995, p. 22).

Com a máxima “Saber é poder”, abstrai-se o foco

do objetivo de Francis Bacon em cogitar a dominação do homem sobre a natureza, para que, assim, tal conhecimento pudesse estar a serviço da humanidade. Isso só seria possível uma vez que o homem, sendo capaz de interpretar a natureza2, pudesse compreendê-la de modo aprofundado. Não somente entendê-la, mas realizar empresas aplicando tais conhecimentos de forma técnica e criar novos inventos que beneficiassem o homem.

As filosofias até então criadas, em termos de construção epistemológica, não foram capazes de atender as exigências do propósito baconiano. O filósofo vislumbrou a necessidade de mudança de método para tornar o conhecimento aplicado em algo útil e que estivesse a serviço da humanidade.

Os que se dedicaram às ciências foram os empíricos, ou dogmáticos. Os empíricos, à maneira das formigas,

2 É relevante realçar que a expressão “natureza”, em Bacon, está relacionada ao objeto no campo de observação da pesquisa científica. “Nesse sentido a N. não se identifica com um princípio ou com uma aparência metafísica, nem com determinado sistema de conexões necessárias, mas pode ser determinada, em cada fase do desenvolvimento cultural da humanidade, como a esfera dos possíveis objetos de referência das técnicas de observação que a humanidade possui. Trata-se, como é óbvio, de uma concepção não dogmática, mas funcional, pois ainda não foram feitas indagações metodológicas suficientes para esclarecê-la; contudo, afigura-se como uma exigência da atual fase da metodologia científica” (ABBAGNANO, 1998, p. 701).

O pensamento de Francis Bacon... 111

acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e dirige. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intacto na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto (BACON, 1999, p. 76).

Entende-se, portanto, que Francis Bacon acena

para um novo prospecto de pesquisa, no qual a compreensão sobre a natureza, como objeto de estudo, alcançada a partir de observações e experimentos, torna-se a principal ferramenta para que o homem possa compreendê-la e realizar, por meio da técnica, a aplicação de tal conhecimento. Consequentemente, desenvolver novos inventos, operações e recursos que visem ao bem-estar da humanidade. 1.1 A CRÍTICA DE BACON A ARISTÓTELES

Ao propor um novo meio de pesquisa científica, o

filósofo Francis Bacon volta o seu olhar para o passado e nota que o ideal de ciência até então estabelecido pouco contribuiu para um avanço concreto do conhecimento em termos de novos inventos ou recursos que pudessem dar suporte e ajuda para os homens e, assim, trazer o progresso para a humanidade. Ele parece não ter a presunção de afirmar categoricamente que nenhum avanço foi galgado. Todavia, a partir do seu ideal de ciência, faz alusão ao quanto a humanidade já poderia ter sido beneficiada, se, por ventura, tivesse encontrado um rigor metodológico para suas pesquisas científicas. Partindo dessa perspectiva, ele assevera:

112 Conhecimento...

Mesmo os resultados até agora alcançados devem-se muito mais ao acaso e a tentativas que à ciência. Com efeito, as ciências que ora possuímos nada mais são que combinações de descobertas anteriores. Não constituem novos métodos de descoberta nem esquemas para novas operações (BACON, 1999, p. 34).

A filosofia aristotélica não se livrou dos ataques de

Bacon, uma vez que ele observa certa escassez de método e uma atribuição exacerbada às capacidades da mente em detrimento da experiência não utilizada adequadamente. O autor explicita uma crítica ao filósofo grego:

Pois Aristóteles estabelecia antes as conclusões, não consultava devidamente a experiência para estabelecimento de suas resoluções e axiomas. E tendo, ao seu arbítrio, assim decidido, submetia a experiência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões. Eis por que está a merecer mais censuras que os seus seguidores modernos, os filósofos escolásticos, que abandonaram totalmente a experiência (BACON, 1999, p. 50).

Apesar disso, tece elogios a Aristóteles3, por ele ter

se posicionado prudentemente diante da filosofia

3 “Aristóteles nasceu em 384/383 a. C. em Estagira, na fronteira macedônica. O pai de Aristóteles, chamado Nicômaco, era um corajoso médico, tendo servido ao rei Amintas, da Macedônia (pai de Filipe da Macedônia). Assim, deve-se presumir que, durante certo período de tempo, o jovem Aristóteles, com sua família, tenha morado na sede do reinado de Amintas, e que possa ter, inclusive, frequentado a corte. O que sabemos com certeza é que, com dezoito anos, isto é, em 366/365 a. C., Aristóteles, que já há alguns anos havia ficado órfão, viajou para Atenas e logo ingressou na academia platônica. Foi precisamente na escola de Platão que Aristóteles amadureceu e consolidou sua própria vocação filosófica de modo definitivo, tanto que permaneceu na Academia por vinte bons anos. [...] Aristóteles assimilou os princípios platônicos em sua substância, defendendo-os em alguns escritos e, ao mesmo tempo, submetendo-os a prementes críticas, tentando

O pensamento de Francis Bacon... 113

platônica, no que tange aos elementos fantásticos e míticos4 presentes em tal pensamento, os quais não ousou mesclar em sua teoria de pesquisa científica. No entanto, ainda que o filósofo estagirita tenha tido cautela quanto à filosofia de Platão e seus elementos fantásticos, o seu principal erro, segundo Bacon, foi exaltar os poderes da mente, em específico, o método silogístico que traz consigo o caráter da dedução. Este método será analisado no próximo tópico.

1.1.1 A crítica à lógica aristotélica

Para compreendermos, de fato, os motivos pelos

quais Bacon considera improdutivo o uso da lógica de Aristóteles tratando-se do desenvolvimento e progresso da ciência, é necessário adentrarmos, ainda que de modo superficial, no conhecimento acerca do que são os

encaminhá-los para novas direções. Com a morte de Platão (347 a. C.), Aristóteles não se sentiu em condições de permanecer na Academia, porque a direção da escola havia sido tomada por Espêusipo (que liderava a corrente mais distante das convicções que Aristóteles havia amadurecido). Sendo assim, foi embora de Atenas, viajando para a Ásia Menor. [...] Em 343/342 a. C., inicia-se um novo período na vida de Aristóteles: Felipe da Macedônia chama-o para a corte, confiando-lhe a educação do filho Alexandre. [...] Em 323 a. C., com a morte de Alexandre, houve uma forte reação antimacedônica em Atenas na qual Aristóteles foi envolvido, réu de ter sido mestre do grande soberano. [...] Para fugir aos seus inimigos, retirou-se para Cálcis, onde possuía bens imóveis maternos. [...] Morreu em 322 a. C. após poucos meses de exílio” (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 173-174). 4 Os elementos fantásticos e míticos aos quais nos referimos aludem para a concepção platônica do mundo das ideias, em que um deus, intitulado por Platão como Demiurgo, em certo momento, por sua vontade, criou a chora que seria uma representação física do mundo das ideias. Portanto, as ideias eternas existentes por si e em si são usadas como modelo pelo deus artífice Demiurgo para plasmar, no mundo sensível, cópias físicas de tais ideias que, em tal condição, são corruptíveis e imperfeitas. Assim, “o mundo sensível aparece como cópia do mundo inteligível. O mundo inteligível é eterno, enquanto o sensível existe no tempo, que é imagem móvel do eterno” (REALE; ANTISERI, 2003, p. 137).

114 Conhecimento...

raciocínios lógicos e os verdadeiros objetivos que possuem. Desse modo, será possível identificar, à luz da ótica baconiana, aquilo que por ele é concebido como certo atraso quando se aponta para o avanço do progresso no âmbito científico.

De acordo com Reale e Antiseri (1990a), a lógica tem a capacidade de expor o modo como o pensamento procede em pleno ato pensante, quando ele está em funcionamento, de modo que é possível fragmentar um raciocínio e extrair dele os elementos que o estruturam e o fazem demonstrar consistência em sua afirmação, ou ainda, em sua negação. O termo lógica não foi usado por Aristóteles, mas uma outra definição que seria o termo analítica, a qual denota o significado de resolução. Ou seja, um meio de explicar algo por meio do raciocínio lógico, de modo que uma determinada conclusão pode ser atestada pelas premissas que a antecedem, pois trazem os elementos que fundamentam a coerência da inferência alcançada.

O filósofo grego denomina categorias, ou predicamentos, os elementos mais simples da lógica, aqueles que, quando não apresentam nenhuma conexão com outro elemento “significam a substância, a quantidade, a qualidade, a relação, o onde, o quando, o estar em uma posição, o ter, o fazer ou o sofrer” (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 212). Para identificarmos as categorias presentes em uma proposição, vejamos o exemplo:

Tomemos a formulação “Sócrates corre” e vamos decompô-la: obteremos “Sócrates”, que entra na categoria de substância, e “corre”, que se enquadra na categoria do “fazer”. Assim, se digo “Sócrates está agora no Liceu” e decomponho a formulação, “no Liceu” será redutível à categoria do “onde”, ao passo que “agora” será redutível à categoria do “quando” e assim por diante (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 212).

O pensamento de Francis Bacon... 115

No entanto, não podemos avaliar as categorias

como sendo, simplesmente, termos que compõem a formulação de uma proposição. Por certo, as categorias carregam consigo a característica do gênero, aquilo que são de fato, e isso, segundo Aristóteles, requer uma redução para que se defina o termo que está sendo usado. Portanto, podemos retomar o exemplo de Sócrates que, sendo homem, é também animal. Porém, apenas afirmar que Sócrates pertence ao gênero animal ainda seria muito abrangente, uma vez que um cavalo também se enquadra entre aqueles que são animais.

Dessa maneira, é necessário encontrar uma distinção mais específica que seja capaz de definir o sujeito Sócrates, como, por exemplo, enquadrá-lo no grupo dos animais racionais. Assim, o fato de Sócrates possuir a racionalidade o define especificamente naquilo que ele é. Atingir a definição de algo, segundo Aristóteles, seria buscar “o discurso que expressa a essência, o discurso que expressa a natureza das coisas” (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 213).

Ao empregar os conceitos, com o intuito de criar conexão entre eles, os quais podem assumir o papel de sujeito ou predicado, teremos a formulação de um juízo que é representado pela proposição. O juízo em si seria a afirmação ou negação acerca de algo, portanto, só podemos considerar juízo aquelas proposições que visam esclarecer aquilo que é falso ou verdadeiro, por isso, o ato de afirmar ou de negar alguma coisa sempre estará presente nos juízos.

Todos os elementos acima expostos compõem a formulação do silogismo. Contanto, o fato de se criar nexos entre alguns termos e elaborar proposições que afirmam ou negam alguma coisa não é suficiente para se corroborar a ideia de que um raciocínio já foi estabelecido, porque o silogismo só pode ser considerado como tal quando apresentar um raciocínio lógico:

116 Conhecimento...

[...] estamos raciocinando quando passamos de juízo para juízo, de proposição para proposição, que tenham determinados nexos entre si e, de alguma forma, sejam umas causa de outras, umas antecedentes e outras consequentes. Se não houver esse nexo e essa consequencialidade, não haverá raciocínio. Pois o silogismo é precisamente o raciocínio perfeito, isto é, aquele raciocínio em que a conclusão a que se chega é efetivamente a consequência que brota necessariamente do antecedente (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 214).

As proposições não podem estar desconexas,

quando se trata de um silogismo, porque deve haver uma ligação no que diz respeito ao tema ou o assunto que está posto como objeto de investigação. Além do que, “é também evidente que em todo o silogismo uma ou ambas as premissas têm que ser semelhantes à conclusão – não quero dizer simplesmente serem afirmativas ou negativas, mas serem apodíticas, assertóricas ou problemáticas” (ARISTÓTELES, 2010, p. 164).

Segundo Reale e Antiseri (1990a), a partir do que foi afirmado acerca do que seria um silogismo, temos a seguinte formulação: Se todos os homens são mortais e se Sócrates é homem, então, Sócrates é mortal. É possível abstrair a consequência gerada das afirmações precedentes, isto é, só foi possível constatar que Sócrates é mortal, porque foi afirmado anteriormente que todos os homens são mortais, e, com efeito, sendo Sócrates um homem, logo, também ele é mortal.

No entanto, Francis Bacon não deixa de confutar a teoria silogística, visto que, para o filósofo inglês, os silogismos não passam de meras palavras, noções e abstrações afeitas ao intelecto humano. Não há como atribuir validade ou solidez ao estilo de investigação pelo qual caminha o sistema silogístico, uma vez que este ocorre a despeito do caráter experimental. Ademais, é evidente que Aristóteles enaltece a dedução ao chegar à

O pensamento de Francis Bacon... 117

universalização ou generalização do conhecimento de forma descomprometida com a experiência (BACON, 1999).

Segundo Rossi, o valor da lógica tradicional está na seguinte constatação:

No âmbito dos escopos que a filosofia tradicional se propunha, a velha lógica não se apresenta, portanto, como um fracasso. Sobre este ponto Bacon é bastante claro: na medida em que se queira apenas transmitir as ciências, na medida em que se queira ensinar aos homens a aderirem às verdades já declaradas e a fazer uso delas, a apreender a arte de inventar argumentos e de triunfar sobre os adversários nas disputas, ela se mostra perfeitamente funcional, mesmo se necessitada de integrações, de revisões e de aperfeiçoamentos (ROSSI, 2006, p. 382).

Ele reconhece que a filosofia tradicional prezava

pelo aprimoramento da retórica. Partindo disso, a preocupação em dar bom ordenamento ao pensamento, no modo como se formulam os juízos, na tentativa de construir argumentos consistentes, no que diz respeito à coerência lógica em uma disputa argumentativa, sem dúvida, é algo imprescindível. Contudo, haja vista que Bacon tem em mente um novo propósito de investigação científica, a lógica tradicional torna-se inviável, porque, “enquanto admiramos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana, não lhe buscamos auxílios adequados” (BACON, 1999, p. 34). 1.1.1.1 A perspectiva de indução segundo Aristóteles

Apesar de Aristóteles exaltar a dedução por meio

do sistema silogístico e da universalidade do conhecimento que de tal sistema advém, o filósofo grego também faz alusão à indução. Embora a compreensão baconiana acerca do que é a verdadeira indução se

118 Conhecimento...

distancie perante a do filósofo grego, não é possível negar que Aristóteles, de alguma maneira, também acena para uma perspectiva indutiva que está presente em seu modo de conceber o conhecimento acerca de algo.

Se retomarmos, por exemplo, o silogismo citado anteriormente o qual afirmava a seguinte ideia: Se todos os homens são mortais e se Sócrates é homem, então, Sócrates é mortal. Ou seja, de uma premissa universal se extrai um conhecimento particular, qual seja, o de que Sócrates que, sendo homem, é mortal. Visto que tal conclusão é possível, não se pode descartar o fato de que, em meio a esse silogismo, certo conhecimento já dado como existente está presente, uma vez que, para se afirmar que todos os homens são mortais, pressupõe-se a experiência antecedente do particular, de Sócrates definido como homem, consequentemente, mortal. Vejamos o posicionamento do autor:

Todo ensino e toda a instrução intelectual procedem de conhecimento pré-existente. Isso é evidenciado se examinarmos todos os distintos ramos do saber, porque tanto as ciências matemáticas quanto qualquer outra arte são adquiridas dessa forma. O mesmo ocorre com os argumentos lógicos, quer silogísticos quer indutivos. Ambos constituem o ensino a partir de fatos já conhecidos, os primeiros levantando hipóteses como se fossem concedidas por uma audiência inteligente; os segundos demonstrando o universal a partir da natureza auto-evidente do particular (ARISTÓTELES, 2010, p. 251).

Aristóteles, de certa forma, atribui crédito, quanto à

capacidade de ensinamento, aos dois tipos de argumentos, os silogísticos dedutivos que podemos entender como aqueles alcançados por meio dialético; e os silogísticos indutivos que podem ser conhecidos por meio de uma constatação empírica e, a partir deles, ascender para o universal.

O pensamento de Francis Bacon... 119

Quando se possui conhecimento acerca de alguma

coisa, isto é, quando sabemos que a causa que engendra um efeito é, de fato, o fator originário daquilo que foi gerado, tal conhecimento pode estar presente entre aqueles que apenas creem conhecer a causa geradora do efeito e também entre outro grupo que, de fato, conhece a causa que produziu tal efeito. Para Aristóteles:

[...] quando acreditamos que sabemos [1] que a causa da qual o fato é originado é a causa do fato e [2] e que o fato não pode ser de outra maneira. Está claro que o conhecimento é algo deste tipo, pois tanto os que não conhecem quanto os que conhecem concordam a respeito, mas enquanto os primeiros meramente pensam que se encontram na condição acima indicada, os segundos realmente se encontram nela (ARISTÓTELES, 2010, p. 253).

Ao afirmar que existe uma diferença entre aqueles

que conhecem, de fato, a causa e outros que apenas pensam conhecer, Aristóteles está se referindo a um conhecimento que se aproxima da realidade empírica, que é factual e, portanto, provém de uma via indutiva, de modo que é algo que não se restringe apenas ao conhecimento do significado de um termo, como, por exemplo, um indivíduo que se julga conhecedor do que seria um triângulo. Ora, partindo da ideia universal do triângulo, obviamente, ele afirmaria que este possui três lados. Porém, talvez ele não se dê conta da existência de alguns tipos peculiares de triângulo, como, por exemplo, o isósceles e o equilátero que possuem diferenças geométricas entre si.

Se, por ventura, o indivíduo de nosso exemplo não obteve um contato com tais tipos de triângulos, podemos corroborar a ideia de que ele somente crê que seja conhecedor a respeito de tal assunto, ao passo que outro indivíduo que detém o conhecimento acerca das diferenças geométricas entre os tipos de triângulos, por

120 Conhecimento...

sua vez, é maior conhecedor, porque é capaz de não somente dispor da informação de que um triângulo possui três lados, mas que, em alguns casos, ele apresenta discrepâncias no comprimento de seus lados.

Aristóteles visa estabelecer uma distinção entre o conhecimento enquanto abstrato e o conhecimento enquanto empírico, ou ainda, conhecimento dedutivo e indutivo. Contudo, o estagirita não visa elevar a dedução a um pedestal e repudiar a indução, ou realizar isso no sentido inverso. O filósofo tem por intuito sustentar a ideia de que o silogismo com pressuposto indutivo é capaz de produzir conhecimento científico, ao passo que o silogismo dedutivo permanece no âmbito dialético e, desse modo, ele é mais importante para o bom ordenamento do pensamento, isto é, na consistência dos argumentos.

