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2 O ensino e a filosofia da ciência

O ENSINO E A FILOSOFIA DA CIÊNCIA: Desafios e Perspectivas

4 O ensino e a filosofia da ciência

IMAGEM DA CAPA: Rudinei Bernalde

Douglas Antonio Bassani Ademir Menin Marcieli Postal

José Luiz Giombelli Mariani José Francisco de Assis Dias

(Organizadores)

O ENSINO E A FILOSOFIA DA CIÊNCIA: Desafios e Perspectivas

Primeira Edição E-book

Toledo – PR 2017

6 O ensino e a filosofia da ciência

Copyright 2017 by

Organizadores EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. José Aparecido Pereira – PUC-PR Dr. José Beluci Caporalini - UEM

Dra. Lorella Congiunti – PUU - Roma COMITÊ CIENTÍFICO: Dr. Douglas Antonio Bassani Dr. Luciano Carlos Utteich

Dra. Francy Rodrigues da Guia Nyamien Ms. Ademir Menin

Ms. Cleberson Odair Leonhardt Ms. Célia Machado Benvenho

REVISÃO ORTOGRÁFICA: Luciana Bovo Andretto

DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Editora Vivens Ltda

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o território nacional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qual-

quer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Os textos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida! Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro

Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

O ensino e a filosofia da ciência: desafios e

E59 perspectivas. / organizadores Douglas Antonio

Bassani, Ademir Menin Marcieli Postal, José

Luiz Giombelli Mariani, José Francisco de

Assis Dias. – 1. ed. e-book – Toledo, Pr:

Vivens, 2017.

318 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-41-2

1. Filosofia. 2. Educação. 3. Direitos

humanos. I. Título.

CDD 22. ed. 100

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ......................................................................... 15 PRIMEIRA PARTE TRABALHOS COMPLETOS ....................................................... 17 I A ALIMENTAÇÃO VEGETARIANA NA FORMAÇÃO MORAL EM J-J. ROUSSEAU .......................................... 19 II A AMIZADE COM VISTAS À EUDAIMONIA NA ÉTICA A NICÔMACO DE ARISTÓTELES ......................................... 35 III A AUTONOMIA DA CIÊNCIA NO BRASIL ................................. 43 IV A DEFINIÇÃO ARISTOTÉLICA DE TEMPO, EM FÍSICA, IV, 10-14 .................................................................................. 55 V A LIBERAÇÃO DA NOÇÃO DE VERDADE COMO ADEQUAÇÃO .............................................................................................. 65 VI A METAFÍSICA DOS COSTUMES COMO BASE PARA UMA CONSTITUICÃO POLÍTICA DAS GENTES – “PAZ PERPÉTUA” ...................................................................................... 73 VII O AMOR NA FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO ............. 85 VIII EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES E EXPERIÊNCIA NA ESCOLA .................................... 93 IX INFÂNCIA ENTRE ESTADO E MÁQUINA DE GUERRA UMA ABORDAGEM A PARTIR DE DELEUZE E GUATTARI ................................................................ 109 X MAQUIAVEL E A ‘NATUREZA’ DO PODER POLÍTICO DA IMAGEM DE PRÍNCIPE E A RETÓRICA DO FUNDAMENTO ......................................................................................... 121

8 O ensino e a filosofia da ciência

XI META-ÉTICA DA CONSCIÊNCIA: FUNDAMENTAÇÃO DE UMA ÉTICA QUÂNTICA A PARTIR DA PERSPECTIVA NEOPLATÔNICA DE AMIT GOSWAMI ............................................................................... 133 XII TEMPO E ETERNIDADE NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO ...................................................................... 143 XIII APOLO E DIONISO EM NIETZSCHE: O CONTRIBUTO DE SCHOPENHAUER E DE WAGNER PARA O APARECIMENTO DOS CONCEITOS DE APOLÍNEO E DIONISÍACO NO PENSAMENTO FILOSÓFICO DE NIETZSCHE ............................ 153 SEGUNDA PARTE RESUMOS.................................................................................... 160 I WALHALLA, O DOMICÍLIO DOS DIALÉTICOS E DOS BÁRBAROS ................................................................................... 162 II EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL: UMA LEITURA POLÍTICA E PEDAGÓGICA DOS ESCRITOS DE JACQUES RANCIÈRE ................................................ 166 III USOS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA SOB A PERSPECTIVA DELEUZIANA ......................................................... 170 IV UMA RELEITURA DO LIVRO VII DE PLATÃO O MITO DA CAVERNA .......................................................................... 172 V SEXO, SEXUALIDADE E GÊNERO: QUAL A DIFERENÇA? ............................................................................ 174 VI SENSO COMUM E O PONTO DE PARTIDA PARA A REFLEXÃO FILOSÓFICA NO ENSINO MÉDIO ........................... 176 VII REFLEXÕES SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA VIRADA PRAGMÁTICA DA LINGUAGEM EM AUSTIN .............................. 178

Sumário 9

VIII REFLEXÃO SOBRE A SOCIEDADE INDUSTRIAL COM INFLUÊNCIA TEÓRICA DE HERBERT MARCUSE .......... 180 IX QUESTÕES ÉTICAS NA GUERRA ................................................ 182 X PSICOLOGIA NAS OBRAS LITERÁRIAS: APOLOGIA DA INTROSPECÇÃO COMO MÉTODO DE ACESSO AO CONHECIMENTO DE SI ...................................... 184 XI PAULO FREIRE E A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA .......................................... 186 XII O RACISMO E A VISÃO DE ALTERIDADE EM LÉVINAS .............................................................................................. 188 XIII O MITO NO SURGIMENTO DA FILOSOFIA ........................ 190 XIV O DUALISMO CARTESIANO E O DUALISMO INTERACIONISTA DA PROPRIEDADE .......................................... 194 XV O DIREITO À VIDA NO PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO (1909-2004) ........................................................ 196 XVI O CONCEITO DE VERDADE EM KARL POPPER .............. 198 XVII O CONCEITO DE PESSOA HUMANA NO PENSAMENTO DE AGOSTINHO DE HIPONA ............................ 200 XVIII O BURACO DA FECHADURA: SARTRE E O FENÔMENO DO OUTRO ................................................................. 204 XIX O ASPECTO DIFERENCIAL DO EU PENSO KANTIANO AO EU PENSO DE DESCARTES ............................... 206 XX NICOLAU DE CUSA E O PROBLEMA DE ACESSAR O CONCEITO DE DEUS .................................................... 208 XXI MARX: A DIGNIDADE HUMANA E A JORNADA DE TRABALHO ................................................................................................. 210

10 O ensino e a filosofia da ciência

XXII MAL, GRAÇA E LIBERDADE NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO .......................................... 212

XXIII INEXISTÊNCIA DO LIVRE-ARBÍTRIO: ESPINOSA E NEUROCIÊNCIA............................................................ 214 XXIV HIPÉRION, VIA EXCÊNTRICA E FORMAÇÃO: A DISSOLUÇÃO DAS DISSONÂNCIAS EM HÖLDERLIN ......... 218 XXV HEIDEGGER E KIERKEGAARD: CONSONÂNCIAS ....... 222 XXVI GUERRA E PAZ SEGUNDO NORBERTO BOBBIO ......... 226 XXVII GRAMSCI E A EDUCAÇÃO: A EDUCAÇÃO COMO TRANSFORMADORA DA SOCIEDADE ....................................................................................... 228 XXVIII GRAÇA E LIBERDADE NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO ...................................................................... 230 XXIX GÊNESE E ESTRUTURA DA FORMA DINHEIRO EM MARX ............................................................................ 232 XXX FORMAÇÃO HUMANA: UMA VISÃO A PARTIR DE IMMANUEL KANT SOBRE A EDUCAÇÃO NO ENSINO MÉDIO ................................. 234 XXXI FILOSOFIA E TEURGIA NO NEOPLATONISMO DE JÂMBLICO DE CÁLCIS: ANÁLISE ACERCA DO MÉTODO DE ASCENSÃO ............................................................ 236 XXXII FEUERBACH E MARX: FETICHISMO E CAPITALISMO ........................................................... 240 XXXIII FÉDON: A TEORIA DA REMINISCÊNCIA ...................... 242 XXXIV ENSINO DA FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NO CAMPO: ANÁLISE DAS DIFICULDADES, NECESSIDADES E DESENVOLVIMENTOS ......................................................................... 244

Sumário 11

XXXV DIREITOS DO HOMEM COMO PRÉ-REQUISITO PARA A IMPLANTAÇÃO DA DEMOCRACIA E DA PAZ NO PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO (1909-2004) ........................................................ 248 XXXVI DEUS [MORAL] ESTÁ MORTO! O CRITICISMO NÃO PODIA IR MAIS LONGE DO QUE MOSTRAR A INDEMONSTRABILIDADE DO SISTEMA DA RAZÃO ...................................................................... 252 XXXVII DEBATE SOBRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS .................................................................. 256 XXXVIII “CREATIO EX NIHILO”: A CRIAÇÃO A PARTIR DO NADA EM SANTO AGOSTINHO .............................................................................. 258 XXXIX CONTRIBUIÇÕES DO CINEMA PARA ENSINO DE FILOSOFIA ........................................................................ 260 XL CONCEPÇÃO DE DEUS EM SANTO ANSELMO ................... 262 XLI CONCEITO BANALIDADE DO MAL NO HOLOCAUSTO BRASILEIRO: UM PROBLEMA ÉTICO-POLÍTICO ................................................... 264 XLII ASPECTOS DA PROPAGANDA UTILIZADOS NA CONSTRUÇÃO DE UM GOVERNO TOTALITÁRIO ................... 268 XLIII APROXIMAÇÕES CRÍTICAS DE KARL MARX À MODERNIDADE ....................................................... 272 XLIV APOLO E DIONISO EM NIETZSCHE ................................... 274 XLV A NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIVER EM ARTHUR SCHOPENHAUER ................................................................. 276

12 O ensino e a filosofia da ciência

XLVI A NEGAÇÃO COMO EXERCÍCIO DA INTERPRETAÇÃO EM HEIDEGGER ............................................... 278 XLVII A INEFABILIDADE DO UNO E A NOÇÃO DE INTELECTO NA FILOSOFIA DE PLOTINO: UMA PERSPECTIVA DE GIOVANNI REALE ................................ 282 XLVIII A FIGURA FEMININA NO MITO E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DA MULHER CONTEMPORÂNEA ................................ 284 XLIX A EXISTÊNCIA DE DEUS PARA RENÉ DESCARTES .................................................................................. 288 L A ÉTICA EPICURISTA: A AMIZADE COMO PONTO FUNDAMENTAL DOS EPICURISTAS ............................................... 290 LI A EDUCAÇÃO BASEADA EM SUA ORIGEM, OBJETIVOS E FUNÇÕES ....................................................................... 292 LII A DENOMINAÇÃO DAS PALAVRAS NO USO DA LIGUAGEM EM WITTGENSTEIN ........................... 294 LIII A CRÍTICA AOS MÉTODOS CIENTÍFICOS ............................ 296 LIV A CONTRADIÇÃO DA CONSCIÊNCIA MORAL MODERNA NA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL ............. 298 LV A CONTEMPORANEIDADE NO ENSINO ESCOLAR DE ARTES .............................................................................. 302 LVI CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DA MORALIDADE A PARTIR DE HEGEL ............................................. 304 LVII MARCUSE: A OBJETIVAÇÃO DO HOMEM PELA LINGUAGEM E PELO PENSAMENTO UNIDIMENSIONAL ................................................................................. 306

Sumário 13

LVIII O PROBLEMA DO FUNDAMENTO FILOSÓFICO DOS DIREITOS HUMANOS EM NORBERTO BOBBIO (1909-2004) ........................................................ 308

14 O ensino e a filosofia da ciência

APRESENTAÇÃO

A XX Semana Acadêmica de Filosofia da UNIOESTE de 2017

teve como tema central de suas palestras o “Ensino e Filosofia da Ciência: Desafios e perspectivas”, onde buscou-se aprofundar o tema de filosofia da ciência, através de uma análise das diferentes filosofias da ciência do século XX, bem como das filosofias da ciência do século XIX e do período do início da filosofia moderna. Tivemos palestras importantes nesta área como a do coordenador do Polo Astronômico de Foz do Iguaçú, professor Janer Vilaça, bem como dos professores Dr. Remi Schorn (UNIOESTE-Toledo) e Dr. Wilson Frezzatti (UNIOESTE – Toledo), procurando destacar o papel importante da filosofia da ciência na história da filosofia, e de que temos bons debates filosóficos neste tema, envolvendo filosoficamente o conhecimento das ciências da natureza, a história do conhecimento e as diferentes perspectivas dos principais filósofos da ciência. Contamos também o projeto “Teatro em ação” nos oferecendo uma leitura dramática que levou os participantes à análise da história da vida de Galileu Galilei de forma teatral, lúdica e interessante.

Sobre o Ensino de Ciências, também tivemos bons debates durante a Semana Acadêmica, contando com as palestras dos professores(as) Dr. Marcelo do Amaral Penna-Forte, Dra. Márcia Borin, Dalva Verônica Stoffel e Ms. Cleria Maria Wendling. Este debate também ocorreu em pelo menos uma oficina didática aplicada durante a Semana Acadêmica aos alunos do Ensino Médio, contando com a presença também de professores do Ensino Médio.

De maneira geral, tivemos como objetivo principal desenvolver uma semana de interação e de troca de experiências entre os alunos da UNIOESTE (graduação e Pós-graduação em Filosofia), com os alunos do Ensino Médio. A arte e a cultura também fizeram parte do evento com o Sarau Filosófico com roda de poesia, a leitura dramática da vida de Galileu, entre a programação do evento e outras atividades culturais, propiciando também a interação desejada.

Os resultados dos debates que ocorreram durante a XX Semana Acadêmica de Filosofia podem ser consultados e lidos aqui. Foram 89 trabalhos apresentados na forma de comunicações, sendo que boa parte deles estão presentes neste livro na forma de resumos e de 13 textos

16 O ensino e a filosofia da ciência

completos. Numa edição separada serão publicados resumos e os relatos de experiências das oficinas didáticas apresentadas durante a Semana Acadêmica. Os resumos e os textos completos publicados são na sua grande maioria dos acadêmicos da graduação e pós-graduação do curso de Filosofia da Unioeste.

Boa leitura!

Coordenação e Comissão Organizadora da XX Semana Acadêmica de

Filosofia da UNIOESTE

Toledo-PR, outubro de 2017

PRIMEIRA PARTE

TRABALHOS COMPLETOS

18 O ensino e a filosofia da ciência

I

A ALIMENTAÇÃO VEGETARIANA NA FORMAÇÃO MORAL EM J-J. ROUSSEAU

Whesley Fagliari dos Santos*

José Francisco de Assis Dias** PALAVRAS-CHAVE: Vegetarianismo; Formação Moral; Amor de Si Mesmo; Compaixão. 1.1 INTRODUÇÃO

Jean-Jacques Rousseau, filósofo nascido em Genebra, no ano de

1712, formulou e defendeu a sua teoria do bom selvagem e do mal proporcionado pela sociedade civilizada. Para isso, ele pensou uma origem hipotética tanto de uma humanidade primitiva quanto para uma sociedade que, segundo sua compreensão, é corrompida. Pensou, dessa maneira, o estado de natureza e o estado civil: dois ambientes onde o homem se desenvolve ora como selvagem, primitivo, animal; ora como cidadão, instruído, civilizado.

Na obra O Emílio ou Da Educação (1762), Rousseau pretende estabelecer um caminho longo, seguro e concreto que conduz a educação de um jovem fictício – Emílio – para além de sua instrução científica. O filósofo constrói um sistema para efetivar uma formação moral do homem. De acordo com Rousseau, é essencial que se mantenham preservadas algumas características elementares provenientes da condição natural que, conservadas, permitirão ao homem uma possibilidade de não se corromper pela sociedade civil a

* Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Toledo, Área de Concentração em Filosofia Moderna e Contemporânea, na Linha de Pesquisa “Ética e Filosofia Política”, e-mail: [email protected]. ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

20 O ensino e a filosofia da ciência

qual integrará. Faz parte dessa formação aquilo que o genebrino classificou como Educação ou Pedagogia Negativa1.

Poucas são as páginas que Rousseau dedica ao tema da alimentação, embora essa seja uma peculiaridade bem importante dentro de um contexto extremamente amplo e uma filosofia de educação consubstancialmente bem desenvolvida e fundamentada. Pinçando pontualmente a moralidade – ou a falta dela – contida no ato de se alimentar, esse artigo aborda, especificamente, o sentimento de estranheza que parece inquietar o filósofo de Genebra quando o mesmo reflete sobre a alimentação pensada como componente integrante de um sistema de formação moral do sujeito. A ideia de utilizar uma dieta a base de consumo de carne parece causar em Rousseau grande desconforto e até mesmo um sentimento de repulsa. Não é meramente o ato de ingerir determinado animal abatido; é tudo o que o homem, sendo homem, consome juntamente com um pedaço da carne.

Em seu Discurso Sobre A Origem e Os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens (1755), obra escrita para demarcar definitivamente as diferenças do homem no estado natural e o cidadão no estado civil, Rousseau demonstra os fatores biológicos e fisiológicos que classificam o homem não como um animal carnívoro e sim como um ser frutígero. Demonstra, através de uma descrição da anatomia humana, comparada à de outros animais, os argumentos que vão corroborar sua teoria.

O assunto se torna moral quando, dotado de racionalidade e, portanto, capaz de eticidade, o homem não considera os outros animais como seres sencientes – conceito não utilizado por Rousseau, mas que será abordado no presente estudo. Subjuga e utiliza os animais a partir da maldade proveniente da sociedade civilizada, que corrompe o bom selvagem. Essa maldade, de acordo com o pensador genebrino, é

1 Não se trata do que ou como ensinar, mas sim do que não fazer. O que o preceptor não deve fazer e como ele não deve agir na condução da educação de seu pupilo. Por isso é “negativa”. O motivo pelo qual Rousseau denominou essa fase do aprendizado como “pedagogia” não foi ao acaso. Embora ele não diga isso expressamente, é possível concluir que a função do pedagogo seja muito semelhante à dos gregos da antiguidade: PAIDOS (que significa “criança”) + AGOGE (“conduzir” ou “condução”). Nessa etapa de formação do sujeito – que se estende até os doze anos de idade – o educador apenas conduzirá o jovem. Não deve impor explicações ou teorias a fim de demonstrar o funcionamento do mundo. Ao contrário, deve deixar o jovem livre o máximo possível para preservar-lhe características originariamente naturais porque a natureza já apresenta um fluxo de desenvolvimento próprio.

A alimentação vegetariana... 21

peculiar de cidadãos deficientes de uma formação moral que preserve os instintos comuns à natureza. 1.2 VEGETARIANISMO E SERES SENCIENTES

Foi na Inglaterra, no ano de 1847, pela ocasião da inauguração da

Sociedade Vegetariana do Reino Unido, que o termo “vegetarianismo” foi empregado pela primeira vez. Embora ainda não apresentasse, em seu uso inicial, toda a conotação moral e ética presente nos dias atuais, o termo já anunciava uma preocupação vigente com o bem-estar dos animais. Antes da definição da palavra vegetarianismo, os adeptos dessa conduta alimentar eram identificados como “pitagóricos”. Isso acontecia porque a prática de não utilização de carne na alimentação humana é bem mais antiga do que o termo que a define propriamente, e remonta à antiguidade. Os primeiros registros indicam a Índia como precursora do não consumo alimentar de animais. Em seguida – e, por isso, a justificativa do termo acima mencionado – Pitágoras, filósofo grego, e seus seguidores defendiam o não uso da carne na alimentação humana. Tanto os indianos quanto os gregos, todavia, praticavam o que mais tarde fora classificado como “vegetarianismo” por uma questão religiosa e não exatamente por uma postura de preservação e respeito à vida de outro animal não humano.

O termo vegetarianismo, ao longo do tempo, ramificou-se e deu origem a inúmeras outras classificações que apresentam variações de conduta alimentar, mas que determinam o mesmo princípio: a não utilização de carne na dieta humana. Alguns exemplos: Ovolactovegetarianismo (consome ovos, leite e derivados); Lactovegetarianismo (consome leite e laticínios); Ovovegetarianismo (consome ovos); Vegetarianismo estrito (não utiliza nenhum produto de origem animal na alimentação); Veganismo (além de não consumir nenhum produto de origem animal na alimentação também não utiliza nada de procedência animal nos calçados, vestimentas, cosméticos etc.).

Segundo a versão online do dicionário Aurélio, a palavra “senciente” tem os seguintes significados: 1) Que sente; 2) Que tem sensações ou impressões. Portanto, sencientes são todos os seres capazes de sentir, de perceber, de participar de alguma maneira, em diferentes níveis de percepção, daquilo que lhe acontece. Um exemplo dessa percepção senciente tanto dos animais racionais quanto dos classificados como irracionais é o tocante ao instinto de sobrevivência e as demonstrações

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físicas e comportamentais da noção dos perigos que lhes rodeiam. Pesquisas realizadas com animais prestes a serem abatidos em frigoríficos demonstram que instantes antes do golpe fatal o nível de estresse no indivíduo que será morto sobe consideravelmente. Pupilas dilatadas, atitude de recuo, de tentar voltar, de se dirigir por outro caminho que não aquele que o levará à morte, toxinas liberadas na corrente sanguínea são evidências contundentes da consciência que o animal tem do fato que está prestes a vivenciar. Além disso, há o argumento principal defendido por toda a comunidade vegetariana: o sofrimento causado aos animais. Desde transportes inadequados até o alojamento beirando as vias da crueldade, os animais que serão consumidos pela população humana sofrem. Sofrimento, dor, medo, angústia, estresse, privações físicas como falta de água, de alimentação adequada e de conforto mínimo são atribuídos a seres sencientes, porque esses indivíduos são capazes de perceber, de ter impressões – como já evidenciado anteriormente.

Há, ainda, a necessidade de trazer à discussão o argumento fisiológico que reforça a teoria vegetariana. Animais vertebrados possuem um sistema nervoso desenvolvido, em maior ou menor complexidade. Portanto, estão sujeitos a sentir dores físicas provocadas por condições inadequadas de tratamento como, por exemplo, o acondicionamento e o transporte em gaiolas minúsculas e mal higienizadas.

Aderir a uma alimentação baseada em consumo de carne, então, implica necessariamente em participar – ainda que indiretamente – dos maus tratos a outros seres sencientes e, com isso, provocar-lhes sofrimentos.

1.3 AMOR DE SI E COMPAIXÃO

Ao analisar com determinada circunspeção a maneira como são

mantidos os animais utilizados para consumo humano – tanto na alimentação quanto na recreação como, por exemplo, em zoológicos – é fácil perceber a prática comum de causar dor física, maus-tratos, privações e, com isso, o consequente, recorrente e incessante sofrimento provocado nas espécies de outros animais não humanos2. Dessa maneira,

2 Explorar um indivíduo porque ele pertence a uma espécie biológica diferente da nossa é um tipo de preconceito muito semelhante aos anteriores – e isso se chama “especismo”. Na prática, isso ocorre quando se abraça um preconceito contra animais

A alimentação vegetariana... 23

é necessário conduzir a reflexão aqui proposta até aproximá-la dos conceitos de amor de si mesmo e de compaixão (ou piedade) tratados por Rousseau.

De acordo com o filósofo estudado, todos os animais carregam em si uma noção de conservação de sua própria vida, uma autopreservação e manutenção de seu bem-estar. Esse instinto é natural. Para o genebrino, “o amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo e qualquer animal a cuidar de sua própria preservação” (DENT, 1996, p.37). Isso é benéfico. Ora, se todos os animais trazem em si essa vontade de se preservar, de se cuidar, de se manter vivos, e a natureza proveu a todos com essa noção de cuidado de si mesmo, então, os animais maltratados, subjugados e abatidos para o consumo humano são lesados até mesmo em seus instintos naturais, uma vez que lhes é negado pelo homem também a possibilidade de autocuidado, de exercerem o seu amor de si mesmo rousseauniano.

Compaixão (ou piedade) é um princípio natural presente em todos os animais, em maior ou menor grau, e é anterior até mesmo à capacidade racional. Consiste em repudiar, rejeitar o fato de ver outro animal – indivíduo da mesma espécie ou não – sofrer, suportar dor e, em decorrência disso, morrer. De acordo com Rousseau, a compaixão significa “uma natural repugnância de ver sofrer dor ou morte de qualquer outro ser sensível” (ROUSSEAU, 2005, p. 47). Sendo assim, as pessoas deveriam naturalmente se compadecer da situação cruel e humilhante a qual os animais são submetidos para servirem aos homens civilizados3, porque essa inclinação à comiseração diante de todo o sofrimento animal submetido à dor, aos maus-tratos e ao abate, segundo Rousseau, é inerente à natureza a qual o homem é partícipe.

só porque são animais. O especismo é uma forma de chauvinismo porque consiste no tratamento inferior, discriminatório e diferenciado por parte dos membros de uma classe privilegiada (a “superior”) daqueles indivíduos que estão fora dessa classe, e para o qual não há uma boa justificativa. De fato, o especismo poderia ser visto como eticamente pior que o racismo e o sexismo, porque os animais são menos capazes de se defender e os mais facilmente vitimizados, se comparados com a situação dos seres humanos oprimidos. Como todo chauvinista, o especista pensa que os animais só têm valor ou nos impõem obrigações éticas na medida em que eles atendem nossos interesses, propósitos, necessidades e preferências. (NACONECY, 2006, p.69-70 GRIFO MEU). 3 Um dos principais pilares da filosofia de Rousseau é o argumento que defende a corrupção moral sofrida pelo homem ao passar pelo processo de civilização. A sociedade corrompe o homem que, naturalmente, nasce bom.

24 O ensino e a filosofia da ciência

1.4 FORMAÇÃO MORAL E CIDADANIA EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

A educação é uma atividade essencialmente humana e construída socialmente, ao longo da história da humanidade. Desde tempos remotos há a preocupação e a necessidade de entender e aprimorar essa atividade humana. Como é feita e com qual objetivo se educa, se instrui os jovens da sociedade.

Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação. (ROUSSEAU, 2014, p. 09)

Filósofos gregos da antiguidade como, por exemplo, Platão e

Aristóteles, defenderam que a educação do sujeito deve ser pensada como formação de um cidadão pleno e voltado para o todo, que é a sociedade. Aristóteles disse em sua obra intitulada Política que o homem é um animal, por sua natureza, social e político (ARISTÓTELES, 2000, p. 146). Diante dessa perspectiva, os jovens da época foram preparados para suas tarefas na sociedade, sem visionar uma construção subjetiva, pessoal e particular.

Assim como os gregos da antiguidade, Jean-Jacques Rousseau pensou a sociedade como reflexo do cidadão, do indivíduo. Dessa maneira, educar o sujeito também é prepará-lo para a prática cidadã, a convivência social. O assunto educação tomou grande parte do pensamento de Rousseau. Eis o que ele diz sobre as categorias de aprendizado:

O desenvolvimento interno de nossas faculdades e de nossos órgãos é a educação da natureza; o uso que nos ensinam a fazer desse desenvolvimento é a educação dos homens; e o ganho de nossa própria experiência sobre os objetos que nos afetam é a educação das coisas. (ROUSSEAU, 2014, p. 9)

Jean-Jacques esmiúça um caminho hipotético para a construção

de uma consciência social, moral, política e atuante em um indivíduo que carrega em si características intrínsecas ao seu estado natural. Na sociedade, o cidadão passa a ser uma fração do todo. Uma vez inserido na sociedade ou estado civil aquele sujeito se depara com a desigualdade

A alimentação vegetariana... 25

presente nesse meio. Essa desigualdade é também moral e política e, portanto, deve ser combatida. Antes disso, prevenida. Segundo Rousseau, nas páginas iniciais de sua obra Emílio ou da Educação, “moldam-se as plantas pela cultura, e os homens pela educação” (2014, p.8). A educação deve preparar o sujeito para a efetiva participação política, a fim de superar a desigualdade civil e a contundente degeneração moral. Mas, deve acontecer de modo que preserve características fundamentais já existentes no estado de natureza. Nesse sentido, educar o homem e instruir o cidadão realça significados fundantes e distintos.

Rousseau nega a desigualdade estabelecida na sociedade como um fator natural. A desigualdade é fruto de uma convivência social. Para a vida em sociedade, portanto, é necessária a preparação do indivíduo, a adequação do sujeito. Como transformar o homem, sujeito natural, total em sua constituição na natureza, em cidadão, sujeito integrante de uma sociedade, na qual é somente uma fração? Eis o desafio da educação apresentada em o Emílio: promover a desnaturalização do homem, ou seja, distanciá-lo do seu estado de natureza e aproximá-lo de um estado civil. Não se trata de um esforço para negar ou suplantar a condição humana natural e sim promover a adequação dos instintos primeiros às convenções e demandas civis com o intuito de permitir ao homem aquilo que é seu bem primeiro e que deve ser preservado: a liberdade. Sobre a relação da educação com a liberdade, Rousseau enfatiza que

o primeiro de todos os bens não é a autoridade, mas a liberdade. O homem verdadeiramente livre só quer o que pode e faz o que lhe agrada. Eis a minha máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à infância, e todas as regras da educação decorrerão dela. A sociedade enfraqueceu o homem não apenas lhe tolhendo o direito que tinha sobre suas próprias forças, mas, sobretudo tornando-as insuficientes (ROUSSEAU, 2014, p. 81)

O Emílio é um personagem inventado pelo filósofo de Genebra

para protagonizar toda a sua teoria pedagógica. O Emílio é uma hipótese. É uma proposta. Ao contrário do que muitos leitores dessa obra dizem, Rousseau não escreveu o Emílio ou Da Educação na tentativa de remissão, por uma espécie de “consciência pesada” por ter abdicado da educação e da criação de seus cinco filhos. Tampouco se deve ler essa obra na expectativa de encontrar a solução última para os problemas educacionais enfrentados pelas escolas. Não é um livro de receitas. Não é

26 O ensino e a filosofia da ciência

um tratado somente de educação. Educação é o caminho utilizado por Rousseau, é o pilar onde está alicerçada a construção de uma consciência moral extremamente necessária para a efetivação da cidadania do sujeito. Cidadania que lhe confere direitos civis, mas também subjetivos e particulares.

O que o Filósofo está demonstrando na referida obra, descrevendo a educação de um menino – a lembrar, o Emílio – ao longo de seu desenvolvimento, percorrendo alguns anos, é a possibilidade concreta de proporcionar a esse educando uma formação humana, contextualizada em uma perspectiva de racionalizar o mundo pela via da razão sensível, empírica, sensitiva e, por que não, emocional. A descoberta do mundo tem que acontecer através da construção de experiências e da formulação racional de conhecimento proveniente disso.

A alimentação, embora não seja a protagonista, é um aspecto elementar na construção moral de um sujeito civilizado que carrega em si preservadas muitas das características do estado de natureza:

As panteras e os leões, que chamais de animais ferozes, seguem seu instinto forçosamente e matam os outros animais para viver. Mas vós, cem vezes mais ferozes do que eles, combateis o instinto sem necessidade, para nos entregardes a vossas cruéis delícias (ROUSSEAU, 2014, p. 197)

1.5 PARA ALÉM DOS DENTES: O QUE ROUSSEAU CONSIDERA MANDUCAR

Presente em algumas de suas obras, o assunto alimentação nunca conquistou de Rousseau muito destaque e nem, tampouco, números expressivamente grandes de páginas, como já foi dito anteriormente neste trabalho; nem sequer uma obra específica tratando do tema, mas foi abordado seriamente.

Na primeira parte do seu Segundo Discurso4 (2005), Rousseau faz uma minuciosa descrição de como seria o estado de natureza; apresenta na Nota5(e), um argumento fisiológico, recorrendo à anatomia de muitos

4 Discurso Sobre A Origem E Os Fundamentos Da Desigualdade Entre Os Homens. 5 As “notas” são explicações complementares que Rousseau entendeu compor melhor o texto se apresentadas ao final, como anexo. Textos tão interessantes e esclarecedores quanto o próprio discurso.

A alimentação vegetariana... 27

animais comparada com a do próprio homem, para estabelecer já ali o elemento moral que deve percorrer toda a sua argumentação para uma preocupação ética na dieta humana. Parece que há, de fato, uma séria disposição no filósofo em fundamentar o que apresenta:

Entre os quadrúpedes, as duas distinções mais6 universais das espécies vorazes baseiam-se uma na forma dos dentes e a outra da conformação dos intestinos. Os animais que só vivem de vegetais têm todos os dentes chatos, como o cavalo, o boi, o carneiro, a lebre; mas, os vorazes, ao contrário, os têm pontudos, como o gato, o cão, o lobo, a raposa. Quanto aos intestinos, os frugívoros possuem-nos de certa espécie, como o cólon, que não se encontra entre os vorazes. Parece, pois, que o homem, tendo os dentes e os intestinos como os dos animais frugívoros, deveria ser incluído nessa classe; não somente as observações anatômicas confirmam essa opinião, mas os monumentos da antigüidade depõem ainda mais favoravelmente. "Dicearco”, diz São Jerônimo, “conta, nos seus livros de antigüidades gregas, que, sob o reino de Saturno, no qual a terra ainda era fértil por si mesma, nenhum homem comia carne e todos viviam dos frutos e dos legumes que cresciam naturalmente" (Liv. II, adv. Jovinian.). Essa opinião pode ainda basear-se nos relatos de inúmeros viajantes modernos; François Correau afirma, entre outros, que a maioria dos habitantes das Lucaias, que os espanhóis transportaram para as ilhas de Cuba, de São Domingos e outros lugares, morreram por terem comido carne. Pode-se ver, por aí, que deixo de lado muitas vantagens que poderia salientar. Porquanto, sendo a presa quase que o único motivo de luta entre os animais carniceiros e vivendo os frugívoros entre si numa paz contínua, se a espécie humana fosse deste último gênero, sem dúvida houvera muito maior facilidade para subsistir no estado de natureza e muito menos necessidade e ocasiões para dele sair (ROUSSEAU, 2005, p. 123).

Rousseau segue sua descrição aparentemente despretensiosa

sobre a distribuição que a natureza se encarregou de realizar em cada um de seus componentes partícipes. A intenção é estabelecer um alicerce sólido e robusto para, mais adiante, demonstrar como o homem saiu de um estado harmonioso, funcional e amistoso – estado de natureza – para viver em sociedade que é desigual e má – o estado civil.

6 O texto da nota (e) da obra rousseauniana será apresentado aqui na integra, pois dessa maneira e, só dessa maneira, é possível ter a noção clara do argumento que o filósofo genebrino constrói.

28 O ensino e a filosofia da ciência

O genebrino pontua a relação da alimentação dos animais com a

maneira das fêmeas criarem seus filhotes, a necessidade maior ou menor de alimento e como a anatomia das mães demonstra o temperamento de cada espécie. Mas, a cisão entre animais que se alimentam de carne e os que se nutrem de frutas e outros vegetais é permanente, contundente e constante. Segue, novamente na íntegra, a nota explicativa onde Rousseau apresenta sua análise quanto à natureza da alimentação mais adequada ao homem:

(h) Creio existir entre os animais carnívoros e os frugívoros uma outra diferença ainda mais geral do que a salientada na nota e, pois esta alcança até os pássaros. Tal diferença consiste no número dos filhotes, que em geral nunca excede de dois de cada vez para as espécies que só vivem de vegetais e que ordinariamente vai além desse número para os animais vorazes. É fácil conhecer, a esse respeito, a destinação da natureza pelo número de tetas, que não passa de duas nas fêmeas da primeira espécie, como a jumenta, a vaca, a cabra, a corça, a ovelha, e que sempre é de seis ou de oito nas outras fêmeas, como a cadela, a gata, a loba e o tigre fêmea etc. A galinha, a gansa, a pata, que todas são aves vorazes, assim como a águia, a gaivota, a coruja, também põem e chocam um grande número de ovos, o que jamais acontece com a pomba e a rola, nem aos pássaros que exclusivamente comem os grãos, os quais só põem e chocam dois ovos de cada vez. O motivo que se pode dar para essa diferença reside no fato de que os animais, que só vivem de ervas e plantas, passam quase o dia todo no pasto e, sendo forçados a empregar muito tempo para se nutrirem, não poderiam ser capazes de criar muitos filhotes, enquanto os vorazes, que fazem seu repasto quase num instante, podem, com mais facilidade e mais frequentemente, voltar aos seus rebanhos e à caça, reparando assim o gasto de uma quantidade tão grande de leite. A respeito de tudo isso, poder-se-iam fazer observações especiais e reflexões, mas, não sendo este lugar apropriado para tanto, basta-me ter mostrado nesta parte o sistema mais geral da natureza, sistema que fornece uma nova razão para excluir o homem da classe dos animais carniceiros e para colocá-lo entre as espécies frugívoras. (ROUSSEAU, 2005, p. 126)

No terreno da moralidade, Rousseau leva a comparação a um

ponto impossível de ser ignorado: os instintos que guiarão as ações dos animais permanentemente. Em contraponto, está presente, no homem, a liberdade – característica peculiar que define, explica e responsabiliza as atitudes humanas.

