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2 Autonomia e educação

AUTONOMIA E EDUCAÇÃO Temas Filosóficos

4 Autonomia e educação

Imagens da capa: https://pixabay.com/pt/terra-livro-m%C3%A3o-globo-educa%C3%A7%C3%A3o-2434001/

Ademir Menin José Francisco de Assis Dias Leomar Antonio Montagna

(Organizadores)

AUTONOMIA E EDUCAÇÃO Temas Filosóficos

Primeira Edição E-book

Toledo - PR 2017

6 Autonomia e educação

Copyright 2017 by Organizadores EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Prof. Daniela Menengoti Ribeiro - UNICESUMAR Prof. José Beluci Caporalini - UEM

Prof. Lorella Congiunti – PUU - Roma REVISÃO ORTOGRÁFICA:

Prof. Ivan Vieira da Silva CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Editora Vivens Ltda. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores.

Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida!

Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596

http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Autonomia e educação: temas filosóficos.

A939 / organizadores Ademir Menin, José

Francisco de Assis Dias, Leomar Antonio

Montagna. – 1. ed. e-book – Toledo, PR:

Vivens, 2017.

156 p.:il; color.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-36-8

1. Filosofia. 2. Educação. 3. Estética. I.

Título.

CDD 22. ed. 100

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ..................................................................... 9 PRIMEIRA PARTE: O CONCEITO DE AUTONOMIA E DE EDUCAÇÃO EM FREIRE E KANT Elizeu Bonfim de Souza Luci Frare Kira ............................................................................. 11 1 INTRODUÇÃO À PRIMEIRA PARTE ............................ 9 I BIOGRAFIA DE PAULO FREIRE E DE IMANUEL KANT ................................................................... 13

1.1 ITINERÁRIO CULTURAL E INTELECTUAL DE FREIRE .......................................... 13 1.2 ITINERÁRIO CULTURAL E INTELECTUAL DE KANT ............................................. 20

II DEFINIÇÃO DE AUTONOMIA.................................... 29 2.1 CONCEITO DE AUTONOMIA EM FREIRE ...... 30

2.1.1 Uma educação para a autonomia ........................... 35 2.2 CONCEITO DE AUTONOMIA EM KANT ......... 39

2.2.1 Educar para a autonomia ........................................ 43 III CONSONÂNCIA E DISSONÂNCIA TEÓRICA DE KANT E FREIRE ........................................ 49

3.1 ASPECTO CONSONANTE ....................................... 50 3.2 ASPECTO DISSONANTE ......................................... 54

3.2.1 Saída da opressão para a autonomia ...................... 54 3.2.2 Saída da menoridade para a autonomia ................ 56

3.3 AVANÇOS TEÓRICOS DE FREIRE NO QUE TANGE À EDUCAÇÃO E À AUTONOMIA ............................................................. 60 3.4 PAPEL DA ESCOLA E DO EDUCADOR ............. 62 3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................... 67

REFERÊNCIAS ........................................................................ 71

8 Autonomia e educação

SEGUNDA PARTE ESTÉTICA, SUBJETIVIDADE E POLÍTICA Geraldo Cheron José Francisco de Assis Dias Kesia Priscila Gomes Gentil Tiago Soares dos Santos Whesley Fagliari dos Santos ........................................................... 75 I O CONCEITO DE ESTÉTICA COMO AFIRMAÇÃO DA EXISTÊNCIA EM NIETZSCHE ..... 77 1.1 INTRODUÇÃO ............................................................ 78 1.2 UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA............................ 79 1.3 Como trabalhar filosofia e grafite em sala de aula? ........ 84 1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................... 99 REFERÊNCIAS ...................................................................... 100 II RAZÃO E SUBJETIVIDADE EM RENÉ DESCARTES (1596-1650) ....................................... 105 2.1 INTRODUÇÃO ............................................................... 105 2.2 DISCURSO SOBRE O MÉTODO: SUAS ETAPAS ........................................................................ 108 2.3 ONDE SE APLICA O MÉTODO? ............................. 115 3.4 MORAL PROVISÓRIA .................................................. 117 3.5 MEDITAÇÕES: A DÚVIDA COMO PRINCÍPIO ....................................... 119 REFERÊNCIAS ...................................................................... 120 III O ELEMENTO ESTÉTICO NO MITO GREGO ............................................................... 123 3.1 INTRODUÇÃO ............................................................... 123 3.2 O ELEMENTO ESTÉTICO NO MITO GREGO ............................................................... 124 3.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................ 131 REFERÊNCIAS ...................................................................... 131

IV A POLÍTICA ECOLÓGICA DE HENRIQUE DUSSEL .......................................................... 133 4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..................................... 134 4.2 O PRINCÍPIO MATERIAL EM DUSSEL ................. 135 4.3 POLÍTICA ECOLÓGICA ............................................. 137 4.4 EDUCAÇÃO AMBIENTAL ......................................... 140 4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................ 142 REFERÊNCIAS ...................................................................... 143

10 Autonomia e educação

APRESENTAÇÃO Com alegria apresentamos aos estudiosos da filosofia

e da pedagogia esta obra digital que põe em diálogo o pensamento filosófico e o pensamento pedagógico.

Na primeira parte, os professores Elizeu Bonfim de Souza e Luci Frare Kira trabalham o conceito de autonomia e de educação, onde analisam o conceito de autonomia e de educação do ponto de vista da filosofia kantiana e freireana, utilizando os textos primários de Imanuel Kant, “Resposta à Pergunta: o que é Esclarecimento?” e “Sobre a Educação”, e os de Paulo Freire, “Pedagogia da Autonomia” e “Pedagogia do Oprimido”, seguidamente de textos secundários, relacionados ao tema, bem como comentadores.

Para tanto, alguns pressupostos foram levados em consideração, para analisarem os conceitos no contexto de ambos os autores, bem como aspectos importantes da vida destes, uma vez que constatam que seu modo de vida e o modelo de educação que receberam muito influenciaram para refletirem a necessidade de uma formação para o esclarecimento. Tendo passado por grandes desafios econômicos, mas não caindo na fatalidade, tornaram-se resilientes frente a tais situações e tornaram-se grandes pensadores.

Desse modo, analisando as consonâncias e dissonâncias entre os autores, verificam os avanços que a educação pode oferecer para se formar uma sociedade mais justa e emancipatória, propondo um papel fundamental para as instituições escolares, bem como para os educadores, a fim de que estes, bem motivados, possam inspirar coerentemente apreço por educação que forme o homem em sua totalidade para que este consequentemente chegue à autonomia por

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meio de um processo que se dá pelo uso da razão, da dialogicidade, da responsabilidade e da liberdade.

Na segunda parte, os professores Geraldo Cheron, José Francisco de Assis Dias, Kesia Priscila Gomes Gentil, Tiago Soares dos Santos e Whesley Fagliari dos Santos trabalham a estética, subjetividade e política; onde abordam o conceito de estética como afirmação da existência em Nietzsche; razão e subjetividade em René Descartes (1596-1650); o elemento estético no mito grego; e por fim, a política ecológica de Henrique Dussel.

Boa leitura!

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PRIMEIRA PARTE:

O CONCEITO DE AUTONOMIA E DE EDUCAÇÃO EM FREIRE E KANT

Elizeu Bonfim de Souza

Luci Frare Kira

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1 INTRODUÇÃO À PRIMEIRA PARTE Nosso interesse em abordar o conceito de autonomia

e de educação em Paulo Freire e em Immanuel Kant se deu a partir da análise da educação atual, isto é, a falta de autonomia que notamos, permeada pela maior parte da formação escolar. Desse modo, é visível a falta de interesse dos educandos em se emanciparem e pensar por si mesmos, isso porque se encontram desmotivados, por parte de seus educadores, nesse sentido, encontram-se frente a uma formação alienante e enriquecida de uma ideologia opressora, em que a desvalorização da pessoa humana é avistada de forma acrítica.

Levando em consideração que a educação, bem como a autonomia, é um processo gradual, é possível inferirmos que, quanto mais desinteresse ou desmotivação houver na educação, tanto mais desmotivação se reproduzirá. Por esse aspecto, este trabalho tem o objetivo de fazer a reflexão acerca desses temas e, dessa forma, lançar meios, isto é, propostas a uma educação que promova o esclarecimento dos educandos.

Para tanto, a escolha dos autores estudados foi de grande valia, pois ambos vivenciaram contextos penosos, ou seja, passaram por dificuldades principalmente econômicas, mas não se deixaram conduzir pela heteronomia, ambos lutaram contra a ideologia fatalista e tornaram-se grandes pensadores. Dessa forma reconhecemos que o contexto em que cada pensador está inserido favorece, ou poderíamos dizer, justifica o que eles pensaram, por isso este trabalho terá como objetivo, no primeiro capítulo, apresentar os principais elementos biográficos da vida desses autores.

Freire lutou fortemente a favor dos oprimidos, ou seja, aqueles que se encontravam em condições sociais desfavoráveis, a fim de que pudessem ter oportunidade de

10 Autonomia e educação

“ser mais”1 e, consequentemente, não viver na heteronomia, mas fazendo com que eles pudessem pensar certo, de antemão pensassem por si mesmos, pois, de fato, esse é um item primordial para a autonomia.

Superando as adversidades e, de modo muito especial, o tempo de exílio por conta da ditadura militar no Brasil, Freire passou pela experiência de ser educador de camponeses no Chile e nesse mesmo país escreveu sua obra mais conhecida, Pedagogia do Oprimido, também neste país recebeu o convite de ser professor em Harvard, nos Estados Unidos, e consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas em Genebra, na Suíça. Conseguiu ampliar seus horizontes acadêmicos e se tornou conhecido mundialmente.

Quanto a Kant, grande pensador alemão do século XVIII-XIX, destacaremos também elementos significativos que o tornaram um célebre filósofo. De modo considerável, sua educação pietista colaborou para que o mesmo pudesse se desvencilhar da condição de menoridade e chegasse ao esclarecimento, fazendo o uso da razão; nesse sentido, compreender que todos aqueles que fizerem o bom uso da razão poderão sair da tutela de outrem e fazer o uso público da razão, isto é, chegar à autonomia.

Para tanto, o segundo capitulo voltar-se-á a definir o conceito de autonomia e de heteronomia, na concepção freireana e na kantiana, e será exemplificado que autonomia não é sinônimo de autossuficiência. A partir disso, pontuamos como esse conceito ganhou, na modernidade e a partir de Kant, um caráter moral, também destacaremos o forte

1 Ser mais é a característica da qual o ser humano está em permanente procura, aventurando-se curiosamente no conhecimento de si mesmo e do mundo, além de lutar pela afirmação/ conquista de sua liberdade. Essa busca [...] revela que a natureza humana é programada para ser mais, mas não determinada por estruturas ou princípios inatos (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 369).

Introdução à primeira parte 11

instrumento pedagógico na teoria de Freire, em seguida será possível percebermos que o termo [Aufklärung] esclarecimento é sinônimo de maioridade e autonomia, que são usadas por Kant. Isso posto, conseguiremos avaliar a necessidade de se formar indivíduos para a autonomia, e, em consequência disso, será possível dissuadir qualquer formação que tenha por objetivo formar sujeitos alienados, isto é, heterônomos.

Por fim, no terceiro capítulo deste trabalho, fizemos um pequeno paralelo em relação ao pensamento de Freire e de Kant no que diz respeito à saída do homem da menoridade para a autonomia, dito de outra forma, a saída do homem da ingenuidade para o pensamento crítico. No entender de Kant, o homem poderá fazer esse processo individualmente e obter seu resultado final, que é o esclarecimento, desde que esse homem não se prenda à preguiça ou à covardia, mas trave, dentro de si, um sério e constante compromisso de sair da tutela de outro, pensar por si próprio e, com responsabilidade, assumir seu papel de sujeito na história. Entretanto, para Freire, o homem sairá da opressão quando se reconhecer oprimido e, por meio da dialogicidade, compreender sua vocação de “ser mais” e, na coletividade, sair da opressão. Esse diálogo ao qual Freire se refere deverá ter uma virtude base, que é o amor.

Entretanto ambos os autores nos apresentaram os meios pelos quais se pode chegar ao esclarecimento, em vista disso, consideram que é na escola onde se promove a disciplina, bem como a formação intelectual de cada um, com os educadores, pois cabe a eles favorecer algumas prioridades para que a escola não seja uma reprodutora de um sistema alienante e opressor, mas que, por meio dela e dos educadores, seja possível formar homens e mulheres autônomos, que sejam motivados e saibam motivar mais indivíduos ao conhecimento e, dessa forma, colaborar para uma sociedade esclarecida.

12 Autonomia e educação

I

BIOGRAFIA DE PAULO FREIRE E DE IMMANUEL KANT

Ao introduzirmos nosso estudo sobre o conceito de

autonomia e de educação em Immanuel Kant e Paulo Freire, faz-se necessária uma incursão na história de vida de ambos os autores, quando pensaram em assuntos no que tange à educação e, mais que isso, apontaram caminhos para uma educação autônoma, a qual, poderíamos dizer, trata-se de uma educação fora da alienação. Desse modo, de antemão temos a compreensão de que não há ausência de política dentro da educação, “logo, não há ação educativa neutra” (SOUZA, 2010, p. 77). Nesse sentido, somos levados a entender que toda ação educativa está carregada de um propósito político, seja para oprimir ou libertar, ou ainda, para alienar ou para tornar o educando crítico. Nessa perspectiva, seguimos nosso trabalho de modo a tornar perceptível o quanto o filósofo pensa dentro do contexto em que está inserido, para além do contexto que vive, isto é, o pensamento do filósofo ultrapassa as barreiras do tempo, mas aquilo que ele pensa está sendo influenciado por aquilo que vive no momento.

1.1 ITINERÁRIO CULTURAL E INTELECTUAL DE FREIRE

Freire foi um pensador conhecido como o filósofo da

educação, fazendo parte do movimento histórico-educativo, e “toda a América Latina considera-o um dos nomes mais importantes e renovadores na área de educação nos últimos 50 anos” (SOUZA, 2010, p. 248).

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Mas isso não é para menos se observarmos seu itinerário cultural e intelectual: Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife – Pernambuco, no dia 19 de setembro de 1921 e, como gosta de ressaltar, pouco depois da Revolução Russa1, em 1917 (SOUZA, 2010). Filho de Joaquim Temístocles Freire e Edeltrudes Neves Freire, esse educador nunca foi conhecido pelo seu nome completo, o nome que o notabilizou foi Paulo Freire.

Eu tenho a impressão [...] de que quem nunca nasceu foi o “Paulo Reglus”. Este nunca existiu, a não ser nos documentos oficiais: registro de nascimento, certidão de casamento, e documentos universitários, por exemplo. Comecei a ser conhecido por Paulo Freire desde minha adolescência. Depois, como professor de língua portuguesa, já morando no Recife, eu era Paulo Freire. E quando comecei a ser conhecido mais além das fronteiras de minha rua, também foi como Paulo Freire. Até hoje. O nome por extenso, na verdade, nunca pegou. (FREIRE; GUIMARÃES, 2011a, p. 25)

Vindo de uma família humilde, com dificuldades

econômicas, Freire experimentou, desde sua infância, a fome, não muito intensa, mas o suficiente para atravancar sua vida intelectual, ou seja, um empecilho que dificultou seus estudos. Com essa dificuldade financeira, relembramos um dia de domingo, quando, não havendo nada que Edeltrudes, sua mãe, pudesse fazer para saciar a fome dos filhos, houve um momento de júbilo quando a galinha do vizinho caiu no quintal onde Freire e seus irmãos brincavam e, mesmo com

1 A Revolução Russa aconteceu em 1917, mas Freire sempre ressaltou esse termo, pois compreendia que revolução é um mover de baixo para cima uma ordem social atual, por meio de uma derrubada forçada, entretanto essa força à qual se refere trata-se de uma força emocional e intelectual e não propriamente física (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010).

Biografia... 15

certo constrangimento por estar indo contra muitos de seus princípios católicos e da educação que recebera, ela compreendeu que saciar a fome nessa situação não era crime: “Edeltrudes, naquele dia de domingo, abriu uma exceção às suas regras de conduta, e ofereceu a família um prato um pouco melhor do que de costume” (SOUZA, 2010, p. 306).

Freire aprendeu a ler e escrever com sua mãe, e, uma vez que a situação era precária, sua alfabetização se deu à sombra das mangueiras, tendo como material didático alguns gravetos e o próprio chão:

Começou a leitura da palavra, orientado pela mãe, escrevendo palavras com gravetos das mangueiras, à sombra delas, no chão do quintal da casa onde nasceu, na Estrada do Encanamento, 724, no bairro da Casa Amarela, como tanto gosta de lembrar e de dizer. (GADOTTI, 1996, p. 28)

Desde a infância, Freire teve uma formação diferente,

e a autora Souza (2010) destaca que fora uma educação “dialógica e isso certamente influenciou bastante durante toda a sua vida. Era uma educação de liberdade sem cair na libertinagem” (SOUZA, 2010, p 306). Com essa educação, conseguiu superar as adversidades e por isso consideramos que esse autor sempre foi contra o fatalismo2; Freire terminou

2 “[...] O pensamento freireano é radicalmente contra todas as visões e/ ou posturas fatalistas diante da compreensão da existência humana no mundo” (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 178). “Não é possível nos concebermos enquanto seres humanos sem as dimensões vitais do sonho e da esperança, que movem a autentica utopia de um futuro melhor para a humanidade. Refutando todas as formas e modos de fatalismos, Freire insiste no modo dinâmico de compreender nossa existência no mundo, pelo qual buscamos transcender a nós mesmos, a partir da busca permanente de ser mais, que implica em transpor concretamente todas as barreiras que atrofiam nosso potencial enquanto seres históricos, inacabados e em busca de sermos mais livres, felizes e,

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seus estudos primários em Jaboatão e nesta cidade, seu pai, Joaquim, faleceu quando Freire tinha ainda 13 anos de idade. Joaquim fora vítima de uma queda de cavalo no desfile de 7 de setembro. Em seguida, sua mãe procurou uma escola onde Freire pudesse dar continuidade a seus estudos e encontrou o Colégio Oswaldo Cruz, cujo diretor deu a oportunidade de matriculá-lo, com a condição que Freire fosse estudioso (SOUZA, 2010). Essa exigência do diretor não foi difícil de ser correspondida, uma vez que Freire sempre foi dedicado aos estudos, sua mãe certa vez escreveu: “Ele não se conformava em ir à aula sem as lições prontas, chorava demais; enquanto não tinha certeza que sabia, não comparecia à aula” (GADOTTI, 1996, p. 29).

Aos 21 anos de idade, Freire já se tornara professor do mesmo colégio onde estudara, lecionava língua portuguesa e era muito estimado pelo diretor da instituição, Dr. Aluízio Araújo (SOUZA, 2010). Freire casou-se em 1944, ou seja, aos 27 anos de idade, com a professora Elza Maia Costa, com quem teve cinco filhos.

Uma curiosidade que destacamos neste trabalho é sabermos que Freire sempre foi educado dentro de princípios cristãos, sua mãe transmitiu piedosamente uma fé católica aos filhos, entretanto a única coisa que Freire não queria ser, quando crescesse, era padre. Nas palavras de Freire com Sérgio Guimarães, o educador infere:

Eu não tenho por que negar, de maneira nenhuma, o bem estar com que acredito em Deus [...] quando me perguntava: “vai ser padre?” eu pulava como um cabrito, e dizia que “não” e me perguntavam “e por quê?” e eu dizia: “porque não casa” Quer dizer: a grande restrição minha era

portanto, mais humanizados” (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 179).

Biografia... 17

o problema de não ter mulher. Mulher para mim é uma coisa maravilhosa. E não digo isso com nenhum ranço machista. O sexo... respeito todas as opções sexuais, mas a minha é de ter uma mulher aqui _ não é igual a mim por isso mesmo sexualmente pode ser que se diga que sou machista dizendo isso. Eu acho que não. (FREIRE, GUIMARÃES, 2011b, p. 99)

Tendo nesse sentido a companhia da esposa, sabemos

que esse casamento em nada impediu para que Freire pudesse lançar-se aos estudos; pouco depois de sua experiência como docente, tornou-se diretor do setor de educação e cultura do Serviço Social da Industria (Sesi) e já em 1954 defendeu sua tese de doutorado e livre-docente em filosofia e história da educação, com o tema Educação e Atualidade Brasileira (SOUZA, 2010).

Mesmo tendo cursado faculdade de direito em Recife, pois tinha o sonho de ser advogado, acabou desistindo já que não teria muitas vezes a capacidade de lutar contra os oprimidos e necessitados, “[...] Freire nunca teve nada contra os advogados, nem contra a justiça; [...] mas não tolerava a justiça em favor de alguns” (SOUZA, 2010, p. 308). Por isso, influenciado pela esposa, Elza, Paulo Freire passou a ser educador e, dessa forma, com ela, deu, então, os primeiros passos na alfabetização de adultos (SOUZA, 2010).

Sua experiência em docência em nível superior se deu lecionando filosofia da educação na Escola de Serviço Social, a qual se tornou posteriormente a Universidade de Recife (GADOTTI, 1996). Freire também se encontrava envolvido nos trabalhos do Programa Nacional de Alfabetização. Ele estava vivenciando uma época em que as forças conservadoras se encontravam em uma escala crescente de industrialização, entretanto não em benefício de todos, desigualdade essa que incomodava Freire, esse educador, que era visto como o intelectual que, com seu método, poderia alfabetizar cinco milhões de adultos. Dessa maneira, Freire

18 Autonomia e educação

também incomodava as forças conservadoras (SOUZA, 2010).

Incomodava porque o seu método aumentaria o eleitorado brasileiro e essas forças conservadoras muito provavelmente perderiam seu espaço político. Incomodava porque o método, a campanha de alfabetização dentro do governo Goulart, seria um impulso para a democracia no país. Veio o golpe de Estado de 1964, e Paulo foi preso. Foi preso porque queria alfabetizar o povo. Queria resgatar a autoestima de um povo subjugado, desrespeitado, submisso, oprimido. (SOUZA, 2010, p. 309)

Mesmo com esse conflito de ideologias, Freire

recusava-se a se exilar, no entanto, após 72 dias preso em selas desumanas, percebeu que bater de frente com as forças dominantes seria perda de tempo e certamente seria preso novamente, com isso foi para a embaixada da Bolívia em exílio e posteriormente viajou para a capital da Bolívia, mas não pôde ficar ali por muito tempo, uma vez que também houve um golpe militar na Bolívia e Freire foi forçado a se exilar no Chile (SOUZA, 2010):

Mas antes de conseguir o salvo-conduto para sair da Bolívia e ir para o Chile, passei umas três semanas indo toda segunda-feira ao magistério do interior de lá. Toda vez me diziam que um dia o coronel ia me atender, falavam para voltar outro dia, eu voltava, até que, quando lhe falei, percebi que ele estava em uma situação difícil no sentido de me explicar que estava em dificuldades para me dar o salvo-conduto. (FREIRE, GUIMARÃES, 2011a, p. 107-108)

No Chile, Freire foi bem acolhido e, após o período

de se estabilizar e começar alguns trabalhos ali, sua família foi também para lá. Nesse país, Freire escreveu uma de suas obras de maior prestígio, a Pedagogia do Oprimido, certamente

Biografia... 19

inspirado nas circunstâncias que presenciava. Seu filho já destacou que “seu trabalho no Chile fora bastante intenso e tudo que ele escrevia era fruto de sua própria prática” (SOUZA, 2010, p. 312). Não obstante, esta seria resultado da experiência de um país acolhedor, do trabalho que ali realizara, a alfabetização dos camponeses chilenos. Nesse período de exílio no Chile, Freire recebeu o convite de ampliar seus horizontes acadêmicos a partir de duas propostas:

trabalhar como professor convidado da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e o outro como Consultor Especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas em Genebra na Suíça. (SOUZA, 2010, p. 311)

Freire compreendeu que o âmbito docente

universitário limitaria muito a sua visão global, por isso optou por ir para a Europa:

Por que enquanto a universidade me oferecia uma docência anual, semestral, com grupos de 25, trinta alunos ___ podia ser até com menos alunos as vezes; o primeiro mundo tem muito dinheiro para permitir que um professor ganhe muito bem para trabalhar com três alunos num semestre, por exemplo, sem que haja malandragem nenhuma nisso; é claro, eles podem, tem dinheiro para oferecer uma pesquisa mais radical ___, mas enquanto as universidades me ofereciam isso, que de modo nenhum é negativo, o conselho mundial das igrejas me oferecia o mundo, para que eu me experimentasse como docente. A universidade me dava 25 alunos por ano. O Conselho Mundial das Igrejas abria as portas do mundo para minha atividade pesquisadora, a minha atividade docente e minha atividade discente. Quer dizer que, no Conselho Mundial, a partir dele, eu teria gradativamente o mundo como objeto e sujeito da aprendizagem. Eu iria ensinar e iria aprender. (FREIRE, GUIMARÃES, 2011a, p. 94-95)

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Quando chegou a anistia, Freire voltou para o Brasil e isso aconteceu no ano de 1980, a partir de então, trabalhou em São Paulo, lecionando na Pontifícia Universidade Católica e na Universidade Estadual de Campinas. Mesmo trabalhando no Brasil, não deixava de viajar frequentemente para o exterior, recebendo vários prêmios e títulos internacionais (SOUZA, 2010).

Freire perdeu sua esposa, vítima de um enfarte em 1986, e dois anos mais tarde se casou novamente, pois encontrara uma amiga de infância, e, por trás de uma troca de carinhos entre dois amigos, surgiu uma paixão. Desse modo, foi com Ana Araújo que Freire reencontrou novamente um sentido para a vida e, ao continuar seus trabalhos, em 1989, passou a ser secretário da Educação do município de São Paulo, que tinha como prefeita, nesse período, Luiza Edundina. Mesmo com suas debilidades físicas, ainda atendia, à medida do possível, a convites das universidades nacionais e internacionais, referentes a eventos, palestras, publicações. Sua última obra publicada foi a Pedagogia da Autonomia, no ano de 1996 (SOUZA, 2010), obra está que inspirou o título deste trabalho. Em síntese, seu filho destaca que Freire fora “um pai, um amigo, um conselheiro, um orientador, um ser humano de imensa ternura, bondade e amorosidade. Deixou-nos no dia 2 de maio de 1997, aos 75 anos” (SOUZA, 2010, p. 315).