No silogismo dedutivo (“Todos os homens são animais; todos os animais são mortais; logo, todos os homens são mortais”) o termo médio (animal) constitui a substância ou a razão de ser da conexão necessária entre os dois extremos: os homens são mortais porque são substancialmente animais. No raciocínio indutivo, entretanto (“O homem, o cavalo e o mulo são duradouros; o homem, o cavalo e o mulo são animais sem fel; logo, os animais sem fel são duradouros”), o termo médio (ser sem fel) aparece na conclusão, o que significa que ele não é um porquê substancial, mas um simples fato. Portanto, a I. não tem valor necessário ou demonstrativo, conquanto seja, mais clara que o silogismo; seu âmbito de validade é o mesmo do fato, ou seja, da totalidade dos casos em que sua validade foi efetivamente constatada. Pode, portanto, ser usada para fins de exercício, em dialética, ou com objetivos persuasivos em retórica, mas não constitui ciência porque a ciência é necessariamente demonstrativa (ABBAGNANO, 1998, p. 557).

O silogismo dedutivo trabalha com conceitos mais

gerais que não demonstram características, ou minúcias,

O pensamento de Francis Bacon... 121

mas remete àquilo que é intrínseco à humanidade de forma generalizada, como, por exemplo, a mortalidade. É evidente que a mortalidade não deixa de ser um fato, porém, no silogismo indutivo, algo peculiar é demonstrado. Isto é, é necessário possuir evidências que sejam empíricas e respaldadas pela indução, porque, do contrário, não seria possível afirmar, como foi exposto no fragmento acima, que o homem, o cavalo e o mulo são duradouros pelo fato de não possuírem o fel.

[...] aquilo que é suscetível de demonstração implica em ter dele a demonstração; têm que ser causais, melhor conhecidas e anteriores – causais porque só dispomos de conhecimento de uma coisa quando conhecemos sua causa, anteriores na medida em que são causais e já conhecidas, não meramente no sentido de que seu significado é entendido, mas também no sentido de que são conhecidas factualmente (ARISTÓTELES, 2010, p. 254).

De acordo com Aristóteles (2010), as premissas

que formam o silogismo indutivo devem ser verdadeiras e demonstrativas para que a conclusão possua legitimidade e validação, porque, do contrário, não seria possível considerar o resultado do silogismo como conhecimento de valor científico. O silogismo dedutivo, por sua vez, pode ser realizado sem a necessidade de demonstração indutiva, não há preocupação em relação à veracidade de suas premissas e suas conclusões enquanto factuais. Porém, não seria possível afirmar que os resultados destas culminam em conhecimento dado como científico, mas são demonstrativos enquanto lógicos e consistentes em termos de argumentação.

A partir do entendimento acerca da perspectiva de indução em Aristóteles, conclui-se que o filósofo grego já acenava para a validade do conhecimento no tocante ao aspecto factual, e isso implica conhecer, por meio da indução, casos particulares que tornem as premissas

122 Conhecimento...

verdadeiras e demonstrativas. Apesar disso, ainda que tenha atentado para a questão dos casos particulares, quando inseridos no sistema silogístico, consequentemente, submetidos à generalização por meio da dedução, o rigor metódico de indução, o qual é apontado por Bacon, não é aplicado, pois o caráter dedutivo e silogístico permanece preponderante no pensamento de Aristóteles.

De modo divergente, o filósofo Francis Bacon visa empreender com mais rigor a investigação sobre os casos particulares, de modo que a generalização seja realizada somente quando o maior número de casos for estudado. Tal objetivo não pode ser encontrado na filosofia aristotélica, uma vez que, ao descobrir um aspecto particular, já se salta para o universal de forma temerária, deixando o estudo acurado e prudente sobre os mais diversos fenômenos da natureza que não são investigados adequadamente. Partindo desse viés, o autor sustenta que o caminho correto a trilhar é a via que: “[...] recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado” (BACON, 1999, p. 36).

Desse modo, anuncia-se o objetivo baconiano de efetuar empresas investigativas submetidas a uma ordem rigorosa de pesquisa, em que a experiência seria o veículo que conduziria o intelecto de modo ordenado, sem deixá-lo incorrer em erros, ou inferências antecipadas que possam prejudicar o alcance de um verdadeiro conhecimento. Na ótica baconiana, este deve ser sustentado pelo processo gradual de pesquisa, tendo como base as constatações da empiria e não apenas presunçosos raciocínios dialéticos que pouco acrescem para se alcançar o verdadeiro conhecimento e parcamente contribuem para o progresso científico.

O pensamento de Francis Bacon... 123

1.2 A CRÍTICA DE BACON À ESCOLÁSTICA

Além de severos ataques à filosofia de Aristóteles,

a escolástica5, por sua vez, não pode sair ilesa das críticas feitas pelo filósofo Francis Bacon. Os autores do Período Medieval apresentaram grande influência provinda da filosofia aristotélica. No que tange ao progresso do conhecimento científico idealizado por Bacon e realizando um exame da sua visão reformista, não resta dúvida em afirmar que os escolásticos também não se aplicaram devidamente na busca pelo ideal de avanço da ciência pautado em métodos experimentais de pesquisa eficientes e promissores.

[...] eles eram “ricos de ócio e agudos de engenho”, mas estavam providos de uma cultura muito escassa, uma vez que suas mentes estavam encerradas em textos aristotélicos, assim como seus corpos estavam fechados dentro das celas dos conventos. Ignorantes de filosofia natural e desprovidos de cultura histórica, chegaram a construir, com pouquíssimo material e com muitíssimo trabalho intelectual, aquelas perfeitas teias de aranha, conservadas em suas obras, que são sem dúvida admiráveis pela leveza do fio, mas frágeis e inaptas para o uso (ROSSI, 2006, p. 190).

5 Nos primeiros séculos da Idade Média, era chamado de scholasticus o professor de artes liberais e, depois, o docente de filosofia ou teologia que lecionava primeiramente na escola do convento ou da catedral, depois na Universidade. Como as formas de ensino medieval eram duas (lectio, que consistia no comentário de um texto, e disputatio, que consistia no exame de um problema através da discussão dos argumentos favoráveis e contrários). O problema fundamental da E. é levar o homem a compreender a verdade revelada. A E. é o exercício da atividade racional (ou, na prática, o uso de alguma filosofia determinada, neoplatônica ou aristotélica) com vistas ao acesso à verdade religiosa, à sua demonstração ou ao seu esclarecimento nos limites em que isso é possível, aprestando um arsenal defensivo contra a incredulidade e as heresias (ABBAGNANO, 1998, p. 344).

124 Conhecimento...

De acordo com Rossi (2006), o pensamento

escolástico apresenta características que perduraram durante a Idade Média. Partindo de pressupostos que já eram dados como certos, fruto de meras abstrações e de raciocínios dialéticos, não valorizaram o estudo sobre a matéria. Seus questionamentos e empenho se dirigiam à melhor forma de poder refutar argumentos, criando objeções entre estes, e, desse modo, também encontrar meios para contornar a eficácia da argumentação de outrem. Assim:

[...] se começou a prestar maior atenção às palavras que ao conteúdo, e à escolha da expressão, e à composição redonda e clara da frase, e à doce cadência das cláusulas, e a variação e ilustração das obras com tropos e figuras do que ao peso do assunto, ao valor do tema, à argumentação correta e ao juízo profundo (BACON, 2007, p. 47).

Devido ao contexto no qual estavam inseridos os

escolásticos, um período caracterizado pela forte presença do cristianismo e um governo de certo modo considerado teocrático6, as discussões dos filósofos, por vezes, foram direcionadas a temas, como, por exemplo, a existência de Deus, ou à verdade sobre a divindade. Bacon confuta tal empreendimento devido ao fato de eles terem abandonado o olhar contemplativo sobre a natureza. Não se trata de uma contemplação passiva, mas de um estudo aprofundado acerca do seu funcionamento, de modo que demonstre ação sobre ela, na tentativa de descobri-la, e, a partir disso, aplicar o conhecimento adquirido de forma técnica em novas empresas que resultariam em progresso científico.

6 O termo teocrático derivado da palavra teocracia remete à doutrina da supremacia do poder eclesiástico, do qual o poder civil extrairia direito e investidura. Nesse sentido, tal termo se aplicaria em específico na Idade Média (ABBAGNANO, 1998, p. 949).

O pensamento de Francis Bacon... 125

[...] assim como na inquisição da verdade divina sua soberba os inclinou a abandonar o oráculo das obras de Deus e a dissipar-se na mistura de suas próprias invenções, assim também, na inquisição da natureza abandonaram o oráculo das obras de Deus e adoraram as imagens enganosas e deformadas que o espelho desigual de suas próprias mentes, ou de uns quantos autores ou princípios prestigiosos, lhes apresentavam (BACON, 2007, p. 52).

Bacon alude à exaltação do intelecto por parte dos

escolásticos, da mesma forma que também percebeu a mesma exaltação na filosofia de Aristóteles. Contudo, segundo Rossi (2006), tal acuidade, que demonstraram os filósofos medievos no que diz respeito à retórica e à argumentação eloquente e coerente em meio a uma discussão acerca de um dilema filosófico, não pode ser desprezada totalmente. Com efeito, usá-la com outra finalidade seria de grande valia para a pesquisa sobre a natureza, uma vez que estivesse, esta mesma percepção acurada, presente no momento de se empreender as pesquisas de caráter experimental. Assim, lograríamos grandes descobertas que convergiriam para a instituição dos axiomas. No entanto, como essa perspectiva não foi vislumbrada por grande parte dos filósofos escolásticos, Rossi insiste em afirmar que:

[...] a escolástica coincide com o predomínio do aristotelismo, com a redução do inteiro campo do saber à lógica, com o esgotamento das pesquisas lógicas a uma série de distinções que não conseguem se transformar em instrumentos cognoscitivos e em meios capazes de efetuar operações sobre a realidade natural (ROSSI, 2006, p. 191-192).

Estão implícitos os objetivos do projeto baconiano

de instaurar um novo método que seja capaz de operar sobre a natureza, por meio de experimentos que bem orientem o intelecto humano, para que, assim, seja

126 Conhecimento...

possível refundar um conhecimento que tenha por base os fatos, isto é, que revelem a verdade sobre a realidade material a qual denominamos como natureza. No entanto, entre os pensadores da escolástica, não foi possível notar tal perspectiva, já que permaneceram preocupados com a sutileza da linguagem, a atribuição exacerbada das capacidades da mente e não com os experimentos científicos. A partir disso, é interessante adentrarmos sobre o pensamento de um filósofo do Período Medieval para entender melhor as razões das críticas proferidas por Francis Bacon à escolástica. 1.2.1 A Teoria do Conhecimento na perspectiva de Tomás de Aquino

Não é nosso objetivo esgotar o pensamento de

Santo Tomás de Aquino7, ao expor uma pequena parte do

7 Santo Tomás de Aquino foi considerado grande expoente entre os escolásticos, um verdadeiro gênio metafísico e um dos maiores pensadores de todos os tempos. Elaborou um sistema de saber admirável pela transparência lógica e pela conexão orgânica entre as partes, de caráter mais aristotélico do que platônico-agostiniano. Seu pai foi Landolfo, o conde de Aquino, e sua mãe, Teodora. Tomás nasceu em Roccasecca, no sul de Lácio (território pertencente à Itália) em 1221. Teve sua educação primária na abadia de Montecassino, para onde foi levado na esperança de que contribuísse para o brilho do sobrenome da família. Tomás prosseguiu seus estudos em Nápoles, na universidade recentemente fundada por Frederico II. Foi aí que entrou em contato com a ordem dos dominicanos e decidiu ingressar na ordem, atraído pela nova forma de vida religiosa, aberta para as novas instâncias sociais, envolvida no debate cultural e livre de interesses mundanos. Também foi discípulo de Alberto Magno, em Colônia entre 1248 e 1252, onde logo mostrou o seu talento especulativo. Em certa ocasião, quando o mestre-geral da ordem solicitou um jovem bacharel para encaminhar à carreira acadêmica na Universidade de Paris, Alberto não hesitou em indicar Tomás. Desse modo, ele ensinou em Paris de 1252 a 1254. Após esse período parisiense, Tomás andou peregrinando pelas maiores universidades europeias (Colônia, Bolonha, Roma, Nápoles). Foi surpreendido pela morte aos cinquenta e três anos, no dia sete de março de 1274, no mosteiro cirterciense de

O pensamento de Francis Bacon... 127

vasto arcabouço teórico que este filósofo possui. O que importa é identificarmos os aspectos presentes na filosofia tomista, os quais foram motivos para que Bacon criticasse o pensamento escolástico. É importante realçar que a base que fundamenta o pensamento tomista é o pensamento aristotélico. Aristóteles já havia causado certa ruptura significativa com o pensamento de Platão, de modo que, a partir do filósofo estagirita, a essência nos objetos passa a ser concebida como passível de ser abstraída da realidade sensível. Desse modo:

Seguindo suas inclinações empiristas, ele deslocou o mundo platônico das ideias para a realidade empírica. As ideias não constituem mais um mundo pairando no vazio, não se encontram acima das coisas, mas nelas, são as formas essenciais das coisas. Elas nos apresentam o núcleo essencial e racional das coisas, que as propriedades empíricas envolvem como uma membrana (HESSEN, 1999, p. 60-61).

Segundo Hugon (1998), Tomás de Aquino parte do

princípio da união entre alma e corpo, proveniente de Aristóteles, alegando que o conhecimento, para ser atingido, necessita de tal amparo conjunto, ou seja, da operação realizada pela união da alma e do corpo. Por certo, deve-se admitir que o conhecimento contido no homem venha do contato com os objetos exteriores por meio dos sentidos.

Para Tomás de Aquino, nossos sentidos externos ou corpóreos são passivos ou estão, potencialmente, aptos a receberem as informações, advindas do mundo exterior e registrá-las nos nossos sentidos internos que, por sua vez, vão ser a base ou substrato do qual o intelecto, em potência, irá extrair os dados, em potência e transformá-los em ato (COSTA, 2011, p. 216).

Fossanova, quando viajava para Lião para participar do concílio que lá ocorreria (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 552-554).

128 Conhecimento...

No entanto, o conhecimento presente na alma do

homem não pode ser consequência apenas da ação receptiva dos sentidos externos. Para Tomás de Aquino, a capacidade cognoscível do homem usa também dos sentidos internos que ele possui. Estes, por sua vez, podem ser discriminados como: sentido comum, imaginação, memória e estimativa. O sentido comum seria uma espécie de ponto convergente para o qual se dirigem a abstração das ideias provindas dos cinco sentidos externos e, ao agir como ponto de centralidade, o sentido comum realiza a discriminação dos objetos em relação as suas diferenças (COSTA, 2011).

A faculdade da imaginação, segundo Costa (2011), possui a finalidade de realizar a abstração das imagens ou ideias para que possam ser trabalhadas pelo intelecto posteriormente, visto que os objetos nem sempre estarão presentes. Porém, o ato de conservar tais imagens não é atribuído à imaginação, mas à memória, que é responsável pela conservação das ideias no intelecto, fazendo com que elas não se percam. Por último e não menos importante entre os sentidos internos, há a faculdade denominada estimativa, ou cognitiva, que não pode ser considerada passiva, uma vez que é capaz de abstrair novas informações dos objetos que estão conservados na mente. Algo que não foi extraído num primeiro momento e que, por meio de associações de ideias, gera conteúdos na mente que prescindem do contato com a realidade. É uma operação intelectiva, na qual os objetos, enquanto ideias, são retomados, analisados e redescobertos, em alguns aspectos que ainda não haviam sido constatados. Apesar disso:

[...] as funções estimativas e cognitivas, ainda, não trabalham com o universal, mas, apenas, com o particular. Este – o universal – vai ser papel do “intelecto agente” [...] De qualquer forma, as funções estimativas e cognitivas são imprescindíveis, ao prepararem o fantasma para abstração do universal. [...] Portanto,

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cabe à faculdade cognitiva preparar os fantasmas (particulares), fazendo-os mais perfeitos e ricos de conteúdo em potência, para que sejam transformados em ato (universal), pelo intelecto agente (COSTA, 2011, p. 220).

Não é função da faculdade estimativa ou cognitiva

realizar a abstração do caráter universal dos objetos, ainda que ela seja ativa. Entretanto, ela efetua uma espécie de especificação meticulosa sobre as características das ideias e, a partir dessa ação, o intelecto agente está apto para operar sobre as ideias e extrair delas o caráter universal. Desse modo: “Tocar assim somente a natureza, fazê-la cumprir sozinha no meio dos princípios individuais que a determinam, tal é a obra do intelecto agente” (HUGON, 1998, p. 167).

Por certo, cabe ao intelecto agente tornar em ato aquilo que está em potência. As ideias carregam consigo o aspecto universal, que seria a sua natureza, ou essência dos objetos captados da realidade sensível. Com efeito, atingir o conhecimento universal, encontrar a essência nos objetos, é a operação que o intelecto agente efetua. Sua função é atualizar o que ainda está velado e em potência nos objetos abstratos, de modo que, após a preparação realizada pela faculdade estimativa ou cognitiva, no que se refere à fragmentação das características das ideias, o intelecto agente possa alcançar a universalidade ao conhecer a essência das coisas. Todavia, tal conhecimento em ato encontra sua concreção no intelecto passivo, ou possível, uma vez que ele é passivo pelo fato de apenas receber o conhecimento em ato, aquele de caráter científico que agora se encontra definido (COSTA, 2011).

Algumas constatações corroboram as críticas de Bacon ao pensamento escolástico, em específico, a exaltação demasiada das capacidades do intelecto deixadas por si só. Tomás de Aquino, ainda que atribuindo ao corpo e aos sentidos certa consideração em relação ao

130 Conhecimento...

conhecimento no homem, concede maior destaque às faculdades do intelecto, uma vez que corrobora a teoria na qual o intelecto agente seria o instrumento apto para universalizar o conhecimento.

Para Tomás de Aquino, os caracteres particulares dos objetos seriam especificados com o uso da faculdade estimativa, ou cognitiva, por meio de um processo no qual ela resgataria da memória as ideias e, a partir de tal recuperação, descobriria os aspectos particulares que não haviam sido abstraídos num primeiro instante e, posteriormente, o conhecimento universal seria alcançado pelo intelecto agente e concretizado no intelecto passivo. Todas essas ações seriam realizadas de modo concomitante, desde a passagem pelo sentido comum até a ratificação do conhecimento universal no intelecto passivo.

Portanto, certamente, a teoria tomista seria alvo de críticas por parte do filósofo inglês, já que, na concepção baconiana, a empiria ordenada pelo método seria o fio condutor por onde o intelecto trabalharia, de modo que o objeto de estudo particular deveria ser resgatado repetidas vezes factualmente e não apenas analisado por uma operação intelectiva, sem a retomada da realidade sensível. Bacon não desconsidera a operação do intelecto, mas imputar a ele tamanha relevância para se adquirir o conhecimento seria um ato imprudente e que não contribuiria para a construção epistemológica pautada na experiência.