A alimentação vegetariana... 29

Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal, enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade, razão por que o animal não pode desviar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, frequentemente se afasta dela. (ROUSSEAU, 2005, p. 64)

Não se trata apenas de escolhas entre uma ou outra opção. É

maior que isso. É perceber-se, compreender o mundo ao redor e, assim, ser capaz de desenvolver uma consciência crítico-moral:

Mas, ainda quando as dificuldades que cercam todas essas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre diferença entre o homem e o animal, haveria uma outra qualidade muito específica que os distinguiria e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo. (ROUSSEAU, 2005, p. 64)

É essa a principal característica do homem: a capacidade de

consciência moral. E é exatamente ela que distingue o humano dos outros animais. A consciência moral, no entanto, tem que ser desenvolvida, ensinada, fortalecida e estimulada. No decorrer do livro II de o Emílio ou Da Educação, Rousseau determina como deve ser a relação da criança com a sua alimentação, isto é, qual o significado que o alimento merece ter diante do entendimento de uma criança. Mais do que isso, qual a função e os objetivos de uma refeição. Esse cuidado, de acordo com o filósofo em questão, deve ser constante por causa do apetite imenso que assalta a criança devido ao processo de crescimento e desenvolvimento físico que a natureza impõe. O filósofo relaciona claramente o tipo de alimento utilizado para nutrir uma criança com a moralidade que essa irá desenvolver:

É importante [...] não tornar as crianças carnívoras; se não for pela sua saúde, que seja pelo seu caráter, pois, de qualquer modo que se

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explique a experiência, não há dúvida de que os grandes comedores de carne são em geral cruéis e ferozes mais do que os outros homens. Essa observação é de todos os lugares e tempos. [...] A crueldade vem dos alimentos. (ROUSSEAU, 2014, p. 195)

Rousseau, então, avança na defesa de seu argumento e, para

fortalecê-lo, em certo ponto de seu texto, recorre a uma descrição de como teria sido o planeta no passado, ainda quando era recente sua formação. Naquele cenário pré-histórico, talvez se justificasse o hábito da ingestão de carne devido a todas as dificuldades de produção de alimento. Mas, nos dias atuais – e isso tanto vale para os tempos em que vivia o filósofo, quanto para a atualidade – não há argumento que valide a alimentação carnívora dos homens e toda a maldade, crueldade e violência contra os animais contidas nela:

Enfim, quando a terra despojada e nua nada mais nos oferecia, obrigados a ultrajar a natureza para nos conservarmos, preferimos comer os companheiros de nossa miséria a morrer com eles. Mas vós, homens cruéis, quem vos obriga a verter sangue? Vede que abundância de riquezas vos cerca! Quantos frutos produz para vós a terra! Quantas riquezas vos dão os campos e as vinhas! Quantos animais vos oferecem seu leite para vos alimentar (ROUSSEAU, 2014, p. 197)

O genebrino expressa sua clara inclinação para a construção de

uma moralidade mais elevada no hábito da alimentação do homem expressando sua estranheza, seu desconforto, sua indignação mediante a matança de animais para consumo humano. Um fator que parece incomodar demais a Rousseau é o modo como os animais são mortos pelo homem. Não há chance de defesa nem de sobrevivência, pois o homem utiliza sua racionalidade em favor do “assassinato” com equipamentos e técnicas contra os quais os outros animais não têm chance nenhuma de escapar. Por isso, seria mais honroso, mais justo, mais honesto um confronto em iguais condições:

Ó assassino contra a natureza! Se teimares em afirmar que ela te fez para devorar teus semelhantes, seres de carne e osso, sensíveis e vivos como tu, abafa então o horror que ela te inspira por esses horrendos banquetes. Mata tu mesmo os animais, com tuas próprias mãos, sem ferramentas, sem facão; rasga-os com tuas unhas, como os leões e os ursos; morde o boi e o despedaça; finca tuas garras em sua pele; come

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vivo esse cordeiro, devora suas carnes ainda quentes, bebe sua alma com seu sangue (ROUSSEAU, 2014, p. 198)

O homem, não querendo que sua covardia, sua crueldade, sua

civilizada maldade não seja escancarada – nem para os demais e nem, tampouco, para si mesmo – sente a necessidade de disfarçar seu ato de desmedida barbárie temperando, cozinhando os restos mortais que, agora, passa a denominar “alimento”:

Não é o bastante; a carne morta ainda te repugna, tuas entranhas não podem suportá-la. Deves transformá-la pelo fogo, cozê-la, assá-la, temperá-la com especiarias que a disfarçam; precisas de salsicheiros, de cozinheiros, de assadores, de pessoas que te subtraiam o horror das mortes e te vistam com corpos mortos, para que o sentido do paladar, enganado por esses disfarces, não rejeite o que lhe é estranho e saboreie com prazer cadáveres cujo aspecto os próprios olhos teriam dificuldade de suportar. (ROUSSEAU, 2014, p. 198)

1.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Rousseau não foi um homem vegetariano. Pelo menos não declaradamente; não oficialmente. Embora não tenha registros mais profundos sobre a alimentação adotada por ele próprio, a não ser o que aparece em suas obras, é possível afirmar com certa segurança que ele não fez apologia ou defesa do vegetarianismo. É um erro enorme dizer o contrário, porque ele não pensou no ato isoladamente. Não se trata de se importar com os animais, apenas; não somente isso, pelo menos; é maior; é mais amplo e mais permanente; é sobre a moralidade de um animal racional que tem a capacidade de apreender o mundo ao seu redor e o funcionamento deste, de se desenvolver, de evoluir, de se tornar – a partir da faculdade da razão que lhe é natural – um ser aprimorado. O homem não é estático. Sua formação não é e nem pode ser estagnada; por isso, a necessidade e a importância de crescimento. Porque esse desenvolvimento é inerente à sua natureza de ser pensante.

Se o genebrino não era ele próprio vegetariano e defendia essa prática, então, isso implicaria em grande hipocrisia. É ser hipócrita, imoral defender uma prática que não utiliza. Dizer uma coisa e fazer outra. Pensar assim sobre o filósofo de Genebra é falacioso; gera um grande equívoco. É necessário relacionar tudo o que o pensador escreveu sobre o ato de não comer carne com um sistema moral muito

32 O ensino e a filosofia da ciência

maior e mais complexo do que a defesa do vegetarianismo – que, em si, já carrega uma carga grande de moralidade. Ao perguntar para qualquer pessoa que se declara vegetariana quais os seus motivos para agir assim, é provável que a resposta venha em defesa dos animais. E isso é louvável. Muito se discute e se manifesta em defesa dos direitos dos animais. Há muitos estudiosos na atualidade empenhados em fundamentar filosoficamente, moralmente, ecologicamente, politicamente e juridicamente um arcabouço de motivos que garanta uma legislação que assegure condições mínimas de dignidade e respeito aos animais. Os argumentos são dos mais variados e complexos. Surgem constantemente defesas mais vivazes e argumentos melhor elaborados. Uma causa justa, crescente e digna.

Rousseau, porém, não está defendendo os animais; pelo menos não diretamente. Não é essa nem a luta e nem a argumentação dele. Ele está chamando a atenção para outra coisa: a necessidade de pensar a educação, a formação moral do sujeito, em sua completude e não apenas na formação acadêmica, científica, formal. A educação de um cidadão pleno e livre compreende todo um sistema de elaboração e aperfeiçoamento moral. Porque somente assim, de acordo com o pensamento rousseauniano, seria possível contornar e neutralizar a maldade e a corrupção instaurada pela sociedade civil. Somente dessa maneira o homem tem alguma chance de ser pleno e livre vivendo em sociedade.

A alimentação, pensada sobre um viés moral, faz parte desse desenvolvimento humano. Alimentar-se com consciência moral é parte inerente e fundante para a construção de indivíduos cujas características naturais estejam preservadas e fortalecidas. Rousseau pensa ser possível ensinar ao jovem civilizado uma sensibilidade que não o enfraquecerá, pejorativamente falando, e que o tornará um homem com preservadas características de seu antepassado estado de natureza. Se essa teoria é ingenuidade do filósofo ou um alto grau de romantismo presente em seu pensamento, como muitos de seus leitores afirmam, pouco importa. Há uma nuance inquietante presente na formação moral rousseauniana. Sua proposta é orgânica, é sensitiva, voltada para um desenvolvimento natural da percepção do mundo, de efetiva maturação da razão e, sobretudo, de definitiva lapidação moral. Pode até ser uma filosofia romântica, mas é extremamente corajosa e inovadora, justamente porque devolve o homem, o reintegra permanentemente ao seu local de maior

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leniência: a plenitude de uma consciência moral desenvolvida naturalmente. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. A Política. In: “Os Pensadores”. São Paulo: Nova Cultural; 2000. DENT, N.J.H. Dicionário Rousseau. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. NACONECY, Carlos Michelon. Ética &animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Volume II. Trad. De Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 2005. __________. Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Trad. De Roberto Leal Ferreira. São Paulo. 4ª Ed. Martins Fontes, 2014. SINGER, Peter. Ética prática. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

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II

A AMIZADE COM VISTAS À EUDAIMONIA NA ÉTICA A

NICÔMACO DE ARISTÓTELES

Diogo Massochin*

PALAVRAS-CHAVE: Aristóteles; amizade; eudaimonia.

Como um dos grandes pensadores da Antiga Grécia, Aristóteles sobressaiu-se como pensador ímpar ao formular ideias divergentes das de seu grande mestre Platão. De suas obras que sobreviveram à ação do tempo e ao descaso humano, muitas delas influenciaram grandes pensadores, contribuindo enormemente para o desenvolvimento do pensamento filosófico. Sendo natural da Macedônia, é consenso que o seu grande interesse pelo conhecimento adveio da atividade exercida por seu pai, a medicina, atividade esta que influenciará parte de sua obra como filósofo – a physis –; mas foi ao migrar para Atenas e matricular-se na famosa academia de Platão que Aristóteles desabrochou o seu formidável pensamento. Ao romper com a academia e com as ideias de seu mestre, Aristóteles formula um novo pensamento filosófico, legado a nós em sua vasta obra. Dentre seus escritos destaca-se a Ética a Nicômaco, escrito único, que busca soluções ao problema ético dos homens. Dentre os vários temas abordados na Ética a Nicômaco, um deles é a amizade. Neste trabalho, faremos a distinção entre os três tipos de amizade descritos por Aristóteles na obra e analisaremos qual a melhor delas para alcançar a eudaimonia, também abordada no texto do Estagirita.

O tema da amizade é tratado nos livros VIII e IX da Ética a Nicômaco. Nesse amplo espaço de texto, Aristóteles faz idas e vindas – como é de seu costume – no seu pensamento, sendo explicitamente claro em alguns pontos, e extremamente tortuoso em outros. Tentaremos, aqui, sintetizar os pontos mais importantes da amizade para Aristóteles.

Aristóteles abre o Livro VIII afirmando que a amizade é uma forma de excelência e que é o que há de mais necessário na vida de alguém, pois, mesmo que se tenha todos os bens possíveis, ninguém

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

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gostaria de viver sem amigos (1155a1-5).1 Após conceituar o que ele considera como amizade, Aristóteles prossegue dizendo o que duas pessoas precisam para serem amigas: “que se queiram bem uma à outra e se desejem mutuamente tudo de bom, mas de uma forma que isso não lhes passe desapercebido (...)”2 (1156a2-5). Destaque-se nesse ponto o “querer bem uma à outra”, como bem destaca Wolf3: simplesmente desejar o bem a outrem não caracteriza a amizade – esta envolve a reciprocidade nesse sentido. Entendendo esses dois aspectos – a amizade como excelência e a amizade como uma reciprocidade – conseguimos entender, em linhas gerais, o que é a amizade perfeita para Aristóteles.

Se Aristóteles afirma que, mesmo com todos os bens possíveis, ainda é necessário ter amigos, podemos encaixar a amizade nos aspectos essenciais à existência humana – existência essa, na polis grega. Desse modo, vale destacar que para Aristóteles a concepção de amizade é exclusiva do cidadão da polis, porque, para o Estagirita, o homem só se realiza como ser político, consequentemente, o homem só pode se realizar na polis.

Para Aristóteles, existem três tipos de amizade: a amizade com base no prazer; a amizade com base na utilidade; e a amizade perfeita. As duas primeiras, Aristóteles caracteriza meramente como formas de amizade acidentais (1156a18)4. Mesmo não sendo caracterizadas como a amizade por excelência, elas ainda são designadas como formas de amizade pelo elo criado entre as partes. Por exemplo: a amizade com base na utilidade pressupõe uma relação entre os pares, mas não o “querer bem ao outro” pura e simplesmente de que fala Aristóteles. Deseja-se algo ao amigo por causa do interesse. Desejar que o amigo seja bem-sucedido nos negócios porque assim ele será alguém que futuramente poderá lhe fornecer crédito fácil não é característico da amizade por excelência. Para o Estagirita este tipo de amizade é característica de pessoas desiguais, como ricos e pobres, ou mesmo entre amante e amado (1159b15) – e dada a falta que alguém tem de algo, busca nessa amizade de utilidade essa compensação, buscando o que não tem com o amigo, e fornecendo-lhe algo em troca5. E ainda, como

1 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009, p. 174. Citações dessa obra, doravante apenas EN. 2 EN, ibid., p. 176. 3 WOLF, Ursula. A ética a Nicômaco de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2013, p. 226. 4 EN, ibid., p. 177. 5 EN, ibid., p. 186.

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observa Aristóteles, ao deixar de existir o objeto de utilidade da amizade, esta também cessa (1156a23)6. O mesmo vale para a amizade com vistas ao prazer. Ser amigo do amante simplesmente por deleitar-se ou saciar os desejos com ele não pode ser considerada uma verdadeira amizade, pois quando findar o interesse no parceiro, findará também o vínculo de amizade entre eles. Portanto, ao buscar uma finalidade que não o “querer bem” ao seu amigo, esses dois tipos de amizade descaracterizam-se como formas verdadeiras da mesma, uma vez que ao terminar o interesse que as move, termina também a amizade. Já a amizade perfeita ocorre de maneira diferente. Ela ocorre apenas entre os homens de bem e os que são semelhantes. Por serem homens de bem, a amizade existe simplesmente por aquilo que o amigo é, não por uma utilidade ou um prazer. Como não há um fim em si, a amizade permanecerá enquanto eles forem homens de bem. Por serem homens de bem, eles agem naturalmente de forma boa e agradável com os outros. E por reunir todas as qualidades que os amigos devem ter, essa amizade é duradoura7 – porque ao fazer o bem, se tem prazer nessas ações, bem como quando o amigo faz o bem; e ao fazerem o bem, ambos fazem ações semelhantes, o que corrobora para a manutenção da amizade. Dadas todas essas características, ressalva Aristóteles que a amizade perfeita acontece apenas entre as melhores pessoas; e são raras, porque existem poucos homens desta estirpe (1156b5-25)8.

Ao desejar o bem ao amigo, a amizade se caracterizará, em sua forma extrema, como o amor próprio (1166b2)9, porque o bem é justamente o que cada homem escolhe para si. Mas ao mesmo tempo que Aristóteles afirma que os homens buscam o bem, afirma ele também que os homens felizes precisam de amigos (1169b23)10. Ao buscar o bem, além de procurar o que há de melhor em sua existência, os homens, como efeito paralelo, estariam se capacitando para as verdadeiras amizades – pois os homens bons querem ser amigos dos homens bons – e, conquistando amigos através do bem, tornar-se-iam felizes, porque a felicidade nos homens existe com os amigos. Portanto, a amizade perfeita ocorre por causa do bem – uma pessoa que pratica o bem torna-se amiga de outra pessoa que pratica o bem. Isso não significa que não

6 EN, ibid., p. 177. 7 Para questões de amizade duradoura cf. 1159b1 ss e 1164a12. 8 EN, ibid., p. 178-9. 9 EN, ibid., p. 205. 10 EN, ibid., p. 213.

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possa haver utilidades ou prazeres entre os amigos na amizade perfeita. A diferença aqui, para as demais amizades, é que esses não são os fins das amizades, são pontos adjacentes. As pessoas aqui se relacionam não por interesses nos outros, mas por possuírem uma arete ética11. E mais: “a amizade em sentido perfeito pertence não só o comum se alegrar na ação ética, mas também o fato de o outro ou sua presença ser agradável”12. Isso porque, de acordo com Aristóteles, mesmo o bem absoluto não seria suportável caso fosse tedioso (1158a25)13. Por isso a necessidade de pessoas agradáveis, pois se convive com elas.

Mas afinal, qual seria o tipo de amizade por excelência com vistas à eudaimonia? Primeiramente vamos tentar compreender minimamente o que é a eudaimonia para Aristóteles. Todos os homens almejam alguma coisa, um fim por excelência; esse fim deve ser desejado por suas qualidades e pelo que ele representa aos homens; os homens devem desejar coisas boas para si – ninguém quer algo de ruim para si mesmo; e se há um fim em si mesmo, esse fim deve ser todos os bens ou o bem supremo (1094a18-20)14. Na vida humana, convencionamos esse bem como a felicidade (eudaimonia), porque o ser feliz “é o mesmo que viver bem e passar bem” (1095a20)15. Mas essa felicidade é algo superior ao mero saciar dos desejos e necessidades mundanas; essa felicidade é “uma certa atividade da alma de acordo com uma excelência completa (1102a5)16.

Com base em nossas explanações sobre a eudaimonia e sobre a amizade, devemos nos perguntar agora se com amigos é mais fácil alcançar a eudaimonia. Ou ainda: a eudaimonia é alcançável sem amigos? Aristóteles não nos responde de maneira muito clara. Ou melhor: Aristóteles não dá uma resposta definitiva à questão – ele faz ponderações sobre a eudaimonia. Evidentemente que para os dois

11 WOLF, ibid., p. 228. 12 WOLF, ibid., p. 229. 13 EN, ibid., p. 183. 14 EN, ibid., p, 18. 15 EN, ibid., p. 20. 16 EN, ibid. p. 36. Como esse texto trata da amizade na Ética a Nicômaco, e busca entender qual a amizade mais importante na busca da eudaimonia, não nos deteremos aqui sobre a ideia de eudaimonia como uma atividade puramente contemplativa, que só os deuses são capazes de fazê-la (livro X). Nossa intenção é apenas conceituar o termo, mesmo que brevemente, para que possamos caracterizá-lo como algo além da mera felicidade cotidiana, e para que possamos fazer um comparativo com os diferentes tipos de amizade descritos por Aristóteles.

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primeiros tipos de amizade aqui descritos, a amizade com vistas à utilidade e a amizade com vistas ao prazer, a resposta é negativa. Não é através dos interesses ou dos prazeres que se alcança a eudaimonia. Se há alguma amizade que possa ajudar a alcançá-la, essa só pode ser a amizade perfeita. Entretanto, em determinado ponto, Aristóteles comenta que “os bem-aventurados e os que são autossuficientes não precisam nada de amigos, porque dispõem já das coisas boas da vida, e sendo autossuficientes não precisam de mais nada em acréscimo” (1169b5)17. À primeira vista, esta sentença pode confirmar que a eudaimonia é um estado à parte, e que o sucesso em a alcançar dependeria exclusivamente do próprio indivíduo. Assim, uma verdadeira amizade seria incondizente com a eudaimonia? Vejamos: Aristóteles também defende a amizade:

Em primeiro lugar, ele mesmo [Aristóteles] considera que o ter amigos é o maior dos bens exteriores, e a pessoa feliz não pode estar deles privada. Em segundo lugar, quem possui a arete ética precisa de pessoas diante das quais possa atuar; e é sempre melhor fazer o bem aos amigos do que aos estranhos. Em terceiro lugar, por natureza, o homem está constituído para conviver com outras pessoas, portanto tampouco podemos nos representar a pessoa feliz como um solitário.18

Temos aqui, ao nosso ver, algo minimamente contraditório. Se a

amizade não é necessária para alcançar a eudaimonia, por que caracterizá-la como algo bom? Ou, mesmo sendo boa, ela poderia ser dispensável em vista da eudaimonia? Mas se a eudaimonia é o bem supremo, não seriam necessários todos os bens para alcançá-la? O paradigma aqui talvez seja como encaixar a amizade na eudaimonia. Seria algo assim: é possível alcançar a eudaimonia por si mesmo – e o que é mais importante para tanto só você mesmo pode fazer –, mas com os amigos certos esse caminho fica mais fácil. Aristóteles lembra que “a amizade existente entre os excelentes é ela própria excelente”, sendo assim, o “partilhar a vida com os amigos” deve ser feita de maneira sábia, para tirar o melhor proveito da amizade (1172a5 ss)19.

Podemos concluir que mesmo não sendo indispensável, a relação entre amizade e eudaimonia leva sim ao estado desta última. Devemos destacar que toda ajuda é importante, e assim, “a contribuição do amigo

17 EN, ibid., p. 212. 18 WOLF, ibid., p. 243. 19 EN, ibid., p. 219.

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para a eudaimonia não reside no fato de nos alegrarmos na contemplação de sua boa ação, mas em apoiar-nos mutuamente, enquanto amigos, na direção do bem ético, e assim podermos tornar-nos melhores”.20 Sendo a amizade em seu estado perfeito algo de bom, por que não a usar para tanto?

O próprio fato de Aristóteles ter dedicado dois capítulos de sua obra para esmiuçar o tema da amizade, ele é certamente significativo. Porquê tratar longamente do tema se ao final ele não afirma que a amizade não é necessária? Embora não determinando com clareza a sua utilidade, se olharmos para a história da humanidade e para a própria história grega, veremos a importância da amizade para os povos civilizados. Ao caracterizar o homem como realizável apenas na polis, Aristóteles indiretamente nos transmite a ideia de coletividade e a ideia de convívio com os demais. O homem grego é obrigado a deixar a sua casa, mesmo que momentaneamente, para adentrar a vida da polis. Ao interagir socialmente com outros membros da polis, o homem grego cria relações que com o passar do tempo podem tornar-se verdadeiras amizades. Esse homem grego que faz amizades pela sua convivência na polis busca a eudaimonia, porque é a busca de todos os homens almejar o viver bem. Portanto, amizade e eudaimonia não se excluem nessa vida cotidiana. O que Aristóteles nos mostra é que ao buscar a eudaimonia o homem grego se deparará com relações sociais que porventura podem transformar-se em amizades. Cabe a esse homem, nessa busca, determinar qual a verdadeira amizade que será capaz de ajudá-lo a buscar o que tanto almeja.

20 WOLF, ibid., p. 247.

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REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.

WOLF, Ursula. A ética a Nicômaco de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2013.

42 O ensino e a filosofia da ciência

III

A AUTONOMIA DA CIÊNCIA NO BRASIL

Josiel dos Santos Camargo*

PALAVRAS-CHAVE: Autonomia da ciência; Cortes federais; Pesquisa científica; Princípio da serendipidade; Princípio de precaução.

No ano passado, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

(MCTI) foi unido ao Ministério das Comunicações (MC), conforme a redação final de 15 de junho de 2016 apresentada na câmara dos deputados e, ao contrário do esperado, seu orçamento sofreu uma enorme redução. Em março deste ano foi anunciado pelo governo o corte de 44% nos recursos destinados à pasta. Segundo dados apresentados pela presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Helena Nader, com esse corte sobraram apenas R$ 2,828 bilhões, o que equivale a apenas 18% do valor orçado em lei. O anúncio dos cortes foi justificado pelo governo tendo em vista a crise financeira internacional, mas mesmo assim sofreu muitas críticas por representantes da comunidade científica, levando em consideração o impacto negativo que com os cortes incidirão no desenvolvimento científico do País. Por este motivo, a comunidade científica brasileira tem unido forças para lutar pela autonomia do financiamento nas pesquisas. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade Brasileira de Física (SBF) e a Sociedade Brasileira de Astronomia (SAB) estiveram entre as dezenove entidades federais vinculadas ao, agora, Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) que assinaram o manifesto de repúdio enviado à câmara dos deputados realizado pela Frente Parlamentar de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, onde foi lido. Segundo Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC): “(...) corrigindo os valores pela inflação, o limite de empenho do MCTIC no ano passado foi apenas 1/3 daquele de 2010” (Assessoria de Comunicação – Coppe/UFRJ, 2017). Para o professor Ildeu de Castro Moreira, do Instituto de Física da UFRJ, as principais vítimas dos cortes, os jovens e estudantes, estão cada

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

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vez mais desanimados, por isso apelou para que os professores tirem um tempo para que conversem com seus alunos e expliquem o que está em jogo no campo científico, apontando o grande retrocesso que esses cortes poderão causar. Segundo ele: “Há uma participação muito pequena dos estudantes em nossas mobilizações e são eles que serão massacrados pelos cortes em seu futuro” (Assessoria de Comunicação – Coppe/UFRJ, 2017). Para o professor Sidarta Ribeiro, diretor do instituto do cérebro da UFRN, nos anos 2000 uma grande revolução científica aconteceu no Brasil. Segundo ele:

O governo federal aumentou substancialmente o investimento na pesquisa nacional, fortalecendo o MCT e por quase seis anos tivemos um físico de alto nível como ministro e o investimento em ciência foi feito não mirando no presente, mas no futuro (RIBEIRO, Veja, 2017).

Para Ribeiro, “A pesquisa feita no Brasil avolumou-se e passou a

aparecer nas melhores revistas científicas do mundo, como Nature e Science” (RIBEIRO, Veja, 2017). Com os relatos de todos os institutos e academias envolvidos nessa mobilização pela ciência, não podemos deixar de notar que a indignação por parte dos cientistas é unânime! E um dos pontos principais da discussão é a autonomia que a ciência deveria possuir perante trocas de governo, crises ou interesses gerais do âmbito político ou privado. Os representantes das universidades salientam que projetos como o Ciência sem Fronteiras aumentaram substancialmente o número de bolsas ofertadas fora do país, e como consequência disso, também, ressaltam que houve um grande aumento nas publicações científicas. Tivemos nos últimos anos muitos projetos de mestrado e doutorado implementados em todo o país, e por falta de verbas para a continuidade das bolsas a serem ofertadas, com muita tristeza, as instituições estão tendo que descartar projetos ótimos e com isso desacreditar esses pesquisadores. Mas o principal ressentimento das academias é que mais do que esse avanço substancial nas pesquisas, a ciência brasileira avançou principalmente no sentido de adquirir uma certa autonomia, até então refém dos repasses federais. Os cientistas acreditaram que depois de muita luta durante décadas para se consolidar no âmbito científico, não apenas nacional, mas com relevância internacional, essa conquista impactaria no pensamento científico da população como um todo, como forma de reconhecimento do trabalho realizado pelas entidades vinculadas ao

A autonomia da ciência... 45

MCTIC que serão afetadas pelos cortes e que auxiliam a população continuamente, como exemplo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), criado em 2011, que monitora 24 horas por dia todos os tipos de ameaças naturais e áreas afetadas por desastres, emitindo alertas ao Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (CENAD), auxiliando, dessa maneira, o Sistema Nacional de Defesa Civil. Por esse motivo a comunidade científica ficou estarrecida com os cortes impostos e, além disso, mais ainda com a postura dos políticos, da população e dos próprios estudantes que não se mobilizam para reverter a situação, soando praticamente como uma traição à ciência, se considerados todos os avanços e serviços prestados por ela para a comunidade em geral. O que nos leva a pensar é: será que temos algum tipo de autonomia na ciência brasileira? Pois, se as leis que deveriam assegurar o direito dos repasses não são respeitadas, onde está, então, a autonomia científica brasileira? Sob que bases repousam todos esses direitos essenciais? Será, talvez, assim como o manifesto das universidades e academias afirmaram? Como sendo contingente, pode vir ou não, depende da situação econômica ou de qual governo estará no poder? O fato que não parece claro, é qual o tipo real de avanço científico sabendo que com uma “simples” mudança de governo ou crise econômica, todo esse progresso científico desabou diante de nossos olhos sem que alguém pudesse fazer algo a respeito?

A autonomia da ciência no Brasil parece “cambalear” sem rumo certo para se estabelecer e se consolidar no âmago da pesquisa revolucionária. Não possuímos prêmios Nobel e nossos cientistas tornam-se reféns de outros países no que diz respeito às pesquisas espaciais, pois não temos os equipamentos necessários, e mesmo quando participamos em conjunto com outras entidades e pesquisadores de outros países - pela falta de tecnologia e oportunidades aqui no Brasil - necessitamos de bolsas de pesquisa e financiamento para se manter no exterior, necessidade essa que também não se consolida pelas verbas escassas destinadas à pesquisa científica. Temos, pois, um país que parece não ter interesse em produzir ciência de maneira séria; não custeia os gastos de quem tenta fazer esse trabalho, nem proporciona as condições para que isso aconteça de alguma maneira, como uma bolsa, por exemplo, para quem tem interesse de sair daqui e poder trabalhar fora do país, lançando esses pesquisadores à própria sorte ou ao “interesse” privado.

46 O ensino e a filosofia da ciência

Nos modelos de autonomia da ciência propostos por Oliveira (2011), no seu artigo sobre as “Formas de Autonomia da Ciência”, vemos a ciência brasileira atuando nos campos mais perigosos. Deixando claro aqui que não é o objetivo deste artigo tratar sobre as formas de autonomia da ciência especificamente. Dessa maneira, o objetivo deste artigo limita-se, ao se apropriar dessas formulações, apontar para os perigos que levam à perca da autonomia, no qual a ciência brasileira parece caminhar em cada modelo de autonomia proposto. Para isso, partiremos da autonomia galileana1, onde, de maneira geral, temos como pressuposto a liberdade de conduzir a investigação científica sem interferências. Compreendendo, é claro, que em seu tempo essa interferência provinha da Igreja. No trabalho de Mariconda e Lacey (2001), conforme citado por Oliveira, eles propõem a reconstrução dos argumentos de Galileu sob três suposições acerca do seu pensamento, de maneira geral, pontuando:

• A pesquisa científica deve ser imune a críticas provenientes de pontos de vista valorativos;

• Tem autoridade para emitir juízos em nome da ciência apenas quem segue rigorosamente as normas do método científico;

• Os juízos científicos não têm implicação alguma para os domínios da teologia, da metafísica e dos valores.

Temos, pois, nessa sequência, três problemas vistos por Galileu: A ciência deve ser útil apenas como um fim em si mesmo, portanto, não ser atrelada a algum valor; a ciência é feita por quem segue seus métodos, portanto, fica a cargo do cientista emitir juízos científicos para que não fiquemos no campo da opinião ou da ignorância; e, por fim, a ciência deve ser autônoma, com isso, não ser vinculada às religiões, crenças pessoais ou cultura popular. No primeiro modo, como fim em si mesmo, perdemos nossa autonomia por depender de resultados, portanto, somos direcionados a algum fim, não sendo possível, desenvolver pesquisa por simples curiosidade sobre um tema, por exemplo, como termos um cientista com um projeto financiado sem resultados certos ou imediatos2.

1 OLIVEIRA, Marcos Barbosa de. Formas de Autonomia da Ciência. Scientiae Studia, São Paulo, v.9, n.3, 2011, p. 528-30. 2 A pesquisa direcionada deve ser dissociada da pesquisa aplicada, pois a pesquisa aplicada, apesar de ser direcionada, é direcionada a um conhecimento já existente com algum fim específico de aplicação. A pesquisa direcionada, por sua vez, visa a busca por um novo conhecimento. Desse modo, podemos utilizar o termo “direcionada” como sendo restrita a uma busca específica, mas não de um conhecimento pré-existente a ser

A autonomia da ciência... 47

A segunda maneira sustenta que fica a cargo do cientista emitir juízos sobre os direcionamentos das pesquisas ou sobre assuntos científicos em geral, pois é onde a questão política principalmente atrapalha, justificando o direcionamento das verbas como se soubessem ou tivessem algum dado ou conhecimento científico concreto para contingenciar os valores a serem repassados à pasta, ou sem esses conhecimentos fundamentais, não compreender que em algumas áreas necessita-se de mais recursos do que em outras. Na questão religiosa ou cultural, no contexto atual não é um problema tão sério, pois em Galileu essa autonomia era reivindicada devido aos abusos de poder por parte da Igreja, onde, em nosso tempo, não temos mais esse problema. Há, de fato, ainda, muita intolerância, relativo à ignorância com relação à ciência, mas não atinge diretamente a autonomia, é um problema, do meu ponto de vista, secundário. Na autonomia vannevariana3, embasada no relatório de Vannevar Bush, que como proposta dizia sobre as políticas científicas e tecnológicas a serem adotadas no País pós-guerra, o argumento criado para justificar essa autonomia tinha como pressuposto os avanços bélicos alcançados na guerra, visto que através da revolução científica no período de guerra foi possível avançar muito tecnologicamente. Como exemplo, temos o surgimento do radar e da bomba atômica, destacados no artigo, possível apenas através do financiamento do Estado, que não poupou recursos para que essas ideias científicas se consolidassem, com vistas, é claro, a vencer a guerra. A ideia principal dessa proposta, em síntese, é a de que o Estado deveria assumir a função principal de financiador das pesquisas científicas em prol da sociedade através do conhecimento gerado. O problema dessa autonomia é que sendo o Estado o principal financiador, caberia a ele ditar os rumos da pesquisa. Assim, para contar com o financiamento do Estado, a ciência deveria abrir mão de sua autonomia no direcionamento das pesquisas. Outro problema no modelo vannevariano, ao tentar desviar do poder do Estado, foi disseminar o princípio da serendipidade4, que seria a faculdade de fazer descobertas interessantes ou aplicáveis como conhecimento por acaso. O objetivo desse princípio seria o do avanço do conhecimento como um fim em si mesmo,

aplicado, e sim direcionada a alguma área de pesquisa específica ou com algum tema de pesquisa delimitado. 3 Ibid., p. 531-33. 4 Palavra originária do termo inglês “serendipity”, criada pelo escritor Horace Walpole em 1754, a partir do conto “Os três Príncipes de Serendip”.