1.2 ITINERÁRIO CULTURAL E INTELECTUAL DE KANT

Immanuel Kant nasceu no dia 22 de abril de 1724, na

cidade de Koenigsberg (atualmente Rússia), e ali permaneceu até sua morte, contudo houve um período em que se ausentou, mas a maior parte de sua vida foi vivenciada na sua terra natal (FERRATER MORA, 2001). Ao falarmos sobre sua vida, cabe apontarmos a sua árvore genealógica: Kant é o

Biografia... 21

quarto filho mais velho de João Jorge Kant e Ana Regina Reiter que tiveram um total de 11 filhos. Mesmo com limitações financeiras, nada impediu que pudessem aplicar aos filhos uma educação digna, no que se refere à moralidade (PASCAL, 2011):

Seu pai, João Jorge Kant, que exercia a profissão de seleiro, foi um homem laborioso e honesto; tinha horror à mentira. Sua mãe, Ana Regina Reuter, mulher profundamente religiosa, ministrou-lhe uma sólida educação moral. Antes de morrer, internou-o no Collergium Fridericianum, dirigido por Francisco Alberto Schultz, um adepto fervoroso ao pietismo. O promotor do pietismo [...] ensinava que a fé cristã verdadeira é uma fé viva e a leitura direta da bíblia, a fonte por excelência da regeneração interior. (PASCAL, 2011, p. 13)

Compreendendo a educação na qual Kant fora

instruído, o autor Pascal (2011) postula que “jamais se viu nem ouviu na casa paterna coisa alguma que não se conformasse com a probidade, a decência, a veracidade” (PASCAL, 2011, p. 14). Essa mesma perspectiva educacional foi seguida até mesmo após a morte da mãe de Kant, uma vez que Ferrater Mora (2001) aponta que o Collegium Fredericianum era um ambiente pietista que reforçou os conceitos que ela já havia alicerçado na formação de Kant. A partir disso, passamos a compreender também o empenho em elaborar uma ética baseada em princípios racionais, “ainda que Kant tenha se oposto à prática puramente formal das observâncias religiosas” (FERRATER MORA, 2001, p. 1625). Percebemos que Kant desvencilhou-se daquilo que era pietismo religioso e atribuiu razões concretas para se viver uma moral, ou seja, uma ética austera que não se fundava em princípios religiosos. Mesmo com essa pretensão, os indícios de uma educação pietista ainda permaneceram (PASCAL, 2011):

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No Collegium Fredericianum [...] vigorava grande severidade, tanto nos conteúdos como nos métodos. Embora alguns aspectos da educação pietista fosse mais tarde contestada por Kant, permaneceram indeléveis nele alguma instância de fundo dessa seita, bem visíveis sobretudo em seus escritos morais. (REALE, ANTISERI,1990, p. 860-861)

Foi sua mãe também que incutiu em seu filho um

sentimento pela beleza da natureza, e daquela Kant recebeu o estímulo e o amor pelo conhecimento (REALE, ANTISERI, 1990). Em 1740, foi encaminhado para a Universidade de Koenigsberg, uma vez que se destacava academicamente entre seus colegas, e nesta universidade se aprofundou nos estudos filosóficos, tendo como maior influência teórica os escritos de Martin Knutzen, pietista. Mesmo com esse apreço pela filosofia, o que chamava a atenção de Kant eram as ciências. O autor Pascal (2011), pontua que “são principalmente as ciências que, na universidade, atraem o jovem Kant” (PASCAL, 2011, p. 14). Posteriormente, esse ilustríssimo filósofo se tornou uma célebre figura do pensamento ocidental (REALE, ANTISERI, 1990).

É importante destacarmos a revolução que seu pensamento causou na filosofia, a qual Kant denominava de “Revolução Copernicana”3, em que punha o objeto no centro

3 A Revolução Copernicana é descrita por Nicolau Copérnico na hipótese de que a Terra está em movimento e o Sol permanece imóvel no centro do universo, contradizendo toda a ciência de outrora que percebia a Terra parada, e o Sol girando em torno dela ; além disso, Copérnico tinha que argumentar até mesmo contra a visão fechada com que os padres interpretavam a palavra de Deus que embasava e fortalecia o modelo geocêntrico ao postular: “E o sol se deteve e a lua ficou parada, até que o povo se vingou dos inimigos [...] o sol ficou parado no meio do céu e um dia inteiro ficou sem ocaso. Nem ates, nem depois houve um dia como esse, quando o Senhor obedeceu a voz de um homem. É porque o Senhor lutava em favo de Israel” (Josué 10:13-14). Mesmo dessa forma em um período de totalitarismo da Igreja, como exemplo a Inquisição, Copérnico lança a hipótese de mudar a visão dos

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e o sujeito girava em torno daquele para coordenar as possibilidades de seu conhecimento. Dito de outro modo, “Kant supôs que não é a nossa intuição sensível que se regula pela natureza dos objetos, mas que são os objetos que se regulam pela natureza de nossa faculdade intuitiva” (REALE, ANTISERI, 1990, p. 877).

Levantamos, neste trabalho, algumas características da rigorosa disciplina que tivera esse filósofo. Por sua vez, Kant nunca saiu do seu propósito de vida, de acordar cedo, reservar tempo para o trabalho, para o descanso, bem como para os estudos, pois sabia aproveitar muito bem seu tempo e respeitava rigorosamente os horários. Assim sendo, Pascal (2011) elucida: “sem dar muita confiança aos médicos, adotara por sua própria conta, um certo regime de vida a que atinha com escrupulosa fidelidade” (PASCAL, 2011, p. 18).

Levantava-se infalivelmente às cinco horas, tomava chá, fumava um cachimbo e trabalhava até as sete horas. As sete saía para dar aulas – que por vezes somava vinte e oito por semana, depois voltava para trabalhar até uma hora da tarde. Seguia-se o almoço, sempre em companhia; conta-se que um dia quando ninguém comparecera, quis que seu criado convidasse o primeiro transeunte na rua; a refeição prolongava-se até a metade da tarde. [...] após as refeições nunca deixava de dar seu passeio; isso dizia, para meditar e, ao mesmo tempo, respirar pelo nariz. [...] os vizinhos sabia ser exatamente três horas e meia quando Imanuel Kant [...] saia de casa para dirigir-se à pequena avenida ladeada de tílias, que até hoje trás o nome de Avenida do Filósofo. (PASCAL, 2011, p. 18-19)

Consideramos Kant um autor com elevado nível de

autonomia, uma vez que sua moral não permite que o homem execute atos contrários à razão e que o homem não pode agir

cientistas de um modelo geocêntrico para um modelo heliocêntrico (CAYGILL, 2000, p. 282).

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coercivamente, influenciado pela cultura, religiosidade, política, enfim. Nesse sentido, Ferrater Mora (2001) anui:

Outro ponto destacado foi sua extraordinária tenacidade no trabalho e na regularidade de seus hábitos. Isso não quer dizer que ele não fosse capaz de paixão ou de entusiasmo, embora nunca os tenha manifestado senão com grande sobriedade. Entre sóbrias provas de paixão e entusiasmo de Kant, podemos mencionar sua grande simpatia pelos ideais de independência Americana e da Revolução Francesa. Kant foi pacifista, antimilitarista e antipatrioteiro, tudo isso por convicção moral e não apenas política. (FERRAER MORA, 2001 p. 1625)

Antes de concluir todos os seus graus acadêmicos,

Kant se vê necessitado a deixar a universidade, pois, a partir da morte de seu pai em 1747, é forçado a seguir novos rumos:

Em 1747, após a morte do pai, Kant vê-se obrigado a deixar a universidade, antes de conquistar todos os seus graus acadêmicos e, para ganhar a vida, se faz professor particular. Dá lições em diversas casas de famílias nobres da Prússia Oriental, notadamente na dos Keyserling, onde toma o gosto da sociedade polida e da arte da conversação. Exerceu a função de preceptor por espaço de nove anos, passados nas cercanias de Koenigsberg. (PASCAL, 2011, p. 14)

Em 1770, Kant torna-se professor titular, isso porque

a universidade em que ele lecionava lhe confere essa promoção, concedendo-lhe o direito de abrir um curso livre. Portanto, sua carreira docente se solidifica, “seu êxito é tal que, dentro em breve, consegue viver em condição de relativo conforto” (PASCAL, 2011, p. 15). Mesmo tendo toda a sua vida voltada para a atividade de pesquisa e de ensino, houve um período, para o qual o autor Vanni Rovighi (1999) acena, que fora o mais intenso, no que concerne à meditação, isto é,

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entre os anos de 1770 a 1781. No ano de 1781, Kant publica a primeira edição da Crítica da Razão Pura, daí em diante escreve e publica uma coleção de obras:

Em 1783, os prolegômenos a toda a metafísica futura que possa apresentar-se como ciência; em 1785, Fundamentos da metafísica dos costumes; em 1786, princípios metafísicos da ciência da natureza; em 1787, a segunda edição da Crítica da razão pura; em 1788, Crítica da razão prática; em 1790, Crítica do Juízo; em 1793, A religião nos limites unicamente da razão; em 1797, a Metafísica dos costumes. Nos últimos anos, trabalhou numa obra que devia tratar da passagem da metafísica à física. (VANNI ROVIGHI, 1999, p. 534)

Quando levamos em consideração as disciplinas que

Kant lecionava, percebemos o grau da dimensão de totalidade de seu conhecimento, pois ele transitava por vastas áreas do conhecimento:

preleciona as matérias mais diversas: matemática, lógica, metafísica, física, pedagogia, direito natural, geografia. Professor escrupuloso e vivaz goza da estima irrestrita dos alunos. (PASCAL, 2011 p. 15)

No período em que Kant lecionou na universidade de

Koenigsberg, pontuamos aqui sua ativa participação dentro da instituição, foi sucessivamente membro do senado universitário, no ano 1780, atuou como reitor no período de (1786-1788), foi também decano da Faculdade de Filosofia e de toda a academia. No ano de 1786, foi eleito como sócio da Academia de Berlim, em 1794, da Academia de São Petersburgo e, por fim, em 1798, da Academia de Viena (PASCAL, 2011).

Podemos apontar o pensamento de Kant em até três fases, a saber: pré-crítico, que antecede 1781; período crítico, que se delonga até 1790; e o período pós-crítico, que vai até a

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sua morte. Um grande marco de mudança de seu pensamento se dá a partir da leitura de David Hume, o próprio Kant considera que se despertou do sono dogmático (FERRATER MORA, 2001).

O fim da vida do filósofo alemão foi um tanto quanto perturbado por dois acontecimentos, primeiramente, foi de certa forma censurado, uma vez que fora intimado a não insistir nas ideias apontadas por ele sobre a religião em sua obra: A Religião nos Puros Limites da Razão. A partir disso, segundo Reale e Anteseri (1990), Kant obedece e argumenta: “se é verdade que a mentira nunca deve ser dita, não é menos verdadeiro que a verdade nem sempre deve ser abertamente proclamada” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 863). O autor Pascal (2011) também compreende que esse período foi de fato conflituoso para o filósofo, e, quando aquele esclarece esse fato na vida de Kant, pontua:

Analisemos ainda em 1793, a propósito de sua obra sobre religião, Kant entrou em conflito com o poder autoritário do novo rei da Prússia, Frederico Guilherme II. O conselho de censura deixou passar o primeiro dos quatro artigos que compõe a obra, mas o segundo não recebeu o imprimatur. [...] em 1794 um rescrito real censurava o filósofo por haver deturpado algumas doutrinas essenciais do cristianismo, e exigiu-lhe um compromisso formal de não mais tratar nem por escrito nem oralmente de assuntos religiosos. Kant procurou desculpar-se e, “como súdito fiel de sua Majestade Real”, comprometeu-se a não mais abordar problemas de natureza religiosa. (PASCAL, 2011, p. 18)

Um segundo acontecimento desagradável na vida de

Kant trata da dimensão histórica pois ele lutou sem sucesso a fim de que o criticismo não fosse interpretado num sentido de idealismo espiritualista, pois, de acordo com Reale, Antiseri (1990), o iluminismo já havia se esgotado, e Kant percebeu

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que o criticismo transcendental necessariamente acabaria desenvolvendo-se em um sentido idealista e, não podendo impedir isso, silenciou-se (REALE, ANTISERI, 1990). Mas ainda passou por situações piores em questão de sofrimento. “Os anos da velhice foram os piores para Kant. [...] tornou-se quase cego, perdeu a memória e a lucidez intelectual. E extinguiu-se em 1804, reduzido quase que uma vida larvar” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 863).

Tendo apresentado esses fatos, ou poderíamos chamar de situações, no cotidiano de ambos autores, passamos a compreender que o reconhecimento e prestígio que esses autores tiveram ao longo da história se deram por um processo de amadurecimento. Todavia podemos considerá-lo doloroso na vida de ambos os autores, pois eles padeceram situações econômicas desfavorecidas, mas, não se deixando levar pela fatalidade, saindo de sua menoridade, atingiram autonomia e, acima de tudo, lançaram luzes, apresentando caminhos para uma educação que promovesse a formação da totalidade do ser humano.

Dessa forma, veremos, no capítulo seguinte, a contribuição que esses filósofos e educadores deram para pensarmos hoje uma educação que possa libertar os jovens, fazer com que estes possam pensar por si mesmos, tomar decisões coerentes, sem a tutela de um superior.

28 Autonomia e educação

II

DEFINIÇÃO DE AUTONOMIA Destacaremos, neste capítulo, o significado do termo

autonomia, pois, a partir disso, perceberemos a importância de buscá-la e, assim, compreenderemos o trabalho árduo que tiveram Freire e Kant, ao se opor à heteronomia. Etimologicamente, “autonomia” significa a capacidade de dar a si mesmo a própria lei, termo derivado do latim, o termo autós (por si mesmo) e nomos (lei) (CUNHA, 1997, p. 84-85).

A partir dessa definição, podemos pontuar que autonomia não é sinônimo de autossuficiência, ou até mesmo independência. Nesse sentido, cabem alguns exemplos: um jovem, com plena saúde física, que trabalha em determinada empresa na qual acata ordens de seus superiores e silenciosamente executa determinada atividade, apenas impulsionado pelas ordens de outros – esse indivíduo avaliamos como heterônomo. Não obstante, heteronomia etimologicamente compreendemos como hetero (outro, diferente), nomos (lei) (CUNHA, 1997, p. 408). Dessa forma, heteronomia é a lei que procede do outro.

Nesse mesmo viés, estabelecemos outro exemplo: um indivíduo que perdeu suas vitalidades físicas, talvez vítima de algum infortúnio, mas, com sua lucidez mental, é capaz de, diante de determinadas opções, fazer escolhas, ou seja, avaliar o que é certo ou errado e exprimir posição coerente, mesmo que, para a locomoção, seja dependente de algo externo, ou seja, racionalmente o indivíduo determina sua própria lei – esse indivíduo consideramos um ser autônomo.

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2.1 CONCEITO DE AUTONOMIA EM FREIRE Buscaremos, a partir de algumas análises e fragmentos

dos textos de Freire, elencar o que no seu pensamento podemos conceituar como autonomia, em seguida, apresentaremos sua proposta pedagógica para uma formação que desperte a autonomia do educando.

A partir da demarcação de Zatti (2007), apontaremos que Freire não propõe uma definição textual de autonomia e heteronomia, entretanto a partir de seu pensamento sócio-político é que se clarifica o que poderemos evidenciar como autonomia para Freire (ZATTI, 2007).

Para uma boa definição desse conceito, partiremos da interpretação de Streck; Rendin; Zitkoski (2010) e observaremos que o conceito de autonomia está em pauta na questionada modernidade e, a partir de então, Freire, já com a devida maturidade intelectual, discute autonomia em relação à dependência. Nesse sentido, fortalece a ideia de que, enquanto seres humanos, somos sempre dependentes um do outro, sendo assim se faz necessário assumir, ou poderíamos dizer, aceitar essa finitude, para que, assim, permitamos que os outros sejam os outros e não um espelho de nós mesmos:

Para Freire, autonomia é libertar o ser humano das cadeias do determinismo neoliberal reconhecendo que a história é um tempo de possibilidades. É um “ensinar a pensar certo” com quem fala com a força do testemunho”. É um “ato comunicante, co-participado”. Todo processo de autonomia e de construção de consciência nos sujeitos exige uma reflexão crítica e prática, de modo que o próprio discurso teórico terá de ser alinhado a sua aplicação (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 53).

Freire concebe a autonomia como um processo, ou

seja, autonomia é um aperfeiçoamento, o qual não se dá por acabado, e, visto que Freire concebe também o homem como

Definição de Autonomia... 31

um ser inacabado1, o processo de autonomia também é construído. Essa afirmação se dá na compreensão do que Freire declara:

Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai sendo construída na experiência de várias, inúmeras decisões que vão sendo tomadas [...] ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. (FREIRE, 2015, p. 105)

A partir de Freire, consideramos que autonomia está

intimamente ligada à democracia, uma vez que ambas vão sendo construídas dentro do processo histórico. Nessa perspectiva, Streck; Rendin; Zitkoski (2010) elucidam que Freire avançou com o conceito de autonomia, levando-o na relação entre professor e aluno, e não o professor consigo mesmo, e defendeu que a autonomia é a passagem da curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica, quando somos todos convidados a assumir a responsabilidade de fazer essa passagem.

1 Por inacabamento, Freire entende que o homem não é uma realidade pronta, estática, fechada. Estamos no mundo em um contínuo processo de desenvolvimento em todas as dimensões: intelectual, social, afetivo, psíquico, moral, enfim; somos insatisfeitos com aquilo que já conquistamos e dessa forma sempre desejamos mais. Streck; Rendin; Zitkoski (2010) compreendem que o homem não nasce homem, mas se constrói, conquista-se, isto é, humaniza-se e isso acontece por meio da ação dele no mundo e na história. Percebe-se que o homem jamais será tudo o que pode ser, nesse sentido, existe sempre a necessidade de buscar mais o saber, o amar bem como o fazer (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010). Por se referir a inacabamento, Freire aponta que existe em todos os lugares onde existe vida, porem apenas nos homens e mulheres a noção de inacabamento se tornou consciente (FREIRE, 2015, p. 50).

32 Autonomia e educação

Com essa reflexão, vamos notando que autonomia é a emancipação do oprimido, que, por sua vez, no entender de Freire, é uma classe vítima de uma ideologia e por isso está em luta. O oprimido tem uma vocação negada pela realidade histórica e só estará livre quando, por meio da práxis2 libertadora, for capaz de restaurar a humanidade. Esse conceito de opressão se encontra nas raízes da teoria de Marx, uma vez que Freire adota, ou podemos dizer, resgata tanto este como outros conceitos da filosofia marxista.

Essa caracterização de oprimidos e opressores como classes sociais não pode ser compreendida como apartação da teoria marxiana. No Manifesto do Partido Comunista, Marx & Engels resumem a luta de classe como, em geral, a oposição exatamente entre opressores e oprimidos. Em diferentes tempos históricos, tal oposição se dá entre classes específicas de diferentes formações socioeconômicas. Assim na tipografia capitalista, a luta de classes desenrola-se sobre a burguesia e o proletariado. Ao empregar estes termos, porém, Freire não se afasta de Marx, apenas reconhece que as sociedades terceiro-mundistas das últimas décadas do século XX apresentavam um grau de complexidade que exigia em termos gerais – oprimido e opressor – empregados por Marx para referir-se a luta de classes, presente através de toda a história humana. (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 294)

Sabemos que a autonomia é uma transição da

heteronomia para a curiosidade epistemológica, por isso é

2 Práxis; está ligado intimamente ao conceito de dialogicidade, ação-reflexão, autonomia, educação libertadora, docência. Práxis pode ser compreendida como a relação entre o modo de interpretar a realidade e a vida, bem como a prática dessa compreensão, levando a uma ação transformadora. Opõe-se necessariamente à ideia de alienação e domesticação, fazendo o indivíduo tomar consciência da realidade e, por meio do discurso, convencê-lo de que pode modificar essa mesma realidade (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010).

Definição de Autonomia... 33

dever do professor, na sua práxis, estar atento a essa passagem da ingenuidade para o esclarecimento, isto é, da heteronomia para a autonomia (FREIRE, 2015).

Por certo, ponderamos que a autonomia se opõe à heteronomia, dessa forma, interrogamos: O que Freire entende por heteronomia? De acordo com Freire, heteronomia é situação do indivíduo que não se emancipou, ou seja, é a situação tanto de um indivíduo como de um grupo social que permanecem alienados, isto é, oprimidos.

Freire infere que a consciência do oprimido geralmente faz com que ele acredite que é seu destino, o seu modo de vida, a sina, a vontade de Deus, isto é, está incutida em seu modo de pensar uma visão fatalista:

Depois de alguns momentos de bom debate com um grupo de camponeses o silêncio caiu sobre nós e nos envolveu a todos. O discurso de um deles foi o mesmo. A tradução exata do discurso do camponês chileno que ouvira naquele fim de tarde. - muito bem – disse eu a eles. – eu sei. Vocês não sabem. Mas por que eu sei e vocês não sabem? Aceitando o seu discurso, preparei o terreno da minha intervenção. A vivacidade brilhava em todos. De repente a curiosidade se acendeu. A resposta não tardou. - O senhor sabe porque é doutor. Nós, não. - Exato, eu sou doutor. Vocês não. Mas, por que eu sou doutor e vocês não? - Porque foi à escola, tem leitura, tem estudo e nós, não. - Por que fui à escola? - Porque seu pai pôde mandar o senhor à escola. O nosso, não. - E por que os pais de vocês não puderam mandar vocês à escola? - Porque eram camponeses como nós. - E o que é ser camponês? - É não ter educação, posses, trabalhar de sol a sol sem direitos, sem esperança de um dia melhor.

34 Autonomia e educação

- E por que ao camponês falta tudo isso? - Porque Deus quer. - E quem é Deus? - É o pai de todos nós. - E quem é o pai aqui nesta reunião? Quase todos de mãos para cima, disseram que o eram. Olhando o grupo todo em silencio, me fixei num deles e lhe perguntei: - Quantos filhos você tem? - Três. - Você seria capaz de sacrificar dois deles, submetendo-os a sofrimentos para que o terceiro estudasse, com vida boa no Recife? Você seria capaz de amar assim? - Não. - Se você – disse eu -, homem de carne e osso, não é capaz de fazer uma injustiça desta, como é possível entender que Deus o faça? Será que Deus é o fazedor dessas coisas? Um silêncio diferente, completamente diferente do anterior, um silêncio no qual algo começa a ser partejado. Em seguida: - Não. Não é Deus o fazedor disso tudo. É o patrão! (FREIRE, 1992, p 49-50)

Nessa perspectiva, nosso estudo busca apontar alguns

meios para a libertação do oprimido, isto é, construir na realidade de cada oprimido uma formação que possibilite a autonomia, uma consciência crítica, o desenvolvimento de meios com os quais aquele não permaneça na fatalidade, mas busque “ser mais”, tomando consciência de sua opressão, ou ingenuidade, e possa, por meio da educação, tornar-se “seres para si”.

Definição de Autonomia... 35

2.1.1 Uma educação para a autonomia A partir da obra Pedagogia da Autonomia, de Freire, e

tendo já em vista o que autor entende por autonomia, levaremos em consideração seu método pedagógico para propor meios de promover uma formação autônoma no indivíduo.

Essa obra de Freire é, de modo especial, dirigida aos professores, uma vez que o título demarca “Saberes Necessários à Prática Pedagógica”, uma obra básica para todo professor ou todos aqueles que desejam discutir a educação, composta por apenas três capítulos: 1° Não há Docência sem Discência, 2° Ensinar não é Transmitir Conhecimento e 3° Ensinar é uma Especificidade Humana. Em meio a esses capítulos e também nos utilizando de outras referências, destacaremos como se dá esse processo de autonomia.

O educador infere que é a partir da educação que se alcança a curiosidade epistemológica, ou seja, a criticidade, que nós aqui denominamos como autonomia. Elucidando o fragmento de sua obra, observamos que Freire anui: “Quanto mais criticamente se exerce a capacidade de aprender, tanto mais se constrói e desenvolve o que venho chamando de “curiosidade epistemológica”, sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto” (FREIRE, 2015 p. 26-27).

Para se obter a “curiosidade epistemológica”, tal como vimos, se faz necessário sair da condição de sujeito oprimido; porém esse processo é antecedido pela conscientização, ou seja, o descobrir-se oprimido. E, para Freire, a maneira de sair dessa classe é por meio do diálogo, com isso compreenderemos que Freire aposta na dialogicidade para incutir o processo de autonomia.

A partir da logicidade, compreendemos que o diálogo se opõe ao silêncio: “O diálogo só existe em comunhão. Ninguém dialoga sozinho” (SOUZA, 2010, p. 332). Dessa

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forma, Freire postula que a educação bancária3, que silencia o indivíduo, é a marca da heteronomia, à qual Freire se opõe. Para superar a heteronomia e promover o diálogo, Freire faz algumas exigências, as quais destacaremos adiante.

O diálogo, segundo a concepção de Freire, é um instrumento para se descobrir a educação problematizadora e é a tentativa de renovação da sociedade. Azevedo (2010) apresenta que, na pedagogia freireana, ressalta-se a ideia de ação-reflexão dentro do conceito de práxis, e esta não se faz senão pelo diálogo:

Por meio do diálogo [...] se elabora o conteúdo da educação, pois este não é trazido pronto, mas concebido e realizado no grupo, nasce das situações históricas dessa comunidade educativa e educadora, simultaneamente. (AZEVEDO, 2010 p. 40)

Freire considera que a falta de diálogo é, na verdade,

uma violência, por isso em sua prática sempre o priorizou, deixando entender claramente que o diálogo é o sentimento do amor tornado ação e essa ação remete a uma mudança no mundo, uma vez que, sem o diálogo, não há amor, sem um profundo amor, pelas pessoas pelo mundo pela vida, não é possível entrar em diálogo (SOUZA, 2010).