O pensamento de Francis Bacon... 131

1.3 APROXIMAÇÕES ENTRE O PENSAMENTO DE ROGER BACON E FRANCIS BACON

No Período Medieval, século XIII, encontramos um

filósofo chamado Roger Bacon8, o qual, naquela época, já afirmava algumas ideias muito semelhantes às de Francis Bacon. É notória sua preocupação em dar destaque à experiência como detentora de um caráter potencial e efetivo, no que diz respeito à pesquisa científica, e o quanto isso seria salutar para a humanidade.

Em Roger Bacon estão contidos os gérmens que já acenavam para o avanço da técnica enquanto capacidade do homem que, por meio de uma ciência experimental, poderia realizar aplicações técnicas do conhecimento e erigir novos tipos que resultariam em inventos capazes de servir a humanidade. Temos aqui o ideal do filósofo Francis Bacon no que tange ao método indutivo experimental proposto por ele.

Segundo Reale e Antiseri (1990a), tendo estudado em Oxford, sob a orientação de Grossatesta9, em que o

8 Roger Bacon foi franciscano, notabilizou-se pelo apreço ao estudo da matemática, das ciências e das línguas. Parece ter sido o primeiro a utilizar a expressão “ciência experimental” (DE BONI, 2000, p. 191). “Nasceu aproximadamente em 1214, estudou em Oxford sob a orientação de Grossatesta e depois em Paris, onde se tornou mestre de teologia. Por volta de 1252, voltou para Oxford. Protegido pelo papa Clemente IV (esse papa era Guy de Foulques, velho amigo de Bacon: no ano seguinte à sua eleição como Papa, isto é, em 1266, ele escreveu a Bacon uma carta para que lhe enviasse o seu Opus maius). Depois da morte do papa, que ocorreu em 1278, o geral da ordem franciscana, Jerônimo de Áscoli, condenou as teorias de Bacon, impondo-lhe a clausura severa, isto é, o cárcere. Parece que Bacon morreu em 1292, ano ao qual remonta a elaboração do seu Compêndio dos estudos teológicos. A obra principal de Bacon é o Opus maius, ao qual deveriam se seguir (mas permaneceram em forma de esboço) o Opus minus e o Opus tertium. Essas três obras deveriam constituir uma verdadeira enciclopédia do saber” (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 593-595). 9 Roberto Grossatesta fora pertencente à ordem dos dominicanos. “Nascido aproximadamente em 1175 em Stradbrok, no condado de Sulffolk, na Inglaterra, Roberto Grossatesta estudou em Oxford e Paris.

132 Conhecimento...

estudo do quadrívio (aritmética, geometria, música e astronomia) era dileto por parte de alguns professores, Roger Bacon também foi influenciado por tal estima e, consequentemente, demonstrava-se propenso ao estudo da matemática e da física. Empreendeu pesquisas acerca de algumas coisas, como, por exemplo, o estudo das lentes que resultaram na construção dos óculos e do telescópio. Tais pesquisas fizeram com que ele vislumbrasse um futuro promissor para a humanidade, no que se refere aos inventos que poderiam vir a ser construídos, por meio dos empreendimentos dos homens no âmbito da técnica.

Eis as coisas que, na opinião de Bacon, poder-se-iam realizar “só com os recursos e percepções do engenho humano”: “Podem-se construir meios para navegar sem remadores, de modo que naves imensas (...), com um só timoneiro, andem em velocidade maior do que se fossem movidas por uma multidão de remadores. Pode-se construir carros que andem sem cavalos (...). E é possível também construir máquinas para voar; (... e) um instrumento de pequenas dimensões, mas em condições de erguer e abaixar pesos de grandeza quase infinita (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 596).

Evidencia-se sua inclinação para o uso da ciência

experimental como fonte de pesquisa e fundamentação do conhecimento. É justamente nesse ponto, isto é, tratando-se da validação do conhecimento adquirida por via empírica, que o autor aponta para as causas da ignorância dos homens. Tais causas foram elencadas por Roger Bacon como “o exemplo da autoridade frágil e indigna, a longa duração do costume, o pensamento do vulgo

Foi mestre-regente e chanceler da Universidade de Oxford. Foi ordenado bispo de Lincoln em 1235 e morreu excomungado pelo papa Inocêncio IV, que havia criticado e atacado em suas pregações” (REALE; ANTISERI, 1990a, p. 593).

O pensamento de Francis Bacon... 133

imperito e o ocultamento da própria ignorância com exibição de sabedoria aparente” (DE BONI, 2000, p. 193).

É notória a semelhança de tal pensamento quando remetemos à teoria dos ídolos exposta por Francis Bacon. De modo muito semelhante, o autor também afirma ser necessário realizar certa purificação do intelecto, para que se possa dar início à investigação conduzida pela experiência de um tipo de conhecimento embasado empiricamente, a fim de que as influências dos ídolos, ou falsas noções, presentes no intelecto do homem, não venham a afetar a legitimidade de seus empreendimentos e pesquisas.

De acordo com o pensamento de Roger Bacon, existem duas maneiras de se alcançar o conhecimento, quais sejam, a via da argumentação e a via da experiência. Quando ele afirma serem dois os caminhos para se ascender ao verdadeiro conhecimento, poderia parecer, a princípio, que há uma divisão e que o homem poderia fazer uma escolha e optar qual senda percorrer para obter aquilo que fora almejado. Entretanto, muito distante disso, o filósofo não intenta corroborar tal ideia, mas afirmar que as duas vias, a argumentativa, que envolve o caráter racional, e a experimental, que atribui relevância aos sentidos, são necessárias para se atingir um respaldado conhecimento acerca de algo.

De fato, os modos de conhecer são dois, isto é, por argumento e por experimento. O argumento conclui e nos faz conceder a conclusão, mas não certifica nem remove a dúvida de tal modo que a mente repouse na intuição da verdade, a não ser que a descubra pela via da experiência; com efeito, muitos possuem argumentos referentes ao que pode ser conhecido, mas como não possuem experiência, negligenciam-no, não evitam o que é nocivo, nem buscam o que é bom. De fato, se um homem, que nunca viu o fogo, provar por meio de argumentos suficientes que o fogo queima, danifica e destrói as coisas, a mente de quem o ouve nunca repousaria por causa disto, nem este evitaria o fogo até

134 Conhecimento...

que pusesse a mão ou alguma coisa combustível no fogo, para que provasse pela experiência o que o argumento ensinava. Mas feita a experiência da combustão, a mente é certificada e repousa no fulgor da verdade (DE BONI, 2000, p. 195).

O caráter experimental é visto como aquele que é

capaz de dar legitimidade ou validação para as inferências alcançadas pelo intelecto, que seriam os argumentos, aos quais alude o autor. Na ótica de Roger Bacon, os argumentos por si sós não são suficientes, mas, a partir do uso da experiência, eles podem ser fundamentados e autenticados. Francis Bacon também apresenta uma perspectiva que, de certa forma, equipara-se com a de Roger Bacon.

Não obstante tal equiparação, a experiência, na filosofia de Francis Bacon, é imprescindível para conseguir fundar um conhecimento sólido que não se sedimente em meras abstrações feitas pelo intelecto. Segundo Bacon (1999), o intelecto, se não for bem orientado pela experiência, tenderá a agir de modo dialético e, com efeito, realizará generalizações, as quais prescindem do procedimento experimental; logo, não são atestadas, ou certificadas de forma concreta.

É importante compreender que, estando o autor Roger Bacon situado no Período Medieval, não é possível considerar que, desde tal época, já existia um rigor metodológico, no que concerne aos experimentos realizados. Ainda que pensadores, como o próprio Roger Bacon, ousassem, em algumas pesquisas de cunho experimental, como citado anteriormente, a preocupação com o método, isto é, a especialização nesse ramo, logrou destaque em uma época mais tardia, em específico, no Período Moderno, com grande relevância para o pensamento de Francis Bacon.

- II -

A PRESENÇA DE ASPECTOS MÁGICO-ALQUÍMICOS NO PENSAMENTO DE BACON E O ALVORECER DE

UMA NOVA METODOLOGIA CIENTÍFICA Neste capítulo, o intento é demonstrar o quanto o

pensamento de Francis Bacon sofreu influxo oriundo da alquimia, de modo que alguns aspectos se encontram fortemente presentes em sua teoria. Também apresentamos a visão de Bacon sobre os mitos e as fábulas antigas e o seu modo de interpretação que, intencionalmente, visava incutir na sociedade uma nova concepção acerca do conhecimento científico, bem como a necessidade de se avançar neste âmbito. Tal objetivo converge, com efeito, para a elaboração de sua teoria, na qual surge o método indutivo experimental. Todavia, antes da aplicação do método, devemos lembrar que, de acordo com Bacon, é imprescindível preparar o intelecto para novos empreendimentos de pesquisa experimental. Desse modo, temos a discussão acerca da teoria dos ídolos, abordada, também, nesta etapa do trabalho. 2.1 AS INFLUÊNCIAS DA ALQUIMIA NA FILOSOFIA BACONIANA

Ao remetermos para o assunto acerca das

influências mágico-alquímicas na filosofia de Francis Bacon, podemos pensar, de maneira antecipada, que tal influxo não esteja presente no pensamento baconiano, haja vista que o próprio filósofo combateu, de forma ferrenha, os métodos usados pelos alquimistas, alegando serem eles infrutíferos, no que diz respeito ao avanço do conhecimento científico. Na obra Novum Organum, encontramos aquilo que pensa o filósofo sobre o ideal do saber mágico-alquimista:

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A escola empírica de filosofia engendra opiniões mais disformes e monstruosas que a sofística ou racional. As suas teorias não estão baseadas nas noções vulgares (pois estas, ainda que superficiais, são de qualquer maneira universais e, de alguma forma, se referem a um grande número de fatos), mas na estreiteza de uns poucos e obscuros experimentos. Por isso, uma tal filosofia parece, aos que se exercitaram diariamente nessa sorte de experimentos, contaminando a sua imaginação, mais provável, e mesmo quase certa; mas aos demais apresenta-se como indigna de crédito e vazia. Há na alquimia, nas suas explicações, um notável exemplo de que se acaba de dizer (BACON, 1999, p. 50).

Bacon critica os métodos que foram usados pelos

adeptos da alquimia, pois, ainda que fazendo uso dos experimentos, não souberam orientar-se de maneira correta pela senda da empiria, de modo que, sendo negligentes nesse âmbito, deram mais crédito àquilo que a imaginação elaborava a partir dos experimentos. De acordo com Bacon, os métodos alquímicos não possuíam respaldo, já que foram executados de forma indevida. No entanto, mesmo observando tais críticas por parte do filósofo, não é possível corroborar a ideia de total desprezo da parte de Bacon para com eles, pois seria algo temerário a se afirmar.

Quando Bacon concebe a putrefação como devida a espíritos voláteis que tendem a se afastar dos corpos para gozar os raios do sol, ou pensa que o olfato dos cães seja configurado de um jeito especial pelo fato deles amarem os cheiros fétidos, ou quando ele fala da “virtude extintiva” da qual seria dotado o corpo da salamandra, ou recorre repetidamente ao conceito de simpatia, ou acena aos influxos lunares, ou ao mau olhado, ou à fabricação do ouro, ele nada mais faz do que ecoar motivos muito difusos que irão sobreviver ainda por quase um século em vastos setores da cultura europeia (ROSSI, 2006, p. 102-103).

A presença de aspectos mágico-alquímicos... 137

Torna-se evidente a presença de características da

alquimia, quando se observa o consentimento de Bacon em reforçar a ideia de que a imaginação teria a capacidade de atravancar o processo de fermentação da cerveja, ou, ainda, assegurar que seria possível interromper a transformação do leite em manteiga. Por certo, temos aqui uma demonstração clara do ideal mágico manifesto na filosofia de Bacon. Outro exemplo ao qual podemos acenar como herança da tradição alquímica, é quando Bacon atesta a existência de um espírito em todos os corpos que seria responsável por impedir que o corpo adentrasse em processo de corrupção: “os corpos menos porosos como os duros e oleosos, têm melhores condições para resistir à corrupção” (ROSSI, 2006, p. 103-104).

De acordo com Rossi (2006), além da linguagem, no que diz respeito a alguns termos usados por Bacon e herdados da alquimia, quais sejam, espírito, nutrição, geração e outros, não se pode deixar de mencionar também a teoria da percepção presente nos corpos. O filósofo inglês acolhe a ideia de que, quando um corpo entra em contato com outro, ocorre algo semelhante a uma aceitação, ou não aceitação, daquele para com este, ou vice-versa. Por certo, isso só é possível porque os corpos são dotados de uma capacidade perceptiva que lhes faculta realizar uma pré-avaliação antes de se aceitarem e serem adulterados um pelo outro.

A temática da percepção dos corpos está intrinsecamente relacionada à outra tese defendida por Bacon, a de tornar efetiva a transmutação dos metais, ou seja, poder transformar um tipo de metal em outro. Isso remete também a mais uma influência dos alquimistas, quando estes pretendiam alcançar a produção do ouro, por meio da transmutação dos metais.

Com efeito, tal influxo refletiu no pensamento baconiano, dando origem à teoria das naturezas simples, na qual Bacon especifica os passos a serem dados para se atingir a realização da transformação de uma espécie

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de metal em outro. O filósofo propõe, primeiramente, uma especificação de cada natureza presente no objeto analisado, nesse caso, um tipo de metal, o qual possui certa pluralidade de naturezas, mas que deveriam ser especificadas, para que, assim, o processo de transformação pudesse ter continuidade. Podemos encontrar, na teoria baconiana, a orientação para se atingir tal objetivo:

A regra ou axioma para a transformação dos corpos é de duas espécies. A primeira considera o corpo um conjunto ou conjugação de naturezas simples. Veja-se, no ouro estão reunidas as seguintes características: ser amarelo, ter um determinado peso, ser maleável e dúctil até determinado limite, não ser volátil ou perder a sua quantidade sob a ação de fogo, liquefazer-se com determinada fluidez, separar-se e solver-se por determinados meios, e outras naturezas semelhantes que se encontram no ouro. Desse modo, tal axioma deduz a coisa das formas das naturezas simples. Quem conhecer as formas e os modos de se introduzir o amarelo, o peso, a ductilidade, a fixidez, a fluidez, a solução etc., e suas graduações e modos, saberá como proceder para conjugar em um único corpo essas qualidades, para conduzi-las à transformação em ouro (BACON, 1999, p. 104).

Divergindo dos alquimistas, ou tentando se

distanciar dos seus pressupostos de magia1 e misticismo,

1 O conceito de magia usado em nosso trabalho e que remete ao significado relacionado com a alquimia seria a “ciência que pretende dominar as forças naturais com os mesmos procedimentos com que se sujeitam os seres animados. O pressuposto fundamental da M. é, portanto, o animismo; sua melhor definição, dada por Reinach, é de “estratégia do animismo”. Instrumentos dessa estratégia são: encantamentos, exorcismos, filtros e talismãs, por meio dos quais o mago se comunica com as forças naturais ou celestiais ou infernais, convencendo-as a obedecer-lhe. O caráter violento ou matreiro das operações com que se produz a obediência das forças naturais é outra característica da M., estratégia de assalto que quer conquistar de vez,

A presença de aspectos mágico-alquímicos... 139

podemos observar em Bacon os gérmens de inovação de seu pensamento que já se demonstra preocupado em atribuir um caráter metódico e rigoroso à experiência. Embora o objetivo de provocar a transformação dos metais demonstre-se um tanto quanto presunçoso, ou, ainda, ingênuo, isso nos revela a forte influência do Período Medieval que ainda perdura no pensamento de Bacon. Mas, ao mesmo tempo, também mostra o aspecto inovador que o filósofo propunha quando sugere uma pesquisa meticulosa e fundamentada na empiria para conquistar seus objetivos. Podemos confirmar isso na busca que ele empreende pela transformação dos metais em ouro.

A segunda espécie de axiomas (a que depende da descoberta do processo latente) não procede das naturezas simples, mas dos corpos concretos, tal como se encontram na natureza em seu curso ordinário. Por exemplo, se se trata de investigar, a partir de sua origem, o modo e o processo de formação do ouro ou de qualquer outro metal ou a pedra, a partir de seus primeiros mênstruos ou de seus rudimentos até o estado acabado de mineral (BACON, 1999, p. 104).

É mister fazer alusão a dois conceitos primordiais

do pensamento do filósofo que também estão atrelados à tradição alquimista: “1) o ideal da ciência como potência e como obra ativa, votada a modificar a situação natural e humana; 2) a definição do homem como ministro e intérprete da natureza" (ROSSI, 2006, p. 109).

O saber alquímico foi adquirindo nova conceituação por parte de alguns pensadores. No Período Medieval, os magos eram vistos como aqueles que buscavam manter contato com forças ocultas e submetê-las ao seu poderio e vontade, atingindo, assim, uma

do contrário da ciência moderna, que tende à conquista gradativa da natureza, sem lançar mão dos meios violentos ou sub-reptícios” (ABBAGNANO, 1998, p. 636).

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ruptura com a ordem natural, algo que fugia à compreensão dos homens. Tais atitudes dos magos eram vistas, por parte da Igreja, como bruxarias, ou meios de se manter contato com forças diabólicas. Desse modo, Rossi afirma:

[...] o mago é combatido, caçado e perseguido, uma vez que ele aparece como o ímpio subversor de uma racionalidade e de uma ordem perfeitas que remontam a Deus e é, portanto, considerado como aquele que se move por baixo da ordem racional, em contato com as potências demoníacas, nos limites do reino do mal (ROSSI, 2006, p. 112).

Devido ao confronto que a Igreja oferecia aos

adeptos da alquimia, somente uma nova concepção ou significado atribuído a ela seria capaz de permitir a sua prática sem causar horrores ou incômodo à Igreja Católica. Para que fosse considerada uma ciência passível de pesquisas e estudos, a alquimia é avaliada como aquela que visa compreender o verdadeiro papel do homem no mundo como aquele que age diante da realidade natural. O fato de a alquimia já não ser mais vista sob a ótica da subversão, ou como algo que tenta, por meio do ocultismo, transgredir a ordem natural das coisas, torna-a mais aceitável, fazendo com que, no período do Renascimento2, a magia se torne um fato cultural (ROSSI, 2006).