48 O ensino e a filosofia da ciência

bloqueando, desse modo, o total poder do Estado sobre o direcionamento das pesquisas. O Estado deve apenas prover os recursos para a pesquisa, mas deixar a cargo da própria comunidade científica decidir onde e como aplicar. Essa forma de reivindicação nasce do desejo de quase todo cientista, a saber, ter recursos para pesquisar o que mais lhe apraz. Mas se o Estado não tiver controle sobre o que for aplicado ou ao direcionamento dessas pesquisas, ele continuará financiando apenas por financiar? Já não seria uma verba com um fim em si mesmo, assim como pudemos extrair do pensamento galileano? No que se refere à autonomia vannevariana, isso só foi viável pelo fato de que a ciência foi base para os avanços conquistados no período de guerra, depois, também, na corrida espacial. Com isso, de maneira geral, sempre foi esperado uma certa produtividade por parte da ciência nesses casos. Seria ótimo para o avanço científico gerir seus próprios recursos, sem escassez alguma, mas se eles não trouxerem resultados palpáveis, talvez não seja tão interessante assim continuar os financiamentos. Para que isso não ocorresse, foi disseminado o princípio da serendipidade mencionado acima, mas parece que não elimina completamente o problema, pois, uma perspectiva é trabalhar em pesquisas direcionadas e por acaso descobrir algo novo que não condiz com o problema em questão, e outra é fazer disso uma regra geral para burlar o controle do Estado, pois perde-se com isso a autonomia, ao meu ver, de duas maneiras, respectivamente: ao passo que tenham que mentir para que possam trabalhar em sua pesquisa e perde-se, também, a objetividade do problema ao colocá-lo de forma secundária às sombras da pesquisa direcionada em questão. Notamos isso no nosso modo de fazer ciência pela falta de recursos suficientes para abranger outras linhas de pesquisa. O pesquisador, ao não encontrar rumo certo para seus problemas científicos, acaba por adotar esse princípio para poder trabalhar. Podemos utilizar de um exemplo na pesquisa brasileira: se um cientista necessita fazer uso de um telescópio, seja no próprio País ou mesmo em pesquisas conjuntas no exterior, onde quem o possui trabalha de maneira totalmente diferente dos rumos que a pesquisa dele caminha, seu desejo científico o dominará de tal maneira que ele próprio encontrará refúgio no princípio da serendipidade, trabalhando na pesquisa em questão e ao mesmo tempo tentando solucionar seus próprios problemas em segredo de maneira secundária, em algum instituto que o permita, devido à falta

A autonomia da ciência... 49

de financiamento para sua pesquisa. Com o neoliberalismo5, surgido, segundo o artigo de Oliveira, na década de 70, esse problema se agravou, pode ser caracterizado como a fase do capitalismo em que de certa maneira: “transforma todas as categorias de bens em mercadorias” (OLIVEIRA, 2011, p. 534). A principal estratégia do neoliberalismo é o princípio do “inovacionismo”, que consiste em, através da pesquisa direcionada, buscar inovações científicas rentáveis com vista a lucros que poderão obter com isso. Uma invenção, no modo neoliberal de autonomia científica, segundo o autor: “[...] precisa ser rentável, precisa ser capaz de contribuir para a maximização dos lucros da empresa que lança um novo produto, ou adota um novo método de produção” (OLIVEIRA, 2011, p. 535). Assim sendo, quem determina o que é rentável é o mercado e, com isso, a obtenção de inovações torna-se o objetivo primordial da pesquisa científica, pois seus rumos passam a ser ditados pelo mercado, segundo o artigo mencionado. Sintetizando, a essência da autonomia neoliberal consiste na liberdade de cada cientista procurar financiamento para as pesquisas que deseja realizar em qualquer fonte, pública ou privada, tendo em vista apenas seu interesse pessoal. Porém, num cenário em que predomina a busca desenfreada por inovações rentáveis, as fontes públicas de financiamento tendem a traçar o mesmo caminho nas pesquisas, vinculando assim as pesquisas aos interesses do âmbito privado que seguem rigorosamente os ditames do mercado. Ainda sobre as formas neoliberais, Oliveira cita o relatório de Langley e Parkinson (2009), que consiste no estudo das consequências nefastas da mercantilização6 da ciência e da tecnologia, vista nas relações das universidades e institutos de pesquisa com as empresas privadas. O relatório traz explicações sobre o modo de atuação, ligações que mantêm com as universidades e a consequência dessas ligações com o setor privado. Segue-se alguns pontos fundamentais para a compreensão dos perigos destacados no relatório: o direcionamento das pesquisas, a tendenciosidade nos resultados das pesquisas, a transparência das pesquisas e a interpretação pública dos resultados das pesquisas. Na questão do direcionamento das pesquisas, o problema do inovacionismo irá prevalecer, a pesquisa nesse sentido visará principalmente a rentabilidade obtida pela pesquisa científica, atendendo quase sempre ao mercado. Isso nos leva ao último ponto, a interpretação pública, que por

5 Ibid., p. 534-36. 6 De maneira geral, é o ato de transformar alguma coisa em mercadoria, comerciável.

50 O ensino e a filosofia da ciência

não ter conhecimento dessas pesquisas devido a sua falta de transparência e pela manipulação de dados científicos, faz com que essas pesquisas encomendadas fiquem no âmbito do obscurantismo. As consequências negativas dessa relação entre universidades e institutos com o interesse privado pode se dar por vários motivos, tentarei destacar alguns. Partindo do pesquisador, que visa exclusivamente a pesquisa científica e não sua mercantilização, se bem pago e com recursos disponíveis, tende a não ceder para o setor privado ou interesses alheios ao da pesquisa científica séria. Mas por que isso acontece, então? Podemos considerar, primeiramente, sob quais condições nossos pesquisadores têm trabalhado e como são tratados aqui no Brasil. Sem recursos públicos disponíveis para a pesquisa, o profissional além de não ter um espaço exclusivo adequado às suas necessidades para a pesquisa dentro de uma universidade ou instituto, não possui nem material básico para trabalhar, como é caso das universidades federais atingida pelos cortes desse ano. Nesses casos, esses profissionais têm ainda que atuar na maioria das vezes como professor e pesquisador. Devemos compreender que ser professor, em parte, também é ser um pesquisador, pois buscamos constantemente o conhecimento com vista a nos atualizarmos ou mesmo inovar dentro de sala. Porém, nem todo pesquisador tem a predisposição para ser professor, na maioria das vezes o faz por não ter outra saída para realizar sua pesquisa, necessita, portanto, estar vinculado a algum instituto de pesquisa ou universidade. Também, não possui recursos disponíveis para angariar fundos para sua pesquisa por via pública, tendo grandes chances, desse modo, de ceder ao interesse do setor privado, que tende a financiar a pesquisa direcionada visando lucros. Outro perigo da pesquisa via setor privado, com relação às questões éticas envolvidas nessa relação universidade e interesse privado, pode ser melhor compreendido no artigo de Hugh Lacey (2006) sobre o princípio de precaução7. Segundo Lacey, com o princípio de precaução, tais princípios éticos inseridos nas pesquisas científicas tendem a incorporar valores éticos concernentes aos direitos humanos e não exatamente inserir a ética na pesquisa científica, como alguns críticos do princípio argumentam afirmando que: “O princípio de

7 No artigo “O Princípio de Precaução e a Autonomia da Ciência” de Lacey, o autor utiliza o princípio definido pela Comissão Mundial sobre Ética da Ciência e da Tecnologia da Unesco (Comest): “Quando atividades podem conduzir a dano moralmente inaceitáveis, que seja científicamente plausível, ainda que incerto, devem ser empreendidas ações para evitar ou diminuir aquele dano”.

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precaução impede os interesses comerciais e a política de desenvolvimento de certos países, atrapalhando, desse modo, o potencial de uso da tecnociência para resolver problemas humanitários” (LACEY, 2006, p. 375), envolvendo, desse modo, a ética como “intrusa” na pesquisa científica. Pelo contrário, afirma o autor:

[...] o princípio de precaução serve efetivamente para opor-se às intrusões dos valores éticos, sociais e políticos e aos interesses especiais que as refletem e que estão constantemente afetando a pesquisa científica corrente e produzindo sua subordinação aos interesses de corporações e governos. (LACEY, 2006, p. 376)

Portanto, contra as falsas afirmações, o princípio de precaução é

“reforçar alguns valores muito prezados da comunidade científica, valores como a imparcialidade, neutralidade e autonomia”, destaca Lacey. Para os críticos do princípio, a demora da implementação de um projeto, sob a dependência de uma avaliação minuciosa dos riscos envolvidos, retardaria, inevitavelmente, a condução da pesquisa, tendo como base o fato de que enquanto financiadores, tanto o governo quanto as corporações, como o setor privado, seriam dissuadidos de manter seus fundos de financiamento e desistiriam de investir mais. São, portanto, os financiadores, atendendo ao mercado e aos lucros, que tendem a retirar o apoio se acaso o princípio de precaução for adotado. Com isso exposto, deixamos em aberto esses problemas com a seguinte pergunta: com financiamentos públicos escassos para a pesquisa científica, e com o setor privado atendendo somente seus interesses pessoais e os lucros que poderão obter com isso, atentando dessa forma contra qualquer princípio ético, para onde seguirão nossos pesquisadores? Qual a forma de autonomia científica no Brasil? REFERÊNCIAS ABC. Cortes ameaçam sobrevivência dos institutos federais de ciência e tecnologia. Disponível em: < http://www.abc.org.br/centenario/?Cortes-ameacam-sobrevivencia-dos-institutos-federais-de-C-T>. Acesso em: 21 de jul. 2017.

COPPE/UFRJ, Assessoria de comunicação. Comunidade acadêmica debate cortes de investimento na ciência e tecnologia e conclama

52 O ensino e a filosofia da ciência

mobilização nas universidades. Jornal daCiênciaDisponívelem:<http://www.jornaldaciencia.org.br/edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/5-comunidade-academica-debate-cortes-de investimentos-na-ciencia-e-tecnologia-e-conclama-mobilizacao-nas-universidades/>. Acesso em: 21 de jul. 2017.

FUSÃO MCTI-MC. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cctci/documentos/nota taquigraficas/2016/nt-2016-06-15-fusao-mcti-mc>. Acesso em: 21 de jul. 2017.

INPA. Unidades de pesquisa do MCTIC apresentam manifesto na câmara dos deputados. Disponível em: <http://portal.inpa.gov.br/portal/index.php/ultimas-noticias/2899-diretores-de-unidades-de-pesquisa-do-mctic-apresentam-manifesto-na-camara-dos-deputados> Acesso em: 21 de jul. 2017.

LACEY, Hugh. O princípio de precaução e a autonomia da ciência. Scientiae Studia, São Paulo, v.4, n.3, p. 373-92, 2006.

NATURE. Brazilian scientists reeling as federal funds slashed by nearly half. Disponível em: < http://www.nature.com/news/brazilian-scientists-reeling-as-federal-funds-slashed-by-nearly-half-1.21766>. Acesso em: 21de jul. 2017.

OLIVEIRA, Marcos Barbosa de. Formas de autonomia da ciência. scientiae studia, São Paulo, v.9, n.3, p. 527-61, 2011.

PIMENTEL, Thais. Cortes no Ministério da Ciência compromete pesquisas da UFMG e UFOP. G1 MG, Belo Horizonte, 15 de mai. 2017. Disponível em: <http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/corte-no-ministerio-da- cienciacompromete-pesquisas-da-ufmg-e-ufop-dizem-professores.ghtml>. Acesso em: 21 de jul. 2017.

RIBEIRO, Sidarta. Ciência em retrocesso. veja.com, 18 de mai. 2017. Disponível em:<http://veja.abril.com.br/complemento/pagina-aberta/ciencia-em retrocesso.html>. Acesso em 21 de jul. 2017.

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SBF, Assessoria de comunicação. Cortes no orçamento de ciência ameaçam futuro doBrasil.Disponívelem:<http://www.sbfisica.org.br/v1/index.php?option%3Dcom_content%26view%3Darticle%26id%3D381:cortes-no-orcamento-de-ciencia-ameacamfuturo-do-brasil%26catid%3D103:abril-2012%26Itemid%3D270>. Acesso em: 21 de jul. 2017.

54 O ensino e a filosofia da ciência

IV

A DEFINIÇÃO ARISTOTÉLICA DE TEMPO, EM FÍSICA, IV, 10-14

Lucas dos Santos*

PALAVRAS-CHAVE: Tempo; Aristóteles; Física. 4.1 INTRODUÇÃO

Nosso propósito é apresentar a definição aristotélica do tempo, proposta em Física IV, 10-14, resgatando os conceitos nela envolvidos, de modo a proporcionar as condições básicas para uma primeira aproximação. A definição diz: “Isto, pois, é o tempo, número de um movimento segundo o anterior-posterior”. Nesta exposição, analisaremos brevemente cada conceito da definição, seguindo a ordem de sua formulação. Iniciaremos pelo conceito de número, passando pelo de movimento, por fim chegando ao de anterior-posterior. Na última parte de nosso escrito, trataremos de um conceito obscuro, que não aparece na definição do tempo, mas é imprescindível para seu entendimento, a saber, o conceito do “Agora”. 4.2 SOBRE O NÚMERO

O número a que Aristóteles se refere em sua definição do tempo

é numerado, e não numerante. Isto significa que o tempo é para o movimento dependente de sua unidade de medida, de seu referencial unitário, e o tempo é a contagem desde essa unidade. Se o tempo inclui em si o quantificador do movimento, este último deve ser divisível para assim poder ser delimitado e numerado. Essa “delimitação” permitirá a quantificação temporal do movimento, que o torna perceptível. Delimitar uma quantidade de movimento significa contar com (e desde)

* Graduação em Filosofia – UNIOESTE – Toledo; [email protected]

56 O ensino e a filosofia da ciência

uma unidade do movimento: somente assim, por meio do tempo, o próprio movimento será conhecido, no sentido de medido ou numerado. O número, o um, tem primazia em relação ao medir (contar), pois é por meio dele que se conhece a quantidade como quantidade.

Em Metafísica 1052b 23-24, Aristóteles diz que “o um é princípio do número enquanto número”. Outra importante afirmação está no livro Iota da mesma obra, e é a de que o ente e o um são os predicados mais universais. “Ente” e “um” não pertencem, portanto, a um determinado gênero; eles são atribuídos a todos os gêneros. Para cada gênero imaginado, o um é o princípio pelo qual ele se dá a conhecer. A medida deve sempre ter o mesmo gênero que aquilo que ela mede. Isso significa que, ao observarmos um determinado jardim, por exemplo, percebemos de imediato que está repleto de flores de todos os tipos, e é esse “imediato”, aquilo que vem primeiro, o princípio pelo qual conhecemos as flores, pois primeiro conhecemos o “um” de cada gênero, a medida. Nesse caso, o gênero – medida – “flor”.

Aristóteles define três características principais do um: o um não é número, o um é indivisível e o um é aquilo de que os números são compostos. A primeira característica é apofática e a princípio estranha para nós, pois não costumamos pensar aquele número natural entre zero e dois, a saber, o um, como que não sendo propriamente um número. O que acontece é que para os gregos, além de não existir o zero, o um não era propriamente um número. O um é a medida de certa pluralidade. Nesse sentido, o um pode ser entendido como que sendo parte de uma pluralidade, parte de um número maior, o um é um relativo dessa pluralidade, é o referencial unitário que faz com que a pluralidade tenha uma unidade, e essa pluralidade é então uma pluralidade de unidades. Por exemplo, uma pluralidade de quatro cadeiras é feita de quatro unidades de cadeiras. E é essa “pluralidade medida” que ele determina como sendo número. Conclui ele: “é razoável que o um não seja número, pois tampouco a medida é medida, mas ambos, a medida e o um, são princípios” (Metafísica 1088ª8).

A segunda característica, a de que o um é indivisível, significa que dentro de cada gênero no qual o um participa formando a pluralidade numérica, o um permanece indivisível, afinal, ele é a unidade numérica do gênero, e o um é um outro um dentro de cada gênero que participa. É nesse sentido também que devemos entender a afirmação de Aristóteles de que o agora seria “como uma unidade de um número” (Física 220ª4), ou seja, também o agora, sendo o referencial unitário, é indivisível. Isso

A liberação da noção e verdade... 57

será melhor compreendido quando formos tratar especificamente do agora, mais adiante no texto.

A terceira característica afirma que todos os números são um composto de números um, ou seja, de certa forma as pluralidades numéricas nada mais são do que uma composição de unidades, tendo em mente que a pluralidade é como se fosse o gênero do número. Aqui o um ganha uma dupla função, sendo uma de unidade de medida do gênero e a outra de parte integrante dessa pluralidade fazendo com que seja possível um agrupamento de várias unidades de medida para assim formar os variados números. Dessa forma, as duas funções do um aqui seriam a do um enquanto medida e a do um enquanto unidade.

Uma importante diferenciação se faz necessária, a saber, aquela entre número abstrato e número concreto. Entende-se por número abstrato aquele que se refere a uma certa quantidade, sem fazer menção à natureza a que essa quantidade se refere. Por número concreto entendemos o número que se refere tanto à quantidade quanto à natureza das unidades que designa. Por exemplo, ao se falar de dez cães e dez gatos, o número é o mesmo, o dez, mas atentando a que o número se refere, há diferença. Nos dois casos o número abstrato é “dez”, mas os números concretos são dois: “dez cães” e “dez gatos”. Isso é assim porque o número concreto se refere tanto à quantia quanto à natureza dessa quantia. O número “dez cães”, apesar de possuir a mesma quantia do número “dez gatos”, possui o gênero diferente. Essa diferenciação serve para mostrar que também o tempo é o mesmo para dois movimentos distintos, como por exemplo, o movimento local e a alteração. Apesar de poderem ser medidos por um mesmo período de tempo, serão dois movimentos diferentes, contados sob o mesmo número ou tempo.

No tratado aristotélico sobre tempo (Fís. IV, 10-14), se podemos fundamentar a relação entre tempo e alma, encontramos esse fundamento no “número de um movimento segundo o anterior-posterior”. Sem o número, a alma não seria capaz de apreender dois “agoras” distintos, pois não seria capaz de determiná-los dentro de uma série cinética. Segundo o próprio Aristóteles: “Poder-se-ia [então] levantar a questão de saber se haveria ou não o tempo caso não houvesse a alma, pois se fosse impossível que houvesse um ente que pudesse numerar também seria impossível que houvesse algo numerável, bem como, evidentemente, tampouco haveria um número qualquer, dado que o número ou é numerado ou é numerável” (Fís., 223 a21-25).

58 O ensino e a filosofia da ciência

O que foi denominado como número abstrato é o que

Aristóteles caracteriza como número numerante, e o que foi denominado como número concreto é o que ele denomina como número numerado. No exemplo citado anteriormente, os dez cães e os dez gatos existem independentemente da alma. Existem também independentemente da alma que atualmente numera, pois não é porque a alma os numera que sua substância mesma dependeria da alma. Mas enquanto entes numeráveis, sim, dependem da alma que os numera, pois, sem o intelecto que os conta, existiriam em um agrupamento indeterminado. Por fim, aquilo que foi atualmente numerado depende da alma que atualmente numera. Se o número numerado – concreto – refere-se a um intervalo determinado de tempo, o número numerável – abstrato – refere-se à potencial infinitude constitutiva do tempo. Do mesmo modo que o número é considerado de ambas as formas, também o tempo o é, ou seja, é considerável enquanto um tempo, finito, um período determinado, e enquanto o tempo propriamente dito, infinito e indeterminado.

O tempo considerado em seu substrato – o anterior-posterior no movimento –, não é propriamente tempo, mas a condição necessária, porém, insuficiente para que ocorra o tempo em seu ser próprio. Seu ser próprio se manifesta no ato da alma intelectiva numerar o movimento, segundo o anterior-posterior. Com isso, Aristóteles conclui que o tempo é o anterior-posterior do movimento enquanto numerável.

Passemos agora a tratar da definição de movimento.

4.3 SOBRE O MOVIMENTO

Aristóteles estabelece uma divisão entre os entes que são apenas em ato e os que são em ato e potência. Pois ser absolutamente em ato é ser ente imóvel, como Deus, que não tem potência para atualizar (ou seria incompleto) e ser em potência é ser ente móvel.

O movimento, em sentido absoluto, ou seja, sem especificações restritivas, é definido como “o ato do que é em potência enquanto tal” (Fís., 201 a 10-11), ou seja, não como a efetiva atualização de algo potencial, mas como a contínua atualização de uma potência que jamais chegará a ser em ato, pois que ser em ato é não sofrer mais nenhum movimento ou mutação. O que interessa a Aristóteles nesse passo é mostrar a incompletude determinante de uma substância que atualiza uma potência enquanto potência. Ou seja, a ênfase nesse passo está na potencialidade de um ente que se torna diverso do que no início do

A liberação da noção e verdade... 59

movimento é. O ato da potência pode ser ou a plena efetivação dessa potência (uma casa pronta, por ex.) ou o incessante efetivar-se dessa potência (o processo de construção de uma casa, por ex.). O movimento refere-se a este segundo caso.

Aristóteles também atribui ao movimento um caráter indeterminado, decorrente de uma impossibilidade de ordená-lo entre o que é simplesmente possível ou entre o que é simplesmente atual, pois “o movimento parece ser um certo ato, mas inacabado, e a causa disto é que o potencial no qual é ato é inacabado” (Fís., 201 b 31-33). O movimento, conclui Aristóteles, é “difícil conceber, mas possível [de] ser” (Fís., 202 a 2-3). Em suma: o movimento é. O termo movimento implica tanto o movente quanto o movido. O ato que é um e o mesmo para o movente e para o movido, o movimento, refere-se a dois aspectos diferentes de uma mesma coisa: ato e potência. Porém, não há confusão entre esses dois aspectos, entre o movente e o movido. Há apenas o ato de uma potência enquanto tal, ou seja, o ato do que se move e o ato do que é movido sob a ação do que se move.

Visto que essa mudança se dá segundo o anterior-posterior, passemos agora a tratar do sentido desse conceito, desde a definição aristotélica do tempo.

4.4 SOBRE O ANTERIOR-POSTERIOR

Vimos, até aqui, que o número é algo do movimento, é

quantificação do movimento. Por esse motivo também é dito do movimento que ele tem um número que o quantifica. Mas, afinal, qual é o horizonte, o quadro processual, no qual o movimento é numerado? A resposta de Aristóteles já nos é conhecida, apesar de ainda não nos termos debruçado efetivamente sobre ela: o número do movimento procede segundo o anterior-posterior.

Se analisarmos o “substrato” do anterior-posterior, devemos determiná-lo como etapas sucessivas que um determinado ente móvel ocupa em relação a um lugar, sendo que o tempo segue o movimento, e o movimento implica uma grandeza contínua pela qual pode ser mensurado. Dizer que o anterior-posterior é a condição de ser do número mesmo, por conseguinte, do tempo, é dizê-lo como princípio do número, como sugere Aristóteles: “todas as causas são princípios” (Met., 1013 a17). Fernando Rey Puente em sua obra Os Sentidos do Tempo em Aristóteles define o anterior-posterior como “o princípio, o fundamento

60 O ensino e a filosofia da ciência

segundo o qual a um movimento qualquer é atribuído um número, número que denominamos tempo” (2001, p. 185).

Segundo Aristóteles, “quando temos uma percepção do anterior-posterior no movimento” (Fís., 219 a24-25) temos um período determinado de tempo. Em outra passagem da Física, ele diz que “o anterior-posterior no movimento, sendo aquilo que é em um momento qualquer, é movimento; seu ser em si mesmo, entretanto, é diverso e não é movimento” (Fís., 219 a19-21). Isso quer dizer que se considerarmos o anterior-posterior no movimento como um substrato que subsiste em qualquer momento, teremos a abstração do movimento em si. Mas se o considerarmos conceitualmente, veremos que o anterior-posterior é do movimento no sentido de que, por ele, podemos abstrair uma parte de movimento, e ao numerarmos essa “parte” temos um período de tempo. Segundo Rey Puente: “A determinação do anterior-posterior dá-se, então, ao considerarmos o anterior diferente do posterior e ambos diversos daquilo que se interpõe entre eles, ou seja, diversos do intervalo cinético ou cronológico por eles determinado” (REY PUENTE, 2001, p. 191).

Devemos agora atentar para o que possibilita que o anterior-posterior delimite uma parte de movimento. Veremos qual é o referencial unitário do número do movimento que possibilita a determinação de uma parte de movimento, e com essa determinação, consequentemente, poderemos “contar” o tempo. Basicamente, trataremos de ver qual é a unidade de medida do tempo, o número numerante que permite que tempo seja número numerado do tempo. Resta-nos, pois, debruçarmo-nos sobre a definição aristotélica do agora.

4.5 SOBRE O AGORA

Apesar de o “agora” não participar formalmente da definição do

tempo, ele é imprescindível para sua constituição. É com base nele que o anterior-posterior se define, consequentemente também o número do movimento, ou seja, o próprio tempo. Conforme diz Aristóteles: “é impossível que exista ou que seja pensado um tempo sem o agora” (Fís., 251 b19-20). Uma primeira pergunta a ser feita é a de se o agora é sempre um e o mesmo ou se é sempre diverso. Se for sempre um e o mesmo, isto impossibilita a ordem temporal, pois toda linha temporal estaria unida dentro de um só agora. Sendo o agora sempre diverso, decorre a necessidade de a alma perceber esse agora como diverso, caso

A liberação da noção e verdade... 61

contrário não é capaz de perceber o agora anterior, o agora posterior e nem os agoras intermediários entre eles, e assim não seria capaz de perceber um intervalo de tempo. Essa determinação de agoras distintos no anterior-posterior é sua determinação numérica. Por isso, Aristóteles propõe a definição de que “o agora é o anterior-posterior enquanto numerável” (Fís., 219 b25). Assim, podemos perceber que a alma só é capaz de perceber um tempo, e não o tempo. É preciso delimitar o ilimitado para que possamos percebê-lo e pensá-lo, pois “o ilimitado enquanto ilimitado é incognoscível” (Fís., 187 b7-8).

Com relação ao substrato e ao ser do agora, Aristóteles afirma, no passo 219 b11 da Física, que o agora considerado como “aquilo que era em um momento qualquer” é o mesmo, porém, “por meio de seu ser próprio é diverso”. Nas palavras de Heidegger, isso significa que “em cada agora o agora é um outro, mas cada outro agora é enquanto agora sempre agora” (HEIDEGGER, 2012, p. 360). Dito de outra forma: enquanto substrato, todo novo agora é idêntico, pois também ocorre agora, ou seja, a “agoridade” do agora é a mesma. Porém seu ser é sempre diverso, visto que cada agora é um “instante” diferente do movimento e, por isso, refere-se a uma outra “fase”, uma outra parte do movimento.

Como o agora é usualmente considerado um “instante” da série cinética, limite entre passado e futuro, deve ser também indivisível. Caso contrário, seria possível atribuir-lhe alguma extensão temporal, o que faria com que o agora tivesse, dentro dele próprio, passado e futuro, e isso incorreria no absurdo da possibilidade de existir passado dentro do futuro e futuro dentro do passado. Ao se considerar o agora como limite, então, deve-se entendê-lo também como potencialmente divisor ou efetivamente unificador do passado e do futuro. O que parece ser a principal intenção de Aristóteles, ao tratar do tempo, é mostrar que, se o pensamos como indeterminado e infinito, não conseguiremos concebê-lo, e por isso devemos tratar sempre de um tempo, de um período finito e determinado que somos capazes de perceber e abstrair do movimento. Contudo também devemos pensar o agora de duas maneiras distintas: ou como limite – como conector de passado e futuro, sem que exista uma divisão efetiva entre eles – ou como unidade dos extremos de um período de tempo – anterior-posterior.

Vimos então, que, na definição aristotélica de tempo, o número é número numerado (contado); o movimento, para ser movimento, deve ser uma contínua atualização de potências; o anterior-posterior é a

62 O ensino e a filosofia da ciência

quantificação de uma parte de movimento, e vimos que, como condição da definição, encontramos o agora, que possibilita essa quantificação, como delimitação do anterior-posterior, de passado e futuro.

REFERÊNCIAS ANNAS, Julia. “Aristotle, Number and Time”. In The Philosophical Quarterly. Vol. 25, no. 99. Pp. 97-113. (via JStor). 1975.

ARISTÓTELES. Física. Trad.: Guillermo R. de Echandía. Madrid: Gredos, 2008.

______. Física, I e II. Trad.: Lucas Angioni. Textos Didáticos. Campinas: UNICAMP, 1999.

BRAGUE, Rémi. O tempo em Platão e Aristóteles. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2006.

COOPE, Ursula. Time in Aristotle. ‘Physics’ IV 10-14. Oxford: Clarendon Press, 2005.

ÉVORA, Fátima Rodrigues Regina. “Natureza e Movimento: um estudo da física e da cosmologia aristotélicas”. In Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, v.16, no.1. Campinas: Unicamp. Pp. 127-170.

FALCON, Andrea. Aristotle and the science of nature. Unity without uniformity. Cambridge: Cambridge University Press, 2005

GOLDSCHMIDT, Victor. Temps physique et temps tragique chez Aristote. Commentaire sur le quatrième livre de la Physique (10-14) et sur la Poétique. Paris: Vrin, 1982.

HEIDEGGER, Martin. Os problemas fundamentais da fenomenologia. Trad.: Marco Antonio Casanova. Petrópolis (RJ): Vozes, 2012.

PUENTE, Fernando Rey. Os Sentidos do tempo em Aristóteles. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

A liberação da noção e verdade... 63

SIMPLÍCIO. On Aristotle’s Physics 5. Tradução de J.O. Urmson. Ithaca, NY: Cornell University Press., 1997.

64 O ensino e a filosofia da ciência

V

A LIBERAÇÃO DA NOÇÃO DE VERDADE COMO ADEQUAÇÃO

Luana Borges Giacomini*

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens** PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; verdade; alétheia; adequação.

Heidegger atenta para a necessidade de uma liberação do conceito construído de verdade enquanto concordância. Isto é necessário, porque sua fenomenologia está pensando o âmbito instaurador de toda e qualquer mostração dos entes. Então, liberar a noção da verdade tradicional, aqui, é caracterizá-la como uma verdade derivada/decaída e que, por ser decaída reside num âmbito posterior àquele do desvelamento (verdade pensada enquanto alétheia). A verdade do âmbito decaído seria aquela que diz respeito apenas ao domínio dos entes já manifestos, isto é, uma verdade que transita apenas no âmbito ôntico. É com o resgate do termo alétheia, que o fenomenólogo busca pensar a possibilidade interna desta verdade ôntica, desta que caracterizamos como uma verdade decaída. Heidegger ao se apropriar daquilo que os gregos intuíram de modo pré-fenomenológico, pensa de modo mais aprofundado o que contemplaram com a noção de alétheia. O resgate do termo e uma transposição para o seu significado básico é necessário, tendo em vista que a tradução usual do termo [alétheia] por verdade, fez com que seu significado primário enquanto desvelamento se perdesse. Nas palavras do fenomenólogo:

Se traduzimos a palavra alétheia por ‘desvelamento’, em lugar de ‘verdade’, esta tradução não é somente mais ‘literal’, mas ela compreende a indicação de repensar mais originalmente a noção corrente de verdade como conformidade da enunciação, no sentido, ainda incompreendido, do caráter de ser desvelado e do desvelamento do ente. O entregar-se ao caráter de ser desvelado não quer dizer

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

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perder-se nele, mas se desdobra num recuo diante do ente a fim de que este se manifeste naquilo que é e como é de tal maneira que a adequação apresentativa dele receba a medida (HEIDEGGER, 1979, p.133).

Antes de analisarmos aquilo que Heidegger tem em vista com o

termo alétheia, devemos compreender previamente o modo como esta noção apareceu nos antigos. Para tanto, temos que alcançar o que é compreendido de maneira geral por alétheia (verdade enquanto desvelamento) e homoiósis1 (verdade como adequação). Estas são noções presentes no pensamento dos primeiros filósofos e dizem respeito ao modo como eles compreenderam a verdade. Começaremos pela primeira acompanhando a interpretação heideggeriana. O termo grego alétheia é composto por um alfa privativo2. Segundo Dubois “é realmente uma palavra privativa, o que é “desvelado” é arrancado ao velamento. A tradição apenas recobriu esse fenômeno, e o próprio pensamento grego não pensou jamais, embora nela se movendo, essa essência privativa” (DUBOIS, 2004, p.48). Heidegger nos diz que os gregos antigos não se deram conta de que na essência da verdade reside algo negativo. Nas palavras do fenomenólogo, “[...] a Antiguidade, apesar da palavra alétheia, não viu expressamente que na essência da verdade reside algo negativo e assim os antigos não puderam, por isso, ser inquietados por essa negatividade” (HEIDEGGER, 2009, p. 83). A negatividade diz respeito àquilo que se mantém oculto no aparecimento do ente. Por ser um ente lançado no mundo, o homem perde de vista seu caráter originário, na medida em que este “ser-lançado” sempre o posiciona além do acontecimento inaugural. Nesta medida, “haverá sempre o jogo do velamento e desvelamento. Haverá sempre algo que se mantém oculto na manifestação do ente. O esquecimento disso faz parte da vida humana; há sempre alguma névoa nos rodeando” (SEIBT, 2013, p. 43). Como Heidegger nos assinala, na essência da verdade reside uma luta entre o velamento e desvelamento. Além disso, devemos ressaltar que a experiência da alétheia, pensada de modo originário, não aponta para mais

1 Em Aristóteles é considerado verdadeiro aquilo que quando a alma representa está de acordo com o representado. É nessa medida que a homoiósis - adequação entre as partes - e consequentemente a verdade se dá. 2 Letra grega que, usada ante um radical, forma o antônimo da palavra a qual serve de prefixo. Indica a negatividade do significado das palavras gregas de maneira análoga ao prefixo “a” nos seguintes exemplos de palavras portuguesas: anormal, amoral.

A liberação da noção e verdade... 67

uma ocorrência entre as demais, as quais ora se mostram, ora não. De modo diferente, o acontecimento da alétheia é a realização inaugural da constituição humana. Isto é, pensar em alétheia é pensar em algo primordial no acontecimento do mundo.

Quando dizemos que o acontecimento da alétheia não pode ser mais um entre os outros é porque a alétheia enquanto desvelamento aponta para aquilo que instaura o acontecimento do mundo. Isto é, pensada de modo originário, ela diz respeito ao próprio âmbito de aparecimento de todos os entes. Isso significa que tudo aquilo que se “mostra” está em relação com o desvelamento. Em outras palavras, tudo aquilo que pode ser dito como verdadeiro está limitado ao que já apareceu, àquilo que já se mostrou num contexto de aparecimento. Isso significa que tudo aquilo que se mostra, se mostra desde o desvelamento. Só podemos falar de um ente, numa enunciação, porque há o desvelamento dando âmbito para tal mostração. Como já dissemos, o modo usual de se traduzir a palavra alétheia por verdade, encobre tal acontecimento como possibilidade da própria verdade dos entes. Em seu livro intitulado Parmênides, Heidegger nos diz: “O que os gregos nomeiam com a palavra alétheia “traduzimos” usualmente com a palavra ‘verdade’. Se, no entanto, traduzirmos a palavra grega “literalmente”, então ela diz, propriamente, ‘desencobrimento’ (HEIDEGGER, 2008, p. 27). Como já assinalamos, aquilo que temos a pensar com o termo alétheia, de modo adequado, ainda não foi experimentado:

Para que possamos estar numa posição de nos transpormos para dentro do âmbito da palavra grega alétheia e, assim, dizer essa palavra no rigor do pensar, necessitamos despertar e seguir a indicação que a palavra “descobrimento” [Unverborgenheit], inicialmente escolhida para a tradução, nos dá. (HEIDEGGER, 2008, p. 29 – grifo do autor).

Para que seja possível uma transposição para o âmbito próprio de

tal palavra grega, isto é, num movimento de rigor do pensar, faz-se necessário um despertar acerca daquilo que esta tradução primária (desencobrimento) nos dá. Heidegger nos diz que esta indicação mostra a direção da transposição:

Por um lado, a palavra ‘des-encobrimento’ nos dirige para algo como ‘encobrimento’. O que, antes de tudo, é encoberto com respeito ao ‘desencobrimento’, quem encobre, como o encobrimento acontece,

68 O ensino e a filosofia da ciência

quando, onde e para quem é encobrimento, tudo isso permanece indeterminado. (HEIDEGGER, 2008, p. 29)

Ou seja, não somente na atualidade tais questões não foram

colocadas, mas também, entre os próprios gregos isso permanece inquestionado.

A proposta de Heidegger busca, através de uma leitura originária da alétheia, encontrar as condições de possibilidade da adequação. O modo como a verdade tradicional foi pensada implica na ligação entre dois estados de coisas de naturezas distintas. Numa adequação temos de um lado o sujeito (aquele que julga) e o objeto (o julgado). Heidegger quer através da noção da alétheia elucidar como essa relação se funda, isto é, questionar o caráter da relação entre duas coisas de naturezas distintas (tal como a tradição contempla). O fenomenólogo atenta para este fato, porque este é precisamente o ponto que a tradição deixa de lado na medida em que pensa a verdade sempre como a ligação e não como aquilo que é possibilidade de tal (no caso o desvelamento).

Acompanhando o pensamento dos primeiros filósofos, Heidegger compreendeu alétheia como desvelamento3. Todavia, em grande parte da história da filosofia o termo não foi tratado em seu sentido originário (que diz respeito ao ser dos entes). Isso se deve ao fato de que a verdade também foi compreendida como homoiósis, termo que aponta a adequação necessária entre as partes para que algo verdadeiro tenha lugar. A verdade pensada enquanto homoiósis expressa o verdadeiro quando há uma relação de concordância entre algo e outro algo. É nesse sentido que a verdade como experiência do desvelamento se perde. Isto porque não está mais em questão o âmbito de aparecimento dos entes, mas tão somente a posterior/decaída relação dos entes manifestos no mundo. A partir desta interpretação decaída de verdade, o verdadeiro passa a ser limitado ao já aparecido, manifesto no mundo. Isto é, àquilo que já se mostrou numa determinada “relação”. A partir destas afirmações, podemos perceber que, necessariamente, o acontecimento da alétheia é possibilidade da homoiósis, pois, temos de um lado a possibilidade do aparecimento dos entes (o desvelamento), e do outro a

3 Segundo Volpi, “nesse período de confronto de Heidegger com Aristóteles é prevalentemente caracterizado pelo esforço de se apropriar positivamente das determinações fundamentais da ontologia aristotélica e em particular da sua compreensão do fenômeno de verdade, para utilizá-las na análise dos momentos estruturais do ser-aí” (VOLPI, 2013, p. 70).