Ser dialógico é necessário para se alcançar a autonomia, a autonomia requer autenticidade e esta não se alcança senão pelo diálogo, há na dialogicidade e na autenticidade uma relação recíproca. Por diálogo, Souza (2010) compreende:

3 É a educação que conduz o educando à memorização mecânica do conteúdo narrado, (desumaniza-os) nesse sentido o educando se torna uma “vasilha”, um objeto de depósito, pelo educador, e, quanto mais o educador vai “enchendo” esses “recipientes”, tanto melhor este educador será. Quanto mais se deixam “encher” docilmente, tanto melhores educandos serão (FREIRE, 2014).

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Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não “sloganizar”. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade. Está é a razão pela qual, sendo o diálogo o conteúdo da forma de ser própria à existência humana, está excluído de toda a relação na qual alguns homens sejam transformados em “seres para o outro” por homens que são falsos “seres para si”. É que o dialógico não pode travar-se numa relação antagônica. O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o “pronunciam” isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização de todos. (SOUZA, 2010, p. 266)

“Pensar por si mesmo é imprescindível para que

alguém seja autônomo” (ZATTI, 2007, p. 46). Contudo devemos ter claro que esse “pensar por si só”, tal como já vimos anteriormente, não se dá de uma hora para outra, sendo um processo, faz-se necessário ensinar as crianças a pensar por elas mesmas, pois elas precisam crescer nesse exercício da capacidade de avaliar, comparar, escolher, decidir e, não diferente, intervir no mundo, desse modo, enquanto vai construindo essa autonomia, a criança deve estar submetida à autonomia de outro.

O autor exemplifica que a autonomia da criança, só se autentifica no acatamento da autonomia de outro, contudo o exemplo a seguir nos indica que acatar a autonomia de outro não se define como heteronomia, pois a autonomia de uma criança, está paulatinamente sendo formada. Por isso segue o exemplo:

Recentemente participei de perto da frustração bem, “tratada” de uma avó, minha mulher, que passara vários dias cuidando de sua alegria, a de ter consigo, em casa, Marina, a neta bem-amada. Na véspera do dia esperado, a avó foi cientificada por seu filho que sua neta já não viria. Programara com as amigas da vizinhança uma reunião para a criação de um clube de diversões e esporte.

38 Autonomia e educação

Programando, a neta está aprendendo a programar e a avó não se sentiu negada ou mal querida porque a decisão da neta, com que está aprendendo a decidir, não correspondia a seu desejo. Seria uma lastima se a avó, fazendo “beicinho”, expressasse um desconforto indevido em face da decisão legitima de sua neta ou que seu pai, revelando insatisfação, tentasse, autoritariamente, impor à filha o que ela não queria. Isto não significa, por outro lado, que, no aprendizado de sua autonomia, a criança em geral, a neta, no caso, não aprenda também que é preciso, às vezes, sem nenhum desrespeito à sua autonomia, atender a expectativa do outro. Mais ainda, é necessário que a criança aprenda que a sua autonomia só se autentica no acatamento à autonomia dos outros. (SOUZA, 2010, p. 299-300) A partir deste estudo, demonstramos que o processo

de autonomia em Freire se dá a partir de uma educação que, não obstante, não pode ser opressora, isto é, antidialógica, uma vez estando o indivíduo alienado, faz-se necessária a libertação do mesmo, e o instrumento que Freire aponta para isso é ““o diálogo, palavra dos homens entre si, uns com os outros, dialogicamente”. É nesse diálogo, consciente e autêntico que o mundo será libertado” (AZEVEDO, 2010, p. 43).

Faz-se necessário apresentar, neste estudo, as exigências defendidas por Freire, para se definir um diálogo como um diálogo libertador: “o amor, a humildade, a fé e confiança nos homens e a esperança” (AZEVEDO, 2010, p. 43). A partir disso, consideramos que esse educador exige do homem essa autonomia que se dá à medida que o próprio homem se humaniza, pois, os sentimentos citados acima são próprios do humano.

Definição de Autonomia... 39

2.2 CONCEITO DE AUTONOMIA EM KANT O termo autonomia ganhou um aspecto central na

modernidade com Kant, dessa forma constatamos que, na Idade Antiga, bem como na filosofia antiga, esse termo era apresentado em um sentido de autodeterminação, principalmente no que tange à política nas cidades. Por conta disso, o conceito “autonomia” só ganhou um caráter moral na modernidade, com Kant (ZATTI, 2007).

Como já analisamos acima, na modernidade o conceito de autonomia ganhou um vigor fundamental, principalmente nos textos de Kant, cabe destacarmos em suma o que ele pensou sobre autonomia. Segundo Vicente Zatti (2007), Kant faz uma mudança filosófica e crítica da autonomia religiosa de Martinho Lutero4 para a autonomia moral, para tal apontamento, aqui destacamos o que é autonomia para Lutero, Nesta pesquisa, chegamos à conclusão de que, para Lutero, o sujeito autônomo é aquele que consegue se desvencilhar das inclinações do corpo e está disposto a obedecer a Deus (ZATTI, 2007).

Em Kant, autonomia significa independência da vontade em relação ao objeto de desejo e a capacidade de determinar-se conforme a própria lei, ou seja, a vontade de se tornar autônomo, ao passo que a autonomia não é simplesmente submetida a leis, uma vez que a vontade é também autora, pois, para ele,

4 Martinho Lutero (1483-1546) Líder da reforma protestante, foi frade Agostiniano, e teólogo assistemático da Saxônia, educado no nominalismo e especializado em línguas bíblicas. Sua carreira como reformador da igreja, se deu em 1517 com as 95 teses da venda de indulgencias, escreveu também: apelo a nobreza, o cativeiro babilônico da igreja, e a liberdade do cristão, que consequentemente levou à sua excomunhão. Elaborou uma teologia Cristocêntrica-bíblica, antifilosófica, propôs a justificação só pela fé, e o sacerdócio dos fiéis, reformou a missa e reconheceu apenas dois sacramentos, (batismo e eucaristia) defendeu a consubstanciação ao invés da transubstanciação (AUDI, 2006, P. 595).

40 Autonomia e educação

Só um ser racional tem capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária à razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas objetivamente necessária, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a faculdade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessário, quer dizer, como bom. (KANT, 1974, p. 217)

O fato de Kant considerar que a autonomia é o

processo de o homem guiar-se pela razão se dá no contexto em que o filósofo estava inserido, onde havia demasiada confiança na razão pelo pensamento iluminista. Entretanto se faz necessário lembrar que Kant se afasta do iluminismo em alguns aspectos essenciais (ZATTI, 2007).

Uma explicação mais acessível para o conceito de autonomia em Kant é apontado no seu texto “Resposta à Pergunta: O que é Esclarecimento?” em que Kant considera que esclarecimento é a saída da menoridade para o uso da razão, ou seja, a autonomia. Mediante esse “esclarecimento”, elucidamos que, dessa forma, Kant especifica que se faz necessária essa saída do homem de sua menoridade, mesmo que essa transição seja penosa (ZATTI, 2007).

Esse termo, Aufklärung, usado por Kant, tem sua melhor tradução para o português na palavra “esclarecimento”. Contudo compreendemos que Kant “vincula, esclarecimento e enuncia o rumo que o cidadão deve seguir que é a busca da maioridade. Portanto, esclarecimento é sinônimo de maioridade e autonomia” (BICCA, 1990, p. 37 apud CHITOLINA; HARTMANN, 2002, p. 244).

O filósofo faz primeiramente uma crítica ao indivíduo que permanece em sua menoridade. Mas, ao mesmo tempo, reconhece que há uma diferença entre menoridade natural, em

Definição de Autonomia... 41

que o autor coloca o exemplo das crianças, e o ato de pertencer à menoridade por preguiça ou covardia (CHITOLINA; HARTMANN, 2002). Por menoridade, o filósofo alemão compreende que é o ato de permanecer sob tutela de outras pessoas, da qual se é culpado, quando esta menoridade não é própria da natureza humana, ou seja, quando acontece o fato de o indivíduo acreditar que não consegue caminhar sozinho, a preguiça se destina do indivíduo não querer sair do comodismo, no caso, tem preguiça de raciocinar, pois outros fazem isso por ele, seja um diretor espiritual, um nutricionista ou outros. Todavia o filósofo assevera que são necessárias algumas quedas para o indivíduo caminhar sozinho, com isso a saída da menoridade torna-se difícil (KANT, 2005).

Kant, por sua vez, faz um contraponto do uso privado e uso público da razão. O primeiro se trata de quando não se podem expor suas ideias por estar vinculado e submetido às restrições de uma instituição, tal como o professor, o sacerdote, como cita o autor. O uso público da razão se dá quando o indivíduo se emancipa, torna-se autor, como, por exemplo, escreve um livro (KANT, 2005).

Certo é que a natureza já propõe ao homem viver sob tutela dos outros, isso é natural, quando se trata de uma criança ou pessoas com problemas mentais, visto que essas pessoas não podem tomar decisões sozinhas. Mas é inaceitável o indivíduo adulto, com suas plenas faculdades mentais, continuar vivendo assim (KANT, 2005).

Portanto, o homem deve buscar sair do estado de menoridade e exercer sua autonomia e fazer uso público de sua razão (KANT, 2005).

Chitolina e Hartmann (2007), fazendo uma comparação da saída da menoridade para a autonomia, com o Mito da Caverna5, de Platão, postulam que

5 O mito da caverna se encontra no livro VII da Republica, que relata que a condição em que os homens vivem no mundo é semelhante à que os

42 Autonomia e educação

A consequência desta situação de dependência é que assim como o indivíduo platônico que sai da caverna e fica perplexo sem conseguir discernir o que é real, também aquele que ousa romper com sua dependência apenas procederá de maneira muito insegura perante as dificuldades mais simples. É por isso que Kant afirma serem poucos os que transformam o espírito ao ponto de romper com a menoridade. Kant acredita que não só é possível que o indivíduo se esclareça mas também um público o possa fazer, mas este é um processo lento e não ocorre por revoluções que até podem alterar o mando político mas não representam mudança porque os novos preconceitos substituem os antigos. (CHITOLINA; HARTMANN, 2007, p. 243)

Tendo essa compreensão de autonomia, Kant

considera que a maneira de buscá-la é por meio da educação. Dessa forma, Kant aponta que a educação do homem deve levar este ao exercício racional e consequentemente à autonomia, todavia o objetivo da educação é formar para a autonomia, a fim de que o indivíduo possa fazer uso da própria racionalidade. Postulando o que Kant afirma, “o homem não pode tornar-se verdadeiro homem senão pela educação” (KANT, 2011, p. 15), compreendemos que o homem deve ser formado, ou seja, é um processo.

Contrapondo a heteronomia, Kant considera que a satisfação dos desejos não leva o indivíduo à autonomia:

escravos vivem dentro de uma caverna, em que, presos, só conseguem enxergar coisas no fundo dela através de sombras das coisas e dos seres que estão fora; nesse sentido a filosofia serve como uma libertação a estes escravos, como a saída da caverna e a observação das coisas reais. E o princípio da sua vida e da sua cognoscibilidade, ou seja, o Sol, promotor das sombras projetadas no fundo da caverna. Em contrapartida, o retorno para a caverna se faz para tentar esclarecer os que ali permanecem, mas estes não compreendem (PLATÃO, [19--]).

Definição de Autonomia... 43

Para Kant, se os desejos, os impulsos, impressões, ou qualquer objeto da faculdade de desejar forem condições para o princípio da regra prática, então o princípio será empírico, não será lei prática, não haverá incondicionalidade do agir, e assim, não garantirá a autonomia. A lei moral deve independer da experiência. Uma vontade boa determina-se a si mesma, independentemente de qualquer causalidade empírica, sem preocupar-se com prazer ou dor que a ação possa provocar. (ZATTI, 2007, p. 27-28)

Não obstante, o princípio da autonomia consiste em

promulgar leis universais e submeter-se a elas, as quais Kant denomina “imperativo categórico6” (ZATTI, 2007).

Consideramos que o imperativo categórico é o ato de o homem agir segundo as máximas universais, dessa forma, diante de situações, ou seja, diante de suas escolhas, o homem deve optar por agir racionalmente, segundo o dever. Vicente Zatti (2007), por sua vez, percebeu, a partir das ideias de Kant, que “o homem não é determinado pela natureza, e, pelo livre-arbítrio, pode escolher agir pelo dever, e nisso consiste sua autonomia” (ZATTI, 2007, p. 31).

2.2.1 Educar para a autonomia

A partir da obra Sobre a Pedagogia, de Kant,

apontaremos aqui alguns meios para se aplicar o processo de autonomia na educação. A princípio, já compreendemos que

6 O imperativo categórico declara ser uma ação necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade, e só está interessado na forma da ação e no princípio que a rege; o princípio de que ela mesma deriva, este imperativo, declara a universalidade de lei. Desse modo, o imperativo se estabelece nesta norma de Kant, “age somente segundo uma máxima tal que possas, ao mesmo tempo, querer que ela se torne lei universal” a partir disso Kant assegura que aquilo que dá sustentabilidade e independência a essa máxima é o dever pelo dever (CAYGILL, 2000, p. 192-193).

44 Autonomia e educação

Kant propõe uma educação para que o indivíduo possa alcançar a autonomia, ou seja, o homem se humaniza por meio da educação e, dessa forma, não o faz sozinho:

O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber tal educação de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros. Portanto a falta de disciplina e de instrução em certos homens torna-os mestres muitos ruins de seus educandos. (KANT, 2011, p. 15)

Kant entende a educação como um processo de

evolução, ou poderíamos denominar como aprimoramento, dessa forma, aqueles que são educados hoje, amanhã, deverão ser melhores educadores; o exemplo que Kant postula é a situação familiar, em que “os pais, aos quais já receberam certa educação, são exemplo pelos quais os filhos se regulam. Mas, estes devem tornar-se melhores” (KANT, 2011, p. 21).

Com muita propriedade e razão, Kant assegura que haverá uma sociedade melhor, mais justa e consciente, quando a educação for acessível e de qualidade, isto é, declara que há no homem uma tendência a ser racional e a fazer o bem, mas esta precisa ser aprimorada, essa compreensão parte da análise de Kant de que

uma boa educação é justamente a fonte de todo o bem neste mundo, os germes são depositados no homem devem ser desenvolvido sempre mais [...] no homem não há germes senão para o bem. (KANT, 2011, p. 23)

A educação deve ser construída a partir da experiência

e da razão (ZATTI, 2007). Nesse sentido, a educação não pode ser puramente mecânica e nem puramente racional, visto que Kant condena a educação mecanicista, ou uma educação que possa fragmentar as potencialidades do

Definição de Autonomia... 45

indivíduo, portanto, a educação deve fragmentar as potencialidades do educando, mas envolve-lo em sentido físico, intelectual e moral (ZATTI, 2007). Fora desses âmbitos, estará formando seres heterônomos.

Kant não compreende a educação como um treinamento, pois por treinamento sabe-se que os animais também podem ser treinados, mas postula que se faz necessário ensinar o sujeito a pensar, mais do que simplesmente estabelecer regras e determinar que o sujeito deve obedecer a elas por coerção divina. Sua argumentação se dá a partir do fragmento que diz:

Entretanto, não é suficiente treinar [...] urge que aprendam a pensar. [...] ensinamos às crianças aquilo que julgamos essencial e deixamos a moral para o pregador. Mas como é infinitamente importante ensinar as crianças a odiar os vícios por virtude, não pela simples razão de que Deus o proibiu, mas por ser desprezível por si mesmo! De outro modo, elas pensariam facilmente que o vício poderia ser praticado e que seria permitido, se Deus não o houvesse proibido e que Deus poderia fazer uma exceção a seu favor. (KANT, 2011, p. 27)

Segundo Kant, a educação deve assegurar ao

indivíduo uma série de limites, para que a liberdade possa crescer, e nesta consiste a autonomia, estando ambos os conceitos interligados. Compreendemos que Kant nos propõe pensar uma educação para a autonomia que busque desenvolver as capacidades do educando e, a partir disso, este possa ter condições de estabelecer metas e cumpri-las livremente.

Consideramos que, de acordo com a educação em Kant, as crianças devem ser levadas desde cedo para a escola, pois assim vão se adaptando e se disciplinando, mesmo que não seja puramente para aprender, ele acredita também que é o conhecimento que possibilita a autonomia. Todavia Zatti

46 Autonomia e educação

(2007) contesta, dizendo “que a razão teórica não é tão inocente, tão neutra, quanto ele pensava, o conhecimento não está imune à ação das ideologias, e isso deve ser levado em conta ao se pretender educar para a Autonomia” (ZATTI, 2007, p. 34).

Entretanto destacamos em nosso trabalho que a educação se dá seguindo três traços essenciais: a obediência, a verdade e a sociabilidade; a obediência é definida por Zatti (2007) em dois aspectos: a obediência absoluta, a qual é importante para que a criança aprenda o respeito às leis que deverá seguir, e também a obediência boa e razoável, a qual remete àquilo que é voluntário. A veracidade se trata de tal solidez no pensamento de Kant, tal como vimos no primeiro capítulo deste trabalho. A partir da educação que Kant tivera, estabelece ele que a veracidade é o principal traço de caráter, dito de outro modo, uma pessoa que mente não tem caráter, pois a mentira promove o rebaixamento da dignidade humana, por isso a verdade está ligada à dignidade e esta, à autonomia, a sociabilidade está em sentido de estar à disposição do outro, ou seja, a alteridade (ZATTI, 2007).

Portanto, Kant esclarece que cada ser humano deve pontuar imperativos categóricos, ou seja, leis universais, para serem seguidas, e nisso consiste o princípio da autonomia, que deve, por sua vez, ser desenvolvida, dessa forma, a educação se faz necessária para que o homem possa obter bom resultado desse processo (ZATTI, 2007), isto é, a educação deve auxiliar o homem a viver uma vida racional.

Com base nesses apontamentos, queremos, de modo insofismável, ressaltar que não esgotamos e nem esgotaremos o sentido dos conceitos de autonomia e de educação, bem como a definição apontada por Freire e Kant.

Fizemos aqui uma análise desses conceitos a fim de despertar interesses para futuro aprofundamentos. Com isso, queremos apontar, no próximo capítulo, alguns pontos de semelhança e diferença que há nesses autores (Imanuel Kant

Definição de Autonomia... 47

e Paulo Freire), referentes à saída do homem da menoridade para a autonomia, isto é, o processo de pensamento ingênuo para o pensamento crítico.

48 Autonomia e educação

III

CONSONÂNCIA E DISSONÂNCIA TEÓRICA DE KANT E FREIRE

Analisando a teoria de nossos autores, percebemos

que perpassaram contextos históricos, geográficos, políticos, econômicos, culturais, distintos uns dos outros, e isso nos dá abertura para apontarmos as dissonâncias que há entre eles, tanto no que se refere ao contexto em que estavam inseridos como também no aspecto teórico. Não obstante nos limitaremos a pontuar apenas algumas semelhanças e diferenças, de modo que não esgotaremos as reflexões acerca das divergências e convergências desses autores. Por terem pensado o tema da autonomia, bem como o da educação, mesmo em situações distintas, isso nos favorece apontarmos alguns aspectos de semelhança, ou seja, pontos ou ideias em que eles se convergem e, dessa forma, lançar luzes à promoção de uma educação emancipatória.

Ao nos atermos às ideias de Freire sobre autonomia, somos levados a pensar que ele foi leitor das obras de Kant, ou seja, que as ideias de Kant tenham influenciado Freire, uma vez que se assemelham também em muitos aspectos no que tange este assunto. Mas essa concepção é errônea, pois, de acordo com Ana Maria Freire, sua segunda esposa, Freire não faz menção a Kant em nenhum de seus escritos. É o que ressalta a pesquisa de Zatti:

Ana Maria Freire é a segunda esposa, hoje viúva, de Paulo Freire. Em uma conversa por e-mail no dia 09/01/2006, após ser interrogada por mim respondeu: “Caro Vicente, realmente Paulo não citou Kant em nenhum de seus livros. Há apenas um livro de Kant assinalado/ comprado no caderno de anotações de meu marido e com toda certeza

50 Autonomia e educação

lido por ele: no ano de 1942, filosofia da história. Veja bem, Paulo lia livros de várias bibliotecas, [do colégio de meu pai (colégio Osvaldo Cruz), públicas e de amigos] do Recife e só assinalou suas compras até o ano de 1955. Portanto, não se pode assegurar que este tenha sido o único livro de Kant estudado por ele. (ZATTI, 2007, p. 64)

Isso não quer dizer que Freire não tenha sido

influenciado por autores que o precederam, pois ele destaca os autores que foram base para seu pensamento: “Marx, Lukás, Fromm, Gramsci, Fanon, Memmi, Sartre, Kosik, Agnes Hellder, M. Ponty, Simone Weill Arendt, Marcuse...” (ZATTI, 2007, p. 64). Embora esses autores o tenham influenciado, há uma originalidade no pensamento de Freire, de modo que ele de fato marcou avanços teóricos principalmente no que tange à educação. 3.1 ASPECTO CONSONANTE

Um relevante ponto convergente na teoria desses

autores se dá ao passo que ambos consideram que o homem é construto de si e, em consideração a isso, seria contraditório ambos não desprezarem a memorização mecânica, isto é, o fato de o homem ser construto de si pressupõe repúdio à memorização mecânica, uma vez que esta nega o pensar por si mesmo, a curiosidade humana e também a autonomia (ZATTI, 2007). Dessa forma, uma educação que priorize a memorização mecânica formará seres humanos acríticos, incapazes de assumir seu papel como sujeitos na história, embora ambos os filósofos considerem que, de fato, a memória é um instrumento auxiliar na educação.

Ao contrário disso, a educação para a autonomia traz algumas exigências que possibilitarão o indivíduo a desenvolver

Consonância e dissonância... 51

[...] um senso apurado de autocrítica, dependente, por sua vez, tanto da consciência que o sujeito tem de si quanto a percepção que tem da realidade. Nessa perspectiva, educar é reeducar, pensar é repensar. (CHITOLINA, 2003, p. 79)

De acordo com a reflexão de Chitolina (2003) sobre

os estudos em Kant, ele aponta também que é à medida que o homem se desenvolve, isto é, aperfeiçoa-se, que ele vai se construindo ao longo da história:

[...] a formação do pensamento autônomo não decorre de um processo espontâneo de nossa natureza racional. O ser humano apresenta-se à educação e à filosofia como indeterminado, perfectível, passível tanto de desenvolvimento e aperfeiçoamento de suas potencialidades quanto de aquisição de novas habilidades. Assim, diferentemente dos animais, os homens precisam determinar-se, produzir-se a si mesmo ao longo da história. (CHITOLINA, 2003, p. 72)

Não podemos deixar de apontar a relevância que Kant

também faz ao diálogo na formação pedagógica, levando em consideração que Freire faz do diálogo um instrumento essencial para a autonomia, enquanto que Kant ressalta que a esta é adquirida pelo uso livre da razão com seus princípios transcendentais a priori, porém isso não quer dizer que Kant desabona o diálogo como um rico instrumento pedagógico, pois, segundo o filósofo alemão, obter a autonomia pressupõe que o indivíduo tenha passado pela experiência de se reconhecer como sujeito de si, ou seja, ter a consciência de fazer-se a si mesmo:

Educar para a autonomia significa proporcionar aos alunos a experiência de serem sujeitos, de se reconhecer como instancia normativa, legisladora e julgadora de seu pensar, querer e agir. Porém, a percepção de si não é um resultado espontâneo ou natural da vida, mas um processo que se

52 Autonomia e educação

constitui a partir da intervenção pedagógica, ao se criarem condições práticas de interação entre os alunos. O surgimento da consciência no sujeito, representa a manifestação de uma subjetividade que se sabe como tal, isto é, capaz de se autodeterminar, de fazer-se a si mesmo. Se aquilo que somos não é norma para o que devemos ser, então a presença do outro é sempre interpelação acerca daquilo que pensamos, fazemos, agimos e sentimos. Sem comunicação aberta para o outro, o sujeito é incapaz de chegar à consciência de si. O processo que marca a passagem da individualidade para a subjetividade instaura um percurso social à consciência, um apelo ao debate, à discussão. A autonomização dos sujeitos pressupõe o reconhecimento intersubjetivo do princípio irredutível da liberdade. (CHITOLINA, 2003, p. 75)

Nesse sentido, tal como aponta Chitolina (2003), a

comunicação, ou seja, o diálogo aberto ao outro, é fundamental para o sujeito ter consciência de si, consequentemente possibilitando o uso da razão e da liberdade, de tal modo que oportunize uma vida em sociedade.

No que tange à educação, esses autores não se distanciam ao apontar a educação como algo mais elevado que o treinamento, de modo que o ser humano deve ser educado para ser livre, isto é, educar para que o indivíduo racionalmente possa fazer uso de sua liberdade. Para que o uso da liberdade seja coerente com a razão, a formação ética1

1 Para Freire, a ética é também um dos saberes necessários à prática pedagógica, e, mesmo não tendo escrito nenhuma obra delimitando esse tema, é possível perceber que todas as suas obras estão permeadas por um rigor ético em defesa da dignidade humana. Isso é perceptível quando manifesta sua solidariedade e compromisso de lutar pela dignidade do oprimido, isto é, dos que estão à margem. Demonstra também um compromisso ético quando manifesta sua defesa pela justiça global. Daí se segue que a educação, ou seja, a formação humana é também um processo

Consonância e dissonância... 53

torna-se um meio indispensável, já que Kant tanto quanto Freire, avistam a educação como formação para além de um treinamento. É o que nos aponta Zatti, quando afirma:

Freire e Kant são contrários à educação que se restringe ao treinamento, eles entendem a educação como processo de formação da totalidade do humano. Por isso para ambos, um dos elementos imprescindíveis na educação é a formação ética. Essa formação é indispensável para que as pessoas respeitem sua própria dignidade, a dignidade dos demais e sejam autênticos. A autonomia pressupõe a dignidade e autenticidade humana. Em consonância com isso, apontamos a formação da vontade como uma questão importantíssima para a educação que queira formar para a autonomia hoje, tendo em vista a frequente estetização da vida, que promove o isolamento e a massificação. (ZATTI, 2007, p. 71)

Nesse sentido, compreendemos que os autores

ressaltam o valor da educação, de modo que ela deva ser compreendida e assimilada na totalidade do sujeito e, com isso, destacam a real importância da formação ética, sendo ela fundamental para o respeito mútuo, ao passo que os autores ponderam que não há como formar para a autonomia sem um respeito à dignidade de si e de outrem (ZATTI, 2007).

de conquista e desenvolvimento da dimensão ética (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010). Enquanto que, para Kant, a ética esta pautada no imperativo categórico, ou seja, o homem é ético se fizer o uso da razão. O conceito de ética em Kant está fortemente relacionado dessa forma ao conceito de “Bom, Direito/direitos, imperativo, Imperativo Categórico, Mandamento, Máxima, vontade”. Nesse aspecto, a ação ética, para Kant, é aquela que racionalmente pode se tornar uma lei universal. Sendo a ação uma lei universal, o respeito à dignidade do outro está implícito (CAYGILL, 2000).