2 “Designa-se com este termo o movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc. XIV e vai até o fim do séc. XVI, difundindo-se da Itália para os outros países da Europa. A palavra e o conceito de R. têm origem religiosa, como ficou demonstrado pelos estudos de Hildebrand, Walser e Burdach: renascimento é o segundo nascimento, o nascimento do homem novo ou espiritual de que falam o Evangelho de São João e as Epístolas de São Paulo. Durante toda a Idade Média,

tanto o conceito quanto a palavra designavam o retorno do homem a Deus, sua restituição à vida perdida com a queda de Adão. A partir do séc. XV, porém, essa palavra passa a ser empregada para designar a renovação moral, intelectual e política decorrente do retorno aos valores da civilização em que, supostamente, o homem teria obtido suas

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A M. é de origem oriental e difundiu-se no Ocidente no período greco-romano. Circulou mais ou menos ocultamente durante a Idade Média e voltou a agir às claras durante o Renascimento, período em que muitas vezes foi considerada complemento da filosofia natural, ou seja, como a parte desta que possibilita agir sobre a natureza e dominá-la. Era assim considerada por Pico dela Mirandola e por todos os naturalistas do Renascimento. Johanes Reuchlin, Cornélio Agripa, Teofrasto Paracelso, Gerolamo Fracastoro, Gerolamo Cardano, Giovambattista della Porta, todos visam a eliminar o caráter diabólico atribuído durante a Idade Média à M., transformando-a na parte prática da filosofia (ABBAGNANO, 1998, p. 636).

Na Renascença, a magia é vista por outro viés

porque já se relegava de seus estigmas que a tornavam repudiada. Isso ocorreu quando, no trabalho mágico-alquímico, as causas e os efeitos passam a ser de conhecimento do vulgo. Então, tornou-se possível discernir entre os milagres ocorridos por intervenção divina e os milagres realizados pela própria natureza, que agora são explicáveis e passíveis de compreensão.

São palavras de Cornélio Agripa, das quais resulta, sem possibilidade de enganos, que os assim chamados milagres da magia não são, como os atribuídos aos santos, violações das leis naturais, mas o resultado da manifestação de forças naturais. São milagres no sentido etimológico: coisas dignas de serem admiradas. Também nesta definição da magia natural está portanto presente o conceito no qual irá insistir muito Bacon, de uma arte que adere à natureza, que se torna seu eco,

melhores realizações: a greco-romana”. Entre as características fundamentais do renascimento, surge o naturalismo “como novo interesse pela investigação direta da natureza, tanto na forma do aristotelismo, das manifestações de magia ou da metafísica da natureza (Campanella e Giordano Bruno) quanto na forma das primeiras conquistas da ciência moderna” (ABBAGNANO, 1998, p. 852).

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que consegue violentá-la justamente porque sabe pedir seu amplexo, que não faz milagres justamente por ser a arte do homem, que não tem poderes infinitos (ROSSI, 2006, p. 114).

Retomando os conceitos herdados por Bacon dos

pensadores renascentistas, no que se refere ao homem como ministro e intérprete da natureza e o ideal de ciência ativa capaz de modificar a situação natural e humana, o filósofo novamente se apropria de tais ideais. Contudo, diverge em alguns aspectos, visto que, no pensamento de alguns homens considerados magos, ainda persiste o ideal de magia distante da realidade natural. Podemos notar tal perspectiva no que tange aos poderes infinitos atribuídos ao homem perante a natureza, algo que era discutido e afirmado por certos pensadores do período Renascentista. “O conceito do homem privado de natureza, que pode dar a si próprio a natureza que quiser, é um dos temas centrais da filosofia renascimental que volta a aparecer, apenas para citar dois nomes, em Bovillus e Pico della Mirandola” (ROSSI, 2006, p. 112).

É possível abstrair certa ambivalência presente no pensamento renascentista. Embora tenham dado um novo panorama para a alquimia, colocando-a como uma ciência que visa, por meio de estudos, conceder ao homem o conhecimento das realidades naturais, uma visão que já se distancia da ideia de transgressão à ordem natural, ainda assim, o desligamento com essa perspectiva não é total.

Entretanto, no pensamento de Francis Bacon, influenciado pela perspectiva da denominada magia natural, isso pode ser confirmado. O filósofo reconhece os limites da ação do homem sobre a natureza, de modo que, interpretá-la é conhecer o seu funcionamento natural, aquilo que ela é, de fato, e, a partir disso, agir sobre ela, obedecendo-a. Não como ministro que a modifica no papel de transgressor da ordem natural, porque, para Bacon, isso seria impossível, mas como ministro obediente a tal

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ordem e que é capaz de gerar um novo tipo de conhecimento a partir daquilo que conhece na natureza, não no sentido de superação da ordem natural; contudo, em um sentido de adequação e superação daquilo que fora observado. Afirma o filósofo:

O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais [...] “no trabalho da natureza o homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O restante realiza-o a própria natureza, em si mesma” (BACON, 1999, p. 33).

Ao analisar a filosofia de Bacon, dando enfoque às

influências mágico-alquímicas que estão muito presentes em sua teoria, podemos nos surpreender pelo fato de que o próprio filósofo desfere críticas agressivas ao saber mágico-alquímico. Ora, ao mesmo tempo em que critica, ele se apropria dos conceitos e ideias. Porém, podemos observar que, paulatinamente, uma diferenciação entre alquimia verdadeira e falsa vai aparecendo, de modo que a obra divina é diferenciada da obra humana. Isso faz com que esta última adquira consciência de que o homem não é capaz de transgredir a ordem natural (ROSSI, 2006).

A mesma discrepância que surge em meio à alquimia também esteve presente no pensamento de Francis Bacon. Podemos corroborar a ideia de que tal pensamento foi amadurecendo na medida em que o filósofo adquiria contato com as teorias da denominada magia natural, pois o objetivo dele era avançar no pensamento e na elaboração de sua teoria, de modo a instaurar um novo método de pesquisa científica.

Francis Bacon encontra, de certo modo, dificuldades para fazer isso, no sentido de que, para avançar, é preciso ter uma espécie de suporte no qual o filósofo pudesse se embasar e tomar impulso para iniciar algo novo. Ademais, temos que levar em consideração o

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período transitório em que se encontrava. Por certo, sua base foi influenciada pelo saber mágico-alquímico, mas assumiu perspectivas divergentes que já tencionavam para a realização de seus projetos, com destaque para a elaboração do método indutivo experimental. 2.2 A ÓTICA BACONIANA ACERCA DAS FÁBULAS E MITOS

Entre os escritos do filósofo Francis Bacon,

encontram-se algumas obras nas quais ele expõe o seu posicionamento acerca dos mitos. Nessas obras, ele os avalia a partir do contexto em que apareceram, em meio às civilizações antigas, como, por exemplo, a civilização grega, que foi predecessora na elaboração de obras mítico-literárias.

Não obstante, o autor objetiva aplicar nova perspectiva de significado às fábulas3 e mitos, a fim de usá-los como meio de transmissão de seus novos ideais. Levando em consideração que, no contexto em que viveu, transição do período Medievo para o Moderno, ele não poderia se desvencilhar totalmente de algo que até então era de conhecimento e proximidade dos homens daquela época, fazer uma mediação, segundo o autor, seria a melhor via.

[...] estaria exercendo meu direito, misturando assuntos agradáveis com as pesquisas mais árduas da ciência e da filosofia. Na realidade não passa desapercebido a Bacon o caráter versátil da fábula e a possibilidade, sempre presente, de alterar arbitrariamente o seu sentido, atribuindo a ela significados que jamais teve (ROSSI, 2006, p. 228).

3 “A partir do Renascimento, a convicção de que as “F. antigas” tinham valor de sintoma ou revelação indireta da verdade levou a reinterpretar os mitos antigos, emprestando-lhes por vezes significados filosóficos” (ABBAGNANO, 1998, p. 424).

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Bacon realiza avaliações acerca das fábulas e

demonstra o seu parecer sobre a questão do significado contido nas poesias, ou, ainda, se foram propositais ou meros usos de comparações para esclarecimento e ilustração de conceitos aos homens do Período Antigo, de forma que pudessem chegar a uma compreensão. Podemos fazer alusão à literatura de Esopo que representa de forma contundente a presença de tal arte literária na antiguidade (ROSSI, 2006).

Em sua obra denominada De sapientia veterum, a qual se traduz como “A Sabedoria dos Antigos”, Bacon (2002), corrobora a ideia de que a sensibilidade, enquanto capacidade de obtenção de conhecimento, foi o meio pelo qual os homens de épocas antigas puderam depreender certos conceitos ou ideias. Dito de outra forma, para que os homens de tais épocas pudessem atingir o entendimento acerca de algo, fazia-se o uso das fábulas e mitos. “A natureza predominantemente sensível dos homens das épocas antigas tornava necessário, para exprimir conceitos originais e afastados da vulgaridade, o recurso a uma variedade e riqueza de exemplos capazes de atingir a imaginação destes” (ROSSI, 2006, p. 227).

A imaginação dos homens também foi o meio pelo qual podiam ascender, com mais facilidade, à compreensão daquilo que era transmitido a eles, uma vez que a faculdade da imaginação se encontrava mais desenvolvida e habilitada para absorver o significado dos ensinamentos. Os “homens não estavam em condições de captar algo que não lhes caísse sob os sentidos” (ROSSI, 2006, p. 230).

As fábulas traziam consigo personagens, como, por exemplo, animais, figuras mitológicas, que assumiam características que conjugavam aspectos humanos e divinos, no que diz respeito aos diálogos que realizavam dentro do contexto da história. A respeito disso, afirma Francis Bacon:

Refiro-me à adoção das parábolas como método de ensino, graças ao qual invenções novas e abstrusas,

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distantes do arrazoado vulgar, encontram passagem fácil para o entendimento. Por isso mesmo, nos tempos recuados, quando as criações e soluções da razão humana (incluindo as que hoje são banais e consabidas) ainda eram novas e intrigantes, o mundo andava repleto de toda a sorte de fábulas, enigmas, parábolas e símiles. Ora, tais criações não eram usadas para obscurecer e ocultar significados, mas como um meio de explicá-los – pois o intelecto humano mostrava-se então tosco e avesso às sutilezas que não iam diretamente ao âmago do sentido (para não dizer que era incapaz de apreendê-las) (BACON, 2002, p. 21).

Retomando a discussão sobre o significado e

verdadeiro intuito das fábulas, Francis Bacon, não de forma categórica, mas de modo opinativo, afirma que os mitos e as fábulas carregam consigo a função de esclarecimento. Mas, por outro lado, também possuem o intuito de velar, em si mesmos, verdades e sentidos que requerem a capacidade interpretativa do sujeito para poder realizar a sua abstração. Assim, “é mais fácil acreditar que a fábula é fruto da fantasia, que ela é mais antiga do que a interpretação, do que achar que ela tenha sido excogitada justamente para esconder qualquer secreta verdade” (ROSSI, 2006, p. 227).

Bacon não atesta com veemência que as fábulas não possuam uma verdade ou significado velado. Ele diz que a fantasia tenha vindo por primeiro e, ao mesmo tempo, também conjectura que, provavelmente, tais civilizações não teriam consciência do significado oculto contido nas fábulas. Porém, o intuito de Francis Bacon não é delimitar desde que época as fábulas carregam verdades latentes, ou desde qual período os homens estão conscientes dos significados propositalmente velados nas fábulas.

Todavia, a um escrutínio atento, percebemos que foram divulgadas não como invenções inéditas, mas como histórias cridas e consabidas. E, uma vez que são

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contadas de diferentes maneiras por escritores quase contemporâneos, percebe-se com facilidade que aquilo que todas as versões têm em comum veio de fonte antiga, enquanto as partes divergentes são acréscimos introduzidos por vários autores com a finalidade de embelezar. Essa circunstância, a meu ver, valoriza-as ainda mais, dado que então não podem ser consideradas nem invenções, nem fruto da época dos próprios poetas, mas relíquias sagradas e brisas de tempos melhores – recolhidas das tradições de países mais antigos e sopradas pelas flautas e trompas dos gregos (BACON, 2002, p. 20).

O autor considera as fábulas e mitos como

portadoras de alegorias, não se pode negar o caráter alegórico presente nas fábulas e nos mitos. O autor se demonstra comedido perante essa discussão e não se torna sectário de nenhum dos posicionamentos: considerar o uso das fábulas apenas como ferramenta pedagógica e de ensinamento ilustrativo; ou atribuir a elas um sentido alegórico no qual uma verdade oculta se faz presente. Desse modo, “o uso que pode ser feito da fábula é duplo: ela pode servir ao mesmo tempo de invólucro e de véu, ou de lume e ilustração” (ROSSI, 2006, p. 230).

O fato de o filósofo Francis Bacon escrever obras relacionadas aos mitos e às fábulas permite entrever o seu verdadeiro objetivo, quando, na obra intitulada “A Sabedoria dos Antigos”, elabora reinterpretações acerca dos mitos antigos, julgando ser aquilo que ele pensara estar velado em tais textos. Por certo, é necessário, para adquirirmos uma melhor compreensão acerca do modo como Francis Bacon se apropria dos mitos e realiza sobre eles a sua interpretação, que tenhamos contato com exemplos que evidenciam as peculiaridades dos seus objetivos presentes em suas reinterpretações acerca dos mitos antigos. Tomemos por modelo o mito intitulado “Pã, ou a natureza”, o qual está presente entre os vários mitos interpretados por Bacon em sua obra.

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O autor, de forma sutil, insere no mito, em alguns

pontos em específico, seus ideais, os quais almeja torná-los sabidos e espraiados pela sociedade de sua época, como, por exemplo, a sua ótica referente à relação próxima existente entre Pã e Eco. Para entendermos melhor, Pã seria a descrição de uma natureza universal:

Eis como os antigos o descreviam: provido de cornos, cujas pontas alcançavam o céu; o corpo peludo e hirsuto; a barba comprida. Na figura, biforme: a parte superior, humana, a inferior, meio animal, terminada por pés de bode. Como insígnias de poder, trazia na mão esquerda uma flauta de sete tubos, na direita, um cajado com a extremidade superior curvada; trajava uma clâmide feita de pele de pantera (BACON, 2002, p. 31-32).

Eco, por sua vez, de acordo com o mito, seria a

esposa de Pã, o qual possuía um grande apreço ou afeição por ela. Bacon afirma que a proximidade entre Pã e Eco representa a escolha de uma filosofia apta a descobrir os mistérios da natureza por meio da experiência. Ora, uma vez que Pã é a natureza universal, o filósofo analisa a sua esposa, Eco, como aquela que melhor poderia lograr conhecimento sobre ele, devido à afeição existente entre os dois. Estão implícitas, nisso, alusões ao método indutivo que o filósofo viria a propor ulteriormente.

E é bem que, de todas as palavras ou vozes, somente Eco fosse escolhida para esposa do mundo. Pois ela constitui de fato a verdadeira filosofia que repete com fidelidade a voz do próprio mundo e, por assim dizer, é escrita a seu ditado: nada mais sendo que sua imagem e reflexo, ela apenas reproduz e ecoa sem nada acrescentar (BACON, 2002, p. 39).

Bacon critica as filosofias que se demonstraram

abstratas no Período Antigo e Medieval e não empreenderam pesquisas respaldadas na experiência.

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Seguindo por esta mesma perspectiva, outro ponto relevante para o qual o autor aventa se descerra na sua interpretação referente ao atributo de caçador assumido pelo personagem Pã: “os poderes e funções a ele atribuídos são os seguintes: é o deus dos caçadores, dos pastores e, de um modo geral, dos camponeses” (BACON, 2002, p. 32).

A característica de caçador ilustra a persistência que devem ter aqueles que se aprofundam no conhecimento acerca da natureza. Serão necessários vários experimentos e várias repetições. Na linguagem interpretativa do autor:

Nada explica melhor a função de Pã que o epíteto de deus dos caçadores: toda ação natural, todo movimento e todo processo da natureza nada mais são que uma caçada. As ciências e as artes caçam suas obras, as decisões humanas caçam seus objetivos e todas as coisas da natureza ou caçam alimento, que é como caçar presa, ou prazeres, que é como caçar recreação. E também aqui, segundo métodos habilidosos e solertes (BACON, 2002, p. 36).

É notória a intencionalidade do autor encontrada na

interpretação dos mitos. Podemos deduzir que foi uma forma que o filósofo inglês encontrou para poder propalar pela sociedade seus propósitos de mudança cultural. Ele não poderia fazer isto de outro modo que não fosse pela égide da cultura tradicional na qual os mitos estavam fortemente presentes.

A mistura de novo e de antigo presente no De sapientia veterum e a vontade, presente em Bacon, de inserir-se numa tradição, aderindo a um gênero literário em moda, não devem ser consideradas como resultado de uma astúcia calculista, ao mesmo tempo em que, por outro lado, não é possível ver em Bacon o ingênuo entusiasmo de um seguidor da tradição alegórica. A posição que ele assumiu exprimia a vontade de inserir-se numa cultura

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e de agir dentro dela concretamente, segundo planos precisos e seguindo os caminhos que uma tradição ainda atuante podia indicar (ROSSI, 2006, p. 240).

Bacon se apresenta preocupado em conseguir

alterar o panorama cultural de sua época, uma vez que seus esforços e empresas eram voltados para causar uma guinada no contexto social, no que diz respeito ao âmbito da pesquisa científica. Ele pretendia que seus projetos se tornassem concretos e sua esperança era poder ver colégios sendo fundados com o intuito de empreender pesquisas científicas. Ou seja, “é exatamente a esperança, muito viva em Bacon, de que sua doutrina se colocasse como uma mudança de rumo na história humana, marcando o fim de uma cultura e o início de uma nova época de que ele se sentia o arauto” (ROSSI, 2006, p. 238).

Por outro lado, a teoria baconiana acerca do conhecimento científico, longe de ter como alvo de crítica o conhecimento mitológico e alegórico dos antigos, visa uma crítica mais contundente à influência dos ídolos na estruturação das ideias provenientes do intelecto. Este será o tema do próximo tópico. 2.3 A INEFICÁCIA DO INTELECTO DEVIDO À INFLUÊNCIA DOS ÍDOLOS

Na teoria de Francis Bacon, o filósofo propõe uma

nova instauração do conhecimento que ocorre com a realização do método indutivo experimental como meio de pesquisa para se chegar às verdades encontradas na natureza e, de forma legítima, fundar os axiomas. Contudo, para alcançar tal feito, Bacon afirma que, de

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antemão, é preciso libertar o intelecto dos ídolos4 que nele repousam.

Tais ídolos são considerados como falsas noções que impedem o alcance do verdadeiro conhecimento, pois distorcem as informações coletadas pela mente humana fazendo com que o intelecto incorra em certas falhas de interpretação diante daquilo que a natureza lhe apresenta. Ademais, visto que tais ídolos, estando na mente humana, podem levar o intelecto para a acomodação ou contentamento no momento de se empreender uma pesquisa de caráter experimental, não podemos descartar a possibilidade de que os “fantasmas” da mente humana poderiam inclinar o intelecto para uma antecipada generalização sobre o objeto que se pesquisa.

O intelecto humano se deixa abalar no mais alto grau pelas coisas que súbita e simultaneamente se apresentam e ferem a mente e ao mesmo tempo costumam tomar e inflar a imaginação. E a partir disso passa a conceber e supor, conquanto que imperceptivelmente, tudo o mais, do mesmo modo que o pequeno número de coisas que ocupam a mente. Contudo, para cumprir os fatos remotos e heterogêneos, pelos quais os axiomas se provam como pelo fogo – a não ser que duras leis e violenta autoridade o imponham -, mostra-se tardo e inepto (BACON, 1999, p. 42-43).