A liberação da noção e verdade... 69

relação que sempre é posterior/decaída dos entes no mundo (adequação).

Segundo Heidegger, este modo de pensar a verdade como uma espécie de “correspondência” parece ter se consolidado em nossa compreensão mais imediata do que seja a verdade. Num resgate à experiência dos primeiros filósofos, ele pensa de modo mais aprofundado, e diz que a verdade se encontra num nexo originário com o ser. É numa oposição a tal tendência histórica que o fenomenólogo pensa o âmbito de aparecimento dos entes, ou melhor dizendo, pensa a dinâmica de aparecimento de tais. É nessa medida que a verdade ocupa lugar na problemática da ontologia fundamental heideggeriana. Para explicitarmos a verdade enquanto “correspondência” e seu caráter decaído, nos apoiemos na leitura que Heidegger faz da filosofia de Aristóteles. É no § 444 de Ser e tempo (Ser-aí, abertura e verdade) que Heidegger vai discutir a herança aristotélica acerca do conceito de verdade. Acerca da verdade proposicional, o fenomenólogo nos diz: “A verdade é naturalmente a verdade do juízo, verdade do enunciado. Juízos e enunciados expressam-se linguisticamente em proposições. Verdade é verdade proposicional” (HEIDEGGER, 2009, p. 48). Isso significa que uma verdade pensada proposicionalmente é uma verdade acerca dos entes, ela se dá mediante a presentificação do ente no “mundo”. Ela opera ao modo do logos apophantikos; tal logos deixa ver o ente a partir do seu já estar “descoberto”. Assim:

Temos que mostrar duas coisas: em primeiro lugar, que a verdade tomada tradicionalmente como propriedade do juízo, como adaequatio intellectus et rei [adequação do intelecto com à coisa], está fundada em algo diverso, ou seja, que o que se toma como verdade no juízo é uma determinação autêntica, mas a possibilidade interna da verdade reside em algo mais originário; e, em segundo lugar, devemos caracterizar mais precisamente esse algo originário. (HEIDEGGER, 2009, p. 48)

Heidegger aponta esta verdade tradicional como aquela que

transita apenas no âmbito ôntico, isto é, que diz respeito apenas aos

4 Sobre o §44, Ernildo Stein nos diz que “Heidegger mostra neste parágrafo o que ele chama de insuficiência do conceito tradicional de verdade desde os gregos, ou, ao menos, o encobrimento que houve do conceito de verdade dos gregos em diante. Em segundo lugar, o modo como se pensa a fundamentação da verdade desde os gregos. No item b ele desenvolve o que ele chama ‘o fenômeno originário da verdade e o caráter derivado do conceito tradicional de verdade” (STEIN, 1993, p.21).

70 O ensino e a filosofia da ciência

entes. Afirmar que a verdade tradicional é uma verdade ôntica, implica dizer que, por se tratar apenas dos entes, ela se encontra no âmbito decaído, ao qual escapa a verdade do ser. Portanto, devemos questionar o que funda essa verdade dos entes, isto é, o que torna possível a presentificação dos entes no mundo, e consequentemente o juízo acerca destes. A possibilidade interna da verdade necessariamente escapa a qualquer presentificação, porque diz respeito à sua possibilidade. É nessa medida que a análise do modo tradicional de se conceber o verdadeiro é parte necessária do “caminho” para a elucidação da possibilidade “interna” da verdade ôntica. Isto porque a pressuposição da verdade originária se justifica na medida em que caracterizarmos a verdade tradicional enquanto uma verdade derivada desta originária. Franco Volpi nos esclarece melhor este movimento através da seguinte passagem:

Todos esses confrontos, especialmente aquele com Aristóteles, ocorrem no horizonte da tentativa heideggeriana de pôr em causa os pressupostos da ontologia tradicional e de preparar o terreno para uma refundação verdadeiramente radical desta tradição. Esse pôr em causa e essa refundação são operados, por um lado, pondo a nu a redutividade da compreensão metafísica do ser como presença (ligada a uma compreensão do tempo que privilegia a dimensão do presente), por outro lado individuando no modo do ser específico da vida humana, ou seja, do ser-aí, o fundamento estrutural para a reproposição radical do problema do ser. (VOLPI, 2013, p. 61)

Devemos ressaltar que o confronto de Heidegger com a tradição

não tem a intenção de aniquilá-la, mas sim, de apontar a ingenuidade fenomenológica5 da mesma, bem como suas intuições pré-fenomenológicas. É esta ingenuidade que justifica a tarefa heideggerina de uma ontologia fundamental, isto é, o resgate da questão do sentido do ser. Em outras palavras, ao olhar para a ingenuidade da tradição,

5 Entendemos por ingenuidade fenomenológica o modo de pensar o ser dos entes que não tem em vista a diferença fundamental entre o ente que nós mesmos somos (ser-aí) e os demais entes (intramundamos). Esta diferença fundamental Heidegger denomina diferença ontológica. O fenomenólogo propõe uma ontologia fundamental na medida em que se depara com essa ingenuidade da tradição metafísica e busca recolocar a questão do ser de modo adequado, isto é, na medida em que propõe levar a cabo essa diferença. A ontologia fundamental é o âmbito questionador que viabiliza a adequada colocação da pergunta pelo sentido do ser.

A liberação da noção e verdade... 71

Heidegger reconhece a necessidade de colocar novamente a questão do sentido do ser, mas, dessa vez, de modo adequado. O modo adequado diz respeito àquilo que escapou à tradição, a saber, a diferença fundamental entre o ente que nós mesmos somos e os demais entes no mundo. Tendo isto em vista Stein nos diz que

[...] a partir da alétheia se revela o verdadeiro alcance do método fenomenológico, assim como o filósofo o compreende. A fenomenologia, no sentido heideggeriano, é o caminho que sustenta a finitude da compreensão do ser e a compreensão da finitude do ser-aí. (STEIN, 2001, p. 24)

REFERÊNCIAS: DUBOIS, Christian. Heidegger: Introdução a uma leitura. Trad. Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Tradução e notas de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

_______. Parmênides. Tradução de Sérgio Mário Wrublevski. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

_______. Introdução à filosofia. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

_______. Ser e tempo. Tradução revisada e apresentação de Marcia Sá Cavalcante Schuback; posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

STEIN, Ernildo. Seminário sobre a verdade – lições preliminares sobre o parágrafo 44 de Sein und Zeit. Petrópolis: Vozes, 1993.

_______. Compreensão e finitude – estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Editora Unijuí, 2001.

SEIBT, Cezar Luis. Conhecimento, diferença ontológica e circularidade hermenêutica. Artigo publicado na Ekstasis: revista de fenomenologia e hermenêutica. V1 N2, p.41-53 2013. Último acesso em: 20/08/2017.

72 O ensino e a filosofia da ciência

Link para acesso: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/Ekstasis/article/viewFile/4367/3819.

VOLPI, Franco. Heidegger e Aristóteles. Tradução de José Trindade dos Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

VI

A METAFÍSICA DOS COSTUMES COMO BASE PARA UMA CONSTITUICÃO POLÍTICA DAS GENTES – “PAZ

PERPÉTUA”

Cleberson Odair Leonhardt* PALAVRAS-CHAVE: Metafísica dos Costumes; Paz Pérpétua; Moralidade Universal.

Muito têm-se indagado sobre as intenções kantianas nos escritos

que ele desenvolveu; de qual a sequência ideal de sua leitura e de como seria a melhor interpretação de suas intenções nas obras. O método que adotamos neste texto e que talvez tendenciosamente se pudesse chamar de uma “chave de leitura” pretende abordar algumas possíveis pretensões de Kant relacionadas ao dizer político. A preocupação kantiana ao expor uma metafisica dos costumes parece-nos, desse modo, e sobre esta “lente” de leitura, clara e evidente: Fundamentar a moral na metafísica é fazer da moralidade (e seus reflexos diretos na política) uma “ciência”1 racional que não pode simplesmente ser desviada, descontruída ou readequada pela vontade individual, pelo discurso retórico, pelos costumes, pelas relações políticas, etc.

Além disso, tal intenção também é evidenciada por Kant já no prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (2007), quando ele diz que tem de haver uma filosofia moral pura, uma pura ideia da lei moral e do dever; uma lei que tem valor em si mesma, na moral que expressa, uma necessidade absoluta que gere uma obrigação. Para isso, cita como exemplo a máxima - não mentir - que não só é expressão de homens que convivem entre si, mas é válida para qualquer ser racional que existir. Tal

* Professor Mestre da UNIOESTE; e-mail: [email protected] 1 Da mesma forma que Kant procura discutir uma fundamentação da metafísica como ciência com a pergunta que perpassa suas duas obras Crítica da razão Pura e Prolegômenos a toda metafísica Futura, se são possíveis juízos sintéticos a priori; também parece haver na fundamentação da metafísica dos costumes uma indagação referente a possibilidade de juízos morais “a priori” ou pelo menos universais; tal interpretação pode ser evidenciada na sua mais famosa máxima: “[...] devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (KANT, 2007, p.33).

74 O ensino e a filosofia da ciência

lei moral não está na natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo, mas é expressa pela racionalidade pura. Tal expressão de pensamento é possível acompanhar:

Não tendo propriamente em vista por agora senão a filosofia moral, restrinjo a questão posta ao ponto seguinte: — Não é verdade que é da mais extrema necessidade elaborar um dia uma pura Filosofia Moral que seja completamente depurada de tudo o que possa ser // somente empírico e pertença a Antropologia? Que tenha de haver uma tal filosofia, ressalta com evidência da ideia comum do dever e das leis morais. Toda a gente tem de confessar que uma lei que tenha de valer moralmente, isto é como fundamento duma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta; que o mandamento: «não deves mentir», não é válido somente para os homens e que outros seres racionais se não teriam que importar com ele, e assim todas as restantes leis propriamente morais; que, por con-seguinte, o princípio da obrigação não se há-de buscar aqui na natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo em que o homem está posto, mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura, e que qualquer outro preceito baseado em princípios da simples experiência, e mesmo um preceito em certa medida universal, se ele se apoiar em princípios empíricos, num mínimo que seja, talvez apenas por um só móbil, poderá chamar-se na verdade uma regra prática, mas nunca uma lei moral.(KANT, 2007, pp.15-16)

Esta depuração kantiana de uma metafísica dos costumes que

poderá se apresentar como constituição das relações entre Estados é expressa por ele como um fio condutor, como norma suprema para um julgamento exato, de modo a guiar qualquer Estado com seus cidadãos; bem como nas relações de uns Estados com outros. Podemos acompanhar no mesmo prefácio a busca por esse fio condutor da moralidade racional e universal que Kant fará na Fundamentação da Metafísica dos Costumes:

Uma Metafísica dos Costumes, é, pois, indispensavelmente necessária, não só por motivos de ordem especulativa para investigar a fonte dos princípios práticos que residem // a priori na nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam sujeitos a toda a sorte de perversão enquanto lhes faltar aquele fio condutor e norma suprema do seu exato julgamento. Pois que aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme a lei moral, mas tem também que

A metafísica dos costumes... 75

cumprir-se por amor dessa mesma lei; caso contrário, aquela conformidade será apenas muito contingente e incerta, porque o princípio imoral produzirá na verdade de vez em quando ações conformes à lei moral, mas mais vezes ainda ações contrárias a essa lei. Ora a lei moral, na sua pureza e autenticidade (e é exatamente isto que mais importa na prática), não se deve buscar em nenhuma outra parte senão numa filosofia pura, e esta (Metafísica) tem que vir portanto em primeiro lugar, e sem ela não pode haver em parte alguma uma Filosofia moral. (KANT, 2007, pp. 16-17)

Mesmo que esta racionalidade seja pura e se expresse num fio

condutor racional e universal, ela está intrinsicamente ligada à natureza dos indivíduos quando de sua aplicação prática. E se o intento neste artigo é investigar a possibilidade de os seres humanos buscarem uma paz perpétua baseada na moral universal e na prática do Direito dos Estados, não podemos deixar de abordar desde o início a questão da natureza humana2.

Com o advento do pensamento kantiano no período histórico concernente e posterior a sua vida começou a ocorrer uma profunda modificação no entendimento e na noção de natureza, tanto pela conjuntura das relações políticas das revoluções quanto pelos desenvolvimentos filosóficos.

Os reflexos dessas mudanças inevitavelmente atingem a noção da moralidade, do Direito e do Estado. Em Aristóteles o dever moral estava ligado a desenvolver seus talentos como uma obrigação com o Cosmos, com a natureza, isto é, a virtude e o talento natural representavam a dignidade moral do indivíduo. Entretanto em Kant, este não é mais um requisito importante. Enquanto para o pensamento grego, representado em parte por Aristóteles, a moral é um altar à natureza, a maximização de tudo aquilo que a natureza nos propõe, elevando a natureza as suas últimas consequências e jamais blasfemando contra ela; para o pensamento moderno, representado de modo inicial por Kant, a natureza se traduz em desejos, pulsões e apetites que precisam ser dominados, controlados. Assim a moral passa a ser justamente a virtude e capacidade de se opor a esses apetites quando eles te levam ao indevido3. Destruiu-se, assim, o prestígio da natureza, e a investigação

2 Por exemplo, em Kant (2007) (conforme Fundamentação da Metafísica dos Costumes) a natureza nos deu a razão como governante da nossa vontade. 3 Uma ideia dessa mudança em relação à natureza podemos acompanhar no artigo de DURÃO: “A natureza estabelece que todas as espécies evoluam no sentido de desenvolver plenamente

76 O ensino e a filosofia da ciência

mais importante na natureza deixou de ser dos talentos e virtudes e passou a ser as pulsões, os desejos e a libido.

Essa ideia resumida da “natureza moral” nos expõe que há um mundo de ruptura a se enfrentar, uma ruptura marcadamente imensa que determina até nossos dias a maneira como lidamos com a natureza externa e com nossa própria natureza. Podemos dessa forma, ainda que presumidamente, chegar à conclusão que se a natureza é assim volátil, e nem sempre o indivíduo terá a capacidade de desenvolver isoladamente toda a moral necessária para domar essa natureza, é imprescindível que um Estado promulgue essa possibilidade de moralidade. Ou, melhor ainda, como Kant defende na Fundamentação da Metafísica dos Costumes que a moral seja uma metafísica em forma de lei universal, válida para todos os Estados dos humanos ou até mesmo além dos seres humanos4, por ser um princípio categórico universal e racional.

Não obstante, é ainda mais importante o estudo e a constituição de um Estado de Direito (intento a que Kant (2003) se detém principalmente na obra Metafísica dos Costumes). Se a vontade individual não dá conta de tão árdua tarefa de domínio da natureza, o Estado representado por uma condição jurídica (constituição) deverá unir os indivíduos que mantém essa relação recíproca sob uma vontade formulada como direito. Mas mesmo que essa união pudesse ser aperfeiçoada a ponto de manter essa natureza do ser humano satisfatoriamente controlada (vale lembrar que aqui nos interessa a

suas disposições naturais, mas, ao contrário dos animais, entre os homens esse destino não pode ser alcançado pelo indivíduo ao longo de sua vida, mas somente pela espécie que, mediante o antagonismo de suas disposições naturais, se aproxima, depois de muitas gerações, do iluminismo e do aperfeiçoamento. Este antagonismo procede da dupla tendência presente na natureza humana: por um lado, tende a se individualizar, pois cada um quer submeter tudo a sua vontade e se torna propenso a resistir aos demais, bem como esperar a resistência deles; mas, por outro lado, tende a se socializar, já que somente junto com outros homens pode desenvolver verdadeiramente suas disposições naturais. Portanto, Kant adota uma posição intermediária frente ao liberalismo e ao republicanismo com relação ao problema da natureza humana, pois qualifica o homem, simultaneamente, como um animal individual e social; enquanto o primeiro defende o "individualismo possessivo", o segundo recorda a concepção aristotélica de que o homem é um animal político.” 4 Abarcamos tal ideia pelas expressões contidas nos próprios textos, com a intenção de universalizar para ser válida a qualquer ser racional: Conforme já citado em Kant (2007, p.15) “[..] que o mandamento: «não deves mentir», não é válido somente para os homens e que outros seres racionais se não teriam que importar com ele, e assim todas as restantes leis propriamente morais”. E também em Kant (2007, p. 21): “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade”.

A metafísica dos costumes... 77

natureza bélica e de conflito de um indivíduo com o outro, que pressupõe que então a natureza não está totalmente controlada), ainda assim, o Estado, formado legitimamente quase como um indivíduo fundamentado no direito, poderá atingir uma natureza beligerante que não atingirá a paz que os indivíduos buscam. De modo que, buscando esta fundamentação kantiana, o objetivo almejado é uma conceituação plausível de um comprimento pleno do direito público e da moralidade universal como sustentação de uma possibilidade à paz perpétua. Tal tarefa não tem a pretensa proposição de resolver a questão, mas como princípio próprio de estudo filosófico levantar a questão e as possíveis proposições inerentes a tal intento.

A necessidade da promulgação de leis para criar uma condição jurídica é uma justificação em si. E, o conjunto dessas leis é o direito público. Essa constatação já nos é apresentada no início da segunda parte da obra Metafísica dos Costumes de Kant (2003), que trata do direito público. De modo que, o direito público tende a se caracterizar em um sistema de leis para um povo5 (nas palavras de Kant pode definir-se como uma multidão de seres humanos ou multidão de povos que se afetam entre si). Essa afetação sobrepõe uma vontade que os una e garanta a condição jurídica, denominada por Kant de Constituição, onde todos podem se beneficiar dessa formulação do direito. Desse modo, os indivíduos enquanto se relacionam reciprocamente no seio de um povo constroem a condição civil e por fim no seu conjunto e sob a condição jurídica, o Estado. Essa forma de união por meio do interesse comum, numa condição jurídica – Estado, é a coisa pública. Kant também admite que é possível supor e observar que essa condição6 (associação de membros) é herdada, então faz sentido chamá-la também de Nação. É a

5 É apropriadamente útil observar que tal ideia terá uma ligação com a prospecção de uma paz perpetua, conforme, de alguma forma, é possível se configurar tal condição jurídica na conjunção de “multidão de povos” sob um direito público. “O direito público é, portanto, um sistema de leis para um povo, isto é, uma multidão de seres humanos, ou para uma multidão de povos que, porque se afetam entre si, precisam de uma condição jurídica sob uma vontade que os una, uma constituição (constitutio), de sorte que possam fruir o que é formulado como direito” (KANT, 2003, p. 153). 6 Essa condição de herança jurídica é intrinsecamente necessária. Ao indivíduo que nasce em um Estado não é facultado a possibilidade de escolha de constituição de estado de direito, recebemos como herança o estado, a nação em que nascemos. Não é possível querer abdicar dessa herança (mesmo utilizando como justificativa não ter participado de sua constituição) e continuar a viver nesse Estado.

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partir desse raciocínio kantiano que podemos observar mais um elemento para a conceituação de uma paz perpétua entre os povos:

Por conseguinte, pelo conceito geral de direito público somos levados a pensar não só no direito de um estado, como também num direito das gentes (ius gentium). Visto que a superfície da terra não é ilimitada, mas circunscrita, os conceitos de direito do Estado e de direito das gentes conduzem inevitavelmente à ideia do direito de todas as gentes (ius gentium) ou direito cosmopolita (ius cosmopoliticum) (KANT, 2003, pp.153-154).

Tal proposição nos estimula a pensar na ideia de um direito

universal ou cosmopolita, entretanto isso não parece ser algo simples como a criação de um “Grande Estado”, pelo menos não parece ser essa a intenção de Kant quando trata da paz perpétua. De modo que, precisamos buscar em Kant uma argumentação plausível que nos possibilite interpretar de onde se origina e mantêm-se a vontade dos indivíduos a unirem-se sob um direito jurídico que seja capaz de proporcionar a paz entre eles, de tal modo que se visualizarmos o estado como um “indivíduo do direito”, também seja possível cogitar a união de diversos Estados7 sob uma vontade jurídica compatível para a garantia da paz. Desse modo, não pode jamais ser a preposição de um grande estado, ou de um estado mais forte (nesse caso o estado subjugado não gozaria de paz, mas de submissão passiva). Para tal estudo precisamos averiguar em Kant a origem (entenda-se tendência natural latente) da violência entre os seres humanos.

Para Kant, não é a partir da experiência que os seres humanos podem estar seguros contra a violência recíproca. Ou seja, ainda que por experiência o ser humano perceba que o fato de cada um deter o direito de fazer o que parece certo e bom para si8 não permitirá a paz, por que

7 Vale lembrar que do mesmo modo que ocorre com os indivíduos humanos, é possível arguir que com esses indivíduos do direito (Estados, na obra Para a Paz Perpétua Kant (2006) também irá chamar de “indivíduo moral”) essa união ocorra entre aqueles em que a interação é inevitável (necessidade). Mais um argumento que pode corrobora a ideia de que tal direito para a paz não poderia ser simplesmente imposto por um estado maior. 8 Essa forma de agir do indivíduo segundo seus próprios critérios, por mais que os indivíduos tenham a boa vontade em agir da melhor forma possível, indubitavelmente, na maioria das vezes, encontrará um opositor que pensará que o agir correto é justamente a ação contrária, de modo que inevitavelmente, em tal condição, ausente de coação legal, o desfecho levará a violência como resolução para este conflito.

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impreterivelmente haverá algum conflito de interesses e que por meio dessa experiência é entendido que, mesmo que todos estivessem predispostos a acatar uma lei comum, ainda assim não estarão seguros contra a violência recíproca, porque não haveria poder capaz de garantir essa conciliação. Somente quando o ser humano estabelece um princípio (moral universal) capaz de abandonar o estado de natureza, unindo-se com todos os outros, submetendo-se a uma coação legal externa pública, ingressa na condição civil que possibilita o controle da violência individual e a segurança pública (paz)9:

[...] por melhor predispostos e acatadores da lei que pudessem ser os homens, ainda assim está assentado a priori na ideia racional de uma condição (aquela que não é jurídica) que antes de uma condição legal pública ser estabelecida, indivíduos humanos, povos e Estado jamais podem estar seguros contra a violência recíproca, uma vez que cada um detém seu próprio direito de fazer o que parece certo e bom para si e não depender da opinião alheia a respeito disso. Assim, a menos que queira renunciar a quaisquer conceitos de direito, a primeira coisa que tem a resolver é estabelecer o princípio segundo o qual é preciso abandonar o estado de natureza, no qual cada um segue seu próprio critério, unir-se com todos os outros (com os quais a interação é inevitável), submeter-se a uma coação legal externa pública e, assim, ingressar numa condição na qual o que tem que ser reconhecido como a ela pertinente é determinado pela lei e lhe é atribuído pelo poder adequado (não o que lhe é próprio, mas sim um poder externo); em síntese: deve-se, acima de tudo o mais, ingressar numa condição civil. (KANT, 2003, p. 154)

Essa falta de um “poder” com a potência de resolver o conflito

pode ser observada na sequência da obra Metafísica dos Costumes de Kant quando ele acrescenta que o estado de natureza não é simplesmente um estado de injustiça, nem tende a ser por inerência de trato de indivíduos unicamente em grau de força que cada um tem. Não seria injusto, e sim destituído de justiça, uma vez que, quando os direitos estão em disputa,

9 “O estado de paz entre homens que vivem juntos não é um Estado Natural (status naturalis), que é mais um estado de guerra, ou seja, um estado no qual ainda que as hostilidades não estejam declaradas, nota-se uma constante ameaça. O estado de paz deve, portanto, ser instaurado, pois a omissão de hostilidade não é ainda garantia de paz e, se um vizinho não dá segurança ao outro (o que somente pode acontecer em um estado legal), cada um pode considerar como inimigo o que lhe exigiu esta segurança” (KANT, 2006, p. 65).

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não há juiz capaz de dar a sentença que tenha a força jurídica necessária (KANT, 2003).

É somente por meio da sanção de uma lei pública, determinada pela justiça pública e assegurada por uma autoridade, que torna efetivo o direito. Os indivíduos unidos em uma vontade comum, outorgam sua vontade a um poder superior, e o representante dessa força jurídica, investida da autoridade prometida, distribui de maneira justa a justiça e o direito. Tal situação se concretiza de tal maneira que não cabe ao indivíduo ou ao povo questionar essa autoridade10 a que se deve obediência.

Tal afirmativa possibilita a Kant afirmar que “Um Estado (civitas) é a união de uma multidão de seres humanos submetida a leis de direito” (KANT, 2003, p. 155). O que possibilitou teorizar o Estado como ideia, isto é, puro princípio de direito. Além disso, tal fato possibilita utilizar essa ideia como uma norma para qualquer associação (serve como norma para sua constituição interna). Se extrapolarmos essa conceituação kantiana para pensar-se a paz perpétua, então talvez a união de diversos estados também possa utilizar essa constituição interna. O grande problema surge ao teorizarmos uma questão como essa, pois, logo correríamos o risco de debandar na concretização de um grande estado ou de uma união de nações. Para não cairmos neste tipo de elucubrações que talvez desviem da real proposta filosófica de Kant, podemos adentrar no discurso por ele apresentado sobre a paz perpétua.

10 Mesmo que seja no sentido já apresentado de herança daqueles indivíduos que já nascem sob a autoridade de direito, não lhes cabe questionar. Não cabe nem ao indivíduo, nem mesmo ao povo questionar essa autoridade, conforme podemos acompanhar: “Não cabe a um povo perscrutar, tendo qualquer propósito prático em vista, sobre a origem da autoridade suprema à qual está submetido, isto é, o súdito não deve raciocinar, em termos práticos, a respeito da origem dessa autoridade, como um direito ainda passível de ser questionado (iuscontroversum) no tocante à obediência que a ele deve, isto porque posto que um povo deve ser considerado como já unido sob uma vontade legislativa geral, a fim de julgar mediante força jurídica acerca da suprema autoridade (summumimperium) do Estado, não pode nem deve julgar diferentemente da forma que o presente chefe do Estado (summusimperans) deseja que o faça. [...] a um povo já submetido à lei civil esses raciocínios sutis são completamente despropositados e, ademais, ameaçam perigosamente o Estado. Se um súdito, após ter ponderado sobre a origem última da autoridade então soberana, quisesse se opor a esta autoridade, seria punido, exterminado ou expulso (como um fora da lei, exlex) de acordo com as leis dessa autoridade, ou seja com todos os direitos. [...] Estas palavras não constituem uma asserção sobre o fundamento histórico da constituição civil; ao contrário, estabelecem uma ideia na qualidade de um princípio de razão prática: o princípio segundo o qual o poder legislativo presentemente existente deve ser obedecido, seja qual for a sua origem” (KANT, 2003, p. 161).

A metafísica dos costumes... 81

Na primeira parte de seu tratado Para a Paz Perpétua, Kant (2006) logo expõe que não é possível considerar algum tratado de paz que tenha alguma reserva sobre qualquer causa de guerra futura, porque neste caso seria apenas uma cessação temporária da violência, uma prorrogação das hostilidades, um acordo temporário de mútuo benefício. Da mesma forma, um estado independente não pode ser “comprado” (doado, herdado, etc.) por outro. Ou seja, o Estado perder a sua independência, implica em perder essa característica de “indivíduo moral” a que já nos referimos.

Em seguida Kant (2006) apresenta como critérios mais dois pressupostos que podem gerar a sensação de insegurança e que impossibilita a paz perpétua: um deles é a necessária desmantelação gradativa dos exércitos permanentes, uma vez que estes são ameaças de violência em potencial. A mesma situação ocorre no caso de uso de crédito de um estado para os demais, o credor pode tornar-se rico o suficiente para juntar um tesouro para a guerra e, novamente provoca a insegurança.

Em relação aos pressupostos, Kant salienta que um estado não deve interferir, com uso de força, no governo de outro, exceto em casos onde o Estado está dividido devido a disputas internas e cada uma delas se põe como um Estado particular e com pretensões de ser o todo. Assim, o fato de um terceiro Estado prestar ajuda a uma das partes não seria uma intromissão na constituição de outro Estado, porque está caracterizada uma anarquia. No entanto, enquanto esta luta interna não se dê por terminada, a interferência de potências estrangeiras seria uma violação dos direitos daquele povo, mesmo que haja um combate de uma enfermidade interna; tal ato escandaloso acabaria por colocar em perigo a autonomia de todos os Estados (KANT, 2006).

Por fim, o último requisito (se assim pudermos chamar) apresentado por Kant refere-se ao comportamento dos Estados quando houver alguma guerra. Os Estados devem travar uma guerra honrosa (se assim também pudermos denominá-la), as hostilidades não podem impedir a confiança mútua em uma paz futura. Kant cita exemplos de atitudes desonrosas como assassinos, envenenadores, quebra de acordos, traição, etc. Se nos permitirmos uma comparação por parâmetros de indivíduos que compõem um Estado de direito, o que Kant nos apresenta é justamente uma base jurídica, mais ainda moral, para a união

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dos Estados11 num objetivo comum: a Paz Perpétua. Portanto, o que podemos observar diante deste problema que já elencamos no início deste artigo, é que a solidificação de uma paz perpétua entre os povos deverá ser fruto de condições de paz (moral universal) segundo Kant e não da criação de um Estado maior12. Essa observação é claramente detectada no segundo artigo definitivo para a Paz Perpétua quando Kant expõe que:

Os povos podem considerar-se, enquanto Estados, como indivíduos que, em seu estado natural (ou seja, independentes de leis externas) se prejudicam uns aos outros por sua mera coexistência e cada um, para zelar por sua segurança, pode e deve exigir do outro que entre com ele em uma Constituição semelhante à Constituição civil, na que se possa garantir a cada um o seu Direito. Isto seria uma federação de povo que, contudo, não deveria ser um Estado de povos. Haveria nisto, não obstante, uma contradição porque todo Estado implica a relação de um superior (legislador) com um inferior (o que obedece, ou seja, o povo) e muitos povos em um Estado se converteriam em um só povo, o que contradiz a hipótese (consideraremos aqui o direito dos povos em suas relações mútuas formando Estados diferentes, que não devem fundir-se em um só). (KANT, 2006, p. 73)

11 Poderíamos nesta situação concluir que do mesmo modo que ocorre com os indivíduos essa união é inevitável, entretanto no artigo Para a Paz Perpétua de Kant ele refuta esse argumento ao expor que com o Estado não é assim que ocorre, pois, cada Estado é independente por essência, julga de acordo com o que o direito estabelecido determinado como correto. “[...] cada Estado situa sua soberania (pois soberania popular é uma expressão absurda) precisamente no fato de não estar submetido, em absoluto, a nenhuma força legal externa [...]” (KANT, 2006, p. 74). E ainda: “Vemos que a maneira que têm os Estados de procurar seu Direito podeser somente a guerra - nunca um juízo ante um tribunal -, mas o direito,contudo, não pode ser decidido mediante a guerra nem mediante a vitória,seu resultado favorável: vemos, desta maneira, que um tratado de paz podepôr fim a uma guerra determinada, mas não à situação de guerra (possibilidadede encontrar um novo pretexto para a guerra, à que tampouco se podeacusar de injusta, porque nesta situação cada um é juiz dos seus própriosassuntos). Percebemos, além disso, que não tem vigência para os Estados,segundo o Direito de Gentes, o que certamente vale para um homem noestado natural, segundo o Direito Natural: ‘dever sair desta situação’ (porquepossuem já, como Estados, uma constituição interna jurídica e estão,portanto, liberados da coação de outros para que se submetam a uma Constituiçãolegal ampliada em conformidade com seus conceitos jurídicos)” (KANT, 2006, p. 75). 12 Ainda que não for um Estado com um território ou com um exército, mesmo que for apenas um ‘Estado de Direito maior’ ainda assim haveria um superior e um submisso.

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Desse modo, uma possível solução apresentada por Kant (2006) que não afrontasse esses pressupostos seria a constituição de uma federação13 dos Estados que garantisse a liberdade de um Estado para si mesmo e, simultaneamente reconhecesse a dos outros Estados federados, sem que devam submeter-se a leis públicas ou coação externa. Essa ideia se torna possível à medida que esta federação gradualmente vai estendendo-se a todos os Estados, conduzindo assim a paz perpétua. E ainda assim, sobre se é plausível e viável uma paz perpétua entre os seres humanos, podemos resgatar a própria definição de moralidade universal expressa por Kant já no início deste texto; se ela é válida até mesmo para além do ser humano porque está pautada na própria razão, ou seja, é válida para qualquer ser racional; o próprio esclarecimento (que Kant trata em outras obras não abordadas aqui) e o uso da razão levariam os seres humanos a adotar uma moral racional e universal. Essa razão favoreceria a constituição de princípios voltados a essa paz perpétua, visto que os princípios/objetivos desta paz são diretamente derivados propriamente de uma moral racional, universal e esclarecida. REFERÊNCIAS: KANT, Immanuel. Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática. In: A pazperpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995.

13 Sobre a constituição e disseminação da federação:“E, não obstante, a razão, desde o trono do máximo poder legislativo moral, condena a guerra como uma vida jurídica e converte, em troca, em um dever imediato o estado de paz, que não pode estabelecer-se ou garantir-se, certamente, sem um pacto entre os povos: há de existir, portanto, uma federação de tipo especial à que se possa chamar federação da paz (foeduspacificum), que se distinguiria do pacto de paz (pactumpacis), já que este buscaria acabar com uma guerra e a outra buscaria terminar com todas as guerras para sempre. Esta federação não requer nenhum poder do Estado, pois apenas quer manter e garantir a liberdade de um Estado para si mesmo e, simultaneamente, a de outros Estados federados, sem que estes devam, por este motivo (como os homens em estado natural) submeter-se a leis públicas e à sua coação. É possível representar-se a possibilidade de levar adiante esta idéia (realidade objetiva) da federação, que deve estender-se paulatinamente a todos os Estados, conduzindo, assim, à paz perpétua. Isto porque se a fortuna dispõe que de um povo forte e ilustrado se possa formar uma república (que, por sua própria natureza, deve entender a paz perpétua), esta pode constituir o centro da associação federativa para que outros Estados se unam a ela, assegurando, desta maneira, o estado de liberdade dos Estados conforme a ideia do Direito de Gentes e estendendo-se, pouco a pouco, mediante outras uniões.” (KANT, 2006, p. 75-76).

84 O ensino e a filosofia da ciência

_______. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2001.

_______. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2003.

_______. Para a Paz Perpétua. Trad. de Bárbara Kristensen. Rianxo: Instituto Galego de Estudos de Segurança Internacional e da Paz, 2006.

_______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.

_______. Crítica da razão prática. Trad. Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

DURÃO, Aylton Barbieri. A Fundamentação Kantiana do Estado de Direito. Disponível em: http://www.centrodefilosofia.com/uploads/pdfs/philosophica/24/2.pdf Acesso em: 21/03/16.

VII

O AMOR NA FILOSOFIA DE SANTO AGOSTINHO

Gustavo Rohte de Oliveira* José Francisco de Assis Dias**

PALAVRAS-CHAVE: Amor; Dileção; Caridade; Desejo; Agostinho; Filosofia Cristã.

Agostinho, um profundo buscador e amante da verdade1,

cumpriu sua busca nas paixões do mundo, na retórica, no maniqueísmo, no cristianismo leigo, no presbiterado e no episcopado. Buscou a verdade em Cícero, Platão, Plotino, Paulo e em sua perfeição em Cristo. Santo Agostinho faz, em seu comentário à Primeira Epistola de São João, a distinção dos três conceitos decorrentes do Amor, que muitas vezes são tomados como sinônimos. Moraes e Gonçalves, explicam a origem desta questão que possui cunho histórico e linguístico.

Como base sabemos que 1Jo2 foi escrita em grego, e em grego a palavra mais correta para designar o amor é ágape. Porém Santo Agostinho não leu São João no original, mas sim a versão latina – a vulgata de São Jerônimo – onde se traduz ágape ora por dilectio, ora por caritas. Agostinho por sua vez, acrescentou o termo amor. Temos em mãos, três termos, a saber: Dilectio (que “corresponde ao amor das coisas espirituais, o amor da benevolência de Deus para conosco” (MORAES; GONÇALVES, 2014, p. 3)), Caritas (“virtude teologal, o amor desinteressado e gratuito” (MORAES; GONÇALVES, 2014, p. 3)) e Amor (“usado por Agostinho para designar como antítese entre o amor ao bem e ao mal, ou também para o amor às coisas criadas” (MORAES; GONÇALVES, 2014, p. 3)).