54 Autonomia e educação

3.2 ASPECTO DISSONANTE Uma dissonância que procede claramente no

pensamento desses autores se dá no que se refere à libertação do homem, isto é, qual o caminho a se tomar para a autonomia. Segundo Freire, esse processo acontece pela ação reflexão dialética sobre o mundo, enquanto que Kant aponta que seja a razão com seus atributos transcendentais a priori2 (ZATTI, 2007).

3.2.1 Saída da opressão para a autonomia

Destacamos que a ação-reflexão dialética sobre o

mundo à qual Freire se refere “designa o binômio da unidade dialética da práxis, supondo que esta seja o fazer e o saber reflexivo da ação” (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 23). Em outras palavras, o saber que realimenta criticamente o fazer, cujo resultado incide novamente sobre o saber e, assim, o saber e o fazer se refazem continuamente (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010). Ou seja, para o educador pernambucano,

Fora dessa práxis, dessa forma especial de dialética ação-reflexão, o conhecimento resulta em idealista e o fazer torna-se meramente mecânico e irrefletido, porque o “ato de conhecer envolve um movimento dialético que vai da ação à reflexão sobre ela” e desta para uma nova ação. É a mesma dialética que se desenrola entre o fazer e o saber, entre a linguagem e a ação, a palavra e o trabalho, porque não pode haver pronuncia no mundo sem a consciente

2 No entender de Kant, a priori é todo juízo e elementos que se sustentam “que eles são “claros e certos” de conhecimento independente da experiência. [...] em contraste com os modos a posteriori do conhecimento, os quais recorrem exclusivamente à experiência” (CAYGILL, 2000, p. 36).

Consonância e dissonância... 55

ação transformadora sobre este. (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010, p. 24)

Nossa reflexão torna-se mais compreensível a partir

da interpretação de Azevedo (2010) que sustenta: “os homens se comunicam pela palavra e para Paulo Freire, toda palavra autêntica, é práxis, e a prática é ação-reflexão dos homens sobre o mundo com o objetivo de transformá-lo” (AZEVEDO, 2010, p. 43). Ter o locutor e interlocutor para um diálogo ainda não basta, para que este se torne profícuo,

é necessário ter algo pra dizer, e isso requer uma riqueza interior, que se alimenta com a leitura, [...] e a abertura à sociedade. Caso contrário, o diálogo se torna aborrecido e inconsistente. (PAPA FRANCISCO, 2016, p. 116)

Em vista da dialética ação-reflexão, o homem afirma-

se como sujeito, isto é, como ser de relação no mundo, de forma que, sendo humano, pode refletir sobre suas limitações e projetar a ação para transformar a realidade que o condiciona. Dito de outro modo, o homem atua sobre a realidade objetiva e tem consciência disso (STRECK; RENDIN; ZITKOSKI, 2010). Nessa perspectiva, Azevedo (2010) acentua que, para Freire, há um aspecto fundamental da consciência, pois

Não existe primeiro uma consciência e depois o mundo; ambos estão em interação: o mundo é relativo a ela e ela é relativo ao mundo. É justamente essa relação dialética consciência-mundo é que implica os homens como seres conscientes, isto é, são consciência de si e consciência do mundo; o ser humano é todo consciência. (AZEVEDO, 2010, p. 41)

Como síntese desta reflexão, apontamos que o

processo para a autonomia se dá com a conscientização do

56 Autonomia e educação

oprimido, o ato de conscientizar-se se dá pela educação libertadora, e esta, no entender de Freire, é uma educação dialógica. Dessa forma, para o amadurecimento da liberdade, isto é, para o crescimento integral de um educando e o cultivo de uma autêntica autonomia, o que de fato interessa é “o diálogo como um instrumento de libertação, e é o método para a comunhão mediatizante da humanidade, o meio pelo qual os homens entram em comunhão” (AZEVEDO, 2010, p. 43). Fundamentalmente, para Freire, o diálogo é uma relação de comunhão entre dois polos, um “eu” e um “tu”, e esse diálogo, para ser libertador, há de ter uma virtude base, que é o amor:

O amor é a base do encontro dos homens que procuram tornar o mundo mais humano. E então com estas coordenadas, “encontro”, “mundo mediador” e “amor”, Freire parte para a sua definição de diálogo: um encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o pronunciam, isto é, o transformam e transformando-o, o humanizam para a humanização de todos. (JORGE, 1979, p. 35-36)

A partir dessa reflexão, será perceptível a dissonância

que há no pensamento dos autores estudados, Kant e Freire, no que se refere à libertação do homem, ou seja, como o indivíduo se torna autônomo. Uma vez que analisamos a proposta de Freire, proposta esta que é a “ação-reflexão dialética sobre o mundo”, analisaremos agora o que Kant nos aponta como saída do processo alienante, que, segundo ele, dá-se pela “Razão com seus atributos transcendentais a priori”.

3.2.2 Saída da menoridade para a autonomia

Para tanto, procuremos entender de que forma Kant

considera que a razão, com seus atributos transcendentais, a priori pode tornar o indivíduo autônomo. O filósofo alemão

Consonância e dissonância... 57

considera razão o elemento primordial que distingue o homem dos demais animais e consiste na faculdade fundamental de julgar, além do que razão não se traduz por entendimento, ou seja, em partes, esse conceito de razão acompanha a tradição, uma vez que o filósofo Descartes já havia estabelecido esse princípio (CAYGILL, 2000).

Kant, ao ampliar o significado de razão, sustenta a ideia de que esta e a liberdade são na verdade análogas e a razão tem a função de unificar o conhecimento, ao considerar que “razão e liberdade poderiam com igual facilidade, sustentar-se ou arruinar-se mutuamente” (CAYGILL, 2000, p. 271). De igual modo, o autor analisa que,

Desde o ponto de vista da razão, os seres humanos estão livres da determinante influência do mundo sensível; isso permite-lhes agir de acordo com os princípios que são independentes da natureza, mas também os encoraja a formular inferências a respeito do mundo que excedem os limites do entendimento. A razão aliada à liberdade é excessiva, procurando explorar incondicionado, quebrando todos os limites, “portanto está no poder da liberdade exceder todo e qualquer limite que se lhe queira atribuir”. (CAYGILL, 2000, p. 271)

Levando em consideração essa reflexão de Caygill

(2000), é possível apontarmos, pelas próprias palavras de Kant, que sem a liberdade não há autonomia, ou seja, razão e liberdade são indissociáveis, ao passo que é possível ao homem chegar ao esclarecimento, mas se a liberdade também for dada a ele (KANT, 2005).

Para este esclarecimento [<Aufklärung>], porém, nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos!

58 Autonomia e educação

O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento [<Aufklärung>]? Qual não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento [<Aufklärung>] entre os homens. O uso privado da razão pode, porém, muitas vezes, ser muito estreitamente limitado, sem, contudo, por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento [<Aufklärung>]. (KANT, 2005, p. 2)

Tendo em vista que a liberdade é fundamental para

que a razão possa atuar, vamos entendendo que o processo de esclarecimento, isto é, a autonomia vai se construindo. A razão, segundo Kant, é aquela que é capaz de ditar as leis morais universais que Kant denomina de imperativo categórico. Com isso, o filósofo aponta de fato que há “razões naturais”, mas estas, mesmo que possam influenciar a vontade, não produzem um “dever” (CAYGILL, 2000, p. 271).

Cumpre notar que a razão que é capaz de uma auto direção, não está pronta e acabada, pois as crianças, por exemplo, é natural que sejam incapazes de se dirigir por si sós, essa atitude de viver na menoridade é reprovável apenas no indivíduo adulto, que, dotado de capacidades físicas e psíquicas, considera cômodo viver na menoridade (CHITOLINA, 2003).

Dessa forma, o filósofo alemão postula que, quando o homem faz o uso da razão de maneira livre, e não se deixa determinar por princípios heterônimos, entra em um processo de esclarecimento. Essa razão à qual Kant se refere é aquela que é capaz de criar uma própria ordem, isto é,

Consonância e dissonância... 59

produzir um “dever” que não seja influenciado pelo impulso ou inclinações (CAYGILL, 2000):

Entretanto, a autonomia, isto é, a capacidade de pensar por si mesmo e agir movido pela razão, não repousa apenas num ato de coragem e de decisão pessoal do sujeito. Kant credita à educação a tarefa e o mérito de desenvolver a racionalidade, a natureza humana. Atribui à educação uma responsabilidade intransferível na formação dos cidadãos, porque capaz de restaurar a autonomia do pensamento e definir a nova condição do homem em relação àquilo que ele pode ser (CHITOLINA, 2003, p. 71).

Em síntese, o homem atinge a maioridade, ou seja, a

autonomia, quando “faz o uso público de sua própria razão, e expõe publicamente ao mundo suas ideias sobre uma melhor compreensão dela, mesmo por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existentes” (KANT, 2005, p. 7). Daí se segue que o uso público da razão pressupõe a liberdade; a partir da compreensão de Chitolina (2003), “a liberdade possibilita a realização da autonomia da vontade no sujeito, mediante o uso público da razão” (CHITOLINA, 2003, p. 79). Com efeito, essa razão também, segundo Kant, é aquela que é capaz de produzir a própria lei, ou seja, dirigir a vida humana a partir do imperativo categórico, que consequentemente é inerente ao homem, isto é, a priori.

Cabe ressaltar que essa emancipação a que se refere Kant acontece no indivíduo, pelo próprio indivíduo, ou seja, o homem permanece na menoridade, caso queira, e, com o uso da razão, este pode sair da condição de menoridade e pensar por si mesmo. Portanto,

Kant estava convencido de que a emancipação seria, antes de tudo, o resultado da auto conquista, mérito e aquisição do sujeito monológico singularmente considerado, através do exercício livre da vontade. (CHTOLINA, 2003, p. 80)

60 Autonomia e educação

3.3 AVANÇOS TEÓRICOS DE FREIRE NO QUE TANGE À EDUCAÇÃO E À AUTONOMIA

Enquanto que, para Kant, o esclarecimento é uma

auto conquista, visto que o indivíduo sai da menoridade, apenas fazendo o uso da razão, em Freire não há auto conquista, uma vez que o sujeito não está isolado do mundo, de modo que a emancipação não se dá na subjetividade, na individualidade, mas no coletivo. “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 2014, p. 71).

Com esta análise, é possível inferirmos que Freire não acredita que a razão, por si só, possa tirar o indivíduo da menoridade, bem como não se pode pensar uma autonomia absoluta, pois, no entender de Freire, a racionalidade não possibilita a autonomia, mas esta necessita de fato da racionalidade:

Hoje sabemos que não podemos pensar uma sociedade e indivíduos que se fazem autonomamente a partir da racionalidade pura [...] Para Freire, a razão por si só não possibilita a autonomia, no entanto, ele reconhece a necessidade da racionalidade. A partir da análise da proposta freireano, defendemos que ela pressupõe uma razão no sentido dada por Kant. [...] Freire apresenta avanços fundamentais por considerar o caráter essencialmente social da constituição do sujeito e por pressupor uma razão que não é transcendental nos moldes kantiano. (ZATTI, 2007, p. 65)

Como visto ao longo deste trabalho, Kant nos

apresenta a necessidade de uma educação que vise formar uma vida racional, que possibilite ao sujeito a construção de si. E isso bem sabemos que é necessário também nos tempos hodiernos. Contudo essa “racionalidade” e “construção de si” apenas serão colocadas em prática quando o sistema

Consonância e dissonância... 61

educativo aderir à concepção de razão não transcendental e à concepção de sujeito dada por Freire (ZATTI, 2007). E nisso consiste a originalidade de Freire que consequentemente se distancia teoricamente de Kant.

A nossa reflexão acerca dessa convergência e divergência teórica entre Kant e Freire se dá de modo essencial no que tange à saída da menoridade para a autonomia por meio da educação, por isso, de modo a não delongar em reflexões além desta, trazemos, nas palavras de Zatti (2007), aquilo que podemos denominar de avanço ou progresso teórico no que diz respeito à ideia de sujeito autônomo:

Defendemos que o pensamento freireano possui como pressuposto a concepção de sujeito formulado por Kant, na medida em que ambos pensam o homem como sujeito que pela sua liberdade constrói o mundo e a si. Nos textos de Freire perpassa a ideia de que a educação deve tornar o educando sujeito, assim ele será autônomo. Mas a diferença em relação a Kant é que ele aborda o sujeito considerando seu caráter essencialmente dialógico, a intersubjetividade possui papel estruturante. Pela problematização e decodificação crítica do mundo, o homem se descobre como instaurador do mundo de sua existência [...] a consciência do mundo e de si crescem juntas e em razão direta, por isso ninguém se conscientiza separadamente dos demais. (ZATTI, 2007, p. 66)

Nesse sentido, bem como cita Zatti (2007) acima, o

pensamento freireano acompanha a concepção de sujeito que a tradição estabelecera, pois, da mesma forma que outrora Kant já sustentava a ideia de que o homem pela sua liberdade constrói-se a si mesmo e ao mundo, Freire também pontua que o homem é construto de si e é com essa consciência que este consegue tornar-se autônomo. Sendo original em seu pensamento, Freire segue pontuando que o diálogo é essencial

62 Autonomia e educação

para tal, e esse diálogo, como apontado anteriormente, tem por base fundamental o amor, dessa forma, Freire não fica apenas na razão, mas valoriza também os sentimentos.

3.4 PAPEL DA ESCOLA E DO EDUCADOR

Tendo em vista esta reflexão, é válido apontar

também a função que cabe à escola para formar indivíduos autônomos, isto é, o que seria de fato necessário priorizar na formação escolar para não reproduzir sujeitos alienados, ou seja, heterônomos.

No caso de Paulo Freire, a educação é sempre enriquecida de política, de modo que não há neutralidade no ensinar, isto é, o conhecimento não é inocente e, no processo de ensino, está inerente à ideologia. O próprio autor sustenta a ideia de que a educação é ideológica na sua obra Pedagogia da Autonomia, quando este postula que “é impossível a neutralidade na educação. E é impossível não porque [...] o determinem. A educação não vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política” (FREIRE, 2015, p. 108). E é com essa consciência que o educador deve estar advertido, pois o poder do discurso ideológico faz o educando ter a mente “anestesiada”, a ideologia, confunde a curiosidade, distorce a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos, por isso o educador deve estar atento e intervir com criticidade a qualquer discurso ideológico que venha apequenar, isto é, prejudicar, a imagem do homem como sujeito na história (FREIRE, 2015).

Freire destaca alguns jargões que frequentemente ouvimos, que nos servem de exemplo para a compreensão de um discurso ideológico que não está em coerência com a ética:

“O negro é geneticamente inferior ao branco. É uma pena, mas é isso que a ciência diz.” “Em defesa de sua honra, o marido matou a mulher.”

Consonância e dissonância... 63

“Que poderíamos esperar deles, uns baderneiros, invasores de terra?” “Essa gente é sempre assim: damos-lhe os pés e logo quer as mãos.” “Nós já sabemos o que o povo quer e do que precisa. Perguntar-lhe seria uma perda de tempo.” “O saber erudito a ser entregue as massas incultas é a sua salvação.” “Maria é negra, mas é bondosa e competente.” “Esse sujeito é um bom cara. É nordestino, mas é sério e prestimoso.” “Você sabe com quem está falando?” “Que vergonha, homem casar com homem, mulher casar com mulher.” “É isso, você vai se meter com gentinha, é o que dá.” “Quando negro não suja na entrada, suja na saída.” “O governo tem que investir mesmo é nas áreas onde mora gente que paga imposto.” “Você não precisa pensar. Vote em fulano, que pensa por você.” “Você, desempregado, seja grato. Vote em quem ajudou você. Vote em fulano de tal.” “Está se vendo, pela cara, que se trata de gente fina, de trato, que tomou chá em pequeno, e não de um pé-rapado qualquer.” “O professor falou sobre a Inconfidência Mineira.” “O Brasil foi descoberto por Cabral.” (FREIRE, 2015, p.129-130)

Para que possamos de fato compreender o que não

podemos deixar de lado em uma formação, iremos aos saberes necessários à prática pedagógica pois, segundo Freire, ensinar exige rigorosidade metódica, pesquisa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, estética e ética, corporificação da palavra com o exemplo, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento e assunção da identidade cultural, consciência do inacabamento, reconhecimento de ser

64 Autonomia e educação

condicionado, respeito à autonomia do educando, bom senso, humildade, tolerância e luta em defesa dos educadores, apreensão da realidade, alegria e esperança, convicção de que a mudança é possível, curiosidade, segurança, competência profissional e generosidade, comprometimento, compreensão de que a educação é uma forma de intervenção no mundo, liberdade e autoridade, tomada consciente de decisões, saber escutar, reconhecimento de que a educação é ideológica, disponibilidade para o diálogo e querer bem aos educandos (FREIRE, 2015).

Como sabemos, Kant aponta que a educação é fundamental para o homem, pois é só pela educação que este conseguirá transformar sua animalidade em humanidade, isto é, os animais nascem com os instintos aflorados, de forma a não necessitarem ser mais do que o que já são, mas o homem deverá passar pelo processo da educação que requer esforço (KANT, 2011). Essa educação à qual se refere Kant apresenta duas vertentes: “a disciplina, porém, é puramente negativa, porque é o tratamento pelo qual se tira do homem sua selvageria; a instrução pelo contrário, é a parte positiva da educação” (KANT, 2011, p. 12).

Algo fundamental que Kant discute em sua obra Sobre a pedagogia é a percepção de que a educação do homem deve se iniciar desde criança a fim de que este possa aprender a obedecer e futuramente em sua liberdade aprenda a obedecer à sua própria razão. Desse modo, o homem se tornará aquilo que a educação faz dele, isto é, se a educação for ruim, será um homem ruim e ainda reproduzirá isso aos outros. Por outro lado, se a educação tornar o homem bom, conduzirá uma boa educação a outros, nessa perspectiva “o homem é aquilo que a educação dele faz” (KANT, 2011, p. 15).

Com esse contexto de processo, Kant também destaca que a educação é um progresso quando diz que a educação é uma arte, cuja prática deve estar sempre em um processo de aperfeiçoamento. Sendo assim, uma das coisas

Consonância e dissonância... 65

que tende a se priorizar na educação é a disposição no homem de fazer o bem. Mais do que isso, a educação deve ser raciocinada, de modo a fazer o bem, mas não apenas mecanicamente, mas por meio do raciocínio encontrar um sentido pelo qual o faz (KANT, 2011).

Ainda com esse raciocínio, é possível inferirmos que a sociedade poderá desenvolver uma boa educação, quando, de fato, investir na educação, ou seja, o melhoramento da sociedade se dará quando houver bons governos, para isso é preciso que se invista na educação desta. Dito de outro modo, formando bons formadores estarão formando outros bons formadores. Dessa forma, destaca Kant: “A direção das escolas deveria, portanto, depender das pessoas competentes e ilustradas, toda cultura começa pelas pessoas privadas e depois destas, se difunde” (KANT, 2011, p. 24).

Kant enumera quatro pontos que são imprescindíveis na formação do homem: a) a disciplina, isto é, aquilo que impede que a animalidade prevaleça sobre a humanidade; b) tornar o sujeito culto, ou seja, fazer com que o mesmo obtenha o conhecimento; c) tornar o homem prudente, de modo que este se torne civilizado, a fim de que ele reconheça seu lugar na sociedade, seja querido e tenha influência; d) cuidar da moralização, ou seja, fazer com que se conduza pela moral e com isso procure apenas os bons fins, sendo este o mais importante (KANT, 2011).

Não obstante, a partir dos estudos de Chitolina (2003), poderemos apontar o que ainda Kant considera que a escola deve priorizar. Prioridades que, seguindo-as, estarão formando-se sujeitos que não apenas reproduzem o pensamento já pensado, que é próprio da educação bancária, que é próprio do sujeito heterônomo, mas tornarão o sujeito capaz de pensar por si mesmo. Chitolina (2003) compreende que Segundo Kant, é tarefa da instituição escolar;

66 Autonomia e educação

[...] gerar nos alunos as condições de autonomia do pensamento é indagar-se acerca de sua natureza, isto é, de sua razão de ser. Enquanto instituição social, a escola é o local privilegiado do exercício da razão, do aprendizado de valores socialmente partilhados, da assunção de um modo de pensar sobre o homem, o conhecimento, a sociedade etc. a ação educativa que se instaura no interior da escola é representativa dos interesses, dos conflitos e das necessidades de uma determinada sociedade ou cultura. [...] No entanto, a capacidade que uma escola tem de transformar a educação num processo emancipatório refere-se em primeira instancia, ao projeto pedagógico que orienta seu pensamento e sua atividade educacionais. (CHITOLINA, 2003, p. 76)

Ainda no entender de Chitolina (2003), Kant aponta

que se faz necessária uma educação para a autonomia, que, compreende ele, é uma possibilidade apenas para os adolescentes e que se solidifica na idade adulta, ou seja, para as crianças, não há possibilidade de autonomia. Para que o sujeito dessa forma se esclareça, a educação deve estar assentada no exercício crítico da razão, e nesse sentido “a escola como instância da educação filosófica tem a missão de desenvolver, estimular e valorizar nos alunos os padrões de logicidade e criticidade do pensamento” (CHITOLINA, 2003, p. 76). Com isso compreendemos que a missão da escola é produzir alunos capazes de conduzirem-se por si mesmos, servindo-se de sua própria razão, a fim de que tenham também um harmonioso convívio em sociedade.

3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer do presente trabalho, por meio da

reflexão acerca dos conceitos de autonomia e de educação dentro do pensamento de Paulo Freire e de Immanuel Kant, analisamos de antemão que pouco aprofundamos pela amplitude e profundidade do tema, mas, sem a pretensão de esgotar o assunto na teoria de ambos os autores, é possível apontarmos caminhos coerentes para uma educação que promova o esclarecimento, isto é, a autonomia.

Nosso objetivo, desde o início deste trabalho, foi refletir sobre os conceitos de autonomia e de educação na concepção freireana e na kantiana, por isso se fez necessário destacar no primeiro capítulo principais dados biográficos desses autores para que, assim, pudéssemos compreender a razão pela qual eles se posicionaram contra todo tipo de heteronomia.

Algo convergente que pontuamos nesta conclusão é que ambos os autores tiveram uma educação fortemente solidificada na moral cristã, entretanto compreenderam que a religião não é a fonte da moralidade, da educação e nem da autonomia. No entender de Freire, a autonomia é um processo gradual, em que o sujeito não a adquire repentinamente, ou seja, é à medida que o homem vai tomando decisões, que a autonomia vai se construindo, visto que Freire concebe o homem como um ser inacabado. Já na concepção kantiana, é à medida que o homem faz o uso livre de sua razão, que se denomina como sujeito autônomo, isto é, ao fazer o uso da razão com seus atributos transcendentais a priori, o homem chega ao esclarecimento, pois estará pensando por si mesmo.

A partir disso, pontuamos a necessidade de uma educação com que o indivíduo possa se tornar autônomo. Por

68 Autonomia e educação

isso elencamos alguns aspectos fundamentais que o educador, bem como a instituição escolar, deve priorizar para que haja educandos esclarecidos.

Portanto, o papel do educador, bem como da instituição escolar, é despertar o indivíduo à racionalidade, para que este não se oriente pela vontade de outrem, mas possa pensar por si mesmo, em consequência disso, faz se necessário formar a vontade de cada um por meio da educação para que o indivíduo possa fazer o uso da racionalidade de forma coerente com a razão, nesse sentido, Kant nos traz a máxima de sua reflexão, que é o imperativo categórico.

Assim, o que pontuamos em nosso trabalho é que o homem é um ser inconcluso, isto é, está em um permanente processo de formação, porém, para que o mesmo possa ser formado para o exercício racional, dito de outro modo, para que se possa formar para a autonomia, é necessário que a educação vise tornar o sujeito crítico, a fim de que este não permaneça enclausurado no determinismo, no fatalismo, na acomodação. Mas, como ser inacabado, possa humanizar-se, disciplinar-se, construir-se a si mesmo, de forma livre. Dessa forma, essa liberdade deve ser assumida com responsabilidade. Ou seja, a educação que procura esclarecer o indivíduo deve formá-lo para a responsabilidade, de outro modo, não o formará.

Ao falarmos em educação como instrumento para a autonomia, isto é, formação para a autodeterminação inteligente da vontade, compreendemos que não se trata de uma capacitação técnico-científica, verbalista, bancária, que vise à memorização mecânica, mas uma educação que envolva a totalidade do homem que engloba a política, a ética, o social e o econômico. E, para que isso seja feito, a educação precisa ser dialógica, não podendo inibir a curiosidade, a criatividade, a criticidade, a imaginação do educando, pelo contrário, deverá incentivá-las ou despertá-las. Para tanto se fará

Considerações finais... 69

necessária a memória, não como mecanicista, mas como ferramenta a serviço das demais faculdades.

Para que a educação tenha um aspecto capaz de transformar a realidade opressora, cheia de problemas como o aborto, desnutrição, armas químicas, repressão policial, violência, assassinatos, tortura, governos corruptos, lágrimas, dor, morte e silêncio ou conivência da grande maioria, será necessário formar um sujeito político, para que o mesmo possa travar em seu agir uma luta constante para uma sociedade justa.