Tendo em vista que o intelecto humano tende a

buscar aquilo que é mais cômodo e afeito às convicções pré-estabelecidas que nele se encontram e, da mesma forma, tende à abstração, o progresso científico, segundo Bacon, é submetido a um estado de estagnação. Ora, se faz necessário bem orientar o intelecto, por meio da empiria, para se construir um conhecimento embasado pela prudência dos estudos e de pesquisas experimentais,

4 “A palavra ‘ídolos’ é empregada por Bacon a partir da noção vulgar de imagem de um falso deus, da ideia de idolatria, e revela o gosto do autor por metáforas religiosas” (ANDRADE, 1999, p. 12).

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visto que “o intelecto humano é semelhante ao espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, desse modo, as distorce e corrompe” (JAPIASSU, 1995, p. 126).

De acordo com Rossi (2006), ao fazer uma releitura sobre a obra da criação, segundo as peculiaridades de seu próprio pensamento, Francis Bacon sustenta a ideia de que, ao criar o homem e colocá-lo no mundo, o Criador havia concedido a ele a capacidade de entender a natureza e o mundo de forma totalizada, por meio de um intelecto que, naquele momento, encontrava-se intacto, portanto, abstraía o conhecimento acerca das obras do Criador de acordo com o que eram, de fato, sem incorrer em interpretações errôneas, pois gozava o homem de uma habilidade intelectual casta para compreender a natureza das coisas. Assim:

[...] o homem foi colocado no jardim para trabalhar nele, não podendo ser outro o trabalho que se lhe assinalava que trabalho de contemplação, isto é, aquele orientado somente a exercício e experimento, e não a satisfazer uma necessidade; pois, não havendo então rebeldia da criatura nem suor de seu rosto, forçosamente a ocupação do homem teve que ser matéria de deleite no experimento e não matéria de esforço para a utilidade. Assim, as primeiras ações que o homem levou a cabo no Paraíso consistiram nas duas partes supremas do conhecimento: a visão das criaturas e a imposição de nomes (BACON, 2007, p. 65).

No entanto, devido à presunção do homem em

querer se apropriar do conhecimento acerca do bem e do mal, o pecado criou raízes em seu espírito e, com efeito, determinada corrupção refletiu de forma prejudicial na sua capacidade de compreender a natureza das obras do Criador. Logo, o intelecto perdeu a iluminação de que antes desfrutava e tornou-se como “um espelho encantado que refletia, distorcidos, os raios das coisas” (ROSSI, 2006, p. 343).

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Os frutos de tal corrupção ocorrida no homem se

traduzem na presença dos ídolos em sua mente. Ainda que corrompido, o intelecto humano poderia buscar a redenção, por meio de um grande esforço, para que pudesse tentar possuir um entendimento semelhante ao original. O que não significa que seria aquela mesma compreensão pura e casta que obtivera no paraíso, mas certa tentativa de se aproximar ao máximo da compreensão primitiva concedida pelo Criador. Assevera o autor:

Depois da maldição divina, o mundo não se havia, portanto, tornado completamente rebelde para com o homem: com o suor de sua testa ainda lhe teria sido possível dobrá-lo à utilidade da vida humana. Os homens “tinham, portanto, conservado um certo poder sobre a natureza rebelde” (ROSSI, 2006, p. 343).

Ainda que o homem possuísse a possibilidade de,

a partir de penosos esforços, atingir algum conhecimento sobre a natureza, visto que o mundo se tornara rebelde para ele, Francis Bacon faz menção ao modo como os homens do passado incorreram no mesmo erro. Não se aplicaram numa pesquisa acurada de caráter experimental sobre as obras do Criador, mas “acreditaram poder substituir o suor de sua testa por alguma gota de elixir, com espírito ímpio e arrogante imprimiram seu selo sobre as criaturas e as obras de Deus” (ROSSI, 2006, p. 343).

O intuito de Francis Bacon, ao realizar a interpretação acerca da obra da criação, é demonstrar que o homem necessita se libertar, ou, ainda, estar alerta quanto às influências que os ídolos podem exercer sobre o intelecto no momento de empreender as pesquisas de cunho experimental. Os esforços que o filósofo alega serem necessários para bem compreender a natureza apontam para o empenho que exige o método indutivo experimental. O qual representa o suor que deve o homem derramar para descobrir, de fato, os mistérios velados na

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natureza, já que o intelecto sofre com as influências dos ídolos e necessita ser bem conduzido pela experiência. 2.3.1 A classificação dos ídolos

Entendido o modo como a mente humana é afetada

pela influência dos ídolos, é necessário também classificá-los de acordo com o pensamento de Francis Bacon, de modo a compreender em que consiste cada um deles. Segundo Bacon (1999), os ídolos que estão presentes na mente humana e dificultam a instauração das ciências são de quatro tipos: os ídolos da tribo, da caverna, do foro e do teatro. Esses são, portanto, os “fantasmas” aos quais os homens devem estar vigilantes e precavidos no momento de buscar a verdade do conhecimento. O único meio de realizar isso, de não se deixar influenciar por eles, é fazer uso do método indutivo experimental para que se descubram os verdadeiros axiomas.

Os ídolos da tribo, como o próprio nome já diz, estão intimamente relacionados à natureza humana, uma vez que se tornam um tipo de consenso entre os homens quando se trata do conhecimento acerca de algo. Esse consenso surge pelo fato de ocorrer a ausência de críticas que refutem as concepções pré-concebidas de modo geral na mente das pessoas. É um tipo de ídolo aceito de forma pacífica pelo homem, algo que facilmente se acomoda no seu intelecto. O autor sustenta a ideia de que:

Esses erros derivam da fraqueza dos sentidos, da limitação do intelecto, da influência dos afetos, do modo de receber as impressões dos objetos, da atitude diante das concepções já aceitas. Os principais impedimentos derivam da falácia e do obtuso dos sentidos que, tomados em si, são coisa vaga e sujeita a erros. O que, com maior força e imediatez atinge os sentidos, não é de grande utilidade para a ciência (ROSSI, 2006, p. 345).

A presença de aspectos mágico-alquímicos... 155

A confiança total nos sentidos de forma imediata,

naquilo que se pode observar por meio de um primeiro contato, não pode ser acolhida pelo intelecto como uma verdade já estabelecida e inquestionável. Avaliar somente aquilo que é de fácil acesso ao sentido visual incorre no risco de descartar toda uma gama de processos que se encontram ocultos na natureza que se está estudando e que, num primeiro momento, não podem ser observadas, pois “a experiência atrai, encanta, impressiona, mas, sem a presença de um espírito científico crítico, não é passível de se constituir como base segura para o conhecimento científico” (MACHADO; MATOS; PINHEIRO, 2013, p. 43).

De acordo com Reale (1990b), devido ao fato de o intelecto humano estar sujeito a ser influenciado pela vontade e pelas afeições, sua tendência é acolher aquilo que considera mais satisfatório, ou, ainda, mais convincente e se acomodar com tal constatação. Quando isso ocorre, o intelecto precipita-se em generalizações, fazendo com que tudo venha a convergir com aquilo que a ele por primeiro for mais afeito. Dessa maneira, as instâncias positivas e negativas que seriam constatadas no decorrer do processo de pesquisa são desprezadas e não estudadas de forma aprofundada, porque o intelecto opta por aquilo que é mais cômodo e fácil de compreender. Portanto, relega aquilo que é mais complexo, ao ser envolvido por uma falta de paciência e imprudência quando investiga a natureza de um objeto.

Os ídolos da caverna, por sua vez, são referentes à subjetividade de cada indivíduo, aquilo que cada um carrega consigo como bagagem de conhecimento, que pode provir da educação recebida, dos hábitos, das leituras realizadas, do excesso de admiração por teorias formuladas na antiguidade e, por outro lado, do mesmo exagero para com aquilo que é novo.

Os homens se apegam às ciências e a determinados assuntos, ou por se acreditarem seus autores ou descobridores, ou por neles muito se terem empenhado

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e com eles se terem familiarizado. Mas essa espécie de homens, quando se dedica à filosofia e a especulações de caráter geral, distorce e corrompe-as em favor de suas anteriores fantasias (BACON, 1999, p. 45).

Visto que tais ídolos se manifestam nas

peculiaridades trazidas pelos homens, é possível entender o sentido que Francis Bacon objetivou incutir ao intitular estes ídolos como os da caverna. Segundo Rossi (2006), está baseado no mito da caverna de Platão, no qual o filósofo descreve a permanência dos homens aprisionados em uma caverna; ao se libertarem, defrontam-se com uma realidade nova e ao mesmo tempo desconhecida. Bacon sugere que esta nova realidade, até então insólita para eles, seria tendenciosamente analisada a partir do parco conhecimento obtido na caverna, ou, ainda, seriam criadas concepções que não estariam de acordo com a realidade factual encontrada, incorrendo, assim, em opiniões e posicionamentos extravagantes e antecipados. Dessa maneira, depreende-se que: “Nós vivemos ao ar livre, mas as nossas almas estão fechadas em corpos como em outras tantas cavernas e a luz natural das coisas é refratada de acordo com a nossa constituição, com as nossas leituras, com as variações de nosso ânimo” (ROSSI, 2006, p. 347).

O resultado do influxo da subjetividade do indivíduo sobre o campo de investigação epistemológico engendra não somente distorções sobre o objeto de estudo, mas também impele os homens a instituírem um conhecimento embasado naquilo que lhes é afeito, ou, ainda, somente a partir daquilo que for uma grande descoberta de seus empreendimentos de pesquisa. Francis Bacon (1999), afirma ser este o caso de Aristóteles, com a sua exaltação ao pensamento lógico aplicado na realidade natural das coisas, dos alquimistas e suas teorias fantásticas alicerçadas em poucas e inadequadas experiências, é também o caso de Gilbert que desenvolveu uma filosofia

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imbricada ao seu próprio interesse, a partir de sua observação e estudo sobre o magnetismo.

As afeições trazidas pelos homens que os levam a criar grande estima pelas teorias da antiguidade, ou por novidades que surgem posteriormente, provocam como que um desligamento entre as duas perspectivas, no qual apenas um dos lados é tido como útil e o outro é desmerecido. É preciso, portanto, que haja uma espécie de baliza entre os dois lados, para que, assim, seja considerado aquilo que for proveitoso para o avanço do conhecimento, tanto de um lado quanto do outro.

Outro ponto a ser mencionado é o modo como se realizam os engenhos. Há aqueles que possuem grande capacidade para encontrar as semelhanças existentes entre as coisas e também aqueles que encontram somente as diferenças. Ora, as duas funções devem estar conjugadas no caminho da investigação, já que, para Bacon, todos os casos devem ser avaliados, sendo positivos ou negativos. O que implica saber as semelhanças e diferenças para que se possa dar autenticidade para o conhecimento que se pesquisa (BACON, 1999).

Os ídolos do foro, que assumem o terceiro lugar da classificação instituída por Francis Bacon, dizem respeito à comunicação existente entre os homens, o que remete à linguagem usada por eles que, segundo o filósofo, pode ser confusa, ambígua e distante da realidade material. Dito de outro modo, os ídolos do foro “são aqueles particularmente residentes nas imperfeições da linguagem humana” (EVA, 2006, p. 80).

O nome dado por Bacon para este grupo de ídolos, isto é, do “foro”, faz alusão para o local ou o contexto no qual é possível notar o uso demasiado da comunicação, que seria em um mercado, ou feira, onde acontecem várias negociações. Portanto, para Bacon, “os homens, com efeito, crêem que a sua razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e refletem

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suas forças sobre o intelecto, o que torna a filosofia e as ciências sofísticas e inativas” (BACON, 1999, p. 46).

Mais uma vez, percebemos a propensão do intelecto para a acomodação perante aquilo que ele recebe, por meio do que se pode ouvir, e isso inclui as atribuições de nomes às coisas realizadas pelos homens por meio do uso das palavras, por vezes, tornam-se vulgares e inadequadas, fazendo com que o intelecto aceite tais noções de forma passiva. De acordo com Rossi (2006), voltando-se para a perspectiva do conhecimento científico, Bacon objetiva efetuar uma aplicação da linguagem a partir daquilo que pode ser constatado empiricamente, algo que envolve a realidade material das coisas que podem existir independentemente da atribuição de um nome a algum objeto. O filósofo não está se referindo apenas a ideias, símbolos ou imagens, mas à purificação da linguagem, que ocorreria quando se atentasse para o aspecto existencial e físico daquilo que se fala, tendo em vista que se trata de um afastamento das opiniões de senso comum para a busca de um conhecimento sólido respaldado pela experiência.

A realidade material que a linguagem tem a tarefa de descrever não é absolutamente idêntica (na medida em que se abandone o plano da “opinião vulgar” para o da “ciência”) à assim chamada realidade do senso comum. Ela consta de uma série de estruturas de tipo geométrico-mecânico, sendo que, para Bacon, porém, esta realidade material, e não outra, é o único critério plausível para a verificação ou o falseamento de qualquer enunciado linguístico (ROSSI, 2006, p. 353).

Para se purificar a linguagem, é necessário que o intelecto humano esteja atento às palavras que lhe são apresentadas, visando avaliar as suas ligações com a realidade imanente. Para Bacon (1999), as palavras que se apresentam ao intelecto são basicamente divididas em dois grupos, aquelas que aludem para coisas inexistentes

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materialmente, portanto, absolutamente abstratas; e aquelas que existem, mas são complexas em seu entendimento, pois expressam certa ambiguidade e carência de maior especificidade.

O primeiro grupo, o das coisas fantásticas e irreais, é mais fácil de combater, visto que são tendenciosamente falsas, ao passo que são fruto de meras hipóteses criadas pelo poder do intelecto, não possuem um fundamento consistente amparado pela experiência. Contudo, o segundo grupo, no qual as palavras remetem ao mundo físico, é algo que necessita maior atenção.

Tome-se como exemplo a palavra úmido e enumerem-se os significados que pode assumir. Descobriremos que esta palavra úmido compila notas confusas de operações diversas que nada têm em comum ou que não são irredutíveis. Significa, com efeito, tudo o que se expande facilmente em torno de outro corpo; tudo o que é em si mesmo indeterminável e não pode ter consistência; tudo o que facilmente cede em todos os sentidos; tudo o que facilmente se divide e dispersa; tudo o que se une e junta facilmente; tudo o que facilmente adere a outro corpo e molha; tudo o que facilmente se reduz a líquido, se antes era sólido (BACON, 1999, p. 47).

Tendo em vista o exemplo dado pelo filósofo, é

possível compreender que a palavra úmido, ao carregar consigo uma variedade de significados, ao mesmo tempo, refere-se basicamente àquilo que é líquido; pelo vulgo, quando se trata de falar sobre o termo umidade, logo se associa a algo líquido. Entretanto, a questão colocada por Bacon é que não se pode relacionar umidade apenas com aquilo que é líquido e contentar-se com tal conhecimento, é preciso realizar experimentos posteriores que visem atestar a relação intrínseca do líquido com o úmido para se obter maior profundidade sobre tal conhecimento. Caso contrário, a impressão que se tem é de que houve certa conformação do intelecto com tal ideia e, desse modo, o

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conhecimento é reduzido, estagnado e cerceado em um conceito já concebido e dado como certo.

Segundo Rossi (2006), ocorre que certa convencionalidade é aplicada quando se fala sobre o termo umidade. Como dito anteriormente, tal termo é sempre relacionado à presença de algo líquido, portanto, por convenção, o senso comum afirma que umidade basicamente concerne àquilo que é líquido. Entretanto, antes de o intelecto anuir a tal noção, Bacon propõe a pesquisa acerca das noções de umidade em cada caso particular, para que, assim, sejam reveladas as noções em si que cada caso apresenta. Desse modo, o uso dos termos também poderia variar, dependendo do que se descobre, e tais termos ou palavras devem representar fidedignamente a natureza de cada coisa descerrada.

No último lugar da classificação baconiana dos ídolos, encontram-se os denominados ídolos do teatro. Receberam este nome porque evocam os sistemas filosóficos vigentes na antiguidade e em épocas mais tardias. De acordo com Bacon (1999), tais sistemas filosóficos são apenas especulações advindas de falsas filosofias detentoras de erros, a saber, a filosofia sofística, a empírica e a supersticiosa. A expressão “teatro” é justificada por Francis Bacon da seguinte maneira:

Bacon os chama de ídolos do teatro porque considera “todos os sistemas filosóficos que foram acatados ou cogitados como fábulas preparadas para serem representadas no palco, boas para construir mundos de ficção e de teatro”. Mas também encontramos fábulas não somente nas filosofias atuais ou nas “seitas filosóficas antigas”, como ainda em “muitos axiomas e princípios das ciências que se afirmaram por tradição, fé cega ou desleixo” (REALE; ANTISERI, 1990b, p. 339).

No tocante à filosofia sofística, Bacon faz alusão à

exaltação da dialética, da sutileza da linguagem, da confrontação argumentativa e sua coerência e

A presença de aspectos mágico-alquímicos... 161

consistência. Os poderes da mente e suas faculdades são colocados como ferramenta inquestionável para se alcançar o conhecimento acerca de algo, causando, desse modo, o desdenho da empiria. Ainda é possível citar Aristóteles que, ao enaltecer a dedução, universalizou o conhecimento, sem voltar o seu olhar para os casos particulares de forma devida e, ademais, corrompeu a realidade das coisas, ao descrever o mundo com base nas categorias que ele mesmo estabeleceu de forma arbitrária (BACON, 1999).

A filosofia empírica, por sua vez, até ousou adentrar sobre o viés da experimentação, porém, de forma desorientada e carente de método para efetuar uma legítima investigação atrelada ao sentido baconiano de indução. O resultado de experimentos efetuados como, por exemplo, pelos alquimistas, não gerou grandes descobertas no âmbito científico, mas, pelo contrário, produziram um conhecimento distorcido sobre a realidade das coisas, de modo que as pesquisas estavam imersas na obscuridade de poucos experimentos realizados inadequadamente.

Com efeito, Bacon não deixa de avaliar o caráter supersticioso como errôneo e que também está presente entre as falsas filosofias. Para ele (1999), além da superstição, ocorreu, de certa forma, uma mescla de teologia com filosofia, algo que pretendia ir além daquilo que a natureza poderia revelar, ou seja, uma espécie de transgressão à ordem presente na natureza, causando, assim, certa confusão entre o conhecimento que poderia ser atingido apenas por revelação divina e o conhecimento alcançado por obra humana. Podemos citar o exemplo da magia que se aproximava da feitiçaria, envolvendo a invocação de espíritos, e também o próprio Platão que, na elaboração de sua filosofia, cogitou a existência do mundo das ideias que detinha as formas transcendentais, o que

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tardiamente serviu de fundamento para o neoplatonismo5 que trouxe toda uma gama teológica em suas teorias.