* UNIOESTE – Toledo; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected] 1 Caberia aqui uma exposição sobre a vida de Santo Agostinho. 2 AGOSTINHO. Comentário da Primeira Epístola se São João. São Paulo: Paulinas, 1989.

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Hannah Arendt, que nos servirá de comentadora, trabalhou tais

conceitos de uma forma única em seu livro O Conceito de Amor em Santo Agostinho, que se trata nada mais nada menos de sua tese de doutorado. Santo Agostinho utiliza-se de três termos para se referir ao Amor; cada termo, portanto, com um sentido especial. Tratar-se-á cada um desses termos de uma forma um pouco mais aprofundada. Para conceituar a primeira forma, o amor, Santo Agostinho usa o termo appetitus. Apetite é “em geral, o princípio que impele um ser vivo à ação, com vistas à satisfação de uma necessidade, desejo ou à realização de um fim” (ABBAGNANO, 2007, p. 72). “Amar não é mais que desejar uma coisa por si mesma” (AGOSTINHO apud ARENDT, 1997, p. 17) é a tradução da expressão latina agostiniana fornecida por Arendt em O conceito de Amor em Santo Agostinho onde appetitus é traduzido por desejo (ARENDT, 1997, p. 17).

Para Arendt, o desejo (appetitus) é pré-determinado e se dirige ao mundo conhecido ou a objetos isolados (ARENDT, 1997). O amor desejoso pode-se manifestar semelhantemente a outro amor, porém, o desejo por si só acaba após saciar-se (Exemplo: um homem que deseja um bem, perde o desejo ao conquistá-lo). Além disso, o desejo pode se transformar em medo de perder o que se há conquistado (ARENDT, 1997). O homem deseja os objetos a fim de conquistá-los. Para Santo Agostinho, todos almejam a felicidade (AGOSTINHO, 1995, p. 433). Desse modo, percebe-se que o ser humano não tem em si, ao menos comumente, o desejo pela vida, porém tal desejo se desperta quando há uma real possibilidade de se perder a vida: “o indivíduo passa a ver a vida como objeto de desejo, enquanto o medo da morte – ou o medo de perder a vida – torna-se uma forma de expressar o amor pela vida” (CARNEIRO JR., 2007, p. 36). O medo3 não é amor, mas o mal do amor.

De forma geral, quando se ama aquilo que está ausente, o amor não é nada, senão desejo de ter o bem para si. Neste ponto, resta amar aquilo que é bom por um justo amor (caridade), caso o objeto desejado

3 Da mesma maneira, seu pensamento se desenvolve pelo mecanismo que faz os homens desejarem alguma coisa. Ao querer algo que está fora de si, o homem investe seus esforços para possuir o que seu apetite lhe indica. Conquistando-o para si, cessaria o desejo desta coisa, a não ser que a possibilidade de sua perda seja real. Assim, o amor-apetite transforma-se em medo e o medo, sendo o mal do amor, já não é o amor que motivou a conquista (CARNEIRO JR., 2007, p. 36).

O amor na filosofia... 87

seja mau, o amor é falso, ou seja, é cobiça. O amor ao bem frui a Deus, já o amor ao “mal” afasta dele (AGOSTINHO, 1995).

Charitas et cupiditas são decorrentes do appetitus, porém:

Caridade e cobiça diferenciam-se pelo objeto que visam e não pelo como do próprio visar. Descrevem desde logo a pertença a qualquer coisa e não à atitude, o habitus. O homem é aquilo que se esforça por atingir. O amor é a mediação entre o que ama e aquilo que ama; o que ama nunca está isolado daquilo que ama, isso lhe pertence. O desejo daquilo que é a ordem do mundo é mundano, pertence ao mundo. O que cobiça decidiu ele próprio, através da sua cobiça, a sua corruptibilidade, enquanto a caridade, visto que tende para a eternidade, torna-se ela própria eterna. Se é verdade que todo o homem particular vive isolado, ele tenta no entanto ultrapassar sempre este isolamento através do amor; mas também não é menos verdade que a cobiça faça dele um habitante deste mundo ou que a caridade o obrigue a viver num futuro absoluto, mundo que ele habitará. (ARENDT, 1997, p. 25)

Esta terminologia de amor como caridade, corresponde ao

segundo termo utilizado por Agostinho. Ele mesmo prega:

Com as palavras: “Quem ama o outro cumpriu a Lei”, o Apóstolo mostra o cumprimento da Lei posto no amor, ou seja, na caridade. Daí o fato de também o Senhor dizer que toda a Lei e os Profetas dependem destes dois preceitos, isto é, do amor a Deus e ao próximo (cf. Mt 28,37-40). Daí também o fato de aquele que veio cumprir a Lei ter dado o amor mediante o Espírito Santo e, assim, o que o temor não podia cumprir, a caridade o cumprisse depois. É também a razão pela qual o Apóstolo disse: “A caridade é a plenitude da Lei”, e também: “A finalidade do preceito é a caridade, que procede de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sem hipocrisia” (1Tm 1,5). (AGOSTINHO, 2009, p. 62).

E em seu Sermão inédito sobre a carta de São Tiago, afirma:

Deus não te pede muitas coisas porque, por si mesma, a caridade é o pleno cumprimento da Lei (Rm 13,10). Mas este amor é duplo: amor a Deus e amor ao próximo. […] Quando Deus te manda amar o próximo, não te diz: ama-o com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua mente; mas diz-te: ama o teu próximo como a ti mesmo. Portanto, ama a Deus com todo o teu ser, porque Ele é maior

88 O ensino e a filosofia da ciência

do que tu; ama o teu próximo como a ti mesmo, porque ele é como tu. […]

Mas, se há três objetos do nosso amor, porque há apenas dois mandamentos? Vou dizer-te: Deus não julgou necessário encarregar-te de te amares a ti próprio porque não há ninguém que não se ame a si mesmo. Mas muita gente se perde porque se ama mal. Ao mandar-te amá-Lo com todo o teu ser, Deus deu-te a regra segundo a qual deves amar. Queres amar-te? Então ama a Deus com todo o teu ser. Com efeito é nele que te encontrarás, evitando assim perderes-te em ti. […] Deste modo é-te dada a regra segundo a qual deves amar-te: ama Aquele que é maior do que tu e amar-te-ás a ti mesmo. (SANTO AGOSTINHO, 25/05/2017)4

A cobiça é o desejo ao que é do mundo, isto é, o amor às coisas

corruptíveis. Já a Caridade é o mais puro desejo, amor às coisas boas e permanentes e leva à eternidade. Porém, é visível que a natureza humana é apegada às coisas mundanas; esta “conversão do amor” (deixar o que é mundano e amar o que é eterno) se torna um ato de extrema dificuldade para as pessoas humanas (CORREA; CORREA, 2016). Santo Agostinho usa o termo latino dispersio (dispersão) para se referir àqueles que vivem segundo o mundo. Para ele, a libido (ou cobiça) é o oposto ao livre-arbítrio (ARENDT, 1997, p. 28). Logo, aqueles que amam aquilo que não é eterno se dispersam daquele que é eterno e por consequência não podem agir com liberdade, são escravos do mundo. Parece que o próprio Santo Agostinho viveu esta difícil passagem da cobiça ao amor. Quando se busca as coisas do mundo através da curiosidade, se “procura um saber inútil” (ARENDT, 1997, p. 28), pois a curiosidade busca as vãs coisas para satisfazer o desejo de tudo conhecer (AGOSTINHO, 1984). Porém, o processo para a fuga da realidade mundana está no conhecer-se a si próprio: “tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora!” (AGOSTINHO, 1984, p. 277):

Este encontrar-se a si mesmo e encontrar Deus funcionam conjuntamente. Do mesmo modo, não posso encontrar-me a mim mesmo sem a ajuda de Deus. Mas a partir do momento em que

4 Este sermão não foi encontrado em um livro, mas disponível no website http://evangelhoquotidiano.org/main.php?language=PT&module=commentary&localdate=2014102)

O amor na filosofia... 89

começo a procurar-me já não pertenço ao mundo [...] mas a Deus. (ARENDT, 1997, p. 29)

Ligai-vos o mais possível ao amor de Deus para que, do mesmo modo que Deus é eterno, também vós permanecereis eternos, pois tal é o objeto de amor e tal é quem ama. (AGOSTINHO apud ARENDT, 1997, p. 29)

O amor é o laço entre o homem e aquilo que ele próprio ama, é através do amor que o homem encontra o fim de sua servidão à concupiscência, ou seja, a caridade faz o homem viver e contemplar o que é eterno. (CORREA; CORREA, 2016)

Quando o homem se procura a si mesmo, descobre-se mortal, efêmero e mutável, mas quando encontra a Deus, o Summum Bonum, aquele que só o mais puro amor pode encontrar, encontra justamente aquilo que ele próprio não é: Eterno. (ARENDT, 1997, p. 30)

Ninguém o alcança (Deus) sem se ultrapassar a si mesmo (AGOSTINHO apud ARENDT, 1997, p. 32);

Na caridade se frui: “Fruir significa afeiçoar-se a uma coisa por amor a ela mesma”. (BOEHNER; GILSON, 1970, p. 193)

Assim, no amor ao bem, adapta-se pelo amor ao amor, ou mesmo, no bem pelo bem, pois, “a caridade só deseja a fruição”5. (AGOSTINHO apud ARENDT, 1997, p. 38)

Segundo Cunha, os termos charitas e dilectio são utilizados por Santo Agostinho, na obra De diversis quaestionibus 83, para referir-se ao amor bom, porém, o termo dilectio, na obra In Epist. Joan. ad Parthos6, alude mais especificamente ao amor ao bem, visto que Santo Agostinho mesmo trabalha sobre a caridade ilícita, isto é, a cobiça (CUNHA, 2014);

5 Assim como nos adverte Agostinho que “não se deve fruir senão de Deus”, o indivíduo que apenas usufrui um bem não tem o direito de dispor dele senão em vista de outro bem. Aquele que usa um bem dispõe plenamente dele, exerce verdadeiro domínio sobre ele; enfim, é senhor de tal bem. O cristão que faz uso de todas as coisas é livre em face de tudo. O mais alto grau de liberdade consiste em não estar sujeito senão a Deus. Eis a razão por que a verdadeira observância da lei é a liberdade nascida do amor. (VIEIRA, 2010, p. 67) 6 Título em latim do livro Comentário da Primeira Epístola se São João.

90 O ensino e a filosofia da ciência

assim assume-se: “dilectio é utilizado para o amor em si” (SANCHES, 2016, p. 67):

Daquele que tem o propósito de amar a Deus e também de amar o próximo como a si mesmo, não em conformidade com o homem mas em conformidade com Deus, por causa desse amor se diz correctamente que ele é de boa vontade. Esta, nas Sagradas Escrituras, é geralmente denominada caridade (caritas). Mas, nas mesmas Sagradas Escrituras, também se lhe chama amor (amor). [...]. Julguei que devia recordar isto porque alguns pensam que há diferença entre a «afeição», a «caridade» e o «amor». Dizem eles que a afeição se deve tomar no bom sentido e amor no mau sentido. (AGOSTINHO, 2000, pp. 1251-1252)

Hannah Arendt demonstra que dilectio é a forma do amor que

ordena o mundo (ordinata dilectio). Tal concepção decorre da realidade amedrontadora e escravizadora da cobiça em contrapartida da liberdade proporcionada pelo amor puro. Tal processo pode ser chamado de ordenamento (ARENDT, 1997, p. 39): “O bem supremo é o fio condutor que unifica este pôr em ordem” (ARENDT, 1997, p. 40). A experiência da “ordenação” do mundo é dada a partir do eu, feita em sociedade, com aqueles que alcançam a beatitude em Deus e com o Bem Supremo. Decorre que:

No mundo ordenado, o próximo tem seu lugar ao lado do eu. Mantem-se ao mesmo nível dele. Daí resulta que eu devo amá-lo como eu mesmo. O seu lugar de próximo na ordem é obtido pelo facto de também poder fruir Deus. O próximo só é próximo na medida em que se põe frente a frente a Deus na mesma relação que eu (ARENDT, 1997, pp. 43-44).

O homem que, vivendo no mundo, ama como se não fosse do

mundo, torna-se o ordenador do mundo, “ele julga o próximo do mesmo modo que se julga a si mesmo” (ARENDT, 1997, p. 44). Assim, quem ama o próximo, não o deseja. Santo Agostinho defende que o amor sempre é ligado à perspectiva do uso (uti) e da fruição (frui) (ARENDT, 1997). O amor ao próximo não é nada além de uma renúncia de si face ao mundo, visto que Deus ama sua criação (mundo) e os homens que amam no mundo, amam com o amor de Deus: “Esta é a realização do amor ao próximo” (ARENDT, 1997, p. 112); ou seja, o

O amor na filosofia... 91

amor que se tem ao outro é proveniente de Deus na renúncia a si. O amor ao outro é face da caridade, mandamento da Lei Divina e espírito da sagrada legislação: “Aceitando o amor divino, a criatura regenera-se a si própria” (ARENDT, 1997 p. 113), porque o gênero humano é corrompido. Quem ama rejeita-se a si e rejeita tudo o que fez, dando crédito somente ao que é criatura de Deus e quem ama é criatura de Deus (ARENDT, 1997).

Para Agostinho, a interpretação do mandamento do amor é: O amor de Deus ocupa o primeiro lugar na ordem dos preceitos, mas o amor do próximo ocupa o primeiro lugar na ordem da execução. Pois, quem te deu esse duplo preceito do amor não podia ordenar-te amar primeiro ao próximo e depois a Deus, mas primeiramente a Deus e depois ao próximo. (AGOSTINHO, 23/05/2017)

Toda essa via de pensamento leva ao amor fraterno, o amor que faz irmãos aqueles que não se conhecem e dissolve toda e qualquer dúvida a respeito de Deus. Porém, o mistério permanece “neste amor ao próximo não é exatamente o próximo que é amado, mas o próprio amor”. (AGOSTINHO, apud ARENDT, 1997, p. 117)

REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984.

______. Comentário da Primeira Epístola de São João. São Paulo: Paulinas, 1989.

______. O Livre-arbítrio. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 1995.

______. A Cidade de Deus. Vol II, 2ª edição. Lisboa, 2000

______. Explicação de algumas proposições da Carta aos Romanos, Explicação da Carta aos Gálatas e Explicação incoada da Carta aos Romanos. Coleção Patrística. São Paulo: Paulus, 2009.

______. Sermão inédito sobre a carta de São Tiago. Disponível em: http://evangelhoquotidiano.org/main.php?language=PT&module=commentary&localdate=20141026 Acesso em: 25/05/2017

92 O ensino e a filosofia da ciência

ARENDT, Hannah. O conceito de Amor em Santo Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã, desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Vozes, 1970.

CARNEIRO JR., Renato Augusto. O amor na política: um diálogo entre Hannah Arendt e Santo Agostinho. Curitiba: Editora UFPR, 2007

CORREA, Claudiney Rodrigues; CORREA, Helena C. de S. Rodrigues. O conceito de amor em Santo Agostinho à luz do pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Revista Pandora Brasil, 2016.

CUNHA, Mariana P. S. da. Agostinho: Rumo a uma razão afetiva. UFSC, 2014

MORAES, João Ricardo de; GONÇALVES, Paulo Sergio Lopes. A experiência religiosa no comentário de Santo Agostinho a Primeira Epístola de São João. Campinas: PUC, 2014.

SANCHES, Elissa Gabriela Fernandes. “O fundamento do amor agostiniano”: amar é desejar. Integratio, v.2, n.1, jan - jun, 2016.

VIEIRA, Carlos Alberto Pinheiro. “O amor como fundamento da ordem social em Santo Agostinho”. Revista Parelelus, 2010.

VIII

EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES E EXPERIÊNCIA NA ESCOLA

Junior Cunha*

Francy Nyamien** PALAVRAS-CHAVE: Educação em Direitos Humanos; Projeto Político Pedagógico; Políticas Educacionais. 8.1 INTRODUÇÃO

Este artigo resulta de um texto produzido para a disciplina de

Políticas Educacionais. Selecionou-se uma escola estadual para a realização de uma atividade que consistiu em visita a escola, observação e pesquisa documental para levantamento de dados no período de novembro e dezembro de 2016. E janeiro de 2017 elaborou-se a redação do relato desta atividade de pesquisa. Buscou-se averiguar se a Educação em Direitos Humanos integra, de fato, as propostas educativas da referida escola.

O presente texto discorre sobre os entrelaçamentos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Federal Brasileira. Analisou-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e as Diretrizes Nacional para a Educação em Direitos Humanos. E por fim, elaborou-se a contextualização da escola investigada e, ainda, analisou-se o seu Projeto Político Pedagógico destacando-se as propostas educativas em Direitos Humanos. E a investigação sobre a efetividade da inclusão desta temática na escola.

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professora Doutora da UNIOESTE

94 O ensino e a filosofia da ciência

8.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS HUMANOS

Todos os seres humanos usufruem de direitos fundamentais,

imprescindíveis para a prática efetiva da democracia. Os direitos humanos se aplicam, a todo ser humano, independentemente de nacionalidade, sexo, raça ou condição social. Direitos humanos é um conceito histórico e tem como ideia central a dignidade humana.

Neste sentido, as diferenças jurídicas e culturais de cada nação têm como base a Declaração Universal dos Direitos Humanos1, documento mundialmente conhecido, que não tem força de lei, mas, que, entretanto, é o marco na história dos direitos humanos; proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos, evidenciando que os direitos humanos são algo em construção, em desenvolvimento e possível de melhorias.

A eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, causou grandes desastres e a Segunda Guerra Mundial, com o seu fim, em 1945, marcou-se pelo extermino da população Judaica, vista por muitos como o auge da atrocidade humana, além de, ter significado a ruína dos Direitos Humanos, que nunca antes estiveram tão próximos da extinção.

Assim, as barbaridades vistas no período da guerra, impeliram a reunião mundial dos países e a formação da Organização das Nações Unidas (ONU). Este momento fora marcado pelo entendimento, que a proteção dos Direitos Humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional. Defendido, portanto, globalmente sob o aporte da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), com base em três dimensões de direitos fundamentais: a igualdade, a liberdade e a fraternidade/solidariedade.

Este documento, deste modo, trata da liberdade, da justiça e da paz mundial, direitos inalienáveis de todo e qualquer ser humano. Aborda, também, o direito à vida, os direitos à livre expressão política e religiosa, e à liberdade de pensamento e de participação política. O lazer, a educação, a cultura e o trabalho dentre outros direitos.

1 Nesta e nas próximas citações utilizaremos o texto da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/declaracao-universal-dos-direitos-humanos/>. Acesso em: 13/01/2017.

Educação em direitos humanos... 95

E, ainda, tendo como finalidade estabelecer direitos mínimos aos indivíduos, proteção e respeito à dignidade da pessoa humana de forma positiva e efetiva como afirma o Art. I da Declaração: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. ” 8.3 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

A Constituição de 1988 marca oficialmente o fim do Regime

Militar no Brasil, além de, introduzir legalmente os Direitos Humanos no país, embora, o Brasil tenha sido signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Importa ressaltar que

[...] a cidadania, [...] antes de 1964 aparecia na educação [...] na forma de um civismo [...] afastado de seu potencial transformador das conquistas revolucionárias francesas, tornara-se um discurso ajustado a um comportamento modelado nos ideais [...] convergentes da direita política, dos católicos conservadores e dos militares disseminadores da Doutrina de Segurança Nacional. O fim do regime autoritário, com a estabelecimento de um regime democrático, passou por um processo de reparação do sentido original de cidadania e de Direitos Humanos – embora um longo caminho ainda tenha que ser trilhado para que ambos possam ser reconhecidos em sua plenitude. (VAIDERGORN, 2010, pp. 253-254)

Conforme a Constituição Federal de 1988, a República

Federativa do Brasil constitui-se em Estado democrático de direito e tem como um dos seus fundamentos: “a dignidade da pessoa humana” 2. E estabelecem como objetivos fundamentais:

a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem

2 Nesta e nas próximas citações referentes a Constituição utilizaremos: BRASIL. [CONSTITUIÇÃO (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil – 35.ed. –Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012. 454p.

96 O ensino e a filosofia da ciência

de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (CONSTITUIÇÃO, 1988)

Ademais, vinculados aos direitos civis estão os direitos políticos

que, por sua vez, garantem ao cidadão o direito de participar e intervir na política de seu país, além do sufrágio universal, o direito de construir e compor partidos políticos e o direito de plebiscito.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, conforme consta no seu Art. XXI. 3:

a vontade do povo será a base da autoridade do governo; [...] expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Na Constituição Federal de 1988: Art. 1º. Parágrafo único. “Todo o

poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

E compondo os direitos sociais, estão o direito a cultura, e os direitos econômicos; efetivados pelo Estado visando a promoção do mínimo de igualdade em conjunto com o bem-estar social. Entre os direitos fraternais, estão, direito à paz, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e saúde, ao patrimônio comum da humanidade, à comunicação e à autodeterminação dos povos.

Na DUDH estabelece-se em seu Art. XXVIII que: “todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades [...] possam ser plenamente realizados”. E na CF/88 Art. 4º consta que as suas relações internacionais se fundamentam pelos seguintes princípios: prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Se conclui, portanto, que os DH humanos são compostos por gerações construídas ao longo do tempo e se complementam. No entanto, somente a instauração da DUDH e a CF não asseguram a vigência desses direitos, a promoção da justiça e a paz social é dever de todos. É essencial o respeito aos ideias e princípios construídos em conformidade com o desenvolvimento moral, social, cívico e político do cidadão no decorrer de sua trajetória social.

Além de Declarações, Constituições, Leis, é crucial uma Educação em Direitos Humanos que contribua na formação ética, critica

Educação em direitos humanos... 97

e política do indivíduo. A formação ética se atém a valores tais como: dignidade, igualdade, liberdade e paz. Por sua vez, a formação crítica está relacionada ao desenvolvimento de juízo de valores e aceitação de diversidades culturais, políticas, econômicas e sociais. Por fim, a formação política tem o dever de promover a emancipação do indivíduo perante ao Estado e aos outrem.

Cabe, portanto, as instituições de ensino elaborar seus Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) visando os DH não só no caráter de letramento, mas também na formação do indivíduo enquanto cidadão. 8.4 OS DIREITOS HUMANOS NA EDUCAÇÃO

Diante das considerações tecidas entre a Declaração Universal

dos Direitos Humanos e a Constituição da República Federativa do Brasil, acrescentar-se-á a Lei de Diretrizes e Bases3 (LDB-Lei Nº 9.394/96), lei orgânica e geral da educação no Brasil, buscando apresentar o vínculo formal que há entre os três documentos supracitados e a democracia atrelada a formação cidadã.

É dever do Estado e da família segundo os termos da Lei (CF/88: Art. 205 a 214) promover e incentivar a educação que, por sua vez, deve ser vinculada a Educação em Direitos Humanos segundo nos diz a LDB em seus artigos:

Art. 1º. A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I- igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II- liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;

3 Nessa e nas citações a seguir referentes a LDB estaremos utilizando: BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 16/01/17.

98 O ensino e a filosofia da ciência

IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII - valorização do profissional da educação escolar; VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX - garantia de padrão de qualidade; X - valorização da experiência extraescolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.

Consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos que todo

ser humano tem direito a instrução, que será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. Todos também terão acesso a instrução técnico-profissional, bem como a instrução superior, esta com base no mérito. Acrescenta, ainda, em seu Art. XXVI, 2 que:

a instrução orientar-se-á no pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

Logo, a Educação em Direitos Humanos é crucial na formação

para a cidadania, autonomia e emancipação dos sujeitos sociais que, além disso, serão críticos, compreensivos e respeitosos em suas inter-relações individuais e sociais.

A efetivação dos Direitos Humanos, substancial a dignidade da pessoa humana, será assegurada aos cidadãos, justamente, no regime democrático, porque possibilita o reconhecimento desses direitos. Em um regime democrático a liberdade é algo em construção.

A liberdade, na democracia, constrói-se coletivamente criando nos sujeitos sociais a consciência, cívica e política, o que lhes oportuniza a participação nas decisões sociais de interesse do coletivo. Trata-se, portanto, de um movimento constante de desenvolvimento e agregação de direitos que apontam em direção a promoção da dignidade. A dignidade é, neste sentido, sinônimo de justiça social junto de uma série de pressupostos que garantem o exercício da cidadania, a equidade, a igualdade, a solidariedade humana e o respeito.

Educação em direitos humanos... 99

A cidadania é algo que deve partir do indivíduo, surge em conjunto com sua consciência cívica-política, o que torna a Educação em Direitos Humanos ainda mais importante para a efetivação não só dos direitos de cada um, mas a participação de todos na luta pelos seus direitos. Sobretudo, portanto, a Educação em Direitos Humanos tem como base o ensino ético e moral, é uma educação para vida. 8.5 AS DIRETRIZES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

Em 2012 o Ministério da Educação (MEC) aprovou as Diretrizes

Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (DNEDH), documento que, em conformidade com a Constituição Federal do Brasil e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, agrega a LDB no que diz respeito a Educação em Direitos Humanos. E tem como fundamentos os princípios de dignidade, igualdade, reconhecimento e valorização das diferenças e diversidades, democracia na educação, sustentabilidade socioambiental, entre outros, as diretrizes é algo concreto para a garantia de uma educação pautada nos Direitos Humanos.

De certo modo, a Educação em Direitos Humanos deve ser entendida e trabalhada continuamente pelos educadores e as famílias buscando sempre a construção de princípios a ser seguidos onde o respeito e aceitação das diversidades prevaleçam.

Como previsto pela LDB as instituições de ensino devem formular seus Projetos Políticos Pedagógicos (PPP), uma espécie de mapa onde se encontra, não somente a descrição da tal instituição de ensino, mas também seus objetivos e metas a alcançar no que se refere a educação, e com as Diretrizes Nacional de Educação em Direitos Humanos os PPPs ganham uma nova realidade, abandonam seu padrão rígido e agrega em sua formulação ações simples e corriqueiras que estimulam os educandos a refletirem questões acerca dos Direitos Humanos.

Os Projetos Políticos Pedagógicos incluem temas como a paz internacional, o desarmamento, a democracia, a multiculturalidade e os problemas da humanidade vinculados ao descumprimento de princípios estruturantes dos Direitos Humanos. Define-se, portanto, como uma construção cultural universal que fortalece o respeito pelos direitos, as liberdades fundamentais, o pleno desenvolvimento da pessoa humana, o

100 O ensino e a filosofia da ciência

senso de dignidade, a não-aceitação da discriminação, a promoção da igualdade racial, de gênero, a sociedade livre e a paz global.

A educação, de modo geral, visa novas prioridades tais como a alfabetização consciente, o movimento de aprendizagem atenta ao humano que há em cada um, a educação para a cidadania. 8.6 CONTEXTUALIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DE ENSINO OBJETO DA REFERIDA PESQUISA

Selecionada a instituição escolar e após a realização das leituras e

análises documentais, foram agendadas as visitas para conversas com a coordenação pedagógica. A atividade teve como objetivo verificar a aplicabilidade da Educação em Direitos Humanos na escola.

A Escola situa-se na cidade de Toledo, região oeste do Paraná, e carrega o nome do bairro em que está localizada, mais precisamente na Rua Arlei Leonardi S/Nº. Criada e autorizada a atender o ensino fundamental de 5ª a 8ª séries de forma gradativa a partir do ano de 1989, através da Resolução 3.827/88, e reconhecida através da Resolução 1.233/94, o Colégio Estadual Jardim Maracanã (CEJAM) oferece o Ensino Médio Regular, com o Curso de Educação Geral, conforme Resolução 2.634/97 da Secretaria de Estado da Educação do Estado do Paraná (SEED) e parecer nº 1.494/97 desde 1998 no período noturno, e de 2009 no período matutino.

Mantido pela SEED o colégio possui uma área externa de 1.292,80 m², e um espaço físico interno de 14 salas de aula; um laboratório de ciências, química e física, um laboratório de informática “Paraná Digital”, biblioteca, sala de recurso, sala de apoio, um setor administrativo, cozinha, almoxarifado, dependências sanitárias, sala da direção, dos professores, equipe pedagógica e sala de múltiplo uso.

Por meio de observações e por dados constantes no PPP da instituição supracitada apresentamos uma discrição sumaria do corpo discente do colégio. Via questionários socioeconômicos a equipe pedagógica do CEJAM realizou o tabulamento dos alunos por meio de amostragens, e concluiu que a maior parte dos alunos são oriundos do bairro que abriga o colégio e adjacentes. Uma grande parcela se diz católicos e cerca de 14% alega fé no protestantismo. A pesquisa verificou também que 49% dos educandos participam de algum programa governamental. O levantamento concluiu que 74% dos alunos moram

Educação em direitos humanos... 101

com os pais, e o restante se dividem entre avós, tios e irmãos, 22% dos alunos informaram ainda que moram com padrastos ou madrastas.

Outro ponto de destaque refere-se à participação da família na vida escolar dos filhos, somente nas reuniões de retirada de boletins e convocações da direção. Os pais raramente acompanham a rotina de aprendizagem dos filhos. Os problemas socioeconômicos, como a má distribuição de renda e baixos salários, faz com que os pais ou responsáveis pelos alunos estejam mais atentos ao seus empregos e ocupações que lhes gerem renda e não há tempo de se concentrarem no processo de escolarização de seus filhos.

As estatísticas mostram que na região ¼ dos alunos que terminam o Ensino Fundamental não ingressam no Ensino Médio. E outra parcela ainda maior que concluem o Ensino Medio não tem acesso ao Ensino Superior, optando por entrarem o quanto mais cedo possível no mercado de trabalho, visto que há uma necessidade em complementar a renda da família. Há ainda os que até mesmo almejavam este tipo de realização escolar, mas devido as baixas oportunidades se veem obrigados a não usufruírem de uma educação digna.

Conforme dados obtidos no Projeto Político Pedagógico 75% dos pais possuem carteira de trabalho assinada. E o que nos chama a atenção é o nível de instrução dos pais: 34% possuem de primeira à quarta série, 39% possuem de quinta a oitava série, 25% possuem ensino médio e somente 12 (2%) dos pais pesquisados possuem curso superior. No que diz respeito a remuneração das famílias, 90% dos pais ganham entre um a cinco salários mínimos.

Notamos que a instituição analisada configura uma proposta flexível no que se diz respeito a instrução de seus educandos, não se mostrando um modelo homogêneo e impositivo, o modo educacional empreendido visa uma construção coletiva do que é a cidadania, objetivo que notamos tanto no PPP, quanto nas observações realizadas no estabelecimento de ensino.

Segundo consta no PPP e com conversas que tivemos com a direção e docentes do estabelecimento observado, o sistema de ensino do CEJAM se pauta com precisão na LDB. O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito, tem por objetivo a formação básica do cidadão, mediante: o desenvolvimento da capacidade de aprender (domínio da leitura, da escrita e do cálculo); a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; o desenvolvimento da

102 O ensino e a filosofia da ciência

capacidade de aprendizagem (a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores); o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, tem como finalidades: a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina. 8.7 REFLEXÃO ACERCA DOS DIREITOS HUMANOS NA ESCOLA

Baseada nos amparos legais o CEJAM busca preparar o aluno

para atuar em sociedade ocupando sua função de cidadão, crítico e transformador do meio social a fim de torná-lo mais justo e igualitário. Tais estímulos se verifica no PPP, nas orientações direcionadas ao corpo docente e nos enfoques teóricos e metodológicos das práticas pedagógicas voltadas a socialização.

Defende-se na instituição a formação de uma consciência histórica e a ideia de pertencimento do processo de formação histórica; a busca do amadurecimento cognitivo e emocional através de um processo de desenvolvimento da pessoa humana, no que diz respeito as relações sociais. Considerando que este é um movimento continuo e que cada um desenvolve o seu, porém, sem se desvincular do meio em que vive, é de relevância fundamental o educando saber que suas ações regem sua vida, mas que também afeta a dos demais e, por conta disso, uma consciência cívica-política desenvolvida através da Educação em Direitos Humanos dá a ele autonomia e emancipação junto de responsabilidades – o que pode ser entendido como sinônimo de amadurecimento.

O desenvolvimento histórico ou a consciência histórica do educando o leva a pensar os modelos de comportamento que já

Educação em direitos humanos... 103

vigoraram, e a compreender por que motivos foram substituídos. Além de ensinar como se portar em relação aos outros humanos é necessário explicar o motivo, dando aos Direitos Humanos um embasamento que, além de teórico, tangencie a dignidade de ser humano.

A análise do PPP e a observação do universo da escola, especialmente nas práticas educativas em salas de aulas, mostraram duas prioridades da instituição voltadas a Educação em Direitos Humanos.

1º. Educação das Relações Étnico-Raciais Desde que a Lei Nº 10.639/03 foi aprovada, determinado o

ensino obrigatório da história e da cultura afro-brasileira, há um grande debate na instituição retro mencionada em como desenvolver uma Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) promovendo uma reparação cultural, o que é, de fato, a luta dos movimentos negros. Como primeiro resultado desses debates é a mudança de tratamento em relação ao ensino sobre o negro, ao invés de partir do regime escravocrata – sem abondar essa mazela da história –, se parte do quanto os negros e afrodescendentes contribuíram para a formação cultural de nosso país.

O grande desafio em abordar esse tema no CEJAM se enquadra em dois aspectos que geram uma problemática a ser resolvida. O primeiro, é que grande parte dos professores do estabelecimento de ensino já mencionado são brancos e tiveram em sua trajetória acadêmica forte presença do eurocentrismo. E o segundo, é a mentalidade adotada pelos colonizadores de Toledo, um dos princípios de colonização escolhidos pela empresa Maripá era de que os colonos deveriam ser descendentes de alemães e italianos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, com experiência na agricultura.

Portanto, ao efeito da Lei já mencionada, para que os professores possam atingir o objetivo que é promover uma reparação cultural se exige uma concentração ainda maior de estudos e pesquisas vinculadas ao tema. Quanto ao caso da colonização de Toledo, gera debates ainda maiores, pois tal moléstia está presente em sua história. E a cidade traz consigo ainda hoje vestígios dessa história, que podem ser percebidos nos comércios e shoppings de Toledo onde a grande maioria dos empregados são brancos. Como então os professores do CEJAM encaminharam esse debate?

Como resposta à pergunta feita no parágrafo anterior, como modo de tangenciar a ERER e a EDH o CEJAM propôs as seguintes

104 O ensino e a filosofia da ciência

ações mínimas a serem desenvolvidas: (1) organizar uma pauta de atividades a serem desenvolvidas no dia 20 de novembro, dia da consciência negra. (2) discutir a questão da discriminação racial a partir de uma análise de classe social. (3) iniciar um grupo de estudos sobre o tema da Lei 10.639/03 a partir da comissão responsável pela implantação da Lei e do Projeto de PDE – Racismo e Desigualdades Sociais na Política do Branqueamento e o Ensino de História a partir da Lei Federal Nº 10.639/03.

2º. Educação Especial Também prevista por lei a Educação Especial (EE) é outro

ponto de destaque na instituição já mencionada, considerando que há alunos em seu quadro do corpo docente que dependem deste modelo de educação. No entanto, a preparação para atender esse tipo de educando não é nada fácil e enuncia uma participação ainda maior dos professores, pais, comunidade e, além, é evidente, do Estado.

A Educação Especial é parte da inclusão educacional e é um projeto gradativo, dinâmico e transformador que exige do poder público total comprometimento com as diferenças individuais dos alunos/as e a criação de alternativas para superá-las. De modo, que a educação inclusiva ganha grande atenção nos debates de prevenção a exclusão e medidas discriminativas. Portanto, a Educação Especial exige planejamento e mudanças sistêmicas político administrativas, que envolvem desde recursos governamentais a flexibilização curricular.

O acesso de alunos com características diferenciadas, cria a necessidade de ter mecanismos que permitam a este sujeito sociocultural o direito de inclusão educacional, social e emocional na comunidade escolar. O grande desafio é não só promover medidas de adequações dos espaços físicos, mas de todo o ambiente escolar, fazendo assim com que o educando especial de modo efetivo seja e sinta-se incluído.

Logo, além dos recursos físicos fundamentas para a integrações de alunos especiais como, banheiros adaptados, rampas, escadas com corrimão – recursos em que o CEJAM dispõe – é necessário a promoção de uma educação inclusiva e de aceitação das diversidades direcionada aos outros alunos, o que também verificamos na instituição analisada.