Com o objetivo de formar um sujeito político, visando sempre ao bem comum, preparado para o convívio em uma sociedade democrática, é de fundamental importância que o diálogo seja permanente. Esse diálogo, por sua vez, para que não se torne infrutífero e inconsistente, deve ser alimentado com a leitura, a reflexão pessoal e a abertura à sociedade e principalmente solidificado em uma virtude, a qual o autor Freire denomina de amor. Pois sendo o amor a base do encontro dos homens com o mundo, estes podem transformar o mundo e transformar-se a si mesmos, humanizando-se, humanizam os outros.

Para finalizar, destacamos que o educador consciente de que a educação é ideológica deverá estar atento a todo tipo de ideologia discriminatória, a fim de que o educando não crie consciência de que seria lícito apequenar ou ferir a dignidade de seu semelhante, causando divisão por etnia, condição social econômica, religiosa, orientação sexual, cultural, mas possa exaltá-lo como sujeito na história e ter uma vivência coerente com a ética.

Todavia é fundamental conscientizar o educando de que o processo educativo, em que se busca a autonomia, requer dedicação, por isso ninguém se torna autônomo do “dia para a noite”, mas sim por meio de um constante esforço, visto que o homem se tornará aquilo que a educação dele fizer, a educação deverá, então, formar um sujeito bom/ético pois,

70 Autonomia e educação

assim, reproduzirá futuramente uma formação que possibilitará outros sujeitos éticos.

Nossa reflexão compreendeu, dessa forma, que se devem investir recursos na educação, de modo que as instituições escolares disponham de bons mestres, pessoas competentes e ilustradas, com salários dignos, e com isso se difunda uma educação que promova a disciplina, formação intelectual, civilidade, moralização, responsabilidade, criticidade, liberdade e consequentemente a autonomia.

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74 Autonomia e educação

Referências... 75

SEGUNDA PARTE

ESTÉTICA, SUBJETIVIDADE E POLÍTICA

Geraldo Cheron José Francisco de Assis Dias Kesia Priscila Gomes Gentil

Tiago Soares dos Santos Whesley Fagliari dos Santos

76 Autonomia e educação

I

O CONCEITO DE ESTÉTICA COMO AFIRMAÇÃO

DA EXISTÊNCIA EM NIETZSCHE*

Geraldo Luiz Cheron1 RESUMO

Objetivou-se estudar a Filosofia de um jeito diferente. Tomando o conceito de estética como afirmação da existência, a partir da filosofia de Nietzsche. As ideias foram trabalhadas de forma prática, transformadas em pintura e arte do grafite. Uma experiência que possibilitou dialogar sobre a tese da existência justificada como fenômeno estético. Os estudos tiveram como base uma perspectiva histórico-crítica, importante na formação de conceitos científicos. A pesquisa se desenvolveu no Colégio Estadual Pedro II do município de Umuarama com alunos do Ensino Médio e contou com Professores participantes do Grupo de Trabalho em Rede do Estado do Paraná. Como mobilização, além de Nietzsche, sugeriu-se leituras e análises de textos de Platão, Leminski, Millôr Fernandes, entre outros. A sala de aula transformou-se em uma oficina de estudos filosóficos e de exercício artístico, associando conceito e vida, reflexão e pintura/poesia. Cada aluno deixou a sua marca, pintando os muros da escola. A

* Este trabalho também está disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde/pdebusca/producoes_pde/2012/2012_uem_filo_artigo_geraldo_luiz_cheron.pdf 1 Licenciado em Filosofia/UPFRGS – Especialista em Filosofia da História e Filosofia da Ciência, e em Pedagogia Escolar – Professor no Colégio Estadual Pedro II – Núcleo Regional da Educação de Umuarama – Paraná.

78 Autonomia e educação

pertinência do trabalho consistiu no fato de que é possível, sim, fazer algo com a filosofia, criar conceitos e obras artísticas, a partir do contexto concreto e real do estudante envolvido no processo de ensino-aprendizagem.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Estética. Nietzsche.

1.1 INTRODUÇÃO

Este artigo quer mostrar, a partir do referencial teórico

de Nietzsche, que é possível pensar o sentimento estético com estudantes do Ensino Médio, haja vista que ele é apresentado como o resultado de profundas determinações do ser e do atuar sobre o mundo. Nesse sentido parte-se da problemática concernente aos fundamentos da estética apresentados pelo filósofo, onde encontramos o conceito de estética como afirmação da existência a partir de um contexto que utiliza a sensibilidade como percepção intuitiva criadora.

Teve como propósito conhecer os fundamentos metafísicos da estética tradicional e identificar suas limitações a partir de um novo pensamento que procura justificar a existência como fenômeno estético como conceito de afirmação da vida para criar valores a partir de uma perspectiva autônoma e crítica. Ao interpretar o mundo pela sensibilidade artística, o ser humano encontra-se na condição de exercer sua potencialidade emancipadora.

A princípio o trabalho seria desenvolvido com alunos do 3º Ano, turma “A”, pelo professor PDE, mas a pedido de outros professores de Arte e Filosofia acabou sendo aplicada a turma “B” e “C do mesmo período. O estudo se estendeu ainda aos professores inscritos no Grupo de Estudo em Rede (GTR) do Estado do Paraná, sob a orientação do professor PDE.

O conceito de estética... 79

1.2 UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA Comecemos por enunciar a indagação alusiva aos

conceitos de estética e existência. Até que ponto se pode afirmar que, segundo a máxima do filósofo Nietzsche, um pensador que praticamente defendeu a tese de que o mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal, pode ser percebido como o resultado de uma prática em que “a vida é uma verdadeira obra de arte?” (NIETZSCHE, 1995, p. 25), ou que a função da arte e a afirmação da vida sejam interdependentes?

Em sua obra O Nascimento da Tragédia, Nietzsche não tem dúvidas ao defender que é possível transformar a arte trágica em existência afirmativa da vida: “só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificarem-se eternamente”2.

É este tipo de questão que o leva a descobrir que a arte possui um caráter impulsivo, instintivo, “pulsional” por meio do qual o ser consegue encontrar o verdadeiro caminho para a afirmação existencial e superação da utilização técnica da razão, da reificação e fetichismo do capitalismo, da indústria da cultura, que historicamente apresenta a arte como mercadoria. Ora, intencionalidade humana, segundo Nietzsche, não se reduz aos interesses do capital ou racionalidade instrumental3.

Sobre a mesma questão, o filósofo menciona na obra O Crepúsculo dos Ídolos uma crítica sobre as expectativas que os filósofos têm em relação à razão que nega os sentidos. Sua finalidade pode-se dizer, está em indagar se de fato o intelecto humano seria o único meio para se chegar à verdade

2 NIETZSCHE. O Nascimento da tragédia. Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 47. 3 Ibidem, p. 91, In: Machado. Cf. N, “Dicionário dos principais personagens de Nietzsche”.

80 Autonomia e educação

e à felicidade. É neste campo de problemas que a sensibilidade e a percepção intuitiva seriam capazes de conduzir o homem ao alcance de suas finalidades:

[...] os filósofos dizem o seguinte ‘Deve haver uma aparência, um engano, que nos impede de perceber o ser: onde está o enganador? ’ – ‘Já o temos’, gritam felizes, ‘é a sensualidade! Esses sentidos, já tão imorais em outro aspecto, enganam-nos acerca do verdadeiro mundo. Moral: desembaraçar-se dos sentidos, do vir-a-ser, da história, da mentira [...]4.

Pensar que somente há um único modo de conduzir a

existência pela racionalidade instrumental é um grande erro, diz Nietzsche. Afinal, sob o aspecto que analisa, seria a sensibilidade, então, assim como as pulsões, algo que atrapalha os homens? Que tipo de ideia é essa, diz ele, que supervaloriza o intelecto, mas que despreza os sentidos? Na lógica do seu pensamento, ele garante que a razão jamais teria forças suficientes para afirmar a vida5. Procura orientar suas discussões para o campo da arte que sempre ocupou um papel central de justificação da existência, descrevendo a estética inspirando-se nos impulsos Dionísio e Apolo, na vida como auto-superação, na vontade de potência6. De forma parecida, em Além do bem e do mal, o mundo – e não só a vida humana

4 NIETZSCHE. F. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das letras, 2006. p. 25. 5 Também a escola de Frankfurt, especialmente Walter Benjamin, é clara na crítica da racionalidade instrumental que conduziu o homem a duas grandes guerras e à estetização da política. Ao contrário de Kant e da tradição moderna, para quem a razão representa nossa melhor aposta, Walter Benjamin assegura que no final da história não está a “paz perpétua”, mas a barbárie. 6 “E este segredo a vida me contou. ‘Vê’, disse, ‘eu sou aquilo que sempre tem de superar a si mesmo’”. (NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras. 1956. p. 110).

O conceito de estética... 81

– é classificada como vontade de potência7. Sua crítica ao pré-estabelecido não poupa nem a si mesmo. Conforme Roberto Machado, estudioso do filósofo, a crítica tem dois sentidos: uma se refere à forma de conteúdo; e a outra, ao estilo - à forma de expressão8. O conteúdo, diz, refere-se ao problema grego, pensamentos de Schopenhauer e Wagner. E é então que retorna ao pensamento inicial, sobre a “vitória dos gregos em relação ao pessimismo”, mas de modo diferente do que fez em O Nascimento da Tragédia. Abandona o seu conteúdo metafísico, mantendo apenas aspectos fisiológicos, como é o caso do conceito de Dioniso – que não terá o sentido anterior9. Ao aproximar-se da “estética socrática” e da arte trágica, quanto à forma e ao conteúdo, examina a questão do niilismo10classificando o conhecimento como vontade decadente e o impulso como auto superação de forma a resgatar a “pulsão”, o desejo, a vontade, o instinto.

Retira o homem daquela concepção niilista da qual se pregava um mundo além deste11. Defende a ideia de que a vida passa a ser observada não mais a partir de uma perspectiva do

7 “(NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia da Letras. 2005. p. 40). 8 MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 9 G. Lébrun faz uma análise acerca da mudança do conceito “Dionísio”, que vai da dualidade metafísica Apolo e Dioniso para a perspectiva de um mundo configurado pela vontade de potência. Em “Quem era Dioniso”. Cf. LEBRUN, Gérard. A filosofia e sua história. São Paulo: Cossak e Naify, 2009. 10 Nietzsche, no livro Genealogia da Moral, dirá que o niilismo pode ser representado por três figuras: o ressentido, a má consciência e o ideal ascético. Esses personagens surgirão graças à decadência dos instintos. MOURA, Carlos A. R. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 11 Para uma análise minuciosa sobre a vontade de potência como uma pluralidade de forças e de pulsões veja: MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2ª ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 41-73.

82 Autonomia e educação

instinto ascético e do conhecimento puro que descaracteriza a experiência dos prazeres, mas é percebida por uma via afirmativa12, reflexo da vontade de potência:

Uma tábua de valores se acha suspensa sobre cada povo. Olha, é a tábua de suas superações; olha, é a voz de sua vontade de poder, de sentir a existência nas suas mais possíveis perspectivas13.

Segundo o próprio pensador, o homem grego, por

influência dos sonhos, produzia a arte plástica divinamente. Grande intérprete nietzschiano, Gilles Deleuze diz que Apolo é o deus que diviniza o princípio de individuação e que constrói o sonho e a imagem plástica14. Apolo representa a pulsão encarregada de conter o impulso do êxtase. É o autor da calmaria, da medida e da serenidade grega. Por isso é tão importante à influência de uma linha de pensamento humano que se defronta com o caótico mundo empírico.

12 Roberto Machado mostra, em Nietzsche e a Verdade, como o filósofo alemão relacionou esse tema da verdade com outro tipo de saber (um saber dionisíaco) tanto nas obras da juventude, como nas obras de maturidade. O comentador mostra como os filósofos sempre estiveram na esteira do saber verdadeiro e, por isso, todos decadentes. Na primeira parte do livro, ele relaciona a arte com a verdade, comentando como o saber socrático matou a arte trágica. Na segunda parte do livro, ele relaciona a verdade com a moral, e para isso do Livro do Filósofo. Na terceira parte, Roberto Machado apresenta uma ótica da solução dada por Nietzsche para essa civilização em que tanto epistemologicamente, quanto moralmente, a verdade domina. Nesse projeto de transvaloração dos valores, os filósofos sempre se mostraram como aqueles que devem ser superados. O importante notar é que o comentador faz uma amostra de como o instinto de conhecimento estabelece a moral bem e mal. Ou seja, essa moral do bem e do mal não passa de uma moral que nega a vida e os prazeres dela, Cf. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco. 1985. 13 Idem. Assim falou Zaratustra. 2011. p. 52. 14 DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. PUF: Paris, 1962. p. 13.

O conceito de estética... 83

É no estado de individuação do homem, ou estado de sua consciência, que o universo Apolíneo se manifesta como fenômeno. Nada mais é do que uma separação entre a natureza e a consciência individual do homem15. Daí os tantos conflitos existenciais. “Este homem, conformado pelo artista Dionísio está para a natureza assim como a estátua está para o artista Apolíneo”16, isto é, a beleza pura, do qual todos os gregos, onde quer que olhassem, só encontrariam o “sorriso de Helena”17. O artista dionisíaco joga com a embriaguez sem ser consumido por ela. Esse artista não procura a aparência pura, muito menos a verdade pura, mas procura o símbolo da verdade disfarçado pela beleza. Na junção de Apolo e Dionísio nasce uma figura importante para a justificação da existência, desempenhada pela arte.

Nietzsche entende que não vive no meio de uma civilização artística, como era o caso do povo grego. Talvez por isso se visse diante de uma utopia e ousa afirmar uma realidade que não pode ser efetivada18, uma grande frustração

15Rosa Maria Dias esclarece o que seria essa natureza: “Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, influenciado por Schopenhauer, concebe o mundo, o ser, como natureza, cuja essência é a vontade e cuja aparência é a representação. Identifica a eterna vida com a vontade, e a vida contingente, individualizada, com a representação”. DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a música. Imago. Rio de Janeiro: 1994. p. 38. Assim, a natureza pode ser pensada correlativamente com a essência do mundo, com o Uno-primordial. 16 Ibidem. Nietzsche e a música. 1994. p. 9. 17 Nas palavras de Nietzsche: “E assim é possível que o observador fique realmente surpreendido ante essa fantástica exaltação da vida e se pergunte com qual filtro mágico no corpo puderam tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhem, com o riso de Helena – a imagem ideal, ‘pairando em doce sensualidade’, da própria existência deles”. Idem. O Nascimento da Tragédia. 1992. p. 36. §4. 18 “O artista trágico grego é reconhecido por Nietzsche como a primeira grande tentativa de superação do pessimismo teórico/dionisíaco. Essa tentativa não resultou, contudo, na superação definitiva do pessimismo. Ele reconhece também a possibilidade de criar condições ao advento do

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característica daquele que vive à frente de um mundo naturalizado e perpetuado pela interpretação metafísica da verdade. Pensar tais afirmações, examinando o seu sentido, é a proposta deste trabalho, recorrendo ao conceito de estética como afirmação da existência com fins na auto superação da mesma. Para o Filósofo em questão, é necessária essa superação. A arte supera a razão na exata medida em que, consciente da impossibilidade de fundamento absoluto, aceita o não fundamento e afirma o homem e a existência sem recorrer a uma verdade metafísica.

1.3 COMO TRABALHAR FILOSOFIA E GRAFITE EM SALA DE AULA?

Essa talvez seja a grande questão, pois razão e intuição

devem ser vistas como algo humano, complementares e não divergentes. O desafio desta pesquisa19 não é apresentar um estudo teórico do belo, mas pensar a existência como um fenômeno estético, a partir do referencial filosófico de Nietzsche, para quem a arte adquire uma justificação prática.

A questão está em pensar a transformação do homem através da iniciativa dos próprios alunos, livres de qualquer forma de dogmatismo.

artista trágico em sua época, pois ela não é dominada por um povo artístico (como na Grécia antiga), nem pode criar condições para uma cultura trágica”. ARALDI, Clademir L. Niilismo, criação, aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos. São Paulo: Discurso editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2004. p. 205-206. 19 É importante dizer que a novidade da pesquisa não se encontra em apresentar uma metodologia revolucionária sobre o ensino da filosofia em sala de aula para alunos do Ensino Médio, como se era de esperar, segundo uma fórmula mágica ou divina, mas, sim, encontrar uma possibilidade de se trabalhar de modo mais elucidativo aquilo que as Diretrizes sobre o Ensino da Filosofia propõem aos professores filósofos do Paraná, em relação a disciplinas consideradas menos importantes, ou marginais, entre elas, a filosofia.

O conceito de estética... 85

Neste sentido, o presente trabalho representa uma pluralidade democrática, aspecto marcante da filosofia, preocupada com as questões fundamentais da existência, investigando, de forma aberta e ampla, a realidade sensível, com o objetivo de entendê-la através de uma perspectiva filosófica. Sempre focada nas produções simbólicas, denominadas de ciência e arte, capaz de mudar não apenas o que se pensa, mas de interferir nos modos como se criam estas reflexões, pensamentos, ações, pois a filosofia insiste no diálogo com os problemas cotidianos, procurando compreendê-los e interpretá-los a partir dos conceitos estruturantes.

O ganho, se é que se pode dizer, está em apresentar, ainda que de modo esquemático, um referencial teórico que supere a perpetuação do homem adaptado aos modos de produção e reprodução de uma sociedade de massas.

É um caminho que se escolheu e se pensou no sentido de tornar mais significativas essas discussões em torno do estudo da apreciação estética filosófica, tendo como mobilização a análise da pintura da arte do grafite, entendendo que esta manifestação artística representa um fenômeno poético no sentido grego de “poiesis”20, criação: uma expressão de linguagem característica da arte que exige tomada de consciência filosófica, dado o seu teor crítico.

Se o foco de todo conhecimento é o ensino, a humanização, então a reflexão filosófica, em geral, e a estética, em particular, significam um importante canal de adequação do trabalho humano ao sentido comunitário participante, contido na arte.

O material foi composto pela abordagem de uma unidade didática sobre o tema, com textos clássicos dos filósofos, alguns deles lidos em sala de aula, outros

20 Segundo Aristóteles, no capítulo 9 de sua “Poética”, a possibilidade é maior do que a realidade, isto é, a obra de arte não presta conta ao que é, mas ao que pode ser.

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pesquisados pelos alunos, sempre visando o entendimento de cada texto e filósofo abordado, articulando-os à pintura da arte do grafite.

Os alunos foram orientados a estudarem e a pesquisarem dentro de uma visão histórico-crítica do conhecimento ao longo da História. Uma experiência do conhecimento que, justamente por ser cultural e humana, pode ser transformada e modificada de acordo com as necessidades de cada momento e contexto existencial. O conhecimento ensinado não foi apresentado como algo “depositado”, nem “inventado”, mas construído por meio de uma relação dialética entre professor e aluno, texto e contexto.

As riquezas das discussões foram surgindo a partir da leitura dos textos dos filósofos apresentados pelo professor aos alunos em cada momento dos encontros quando eles eram mobilizados a pesquisar, ler e escrever com a disposição de colocar no papel as ideias recebidas pelo texto filosófico, relacioná-las com o contexto vivido e depois construir molduras para pintá-las nas paredes do refeitório da escola.

Nesse aspecto, é muito importante lembrar que é imprescindível recorrer à história da Filosofia – como dizem as Leis e Diretrizes de Filosofia –, pois o estudante que se defronta com o pensamento filosófico adquire diferentes maneiras de enfrentar um problema e, a partir de soluções que eles mesmos elaboram, a discussão teórica ganha qualidade prática (DCE, 2008, p. 60). É o caminho que aponta as Diretrizes:

São inúmeras as possibilidades de atividades conduzidas pelo professor para instigar e motivar relações entre o cotidiano do estudante e o conteúdo filosófico a ser desenvolvido. Ao problematizar, o professor convida o estudante a analisar o problema, o qual se faz por meio da investigação, que pode ser o primeiro passo para possibilitar a experiência filosófica. [...] O ensino de Filosofia deve estar na perspectiva de quem dialoga com a

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vida, por isso é importante que, na busca da resolução do problema, haja preocupação também com uma análise da atualidade, com uma abordagem que remeta o estudante à sua própria realidade. Dessa forma, a partir de problemas atuais estudados a partir da História da Filosofia, do estudo dos textos clássicos e de sua abordagem contemporânea, o estudante do Ensino Médio pode formular conceitos e construir seu discurso filosófico. O texto filosófico que ajudou os pensadores a entender e analisar filosoficamente o problema em questão será trazido para o presente com o objetivo de entender o que ocorre hoje e como podemos, a partir da Filosofia, atuar sobre os problemas de nossa sociedade21.

Toda implementação do projeto aconteceu em

parceria com a comunidade escolar, que disponibilizou aos alunos materiais para a confecção dos grafites, como telas, papel kraft, plástico, papelão, jornal, carvão, tinta à base de água e pincéis, spray e vaporizador entre outros solicitados pelos alunos, bem como laboratórios de informática, biblioteca, livros, recursos diversos, antologia de textos filosóficos, Livro Didático Público do Estado do Paraná, acesso ao portal dia a dia educação, explorando recursos disponíveis neste portal relacionados ao assunto tratado.

Isso contribuiu para a mediação dos conteúdos da Filosofia, que, aliado às pesquisas sobre o grafite, abriu espaço para criar, mobilizar e problematizar os conceitos a serem estudados. Os alunos puderam fazer leituras filosóficas, como o diálogo “anatrépico” de Platão sobre a beleza, a República, leituras das obras de Nietzsche sobre O Nascimento da Tragédia, percebendo, assim, que não é possível viver a verdadeira idade pós-metafísica, que é a pós-modernidade, sem a valorização humana, a sensibilidade, a pluralidade, o respeito ao diferente, sem assimilar as coisas que provocam

21 PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares de Filosofia para a Educação Básica. Curitiba: SEED, 2008, p. 60-61.

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nossa percepção. Isso justifica o fato de que o princípio que caracteriza a estética não é o estudo do belo, da arte, como os estudantes imaginavam, mas uma forma de experiência que se adquire na vida através da sensibilidade que a própria atividade filosófica exercita, relança e reinterpreta.

Os alunos perceberam que a subjetividade é uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas. Quando a comunicação se reduz, então aí cada um se perde. Toda loucura é insucesso da relação com os outros: alter torna-se alienus e, por sua vez, estranho para si mesmo, alienado. Tudo isso é o mesmo que dizer que só existo enquanto existo para os outros e que, no fundo, “ser significa amar” (Idem, ibidem, p. 735). Por isso a importância de se estudar Nietzsche, uma vez que ele extrapola todos os paradigmas eternizados pela cultura racionalista e metafísica.

Através da estética de Nietzsche, os alunos vislumbraram a possibilidade de manifestar uma forma de arte nada “sobrenatural”, ideológica, dogmática ou moralizante. Puderam confrontar textos de Platão22 e Aristóteles23, cujo tema é a racionalidade, com textos de Nietzsche24, cujo tema é o sentimento, a sensibilidade. Isso foi importante porque colocaram em dúvida muitos conceitos que tinham arraigados em mente. Assim, ficou fácil fazer uma leitura do texto de Descartes25 e perceber como a Filosofia sempre procurou

22 PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação. Antologia de textos Filosóficos. Curitiba: SEED, 2009, 548-551. (Neste diálogo A República de Platão, o que está em questão é a natureza do belo, ou a busca da essência do belo por parte de Sócrates. O interlocutor é Hípias, um famoso sofista da época). 23 Idem. Antologia de textos Filosóficos, Curitiba: SEED, 2009, p. 58-67, – “A superação do paradigma da academia”, Aristóteles. 24 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Ou Helenismo e Pessimismo. Tradução, J. Guinsburg, 2ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 61. 25 Idem. Antologia de textos Filosóficos, Curitiba: SEED, 2009, p. 142-153, “Meditando com Descartes: da dúvida ao fundamento”.

O conceito de estética... 89

dialogar com os problemas e as questões que, em cada época, os homens colocam para si mesmos, apontando propostas de enfrentamento a novas questões, abrindo novos diálogos, apontando novos horizontes.

Os alunos dialogaram com Leminski26, compositor, cantor, poeta e artista da arte de rua na cidade de Curitiba. Insuperável escritor paranaense, simpático do filósofo alemão, que cativou também os alunos em sala de aula, além de Millôr27 e Basquiat28.

Para esses artistas o grafite é um texto, um fenômeno poético. Uma poesia marginal. E a rua é daqueles que passam; o verbo é algo que vem do fundo do ser, como a exemplo de O grito29, de Munch (1863-1944) - que é um fenômeno poético e público, que representa liberdade num contexto de aprisionamento social. Para o artista da cidade, a parede é uma

26 LEMINSKI, Paulo. Poesia Fora da Estante. Volume 1, 1ª edição, Porto Alegre: IEPM, 2003, p. 29. 27 LEMINSKI, Paulo. FERNANDES, Millôr. CAMARGO, Dilan. JOSÉ, Elizas. AYALA, Elias. & OUTROS. Poesia Fora da Estante. Volume I, 1ª edição, Porto Alegre: IEPM, 2003. 28 A arte de Basquiat, chamada de "primitivismo intelectualizado", uma tendência neoexpressionista, retrata personagens esqueléticos, rostos apavorados, rostos mascarados, carros, edifícios, policiais, ícones negros da música e do boxe, cenas da vida urbana, além de colagens, junto a pinceladas nervosas, rabiscos, escritas indecifráveis, sempre em cores fortes e em telas grandes. Quase sempre o elemento negro está retratado, em meio ao caos. Há também uma dessacralização de ícones da história da arte, como a sua Mona Lisa (acrílico e óleo sobre tela) que é uma figura monstruosa riscada no suporte. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/biografias/basquiat.jhtm>. Acesso em: 06 nov. 2012. 29 Munch: Disponível em: <http://www.google.com.br/search?q=pinturas+de+munch&hl=pt-BR&rlz=1G1LGEL_PT-RBR510&prmd=imvns&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ei=_A-ZUKK8LpDg8ASDuoCgBg&ved=0CB8QsAQ&biw=1366&bih=599> Acesso em: 06 nov. 2012.