Ao classificar os ídolos demonstrando as suas origens e o quanto afetam o intelecto humano, Francis Bacon objetiva, com tal alerta para essas falsas noções, um único propósito: a aplicação de um método indutivo experimental, no qual se poderia exercer uma investigação pautada em uma pesquisa prudente, almejando encontrar o verdadeiro conhecimento sobre a natureza das coisas. Tal investigação deve estar atrelada ao grande número de experimentos que serviriam como base para a fundação dos axiomas. Veremos, de forma mais aprofundada, em que consiste o método indutivo experimental no próximo capítulo.

5 “Escola filosófica fundada em Alexandria por Amônio Saccas no séc. II d. C., cujos maiores representantes são Plotino, Jâmblico e Proclos. [...] Os fundamentos do N. são os seguintes: 1° caráter de revelação da verdade, que, portanto, é de natureza religiosa e se manifesta nas instituições religiosas existentes e na reflexão do homem sobre si próprio; 2° caráter absoluto da transcendência divina: Deus, visto como o Bem, está além de qualquer determinação cognoscível e é julgado inefável; 3° teoria da emanação, ou seja, todas as coisas existentes derivam necessariamente de Deus e vão-se tornando cada vez menos perfeitas à medida que se afastam d’Ele; consequentemente o mundo inteligível (Deus, intelecto e Alma do mundo) é distinto do mundo sensível (ou material), que é uma imagem ou manifestação do outro; 4° retorno do mundo a Deus através do homem e de sua progressiva interiorização, até o ponto do êxtase, que é a união com Deus” (ABBAGNANO, 1998, p. 710-711).

- III -

OS PRESSUPOSTOS E DIRETRIZES DO MÉTODO INDUTIVO EXPERIMENTAL

A partir do que foi demonstrado no primeiro e no

segundo capítulo deste trabalho, em relação à ruptura com a filosofia antiga e medieval, e também as influências recebidas por Bacon, oriundas do pensamento mágico-alquímico, bem como o seu afastamento e amadurecimento diante de tais teorias, abstrai-se que o filósofo tem por objetivo propor um novo meio de se pensar sobre a ciência que faz alusão ao progresso científico em benefício da vida da humanidade.

Está presente, no pensamento baconiano, o intuito de incutir na sociedade bases de pensamento que estejam voltadas para uma visão de progresso no qual a sociedade, que naquele período se lançava para a modernidade, necessitava acolher o estudo científico como algo útil para solucionar os problemas de cunho prático. Assim sendo, a ciência “surge exatamente contra a ideia de um saber puramente de curiosidade inútil para a sociedade, contra a ideia de um saber separando radicalmente teoria e prática” (JAPIASSU, 1995, p. 74).

Visto que Francis Bacon propunha uma nova visão acerca da ciência que se distancia das antigas concepções pautadas em abstrações e, agora, adentra em um prospecto de caráter útil e prático, o filósofo sugere um novo modo de lidar com a natureza, uma nova forma de interpretá-la e agir sobre ela. Nisso consiste a Nova Instauração proposta por Bacon e esta ocorre a partir de um novo método de pesquisa que tem por base a empiria sistematizada. As duas correntes, o racionalismo e o empirismo, que incluem o trabalho do intelecto bem orientado pelos experimentos, serão o ponto fulcral do método indutivo experimental baconiano.

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3.1 A ATIVIDADE INTELECTUAL CONJUGADA COM A EXPERIÊNCIA NO ESTUDO DA NATUREZA

Quando Bacon afirma que “saber é poder”, atribui

um novo sentido para tal afirmação, de modo que se infere uma espécie de limitação ao intelecto do homem agindo sobre a natureza, isto é, ao realizar um estudo interpretativo sobre a mesma. Para Bacon (1999), tal limitação ocorre pelo fato de que, quando a questão é interpretar a natureza, o trabalho racional só se torna válido a partir das constatações da observação. Para compreender, de fato, a natureza, é necessário empreender experimentos partindo das observações. Se o estudo fugir dessa regra, ou seja, da constatação empírica, não se pode tomar como válida a pesquisa científica. Por certo, a crítica do filósofo voltada para a filosofia de Aristóteles, a escolástica, bem como aos alquimistas encontra seu fundamento no primeiro aforismo de sua obra Novum Organum, “o homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais” (BACON, 1999, p. 33).

Bacon questiona as atribuições demasiadas aos poderes do intelecto que defendiam os antigos e os medievais e, por outro lado, o mau uso da empiria que fizeram os alquimistas. Deve-se ponderar e bem usar as faculdades da experiência e da razão, pois é por meio da experimentação que o intelecto poderá averiguar o funcionamento e a ordem presentes na natureza; a razão deve trabalhar orientada pelos experimentos num processo metódico e não simplesmente realizados de forma desorientada e sem a cogitação de hipóteses que almejam um objetivo, porque, do contrário, os resultados serão apenas consequências fortuitas semelhantes à dos alquimistas.

Pois não pretendemos abdicar dos sentidos, mas ampará-los; nem desprezar o intelecto, mas dirigi-lo.

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Enfim, é melhor saber-se tudo o que ainda está para ser feito, supondo que não sabemos, que supor-se que bem o sabemos, e ignorar totalmente o que nos falta (BACON, 1999, p. 95).

Fazendo uso de uma metáfora, Francis Bacon

elabora uma alegoria na qual faz uma espécie de analogia com aqueles que se dedicaram às ciências e os insetos. Os empíricos são como formigas que apenas recolhem as provisões de que necessitam, e os racionalistas, por sua vez, são equiparados a aranhas que tecem belos fios, porém, extraídos de si mesmas, o que revela o desdenho ou o negligente exame experimental. Entretanto, o filósofo inglês consegue encontrar outro inseto que assume o papel de mediação entre os dois extremos: a abelha. Esta possui a capacidade de extrair da natureza o material necessário e não somente armazená-lo, mas, ao fazer uso de suas capacidades, transforma-o em algo novo, ou, ainda, gera um novo tipo de conhecimento. Tem-se, portanto, um exemplo que explicita o propósito do filósofo: estudar a natureza, por meio do amparo racional e empírico, para que o conhecimento venha a ser adquirido e, além disso, certa aplicação de conhecimento seja efetuada ulteriormente (BACON, 1999).

Partindo de tal pressuposto, Bacon atesta que: Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não serve unicamente das forças da mente nem tampouco se limita ao material fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intato na memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre essas duas faculdades, a experiência e a racional (BACON, 1999, p. 76).

De acordo com Bacon (1999), as ciências que até

o seu período histórico haviam sido dadas como conhecimento se apresentaram escassas quanto ao rigor

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metodológico, pois, uma vez que se atribui tão somente às capacidades do intelecto humano o meio de se lograr conhecimento e, de igual modo, a uns poucos experimentos realizados de maneira inadequada e assistemática, torna-se ineficaz o estudo sobre a natureza, de modo que tais empresas não poderiam trazer contribuições de caráter criativo, novos inventos e descobertas que oferecessem suporte para a vida prática da humanidade. O propósito baconiano visa inserir o trabalho técnico como artifício para se atingir descobertas inovadoras, tendo em vista que isso só seria possível quando a ciência conhecesse de fato as leis da natureza. Conhecer tais leis implica a junção das faculdades da razão e da experiência, haja vista que:

Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos os efeitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precavêm (BACON, 1999, p. 33).

Não se pode deixar de notar que, ao propor um

método específico, no qual a razão e a experiência trabalhariam harmonicamente, objetivando o conhecimento acerca das leis da natureza, o filósofo, de certa forma, também está fazendo alusão a uma cisão com as especulações metafísicas. Por certo, Bacon infere que efetivar operações sobre a natureza implica somente o estudo daquilo que pode ser observado factualmente, porque, do contrário, são apenas empresas fadadas ao completo malogro. Ele compreende que, no estudo sobre a natureza, o homem, como intérprete, assume o caráter de submisso diante daquilo que lhe é apresentado, pois é somente conhecendo as leis da natureza que, de fato, ela poderá ser superada. Desse modo, o autor postula certa crítica às especulações metafísicas:

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A segunda parte da metafísica é a busca das causas finais (...) Temos o hábito de procurar essas causas entre os objetos da física e não entre os da metafísica (...) Essa inversão de ordem deu lugar a uma falha notável e introduziu um grande abuso na filosofia: essa mania de tratar das causas finais na física afastou dela e baniu a pesquisa das causas físicas. Fez com que os homens, apoiando-se em aparências, não se preocupassem com a busca das causas reais e verdadeiramente físicas; e isto, com grande prejuízo para as ciências (BACON, 1621 apud JAPIASSU, 1995, p. 109).

Ao criticar a filosofia metafísica tradicional e

também o pensamento mágico-alquímico que, de certo modo, postulava a transgressão da ordem da natureza por meio da magia, ele não está banindo a metafísica e seu campo de estudo. Porém, declara ser necessário realizar essa demarcação entre os objetos de estudo da física e da metafísica, já que o intelecto compreende e opera de modo a não recair em erros, apenas quando observa aquilo que é de natureza empírica, pois, caso contrário, ele incorre em antecipações que rapidamente ascendem para altos graus de generalização.

Para obter progresso na ciência, o que, para Bacon, implica se apropriar do conhecimento das leis da natureza, é imprescindível que um rigor metódico seja aplicado em tal estudo, fazendo uso das capacidades racionais e experimentais. Ao passo que o homem, colocando-se como submisso, posteriormente, torna-se dominador e, somente desse modo, a produção técnica se torna possível, visto que ela se traduz na descoberta de novos recursos e inventos de caráter criativo.

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3.2 A TEORIA DAS TÁBUAS NO MÉTODO BACONIANO

Na teoria das tábuas elaborada por Francis Bacon,

cuja finalidade seria, acima de tudo, a descoberta das formas veladas na natureza, está presente a maior evidência no que tange ao distanciamento que o filósofo realizou em relação às teorias tradicionais. Portanto, temos no método indutivo experimental baconiano algo que até então não havia sido ousado por nenhum filósofo, o ato de pensar um procedimento organizado e sistemático, tendo em vista a fundação de axiomas fundamentados pela empiria.

O trabalho que deve executar o intelecto conjugado às operações experimentais são as ferramentas primordiais para se executar o método indutivo experimental. Ora, de acordo com Rossi (2006), o intelecto, para bem operar, deve ter diante dele um modelo organizado de conteúdo, pois, do contrário, devido à variedade dos mesmos, encontrar-se-ia desorientado e, assim, não poderia realizar operações eficazes que seriam o verdadeiro objetivo do método indutivo experimental baconiano. O autor adverte: “Em primeiro lugar, com efeito, deve-se preparar uma História Natural e Experimental que seja suficiente e correta (exata), pois é o fundamento de tudo o mais. E não se deve inventar ou imaginar o que a natureza faz ou produz, mas descobri-lo” (BACON, 1999, p. 109).

O filósofo visa primeiramente efetuar uma coleção de conteúdo, isto é, reunir, numa história natural, observações acerca dos fenômenos da natureza que se pretende pesquisar. Contudo, que sejam fatos empiricamente constatados e não apenas meras deduções realizadas pelo intelecto, para que, posteriormente, ao submeter os conteúdos da história natural sob o ordenamento das tábuas, seja possível dar andamento no procedimento experimental. Portanto, primeiro é preciso ter uma satisfatória fundamentação de

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fatos recolhidos e oriundos das observações dos fenômenos mais variados presentes na natureza.

Após o recolhimento das observações e a constituição da história natural, tem-se o primeiro passo, ou a primeira tábua instituída por Bacon, a qual ele intitulou como a tábua de presença. Esta, por sua vez, deveria expor diante do intelecto todas as instâncias que se apresentam num primeiro momento como enquadradas em uma mesma revelação de natureza, ainda que sejam diferentes no que tange à sua constituição material (BACON, 1999).

Em sua obra o Novum Organum, Bacon (1999) usa o exemplo em que a forma do calor está sendo investigada, qual seria a sua lei, ou o que seria indispensável para sua existência. Para tanto, o filósofo, na primeira tábua, a de presença, elenca algumas instâncias que apresentam a natureza do calor, como, por exemplo, os raios do sol, sobretudo, no verão e ao meio-dia, as chamas de todas as espécies, líquidos ferventes ou aquecidos, todos os corpos cobertos por pelos, como a lã, os pelos dos animais, todo corpo que tenha um forte atrito, como a pedra, a madeira, os lemes, ou os eixos das rodas que, às vezes, provocam chamas, as ervas verdes e úmidas, juntadas e amassadas, como as rosas, comprimidas nos cestos, como o feno que, guardado úmido, às vezes produz fogo.

Como visto acima, o método indutivo experimental baconiano visa uma pesquisa acurada e abrangente sobre a natureza ou forma a ser investigada e isso se torna mais explícito na segunda tábua estatuída pelo filósofo, a qual ele denominou de tábua de ausência. Esta última se refere ao elenco das instâncias que, de certa maneira, são semelhantes àquelas enumeradas na primeira tábua, mas que não trazem consigo a natureza investigada:

[...] como na tábula praesentiae devem-se enumerar casos diferentes nos quais se apresenta um mesmo fenômeno (no exemplo baconiano: o calor), na tabula

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absentiae devem-se enumerar casos semelhantes aos enumerados na tabula praesentiae, nos quais o fenômeno estudado (o calor) não existe (ROVIGHI, 1999, p. 27).

De igual modo, Bacon também faz uma listagem

das instâncias eleitas como ausentes da natureza do calor que, embora sendo semelhantes em certos aspectos, não manifestam a existência do mesmo. Portanto, seriam os raios da lua, das estrelas, dos cometas, a ausência de calor nos corpos dos insetos, os líquidos em estado natural e também o fraco reflexo dos raios do sol nas regiões próximas aos círculos polares (ROSSI, 2006). Cumpre também notar que a finalidade de se elencar as instâncias nas quais não se observa a existência do calor, além de ser um meio para se excluir os casos que são semelhantes, mas não correspondentes com a natureza pesquisada, é também um modo de buscar entender o porquê de algumas instâncias, como os líquidos que são potencialmente inclinados a manifestar o calor, como no caso da fervura.

Feita a enumeração das instâncias na tábua de presença, bem como na tábua de ausência, por conseguinte, tem-se a tábua de graus ou de comparação. Nesse terceiro passo, o principal objetivo do método é dar início ao princípio da exclusão, a fim de poder afunilar a pesquisa, orientando-a para o objetivo final, a descoberta da forma. Bacon propunha, neste terceiro passo, analisar os modos como o calor se manifesta em cada instância recolhida nas tábuas de presença e ausência, visto que, nesta última tábua, grande parte dos casos não manifesta o calor de um modo mais evidente aos sentidos, entretanto, possuem capacidade para gerar o calor; portanto, necessitam de um exame mais atento.

A terceira regra recolhe os fatos em que a natureza do calor cresce ou diminui. Bacon lista, entre outros: o acréscimo do calor produzido nos animais pelo

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movimento, pelo vinho, pela febre do acoplamento; as diferenças de calor nas diversas partes do corpo humano (cérebro, estômago, coração, sangue, esperma etc.) (ROSSI, 2006, p. 401).

Ainda no tocante à pesquisa sobre a forma, ou a lei

que rege o calor, o filósofo, após ter submetido a mesma ao ordenamento das tábuas, conclui que a lei essencial e indispensável do calor seria o movimento. Não significa afirmar que o calor é gerador do movimento, ou que o movimento seja gerador do calor, muito embora haja uma espécie de relação equivalente a esta entre os dois. Porém, ao sustentar isso, Bacon apenas está sendo cauteloso para não causar confusão em relação à inferência à qual chegou, nesse caso, seria a de que o calor em si, sua forma ou lei é o movimento. No entanto, também não é possível postular que a transmissão do calor seria a presença de sua forma, já que, para Bacon, há certa distinção entre aquilo que é quente e aquilo que se esquenta. Dessa maneira, ao se constatar que o calor que está presente em um dado objeto assim se encontra devido à aproximação deste a algo quente, não significa afirmar a presença da forma do calor em tal objeto aquecido, mas a expansão ou a multiplicação do próprio calor (BACON, 1999).

Considerando, portanto, que o movimento seria a conclusão com a qual se deparou o filósofo como sendo a forma, ou a lei do calor, temos, então, uma primeira hipótese sobre a natureza estudada, aquilo que Bacon denominou de a “primeira vindima da forma do calor”. Entende-se por primeira vindima o resultado de uma primeira etapa de observações realizadas que culminaria em uma primeira conjectura. Porém, o procedimento não se encerraria nessa etapa, porque, tendo uma hipótese, o passo seguinte seria efetuar experimentos a partir dos casos em que se constatou o movimento como forma do calor, cuja intenção seria averiguar a veracidade de tal

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conjectura, para que, posteriormente, fosse possível fundar um axioma.

A proposta de indução experimental baconiana seria um procedimento bem complexo e que ocorreria de modo gradativo até o objetivo final que seria a descoberta das formas. No entanto, cabe notar que o conceito de forma em Bacon é algo totalmente distinto da perspectiva sustentada no Período Antigo e Medieval, sobretudo, em relação ao conceito de Aristóteles. 3.3 O DISTANCIAMENTO ACERCA DA CONCEPÇÃO DE FORMA BACONIANA EM RELAÇAO À ARISTOTÉLICA

No tocante à questão da técnica, um dos principais

objetivos do filósofo Francis Bacon é conseguir, por meio da aplicação do método indutivo experimental, descobrir em que consistem as formas das naturezas quando são estudadas. Atingir o conhecimento sobre a forma de uma natureza é algo que se distancia da concepção tradicional que envolve a perspectiva aristotélica de forma. Desse modo, para melhor compreensão daquilo que Bacon aponta como conhecimento técnico, é imprescindível o entendimento sobre o seu pensamento referente ao que vem a ser a forma encontrada em uma natureza específica. Contudo, antes de adentrar na ótica baconiana sobre o conhecimento das formas, também é interessante expor a visão aristotélica, a fim de abstrair em quais aspectos as duas perspectivas divergem.

Para o filósofo grego, a dinâmica revelada na natureza, no que diz respeito à geração e corrupção dos corpos, apresenta nos seres um processo de transformação que paulatinamente vai ocorrendo. É possível notar que existem certas características num ser1

1 “O conceito de ser, que ocupou um lugar central no pensamento de muitos filósofos, tem aspectos muito diversos, entre outras razões pelos modos como foi expresso linguisticamente. Alguns falam de ‘ser’, outros

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em um dado momento, porém, tais características tendem a se alterarem com o passar do tempo, demonstrando, assim, que deve existir uma causa à qual se atribui as modificações presentes de modo geral na natureza.