Educação em direitos humanos... 105

8.8 CONSIDERAÇÕES FINAIS O ensino da cidadania e dos direitos humanos como conteúdo

das disciplinas escolares tem aumentado e se incentivado ainda mais desde a LDB. Com um grande enfoque nos níveis iniciais do ensino, isto é, fundamental e médio, vemos a inclusão de temas fundamentas à construção da cidadania, temas, por exemplo, a inclusão social e a discriminação seja ela: étnica, cultural, religiosa, social, sexual, física, etc., se evidencia cada vez mais, por outro lado, tem de se levantar uma questão diante dessa nova realidade, precisamos estar atentos no modo como os professores se adequam a inserção desses temas em suas respectivas disciplinas e de que maneira os trabalha em sala de aula e na comunidade escolar. Dado isso, como era de se esperar, e não diferente das outras instituições de ensino brasileiras, a instituição objeto de nossa pesquisa tem lá seus problemas que, consequentemente, afetam a EDH e os próprios Direitos Humanos.

Apesar dos esforços dos profissionais envolvidos na implementação de políticas educacionais mais humanistas e voltadas aos DH nas escolas, nota-se a necessidade de uma formação docente mais eficiente. Cabe-nos analisar de que maneira tem se tratado desses temas na formação docente dos professores da rede de educação básica. Torna-se, portanto, necessário que uma vez mais nos atentemos ao modo como são formados aqueles que posteriormente estarão inseridos no meio educacional, isto é, professores, pedagogos e agentes educacionais. Desse modo, é importante que na formação de licenciados seja constantemente incluídas e desenvolvidas disciplinas que abordem os temas referidos a pouco e que foram tratados no presente texto.

É importante, desse modo, que afastemos dos Direitos Humanos o estigma de ideal teórico a ser atingido e que através da Educação em Direitos Humanos o tornemos cada vez mais presente no nosso meio social e que, de fato, se efetive sua prática em nosso cotidiano, fazendo com que a sociedade seja mais justa, igualitária e que preze pelo respeito ao próximo e a preservação da dignidade humana.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [CONSTITUIÇÃO (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. 35. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012. 454p.

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BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil. Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm>. Acesso em: 16/01/17.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 16/01/17.

BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais – Brasília: Coordenação Geral de Educação em SDH/PR, Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2013. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=32131-educacao-dh-diretrizesnacionais-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 16/01/17.

DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA. Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. Viena, 14-25 de junho de 1993. Disponível em: <http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-e-Programa-de-A%C3%A7%C3%A3o-de-Viena-Confer%C3%AAncia-Mundial-sobre-DH.pdf>. Acesso em: 17/01/17.

Declaração Universal Dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/declaracao-universal-dos-direitos-humanos/>. Acesso em: 13/01/2017.

FERNANDES, Angela Viana Machado; PALUDETO, Melina Casari. Educação e direitos humanos: desafios para a escola contemporânea. Cadernos CEDES. Centro de Estudos Educação e Sociedade, v. 30, n. 81, p. 233-249, 2010. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/28266>. Acesso em: 21/07/2017.

KERSTEN, Ignácio Mendez. A Constituição do Brasil e os Direitos Humanos. Âmbito Jurídico. Disponível em: <http://www.ambito-

Educação em direitos humanos... 107

juridico.com.br/site/index.php?n_link=artigos_leitura_pdf&artigo_id=339>. Acesso em: 17/01/17.

LEI Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 17/01/17.

Plano Nacional de Educação Em Direitos Humanos / Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos. – Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007. 76 p.

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RESOLUÇÃO Nº 1, DE MAIO DE 2012. Estabelece Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10889-rcp001-12&category_slug=maio-2012-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 17/01/17.

RODRIGUES, Cinthia. Os Direitos Humanos nas Escolas. Carta Educação-Carta Capital. Disponível em: <http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/os-direitos-humanos-nas-escolas/>. Acesso em: 17/01/17.

VAIDERGORN, José. Cidadania e direitos humanos na formação universitária. Cad. CEDES[online]. 2010, vol.30, n.81 [cited 2017-07-18], pp.253-256. ISSN 0101-3262. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32622010000200009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21/07/17.

108 O ensino e a filosofia da ciência

Sites consultados:

Ministério da Educação <http://www.mec.gov.br/>. Acesso em: 17/01/17.

Secretaria Especial de Direitos Humanos - Ministério da Justiça e Cidadan <http://www.sdh.gov.br/>. Acesso em: 17/01/17.

IX

INFÂNCIA ENTRE ESTADO E MÁQUINA DE GUERRA UMA ABORDAGEM A PARTIR DE DELEUZE E GUATTARI

Ana Carolina Noffke*

Ester Maria Dreher Heuser**

PALAVRAS-CHAVE: Infância; criança; representação; experimentação.

Este trabalho visa ir ao encontro da infância, a fim de pensá-la para além de um sistema representativo, mas a partir da filosofia da diferença. A infância não produz discurso sobre si, pelo menos não o discurso que esperamos poder considerar como tal; contudo, o contato com a infância pode nos levar a pensar aquilo que nunca havíamos pensado antes. Não se trata de qualquer contato, mas um contato impessoal, de abertura, que não se apoia em representações, mas sim, em uma atenção despretensiosa que se volta a esse universo. Dessa forma, este trabalho pretende abordar a infância junto à filosofia, baseando-se principalmente nos escritos de Deleuze e Guattari em Mil Platôs – volume V (DELEUZE; GUATTARI, 2012, cap. “1227”) onde estes trabalham a questão das formações do Estado e da Máquina de Guerra como dois modelos de pensamento distintos. O que mais buscaremos salientar neste trabalho, mesmo que de forma breve, são as possíveis relações entre a infância e a máquina de guerra. Devemos referir também que a máquina de guerra não é de todo positiva, no sentido de potencialização da vida, mas que pode ser também tomada sob um aspecto negativo, visto que representa uma forma exterior ao Estado, de outra natureza, outra origem, mas que pode ter algumas de suas produções absorvidas e reformuladas pelo modelo de pensamento do Estado. O que nos interessa principalmente, é delinear os modelos de pensamento e pensá-los junto à infância, a fim de encontrar outros caminhos para pensá-la, com vistas a ultrapassar as representações sob as quais a adequamos.

* Mestranda em Filosofia-UNIOESTE- Toledo; e-mail: [email protected] ** Professora Doutora da UNIOESTE; Tutora do PET-Filosofia.

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A abordagem sobre as formações do Estado e da Máquina de Guerra feitas por Deleuze e Guattari1, nos fornecem importantes ferramentas para pensar a infância e o papel que esta desempenha junto à história. De um modo geral, D&G salientam que as formações de Estado se dão, principalmente, pela junção de duas cabeças, as quais eles denominam como o mago-rei e o sacerdote-jurista. O mago-rei encarrega-se de ligar a sociedade ao Estado, ou seja, possui uma força centrípeta que amarra as pessoas que podem ser cooptadas por ele dentro de um limite local2. Dessa forma, a questão territorial é muito importante para pensarmos sobre as relações do Estado e da Máquina de Guerra. Por outro lado, o sacerdote-jurista se ocupa de organizar as diferentes pessoas ligadas ao Estado, através da criação de leis e modelos disciplinares que visam estabelecer a ordem. Os órgãos de poder e as instituições são as que garantem ao Estado sua soberania. Assim, este funciona sobre determinado território, ocupando-se de manter a hierarquia sobre aqueles que lhe estão vinculados. Essa é a principal ocupação do Estado: manter a soberania. Por outro lado, a Máquina de Guerra é uma criação nômade e, por isso, mantém outra relação com o território. Para a Máquina de Guerra o território não é fixo, não é particular, mas sim um plano sobre o qual se movimenta. Esse fator caracteriza o grande interesse de D&G pelos povos nômades. A relação destes com o território é de passagem e não sedentário, como o é para o Estado. Dessa forma, estes se mantêm para além das fronteiras do Estado, ou seja, estão fora da interioridade deste aparelho e, portanto, fora da história. A máquina de guerra é caracterizada por D&G como uma pura forma da exterioridade. Para se entender essa afirmação, é necessário que se pense naquilo que está fora do modelo de pensamento representativo ao qual estamos habituados a seguir. A Máquina de Guerra está contra o Estado, está fora do campo de manipulação que rege as regras do aparelho:

É que a exterioridade da máquina de guerra em relação ao aparelho de Estado revela-se por toda a parte, mas continua sendo difícil pensar. Não basta afirmar que a máquina é exterior ao aparelho, é preciso

1 A partir daqui utilizaremos D&G para nos referirmos aos autores. 2 Podemos entender bem essa relação com o Estado atual em que vivemos, onde este representa um Estado corrupto e sem escrúpulos, mas ao qual nos mantemos ligados como se estivéssemos hipnotizados.

Infância entre estado e máquina... 111

chegar a pensar a máquina de guerra como sendo ela mesma uma pura forma de exterioridade, ao passo que o aparelho de Estado constitui a forma da interioridade que tomamos habitualmente por modelo, ou segundo a qual temos o hábito de pensar. (D&G, 2012, p. 15)

Tanto a máquina quanto o aparelho de Estado devem ser

tomados como modelos de pensamento, delineados por D&G de forma muito diferente, mas que não podem ser pensados separadamente, no sentido de que ambos mantêm uma coexistência, ou uma concorrência. O aparelho de Estado se mantém sobre as bases da soberania, da hierarquia, da disciplina, de modelos referenciais, e de uma violência que não aparece necessariamente, mas que é sentida no ar, nas relações, e principalmente nas intimidações daqueles que servem para coibir qualquer possível questionamento às premissas anteriores. Essa violência é camuflada pela existência da polícia e do exército. Esses seriam os principais atores a garantir ao Estado a manutenção de sua soberania, pois, enquanto ligados ao aparelho, devem permanecer fiéis a este, encarregando-se de manter a ordem estabelecida pelo Estado. No entanto, o exército, ou a força militar, são derivados da Máquina de Guerra, são extrínsecos a ela, e justamente por isso, são alvos de uma rígida disciplina: sempre podem se rebelar diante da soberania. Isso faz com que o Estado sempre se refira aos guerreiros que não aceitavam se ligar a ele, como incapazes de entender ou traidores. Os guerreiros da Máquina de Guerra estão sempre à espreita, ou seja, não se furtam ao direito de questionar qualquer sistema hierárquico. Esses guerreiros têm na guerra uma forma de conjurar as formações e as dominações do Estado. O que acontece é que o Estado se apropria de alguns mecanismos da Máquina de Guerra e a formação de um exército torna-se necessária para que o Estado possa se estabelecer diante da guerra. Como dissemos, a guerra pretende impedir as formações de Estado, mas o Estado é contra a guerra, ou quando tem de se relacionar com ela, visa trazê-la para seu campo, ou seja, impor a ela regras e limites de atuação. O Estado apela para a diplomacia da guerra, diferente da Máquina de Guerra, que a utiliza para conjurar àquela formação. O que acontece é que o Estado não possui uma Máquina de Guerra e, dessa forma, não possui armas de guerra, mas sim instrumentos. A Máquina de Guerra, contudo, tem suas armas ligadas também a afetos. Dessa forma, podemos pensar que uma fotografia, um cartaz, uma cena, um encontro,

112 O ensino e a filosofia da ciência

um ovo3, surjam como armas de contágio, levando o pensamento nômade a se metamorfosear irredutivelmente. De todo modo, a representação que temos da guerra condiz com a mutilação, destruição, caos, terrorismo, desrespeito aos limites diplomáticos de atuação. A guerra não possui armas, pois não leva em conta relações de afeto, mas unicamente instrumentos que sirvam para intimidar o adversário. O Estado quer aniquilar o adversário, a Máquina de Guerra quer superar o adversário, mantendo-se para além de seu domínio. D&G sugerem um exemplo simples de jogos que serviriam para caracterizar os dois modelos de pensamento que sugerem essa diferença: o Xadrez e o Go4.

A ideia de uma guerra diplomática já denuncia sua derrota antes mesmo de começar. Parece ser de grande contradição, beirando ao absurdo; por isso, não pretendemos nos ocupar aqui da guerra em si, como ação, mas unicamente estabelecer conexões que possam contribuir para encontrarmos elementos que nos permitam pensar a infância junto à Máquina de Guerra. A guerra estabelecida pela Máquina de Guerra, como já dissemos anteriormente, se dá principalmente por sua intenção de conjurar o aparecimento do Estado. O Estado, por sua vez, como aqui queremos referir, é principalmente um modelo de pensamento, o qual rege a maior parte das relações humanas por toda a história. O modelo de pensamento da Máquina de Guerra, por sua vez, apresenta uma indisciplina fundamental, que se volta contra aquela força centrípeta estatal. A Máquina de Guerra se metamorfoseia e não está necessariamente ligada apenas aos povos nômades. Ela, antes, se ocupa de afetos, de desejos e de devires estabelecendo outra relação com as mulheres, com os animais, com as crianças e com a terra. Sua justiça é

3 Essa referência trata-se das manifestações contra alguns políticos brasileiros, ocorridas nos últimos dias, e que podem sugerir outras formas de pensarmos as armas de guerra. O ovo que João Dória Júnior, atual prefeito de São Paulo, recebeu em um evento, pode ter marcado e afetado a sociedade em geral, de forma mais ampla, muito mais do que qualquer discurso proferido com essa finalidade. 4 D&G utilizam um exemplo simples, no início de Mil Platôs – vol. 5, que refere-se ao Xadrez e o Go. Ambos jogos de origem oriental, que por vezes, podem pressupor os dois modelos de pensamento em questão. O Xadrez remete a um jogo de Estado, visto que constitui-se por valores intrínsecos às peças, hierarquia destas, espaço estriado, movimentos limitados ao valor das peças. O Go, por sua vez, pode ser jogado com feijões, pois a ideia principal situa-se em movimentar-se em um espaço aberto, sem linha de chegada; constitui-se em jogadas que visam dominar territórios, ou se preciso, recuar e abster-se. O prestígio constitui-se junto às jogadas, encerrando-se na dominação de territórios, enquanto o Xadrez, traduz-se em peças de prestígio pré-determinadas, hierárquicas.

Infância entre estado e máquina... 113

outra, com relação ao Estado. Dessa forma, a terra deixa de ser uma questão de fixação, propriedade, e passa a tornar-se meio, espaço de passagem. Assim se dá também quando a tomamos como modelo de pensamento. A máquina se metamorfoseia, não é fixa, e segundo D&G, podemos observar o nomadismo desse modelo de pensamento em diferentes áreas do saber5. Mas o que isso significa? Pensamos que há na máquina uma necessidade de resistir ao aspecto dominador do Estado, ou seja, há no pensamento nômade uma necessidade de manter-se nômade e, para isso, a transformação lhe é imanente. O pensamento nômade é aquele que se transforma, se torna outra coisa. Se metamorfoseia em diferentes corpos de anunciação, que são os grandes motores de toda essa reformulação. A experiência, os afetos6 e os devires, são a sustentação da máquina, são o motor que a move, fazendo com que ela desterritorialize aquilo que ela afeta e também a ela mesma e, dessa forma, produza outras formas de vida. Essa desterritorialização é o que faz com que a Máquina de Guerra possa se metamorfosear, ou seja, no exato momento de sua restrição, de sua aniquilação, transforma-se em outra:

Será possível que no momento em que já não existe, vencida pelo Estado, a máquina de guerra testemunhe ao máximo sua irrefutabilidade, enxameie em máquinas de pensar, de amar, de morrer, de criar, que dispõe de forças vivas ou revolucionárias suscetíveis de recolocar em questão o Estado triunfante? É no mesmo movimento que a máquina de guerra já está ultrapassada, condenada, apropriada, é que ela toma novas formas, se metamorfoseia, afirmando sua irredutibilidade, sua exterioridade: desenrolar esse meio de exterioridade pura que o homem de Estado ocidental, ou o pensador ocidental, não param de reduzir? (D&G, 2012, p. 19)

5 No Tratado da Nomadologia (2012) D&G tratam de proposições que apresentem a existência do modelo de pensamento nômade nas diferentes áreas do saber: nos mitos, na dramaturgia, na epopeia, nos jogos, na etnologia, na epistemologia e na noologia. 6 Os afetos aqui não devem ser pensados como sentimento, ou não apenas como sentimentos. Os afetos são anteriores ao sentimento. São respectivamente aquilo que nos afeta, que nos move a pensar, que nos impede de ignorar dadas situações e acontecimentos. Um livro, uma música, uma pergunta, um gesto, podem todos produzir afetos que nos fazem entrar em devir e dessa forma, experimentamos outra relação com o mundo.

114 O ensino e a filosofia da ciência

Quando nos deparamos com a questão colocada por esta citação,

não conseguimos nos furtar de pensar a infância como essa constante criação de máquinas de guerra. Não pretendemos aqui afirmar que a criança nasce regida pelo modelo de pensamento nômade, mas apenas atentar para a possibilidade de que ela se guie pelos mesmos referenciais que a Máquina de Guerra: a experiência, o movimento, o devir, os afetos, o desejo. O infantil e o guerreiro sempre se confundem, pois são sempre vistos por sua falta, por sua negatividade, sua incapacidade, sua inabilidade para lidar com os processos da vida. No entanto, grande parte das crianças nasce sob a tutela de um pensamento de Estado, e este modelo de pensamento é que guia seus referencias de apreensão de mundo. Nesse sentido, optamos por expandir a ótica da infância e relacioná-la ao meio familiar a fim de entender essa relação.

O Estado mantém uma relação muito especial com a família. Ele cria um modelo familiar com o intuito de, através deste, adentrar ao meio familiar e impor-lhe suas regras. Esse modelo de família é também representado na interioridade do Estado, ou seja, ele adota esse modelo e se apresenta como uma grande família, ou como O Grande Pai. Seus indivíduos devem sentir-se parte dessa grande família e assim reproduzir seu modelo de pensamento também dentro das privações familiares7.

Podemos vincular a isso, a questão sobre o sentimento da infância, tal como aborda Ariès em sua tese História Social da Criança e da Família (ARIÈS, 1981) que, segundo ele, começa por volta do século XII e se efetiva mais intensamente por volta do século XVII. Há uma relação de forças que promulga tal sentimento: o infanticídio exposto socialmente, a moralização dos costumes, o Estado como tutor social e soberano, a Igreja com pretensões de expansão. Havia-se que responsabilizar alguém pelos infanticídios que a partir do século XVII já não podiam mais ser tolerados. Unido a isto, o Estado se vê obrigado a intervir, mas tal intervenção não está focada em apenas resolver o problema, mas sim, resolvendo este problema o Estado passa a ser o

7 Aqui podemos citar, sem adentrar em questões de mérito, o exemplo do impeachment que se instaurou sobre a presidenta Dilma Rousseff no ano de 2016 no Brasil, o qual, em seu momento decisivo, teve sua votação apresentada como um espetáculo midiático de domingo em prol da família tradicional brasileira. A família foi a maior bandeira erguida pelo Estado para justificar o voto de cada membro que se colocava a favor do impeachment. Pouco se falou sobre o material das acusações que embasaram tal processo, mas sim ao respeito às famílias dos membros da votação e dos cidadãos brasileiros.

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tutor dos pequenos órfãos e, consequentemente, passa a ter o direito sobre seus corpos, suas vontades, seus desejos, sua experimentação, suas capacidades, sua força. Percebe que, ao responsabilizar-se pelos pequenos, pode usufruir destes de maneira a transformá-los em instrumentos para chegar a seus interesses próprios. No entanto, essa relação de mais-valia sobre o corpo infantil, parece ser de interesse do Estado até certo ponto. Adiante ele se encarrega de criar um modelo familiar que realoque a criança em um papel de maior importância junto à família, aliando a esse modelo, os costumes religiosos da Igreja e as novas práticas anticonceptivas:

[...] como se a consciência em comum só então descobrisse que a alma da criança era imortal. É certo que essa importância dada à personalidade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos costumes. (ARIÈS, 1981, p. 61)

De todo modo, essa relação de forças anuncia uma relação não

apenas de sentimento sobre a infância, mas acaba também promulgando uma relação de afetos, visto que com a implementação de um modelo familiar, ditado pelo Estado e pela Igreja, devem os adultos criar novos vínculos com a criança e isso leva a constituir-se um novo sentimento sobre a infância. Mesmo assim, tal vínculo é apenas uma extensão das relações sustentadas pelo aparelho estatal, ou seja, a hierarquia e a soberania devem ser transmitidas também aos membros familiares, sob a figura do soberano Pai. Dessa forma, a criança deixa de pertencer ao simples acaso da vida e da morte que o infanticídio lhe conferia e passa a ser vista como moldável aos interesses do Estado. Tal condição vem acompanhada por um sentimento anterior que fazia com que os adultos tomassem as crianças como entretenimento, pequenas criaturas fofas e engraçadinhas que alegravam o dia com suas bobagens. Podemos pensar que as novas relações de afeto criadas a partir do delineamento de um modelo familiar, poderiam ter sido extraídas da Máquina de Guerra? Acreditamos que sim, e justamente por isso o Estado tem de fortificar em muito a figura da hierarquia dentro da família, bem como a identificação familiar a um modelo nuclear. Essa nova criança passa a ter mais espaço, a ampliar seu território, mesmo que esta não seja a intenção do Estado. A família, que antes tinha inúmeros filhos e não se admirava mais com a possível morte destes, passa agora a ter condições de controlar quantitativamente sua prole e, dessa forma, consegue despender maior atenção aos pequenos. É claro que não podemos tomar

116 O ensino e a filosofia da ciência

isso como universal, nem é este nosso intuito. Apenas tomamos este ponto da história para pensarmos as relações de afetos que são típicas da Máquina de Guerra e que podem também ser absorvidas pelo Estado, se isto lhe for conveniente e possível. Poderíamos pensar que o Estado absorve o modelo afetivo da Máquina de Guerra e o adequa ao seu modelo familiar, visando sempre manter a formação soberana.

É importante salientar que a Máquina de Guerra não deve ser vista como melhor ou pior que o Estado. O que se visa delinear é que a máquina pode se metamorfosear e, desse modo, pode também, entrar em contato com forças reativas que visam apenas tomar o poder do Estado, ou seja, nada impede que a Máquina de Guerra se confunda com o Estado em alguns aspectos, e que mesmo passe a ser absorvida por este, mas nesse mesmo momento ela se transforma e dá sinais de sua irredutibilidade. D&G apontam para as megamáquinas que se constituem sob uma forma exterior ao Estado e que se vinculam a este secundariamente. Um exemplo disso seriam os bancos, as grandes corporações, as grandes formações religiosas8.

O que mais nos interessa na Máquina de Guerra é seu caráter de bando, de pequenos grupos, não menos organizados que o modelo estatal e que visam manter-se nômades, no sentido de não estabelecer uma identidade com o modelo de Estado. A isso entendemos que o pensamento nômade também não se vincula ao caráter de fixação de identidades no próprio pensamento, de hierarquias de estados, mas que antes, busca constituir-se a partir dos diferentes afetos com os quais se relaciona. A criança pensada nesse sentido, pode nos sugerir outras manifestações e outras direções que não os das representações e verdades criadas sobre ela ao longo da história.

Entendemos que o modelo familiar, constituído principalmente a partir do século XVII – segundo a tese de Ariès (1981) – constitui-se juntamente a um novo sentimento sobre a infância, onde a criança deixa

8 Um exemplo recente disto pode ser visto nos dias atuais a partir da figura da Igreja Universal que em seu cerne constituiu-se a partir de pequenos bandos que, tomando corpo, unem-se em um mesmo objetivo: tornar sua fé universal. As corporações religiosas caracterizam-se por uma relação secundária com o Estado, uma aliança de interesses que promove as condições de existência de ambas, junto ao meio social. O que faz com que as megamáquinas se diferenciem da Máquina de Guerra parece ser seu objetivo de dominação, de vínculo à figura do mago-rei e do sacerdote jurista, visto que não dependem do Estado mas aliam-se a este, a fim de saciar interesses próprios. Dessa forma, essas formações deixam de ser exteriores ao Estado, mesmo que em seu cerne tenham derivado dessa exterioridade.

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de ser considerada um mini adulto e passa a ter um novo território dentro da sociedade, vinculado principalmente ao modelo de família nuclear. A família passa a exercer sobre a criança aquilo que o Estado exerce sobre a família, ou seja, um modelo hierárquico que passa a ver a criança como um ser moldável que pode ser adequado às necessidades do mundo adulto. Nessa fase histórica, também surgem as primeiras propostas pedagógicas que mais se assemelham às dos dias atuais. Ao longo dessas mudanças, a criança passa a ser pensada como inseparável do aluno. Criam-se várias limitações sobre aquilo que a criança pode acessar. É claro que essas mudanças sobre a infância trouxeram vantagens no sentido de que puderam contribuir para uma redução da exploração do trabalho infantil, mas isso ocorreu numa proporção muito ínfima. Há nos dias atuais uma grande proporção de crianças que ainda se vincula a esse modelo de exploração. Mas o que mais nos chama a atenção seriam as manifestações da infância. Como dissemos, a infância não produz um discurso considerável sobre si. Mas não podemos confundir isso com uma não produção. Há claramente uma produção na infância que não se enquadra ao modelo de pensamento estatal, mas uma produção que se vincula principalmente à experimentação, aos afetos, ao corpo, à imaginação, ao devir, e também à criação. Há na criança uma resistência em submeter-se ao modelo de identidade proclamado pelo Estado, ao sistema hierárquico e à desvinculação da experimentação. Experimentar o mundo parece ser condição de possibilidade que a própria infância toma de forma impessoal, mas que faz parte de sua constituição de mundo. Essa apreensão de mundo, por sua vez, também não parece vincular-se à dicotomia sujeito/objeto, corpo/alma. O que há é um corpo em meio ao mundo que lhe é novo. O próprio corpo é algo novo e todas as relações que se estabelecem entre este e o mundo, se dão a partir de afetos e experimentações. Pensamos a criança aqui como uma potência cosmológica, ou seja, como abertura para a experimentação, onde aquilo que a afeta é aquilo ao que ela vai direcionar sua atenção. Para pensarmos a criança junto à família, poderíamos pensar também o papel da ciência nesse entremeio. D&G apontam para uma existência e perpetuação desse modelo nômade também sobre as ciências, o que eles denominam de ciência menor ou ciência nômade. Essa ciência excêntrica se desdobra em quatro pontos fundamentais: adoção de um modelo hidráulico ao invés de uma teoria dos sólidos; ao modelo de devir e de

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heterogeneidade, que se opõe ao modelo estável, idêntico, constante, das ciências régias9; um modelo turbilhonar que funciona em um espaço aberto, onde distribuem-se as coisas-fluxo, ao invés de considerá-las sobre um espaço fechado; o modelo é problemático ao invés de teoremático. A ciência nômade, como exterior ao modelo de pensamento do Estado, não é aceita e nem mesmo considerada como ciência. O atomismo, é um exemplo de uma ciência nômade e que foi vulgarizado em sua época justamente por não obedecer às leis da ciência régia:

Bem mais, essa ciência nômade não para de ser barrada, inibida ou proibida pelas exigências e condições da ciência do Estado. Arquimedes, vencido pelo Estado, torna-se um símbolo. (D&G, 2007, p. 26)

Mas o Estado não exclui por completo essa ciência de seus

limites, antes se apodera de seus saberes para poder impor a eles suas leis e suas regras, criando a esses saberes uma espécie de dependência sobre aquilo que a ciência régia estipula como verdade. O movimento passa a obedecer a regra de ir de um ponto ao outro; o espaço passa a ser mensurado; o fluído é dependente e necessariamente ligado ao sólido; o fluxo deve funcionar por fatias laminares e paralelas. Dessa forma ele absorve esses saberes, mas os conjura em seu poder, ou melhor, ao seu modelo de pensamento. Para a ciência nômade as equações não são boas formas que visam organizar a matéria, mas antes elas são geradas ou impulsionadas pelo material, através de um cálculo qualitativo otimizado.

Poderíamos pensar a criança em nossa atualidade associada a estes dois modelos de ciência. É necessário estipular os planos sobre os quais ambas se dão para que possamos pensá-las junto à infância. A ciência nômade remete a uma ciência problemática e que visa seguir seu objetivo ao invés de reproduzir a partir de processos de indução:

Seria preciso opor dois tipos de ciências, ou de procedimentos científicos: um que consiste em ‘reproduzir’, o outro que consiste em ‘seguir’ [...] seguir não é o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir. (D&G, 2012. p. 41)

9 As ciências régias são consideradas por D&G como ciência de Estado, ou seja, ciências que se adequam ao modelo de pensamento do Estado.

Infância entre estado e máquina... 119

Aqui poderíamos pensar que a cesárea, pensada enquanto processo, seria uma forma da ciência régia e o parto normal, vincula-se ao modelo da Máquina de Guerra. Isso deve ser pensado não sob um aspecto judicativo, mas apenas de assimilação. A cesárea se constitui por um processo de previsão: estipula a hora do nascimento, a posição da mulher – que deve ficar contra a gravidade –, o tempo do processo. No entanto, a alta taxa desse procedimento nos dias atuais está vinculada também a construção de uma atmosfera de medo da dor, que ao longo do tempo, fez reduzir o processo de nascimento sob a via natural, como um processo de selvageria (vinculado à animalidade), de crueldade e indeterminado. A cesárea se dá pela reprodução dos procedimentos, onde o protagonismo deixa de ser da mulher e passa a ser do médico. Isso tudo está envolvido também por toda uma gama de fatores exteriores, mas que incidem diretamente sobre tal processo. A questão da previsibilidade desencadeia em uma organização do tempo, ao qual a parturiente e o bebê estão submetidos, e que está muito mais envolvido em adequar tal momento às necessidades do mercado, da agenda médica, ou seja, ao modelo de pensamento do Estado, do que a saúde e a necessidade de mãe e filho10. O que era para ser um recurso tornou-se uma regra na história atual. O caráter programado da cesárea é o que implica na sua semelhança ao modelo de pensamento do Estado. Já o parto normal possibilita muito mais o protagonismo de mãe e bebê, no sentido de que ambos estão conectados ao tempo em outras circunstâncias. Aqui o médico, ou a equipe médica, encarregam-se muito mais em seguir a paciente do que em reproduzir nela técnicas e procedimentos calculados. A parturiente, por sua vez, tem adquirido muito mais liberdade de movimentação durante o parto, adequando tais posições às suas necessidades. O bebê também tem papel importante nesse momento, visto que é ele quem dá os sinais do momento de seu nascimento, ou seja, ele produz sua saída, juntamente ao corpo da mãe. O que queremos salientar aqui é que os afetos, a experiência e o devir

10 Não queremos criar juízos sobre a cesárea, ou inferiorizá-la com relação ao parto normal. Nosso intuito aqui é unicamente o de pensar as relações que ambos os processos de parir, podem ter com os modelos de pensamento aos quais aludimos neste texto. É fato notório que a cesárea deixou de ser um procedimento vinculado a casos de emergência para tornar-se rotineiro. Algumas implicações disso podem ser vista no documentário: O renascimento do parto de Érica de Paula e Eduardo Chauvet. https://www.youtube.com/playlist?list=PLY-hZtX_CwE2_gUty9eDobebBH925Ttm0.

120 O ensino e a filosofia da ciência

que se dão no parto normal, são de outra gênese, e que não podem ser comparados ao processo da cesárea programada. Como dissemos, a Máquina de Guerra relaciona-se por devires, e mantém dessa forma outras relações com a mulher, com os animais e com o território.

Poderíamos aqui salientar inúmeros outros pontos que poderiam nos fornecer maior relação entre os modelos de pensamento e estes dois procedimentos, mas a questão principal é pensar o papel da ciência nesse contexto. Nos dias atuais podemos perceber uma busca grande de famílias que recorrem a tratamentos alternativos11, para tratar seus filhos, bem como um aparente e crescente interesse pelo parto normal. De todo modo, é possível pensar que a ciência régia, em nossa atualidade, está cada vez mais sendo colocada em questão e um dos principais vetores que levam a esse questionamento, ao nosso ver, se dá principalmente pelas relações que vieram se formando em torno da criança e destas junto à família, baseadas justamente em relações de afetos e de experimentação, muito mais do que em reproduções e induções. No entanto, não devemos sustentar romantismos em torno disso, visto que ao mesmo tempo, a atuação da ciência régia, que possui autonomia e certificação científica, ainda produz inúmeras verdades sobre a infância que visam diluir ou negativar os demais procedimentos que não se adequem às premissas desta, ou antes, se utiliza destes, adequando-os às suas necessidades e aos seus limites.

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11 Um exemplo que gerou e ainda gera muito escândalo social é o que usa a cannabis para tratar crianças com problemas de autismo e epilepsia, bem como uma revolta pela vacinação e a busca pela não vacinação ou a busca por tratamentos homeopáticos, os quais poderiam ser vinculados à ciência nômade.

X

MAQUIAVEL E A ‘NATUREZA’ DO PODER POLÍTICO DA IMAGEM DE PRÍNCIPE E A RETÓRICA DO

FUNDAMENTO

Gabriel Allan Drehmer Gonçalves* José Luiz Ames**

PALAVRAS-CHAVE: Poder; Imagem; Retórica; Virtù. 10.1 INTRODUÇÃO

A produção da imagem é um dos pontos centrais da reflexão maquiaveliana acerca do bom funcionamento do Estado tendo em vista a centralidade do poder. Essa compreensão da importância do conceito de imagem do príncipe enuncia o modo como o autor entende os mecanismos de poder, atentando para os fatores que permeiam o jogo político. Maquiavel empreende a análise das qualidades deste que está à frente da coisa pública na medida em que constrói uma moral que atua em sentido político1. Neste sentido, a construção da imagem evidencia aquilo que é próprio ao ser do político e que reside em seu cerne. Em outras palavras, ao falar da imagem principesca, Maquiavel nos permite a reflexão acerca do conceito geral de poder político.

Pensando no poder a partir da ótica do príncipe, Maquiavel situa seu leitor sob a perspectiva do ator político em sentido integral. Pensando no poder conjugado à moral da virtù, Maquiavel destoa da tradição na medida em que permite-nos entender o exercício do poder a partir da regra da necessidade. A necessidade atuante na forma das contingências que permeiam o âmbito da política é o mote para a ação

* UNIOESTE – Toledo; [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE 1 Maquiavel inverte os polos da relação entre moral e política. Diferentemente do que se entende convencionalmente, para Maquiavel, a política não atua como algo decorrente de um planejamento moral prévio. Para Maquiavel, a moral não é a priori, mas atua posteriormente de acordo com a convenção política. Desta forma, o autor se desprende da responsabilidade de explorar a política pelos meios teológicos, dedicando-se exclusivamente à análise do funcionamento do Estado.

122 O ensino e a filosofia da ciência

do príncipe e, portanto, para a produção da imagem. Produzir a imagem significa gerar uma visão de si que reflita a pessoa do príncipe como signo de bondade, é usar das contingências para, assim, justificar o exercício do poder de acordo com a aceitação popular, gerando a legitimação. Desta forma Maquiavel atrela à ação política seu entender acerca da moral do príncipe. O príncipe de virtù, portanto, diferente daquele que responde pelo essencialismo moral, não é senão aquele que molda o real em sentido ilusório, atuando em consonância com os interesses do Estado ao mesmo tempo que gera a aceitação legitimadora.

O valor universal do que nos ensina Maquiavel quando fala do poder enquanto fruto da manutenção operada pela produção da imagem principesca é, portanto, o substrato disto que ganha a mídia cotidianamente. Ao falar da figura do príncipe Maquiavel enuncia toda forma de conduta deste(s) que detém o poder. A partir do pensamento do autor florentino podemos vislumbrar o âmbito próprio da ação política, desmistificando qualquer moralismo que porventura possa deturpar o sentido próprio do jogo político, tolhendo o senso crítico. Daí, pois, a pertinência inalienável da análise de Maquiavel para que reflitamos acerca do nosso próprio meio de vivência. Deste modo vemos, pois, como o autor florentino se mostra fértil e pertinente não só academicamente, mas em sentido prático, por assim dizer, na medida em que lança um ‘raio-x’ no ser do político, permitindo-nos uma visão mais perspicaz e digna deste meio que está no centro de todo convívio social.