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página em branco, uma expressão de vida. Hoje, presentes nos centros urbanos, estes artistas representam ideias importantes, embora a sociedade ainda tenha muito preconceito com esse tipo de arte, que os alunos envolvidos sentiram na pele. Combinamos num domingo irmos ao colégio, juntamente com grafiteiros para deixar as paredes do refeitório preparadas para serem pintadas no decorrer da semana, e nos deparamos com uma surpresa: ao chegarmos ao portão da escola, fomos barrados.

No dia programado para pintar os alunos pareciam ter esquecido as técnicas aprendidas em sala de aula, semelhantemente a saída da caverna platônica, saíram da sala de aula com imaginações na cabeça e tintas nas mãos, baixou uma loucura e cada um quis fazer do seu jeito. Mas não agradou aos olhares cartesianos da comunidade escolar, nem da direção do colégio, que questionou aquela arte, fruto da criação espontânea de cada aluno. A diretora pediu que apagassem e fizessem tudo novamente. Os alunos ficaram surpresos. Alguns acharam certo, outros não, enfim, todo aquele primeiro trabalho foi desfeito, as paredes foram pintadas de branco, alunos e professores desapontados tiveram que retomar novamente o tema proposto e seus objetivos. Mais dois meses de tentativas, até que finalmente resolveram pintar a caverna de Platão, a evolução do mundo, o poder das mídias e das técnicas segundo o “more geométrico”.

Seguem algumas pinturas realizadas pelos alunos no primeiro momento do trabalho e que acabaram sendo apagadas:

O conceito de estética... 91

Pintura/Grafite: Col. Pedro II, Umuarama, Pr.

Fonte: CHERON, 2013

Pintura/Grafite: Col. Pedro II, Umuarama, Pr.

Fonte: CHERON, 2013

Dois meses após a retomada dos trabalhos os alunos

voltaram novamente a pintar, agora com aprovação da Escola:

Criação e evolução

Fonte: CHERON, 2013

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Alegoria da caverna

Fonte: CHERON, 2013

O poder das mídias e das técnicas

Fonte: CHERON, 2013

Depoimentos de alunos sobre os trabalhos realizados:

1ª impressão: O que se fez na verdade não pode ser chamado de grafite, pois mais parecia uma pichação, só que o interessante foi que todos queriam mostrar o que sabiam fazer, independente se sabia ou não, pois cada qual teve seu espaço. Embora de uma forma desorganizada e espontânea, cada imagem desenhada foi símbolo de que nada na vida é feito sem experiência e prática. 2ª impressão: Já dessa vez já pude perceber certo avanço na pintura, ou seja, cada um teve seu espaço só que treinaram e souberam respeitar os limites, assim aceitando as ideias

O conceito de estética... 93

propostas, para a obra. E a conclusão é que ficou uma maravilha comparada a obra anterior. Ou seja, com preparação, disciplina e ética conseguimos alcançar o que propusemos de uma maneira fácil (JOSÉ).

Bom, no 2º bimestre deste ano, 2013, foi proposto um trabalho sobre a filosofia da estética, com o tema A pintura e arte do grafite, pelo professor Geraldo de filosofia, turma A, mas que acabou se estendendo a turma B, e depois a turma C do professor Tiago de Filosofia, e a professora Josy da disciplina de arte que também quis desenvolver a atividade com as três turmas A, B e C, Ensino Médio do período da manhã. A ideia do projeto seria grafitar um espaço no Colégio – paredes do refeitório - que foi definido pela direção. Em equipes tivemos a oportunidade de escolher um tema livre e grafitar no espaço cedido. No entanto não saiu como havíamos planejado. Parecia mais uma pichação segundo a visão das pessoas do que uma obra de arte. Depois de um belo “sermão” para os alunos e professores responsáveis pelo trabalho, a diretora decidiu pintar todas as paredes grafitadas e/ou pichadas e nos conceder uma nova oportunidade com a ajuda da professora Cleir30, artista plástica e dos professores a frente do trabalho. Buscamos novamente uma reformulação do tema, retomamos todos os estudos, algo para grafitar que “marcasse” a história dos terceiros anos da manhã do ano de 2013. Enfim, com muita dedicação, muita responsabilidade, o trabalho foi realizado com êxito, ou seja, ficaram como a diretora, os professores e nós alunos e alunas planejamos: uma exposição para fazer as pessoas refletirem. Foi uma experiência diferenciada do dia a dia da escola que valeu muito e que sempre vai ficar nas nossas lembranças (KAUANA).

30 Cleir Fabre. Possui em sua residência um atelier onde cria, vende seus quadros e ministra seminários. <http://www.geocities.ws/cleirfabre/artista.htm>. Acesso em: 23/10/2013.

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Concomitantemente, professores do Estado, participantes dos Grupos de Estudos em Rede, o GTR, também fizeram suas tentativas em seus colégios. Muitos descreveram suas práticas e deram sugestões ao professor PDE que escolheu entre tantas apenas duas de modo ilustrativo com a devida indicação dos autores.

Fazendo menção ao professor Ademir que apresentou uma excelente análise e considerações:

Considerações sobre o fundamento teórico: o projeto parte de uma intencionalidade cuja finalidade é existencial, ou seja, “pensar a existência como um fenômeno estético” com a finalidade de produzir a “transformação do homem através do pensamento e da ação, livre de qualquer forma de dominação”. O ponto de partida para a reflexão e ação é existencial a fim de dialogar com os problemas do cotidiano dos estudantes numa tentativa de superar “a perpetuação do homem adaptado aos modos de produção e reprodução de uma sociedade de massas”. Como elemento mobilizador do pensar filosófico propõe “a análise da pintura da arte do grafite”, que é uma linguagem artística bastante difundida e aceita entre os jovens. Com isto o autor pretende desenvolver “a possibilidade de compreender a realidade a partir da sensibilidade estética e da apreensão intuitiva, da representação criativa do homem, e as formas como elas determinam as suas relações com a vida, particularmente na expressividade da pintura e do grafite”. Como fundamento teórico para esta análise pretende utilizar o referencial teórico de Nietzsche, especialmente na obra “O Nascimento da Tragédia”. Ao propor esta forma de abordagem filosófica o autor pretende mudar o foco do ensino de Filosofia pautado numa visão, cujo centro é a ética normativa que está tradicionalmente posta na história da educação como produção do conhecimento de forma intelectualizada, para buscar outro centro de convergência que é a sensibilidade artística na tentativa de buscar outro fundamento ontológico do ser com base em sua existência estética.

O conceito de estética... 95

Portanto uma mudança do “como o ser deve ser” para “como o ser realmente é e se percebe” neste mundo, como pulsão vital. Ao que tudo indica ao fazer este contraponto entre conhecimento formal intelectualizado e fruição estética decorrente da sensibilidade artística o autor coloca em evidência outro fundamento ontológico existencial para o exercício do filosofar com os sujeitos do ensino médio. Considerações sobre o encaminhamento metodológico: o projeto de implementação se concretiza por meio de uma realização efetiva com os alunos do ensino médio. Para isto o autor propõe duas estratégias de ação a fim de que estes se apropriem “da experiência histórico-social” e complementa: “A intenção é que eles auxiliem os alunos para que possam atuar e transformar o seu contexto cotidiano como sujeitos emancipados, críticos e criativos”. Para que isto ocorra o autor propõe basicamente o trabalho com os textos clássicos de filosofia e a apreciação de “recursos diversos, como telas de grafites, filmes, documentos, documentários, vídeos”. Considerações finais: a meu ver o projeto é bastante inovador no que se refere à construção de uma nova compreensão dos sujeitos da aprendizagem ao buscar na estética nietzschiana os fundamentos para uma nova concepção de educação, considerando a pulsão da sensibilidade estética como ponto de partida para a construção do conhecimento pelos sujeitos. Esta concepção inverte o tradicional papel intelectualizado da escola, que sempre visou o desenvolvimento de uma “racionalidade instrumental” com a finalidade de submeter os sujeitos moralmente a um conjunto de convenções éticas estabelecidas pela classe dominante a fim de domesticar e controlar as classes subalternas. Neste sentido a inovação do projeto consiste em considerar os alunos como sujeitos de sua aprendizagem filosófica tomando o grafite como elemento artístico para que possam pensar e repensar sua realidade cotidiana. Quanto ao encaminhamento metodológico, ao menos da forma como

96 Autonomia e educação

está descrito, a meu ver ele não consegue superar a tendência intelectualizada e formal de ensino, uma vez que remete a leitura de textos clássicos da Filosofia e a apreciação de obras de arte grafite como forma de fazer a relação e contextualização dos textos filosóficos. De modo que o encaminhamento metodológico, ao menos da forma como está anunciado, acaba por anular e engessar o referencial teórico submetendo a ação da aprendizagem dos alunos a um formato tradicional. Faço aqui uma sugestão no sentido de que o autor possa avançar no encaminhamento metodológico da implementação do projeto fazendo eco ao referencial teórico proposto. Minha sugestão é que o projeto seja implementado a partir da construção de arte grafite pelos alunos, de forma planejada e organizada, com autorizações legais, etc. Mas que de fato a sala de aula seja a rua, o muro da escola, da casa dos alunos. Quem sabe utilizando primeiro a estratégia de compreender o que é o grafite e seus significados sociológicos, etc. Quem sabe visitando alguns exemplos pela cidade. O grafite como arte de rua não vem sozinho, normalmente está associado a um gênero musical. Sugiro a incorporação deste elemento musical ao projeto, pois isso pode potencializar ainda mais o trabalho de reflexão. Sugiro que a leitura e estudo de algum texto clássico sejam realizados somente após este trabalho, como forma de buscar compreender o que foi produzido.

Como conclusão dessa análise realizada pelo

professor Ademir, que deixou também a sua preciosa contribuição, presenteou os integrantes do grupo, inclusive o professor PDE com uma excelente proposta de se trabalhar os clássicos da filosofia utilizando mapas conceituais que segundo ele,

Parte da seguinte problemática: em que medida o uso do mapa conceitual pode ser utilizado como ferramenta pedagógica para a leitura, análise e compreensão de textos filosóficos no Ensino Médio? A investigação mostra

O conceito de estética... 97

estratégias e possibilidades do uso do mapa em sala e os impactos que ocorrem na aprendizagem filosófica dos estudantes. As cartas e os mapas conceituais produzidos pelos educandos sobre o tema política - a partir do capítulo XVII d’O Príncipe de Maquiavel -, mostram tanto a presença de elementos da vida cotidiana como apropriações conceituais e reflexões evidenciando a aprendizagem filosófica31.

O professor DENNIS, que participou do GTR, fez

considerações que também valem a pena serem transcritas:

O Projeto de Intervenção Pedagógica apresentado busca uma mirada interessante na maneira de pensar o real - através da arte como fenômeno estético - e de como fazer com que nossos alunos compreendam este real e o todo de suas relações numa perspectiva intuitivo-artística concreta, vivificada no cotidiano. Pensar a vida como uma obra de arte, como professava Nietzsche, parece ser uma forma de encarar a vida como um constante criativo. A vida com toda sua tragicidade, longe de ser negada ou exaurida de pensamentos e sentimentos, devem ser inscritas e assumidas na vontade daquele que existe. Como um processo de autocriar-se, a vida se desenrola num palco de relações tensas, conflituosas, confusas, caóticas que - e é o que parece que quer dizer Nietzsche - não se deixa revelar apenas por um processo racional; na verdade, ao tentar racionalizar o real perde-se a capacidade de vivenciar o mesmo. Ao observar as referências trabalhadas no Projeto de Intervenção, notei a ausência de um livro do prof. Julio Cabrera - O Cinema Pensa (Uma Introdução à Filosofia através dos filmes) - que poderia ajudar a pensar melhor esta relação

31 O uso de mapas conceituais para leitura de textos filosóficos em sala de aula no Ensino Médio: Ademir Aparecido Pinhelli Mendes, sugestão apresentada pelo professor no GTR/2013. Tema também do seu PDE, inclusive o trabalho foi publicado recentemente na Revista do NESEF, Filosofia

98 Autonomia e educação

da sensibilidade e da arte como compreensão do real. Diferente do Projeto - que toma a arte do grafite como objeto de estudo - o livro de Cabrera se envolve com o cinema. Mas o conceito central do livro - logopatia - talvez se conecte com a problemática do Projeto. Segundo o prof. Cabrera algumas correntes de pensamento filosófico teriam problematizado a racionalidade puramente lógica (logos) com a qual o filósofo encarava habitualmente o mundo, para fazer intervir também, no processo de compreensão da realidade, um elemento afetivo (pático). Tais filósofos, entre eles Nietzsche, seriam filósofos páticos: não se limitou a tematizar o componente afetivo, mas o incluíram na racionalidade como um elemento essencial de acesso e conhecimento ao mundo. Nesse sentido, o conceito de logopatia seria um ótimo instrumento para se ler uma obra de arte, por exemplo. E, mais precisamente, para compreender o humano e as relações que ele trava no mundo32.

Cabe, ainda, ressaltar a importância dada pela mídia

local - Rede Paranaense de Comunicação (RPCTV)33 e Televisão Universitária – UNIPAR (TVUP)34 - que

e ensino. Desafios epistemológicos da filosofia na escola básica. Curitiba, v.3, n.3, p.1-76, Jun./Jul./Ago./Set. 2013. 32 Obra citada pelo Professor Dennis, como contribuição e sugestão: CABRERA, Júlio. O Cinema Pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. 33 Disponível em: RPCTV <http://g1.globo.com/pr/parana/paranatv-1edicao/videos/t/noroeste/v/alunos-levam-filosofia-aprendida-em-sala-de-aula-para-grafites-nas-paredes-da-escola/2589191/>. Acesso em: out. 2013. 34 Disponível em: TV UP / UP NOTÍCIAS - Arte do Grafite no Colégio Estadual Pedro... <http://www.youtube.com/watch?v=h10qC9kFHvE>. Acesso em: out. 2013.

O conceito de estética... 99

acompanharam e divulgaram de um modo bastante envolvente os trabalhos dos alunos grafitando as paredes do refeitório do Colégio, focando este jeito diferente de ensino e aprendizagem ao se trabalhar filosofia e grafite em sala de aula no Ensino Médio.

1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estética como representação do mundo e da vida

está intimamente ligada à realidade filosófica e às pretensões humanas de dominar, moldar, reproduzir, completar, alterar e apropriar-se do mundo como realidade humanizada. É correto afirmar que a arte tem o privilégio de conduzir para além dos fatos preestabelecidos, bem como do “império da técnica, das máquinas, da arte como produto comercial, ou do belo como conceito acessível a poucos para buscar espaços de reflexão, pensamento, representação e contemplação do mundo” (DCE, 2008, p. 59).

As filosofias que estão atuando em um determinado mundo, tentando explicá-lo e justificá-lo, até mesmo procurando contestá-lo, são frutos de todas essas forças que agem na história. O homem é a primeira força que pensa. Pensar é a função da vida. Mas é impossível pensar a existência, a vida, sem levar em conta certas influências ou determinações, sem relacioná-las ao seu contexto, uma vez que “não se trata de opor à história a ausência de sentido histórico” (Idem, p. 17), mas, sim, de dosá-la. A grande questão que se desencadeia está em refletir e entender a vida, a existência, não apenas a partir do ponto de vista da beleza, do belo, num sentido monumental, racional, metafísico, mas pensá-la criticamente, cotidianamente.

É necessário desmistificar o pensamento corrente nas sociedades consumistas, midiáticas, reprodutivistas-utilitaristas, que julgam as coisas pela aparência, e que utilizam a estética, a arte, como sendo apenas um subproduto da

100 Autonomia e educação

beleza. Porque tudo aquilo que não se encaixa nestes padrões acabam depreciados, excluídos, inclusive a Filosofia, as produções artísticas, o corpo humano, a pintura, o grafite, objetos pessoais que se têm em casa, também acabam considerados inúteis, marginais, insignificantes, perante as ideologias dominantes que querem o controle social e o consumismo imediato.

A arte, o grafite, neste trabalho, não foi alvo de comércio, mas adquiriu o peso que marca a liberdade de quem a produziu.... Aí está a juventude dos estudantes, sua pressa, seus desejos, sua criatividade, sua paixão por entender a vida e tudo o que ela ensina passo a passo, lentamente. Erra quem julga a minoridade e a ingenuidade dos estudantes. O trabalho filosófico aí está, para despertar a vocação crítica (Kant), a vontade de potência (Nietzsche), a intencionalidade operante (Merleau-Ponty). Seja a filosofia o que for, ela é uma semente, e, quando acolhida, estará aí, como o caroço no fruto. REFERÊNCIAS

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O conceito de estética... 101

I, 1ª edição, Porto Alegre: IEPM, 2003. _______. Arte de rua literária. Refere-se a um trecho de uma fala de Leminski realizada em um dos anfiteatros do Edifício Dom Pedro I, na reitoria da UFPR, provavelmente no 10° ou 11° andar, onde se localiza o curso de Letras, no ano de 1985/86, coluna vídeo jornalística no Jornal de Vanguarda como um de seus dois últimos anos de vida, cerca de um ano após a publicação de Distraídos Venceremos. NESEF, Filosofia e ensino. Desafios epistemológicos da filosofia na escola básica. Curitiba, v.3, n.3, p.1-76, Jun./Jul./Ago./Set. 2013. NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras. 1956, p. 110. _______. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das letras, 2006, p. 25. _______. O Nascimento da tragédia. Tradução: Jacó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 47. _______. Zaratustra, tragédia nietzschiana. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco. 1985. _______. DELEUZE. A arte e a filosofia. 2ª edição. Rio de Janeiro: ZAHAR. 2010, p. 87-102. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2ª ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. p. 41-73.

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104 Autonomia e educação

II

RAZÃO E SUBJETIVIDADE EM RENÉ DESCARTES (1596-1650)

Tiago Soares dos Santos1

2.1 INTRODUÇÃO Estudaremos nesse capítulo um dos pensadores de

maior relevância para a história do conhecimento moderno, sendo considerado por muitos historiadores da filosofia o grande precursor do pensamento moderno. Convém lembrar ao leitor que não objetivamos aqui esboçar exaustivamente o pensamento cartesiano. Propomo-nos a uma linguagem clara e apenas instigadora à leitura das obras cartesianas. Desse modo, não pretendemos argumentar à favor ou contra o cartesianismo naquilo que tange à sua complexidade filosófica. Teremos grata satisfação se o leitor, após o contato com essas linhas, desejar se debruçar sobre os incomensuráveis argumentos presentes nas obras Discurso sobre o Método e Meditações Metafísicas.

Há quem afirme que “a história da filosofia moderna é a história do desenvolvimento de cartesianismo em seu duplo aspecto, de idealismo e de mecanicismo” (REALE, 2005, p. 348). Bertrand Russell considera Descartes o fundador da filosofia moderna, pois influencia a física newtoniana que rompe com os padrões aristotélicos que organizaram a ciência medieval, bem como astronomia que

1 Doutorando em Filosofia pela UNIOESTE. Mestre em Filosofia pela UNIOESTE. Especialista em Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia. Licenciado em Filosofia. Docente EBTT do IFPR – Umuarama. E-mail: [email protected].

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assume a teoria heliocêntrica suplantando a geocêntrica. Esse duplo aspecto apresentado por Reale se refere aos dois conceitos fundamentais da filosofia cartesiana, a saber: res cogitans e res extensa, respectivamente, coisa pensante e coisa extensa. A coisa pensante será resultado da metafísica, enquanto a física e a astronomia se responsabilizarão pela coisa extensa. Esse binômio proposto por Descartes permeou a constituição de todas as formas de conhecimento moderno e contemporâneo, visto que as ciências humanas se fundaram na perspectiva metafísica do cogito e as ciências naturais se alicerçaram nas verdades decorrentes da res extensa.

Limitar-nos-emos, no decorrer do texto ao primeiro conceito, isto é, à res cogitans em função do objeto que é apresentar e discutir a subjetividade e o conhecimento nas obras “Discurso sobre o método e Meditações Metafísicas”. Apesar de ser, cronologicamente, um pensador moderno e apresentar a ruptura com o pensamento medieval, Descartes conserva resquícios da escolástica em sua obra sendo temeroso ou mesmo buscando constantemente justificar a existência de Deus e assumindo a moral cristã, conforme percebemos na parte IV de Discurso sobre o Método e na terceira Meditação Metafísica (DESCARTES,1999, p.37). Entretanto, o período vivenciado por Descartes é marcado por uma constante valorização do humano, valorização esta que visa construir um novo edifício filosófico, algo que não era realizado desde Aristóteles. Isso caracteriza o antropocentrismo fruto do renascimento europeu que fortemente influenciou o pensamento cartesiano.

Descartes, diferentemente dos pensadores que o antecederam, não escreve como mestre, mas como descobridor e explorador ansioso por transmitir o que encontrou através de uma linguagem acessível, dirigido à pessoas comuns e inquietas tal como ele era. Não percebemos em suas obras qualquer forma de pedantismo, pois quem precisa aprender é quem ainda não sabe, portanto, quanto

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maior a clareza nos termos utilizados, melhor e mais qualitativa será a apreensão do mesmo. O uso dos recursos eruditos pertencentes à língua cabe ao letrado e, a este, Descartes se dirige apenas como uma possibilidade, pois não há a necessidade de mostrar aquilo que sabe aos que também já sabem ou acreditam saber. A estes nada temos a ensinar, mas aprender.

Conhecedor de matemática, física e filosofia, Descartes acreditava haver um elo entre as distintas formas de saber. Essa ligação poderá ser encontrada por meio de um método se apresenta em sua filosofia como o caminho que todas as formas de conhecimento precisam percorrer a fim de afirmar alguma coisa. A física é a ciência moderna que tem a função de explicar a natureza, mensurando-a, quantificando-a, e prevendo possíveis percalços futuros; nesse sentido destacam-se a astronomia e a física moderna que se contrapõe a física aristotélica e astronomia ptolomaica. A filosofia cartesiana foi desenvolvida a partir da busca meditativa sobre uma certeza inabalável, algo que ele mesmo denominou como ponto arquimediano do conhecimento (DESCARTES, 1999, p. 257).

Para explicitar esse elo entre as distintas áreas do saber, na obra Princípios de Filosofia, Descartes afirma que “toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a física e os ramos que procedem do tronco são todas as outras ciências” (REALE, 2005, p. 349). Com essa metáfora encontramos em Descartes, uma unidade ou totalidade do conhecimento, onde não há privilégios de áreas do saber, pois as raízes só têm sua função em uma planta se a planta produzir flores e frutos, e não há boas flores ou bons frutos quando as raízes não são boas. Desse modo, as ciências particulares, lembrando que ainda não são ciências positivas, são mais aplicáveis do que a matemática que a sustenta ou a metafísica, mas fruto nenhum pode ser colhido de nenhuma ciência se o caule – matemática – e as raízes –

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metafísica – não estiverem bem fixadas para que sirvam de sustentáculos para os bons frutos da ciência.

Vimos que a obra cartesiana muito tem a nos ensinar, mesmo datando do século XVI e XVII. Dentre essas muitas possibilidades que a obra cartesiana nos lança, deter-nos-emos em duas obras apenas, a saber: Discurso sobre o método e Meditações Metafísicas. Nesse sentido, apoiando-nos na metáfora cartesiana da árvore do conhecimento, deixaremos as flores e os frutos, responsáveis pelas coisas extensas (res extensa) e nos fixaremos no caule da árvore, isto é, da matemática, e nas raízes dessa mesma árvore – a metafísica, deixando a cargo das ciências particulares o cuidado com as flores e os frutos.

Dividiremos esse trabalho, a partir dessa breve contextualização, em duas partes. A primeira delas comentaremos sucinta e brevemente, tomando o cuidado com o não empobrecimento ou distorções de interpretações, a obra “Discurso sobre o método”; obra na qual Descartes quer mostrar com regras fáceis e simples nunca tomaremos por certo e verdadeiro aquilo que for falso. A segunda, consequência da primeira, são as “Meditações Metafísicas” nos detendo apenas na primeira e segunda meditação.

2.2 DISCURSO SOBRE O MÉTODO: SUAS ETAPAS

A obra que nos demanda atenção nesse trabalho é

Discurso sobre o método. Descartes inicia sua obra exaltando aquilo que considera bom senso e que é este que guia todos os espíritos humanos na busca pela distinção entre aquilo que é falso e aquilo que é verdadeiro. Não existe entre os homens aqueles que agirão com a falta do bom senso e acolherão como verdadeiro aquilo que for falso, a não ser que tenha tomado o caminho equivocado ao bom senso. Tal bom senso, entretanto, enfrenta constantemente uma diversidade de opiniões, e dentre essas possibilidades de definir o falso e o

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verdadeiro. Descartes propõe nessa obra apresentar qual o caminho percorrido por ele, sem a pretensão de que seu método seja adotado por outros homens, pois, afirma-nos “é insuficiente ter o espírito bom, o importante é aplicá-lo bem, do mesmo modo que, as maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes” (DESCARTES, 1999, p. 35).

É, justamente, essa aplicação correta do espírito que Descartes pensa ter realizado corretamente, pois afirma que teve muita felicidade de ter a oportunidade, ainda na juventude, de formular um caminho onde seja possível acrescentar, pouco a pouco, o conhecimento no decorrer da própria existência. O trecho abaixo esclarece a satisfação de cartesiana a respeito da construção desse método:

Já colhi dele tais frutos que, apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure inclinar-me mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, observando com um olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações dos homens puramente homens existe alguma que seja solidamente boa e importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi. (DESCARTES, 1999, p. 36)

Descartes não apresenta a verdade, mas apresenta um

caminho que possa conduzir a busca dessa verdade ou que possamos, pelo menos, diferir o falso do verdadeiro. O caminho apresentado acima realça a desconfiança, isto é, não podemos confiar nas coisas que se apresentam ao nosso espírito sem um critério que possamos avaliar a veracidade ou falsidade das coisas. Essa desconfiança é necessária, pois costumamos nos enganar sobre os juízos que fazemos, bem

110 Autonomia e educação

como não podemos confiar nos juízos dos amigos principalmente quando tais juízos estão em nosso favor. É por essa necessidade da constante desconfiança e que a mesma seja posta em prática na construção do conhecimento que Descartes mostra os caminhos que seguiu para, a partir da desconfiança, confiar naquilo que, evidentemente, é verdadeiro.