No entanto, Aristóteles não sustenta a existência de apenas uma causa para explicar as transformações presentes na natureza. Ele elabora a teoria das quatro causas que se especificam da seguinte maneira: a causa formal, que pode ser entendida como a essência daquilo que existe; a causa material que, por sua vez, é o constituinte material das coisas, do que elas são feitas; a causa eficiente ou motriz que é responsável pelo movimento e as alterações dos corpos; e, por fim, a causa final que alude ao fim para o qual as coisas seguem, segundo Aristóteles, seria o bem ou a finalidade a que devem atingir. Todo esse processo dinâmico envolvendo o devir2 é esclarecido por Aristóteles por meio da teoria das quatro causas (REALE, 2001).

de ‘o ser’ (ou ‘o Ser’), outros de ‘é’. Desde muito cedo se enfrentou a questão de se é preciso entender ‘ser’ no sentido da cópula ou no chamado “sentido existencial”. Se ‘ser’ é entendido como cópula, então requer a menção de alguma propriedade, qualidade, relação etc. Em ‘x é branco’, ‘e’ expressa o fato de x ser branco. Não se pode então dizer

simplesmente ‘é’, porque, como às vezes se percebeu, cabe perguntar “é o que?”. Se ‘é’ é entendido no sentido existencial, então se entende por ‘é’ algo assim como “existe”, ‘x é’ quer dizer neste caso ‘x existe’. Mas para dizer que x existe não é preciso dizer que é; pode-se dizer, é claro, que existe, e pode-se dizer também que “há x”, isto é, quantificar x existencialmente (ou particularmente). [...] Aristóteles afirma que (para usar a versão tradicional) “o ser se diz de muitas maneiras”. Isso equivale a distinguir sentidos de ‘ser’ como “ser por acidente”, “ser por si mesmo ou de acordo com as categorias”, “ser” como em ‘é verdadeiro’ e ‘é falso’ e “ser” como em ‘é potência’ e ‘é em ato’” (MORA, 2001, p. 2655). 2 Em Heráclito: teoria do devir universal – nenhuma coisa permanece igual a si própria, mas está sujeita a uma perpétua mudança. Em Aristóteles: atualização da potência. Se devir para uma coisa, é passar de um estado a outro, então é necessário que esta, ao transformar-se, se torne no que ainda não é, isto é, outra coisa diferente, mas ainda que de certa forma se conserve (CLÉMENT et al, 1999, p. 97).

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Com efeito, é evidente que, se considerarmos determinado homem estaticamente (ou seja, como ente já perfeitamente realizado), ele se reduz à sua matéria (carne e ossos) e à sua forma (alma); mas se o considerarmos de outro modo e perguntarmos: “como nasceu”, “quem o gerou”, “por que se desenvolve e cresce”, então impõem-se duas razões ou causas ulteriores: a causa eficiente ou motora, isto é, o pai que o gerou, e a causa final, ou seja, o fim ou o escopo ao qual tende o devir do homem (REALE, 2001, p. 53-54).

Tendo visto o modo como Aristóteles elabora a

teoria das quatro causas, é necessário também compreender como elas estão presentes em um ser e o modo como agem. De acordo com Chaui (2002), o estagirita afirma existir três princípios substanciais. Aristóteles define o primeiro princípio como a matéria pura que se encontra indeterminada, é o substrato apto a acolher certas determinações, já que, nesse estágio, ainda não as possui. O segundo princípio substancial especifica como sendo a forma. Esta, por sua vez, é a essência que determinará a matéria. O terceiro princípio substancial é identificado como a substância intermediária, sendo uma espécie de composição de matéria e forma. Portanto, a matéria pura que outrora estava indeterminada agora recebe as determinações e propriedades provindas da forma, enquanto essência e definição do ser. Desse modo:

Visto que a substância é causa, a matéria é a causa material dos seres naturais e a forma, a causa formal desses seres. A forma individualiza a matéria ao determiná-la com propriedades ou atributos, conferindo-lhe uma essência determinada. Essa causalidade da forma ou causalidade formal é o que leva Aristóteles a afirmar que a causa formal é o princípio de produção dos seres, isto é, da essência deles (CHAUI, 2002, p. 392).

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A partir da constatação de que matéria e forma

concedem existência, enquanto individuação, aos seres presentes na natureza, Aristóteles esclarece que a tripartição realizada anteriormente, no que se refere aos princípios substanciais, é somente um meio pelo qual o pensamento consegue entender a realidade, abstraindo a presença de uma substância material e formal na composição de um ser que, conceitualmente, estão separadas pelo intelecto, mas, na realidade, compõem uma única substância. O filósofo intenta demonstrar que não há a possibilidade de subsistência da matéria pura e indeterminada ou da forma pura, sem o substrato material, de modo que a definição dos seres na natureza, enquanto espécie e gênero, é delimitada essencialmente a partir da união substancial de matéria e forma. Somente desse modo, é possível constatar, na realidade, as especificações e peculiaridades dos seres (CHAUI, 2002).

Chauí elucida o modo como ocorre o princípio de individuação:

A matéria pura, indeterminada, recebe a forma ou as formas. Ao receber a forma, organiza-se nos quatro elementos do sensível (quente, frio, seco, úmido), que se determinam sob o aspecto da qualidade, da quantidade, do lugar, do tempo, da relação, da posição, da ação e da paixão, isto é, recebem como propriedades as demais categorias. Essa matéria já informada, ou seja, qualificada e quantificada, localizada e temporalizada, chama-se matéria segunda e é ela que Aristóteles considera um princípio de individuação dos seres juntamente com a forma, isto é, um indivíduo surge quando formas cada vez mais determinadas se inscrevem na matéria segunda (CHAUI, 2002, p. 393).

Além da causa material e formal, como já

mencionado anteriormente, há também a causa eficiente e a causa final. A causa eficiente é a responsável pela constatação de que os seres estão em devir, isto é, em movimento e alteração que se revela na transmutação da

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matéria. No entanto, segundo Chaui (2002), esse movimento é possível somente pela causa final; os seres estão em constante mudança, porque aspiram atingir o estado perfeito de sua forma, serem totalmente realizados ao alcançar a condição de imutabilidade, visto que estão em frequente movimento. Dado que os seres se encontram num estado de constante mutação, há que se admitir que exista neles algo que ainda não foi atualizado de modo pleno e é partindo desse pressuposto que a autora afirma:

Para compreendermos como Aristóteles explica a ação conjunta das quatro causas, precisamos, agora, examinar dois conceitos fundamentais da metafísica (e da física) aristotélica: o conceito de ato (enérgeia) e o de potência (dynamis). A forma de um ser é ato ou atualidade; é a enérgeia, a essência da coisa tal como ela é aqui e agora. A matéria de um ser é potência ou potencialidade, a dynamis, a aptidão ou a capacidade da coisa para o que ela pode vir a ser no tempo (CHAUI, 2002, p. 397).

Com efeito, infere-se que a forma, ao ser

depositada numa matéria, não está plenamente acabada, mas potencialmente inclinada a tornar-se aquilo que é em essência. Ou seja, todos os desdobramentos que podem vir a ocorrer já estão contidos na forma, ou, ato que amiúde se atualiza e demonstra na transformação da matéria a atualização daquilo que antes estava em potência, ou ainda, como virtualidade. Assim, a causa eficiente é aquela que unifica a causa material e a causa formal, provocando a atualização da forma que, potencialmente, é atraída pela causa final ao frequente movimento que envolve os desdobramentos já impressos na forma dada na matéria (CHAUI, 2002).

A partir da concepção aristotélica, temos o conhecimento da existência das quatro causas, uma delas é a causa formal, isto é, a essência do ser. Entretanto,

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tendo em vista que o universo no qual estava inserido Francis Bacon, a transição do Período Medieval para o Moderno, demonstrava interesse pelo avanço do conhecimento científico com a finalidade de servir a humanidade, o conhecimento acerca das quatro causas aristotélicas foi considerado, por Bacon, como simples atitude de contemplação perante a natureza. Embora ele mantenha os conceitos da tradição, com exceção da causa final, propõe certa reinterpretação dos mesmos. Porém, algo voltado para a experimentação e o contato direto com a natureza, reconhecendo os limites do intelecto humano que compreende somente aquilo que é de caráter factual. A partir disso, postula o autor:

Afirma-se corretamente que o verdadeiro saber é o saber pelas causas. E, não indevidamente, estabelecem-se quatro coisas: a matéria, a forma, a causa eficiente, a causa final. Destas, a causa final longe está de fazer avançar as ciências, pois na verdade as corrompe [...] A descoberta da forma tem-se como impossível. E a causa eficiente e a causa material (tal como são investigadas e admitidas, isto é, como remotas e sem o processo latente no sentido da forma) são perfunctórias e superficiais, em nada beneficiando a ciência verdadeira e ativa. Não nos esquecemos, porém, de antes ter notado e procurado sanar o erro da mente humana que consiste em atribuir à forma o afirmado da essência (BACON, 1999, p. 102).

Bacon critica o caráter tendencioso à metafísica

contido na teoria das quatro causas de Aristóteles. Quando se objetiva atingir um conhecimento pautado na empiria, as causas aristotélicas devem ser redirecionadas e tratadas de modo objetivo, de tal maneira que esteja presente a busca pelo entendimento do campo físico e sensível da natureza. Segundo Zaterka (2012), a causa final foi rechaçada pelo filósofo inglês, sendo que era, para Aristóteles, a mais importante, já que, em sua concepção, era ela o princípio metafísico primeiro que causava todo o

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movimento nos seres presentes na natureza, bem como era responsável pela harmonia existente no universo. Contudo, “operar com o âmbito teleológico3 na natureza é obstruir o estudo das outras causas envolvidas na realidade dos fenômenos da natureza, quais sejam, as causas eficiente e material” (ZATERKA, 2012, p. 685).

Ao relegar a causa final aristotélica, atribuindo-lhe um caráter fútil em termos de contribuição para o avanço do conhecimento científico, Bacon não se demonstra categórico e desdenhoso em relação à causa material e à causa eficiente. Todavia, o filósofo acrescenta ao estudo de tais causas um cunho experimental, cogitando um novo conceito, o qual ele denomina de esquematismo latente4. Este, por sua vez, seria o processo que acontece no âmago de uma natureza5, aquilo que, a princípio, os sentidos não conseguem atingir, sem empreender um árduo trabalho investigativo. Bacon acredita que um

3 Uma das quatro espécies de causa é, segundo Aristóteles, o que se chama “causa final”. Esta se distingue da causa eficiente, embora não seja em Aristóteles oposta a, ou incompatível com ela. Todas as espécies de “causa” colaboram na produção de uma realidade. Se reservarmos para a causa eficiente o adjetivo ‘causal’ e para a causa final nos limitamos a usar o adjetivo ‘final’, podemos recorrer aos vocábulos ‘causalismo’ e ‘finalismo’ para nos referirmos respectivamente às explicações causais e finais. Depois da introdução do termo ‘teleologia’, falou-se frequentemente de “teleologismo” em vez de “finalismo”. Aristóteles frequentemente tomou como modelo de explicação o comportamento de organismos. Isso o levou a prestar grande atenção a considerações do tipo “aquilo em vista do qual.” Essas considerações são de índole teleológica. Por esta razão o aristotelismo muitas vezes foi equiparado ao “teleologismo” (MORA, 2001, p. 2826). 4 O processo latente ao qual Bacon faz menção é também representado por outra expressão que seria o esquematismo latente, praticamente se equiparam e trazem a mesma conotação. Para Bacon, esse processo seria um conjunto de operações internas, que em boa parte escapa aos sentidos, e que faz com que uma substância passe de um estado para o outro (BACON, 1999, p. 101). 5 É importante ressaltar que o termo natureza ganha um sentido particular e não abrangente enquanto campo de estudo ao delimitar-se o objeto de investigação, como fora exposto anteriormente com o exemplo do autor sobre a investigação da forma do calor.

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estudo acurado acerca do esquematismo latente resultaria na descoberta da forma6 de uma determinada natureza. Afirma o autor:

O processo latente de que falamos está longe daquilo que pode ocorrer à mente dos homens, com as preocupações a que ora se entregam. Não o entendemos, de fato, como medidas, ou signos ou escalas dos processos visíveis dos corpos, mas como um processo continuado, que na maior parte escapa aos sentidos. [...] Por exemplo, em toda geração ou transformação de corpos, é necessário investigar o que se perde e volatiza; o que permanece ou se acrescenta; o que se dilata e o que se contrai; o que se une e o que se separa; o que continua e o que se divide; o que impele e o que retarda; o que domina e o que sucumbe; e muitas outras coisas (BACON, 1999, p. 106).

O interesse de Bacon em descobrir as formas

contidas nas variadas naturezas, bem como os seus esquematismos latentes transparece na inquietação do filósofo ao tentar desvendar a relação existente entre os aspectos externos que se apresentam numa natureza e os aspectos internos. Ele parte do princípio de que algo interno em uma natureza reflete em seu aspecto externo, de modo que há uma relação intrínseca entre os dois fatores, na qual um age sobre o outro, ou, ainda, o fator interno é a causa da manifestação externa das características de uma natureza. Bacon não realiza paralelos entre a teoria das quatro causas de Aristóteles com sua nova reinterpretação das causas, ele não está retomando o princípio do ato ou essência que determina e se atualiza potencialmente numa matéria, porém, partindo agora de uma contemplação operativa que visa ação sobre a natureza, Francis Bacon propõe a descoberta do funcionamento interno da natureza de um corpo a ser

6 O conceito de forma também pode ser entendido como natureza simples, ou lei que rege determinada natureza.

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estudado, ou a organização e o processo que, estando latente no mesmo, necessita ser conhecido (ZATERKA, 2012).

Com efeito, segundo Zaterka (2012), o acesso e a compreensão acerca da estrutura do esquematismo latente é algo que está em relação muito estreita com a descoberta da forma, pois esta, para Bacon, seria a organização interna contida em um corpo que esclarece os modos de operação que o mesmo apresenta. Dito de outra maneira, a forma seria a lei que rege o funcionamento ordenado e organizado de uma natureza e é justamente nesse ponto que o filósofo inglês ocasiona um afastamento radical em relação à concepção aristotélica da causa formal. Além de sustentar que a estrutura interna de um dado corpo, que, por sua vez, possui uma natureza, poderá ser constatada somente por meio do método indutivo que exige árdua prática de experimentos, Bacon, de certo modo, também rompe com princípios de ordem metafísica, como aqueles presentes na teoria de Aristóteles. Para o filósofo inglês, forma é a constituição da natureza, aquilo que é apenas possível de ser averiguado empiricamente. Algo que foge à instância do imanente não é eficaz quando se trata da construção de um conhecimento sólido e pautado na experiência.

Partindo do princípio de que as formas presentes nas diversas naturezas são mecanismos internos e, sobretudo, as leis que estruturam a organização de um determinado corpo, Bacon (1999) visa uma façanha que, de certo modo, é herança, ou mesmo influência, da alquimia: a partir do conhecimento do esquematismo latente e, consequentemente, da forma da natureza, poder transformar outros corpos por meio da introdução de outras naturezas neles. Bacon acena para uma espécie de decomposição dos corpos7 no sentido de identificar e

7 Bacon faz alusão para as várias naturezas e suas respectivas formas que estão presente num certo corpo e que ali se harmonizam. Portanto, o filósofo propõe a decomposição do mesmo tendo em vista a

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separar as naturezas, realizando comparações com outras espécies de naturezas extraídas de outras matérias, para efetuar a transformação de um corpo em outro. Encontramos, nesse ideal baconiano, apontamentos para a aplicação técnica do conhecimento, uma vez que, na condição de ministro e intérprete da natureza, o homem se apropria de um determinado tipo de conhecimento e possui a capacidade de gerar um novo a partir do uso da técnica que inclui, em sua base, a experimentação. 3.4 O ENTENDIMENTO DAS FORMAS COMO MEIO BASILAR DA REPRODUÇÃO TÉCNICA DO CONHECIMENTO

Tendo visto que Bacon, de certa maneira, concebe

o conceito de forma como algo distante da concepção de Aristóteles, temos uma ruptura com a metafísica teleológica do filósofo grego. O caráter finalístico que diz respeito ao movimento dos seres naturais em atingir a perfeição máxima ao serem atraídos por um ser transcendente, o qual Aristóteles intitulou de motor imóvel que tudo move, já não é suficiente para explicar cientificamente o que é a natureza, tampouco, é capaz de oferecer base aos propósitos inovadores do filósofo inglês. Cogitar a ideia da presença de uma lei, ou forma, numa dada natureza, implica compreender os meios pelos quais as leis de cada natureza se manifestam, ou ainda, constatar o que seria o esquematismo latente mencionado anteriormente.

Quando Bacon faz alusão aos processos latentes presentes nas naturezas a serem estudadas, ele está fazendo menção à necessidade de, por meio de

possibilidade de se realizar a demarcação de cada natureza simples que constituem um todo composto.

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experimentos, operar uma espécie de dissecação8 dos corpos, para que se desvele o esquematismo latente e, consequentemente, a descoberta da forma ou lei de uma determinada natureza. Está implícita nesses pressupostos baconianos uma nova visão de natureza que assume o arquétipo de uma máquina9 que deve ser estudada minuciosamente em seus mais variados aspectos.

8 “Ação de dissecar. Operação em que se separam cirurgicamente as partes de um corpo ou órgão; retaliação anatômica” (MICHAELIS, 1998, p. 738). 9 No século XVI a ideia de natureza passa por um processo de alteração, no que diz respeito ao modo como era concebida. “Galileu pede a engenheiros que nos descubram o verdadeiro sistema do mundo [...] a estrutura da Natureza e, conjuntamente, a estrutura da sociedade vão sofrer uma remodelação completa; o engenheiro conquista a dignidade de sábio, porque a arte de fabricar tornou-se o protótipo da ciência. O que comporta uma nova definição do conhecimento, que já não é contemplação, mas utilização, uma nova atitude do homem perante a Natureza: ele deixa de a olhar como uma criança olha a mãe, tomando-a por modelo; quer conquistá-la, tornar-se <<dono e senhor>> dela. Descartes, Galileu, Gassendi, tem doravante por evidente que conhecer é fabricar e que a Natureza nada mais faz do que realizar em

ponto grande o que nós podemos obter por pormenores e à nossa escala, graças ao nosso engenho de técnicos. Longe de desprezar as experiências de laboratório, querem agora multiplicá-las: com elas, dirá Pascal, <<vão multiplicar-se (crescer) os princípios da nossa física>>, pois a verdade sobre a Natureza reside nessas experiências e não nos raciocínios sobre as essências. Não só se deixa de temer a cólera divina por esta violação da natureza como se crê que Deus nos deu a missão de trabalhar à sua imagem, de construir o mundo no nosso pensamento como ele o criou no seu, fornecendo as suas leis. O físico da Idade Média eleva-se a Deus descobrindo as intenções, as finalidades da Natureza, o físico mecanicista eleva-se a Deus penetrando o próprio segredo do Engenheiro divino, colocando-se no seu lugar para compreender com ele a forma como o mundo foi criado. Para que esta substituição se tornasse possível, seria preciso que a Natureza perdesse essa finalidade que os antigos filósofos julgavam encontrar nela, e talvez mais ainda essa espontaneidade indefinida que os pensadores do Renascimento admiravam. É preciso que ela seja simplesmente uma máquina. Ora Galileu, que tem por mestres Demócrito e Arquimedes, acabava de escrever que <<o grande livro da Natureza está escrito em linguagem matemática>>. Descartes descobre finalmente – aliás pelos seus próprios meios – a verdadeira

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Em vista disso, a separação e solução dos corpos não devem ser feitas pelo fogo, mas pela razão e pela verdadeira indução, com auxílio de experimentos; e por meio da comparação com outros corpos e pela redução a naturezas simples e as suas formas que se juntam e combinam num composto [...] trazer à luz as verdadeiras contexturas dos corpos e os seus esquematismos, de que dependem todas as propriedades ocultas, e, como se costumam chamar, propriedades e virtudes específicas das coisas e donde, também, se retiram as normas capazes de conduzir a qualquer alteração ou transformação (BACON, 1999, p. 107).