A pertinência do presente artigo se esboça pela importância da compreensão dos elementos que formam a imagem como fundamento do poder político para entender as demais relações implícitas no pensamento maquiaveliano. Assim, pois, entendendo a dinâmica que confere legitimidade a ação do um, prevemos a possibilidade de, lançado mão dos demais componentes do jogo político, entendermos também a relação que se dá no todo do pensamento do autor. Enquanto método de análise, propomos a leitura crítica da obra de Maquiavel dividindo as atenções em dois momentos referentes às duas maiores obras do autor, a saber, O príncipe, onde focamos nossa atenção na noção de construção da imagem e do exercício do poder, e os Discursos, onde empreendemos a análise do modo como Maquiavel entende o momento da fundação do Estado, tendo em vista a elucidação destes conceitos que mais tarde se revelarão em relação interdependente, dando condições para que possamos compreender o pensamento de Maquiavel acerca do tema proposto com mais clareza. Portanto, nossa problemática vai de

Maquiavel e a ‘natureza’... 123

encontro aos dois momentos da obra maquiaveliana no sentido de tomar como fruto da análise aquilo que nos servirá para a construção conceitual necessária ao entendimento claro do que o autor florentino entende por poder político, sua produção e manutenção de acordo com a retórica e a produção da imagem. 10.2 MAQUIAVEL E A TRADIÇÃO ÉTICO-NORMATIVA

Maquiavel é tido como um pensador “ponte de transição”. Muitas vezes taxado de imoral, Maquiavel operou uma inversão conceitual no sentido usual da política e sua conotação moral. Ao evidenciar a ‘verdade efetiva da coisa’, como diz o autor, Maquiavel vai de encontro aos dogmas metafísicos que serviam de fundamento para o sistema feudal. Sedimentado nos estudos teológicos, o dogma cristão tinha como mote central a criatura humana como signo do Ser divino. Assim, pois, para a política do medievo, a ação do príncipe estava vinculada à essência humana, sendo ligada a ela de tal modo que os atos do político e o Ser próprio que representa o âmbito da política diziam respeito exclusivamente a formação religiosa e, por meio dela, moral de um povo guiado pela vontade divina expressa nas ações do príncipe em consonância com os estudos teológicos. O príncipe era então formado pelo clero para que atuasse dignamente em relação à sabedoria residente nas escrituras sagradas. A moral ativa, exigida pelo povo em vistas de um bom governo, era, então, uma perspectiva destes acerca da conduta do príncipe. Desta forma vemos esboçar-se o meio no qual faziam-se presentes os espelhos de príncipe, livros de conduta ética e moral que serviam para guiar o representante junto ao que era tido como certo e errado, indo da moral à política em uma via unilateral.

Tendo em vista a tradição filosófica, a pertinência da moral no âmbito político se faz presente de forma ainda mais incisiva. Para Aristóteles, patrono da academia na baixa idade média, o saber filosófico atuava de modo sistêmico, onde a derivação das premissas morais decorria do saber que servia de fundamento para o real. Assim, para Aristóteles a verdade em si era uma questão moral uma vez que dizia respeito à busca pelo conhecimento filosófico que, por sua vez, levava em conta uma conduta rumo ao bem comum. Assim como em Platão o conhecimento verdadeiro só é possível por meio do vislumbre acerca do Bem maior, em Aristóteles, a política só poderia ser bem gerida quando em consonância com a essência racional, e depois política, do ser

124 O ensino e a filosofia da ciência

humano. Para o Estagirita, política e conhecimento moral são duas faces da mesma moeda, esta que desponta pelo estudo do real em sentido metafísico. Com a retomada da filosofia aristotélica sob os auspícios da igreja católica, o pensamento moral acerca da política ganha novos ares junto à interpretação tomista da filosofia clássica. Para Tomás de Aquino, o ser do príncipe é como o comandante da nau que deve conduzir o povo a Deus de forma excelente. Em todo caso, com a derrocada da influência clerical no meio político e com as revoluções sociais e científicas, os velhos dogmas são postos em xeque nos vários âmbitos em que se fazia presente, da cosmologia à política. É neste contexto, pois, que Maquiavel empreende sua crítica precedida por Marcílio de Pádua, distanciando a essência dogmática da política na medida em que denuncia a verdade a partir da qual efetivam-se os jogos políticos.

Assim, pois, Maquiavel parte de uma nova conceituação de verdade, a verdade efetiva em política, para lançar as bases de uma nova forma de pensar que é precedida pelo funcionamento do Estado enquanto expressão da manutenção do poder político, sendo a moral uma derivação deste na medida em que é usada para a validação da legitimidade pela produção da imagem principesca. Maquiavel reformula as premissas para a análise filosófica em política, invertendo as relações entre moral e política enquanto empreende a crítica ao seu tempo que ecoa em sentido universal até hoje, sobretudo a partir de sua obra mais conhecida, a saber, O príncipe. 10.3 O PODER E A VERDADE: DA EFETIVIDADE DO POLÍTICO IMAGÉTICO

O poder político em Maquiavel está conjugado àquilo que o autor chama de “verdade efetiva da coisa”. A verità maquiaveliana diz respeito ao todo das relações políticas e enquanto método de análise nos leva a pensar o homem, matéria que fundamenta a realidade política, como uma mediania amoral em sentido prático. Ou seja, destituindo o homem de sua essência racional aos moldes essencialistas, Maquiavel enxerga o jogo político pela ótica da necessità, onde a coesão se dá pelo exercício do poder, tendo em vista a lógica da ação política.

A lógica da ação política, segundo Adverse em sua obra Política e Retórica, se fundamenta no exercício da produção da imagem principesca. Por imagem do príncipe Maquiavel entende o ser do político a partir da

Maquiavel e a ‘natureza’... 125

dualidade ser/parecer. Mas disto não decorre que haja uma metafísica escondida no pensamento do autor florentino. Muito pelo contrário, para Maquiavel a filosofia que permeia o âmbito do pensamento acerca da política diz respeito ao que chamaríamos provisoriamente de fenomenologia do político, onde o existente irredutível assume o devir como expressão de si mesmo. Assim, pois, a produção da imagem não é um subterfúgio que esconde uma realidade verdadeira, mas a própria realidade do jogo político em si mesma. Neste sentido, o Ser do príncipe funciona como um simulacro que se baseia na produção da aparência no intuito de sustentar-se junto ao jogo político a partir da interdependência entre o povo e seu governante. O povo é, pois, o parâmetro de ação do príncipe. Desta forma Maquiavel conjuga o ser do príncipe à vontade popular num jogo de alianças que dá forma e coesão ao Estado.

Para explicitar a interdependência entre príncipe e povo é pertinente que tenhamos em mente o capítulo IX de O Príncipe. Nele Maquiavel segue sua análise do poder principesco tratando da fundação do Estado a partir do principado civil. Para tal, o autor empreende a crítica aos modos de angariar reputação, tendo em vista tanto a influência dos grandes quanto do povo. Para Maquiavel, um ponto de vista estratégico tende para a aliança popular como baluarte fundamental para a manutenção do poder. Como diz o autor, o povo deseja não ser oprimido, sendo este desejo negativo em contraste com a ganância dos grandes a moeda de troca que gera o elo entre príncipe e povo, o primeiro fazendo-se necessário e o segundo usufruindo do conforto do Estado propiciado pela liberdade em sentido político tal como entendida por Maquiavel2.

O autor florentino trata de mostrar-nos, pois, que a reputação do príncipe se assegura melhor junto ao povo pelo fato dele, o povo, filiar-se ao príncipe movido por um desejo de não opressão. Assim, pois, ao filiar-se ao povo, o príncipe deve assegurar-lhe o conforto na medida que se utiliza da imagem de bom e justo, fazendo-se necessário frente aos grandes. Duas citações do capítulo referente nos evidenciam a importância da aliança popular e a necessidade de fazer-se presente:

2 Maquiavel entende a liberdade política a partir dos conceitos provenientes da medicina galênica, onde o equilíbrio que gera a saúde do corpo humano advém da constância entre a tensão de duas forças em oposição. Para Maquiavel, as forças que compõem o jogo político gerando a tensão necessária ao exercício do poder são divididas majoritariamente entre grandes e povo, esses representando a o caráter irredutível da tensão social.

126 O ensino e a filosofia da ciência

Quem se torna príncipe mediante o favor do povo deve manter-se seu amigo, o que é muito fácil, uma vez que este deseja apenas não ser oprimido. Mas quem se torna príncipe contra a opinião popular, por favor dos grandes, deve, antes de mais nada, procurar conquistar o povo (MAQUIAVEL, 1991. p. 40).

Segue o autor: “Conclui-se daí que um príncipe prudente deve

cogitar da maneira de fazer-se sempre necessário aos seus súditos e de precisarem estes do Estado; depois, ser-lhe-ão sempre fiéis” (MAQUIAVEL, 1991. p.42). Na primeira citação vemos o destaque fundamental que Maquiavel dá ao elemento popular, sendo este a matéria inalienável que leva ao bom funcionamento do Estado. Como diz o autor, mesmo quando ascende ao poder pela graça dos grandes, deves angariar a amizade do povo, pois sem este estará fadado ao fracasso. Logo na segunda citação o autor florentino destaca a importância do fazer-se necessário, criando um gancho para a temática proposta posteriormente, a saber, da produção da imagem.

Fazer-se necessário, pois, o princípio de efetivação do poder político, trazendo consigo a tarefa de construir uma imagem principesca baseada na interdependência que une o povo e seu governante. Vemos então como Maquiavel esboça o seu entender acerca do exercício do poder, estando este conjugado a uma fenomenologia do político que renuncia a coisa em si típica do pensamento clássico para assim assumir o fenômeno como puro devir, pura contingência. A necessidade atua como condição de possibilidade, enquanto matéria e instrumento para o poder. A produção da imagem, como veremos, responde por alguns elementos que quando conjugados atuam como uma peça teatral, fundando o campo político a partir de uma noção cara a Maquiavel, o inganno. Ao falar da visibilidade como âmbito do ser político, Adverse diz:

Dessa forma, o ator político, o príncipe, se deseja ver suas aspirações realizadas, se vê obrigado a conformá-las às regras da visibilidade. O popolo, por outro lado, exige do ator que aparente determinadas qualidades para que seu próprio desejo seja \ satisfeito, o que nos permite concluir que não apenas o príncipe assegura seu domínio na e com a aparência, mas também o povo se constitui como tal a partir do estabelecimento dessa dimensão da visibilidade. (ADVERSE, 2009, p. 51)

Maquiavel e a ‘natureza’... 127

Vemos, pois, como o jogo de alianças se faz presente já na produção da imagem em sentido legitimador. Ao falar da centralidade do poder, Maquiavel nos situa sob a perspectiva do inganno para que, em termos de verdade efetiva, possa mostrar-nos que a manutenção do poder responde por uma noção análoga a forma teatral, evidenciando o papel da construção da imagem principesca que confere legitimidade e, portanto, a estabilidade necessária para a coesão do Estado a partir daquilo que o autor entende enquanto liberdade política sob os conceitos que lhe são próprios quando empreende a análise dos humores conflitantes. Desta forma, a imagem atua como via de mão dupla na medida em que assegura o poder e dá vazão aos desejos populares expressos na vontade de não opressão, resultante do jogo de interesses. Neste sentido, um Estado saudável é aquele que prevê a necessidade da ação e canaliza os desejos populares de acordo com o que o popolo espera acerca da conduta do governante. Desta forma, a moral responde pela ação política quando trata de evidenciar o papel do governante. Para Adverse:

A figura daquele que ocupa o lugar de poder é imantada de certos símbolos, de sinais, de signos. O lugar do príncipe é um lugar simbólico, e a força de que ele dispõe para governar os súditos depende de sua capacidade de manipular os signos, de dar vida a eles, isto é, de representar. Por isso o ator político vale (o juízo do olhar é um juízo valorativo) o que representa, jamais ‘por ele mesmo’, isto é, seu ser político se esgota na representação e sua virtù está ligada a sua capacidade de representar, no sentido teatral, e de se fazer representante de algo (daquilo que os cidadão esperam dele, ou seja, que ele representa a garantia da satisfação de seus desejos): a autoridade de que vai dispor o príncipe depende especialmente do juízo que os homens fazem dele e, é preciso lembrar, os homens sempre fazem um juízo. (ADVERSE, 2009, p. 55)

Como Adverse trata de deixar claro, a figura do príncipe deve ser

tal que sirva de analogia a consecução do desejo popular. Assim, pois, o príncipe deve servir-se do engano na mesma medida em que é enganado, compondo o todo da realidade política em termos de aparência. O príncipe deve ser signo da liberdade e o povo, por sua vez, a matéria legitimadora, ambos em relação interdependente.

128 O ensino e a filosofia da ciência

10.4 A IMAGEM DA RETÓRICA E O FUNDAMENTO

Outro momento singular e de extrema importância para a análise do funcionamento do poder político consta no capítulo dois do livro primeiro dos Discursos. Nele Maquiavel trata de ilustrar aquilo que entende por poder político como expressão do ato fundador. Elencando a importância da necessità, Maquiavel ilustra o momento fundador como instância de efetivação da virtù, sendo esta a expressão da capacidade de angariar autoridade que, transferida para aquilo que vem a ser a imagem de príncipe, fundamenta e faz surgir de si aquilo que não prevemos. Em outras palavras, a importância da análise do ato fundador é tal que nos lega uma perspectiva rica e que permite que entendamos nesta passagem da obra de Maquiavel aquilo que pode ser o elemento nuclear que guiará sua reflexão acerca do poder político. Assim consta na obra:

Quem ler a história do princípio da cidade de Roma e da forma como tudo foi ordenado e por quais legisladores, não se admirará de que tanta virtù se tenha mantido por vários séculos naquela cidade; e de que depois tenha surgido o império que aquela república atingiu. E, para discorrer antes sobre seu nascimento, direi que todas as cidades são edificadas, ou pelos homens nascidos no lugar onde são edificadas, ou por forasteiros. O primeiro caso ocorre quando os habitantes, dispersos em muitas e pequenas partes, percebem que não poderão viver seguros, visto que cada um por si não poderia resistir ao ímpeto de quem os assaltasse, seja pelas feições do locas, seja por serem em pequeno número , e não teriam tempo de unir-se para a defesa diante da chegada do inimigo; ou mesmo, em havendo tempo, precisariam abandonar muitos de seus redutos, vindo assim a tornar-se presa fácil para os inimigos: de tal modo que, para escaparem a esses perigos, movidos por si mesmos ou por alguém dentre eles com mais autoridade, se reúnem para morar juntos, em lugar escolhido por eles, lugar que seja mais cômodo para se viver e mais fácil de se defender. (MAQUIAVEL, 2007, p. 8)

Percebemos, pois, que ao discorrer sobre o princípio de Roma e

ao falar sobre a edificação nativa de uma cidade, Maquiavel coloca como motor da ação a necessidade que se estabelece tanto no nível do homem comum quanto na autoridade conferida. É com base nas exigências necessárias ante o perigo que a autoridade ganha voz na figura de um unificador, um agente político capaz de legitimar a ação pela própria necessidade. Portanto, tendo em vista o momento do ato fundador

Maquiavel e a ‘natureza’... 129

enquanto ocasião de inserção da forma na matéria, tal como consta no capítulo um do livro primeiro dos Discursos, percebemos como a manutenção do poder se dá juntamente com a permanência que tem como mote a reputação angariada na ocasião que se apresenta ao homem de virtù, o fundador tal como entendido por Maquiavel. A reputação é a semente da autoridade que se sustenta no devir e que se expressa pelas contingências que moldam os tempos e o tecido daquilo que chamamos realidade política. Assim, pois, a manutenção do estado de coisas vem como correlato do ato que se perpetra a partir do momento de fundação enquanto expressão da virtù. É no momento da fundação que se dá o fato singular na história de um Estado, ou seja, é no ato fundador que o um lega aos muitos aquilo que ele mesmo possibilita a partir da própria reputação, sendo este reconhecimento o motor para a atuação interdependente que move o Estado de acordo com a vontade popular expressa na imagem do príncipe. Em síntese, a resposta para a pergunta pelo que mantém o estado de coisas é perpassada pela noção de imagem como canal de realização daquilo que postumamente entende-se por realidade política, sendo a imagem a consonância entre o juízo do olhar e do tocar, ou seja, é a imagem realizada pelo exercício da retórica o elemento nuclear que de si possibilita a realidade política em sentido geral. Deste modo percebemos como se cruza e interliga o Maquiavel de O Príncipe e o Maquiavel republicano dos Discursos. É na análise do ato fundador que percebemos o elemento chave que leva à interpretação dos atos de governo elencados por Maquiavel em O Príncipe quando fala da conduta do monarca. Neste sentido, pois, buscamos entender a correlação entre estes conceitos intrincados que enunciam o pensamento de Maquiavel em seu cerne, permitindo-nos transcender sua obra na medida em que compreendemos seu pensamento como um todo. Buscamos compreender, pois, qual o papel do governante desde o momento da fundação até a manutenção e permanência do poder político, tendo como aparato conceitual a imagem principesca, tal como entendida por Maquiavel, e aquilo que permite sua produção, ou seja, a retórica do fundamento que conduz à reputação e a glória, elementos estes que compõem a relação íntima entre o interesse do Estado e a figura do governante.

A questão que esboçamos, pois, assume seu caráter essencial na busca pelo fundamento político traduzido na ação do príncipe entendida pelos conceitos supracitados. Para empreendermos a análise do pensamento do autor, elencamos o papel do governante como ponto

130 O ensino e a filosofia da ciência

chave para a compreensão deste conceito central em Maquiavel, a saber, o poder político tal como entendido pela verdade efetiva elencada pelo autor em sua obra mais notória. Dos preceitos para a construção da imagem em O Príncipe ao momento fundador tal como ilustrado nos Discursos, a questão que levantamos nos leva a perguntar-nos acerca do estatuto do poder político. Perguntamo-nos, pois, acerca do fundamento do pensamento maquiaveliano sob a luz daquilo que o autor entende por política em sentido filosófico. Entendendo desta forma, percebemos como para Maquiavel a política não pode ser pensada para além do jogo teatral que lhe convém quando observamos as movimentações próprias de cada momento histórico, sendo ela, a política, expressão da condução do poder de acordo com os tempos, fundando-se na produção da imagem e mantendo seu estado vital pela autoridade conferida. O que nos resta, pois, é a tentativa de responder como se dá a manutenção do poder político a partir da reputação angariada pela retórica do político. Buscamos entender os elementos que permeiam e permitem a construção da imagem de príncipe para, assim, chegarmos finalmente àquilo que Maquiavel entender por poder político.

10.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atentando para a natureza do trabalho que em germe se configura enquanto proposta de dissertação, chegamos a uma conclusão que deixa em aberto a proposta textual no presente artigo. Deixando de lado o contexto bibliográfico, o decurso conceitual que pretendemos esboçar sobre aquilo que será o trabalho em sua formatação final vai desde o contraste de Maquiavel para com a tradição escolástico/humanista, centrando nossos esforços em determinar a partir de Tomás de Aquino o solo a partir do qual Maquiavel irá erigir sua crítica, usando dessa metodologia como pedra de toque para enunciarmos a base do pensamento maquiaveliano segundo a política entendida em sua efetividade. Em outras palavras, é pelo contraste entre o pensamento transitório de Maquiavel em relação a tradição precedente que buscamos estabelecer como senso comum para o trabalho sua perspectiva conceitual tipicamente policêmica, ou seja, onde os conceitos não respondem mais por um normativismo prescritivo, mas por uma análise descritiva da realidade tal como se apresenta. Depois, dando sequência ao trabalho, buscamos elucidar aquilo que é próprio do então projeto, o conceito de poder que traz consigo uma percepção típica do

Maquiavel e a ‘natureza’... 131

político enquanto imagético, destacando-se por meio do olhar crítico acerca da natureza e dos mecanismos da produção da imagem e do lugar da retórica nos momentos chave elencados por nós da obra maquiaveliana. Assim, esperamos poder esboçar preliminarmente nosso entendimento ainda parcial do que será completado no trabalho dissertativo, visando pela apresentação do conteúdo a abrangência da pesquisa e o enriquecimento da mesma pelo diálogo e a crítica da comunidade acadêmica. REFERÊNCIAS Primárias MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe e escritos políticos. Tradução de Lívio Xavier. 5ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

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XI

META-ÉTICA DA CONSCIÊNCIA: FUNDAMENTAÇÃO DE UMA ÉTICA QUÂNTICA A PARTIR DA PERSPECTIVA NEOPLATÔNICA DE AMIT GOSWAMI

Ronaldo de Oliveira*

José Francisco de Assis Dias** PALAVRAS-CHAVES: Consciência; Física Quântica; Ética; Metaética. 11.1 INTRODUÇÃO

Amit Goswami nasceu dia 04 de novembro de 1936 na Índia. É formado em física e, nos dias de hoje é considerado um dos físicos mais importantes que se propõe integrar ciência e espiritualidade. Obteve seu doutorado em física nuclear teórica pela Universidade de Calcutá, na Índia, em 19641. Professor titular no Instituto de Ciências Teoréticas da Universidade de Oregon, EUA, durante 32 anos. Tem se destacado com seus trabalhos em física quântica que propõe uma ponte entre a espiritualidade e a ciência através do paradigma “Ciência dentro da Consciência” (GOSWAMI, 2009, p. 9).

Mesmo após se aposentar na Universidade de Oregon, continua em atividade intelectual até aos dias de hoje fazendo palestras, conferências, workshops, escrevendo artigos e livros, tanto no Brasil como em outros países. Ele propõe uma abordagem diferente da ciência e da espiritualidade a partir de uma interpretação idealista monista da física quântica. Segundo o professor Amit, a realidade possui um fundamento único que é a consciência. Nesse tocante, sua teoria contrasta com o materialismo científico e com o dualismo que são fortes na pesquisa científica desde a revolução científica moderna até os dias atuais.

* PPGFil – Mestrando, UNIOESTE – Toledo-PR; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected] 1 http://www.revistaplaneta.com.br/a-economia-espiritual-de-amit-goswami/

134 O ensino e a filosofia da ciência

O professor Amit tem vários artigos e obras publicadas. As suas

principais obras publicadas são “A Física da Alma” (2001), “Criatividade para o Século XXI”, O “Ativista Quântico” (2010), “Quantum Mechanichs” (1991), sendo esta obra utilizada em cursos introdutórios em física quântica; “A Janela Visionária” (2000), “O Médico Quântico” (2004), “O Universo Autoconsciente” (1993), “Evolução Criativa das Espécies” (2008), “Deus não está Morto” (2008), “Science within consciousness”2 (1994) dentre outras. O Doutor Amit Goswami se tornou mundialmente conhecido ao participar e expor suas ideias no filme “Quem somos nós?”3 (2004). 11.2 NOÇÕES GERAIS SOBRE A FÍSICA QUÂNTICA

A física quântica é uma abordagem que foi estruturada a partir da primeira metade do século XX e que investiga o micromundo, o mundo dos átomos e as leis que o regem. Foi iniciada com a pesquisa de Max Planck, em 1900, com seu trabalho, juntamente com outros colaboradores – Carbaum e Rubens – sobre a radiação emitida por um corpo negro (HEISENBERG, 1995, p.28). Percebeu-se que o comportamento dos átomos é bem diferente do comportamento do macrocosmo e da maneira que habitualmente o ser humano lida com ele. A realidade atômica, por ser diferente do macrocosmo, não pode ser estudada satisfatoriamente a partir das leis físicas clássicas (física newtoniana).

A física quântica possui um conjunto de leis que não são intuitivas pelo senso comum. Para interpretar um fenômeno quântico de maneira coerente requer uma mudança de paradigma, visto que a mentalidade clássica não é compatível com os eventos quânticos. Heisenberg (1995), um dos cientistas do século XX que formulou a interpretação ortodoxa da física quântica, diz que “foi na teoria quântica que ocorreram mudanças fundamentais no que diz respeito ao conceito de realidade”. A realidade quântica é bem distinta da realidade pensada na física clássica. Contudo, antes de Max Planck formular uma explicação, por meio de uma fórmula matemática que recebe seu nome para a radiação emitida por um corpo negro, Thomas Young fez, em 1801, um experimento chamado de dupla fenda. Nesse experimento há

2 Ciência dentro da Consciência. 3 What the Bleep Do We Know?

Meta-ética da consciência... 135

algo que intriga a compreensão da realidade. Ao lançar partículas (elétrons) minúsculas sobre uma fenda feita em um equipamento que está posicionado entre o ponto de lançamento e uma tela fluorescente, observou-se que na tela foi mostrada apenas uma linha que registrou o posicionamento dos elétrons que passaram pela fenda. Mas ao se abrir mais uma fenda, portanto, dupla fenda, observou-se que na tela fluorescente houve o registro da presença de elétrons em lugares compatíveis a algo que possui comportamento semelhante ao de onda.

Amit Goswami (2003, p. 92-100), comentando o experimento da dupla fenda, afirma que os objetos apresentam uma dualidade onda-partícula. Os elétrons quando passam pelas fendas se comportam como onda, podendo formar um padrão de interferência construtiva e/ou um padrão de interferência destrutiva. Mas quando o observador quer saber por qual fenda os elétrons passaram, eles comportam-se como partículas passando por uma única fenda. Esse comportamento de onda e partícula no nível quântico é denominado de princípio da complementaridade e foi formulado por Niels Bohr.

Os fenômenos quânticos podem ser descritos como ondas de probabilidades. Quem sugeriu essa descrição dos eventos quânticos como ondas de probabilidade foi também Niels Bohr (HEISENBERG, 1995, p. 36). Pode-se dizer, segundo Amit Goswami, que a probabilidade de um elétron chegar a certos pontos é alta e que é baixa a probabilidade de um elétron chegar a outros pontos da tela fluorescente (2003, p. 95). Diante do exposto já se tem uma característica da teoria quântica: os objetos quânticos têm probabilidade de se manifestarem. A condição necessária para que um objeto quântico se manifeste, segundo Amit Goswami, é a observação feita por um ser consciente. No caso da experiência da dupla fenda, o observador influencia no comportamento do elétron como onda ou partícula. Ao escolher a dupla fenda, o observador colapsa o comportamento dos elétrons como onda; ao preferir uma fenda única, colapsa-se o comportamento de partícula dos elétrons. Conforme o experimento adotado pelo pesquisador, o elétron se comporta como partícula ou como onda, mas não ambas juntas.

Heisenberg elucidou o chamado princípio da incerteza, segundo o qual não se pode medir simultaneamente com grande precisão as grandezas complementares como posição e velocidade:

De fato, o produto das duas imprecisões, em suas medidas, resultou não ser menor que a constante de Planck dividida pela massa da

136 O ensino e a filosofia da ciência

partícula. Relações análogas foram igualmente formuladas para outras situações experimentais. Todas elas são usualmente chamadas de relações de incerteza, diferentes instâncias do princípio de indeterminação. (HEISENBERG, 1995, p. 37)

O formalismo matemático da física quântica opera

fundamentalmente usando a probabilidade e por essa razão um fenômeno possível tem probabilidade de acorrer no domínio físico, mas não há certeza de que isso vai acontecer. A probabilidade gera dúvidas, incertezas. Certas ocorrências têm mais chances de se manifestarem que outras em determinadas posições (GOSWAMI, 2003, p. 59).

Na teoria quântica interpretada pela Escola de Copenhague, os objetos quânticos são calculados como ondas e interpretados com o formalismo da matemática probabilística – função de onda de Schrödinger. Entre o colapso de um evento quântico e outro há a descontinuidade e o salto quântico que são modos fundamentais de objetos quânticos se comportarem. Outro aspecto fundamental da teoria quântica é a inseparabilidade. Um sistema quântico só se manifesta na realidade se for perturbado por um observador que colapsa uma faceta dentre as facetas quânticas possíveis. Não há realidade manifesta se não houver a presença consciente de um observador. Por isso, os objetos quânticos e o observador consciente são inseparáveis (GOSWAMI, 2003, p. 68).

11.3 A CONSCIÊNCIA UNA E CÓSMICA

A consciência é o postulado admitido para uma compreensão dos fenômenos quânticos na filosofia desenvolvida pelo Amit Goswami. Para esse autor, a consciência é o agente da causação descendente, ou seja, é ela quem escolhe uma faceta dentre os eventos quânticos possíveis (GOSWAMI, 2009, p. 38). Na física quântica, os objetos quânticos são ondas de possibilidades, ou seja, há probabilidade de alguma faceta vir a ser no espaço-tempo. Essa característica de vir a ser ou de possibilidade, Aristóteles chamou de Potência. Esse conceito foi retomado por Heisenberg (1995) para se referir ao domínio das possibilidades quânticas. Mas quem escolhe qual potência deve se tornar realidade? É a consciência. Escolher é o mesmo que colapsar. Somente quando há uma escolha consciente é que algo possível pode se manifestar na realidade (GOSWAMI, 2009, p. 38).

Meta-ética da consciência... 137

Que consciência é essa? De acordo com a teoria desenvolvida por Goswami a consciência possui três características reveladoras que exclui paradoxos lógicos e ainda possui a propriedade de causar o colapso quântico. A primeira propriedade da consciência é ser a base de toda a existência; a segunda, “essa consciência que escolhe é unitiva, não-local” e é a mesma para todos os seres sencientes; a terceira, a consciência, quando colapsa, se torna autorreferente, isto é, cria a dicotomia sujeito que experiencia e o objeto que é experienciado como sendo separado do sujeito (GOSWAMI, 2009, p. 39). A escolha é efetivada não pela “consciência-ego cotidiana, mas por um estado não comum de consciência – que se pode chamar de consciência quântica” (GOSWAMI, 2009, p. 39). O que faz com que a consciência quântica não seja percebida na vida cotidiana e que todos se veem como egos individuais é o condicionamento. O indivíduo se identifica com algum padrão de hábitos que responde aos estímulos que provoca uma identificação conhecida também como ego. O ego limita o indivíduo a responder aos estímulos conforme aquilo que foi aprendido no passado. O condicionamento limita a liberdade de escolha das infinitas possibilidades quânticas, favorecendo respostas em conformidade com o ego (GOSWAMI, 2009, p. 40).

A consciência quântica fica obscurecida pelo ego, mas continua atuando mesmo com os condicionamentos (GOSWAMI, 2009, p. 41). Os condicionamentos oferecem a impressão de que tudo o que acontece segue rigorosamente o determinismo causal, isto é, que há continuidade de um acontecimento para o outro, de uma escolha a outra. Explicando melhor nas palavras de Goswami (2009, p. 41), “na consciência do ego, a escolha é restrita a alternativas condicionadas: ela emana do passado, e a continuidade parece reinar”. Mas seguindo a teoria aplicada à física quântica, a consciência quântica escolhe de maneira descontínua e criativa, opera por saltos quânticos, sendo em si livre e criativa.

A consciência seria um postulado arbitrário? A consciência é subjetiva ou objetiva? Diante de paradoxos quânticos esse postulado é consistente e oferece solução elegante e coerente. No caso do “experimento mental” do gato de Schrödinger, o paradoxo de quem escolhe – se o gato está meio vivo ou meio morto – é resolvido aplicando a posição metafísica de que “a consciência é a base de toda existência” e de que a observação consciente é essencial para a escolha e para a causa do colapso do estado quântico do gato (GOSWAMI, 2009, p. 45), pois “a consciência que escolhe é cósmica e unitiva,

138 O ensino e a filosofia da ciência

transcendendo a individualidade” (GOSWAMI, 2009, p. 46). Sendo assim, a consciência quântica é objetiva.

A consciência quântica é não-local e unitiva. Amit fundamenta essa tese no experimento de laboratório realizado por Grinberg-Zylberbaum (1994). Duas pessoas meditam juntas por um tempo com a intenção de se correlacionarem, isto é, de estabelecerem um conexão não-local. Após 20 minutos elas são separadas e postas em gaiolas de Faraday – espaços protegidos de sinais eletromagnéticos. Com aparelhos de eletroencefalograma são medidas as ondas cerebrais das duas pessoas enquanto fazem a experiência. A uma das pessoas é mostrada uma série de sinais luminosos que provocam atividades elétricas no cérebro que são registradas no EEG – essas atividades elétricas são chamadas de potencial evocado. Apesar da distância e do isolamento, aparece um potencial semelhante na pessoa correlacionada que não viu os sinais luminosos. Goswami então conclui que “se o potencial elétrico pode ser transferido de um cérebro para outro sem qualquer sinal, deve existir uma conexão não local entre eles” (GOSWAMI, 2009, p. 47) e, portanto, é a consciência unitiva e não local que medeia a interação entre os cérebros correlacionados (MARTINS, 2009, p. 305). 11.4 EM BUSCA DE UMA ÉTICA QUÂNTICA

Ao admitir a Consciência cósmica e unitiva como o pressuposto

de toda a realidade, surgem inquietações sobre como o ser humano pode agir, se comportar, decidir de maneira coerente com os princípios da teoria quântica. Se a realidade é resultado de uma medição quântica realizada por um observador, e o ser humano é um observador por excelência, pode-se concluir, por analogia, que a realidade presente foi colapsada pelos seres humanos. O ser humano está inserido numa realidade física, natural, que é regida pelas leis físicas. Mas também é um ser cultural, de vontade, de escolha. Nesse aspecto, o ser humano é construtor de valores, de referências que orientam o agir. Em outras palavras, ele desenvolve a ética, um modo de viver, de se comportar em relação a si, ao outro e à natureza. Diante disso, a ética tem como objetivo o que é o correto, o bom (GOSWAMI, 2003, p. 302).

Como seria uma ética quântica? A primeira condição para estabelecer uma ética quântica é admitir que a realidade não é um todo estático, perene. Tudo em seu nível mais sutil e fundamental é constante mudança, é movimento, como teoricamente sugerem David Bohm

Meta-ética da consciência... 139

(2008), Fritjof Capra (1983, 1996). Perceber que há um fluxo contínuo de alterações na natureza em sua estrutura atômica e o ser humano imerso nele, pode sugerir que a busca pelo controle, dominação de algo ou alguém, não é senão uma atitude mental que desafia a própria natureza. Outra condição é postular que há uma Consciência Una e cósmica como base do ser. Ela é transcendente e causa o colapso da função de onda por meio do aparato cérebro/mente. Tudo acontece na consciência e é ela quem medeia as possibilidades para que se tornem realidade imanente.

A ética é uma prática interna intencional com reflexo externo. A Consciência Una e Cósmica opera basicamente por probabilidade realizando alguma possibilidade que está sobreposta num evento quântico quando não há a intencionalidade4. Sendo assim, numa ética quântica deve presumir que cada indivíduo humano é uma individuação de um mesmo ser, a Consciência, que se desdobrou em busca da realização de suas potencialidades. A intenção deve aspirar à realização do propósito criativo5 da Consciência.

Outra condição em busca de uma ética quântica é reconhecer os condicionamentos que impedem o ser humano de perceber a ação da Consciência quântica. Mediante o exame dos comportamentos condicionados (que criam o ego), o indivíduo é capaz de optar por um comportamento ético mais adequado e criativo frente ao postulado da Consciência Una sem se apegar ao fruto de sua ação. (GOSWAMI, 2003, p. 308).

A ética quântica exige que a Consciência se expanda na expressão e realização de suas infinitas possibilidades. A ação intencional se desdobra em serviço aos demais. Nessa visão, prestar serviço aos demais – altruísmo –, é servir à única consciência e, portanto, se configura como um dever. Servir aos demais é uma prática que supera a força do eu condicionado, mas não o exclui. Busca-se o bem de todos ouvindo o chamado do dever, e como a consciência é a causa do dever, “atende ao chamado de maneira direta e imediata”, assinala Goswami (2003, p. 308). A consequência de uma ética quântica será de “renunciar ao ego em troca da modalidade quântica”, do eu quântico (GOSWAMI, 2003, p.

4 Vale ressaltar que para correlacionar dois cérebros e fazê-los se comunicarem não localmente é a intenção dos meditadores. Portanto, entre os seres humanos a intenção é um princípio significativo. 5 Através do salto quântico a criatividade quântica ou fundamental manifesta possibilidades no mundo material por meio do colapso.

140 O ensino e a filosofia da ciência

308), que torna o indivíduo, de fato, livre e criativo. Esse estágio coincide com a ética da vida boa, pois é quando o indivíduo se torna livre e criativo e tem uma ação apropriada – porque segue a intuição quântica para além do ego, e o resultado dessa atitude será a alegria. Nesse aspecto Goswami escreve que

[...] a definição da boa vida como busca da felicidade muda gradualmente para uma vida de alegria. A busca contínua de prazeres transitórios cede a um viver estável, fácil, sem esforço na totalidade, embora a vida seja uma vida de serviço. (2003, p. 309)

11.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A física procura descrever a realidade como ela é. A ética trata de como o ser humano dever ser. Sabe-se que logicamente a física e a ética têm objetos de investigação distintos. No entanto, nesse trabalho, a ética e a física são tomadas como conceitos interdependentes.