Isso se fez necessário no pensamento cartesiano, pois, afirma-nos Descartes:

encontrava embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. (DESCARTES, 1999, p. 37)

Descartes assume sua ignorância a respeito da verdade

das coisas, o que parecia absurdo para ele, pois havia estudado no local onde se encontravam os homens mais sábios, mas apresentavam essa sabedoria pela autoridade ou mesmo pelos livros que haviam lido e não com os passos efetuados pelo próprio espírito. É enfático no seu gosto pelo conhecimento, seja das ciências, das artes, da matemática, da filosofia ou mesmo da teologia, todavia, mesmo gostando de estudar todas essas áreas do conhecimento nutria consigo uma constante desconfiança naquilo que lhe ensinavam, pois lhe faltavam as demonstrações.

A educação de Descartes fora realizada em colégio religioso (La Flèche) onde a dominação ideológica do poder eclesiástico se fazia uma constante, percebemos isso na declaração que segue:

Eu venerava a nossa teologia e pretendia, como qualquer um, ganhar o céu; porém, tendo aprendido, como algo muito certo, que o seu caminho não está menos franqueado aos mais ignorantes do que aos mais sábios e que as verdades reveladas que para lá conduzem estão além

Razão e subjetividade... 111

de nossa inteligência, não me atreveria a submetê-las à debilidade de meus raciocínios, e pensava que, para empreender sua análise e obter êxito, era preciso receber alguma extraordinária assistência do céu e ser mais do que homem. (DESCARTES, 1999, p. 40)

A veneração à teologia apresentada por Descartes

apresenta a forte influência que a Igreja ainda exercia na formação do pensamento da época. Vimos anteriormente, Descartes desconfiado das ciências, desconfiado dos amigos, que punha em xeque toda a construção não demonstrada ou de caráter ainda não verdadeiro, mas que assume a impossibilidade de sua razão conhecer os mistérios insondáveis da teologia, sequer os põe em condição de desconfiança. Venera a teologia revelada tanto aos sábios quanto aos ignorantes que promete o céu. Assume a debilidade dos raciocínios, mas não desconfia ou não pode desconfiar das verdades teológicas da fé. Mesmo assumindo essa confiança na teologia e a esperança do céu Descartes assume que sempre teve o desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver claramente as ações e caminhar com segurança nesta vida (DESCARTES, 1999, p. 42). Para tanto, abandonou o estudo das línguas, passou a refletir e aprender com o livro do mundo e consigo mesmo.

Reiterou como regra básica não tomar por certo aquilo que o hábito havia ensinado sempre desconfiando dos hábitos e dos conhecimentos advindos por esses meios ou modos semelhantes, livrando-se, assim, dos possíveis enganos confiando mais na razão. É assim que conclui a primeira parte da obra em questão: não confiar em nada que possamos estabelecer qualquer princípio de dúvida, pois isso é questão de bom senso e não assumir como verdade algo que tenha sido transmitido apenas pela autoridade de alguém.

O segundo momento da obra cartesiana em questão inicia conclamando uma desconstrução de tudo aquilo que sabemos e que não podemos ter certeza, isto é, se o

112 Autonomia e educação

conhecimento adquirido até então for resultante do processo de ensino e da confiança de um mestre, precisaremos retomar as fontes dessa forma de saber. Vejamos como Descartes apresenta isso em sua obra:

É verdade que não vemos em lugar algum demolirem todos os edifícios de uma cidade, com o exclusivo propósito de reconstruí-los de outra maneira, e de tornar assim suas ruas mais belas; mas vê-se na realidade que muitos derrubam suas casas para reconstruí-las, sendo ainda por vezes obrigados a fazê-lo, quando elas correm o risco de cair por si próprias, por seus alicerces não se encontrarem muito firmes. (DESCARTES, 1999, p. 45)

Nesse sentido, Descartes acaba desconfiando de todas

os seus conhecimentos e da fundamentação que tinham, pois se fundavam na tradição e na autoridade do mestre, sem nenhum compromisso com a demonstração ou verificação da verdade. Essa desconfiança instiga Descartes na desconstrução de todo o seu conhecimento, dando-se o direito à dúvida sobre tudo o que aprendera até então.

É enfático quando nos afirma: “a respeito de todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa confiança” (DESCARTES, 1999, p. 45). É claro que Descartes está possibilitando ao seu espírito que busca discernir a verdade da falsidade o benefício da dúvida, pois aceitar algo como certo confiando apenas na autoridade daquele que afirma é, deveras, temerário. Esse crédito da dúvida não nega, mas assegura a veracidade das coisas, afastando-as do espírito quando não se adequa aos critérios da dúvida ou aceitando quando adequadas a esse mesmo critério. Desse modo, seria possível

conduzir minha vida melhor do que se a construísse sobre velhos alicerces e me apoiasse somente sobre princípios a

Razão e subjetividade... 113

respeito dos quais me deixara convencer em minha juventude, sem ter nunca analisado se eram verdadeiros. (DESCARTES, 1999, p. 45)

Esse crédito da dúvida permite ao letrado e ao

inexperiente a possibilidade, por extrema prudência e razão ou modéstia intelectual, sempre rever suas bases ou suas verdades fundamentais, com o benefício de reorganizar, sempre que possível ou necessário, o pensamento quando se desviarem do caminho. Caso contrário, ficaríamos à mercê de trilhar caminhos incertos a vida inteira, muito embora, seja mais conveniente trilhar caminhos errôneos guiados por outros do que assumir a responsabilidade de trilhar o próprio caminho assumindo méritos e desmerecimentos. Como o caminho proposto para galgar esse conhecimento indubitável é a dúvida, devemos nunca aceitar como verdadeiro aquilo que for dito apenas pela autoridade de alguém, bem como não deixar que outros guiem o nosso espírito, por mais atrativo e cômodo que seja, pois é mais fácil arrumar o que está feito do que construir algo novo e melhor. No tocante a isso, Descartes se utiliza do exemplo da estrada da montanha, pois é mais fácil sempre se valer dos caminhos difíceis, entretanto, já percorridos por alguém, do que trilhar um novo, pois o novo, ainda que melhor ou mais fácil, ainda será laborioso, pois não foi desbravado por ninguém. Nesse sentido, Descartes nos apresenta o caminho que percorreu como uma sugestão ou opção metodológica e não uma imposição gnosiológica. O primeiro passo do percurso trilhado por Descartes é descrito do seguinte modo:

O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a prevenção, e de nada fazer constar de meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito que eu não tivesse motivo algum de duvidar dele. (DESCARTES, 1999, p. 49)

114 Autonomia e educação

O primeiro passo do caminho é a cautela, pois a pressa pode conduzir o espírito humano a sérios erros, isto porque, se concluímos apressadamente a essência daquilo que está diante de nós, isto é, se definimos os objetos do conhecimento a partir das primeiras impressões que temos, incorremos em possíveis erros. Os objetos só podem ser assumidos como verdadeiros no espírito humano se houver clareza e distinção.

O segundo passo proposto por Descartes é realizado a partir da evidência do primeiro e consiste em “repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las” (DESCARTES, 1999, p. 49-50). A principal característica desse segundo passo ou critério do método é a divisão, ou seja, é muito mais fácil compreender com certeza um problema menor. Assim, se o que se tem a solucionar é algo grandioso, a proposta de Descartes é dirimir um problema em vários outros menores, que, depois de solucionados, serão unidos novamente.

O terceiro passo é a organização do conteúdo apreendido na análise realizada pelo passo anterior. Descartes assim o define:

[...] conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e presumindo até mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros. (DESCARTES, 1999, p. 49-50)

Assim, o terceiro passo do método cartesiano consiste

na organização dos conteúdos do pensamento iniciando do mais simples aos mais complexos. Quanto mais conteúdos podem ser postos no pensamento, mais complexo vai se tornando nosso conhecimento.

Razão e subjetividade... 115

O quarto e último passo é o mais simples, porém, o mais crucial na sustentação da busca pelo conhecimento verdadeiro. Tal passo consiste em “efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir” (DESCARTES, 1999, p. 50). O derradeiro passo possibilita a constante verificação de possíveis erros que podem acontecer no processo de aquisição do conhecimento, pois, o espírito humano facilmente erra e necessita de algum tempo para amadurecer e, se necessário, rever alguns erros, omissões, visto que tais condições propiciadoras dos erros não são fáceis de ser identificadas. Esses passos dão condições para que o conhecimento humano continue progredindo sempre, com a constante possibilidade de rever e reconstruir os conteúdos do pensamento quando forem necessários.

2.3 ONDE SE APLICA O MÉTODO?

A intenção de Descartes não era encontrar os passos

para encontrar as verdades matemáticas ou de qualquer outra ciência particular. Objetivava um caminho mais geral e amplo que pudesse ser utilizado em toda e qualquer área do conhecimento. Descartes justifica essa função no seguinte trecho:

Mas não foi minha intenção, para tanto, tentar aprender todas essas ciências particulares que habitualmente se chamam matemáticas; e, vendo que, apesar de seus objetos serem distintos, não deixam de concordar todas, pelo fato de não conferirem nesses objetos senão as diversas ações ou proporções que neles se encontram, julguei que convinha mais analisar apenas estas proporções em geral, e presumindo-as somente nos suportes que servissem para me tornar seu conhecimento mais fácil; mesmo assim, sem restringi-las de modo algum a tais suportes, a fim de poder

116 Autonomia e educação

aplicá-las tão melhor, em seguida, a todos os outros objetos a que conviessem. (DESCARTES, 1999, p. 51)

É justamente essa generalidade do método que mais

aprazia Descartes era a constante utilização da razão, talvez não fosse possível utilizar a razão mais perfeita que pudesse, mas pelo menos, a racionalidade mais possível. Assim, quanto mais o espírito humano se habituava ao uso constante da razão, mais facilmente identificava os objetos com maior nitidez. Como o método é generalista e cabe à todas as ciências, a busca por algo indubitável em todas elas tende a se fazer constante.

Podemos aplicar o método cartesiano na resolução de uma situação problema de matemática, de ciências da natureza como a física e a química, em ciências humanas e sociais como a sociologia e a história dentre outras. Essas múltiplas aplicações são possíveis porque a generalidade do método permite. Tal contribuição metódica em busca de uma verdade indubitável influenciou e influencia muitas áreas do conhecimento e não podemos negar que a sociedade atual assume a busca por uma verdade indubitável como imperativo ou quem sabe um fetiche da contemporaneidade. O que não podemos negar, em hipótese alguma, é que o pensamento cartesiano influencia diretamente a condução das ciências e o pensamento humano na atualidade.

Descartes pensa ser necessário aplicar esse método à filosofia, pois tudo o que sabia até então, provinha da autoridade eclesiástica ou do filósofo. Assim, quanto maior a autoridade, independentemente do método utilizado, maior a confiabilidade nas verdades proferidas pelo mesmo. Assim, os quatro passos do método apresentados por Descartes anteriormente são aplicados à filosofia, com a clara intenção de verificar se as verdades anunciadas pela filosofia de então eram bem elaboradas ou se fundavam única e exclusivamente na autoridade. Na aplicação desse método à filosofia,

Razão e subjetividade... 117

Descartes se restringe à teoria do conhecimento, pois vivia um momento religiosamente conturbado e, portanto, não poderia se indispor religiosamente com quem o formara filosoficamente, isto é, a igreja católica. Nesse sentido, naquilo que tange ao campo da ética, Descartes propõe uma moral provisória.

3.4 MORAL PROVISÓRIA

Esse é um dos temas apresentados por Descartes que

apenas apresentaremos sucintamente para que o leitor saiba da sua existência e sua temática principal, tendo em vista que nosso foco principal é a teoria do conhecimento e não a busca pela moral cartesiana.

A proposta cartesiana da busca pela verdade não atinge o campo da moral, pois se assim o fizesse Descartes teria problemas diretos com a igreja católica detentora do poder de dizer o que era certo e errado, independentemente de qualquer método. Nesse sentido, Descartes justifica que:

Afinal, como não é suficiente, antes de dar início à reconstrução da casa onde residimos, demoli-la, ou munir-nos de materiais e contratar arquitetos, ou habilitar-nos na arquitetura, nem, além disso, termos efetuado com esmero o seu projeto, é preciso também havermos providenciado outra onde possamos nos acomodar confortavelmente ao longo do tempo em que nela se trabalha. (DESCARTES, 1999, p. 53)

Nesse sentido, Descartes acaba desconfiando de todas

os seus conhecimentos e da fundamentação que tinham, pois se fundavam na tradição e na autoridade do mestre, sem nenhum compromisso com a demonstração ou verificação da verdade. Essa desconfiança instiga Descartes na desconstrução de todo o seu Conhecimento, dando-se o direito à dúvida sobre tudo o que aprendera até então.

118 Autonomia e educação

É enfático quando nos afirma: “a respeito de todas as opiniões que até então acolhera em meu crédito, o melhor a fazer seria dispor-me, de uma vez para sempre, a retirar-lhes essa confiança” (DESCARTES, 1999, p. 41). É claro que Descartes está possibilitando ao seu espírito que busca discernir a verdade da falsidade o benefício da dúvida, pois aceitar algo como certo confiando apenas na autoridade daquele que afirma é, deveras, temerário. Esse crédito da dúvida não nega, mas assegura a veracidade das coisas, afastando-as do espírito quando não se adequa aos critérios da dúvida ou aceitando quando adequadas a esse mesmo critério. Desse modo, seria possível

conduzir minha vida melhor do que se a construísse sobre velhos alicerces e me apoiasse somente sobre princípios a respeito dos quais me deixara convencer em minha juventude, sem ter nunca analisado se eram verdadeiros. (DESCARTES, 1999, p. 42)

O crédito da dúvida permite ao letrado e ao

inexperiente a possibilidade, por extrema prudência e razão ou modéstia intelectual, sempre rever suas bases ou suas verdades fundamentais, com o benefício de reorganizar, sempre que possível ou necessário, o pensamento quando se desviarem do caminho.

Caso contrário, ficaríamos à mercê de trilhar caminhos incertos a vida inteira, muito embora, seja mais conveniente trilhar caminhos errôneos guiados por outros do que assumir a responsabilidade de trilhar o próprio caminho assumindo méritos e desmerecimentos. Como o caminho proposto para galgar esse conhecimento indubitável é a dúvida, devemos nunca aceitar como verdadeiro aquilo que for dito apenas pela autoridade de alguém, bem como não deixar que outros guiem o nosso espírito, por mais atrativo e cômodo que seja, pois é mais fácil arrumar o que está feito do que construir algo novo e melhor. No tocante a isso,

Razão e subjetividade... 119

Descartes se utiliza do exemplo da estrada da montanha, pois é mais fácil sempre se valer dos caminhos difíceis, entretanto, já percorridos por alguém, do que trilhar um novo, pois o novo, ainda que melhor ou mais fácil, ainda será laborioso, pois não foi desbravado por ninguém.

3.5 MEDITAÇÕES: A DÚVIDA COMO PRINCÍPIO

Por desejar dedicar-se à pesquisa da verdade,

Descartes decide rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo fosse completamente incontestável. Na quinta e sexta parte da obra Discurso sobre o Método e na primeira meditação da obra Meditações Metafísicas Descartes busca encontrar de onde se originou seu conhecimento. Desse modo, do primeiro ao quanto parágrafo Descartes vai esclarecendo a origem dos nossos conhecimentos e afirma que tal origem ocorre nos sentidos e que como esses, às vezes, enganam-nos não podemos nos fiar neles. Precisamos duvidar de todos os conhecimentos advindos dos sentidos. Do sexto ao oitavo parágrafo Descartes apresenta que a realidade que vemos pode ser um sonho e que não conseguimos definir o padrão que separa o sonho do real, pois o sonho pode ser tão semelhante ao real que nos confunde ou ainda que possamos estar loucos ou mentalmente desequilibrados e não conseguir definir criteriosamente o que é o real, pois sempre vamos ser normais e considerar os outros fora do padrão. A partir do nono parágrafo, Descartes assume a possibilidade de um gênio maligno e enganador que manipula as pessoas e as verdades desse mundo, de modo que pudesse me enganar que dois adicionados a mais dois serão cinco e não quatro. Por fim, coloquemos sob o critério da dúvida também Deus, pois esse pode não ser tão bondoso assim. No final da primeira meditação, nada nos resta, pois todo o nosso conhecimento

120 Autonomia e educação

está em xeque. Nada parece ter resistido ao argumento da dúvida metódica. Nos cinco primeiros parágrafos da segunda meditação retoma as ideias desenvolvidas na primeira e no sexto encontra o ponto arquimediano que intentava, isto é, encontra algo que não sucumbira à dúvida metódica, que resiste ao conhecimento originado pelos sentidos, que supera a possibilidade do sonho ou de gênio maligno e enganador, a saber: o Eu ou cogito. O eu, ser puramente pensante, pode ser enganado pelos sentidos, mas para ser enganado precisa existir primeiro; tudo pode ser um sonho, todavia, para que haja sonho é necessário o sonhador; Deus pode não existir e ser um ardiloso e enganador, entretanto, o Eu é necessário para ser enganado.

Perceba que com o argumento do gênio maligno o enganador e o enganado são necessários e o primeiro é originariamente mais necessário que o segundo, visto que só há enganado mediante um enganador. Seria um complicador ao pensamento cartesiano à época do renascimento assumir essa perspectiva de um gênio enganador. Assim, na terceira meditação Descartes retoma o argumento ontológico da prova da existência de Deus e, confirma, ontologicamente a perfeição de Deus a partir do humano que tem consigo a ideia de perfeição mesmo sendo imperfeito. Desse modo, do ser imperfeito não poderia advir nada perfeito. É necessário, portanto, que um ser mais perfeito exista para que essa ideia de perfeição também exista.

REFERÊNCIAS DAMASIO, Antonio. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. 6 ed. Trad. Dora Vicente Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

DESCARTES, René. Discurso sobre o método. Trad. de Enrico Corbisieri. São

Razão e subjetividade... 121

Paulo: Nova Cultural, 1999.

_______. Meditações. Trad. De Enrico Corbisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

_______. Meditações. Trad. De César Augusto Battisti. In: Antologia de Textos Filosóficos. MARÇAL, Jairo (org). Curitiba: Seed, 2009.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant. Vol. 2. 7ed. São Paulo: Paulus, 2005.

122 Autonomia e educação

III

O ELEMENTO ESTÉTICO NO MITO GREGO

Whesley Fagliari dos Santos RESUMO

A mitologia de todos os povos apresenta um elemento fundamental para compreensão e retratação de toda a vida e o pensamento de um povo determinado em uma época específica. A mitologia na Grécia antiga não foi diferente. Particularmente essa ganha um sentido bem pontual dada a relevância da Grécia no desenvolvimento e aperfeiçoamento de toda a estruturação racional do Ocidente. O mito, como uma figura representativa de toda a limitação humana diante do divino, nos oferece um elemento estético capaz de permitir acesso – ou mesmo apenas uma aproximação – da superioridade dos deuses, de suas vontades. Tal elemento traz consigo o valor estético da narrativa mitológica grega, o belo.

PALAVRAS-CHAVE: Mitologia; Mitologia Grega; Estética; Filosofia.

3.1 INTRODUÇÃO

Neste artigo pretendemos demonstrar que a Mitologia

Grega, através das tragédias e epopeias, era difundida e propagada com todo seu arcabouço de imagens e linguagens fabulosas para, esteticamente, comover o homem, que é apenas humano, imperfeito, com a figura do personagem-herói e fazer com que este espectador se transporte para a história que está sendo contada reconhecendo no

124 Autonomia e educação

personagem, também humano e também imperfeito, as qualidades e características que deveriam ser seguidas.

Muitos filósofos de imensa relevância como, por exemplo, Platão, recorreram aos mitos tais como eles são para explicar suas teorias. Toda a corrente de estudiosos que defende uma ruptura entre mito e Filosofia fica desamparada tendo, desta forma, que rever seus argumentos reavaliando qual a importância real de toda a Mitologia e como esta interagiu com a Filosofia. Platão, considerado pai do pensamento governado pela razão e um dos pilares de todo o nascimento e elaboração do pensamento filosófico desde a Antiguidade, contribuiu para a pesquisa e reflexão em torno das grandes questões que sondaram a humanidade. Ao longo de sua história recorreu a Mitos para escrever uma das suas mais importantes obras, O Banquete.

O elemento estético para orientar, servir de modelo, paradigma para toda a civilização que necessitava de heróis e seres maiores, fenomenais e superpoderosos para se viver harmonicamente é o que tentaremos explicar.

3.2 O ELEMENTO ESTÉTICO NO MITO GREGO

De acordo com a explicação mitológica da Grécia

antiga, a origem de tudo está sempre no divino. São os deuses que tudo organizam. Os seres olímpicos, isto é, os deuses que habitam o Monte Olimpo, regem as relações de humanos entre si e de homens com a natureza. Esse ambiente fabuloso foi retratado pelos poetas nas epopeias e tragédias.

Esta concepção do mundo só se torna irracional a partir do momento em que saímos dela, em que começamos a pensar de uma forma diferente. Enquanto estamos dentro do sistema, esta concepção é racional, eu diria até que é extremamente sofisticada. (VERNANT, 2001, p. 211)

O elemento estético... 125

A tragédia grega, ao contrário do que muitos acreditam, não é meramente um estilo de teatro ou gênero de expressão artística. Nunca foi somente isso. Sempre houve uma linguagem bastante pertinente, porém, só perceptível aos olhares mais cuidadosos. O mito sempre foi componente primordial nas grandes tragédias encenadas ao longo da história da humanidade e na forma como se deu o seu pensamento herdado dos antigos gregos e nas aventuras fabulosas narradas – as epopeias – por que passavam os mais destemidos heróis:

A partir do momento em que se faz um discurso em prosa que pretende ser uma exposição explicativa, coloca-se o problema do rigor demonstrativo interno da exposição. Em outros termos, a narração mítica se desenrola sem se preocupar com sua própria coerência; a prosa explicativa, ao contrário, é um escrito que deve prestar contas. Suscita-se a crítica, as objeções, a controvérsia. Assim intervém espontaneamente a questão da coerência e da não-contradição do discurso. (VERNANT, 2001, p. 213)

E é justamente um mito que conta a versão mais aceita

do surgimento das tragédias e comédias na Grécia Antiga quando da ocasião do nascimento do deus Dioniso (Baco para os romanos):

Esta forma de conceber as coisas não era contudo “irracional”. Era uma forma de explicar coisas relacionadas, mais uma vez, a uma forma determinada de civilização, a um tipo de poesia oral e a um tipo de narração particulares e, claro, a um tipo de crença religiosa. Neste sistema, as idéias de poder e de potência eram fundamentais. Tratava-se de elaborar uma narrativa que mostrasse que, em um mundo onde potências, poderes, forças se opõem e lutam, em um dado momento um soberano mais poderoso do que os outros vai impor sua lei. A partir desta imposição, a ordem do mundo se torna constante. [...]

126 Autonomia e educação

Assim, deste ponto de vista, ao cabo de toda uma série de gerações divinas e de lutas pela soberania, em um dado momento Zeus, o mais poderoso dos deuses, se instala. E, ao contrário dos outros, seu poder não envelhece, não enfraquece. (VERNANT, 2001, p.211)

Ao investigarmos o processo ocorrido nos

espectadores das tragédias gregas, na antiguidade, entendemos de que maneira os mitos, os heróis e todos os outros seres fabulosos dentro da mitologia eram colocados pelos poetas tragediógrafos a serviço de uma conquista particular, subjetiva, de seus espectadores. Ir à Grécia antiga e revisitar seus mitos, seus poetas, suas obras, seus pensadores e trazer, como resultado de uma reflexão bastante pormenorizada, uma prática substancialmente forte e genuína é dar sentido claro e aplicado a tudo o que foi definido como filosofia já naquela época.

São inegáveis as inúmeras contribuições das tragédias gregas antigas nas artes cênicas ainda hoje vigentes. São muitos os efeitos destas encenações na vida das pessoas da época – o que o filósofo grego Aristóteles conceituou como catarse:

A tragédia tem uma finalidade educativa e formadora do caráter e das virtudes, por isso deve suscitar no espectador paixões que imitem as que ele sentiria se, de fato, os acontecimentos trágicos acontecessem e devem, a seguir, oferecer remédios para essas paixões, fazendo o espectador sair do teatro emocionalmente liberado ou capaz de liberar-se do peso de suas emoções. O espectador deve aprender, pela imitação (pelo espetáculo oferecido), o bem e o mal das paixões, o que podem fazer de terrível ou benéfico para os humanos. (CHAUÍ, 1994, p.338-339)

As encenações trágicas não aconteciam meramente

para entreter a população da época. Muito mais do que isso,

O elemento estético... 127

causava uma aproximação tamanha do herói em cena com o cidadão na plateia que este se sentia, em certa medida, como aquele: com inúmeras potencialidades, mas, cerceado por poderes maiores e imbatíveis como os do destino, por exemplo. Entende-se por destino a vontade implacável e irrevogável dos deuses, das quais nenhum humano escapa. Basta entrar em contato com obras como Édipo Rei, de Sófocles e Medeia, de Eurípides. Ao aproximar-se do divino, do absurdo tão longínquo, a catarse das emoções e sentimentos acontecia, inegavelmente, promovendo uma espécie de compreensão de si mesmo.