Bacon objetiva, de fato, atingir a compreensão do

funcionamento das leis que estão presentes em determinadas naturezas. Para tanto, corrobora como imprescindível realizar a redução dos corpos em suas mais sutis características, que seriam as naturezas simples10 que compõem ou constituem um corpo. Com efeito, encontrar e especificar as naturezas simples responsáveis pela compleição de um corpo não seria uma operação simples de realizar, mas, em contrapartida, uma tarefa complexa que exigiria um trabalho paulatino e acurado.

O método requer, portanto, que se proceda a uma análise e a uma obra de seccionamento dos particulares de modo que eles, mediante sucessivas inclusões e exclusões, possam ser “reduzidos a um ponto definido”. Este, segundo Bacon, é o que compreenderam os seguidores do método tradicional: eles, recusando a análise e o seccionamento, fizeram uso de um tipo

utilização das matemáticas, que continuava a ser desconhecida nas Escolas: uma vez que a Natureza é matemática, as matemáticas são o esqueleto certo e sólido da física (LENOBLE, 1969, p. 260-261). 10 O termo natureza simples que também é usado pelo autor para se referir à forma, indica que é possível coexistir num mesmo corpo vários tipos de formas, no qual cada uma delas poderia estar sendo responsável por certo tipo de efeito.

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grosseiro de indução e se dedicaram à produção imediata de efeitos, tendo em vista o uso corrente e deixando de lado a construção de axiomas científicos (ROSSI, 2006, p. 389).

Segundo Rossi (2006), Francis Bacon parte da

ideia de que, para se fundar verdadeiros axiomas, é preciso do amparo da empiria bem orientando a atividade intelectual, para alcançar resultados acerca dos efeitos presentes nas naturezas. Ora, os efeitos não podem ser conhecidos se não por um processo de seccionamento11, como dito na citação acima, pois é por meio de tal análise que se pode conhecer a relação intrínseca de uma determinada natureza e o efeito que ela mesma produz, de modo que os efeitos, ao serem constatados, num primeiro momento, isto é, antes do procedimento de secção, não são conhecidos ao certo em sua origem. Mas, após o seccionamento, na análise efetuada sobre um determinado corpo, deparamo-nos com um determinado número de elementos, ou naturezas simples, que ali estão compondo uma organização física. Sem a realização do processo de seccionamento, não seria possível revelar qual natureza ou elemento é responsável pela causa de determinado efeito.

Torna-se evidente a preocupação de Bacon em lograr em específico as verdadeiras causas geradoras dos efeitos presentes nas naturezas para se fundar os axiomas científicos; devemos nos questionar sobre os motivos que o levaram a pensar sobre isso. Ora, quando o objetivo de uma pesquisa acerca de específica natureza visa não somente estabelecer axiomas, mas também efetivar a reprodução de tal conhecimento de modo técnico, torna-se necessário constatar a origem dos efeitos e suas respectivas causas, pois, segundo o autor: “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa

11 “Ato ou efeito de secionar. Dividir em seções. Cortar, separar parte ou órgão do corpo” (MICHAELIS, 1998, p. 1904).

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ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática” (BACON, 1999, p. 33).

O filósofo busca um meio para definir, a partir do estudo de casos particulares, qual a correspondência existente entre uma determinada natureza e um determinado efeito que fora engendrado. Esse estudo seria levado a efeito a partir do processo de seccionamento, no qual um corpo seria estudado em seus pormenores. Bem como, um estudo em que vários casos particulares seriam analisados e submetidos a um processo de inclusão e exclusão, não apenas os casos positivos em que se manifestam a natureza pesquisada, mas também os casos negativos em que se constataria a ausência da natureza e, consequentemente, a ausência do efeito. Desse modo, os efeitos poderiam ser definidos e se saberia qual o modo para se atingir a sua reprodução técnica, já que teria sido encontrada a ligação correspondente entre a natureza e o efeito (ROSSI, 2006).

Bacon acena para a reprodução técnica do conhecimento a partir da descoberta das formas ou leis, bem como os efeitos que estas têm a capacidade de produzir. Além disso, ele se apropria de algumas regras referentes ao saber científico do pensamento de Ramus12

12 “As três leis ou regras que derivam dessas características do saber científico são as seguintes, para Ramus: 1) a lei da verdade ou da certeza, segundo a qual cada noção científica deve ser verdadeira em qualquer caso e em qualquer tempo (verdadeira necessariamente) e apresentar-se como universalmente evidente. Esta lei tem o escopo de excluir o erro do saber científico; 2) a lei da justiça, segundo a qual cada noção científica deve ser homogênea e participar dos fins e dos domínios de uma arte particular. Esta lei tem a finalidade de estabelecer o campo de qualquer ciência isolada, garantindo ao mesmo tempo sua homogeneidade; 3) a lei da prudência, segundo a qual as proposições científicas devem ser, não somente necessariamente verdadeiras e homogêneas, mas também convertíveis e a convertibilidade, conforme foi visto, está ligada justamente à universalidade do predicado” (ROSSI, 2006, p. 392-393).

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que serviram de aporte para que elaborasse ou realizasse uma espécie de reinterpretação que resultou no princípio da certeza ou direção certa e também no princípio de direção livre. Eles seriam primordiais para definir o caminho a percorrer em termos de indução experimental e atingir a produção almejada dos efeitos, ou seja, a reprodução técnica do conhecimento.

De acordo com Rossi (2006), no que diz respeito à regra da certeza ou direção certa, Bacon está retomando a regra da verdade de Ramus. Para Bacon, a direção certa deve ser infalível, de modo que seja capaz de direcionar para a conclusão acerca de algo que, indubitavelmente, resultará no efeito esperado. Tal princípio exclui as possibilidades de erros ou de empresas frustradas, devido ao fato de que a operação obterá sucesso ao seguir por um caminho que, de antemão, já é tido como eficaz para realizar aquilo que é pretendido.

A direção livre, por sua vez, é a regra que corresponde à lei da prudência na teoria ramista. Neste princípio, Bacon reforça a ideia de reciprocidade que deve existir entre a direção e o efeito a que se quer chegar, de modo que, estando presente o efeito, a direção que levou a tal resultado deve ser satisfatória e contundente, ao passo que, tendo-se certa direção, esta deverá levar a unívoco resultado. A regra da liberdade de direção contempla o fundamento da reciprocidade e também o da convertibilidade do efeito e da direção, uma direção só poderá ser considerada livre quando, ao lado dela, não houver outros meios de produzir o mesmo efeito, dado que isso pode vir a ocorrer (ROSSI, 2006), por exemplo:

Além da mistura do ar com a água, existem outros meios de se produzir a brancura. Esta primeira direção indicada não é livre justamente pelo fato de ser particular e porque, ao lado dela, existem outros caminhos e outras direções. A direção pode vir a ser “libertada” da água e é possível mover-se numa segunda direção obtendo, por exemplo, a brancura da mistura do ar com

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um corpo transparente (um cristal reduzido a pó, uma clara de ovo que recebe ar da agitação ou do cozimento). Uma terceira direção pode excluir ou remover a limitação (restraint) do corpo incolor, como no caso do âmbar que, quando pulverizado, aparece como branco, ou então da espuma da cerveja etc. (ROSSI, 2006, p. 394-395).

A regra da direção livre aparenta ser um tanto

quanto complexa, visto que, segundo Rossi (2006), no exemplo dado pelo filósofo, ele expõe vários modos de se obter o efeito da brancura. Contanto, seu objetivo é mais audacioso e almeja compreender qual seria a forma da brancura, aquilo que é essencial e indispensável para se obtê-la; ou ainda, retomando a ideia de reciprocidade, abstrair que, estando presente a brancura, uma natureza em específico deve também estar presente, sendo esta a causadora do efeito observado. O principal objetivo de buscar uma direção que seja livre é encontrar uma verdade sobre dada natureza ou, ainda, alcançar o descobrimento da sua forma, por meio de um procedimento de exclusões, porque, ao se chegar a tais verdades, o caminho a ser trilhado seria certo. Portanto, “atente-se para isto: o nosso caminho não é plano, há nele subidas e descidas. É primeiro ascendente, em direção aos axiomas, é descendente quando se volta para as obras” (BACON, 1999, p. 80).

Como visto, a perspectiva baconiana insta pela ideia da necessidade de se descobrir as formas ou leis presentes na natureza, algo que, para o filósofo, em teoria, seria primordial para se reproduzir o conhecimento de modo técnico posteriormente, porém somente após a fundação de axiomas respaldados pela empiria metódica. Essa operação empírica envolve todo um procedimento bastante complexo que inclui o processo de seccionamento, no qual se visa detectar as naturezas simples constituintes de um corpo e, ademais, os

188 Conhecimento...

respectivos efeitos que estas seriam responsáveis por causar.

Dessa maneira, conhecendo o efeito causado por certa natureza, descobre-se a relação recíproca que há entre eles, o que indica que a presença de um implica também a presença do outro, dado que a certeza da direção estaria estabelecida após um meticuloso processo de exclusões que resultaria no desvelamento das formas das naturezas. Esse procedimento, ou o método indutivo experimental que contempla a descoberta das formas e que teria por segmento o uso das tábuas instauradas por Bacon, a de presença, de ausência e de graus, possui um único fim, o de compreender em pormenores o funcionamento das variadas naturezas e, a partir de tal compreensão, realizar empresas de caráter criacionista e inovador aplicando o conhecimento obtido. Portanto, essa aplicação do conhecimento adquirido na natureza enquanto campo investigativo é o que Bacon depreendeu sobre a técnica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DA SEGUNDA PARTE Ao concluir este trabalho, tendo por base o

pensamento do filósofo Francis Bacon, é notório que, a partir dos propósitos do autor que aludiam para a necessidade de um salto significativo referente ao conhecimento científico, cuja finalidade era fazer deste último algo útil para a sociedade e que atendesse às necessidades de cunho prático da mesma, é possível compreender os motivos pelos quais atacou ferrenhamente o pensamento do Período Antigo e do Período Medieval.

Se, para o autor inglês, a empiria metódica seria a base pela qual se construiriam os axiomas científicos, o pensamento de Aristóteles não estaria apto a atender tais requisitos, visto que o filósofo grego imputou ao método silogístico o caráter eminente de fundamento do conhecimento. Para Bacon, isso somente atravancou o processo de avanço das ciências empíricas, já que, embasado sobre as faculdades do intelecto, o silogismo atingia altos graus de generalização, o que envolve o caráter universal. Ainda que Aristóteles tenha acenado para o silogismo denominado por ele de científico, o que não deixa de fazer alusão a uma espécie de indução, o caráter universal prevalece e isto foi motivo suficiente para que Bacon desdenhasse o pensamento do filósofo grego, haja vista que não encontrou nele os parâmetros que coincidissem com seu ideal de investigação científica.

A mesma crítica baconiana ao Período Antigo voltou-se para os medievais, tendo em vista que estes também sofreram o influxo do pensamento aristotélico, o que gerou entre eles certa preocupação com a sutileza de linguagem que, consequentemente, descortinava novamente a exaltação às faculdades do intelecto e a precisão da arte argumentativa em detrimento da indução experimental. A preocupação apenas com as definições e

190 Conhecimento...

a demonstração lógica, conforme Bacon, pouco contribuiu para o respaldo do conhecimento científico enquanto empírico.

No tocante ao pensamento mágico-alquímico, como vimos, o autor sofreu grande influência, no que diz respeito a alguns princípios e, até mesmo, a ideia de transformar determinados tipos de metal em ouro. Contudo, ainda assim, ele não deixa de tecer seus ataques à magia, pois os alquimistas atribuíram certa relevância à experimentação, mas não o fizeram de modo adequado. Muitos dos experimentos que realizavam ocorriam ao acaso, não se tinha clareza daquilo que se estava efetuando e, para além, acreditavam em poderes sobrenaturais que transgrediam a ordem natural presente na natureza. Desse modo, é possível perceber que, mesmo no período no qual Bacon estava situado, de transição que adentrava os átrios da modernidade, não foi possível encontrar uma proposta equiparada à dele, qual seja, o ideal de submeter a sistematização à empiria como recurso para a investigação científica.

O método indutivo experimental teorizado por Francis Bacon traz consigo pressupostos e diretrizes que visam conjugar o racionalismo e o empirismo, ou seja, criar um meio pelo qual as duas correntes poderiam se harmonizar e serem aplicadas na busca pelo entendimento acerca da natureza. Como consequência, teríamos a descoberta das formas às quais Bacon fazia alusão, uma vez que a finalidade do método seria esta. De acordo com o autor, somente a partir do desvelamento das formas ou leis presentes nas mais variadas naturezas se poderia, ulteriormente, realizar a reprodução técnica do conhecimento. Entretanto, seria necessário ter o conhecimento da direção certa a se percorrer, a fim de que erros fossem evitados e os resultados fossem satisfatórios.

Diante disso, não se pode negar que a teorização do método indutivo que contempla, primeiramente, o recolhimento dos mais variados casos que apresentam o

Considerações finais da segunda parte 191

objeto de estudo a ser pesquisado e a submissão destes ao crivo das tábuas de presença, ausência e graus de comparação, seja algo um tanto complexo. O próprio autor admitiu que enumerar todos os casos existentes pelo mundo seria algo impossível. Ademais, a teoria das formas que deveriam ser descobertas nas mais diversas naturezas também foi uma cogitação de caráter fictício e até mesmo fantasioso, visto que, ainda que sutil, há, nesse aspecto do pensamento de Bacon, influências furtivas do pensamento mágico-alquímico. Isso nos leva a inferir que o entendimento acerca da reprodução técnica do conhecimento a partir do descobrimento das formas seria apenas uma conjectura que, por sua vez, não poderia ser levada a efeito.

No entanto, longe de atribuir a Bacon certa escassez de originalidade, cumpre notar que, mesmo reconhecendo as influências recebidas pelo autor em seu pensamento, o ideal de submeter a empiria a um rigor metodológico encontra sua origem na teoria baconiana. É possível afirmar que, a partir de Francis Bacon, temos contribuições significativas para compreender que, se, de fato, o homem deseja entender a natureza e dela extrair algum tipo de conhecimento, é imprescindível a ação cautelosa no agir sobre ela, porque, somente tendo por base o feito de experimentos bem orientados e adequadamente realizados, é possível alcançar avanços significativos em relação ao conhecimento científico e, consequentemente, ao conhecimento técnico. O principal aspecto que podemos destacar na teoria baconiana, referente à sua proposta de investigação científica, é o rigor metodológico que ele apresenta como indispensável para fazer do saber científico uma espécie de amparo à vida prática do homem.

192 Conhecimento...

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Referências da segunda parte 197

OS ORGANIZADORES

198 Conhecimento...

ADEMIR MENIN é Mestre em Filosofia pela Pontificia Universidade Gregoriana de Roma-PUG (2013).

Especialista em Letras (Estudos Linguìsticos e Literàrio) pela Universidade Estadual do Norte do Paranà-UENP (2010).

Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE (1995).

Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma-PUU (1999).

Atualmente é professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.

Referências da segunda parte 199

José Francisco de Assis Dias, é Professor Adjunto da

UNIOESTE, Toledo-PR; professor do Mestrado em Gestão

do Conhecimento nas Organizações, na UNICESUMAR;

pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação e Gestão”

e do Grupo de Pesquisa “Ética e Política”, da UNIOESTE,

CCHS, Toledo-PR. Doutor em Direito Canônico pela

Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano,

Roma, Itália; Doutor em Filosofia também pela mesma

Pontifícia Universidade; Mestre em Direito Canônico

também pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana;

Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade;

Especialista em Docência no Ensino Superior pela

UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela Universidade

de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela

UNICESUMAR. Pesquisador do Instituto Cesumar de

Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail:

[email protected]

200 Conhecimento...

Prof. Pe. Leomar Antonio Montagna possui Mestrado

em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do

Paraná PUCPR;

Curso de Especialização, ênfase em Ética, também, pela

Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR;

Pós-Graduação em História do Pensamento Brasileiro

pela Universidade Estadual de Londrina UEL;

Reconhecimento de Graduação em Filosofia pela

Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE;

Graduação em Teologia pelo Instituto Teológico Paulo VI

de Londrina;

Referências da segunda parte 201

Graduação em Ciências: Licenciatura de 1º Grau pela

Fundação Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de

Mandaguari FAFIMAN e Curso de Graduação em Filosofia

pelo Instituto Filosófico Arquidiocesano de Maringá

IFAMA.

Presbítero da Arquidiocese de Maringá, Pe. Leomar

Antonio Montagna, atualmente, é membro e Coordenador

do Conselho de Presbíteros, Diretor e Professor do Curso

de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade

Católica do Paraná (PUCPR) Câmpus Maringá;

Foi Professor convidado da Faculdade Missioneira do

Paraná (FAMIPAR) de Cascavel;

Assessor e Professor da Escola Teológica Para Cristãos

Leigos da Arquidiocese de Maringá.

Membro do Conselho Editorial da Editora Humanitas

Vivens LTDA – Editora On-line, nesta, publicou a sua

principal obra: “A Ética como Elemento de Harmonia Social

em Santo Agostinho”.

Autor de vários artigos para revistas e jornais, palestras e

cursos de breve duração.

Na área de Filosofia, atua, principalmente, nos seguintes

temas: Filosofia, Ética, Filosofia Política, Santo Agostinho,

História da Filosofia e História do Pensamento Brasileiro e

Latino-americano.

Na área de Teologia tem experiência em Moral Social e

Doutrina Social da Igreja.

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Referências da segunda parte 203

204 Conhecimento...