Precisamos, contudo, nos ater à questão estética da Mitologia Grega, veiculada através das tragédias, a fim de explicarmos pormenorizadamente como se dava o processo do belo nas encenações teatrais antigas e, com isso, tornar claro seu valor e importância para a elucidação das questões levantadas em nosso trabalho:

Além disso, é preciso fazer com que o espectador sinta terror com a catástrofe que vai acontecer, compaixão pelo que aconteceu, sem que haja no “caráter” nada de baixo, de vil, de nojento. Se o herói trágico fosse um salafrário, não haveria efeito trágico. Ele comete simplesmente erros, não faltas morais, mas erros que traduzem o fato de que o homem se encontra, durante toda a sua vida, confrontado com situações e forças que não controla e que está forçosamente sujeito ao erro. (VERNANT, 2001, p. 349)

Esteticamente, o espectador de uma tragédia, um

mortal, entra em contato com o absurdo quando assiste a algum desses espetáculos. O absurdo, o rubor de um processo sobrenatural, é familiar aos deuses, ou seja, são as imortais criaturas divinas que habitam as vias do absurdo. E o homem, isto é, o efêmero mortal não está convidado nem nunca é bem-vindo neste cenário por estar aquém devido a sua mortalidade. O belo, entretanto, tratado esteticamente como

128 Autonomia e educação

via de acesso entre um homem, um mortal, um ser humano e sua auto-compreensão, destranca os portais que outrora estiveram cerrados para ele. Assistindo a uma encenação trágica o homem estabelece contato com o belo e sua expressão estética provocará um processo de purificação, posteriormente denominado, como já foi dito anteriormente, por Aristóteles, de catarse (kátharsis):

O sentimento que se apresenta em certas almas de forma violenta existe, de certo modo, em todas. Por exemplo, a piedade e o temor, e ainda o entusiasmo, pois esta paixão também produz suas vítimas. Mas, sob a influência das melodias sagradas, quando sentiram os efeitos dessas melodias, vemos tais almas, que foram excitadas até ao delírio místico, restauradas, como se tivessem encontrado a cura e a purificação. O mesmo tratamento deve ser aplicado aos que estão inclinados para a piedade, para o terror ou outra paixão, bem como a todos os outros, desde que sejam susceptíveis de padecer tais paixões. Todos esses necessitam ser purificados de algum modo e suas almas necessitam ser aliviadas ou satisfeitas. (ARISTÓTELES, Apud CHAUÍ, 1994, p. 339)

Na obra Poética, o filósofo grego da antiguidade

Aristóteles (2004, p. 43) define tragédia como “a representação de uma ação elevada, de alguma extensão e completa, em linguagem adornada”. E, mais adiante, acrescenta que, “despertando a piedade e o terror, tem por resultado a catarse dessas emoções”. Esta catarse, ou seja, essa purificação se efetiva a medida em que acontece a compreensão de si mesmo, do que é ser homem, ser humano e reconhecer os próprios aspectos críticos debilitados e até os ridículos, acontece porque há a identificação do espectador com o herói que está em cena:

E o que os espectadores vêem são contudo sempre personagens e acontecimentos que sabem pertencer a um

O elemento estético... 129

passado revoluto, se é que alguma vez existiram de fato. Assim, trata-se de personagens cuja presença não tem outro objetivo além de revelar a ausência real. Ou seja, ficções. O teatro é o universo do fictício. Não é mais, como na poesia, um fictício evocado por meio de uma narrativa indireta, é um fictício diretamente encenado. (VERNANT, 2001, p. 352)

Há uma sequência lógica no decorrer dos fatos da

tragédia, do que acontece com o referido herói. Tais fatos são semelhantes aos vividos pelo homem, pelo espectador. Neste ponto, quando ocorre a identidade entre personagem, herói e ser humano, o belo, a manifestação estética da tragédia acontece e desencadeia no mortal espectador uma espécie de revigoração, a catarse. Daí a utilidade estética na tragédia grega da mitologia e a expressão, a manifestação do belo através do teatro:

O teatro é, no mundo grego, uma forma de tornar outro. Aliás, não é só o teatro, [...] o banquete, a alegria do festim, a embriaguez, o travestimento, tudo o que faz com que os machos da cidade grega, sem se bestializar completamente, sem deixarem de ser totalmente eles mesmos, podem experimentar algo que difere do cotidiano, das normas. Quando vestem a fantasia – vestido de mulher, de bárbaro ou de Dioniso –, as fronteiras que pareciam tao firmemente estabelecidas entre o homem e a mulher, o grego e o bárbaro, o deus, o homem e o animal, se embaralham, tudo muda. Dioniso é o deus que, num dado momento, faz tudo passar para outra dimensão, e é isto que o teatro realiza no centro da cidade grega. (VERNANT, 2001, p. 354)

Verificamos, então, que a mitologia sempre teve uma

presença muito forte e enraizada na cultura e vida cotidiana da Grécia Antiga. E até necessária para o contexto religioso-mitológico ganhar sentido. Os poetas da época se valiam das lendas e dos mitos para narrarem os acontecimentos

130 Autonomia e educação

ocorridos em determinado lugar, com uma pessoa ou povo e em alguma época. Estas narrações foram feitas, escritas nas epopeias, que se distinguem, basicamente, das tragédias pelo fator da encenação. Tanto em uma, quanto em outra, porém, os mitos assumem um caráter estético, pois, é através deles que ocorre a superação do humanamente limitado em direção ao absurdo, divino, ou seja, o campo frequentado apenas pelos deuses:

A tragédia usa histórias e personagens que todos conhecem e as organiza em cena de forma a operar uma verdadeira experimentação, eu diria até uma simulação, como em física ou em química. Esta experiência simuladora é o que chamamos de mímesis. O objetivo é mostrar como é necessário ou extremamente verossímil que aconteça o que aconteceu a um determinado indivíduo socialmente definido, herói, rei etc. (VERNANT, 2001, p. 349)

Todos os deuses mitológicos da Grécia são

antropomórficos, ou seja, apresentam características humanas, aparência e distribuição corporal exatamente como a do homem: braços, pernas, barba, órgãos internos etc. Os sentimentos, desejos e paixões como raiva, amor, ciúmes e apetites sensuais, também eram os mesmos.

O maior diferencial entre os seres humanos e os divinos, entretanto, é a imortalidade. Esta semelhança também não acontece por acaso já que aproxima deuses e homens. Quando, através do teatro, o homem perpassa todo processo de catarse pessoal e entra em contato com a possibilidade de compreensão de si mesmo através do belo, ficando mais próximo dos deuses, toda a mitologia acaba por adquirir a função de elemento estético:

Marcel Detienne assinala que há mutação do pensamento mítico em pensamento racional, vale dizer, que existe um estatuto epistemológico comum a ambos. A força do mito

O elemento estético... 131

consiste em ser a forma verossímil de verdades indemonstráveis; operando com imagens, o mito torna visível o invisível. (MACEDO, 2001, p. 56)

3.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisarmos o contexto a que estão inseridas as

tragédias gregas na filosofia e a importância, tanto artística quanto estética, destas obras, principalmente como valiosas significações culturais que traduziram todo o pensamento de uma época e de um povo, entendemos os mecanismos utilizados pelos poetas tragediógrafos para alcançarem em seus espectadores os resultados expressivos que obtiveram.

Tantas foram as contribuições dos poetas a humanidade e a elaboração de uma estruturação racional e sistêmica do pensamento ocidental que suas obras, experiências e ideias vigoram até os dias atuais. Exatamente como via de acesso de emoções quase sempre despercebidas, mas, completamente significantes, as tragédias gregas tornaram-se para seus espectadores caminhos por onde se era possível chegar bem perto do absurdo, de entender-se.

REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Trad. De Baby Abrão. Coleção OS PENSADORES. São Paulo: Nova Cultural, 2004. CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, volume I. 2. São Paulo: Brasiliense, 1994. MACEDO, Dion Davi. Do Elogio À Verdade: Um Estudo Sobre a Noção de Eros Como Intermediário No Banquete de Platão. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001.

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VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo. 2001.

IV

A POLÍTICA ECOLÓGICA DE HENRIQUE DUSSEL

Kesia Priscila Gomes Gentil1

José Francisco De Assis Dias2 RESUMO Neste estudo buscou-se discutir brevemente a respeito dos conceitos filosóficos e políticos da filosofia da libertação de Enrique Dussel. Em linhas gerais esse trabalho circunscreve especificamente o princípio material em Dussel e seus desdobramentos, isto é, o princípio ecológico, princípio econômico e princípio cultual. Contudo vale ressaltar que nesta pesquisa tem-se por primazia discorrer sobre a política ecológica, afim de se aprofundar mais avidamente neste tema de estudo de Dussel propondo observa a importância do meio ambiente como um princípio material com base em Dussel, além de ter a intenção de discutir o princípio ecológico numa vertente educacional, tratando assim da educação ambiental à luz da compreensão pedagogia. PALAVRAS-CHAVES: Dussel; Princípio Material; Ecologia; Educação Ambiental.

1 Mestre em Gestão do Conhecimento nas Organizações pela UNICESUMAR (2017), aluna especial do PPGFIL – Doutorado, da UNIOESTE. 2 Pesquisador bolsista do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail: [email protected]

134 Autonomia e educação

4.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS O princípio material de Henrique Dussel se desdobra

em três outros princípios claramente descritos como princípio ecológico, princípio econômico e princípio cultural. Neste estudo busca-se discutir brevemente os diálogos existentes entre a ecologia e a política, Dussel discute o desgaste ecológico pela forma capitalista que o mundo moderno estabeleceu sua relação com os recursos naturais. Sabe-se que as reflexões medulares da filosofia de Dussel aborda o sofrimento do indivíduo como derivado de um plano de civilização no qual os sujeitos julgam outros sujeitos, como: negros, pobres, camponeses, trabalhadores. As relações entre os sujeitos e as vítimas do processo civilizatório se dá de modo desigual e por uso opressivo de poder.

A realidade social e política discutida por Dussel têm seu cenário estabelecido na América Latina, afim de se desprender do eurocentrismo e buscar na história mundial um lugar para se discutir a realidade e pobreza da América Latina revelando assim sua realidade que por vezes esteve oculta.

A filosofia latino-americana se revela da seguinte forma:

É uma filosofia que brota do olhar do colonizado, daquele que historicamente foi oprimido e excluído. Organiza-se a partir do lado que foi negado. É uma filosofia que constrange o discurso da ordem, sendo, portanto, libertadora. Constitui-se, desta forma, como uma filosofia da libertação, a qual busca mostrar a possibilidade do diálogo mediante a afirmação da diferença e da alteridade numa perceptiva do diferente. Daquele que ficou a margem das construções ideológicas sociais. (CAVALCANTE JR., 2012, p. 3-4)

A filosofia dusseliana exibe as chances de um diálogo

por intermédio do enunciado, afirmando a diferença e

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alteridade, no ponto de vista de quem ficou à margem da estruturação das ideologias constituídas pelo capitalismo em toda a América Latina. Além disso é importante ressaltar que a filosofia de Dussel tem por meta encontrar referenciais metodológicos, práticos e políticos para o entendimento da libertação do homem (COSTA; LOUREIRO, 2015).

4.2 O PRINCÍPIO MATERIAL EM DUSSEL

Dussel constrói sua ética da libertação em uma

estrutura de categorias que apresenta múltiplos critérios e princípios éticos, apoiados em variadas categorias, contudo entre os inúmeros critérios e princípios elaborados por Dussel, trataremos nesta pesquisa de especificamente um, a saber o princípio material universal que simboliza categoricamente a adequação de produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada indivíduo que vive em comunidade. Como determinado pelo autor é preciso ter a vida como forma de realidade do indivíduo ético, isto é, sua necessidade de “necessidades supridas”.

A verdade prática da vida do ser humano é discutida por Dussel; o que o autor afirma é a igualdade entre os seres viventes, para tal a razão dusseliana provoca o reconhecimento do outro humano como sendo um igual.

A fim de promover maior entendimento em torno da temática aqui estudada faz-se necessário esclarecer primeiramente o significado de crítica adotada. Para Dussel (2001, p. 285) a teoria crítica baseada nos argumentos de Adorno e Horkheimer, compreende-se que a crítica necessariamente apresenta-se como negativa e material. A negatividade é entendida como a “não possibilidade de vida dos oprimidos e vítimas”, além dessa negação deve-se erigir num nível de materialidade, isto é, “no conteúdo prático que se imputa a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana” na sua corporeidade e no seu existir em

136 Autonomia e educação

comunidade. Contudo é preciso que além da teoria negativa material, haja a participação efetiva junto à vítima, como co-militante que se coloca na esfera prática da vítima (MISOCZKY; CAMARA, 2015).

Considerando a vida humana como um critério de verdade prática, pode ser enunciado o princípio material da seguinte forma “todo aquele que atua eticamente deve produzir, reproduzir e desenvolver vida humana em comunidade e, a vida de toda a humanidade, isto é, com pretensão de verdade prática universal” (DUSSEL, 2001, p. 71). Tal critério de reprodução da vida humana em comunidade, possibilita a autocrítica, a fim de averiguar o que de fato impede essa vida, contudo o princípio material não basta para solucionar conflitos, contraposições, combates externos com outro parecer ético. Em razão disso faz-se necessário um princípio moral universal, que seja válido, trata-se de uma conduta sucinta irrevogável que tenciona aplicar o princípio material (MISOCZKY; CAMARA, 2015).

Vale ressaltar ainda que: A ética material de Dussel coloca como tese central a defesa da vida. Isto significa desafiar o sistema capitalista que produz, reproduz e desenvolve a morte; morte para a maioria que não tem acesso aos bens materiais e aos bens simbólicos. A ação das classes dominantes externas determinou o ritmo da vida, do crescimento e do desenvolvimento dos países, estabelecendo também as relações entre as classes sociais envolvidas no processo econômico. (SILVA, 2012, p. 96-97)

Tratando ainda do princípio material em Dussel sabe-

se que os princípios matérias éticos são pilares de suma importância para a filosofia da libertação, Dussel não define a existência de apenas um princípio material, mas nomeia dois, sendo um o princípio material fundamental e outro o princípio material ético crítico. No princípio material

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fundamental Dussel manifesta que “aquele que age de modo ético torna-se auto responsável pela vida concreta de cada vítima pertencente à sua comunidade”. Já o princípio crítico material consiste na “crítica em relação ao sistema institucional, que não permite a vida plena a suas vítimas (PARDO, 2013).

4.3 POLÍTICA ECOLÓGICA

O “princípio material” é referido como o centro da

reflexão ecológica de Dussel, e encontra suporte na vida. Para Dussel (1980), compreendemos e interpretamos a natureza historicamente de modos diferentes. Desde de a revolução industrial a não natureza tem sido observada como explorável economicamente, deste modo Dussel declara que a natureza é politicamente interpretada como matéria de modo de produção capitalista.

A sociedade moderna ainda não suplantou a incongruência do capital-trabalho, mesmo que a ética dusseliana busque aprofundar-se de maneira filosófica no duplicado limite do desenvolvimento de civilização, que traz em seu processo a degradação ecológica, ou seja, destruição da vida do planeta e a aniquilação da vida humana, por miséria (DUSSEL, 2000). Ainda para o autor a ética ecológica tende a se preocupar primariamente com os seres vivos, a sobrevivência humana especialmente dos: pobres da atualidade vivente quanto das gerações que futuramente herdarão caso não adquiram uma maior consciência ecológica. Dussel afirma que a vida é uma condição absoluta da existência humana e, a vida na terra é uma condição aumentada (DUSSEL, 2000).

No entendimento do autor os recursos naturais vistos como “matéria explorável” sendo destruídos sem limitação, desencadeia a ganância do homem por mera produção, isto é, equivale a ação dominadora do homem em relação à natureza.

138 Autonomia e educação

Esta relação de dominação do homem sobre a terra atingiu seu ponto alto, com a revolução industrial e tem atingido maiores escalas ainda no momento atual do capitalismo, o que tem revelado uma sociedade “agressiva e destrutiva” da ecologia natural, esse processo de deterioração ecológica, pode ser interpretado como um momento interno que dá início ao processo de dominação sobre outros homens, sobre os pobres, as classes dominadas, os países periféricos (DUSSEL, 1986):

[...] as companhias multinacionais, os grandes grupos corporativistas da indústria, do agronegócio e do sistema financeiro, constituem uma verdadeira ameaça à soberania e a saúde econômica e política dos países distantes de suas sedes onde operam seus negócios. Pouquíssimas vezes se ajustam à legislação local quando se trata de investimentos estrangeiros e na maioria das vezes recebem como condição para suas instalações incentivos fiscais (isenção de imposto) dos governantes. Sem nenhum compromisso com a economia e a política locais onde atuam e de onde extraem os recursos naturais (insumos para a produção), chegam mesmo a obstaculizar o desenvolvimento humano, além de selá-lo destrutivamente quando exaurem as fontes dos recursos naturais de seus interesses. Assim podemos indicar e propor que a questão da crise ecológica tem sua raiz no caráter econômico e político assumido pelo sistema mundo vigente expresso no modo de produção capitalista e na racionalidade ocidental cujo horizonte de compreensão se pauta sempre pelo controle e pela dominação seja da natureza seja do próprio ser humano. É exatamente na análise econômico-política que a questão ecológica encontra lugar e é tratada na arquitetônica do pensamento de Enrique Dussel. (COSTA, 2014, p. 55)

Costa e Laureiro (2015) afirmam categoricamente que

a natureza, a terra, a biosfera e suas águas são feridas mortalmente, visto que o engrandecimento agressivo é um

A política ecológica... 139

destrutivo orgânico, pode-se dizer que as regiões do centro europeu resistirão à crise por terem maior poder econômico, militar e político. Para o filósofo argentino existe certa articulação entre a destruição ecológica do planeta, a pobreza e o domínio da humanidade como ocorrências sociais provenientes do capitalismo desproporcional. Deste modo faz-se necessário reedificar uma ética material em que a devastação ecológica e a miséria sejam vistas como problemas éticos estruturando a dimensão da prática.

Os movimentos sociais tem envolvimento direto com os movimentos ecológicos; é preciso se atentar para a proximidade entre esses diversos movimentos, especificamente por terem grande diversificação de um movimento que por vezes pode revelar outras culturas, toda essa diversificação faz com que os ambientalistas se envolvam em assuntos por vezes tão dissemelhantes, imersos em lutas que confrontam o desflorestamento, alimentos infectados, agrotóxicos e aumento populacional, urbanismo desenfreado, poluição e até mesmo extinção de animais (COSTA; LAUREIRO, 2016):

Existe uma condição ecológica? [...]. Há um corpo operatório, camponês, indígena, mulher, negro, homossexual e jovem [...]. Não há, corpo ecológico enquanto condição social [...]. Essa é uma diferença extremamente significativa: o movimento ecológico é mais difuso, não apreensível do mesmo modo que os demais corpos que se movimentam social e politicamente. Esse caráter difuso não qualifica o movimento ecológico. Ao contrário, é a fonte da sua riqueza e dos seus problemas enquanto movimento político e cultural. Ao propugnar uma outra relação dos homens (sociedade) como a natureza, aqueles que constituem o movimento ecológico estão, na verdade propondo um outro modo de vida, uma outra cultura. (PORTO-GONÇALVES, 2013, p. 21)

140 Autonomia e educação

4.4 EDUCAÇÃO AMBIENTAL Nesta seção do estudo busca-se tratar a educação

ambiental, tendo como ponto de partida as contribuições políticas de Dussel que retratam especificamente a ecologia, neste sentido propõem-se aqui verificar a ecologia numa perceptiva pedagógica e educacional. Toma-se nesta sessão algumas das contribuições de autores que têm por linha de pesquisa a pedagogia e a educação.

Para Costa e Laureiro (2013), as contribuições do filósofo argentino para a educação ambiental, têm consistência no discurso em que aponta o sofrimento do outro como decorrência de uma vida prática em que um indivíduo julga o outro por meio de relações assimétricas, permeadas pelo uso agressivo do poder. Há ainda em Dussel a argumentação em torno da negação do homem, posto que seu raciocínio funda em uma ética crítica, isto é, “da transformação como possibilidade de reprodução da vida da vítima e como desenvolvimento factível da vida humana em geral” (DUSSEL, 2000, p. 564).

Não há a intensão de fundamentar aqui uma educação pedagógica latino-americana em detrimento a uma pedagogia europeia. Costa e Laureiro (2013) têm como princípio a sociedade dividida em povos submetidos a sobreviverem nos “sub-autonomia”, as normas educativas ambientais que teoricamente visa a emancipação, acabam não sendo introduzidas na história de confrontos societários, em razão de foram encobertas e apagadas da jornada pedagógica.

É possível que exista uma fração de educadores que não se inquietam com o dever público e social do saber em meio a uma nação imerso a tantas exclusões já que as políticas púbicas tendem a seguir mais a ética dos negócios mercantis do que os deveres factuais com a garantia de direito do povo, de maneira que assegure uma vida humana digna (ANDREOLA, 2003):

A política ecológica... 141

Trata-se de buscar condições para a superação da colonização pedagógica impregnada na América Latina e sua história colonial de mais de quatro séculos. Com a chegada dos europeus foram subordinados às histórias e às cosmologias dos povos que aqui habitam. A colonialidade pedagógica sinaliza o sentimento de inferioridade, com todas as ausências que se produzem nos relatos da modernidade como resultado de uma construção europeia de história, aqui realizadas, a favor dos interesses da Europa. (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2010, p. 22)

Na visão de Costa e Loureiro (2003), Freire

despendeu vastas contribuições acerca de sua sabedoria e critérios pedagógicos, são levantadas formas de ponderar os aspectos éticos, políticos e pedagógicos no que se refere ao processo de ensino e aprendizagem. Pode se deparar com conjecturas e teorias que permitam escorar a educação ambiental, já que as reflexões de Freire têm variada colaboração que se atenta para a educação ambiental (TOZONI-REIS, 2006):

Sem consciência ético-crítica não há educação. E por isso, o educador deve insistir junto ao educando, em que a estrutura social é obra dos homens e que, se assim for, a sua transformação será também obra dos homens. (DUSSEL, 2000, p. 440) A educação ambiental é imprescindível no contexto

de pedagogia Latino-americana em que somos inseridos, as lutas que são cotidianamente travadas pelos povos latinos envolveram-se não num primeiro momento, certamente em segunda estância estará a ecologia ligada aos confrontos travados.

142 Autonomia e educação

4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nas reflexões trazidas até aqui, buscou-se averiguar a

ecologia como princípio material em Enrique Dussel ao tratar do princípio material discutido pelo filósofo teve-se como meta neste estudo estabelecer um breve diálogo entre o princípio político ecológico e a educação ambiental.

Ao tratar da educação ambiental viu-se que a educação pedagógica não segue um curso baseado no eurocentrismo, que a educação muito se influencia pela cultura social em que se encontram os sujeitos; percebeu-se que a questão ambiental apoiada nos conceitos dusselianos, envolvendo a luta pela ecologia, ou seja, pela terra e seus recursos naturais não se limita a uma luta meramente por questões ambientais. Neste sentido a luta ecológica envolve muitos outros aspectos envolvendo as vítimas e oprimidos pelo sistema capitalista.

A educação exige que haja uma consciência ético-critica, para que assim haja a transformação do meio social do sujeito fazendo assim com que a estrutura social ao seu redor seja obra dos homens que ali vivem. Para que a educação ambiental seja plena é indispensável contar com educadores que estejam desassossegados com a forma de dever público que se preocupa em atender os interesses do mercado enquanto que as necessidades da comunidade são negados, para deste modo busque-se elaborar uma educação em favor das vítimas e oprimidos mesmo em meio a desafios.

Diante do que se discutiu, o agir da opressão é a negação do outro enquanto sujeito e sendo visto como coisa, passando assim a fazer parte de um sistema que o isola, o mesmo modo opressor e dominante que se lida com a natureza irá inspirar as relações entre a humanidade (COSTA; LAURERO, 2015).

Neste sentido a visão do outro como um sujeito, que tem as mesmas necessidades de vida, o fato de não negar a vida ao outro e enxergar a luta do outro enquanto vítima

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como uma luta social para todos da comunidade é uma visão rigorosamente entrelaçada à visão que se tem acerca da natureza como fonte finita de recursos naturais; está ligada ao princípio político ecológico que visa um plano de sustentabilidade urgente para que se reponha os recursos de biodiversidade disponíveis no meio ambiente. REFERÊNCIAS

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OS ORGANIZADORES ADEMIR MENIN é Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma-PUG (2013). Especialista em Letras (Estudos Linguísticos e Literário) pela Universidade Estadual do Norte do Paraná-UENP (2010). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE (1995). Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma-PUU (1999). Atualmente é professor de Filosofia Moderna e Contemporânea na Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. JOSÉ FRANCISCO DE ASSIS DIAS é Professor Adjunto da UNIOESTE, Toledo-PR; professor do Mestrado em Gestão do Conhecimento nas Organizações, na UNICESUMAR; pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação e Gestão” e do Grupo de Pesquisa “Ética e Política”, da UNIOESTE, CCHS, Toledo-PR. Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália; Doutor em Filosofia também pela mesma Pontifícia Universidade; Mestre em Direito Canônico também pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana; Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade; Especialista em Docência no Ensino Superior pela UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR. Pesquisador bolsista do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail: [email protected]

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LEOMAR ANTONIO MONTAGNA possui Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR; Curso de Especialização, ênfase em Ética, também, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR; Pós-Graduação em História do Pensamento Brasileiro pela Universidade Estadual de Londrina UEL; Reconhecimento de Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE; Graduação em Teologia pelo Instituto Teológico Paulo VI de Londrina; Graduação em Ciências: Licenciatura de 1º Grau pela Fundação Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Mandaguari FAFIMAN e Curso de Graduação em Filosofia pelo Instituto Filosófico Arquidiocesano de Maringá IFAMA. Presbítero da Arquidiocese de Maringá, Pe. Leomar Antonio Montagna, atualmente, é membro e Coordenador do Conselho de Presbíteros, Diretor e Professor do Curso de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Câmpus Maringá; Foi Professor convidado da Faculdade Missioneira do Paraná (FAMIPAR) de Cascavel; Assessor e Professor da Escola Teológica Para Cristãos Leigos da Arquidiocese de Maringá. Membro do Conselho Editorial da Editora Humanitas Vivens LTDA – Editora On-line, nesta, publicou a sua principal obra: “A Ética como Elemento de Harmonia Social em Santo Agostinho”. Autor de vários artigos para revistas e jornais, palestras e cursos de breve duração. Na área de Filosofia, atua, principalmente, nos seguintes temas: Filosofia, Ética, Filosofia Política, Santo Agostinho, História da Filosofia e História do Pensamento Brasileiro e Latino-americano. Na área de Teologia tem experiência em Moral Social e Doutrina Social da Igreja.

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