A física quântica é o paradigma de realidade tomado para pensar a ética nesse trabalho. A realidade física e a ação humana devem ser tomadas como um todo interconexo, pois a decisão humana interfere não somente naquilo que é humano, mas também na ordem cósmica como um todo quando se admite a Consciência Cósmica Una como postulado. A física quântica descreve a realidade como infinitas possibilidades. As possibilidades se tornam imanentes por intermédio do observador consciente que escolhe e, consequente, colapsa uma possibilidade dentre todas. Sendo assim, a ética quântica deve orientar o indivíduo sobre como colapsar uma realidade que amplie a experiência do “eu quântico”, do eu não condicionado.

Tudo acontece na consciência. Agir bem, nessa perspectiva, é agir em prol da expansão da consciência individualizada superando os condicionamentos limitadores que impedem o ser humano de perceber a ação da Consciência cósmica e Una. Sendo assim, a meta-ética da consciência é a autoconsciência. A autoconsciência é a percepção de si como uma consciência individuada condicionada que aspira a realização de um propósito cósmico. Ao se dar conta de si e dos limites impostos pelos valores, crenças, e outros condicionantes, a pessoa pode colapsar possibilidades mais condizentes com sua expansão de percepção da realidade de maneira livre e criativa. A liberdade e a criatividade fundamental se encontram no nível do “eu quântico”.

Meta-ética da consciência... 141

Portanto a meta-ética da consciência tem a incumbência de ser um exame criterioso sobre tudo aquilo que vela e esconde o eu quântico. Uma vez desvelado, o eu quântico deixa que a consciência cósmica se encarregue de colapsar as possibilidades que propicie saltos quânticos na consciência individualizada. REFERÊNCIAS BOHM, David. Totalidade e a Ordem Implicada. São Paulo: Madras, 2008.

CAPRA, Fritjof. O Tao da Física: Um Paralelo Entre a Física Moderna e o Misticismo Oriental. São Paulo: Cultrix, 1983.

________. A Teia da Vida: Uma Nova Compreensão Científica dos Sistemas Vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.

GOSWAMI, Amit. O Universo Autoconsciente: como a consciência cria o mundo material. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2003.

_______. A Física da Alma. São Paulo: Aleph, 2005.

_______. Evolução Criativa das Espécies: uma resposta da nova ciência para as limitações da teoria de Darwin. São Paulo: Aleph, 2009.

HEISENBERG, Werner. Física e Filosofia. Brasília: UNB, 1995.

MARTINS, Paulo N. T. P. A Mecânica Quântica e o Pensamento de Amit Goswami. 2009. 340 p. Tese (Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2009.

142 O ensino e a filosofia da ciência

XII

TEMPO E ETERNIDADE NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO

Fernando Lucas John*

José Francisco de Assis Dias** PALAVRAS-CHAVE: Tempo; Eternidade; Santo Agostinho. 12.1 INTRODUÇÃO

Agostinho, assim como quase todos os pensadores de sua época,

e de certa forma, todos os filósofos ao longo de toda a história da Filosofia, pensaram e buscaram responder razoável e logicamente o problema do tempo e da eternidade. Qual a relação entre o tempo e a eternidade, de onde e quando passou a existir o tempo, no que consiste o tempo, qual a sua definição? Estas questões e muitas outras ocuparam a mente de nosso pensador por longo período. Tentou ele dar cabo a este problema filosófico quando em sua obra Confissões refletiu e explicou ou primeiros versículos do livro do Gênesis.

A reflexão agostiniana do tempo se inicia pela pergunta: “o que fazia Deus antes da criação?”. Deus sendo perfeito não pode estar sujeito a mudança alguma, até mesmo de vontade, e Agostinho precisava então explicar de que forma Deus cria, sem cair no risco de declarar as “coisas” criadas como co-eternas com Deus ou declarar Deus um ser que muda de vontade, ora não era criador e logo depois passou a sê-lo. 12.2 A VONTADE DE DEUS

Não é verdade que estão ainda cheios de velhice espiritual

aqueles que nos dizem:

* UNIOESTE – Toledo/PR; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

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O que fazia Deus antes de criar o céu e a terra? Se estava ocioso e nada realizava – dizem eles – por que não ficou sempre assim no decurso dos séculos, abstendo-se, como antes, de toda a ação? Se existiu em Deus um novo movimento, uma vontade nova para dar o ser a criaturas que nunca antes criara, como pode haver verdadeira eternidade, se nele aparece uma vontade que antes não existia? (AGOSTINHO, 2015, p. 300)

A vontade de Deus não é uma criatura; está antes de toda a criatura, pois nada seria criado se antes não existisse a vontade do Criador. Essa vontade pertence à própria substância de Deus. Se alguma coisa surgisse na substância de Deus que antes lá não estivesse, não podíamos, com verdade, chamar a essa substância eterna. Mas, se desde toda a eternidade é vontade de Deus que existam criaturas, por que razão não são as criaturas eternas? (AGOSTINHO, 2015, p. 300)

Observa-se então a grande crise em que se coloca Agostinho,

como pode Deus criar? E, se cria eternamente, como podem as criaturas não serem também eternas? Quando o autor trata então do tema do tempo, da temporalidade e da eternidade, na verdade busca dar resposta a um problema que é primeiramente teológico, ou seja, como pode um Deus perfeito criar, passar de um momento precedente onde não é Criador, para um momento posterior em que é Criador, porém sem alterar em si nada, pois a perfeição exige imutabilidade. Conclui que tudo o que Deus faz é eterno, simultâneo, imutável, pois se assim não o fosse, Deus não seria perfeito e a eternidade não existiria. O filósofo parece então declarar uma não comunicação, uma incompatibilidade de comparação de medição entre tempo e eternidade:

Assim nos convidais a compreender o Verbo, Deus junto de vós que sois Deus, o qual é pronunciado por toda a eternidade e no qual tudo é pronunciado eternamente. Nunca se acaba o que estava sendo pronunciado, nem se diz outra coisa para dar lugar a que tudo se possa dizer, mas tudo se diz simultânea e eternamente. Se assim não fosse, já haveria tempo e mudança e não verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade. (AGOSTINHO, 2015, p. 298)

Tempo e eternidade... 145

12.3 TEMPO E ETERNIDADE Tempo e eternidade podem ser entendidos no pensamento do

autor como duas realidades praticamente antagônicas, ou seja, o tempo “é” apenas fora da eternidade. A eternidade não está e nem pode ser pensada ou concebida no tempo de forma perfeita, mas somente por analogias imperfeitas. Deus, na medida em que cria todas as coisas, cria também o tempo, e este é também criatura divina, que passa a existir de maneira conjunta com a totalidade do criado. Deus está totalmente fora do tempo, e esta atemporalidade chama-se de eternidade, portanto, as criaturas estão sujeitas ao tempo e Deus está fora dele, está “na eternidade”:

[...] Quem o poderá prender e ficar para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo que nunca pára? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos momentos passageiros. Ora, estes não podem alongar-se simultaneamente. Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente. (AGOSTINHO, 2015, p. 301)

Portanto, observa-se que uma das diferenças mais importantes

entre o tempo e a eternidade é o fato de que a eternidade nunca passa, nunca muda, é sempre estática, imóvel; o tempo, por sua vez, é sempre mutável, nunca é fixo, é sempre móvel. Esta diferença impossibilita que tempo e a eternidade possam ser comparados ou aproximados, pois de que forma se pode comparar algo que nunca é fixo com algo que é imóvel? Qual parâmetro poderia ser utilizado para tal comparação? Isso não é possível, não há maneira de confrontar tempo e eternidade. Segundo a afirmação de Agostinho, aquele que dedica seu esforço a meditar sobre o tempo percebe que “todo o passado e futuro são criados e emanam daquele que sempre é presente” (AGOSTINHO, 2015, p. 301). Assim, existe uma dependência da temporalidade para com a eternidade, que é o que é permanente, o eterno que dá espaço e mantém o que é transitório em sua existência; tudo necessariamente culmina em Deus, e essa dependência do tempo com relação ao eterno abre espaço para que o autor e todo ser humano possa experienciar e encontrar dentro de si a eternidade da qual o tempo “participa”.

146 O ensino e a filosofia da ciência

Agostinho, no livro XI da sua obra Confissões se depara com

questões metafísicas de como Deus criou o mundo? O que Deus fazia antes do mundo ser criado? etc. Mas a questão que é pertinente para Agostinho diz respeito ao tempo: o que é o tempo?

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem poderá apreendê-lo, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido em nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que se nada sobrevivesse não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existia o tempo presente, (AGOSTINHO, 2015, pp. 303-304)

De início, como que se falasse para si mesmo, o filósofo acaba

por “confessar” que se ninguém o questionasse a respeito do tempo, ele saberia perfeitamente o que o tempo “é”, mas quando é preciso dar uma resposta à questão ele não consegue “conceituar o tempo”, ou seja, se depara com um abismo entre a experiência de tempo que cada homem tem, e a capacidade de conceituar esta experiência ou de determiná-la em palavras. Da afirmação acima depreende-se a primeira concepção de tempo derivado do pensamento agostiniano. Agostinho entende o tempo como algo experimentado pelo sujeito, de maneira que não pode ser definido ou categorizado. O tempo “é” na medida em que os homens “são”. Existe o tempo enquanto existem os homens temporais, ou seja, o tempo foi “criado” ou “passou a ser” de maneira conjunta ao mundo. Se o tempo existe é porque as coisas acontecem no mundo e acontecem não ao mesmo tempo. Se as coisas não acontecessem, não haveria tempo, pois não existiria o que se “medir com o tempo”, portanto, o tempo é a medida atribuída à duração das coisas acontecendo. A não simultaneidade dos acontecimentos é também uma questão imprescindível para a existência do tempo. Se todas as coisas acontecessem ao mesmo tempo, não existiria o “antes” e o “depois”, ou seja, tudo seria presente, e se tudo fosse presente, não existiria o tempo, pois àquilo que é somente presente denominamos “eternidade”.

Para Agostinho, a eternidade é um presente que não se torna passado, um continuo “é”, pois Deus “é”. Dito isto, Agostinho agora

Tempo e eternidade... 147

afirma que antes de Deus criar o tempo, ele não existia, pois o tempo só passa a existir depois de criado por Deus. Porém, são inconcebíveis questões como: o que fazia Deus antes de criar o mundo? O mundo é eterno? Estas questões, já em suas formulações, estão incorretas, visto que não existe “antes”; é o tempo que fornece esta concepção de “antes” e “depois”; se não há tempo, como pode haver passado e futuro? Para Agostinho:

Sendo, pois, Vós, o obreiro de todos os tempos – se é que existiu algum tempo antes da criação do Céu e da Terra – por que razão se diz que vos abstínheis de toda a obra? Efetivamente fostes Vós que criastes esse mesmo tempo, nem ele podia decorrer antes de o criardes! Porém, se antes da criação do Céu e da Terra não havia tempo, para que perguntar o que fazíeis então? Não podia haver então, onde não havia tempo. (AGOSTINHO, 2015, pp. 302-303)

Para o filósofo, se a eternidade é o presente que não se torna

passado, o tempo pode ser definido como um presente que tende a ser passado. E o que tende a ser passado é o que é efêmero, transitório, passageiro, ou seja, só tende a ser passado o que é criado. 12.4 O PONTO DE VISTA HUMANO

Do ponto de vista humano é impossível pensar em um tempo

onde não havia tempo, pois é ilógico; mas em Deus é assim, ele criou todos os tempos, todas as coisas, e antes de haver criado tudo, não havia tempo, não havia nada. Parece que Agostinho assume uma posição cética no que diz respeito a possibilidade de conhecer o tempo de maneira ontológica, ou seja, estando nós na temporalidade, sujeitos à mudança e a passagem do tempo, nós não conseguimos defini-lo e entendê-lo de maneira plena, isto é possível somente a Deus, que está na eternidade, cuja visão e ciência é perfeita. Para resolver este infortúnio, o autor busca explicar a origem e a definição do tempo por outra via, a psicológica. Assim, busca refletir sobre o tempo de maneira subjetiva, isto é, o tempo como pertencente a cada ser humano, pois é notável que o tempo passa de maneira diferente quando se está feliz ou se está triste, quando se está em uma festa ou em um velório.

O primeiro passo dado pelo autor é buscar esclarecer as concepções de tempo e suas divisões entre passado, presente e futuro. Ele se questiona de que modo o tempo passado, futuro e presente “são”,

148 O ensino e a filosofia da ciência

e se eles existem verdadeiramente no mundo ou são construções da alma humana. Para Agostinho:

Quem se atreveria a dizer-me que não há três tempos, conforme aprendemos na infância e ensinamos às crianças: o pretérito, o presente e o futuro? Existirá somente o presente, visto que os outros dois não existem? Ou eles também existem, e então o tempo procede algum retiro oculto, quando de futuro se faz presente? Entra o tempo em outro esconderijo quando o presente se faz passado? Onde os adivinhos viram as coisas futuras que vaticinaram, se elas ainda não existem? Efetivamente não é possível ver o que não existe. E os que narram fatos passados, sem dúvida não os poderiam veridicamente contar, se não os vissem com a alma. Ora, se esses fatos passados não existissem, de modo nenhum poderiam ser vistos. Existem, portanto, fatos futuros e pretéritos. (AGOSTINHO, 2015, p. 307)

Para Agostinho “o tempo não é o movimento dos corpos”

(AGOSTINHO, 2015. p. 315). Esta afirmação é muito importante, pois ela afasta-se da noção comum de tempo como movimento. O tempo não pode ser resultado do movimento, porque o que “é” (o presente) não se move, é estático; no presente as coisas são. No momento em que se olha para a água, ela simplesmente “é”; o movimento surge apenas na relação entre o que é presente e o que não é presente (o passado) ou a forma pela qual a água se apresentava no momento que já não é mais (passado). De forma mais simples, a água é água a cada tempo, mas ela não é a mesma água em todos os momentos; a esta “diferença” chama-se “movimento” e este movimento é medido pelo tempo na medida em que o observamos. Porém, não é ele próprio o tempo, pois se o movimento fosse igual ao tempo, as coisas estáticas jamais passariam e não poderíamos dizer que algo em repouso permaneceu em repouso por determinado tempo.

Voltando à questão da divisão do tempo em: presente, passado e futuro, Agostinho busca refletir sobre a possibilidade da existência destes “três tempos”. É possível a existência do passado? É possível a existência do presente? É possível a existência do futuro? Ele passa, então, a depurar esta concepção trinitária do tempo, demonstrando que o passado nada mais é do que a “presentificação do que já foi”; o presente é a “presentificação do presente” e o futuro é a “presentificação do que não é”. Mas existe o tempo passado e futuro na natureza? Aqui surge a diferenciação entre o tempo do mundo e o tempo da alma:

Tempo e eternidade... 149

O que agora claramente transparece é que nem há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três. (AGOSTINHO, 2015. p. 310)

Para Agostinho, o tempo do mundo é sempre latente, não para,

não muda, é consecutivo, indiviso, um constante vir-a-ser que tende ao não ser (passado). O tempo da alma, ao contrário, é interno ao homem, de modo que através da memória o homem consegue tornar presente o que já foi, ou seja, através da atenção torna presente o presente e através da expectativa torna presente o que não é. Existe, portanto, “dois tempos”: o tempo do mundo, que consiste em um presente que sempre tende ao passado, pois caso não se tornasse passado seria a eternidade; e o tempo da alma, que consegue sintetizar em si, e somente em si, a presentificação do não-ser do passado e do futuro:

Pareceu-me que o tempo não é outra coisa senão distensão; mas de que coisa o seja, ignoro. Seria para admirar que não fosse a da própria alma. Portanto, dizei-me, eu vô-lo suplico, meu Deus, que coisa meço eu, quando declaro indeterminadamente: “Este tempo é mais longo do que aquele”. [...] Sei perfeitamente que meço o tempo, mas não o futuro, porque ainda não existe. Também não avalio o presente, pois não tem extensão, nem o passado que não existe. Que meço eu então? O tempo que presentemente decorre e não o que já passou? Assim o tinha dito eu. (AGOSTINHO, 2015, p. 317)

Para Agostinho, a duração das coisas está na alma. Ela confere a

duração temporal das coisas, ou seja, é a alma que é capaz de estabelecer o que é um “tempo longo” do que é um “curto tempo”; visto que no mundo nada dura, tudo é transitório, tudo é presente tornando-se passado, não há memória no mundo nem expectação. Desta forma, não há presentificação do passado e do futuro como existe na alma; a duração do “tempo mundano” é sempre a mesma, isto é, a alma é capaz de dizer o que passa depressa ou o que passa demoradamente:

150 O ensino e a filosofia da ciência

Em ti, ó meu espírito, meço os tempos! Não queiras atormentar-me pois assim é. Não te perturbes com os tumultos das tuas emoções. Em ti, repito, meço os tempos. Meço a impressão que as coisas gravam em ti à sua passagem, impressão que permanece, ainda depois de ela ter passado. Meço-as, a ela enquanto é presente, e não àquelas coisas que se sucederam para a impressão ser produzida. É a essa impressão ou percepção que eu meço, quando meço os tempos. Portanto, ou esta impressão são os tempos ou eu não meço os tempos. (AGOSTINHO, 2015, p. 319)

12.5 DISTENSIO ANIMAE

O tempo, portanto, é a distensão da alma; nós medimos o tempo

de acordo com a atenção que damos às impressões que passam, ou seja, as impressões que cada “coisa”, cada objeto grava em nós. Assim fica explicado psicologicamente de que modo podemos dizer que um tempo é breve ou longo, e de que forma podemos dizer que passado e futuro existem. O passado existe enquanto presentificado pela memória e o futuro enquanto expectação daquilo que ainda irá acontecer; tudo isto ocorre subjetivamente na alma e pela via subjetiva Agostinho chega a uma definição ontológica, que já foi mencionada acima, a de “distensão da alma”, ou seja, o tempo é um desdobramento, uma capacidade da alma humana, de a tudo tornar presente, o que já não é e o que ainda não foi. O que dizemos ser um passado longo deveria ser dito como uma longa lembrança do passado, e o que chamamos de futuro longo deveria ser chamado de longa expectação do futuro. Já o presente não pode ser longo, nem breve, ele não possui extensão, é captado pela atenção; o presente é sempre contínuo, indivisível. Assim, o tempo presente não pode ser dito como “um segundo”, “um milésimo de segundo”, ou qualquer uma das subdivisões que comumente são utilizadas para medir o tempo; ele é indiviso, pois se o presente fosse dividido em vários fragmentos, o tempo seria composto de várias “eternidades”, isto porque a eternidade, como dito ao longo do texto, é o presente que não passa, o eterno hoje, o eterno ser. Assim, se o tempo fosse dividido em partes, essas partes seriam eternidades, pois ela é presente, e isso é inconcebível, ilógico, portanto, não é possível delimitar o presente.

Tempo e eternidade... 151

12.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Agostinho o tempo é criação de Deus e existe nos homens e para os homens (pois é o tempo extensão da alma do homem). Existe nos homens porque é a alma a portadora da capacidade de memória, de expectação e de atenção, ou seja, de conceber a “presentificação do passado”, a “presentificação do presente” e a “presentificação do futuro”. Desta forma, o tempo passa a ser uma experiência da eternidade, pois a alma a tudo “presentifica” e a eternidade é o presente que não passa, por isso é também “para os homens”, no sentido de que aquele que, segundo Agostinho, entra em seu interior através da meditação, buscando descobrir o que é o tempo, acaba por contemplar a eternidade divina. Em suma, possuir esta característica de “presentificar” o tempo, a alma do homem é capaz de fazer com que ele realize de maneira pessoal uma experiência da eternidade, do Eterno, na qual, um dia poderá participar de maneira mais completa. REFERÊNCIAS BAZAGLIA, Paulo (Dir.). Bíblia de Jerusalém. 5ª Ed. São Paulo: Paulus, 2008.

COSTA, Marcos Roberto Nunes. A teoria da Criação, segundo Santo Agostinho. Ágora Filosófica. Ano 7, nº 1, p. 7-26, jan/jun. Recife, 2007.

CREMONA, Carlo. Agostinho de Hipona: A fé e a razão. Trad. Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes, 1990.

HIPONA, Agostinho. Confissões. 6 ed. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

HIPONA, Agostinho. A Graça (I). Trad. Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998.

______. A Graça (II). Trad. Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1999.

LAMERA, Bruna Silva. O problema do mal na filosofia de Santo Agostinho. Filogenese. Vol. 1, nº 1, p. 208-215, Maringá, 2008.

152 O ensino e a filosofia da ciência

MECONI, David Vincent e STUMP, Eleonore (Org.) Agostinho. 2 ed. São Paulo: Ideias e letras, 2016.

RÊGO, Marlesson Castelo Branco do. Liberdade e graça em Santo Agostinho. Àgora Filosófica. Ano 7, nº 1, p. 129-158, jan/jun. Recife, 2007.

XIII

APOLO E DIONISO EM NIETZSCHE: O contributo de Schopenhauer e de Wagner para o aparecimento dos conceitos de

Apolíneo e Dionisíaco no pensamento filosófico de Nietzsche

Ademir Menin* PALAVRAS-CHAVE: Schopenhauer; Wagner; Nietzsche; apolíneo; dionisíaco. 13.1 INTRODUÇÃO

O presente texto será introduzido por uma breve exposição

biográfica de cada autor envolvido nessa discussão, ou seja, Schopenhauer, Wagner e Nietzsche. O intuito de tal introdução de contextualizar a discussão o melhor possível, dando mais fluidez aos argumentos tratados.

Arthur Schopenhauer viveu entre 1788 e 1860. A sua obra principal é "O mundo como vontade e representação", com a qual não teve um sucesso imediato, mas só no final da vida, através da publicação da obra "Parerga e Paralipomena", na qual trata temas variados, inclusive um longo ensaio sobre os espíritos e sobre o mundo onírico, que será importante para esse debate.

Richard Wagner foi um genial compositor alemão que viveu entre 1813 e 1883. É mais popular através das suas óperas dramáticas que exaltam o espírito alemão. Porém, escreveu também muitos ensaios sobre a música, como por exemplo, "Beethoven". Revolucionou o modo de propor o teatro musical dramático, pretendendo o renascimento da tragédia grega na Alemanha contemporânea.

Friedrich Nietzsche viveu entre 1844 e 1900. A sua profícua produção filosófica iniciou-se na década de 1870, pois antes disso dedicava-se à filologia, sendo professor em Basiléia, na Suíça. A sua obra é vasta não só pelo volume de escritos que deixou (mais de 10 obras

* Professor colaborador da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do Paraná; e-mail: [email protected]

154 O ensino e a filosofia da ciência

publicadas em vida), mas também pela quantidade de temas que abordou durante a sua atividade intelectual. Muitos dos seus escritos foram publicados postumamente. Um dos temas importantes do filósofo é justamente a questão objeto desta tratativa. 13.2 APOLÍNEO E DIONISÍACO

Os conceitos de apolíneo e dionisíaco são de fundamental

importância não só para que se compreenda Nietzsche em relação à sua teoria estética, mas também para a compreensão das fontes que influenciaram o pensamento do filósofo, ao menos no primeiro período da sua produção filosófica, a qual compreende justamente a composição da obra “O nascimento da tragédia” (1872). A importância desse tema para a pesquisa filosófica é evidenciada pela sua relevância enquanto uma tentativa de esclarecimento do conhecimento que advém através da experiência artística. A filosofia não pode subtrair-se à busca da compreensão desse importante manancial de conhecimento e experiências humanas, pois, do contrário, estaria excluindo uma parte fundamental da aventura humana na atual configuração cósmica.

Nietzsche traz à reflexão filosófica contemporânea as concepções gregas de um mundo artístico regido por dois princípios aparentemente opostos: a concepção apolínea e aquela dionisíaca. Principalmente em "O nascimento da tragédia" e em "A visão dionisíaca do mundo", propõe as duas concepções fazendo uma análise da arte, desde a Grécia Antiga até o século XIX. É no mundo grego que o filósofo procura apoiar a sua reflexão para encontrar uma resposta ao mal-estar do homem moderno e contemporâneo, analisando o fenômeno da arte não como um lenitivo para a existência humana, mas como algo que acentua ainda mais essa potência da natureza, ou seja, a Vontade cega e não individualizada das forças do cosmos. O ponto de partida de Nietzsche é a obra trágica wagneriana: das obras musicais e teóricas desse importante musicista alemão são intuídas as concepções de apolínio e dionisíaco que, depois, serão desenvolvidas e alimentadas, buscando fundamentação na própria fonte primordial desses dois conceitos, que é a cultura grega antiga. Porém, deve-se entender também que Wagner toma esses conceitos da filosofia schopenhaueriana. Aí, portanto, coloca-se o ponto chave desse estudo, isto é, o quanto Nietzsche foi influenciado por Schopenhauer e por Wagner nesse tema específico aqui proposto como objeto de aprofundamento, isto é, as concepções de apolíneo e de dionisíaco

Apolo e Dioniso... 155

aplicadas à arte moderna e contemporânea e o quanto essa mesma arte influencia na conscientização e resolução do mal existencial do século XIX.

Para chegar a entender a filosofia de Nietzsche relacionada a esses dois conceitos de apolíneo e dionisíaco, analisar-se-á a concepção de mundo schopenhaueriana, pois foi Schopenhauer quem influenciou Wagner na sua concepção de música como materialização da aventura onírica humana. Pode-se dizer que Nietzsche é influenciado, nesse ponto, indiretamente por Schopenhauer, enquanto que Wagner foi diretamente influenciado por ele e Nietzsche toma de Wagner o ponto de partida para iniciar a sua reflexão sobre o mundo de um ponto de vista apolíneo e dionisíaco.

Na obra "O nascimento da tragédia" (1872), Nietzsche se propõe a analisar a arte e a vida em geral baseando-se nas concepções mitológicas gregas do deus Apolo e do deus Dioniso. Pode-se dizer que essa obra é um claro distanciamento de Nietzsche em relação à filosofia de Schopenhauer, ou seja, a referida obra é anti-schopenhaueriana. Enquanto que em Schopenhauer a arte é um lenitivo para a vida humana mergulhada no mar dos conceitos, fazendo com que, por um momento, os conceitos fiquem suspensos, para Nietzsche isso não ocorre, pois a arte, principalmente a música trágica, acentua ainda mais esse aspecto trágico da vida humana.

Na sua obra principal (O mundo como vontade e representação – 1818/19), Arthur Schopenhauer propõe uma hierarquia das artes, conforme a importância de cada uma como lenitivo do mal-estar do ser humano. Nesse sentido, como o mundo em geral é uma “Vontade” cega e o ser humano é escravo dos conceitos, ou seja, do 'principium individuationis', a proposta do filósofo é que existem duas vias para que o ser seja suspenso das amarras dos conceitos e viva uma vida segundo a Vontade, ainda que por poucos e breves momentos. Essas duas possibilidades são a via estética e a via ascética. Apesar de Schopenhauer considerar a via ascética como a melhor e a mais duradoura, o que interessa aqui é a primeira via, aquela ligada ao mundo das artes em geral.

No terceiro livro de "O mundo como vontade e representação", depois de ter exposto nos dois primeiros livros a sua concepção de mundo, Schopenhauer indica a via estética como uma suspensão momentânea do ser humano em relação ao mundo dos conceitos, os quais prendem e sufocam o ser. A representação é essa prisão que subjuga o ser obrigando-o a viver uma vida sempre alerta e destacada das

156 O ensino e a filosofia da ciência

forças da natureza. Por outro lado, tem-se a Vontade, que é essa força cega do mundo e que faz com que o ser viva em harmonia com a natureza. A arte, portanto, tem o poder de dar um momento de paz ao ser; mas não são todas as artes que conseguem fazer isso; ou, ao menos, não todas conseguem suspender o domínio dos conceitos do mesmo modo. De fato, Schopenhauer propõe uma escala das artes, segundo o poder que cada uma tem de proporcionar ao ser um “desligamento” em relação aos conceitos. Tal escala ou pirâmide tem como base a arquitetura e como topo a música; todas as outras artes colocam-se em uma certa altura de tal escala, conforme a potencialidade de proporcionar ao ser humano um momento de fuga do mundo das representações.

Em ordem ascendente, pode-se dispor as artes do seguinte modo: arquitetura, escultura, pintura, poesia e música. Muitas outras artes poderiam preencher essa escala de maneira mais completa. Para formular essa escala das artes, Schopenhauer segue o critério da natureza mesma, nos seus vários modos de ser da matéria: reino mineral, reino vegetal, reino animal e ser humano. Nesse sentido, a arquitetura é mais ligada à natureza mineral e ao “peso” da matéria, enquanto que a música, que se encontra no outro extremo da escala, está mais ligada à “leveza” da matéria e proporciona uma ligação direta com a Vontade mesma, anulando momentaneamente o principium individuationis. A via estética em Schopenhauer dá ao ser uma suspensão momentânea do jugo dos conceitos. A via ascética, ao invés, dá uma solução permanente a esse problema. Nesse ponto vê-se claramente o componente budista na sua filosofia, devido à grande simpatia do filósofo em relação à religião-filosofia oriental, pois foi um grande estudioso dessa visão de mundo e um dos poucos filósofos “ocidentais” a se interessarem pelo modo oriental de pensar o mundo. Essa proposta é expressa no quarto livro da sua obra principal. No entanto, não é o que interessa nessa pesquisa.

A reflexão filosófica schopenhaueriana sobre as artes em geral, mas principalmente sobre a música, influenciaram enormemente o compositor alemão Richard Wagner. Este percebeu que poderia colocar em ato, através das suas habilidades como musicista, aquilo que Schopenhauer propôs na sua teoria estética sobre a música. Seria possível colocar em prática a filosofia de Schopenhauer através das composições operísticas, proporcionando aos apreciadores de música esse direto contato com a “Vontade” mesma do mundo, deixando de lado o mundo das representações. Desse modo, no que diz respeito à criação musical, principalmente no tocante às óperas, Wagner é schopenhaueriano. O

Apolo e Dioniso... 157

musicista alemão tenta instaurar um renascimento da cultura alemã através da música e o faz buscando inspiração na filosofia de Schopenhauer e tentando reintroduzir a tragédia grega clássica no seu tempo. Através das suas obras teóricas, principalmente em Beethoven, Wagner propõe esse modelo artístico musical, tomando sujeitos da cultura alemã e fazendo uma reconstrução em veste moderna da grande tragédia grega. Entre outras coisas, foi construído um teatro especificamente para a apresentação das óperas de Wagner em Bayreuth, pois as dimensões da sua orquestra exigiam mais espaço para a acomodação e organização de toda a parte cenográfica, incluindo os musicistas da orquestra. Schopenhauer não teve tempo de ver todo esse processo artístico que ocorreu através do gênio de Wagner, ao menos não na sua completude, pois morreu em 1860. Mas esta teria sido a ocasião tão almejada pelo filósofo, a de ver a sua filosofia estética colocada em prática.

Nietzsche, por sua vez, que era concorde inicialmente com a filosofia estética de Schopenhauer, logo se distanciou desta por ver que na tragédia grega e na ópera wagneriana, acontecia justamente o contrário do que dizia Schopenhauer. A música abre uma porta que faz com que o ser humano dê ainda mais vazão à “força bruta” da natureza e, ao invés de trazer uma suspensão em relação às preocupações e problemas do ser, o coloca ainda mais em crise e faz acordar nele a angústia da vida nesse mundo. Nesse ponto, ao contrário de Schopenhauer, o qual pretende anular a vida nesse mundo através da suspensão dos conceitos pela da arte, Nietzsche, com a retomada dos conceitos gregos de apolíneo e dionisíaco, demonstra que a arte reaviva o ser e o torna ainda mais ativo nesse mundo: o que a filosofia nietzschiana propõe é uma afirmação da vida em toda a sua potência, ao contrário de Schopenhauer, o qual propõe uma anulação da vida mesma.

Wagner baseou-se nos escritos de Schopenhauer para propor a sua visão de mundo através da música. O texto principal, porém, que inspirou o exímio compositor foi principalmente a longa exposição que Schopenhauer faz sobre o mundo onírico em Parerga e Paralipomena, ou seja, propriamente o ensaio sobre os espíritos. Alguma coisa nesse sentido tem-se também, no parágrafo 5 de “O mundo como vontade e representação”. Na música de Wagner, tem-se essa tentativa de colocar em ato esse material onírico através das artes e, em modo particular, através da música.

158 O ensino e a filosofia da ciência

Nesse sentido, pode-se dizer que Shopenhauer foi um

“mediador”, ou seja, influenciou muitos outros pensadores e artistas com o seu pensamento, seja positivamente ou negativamente. No caso de Nietzsche, o qual escreveu um encômio a Schopenhauer com o seu “Schopenhauer como educador”, tem-se um primeiro momento da sua experiência filosófica em que ele aceita e faz seu o pensamento do autor de Parerga e Paralipomena; e um segundo momento, em que ele “se envergonha” de ter-se deixado influenciar e procura uma via de fuga para propor um novo modo de ver a arte. Desse modo, Nietzsche, logo nos primeiros anos da sua carreira filosófica, procura distanciar-se do modo de ver o mundo de Schopenhauer e de Wagner, para dedicar-se a uma nova/antiga concepção de mundo: o apolíneo e o dionisíaco. Em tal direção, Nietzsche torna-se um anti-schopenhaueriano. Essa característica pode ser notada nitidamente em “O nascimento da tragédia”, na qual o filósofo toma consciência de que se faz necessário aprofundar o argumento e estabelecer uma diferenciação entre os dois mundos: o apolíneo, dominado pelo dado onírico e que se materializa no mundo das artes plásticas, pois Apolo é o deus da razão, da ordem; e o mundo dionisíaco, dominado pela embriaguez e pela música, culminando na música-drama, visto que Dioniso é o deus do vinho, da alegria, da música e de um modo de vida mais “despreocupado” em relação à ordem. 13.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desse ponto de vista, Nietzsche parece ser mais incline à

visão de mundo greco-latina. De fato, existe uma forte tendência a “latinizar” o filósofo alemão e de interpretá-lo cada vez mais sob os refletores da cultura latina. Essa é a tentativa de uma certa corrente de interpretação nietzschiana que vem tomando consistência na Itália e que já é conhecida como escola italiana, a qual preza muito o estudo das fontes de leitura onde Nietzsche apoiou a sua argumentação. Importantes expoentes dessa escola são G. Colli, M. Montinari e G. Campioni, dentre outros. Essa escola vem trazendo à luz muitos aspectos, ainda obscuros, do pensamento nietzschiano através de um certo abandono do método tradicional, o qual privilegia a visão germânica do autor.

Apolo e Dioniso... 159

REFERÊNCIAS NIETZSCHE, F. O caso Wagner. Trad.: Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

______. Wagner em Bayreuth. Trad.: Paulo César de Souza, São Paulo: Zahar, 1999.

______. Nietzsche contra Wagner. Trad.: Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

_______. A visão dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. Introdução à tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

______. Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

______. Schopenhauer come educatore. A cura di Mazzino Montinari e giorgio Colli. Milano: Adelphi, 2009.

______. La nascita della tragedia. Roma-bari: Laterza, 2010.

SCHOPENHAUER, A. Il mondo come volontà e rappresentazione. A cura di Sossio Giametta (edizione bilíngue: tedesco-italiano). Milano: Bompiani, 2006.

______. Parerga e Paralipomena, Trad. Giorgio Colli, Milano: Adelphi, I e II tomo, 2007.

______. Sulla volontà nella natura. Trad. Sossio Giametta, Milano: BurRizzoli, 2010.

WAGNER R. Beethoven. Dichtungen und Schriften. Vol. IX. Ed. de Dieter Borchmeyer. Frankfurt am Main: Insel, 1983.

160 O ensino e a filosofia da ciência

SEGUNDA PARTE

RESUMOS

Apolo e Dioniso... 161

I

WALHALLA, O DOMICÍLIO DOS DIALÉTICOS E DOS BÁRBAROS

Luciano Carlos Utteich* RESUMO Kant estabeleceu um debate esclarecedor na segunda parte da Crítica da razão pura, a doutrina transcendental do método, no capítulo sobre a disciplina da razão pura, nas subunidades: Disciplina da razão pura no uso dogmático (I) e relativamente ao seu uso polêmico (II). Como principal móvel ele apresenta ali os três estágios de qualquer investigação como percurso de que não se pode eximir nenhuma pesquisa que se pretenda racional: os estágios dogmático, cético e transcendental. Destacamos nesse debate os dois primeiros momentos, o dogmático e o cético, a fim de ilustrar a rota por eles tomada como expressões diferentes de uma consideração insuficiente da razão enquanto apelam ou à violência da razão (caminho dogmático) ou à autocontradição e autosupressão (caminho cético) do pensamento. Para pano de fundo desse embate Kant traz o elemento inolvidável da razão transcendental, cujos direitos (quid juris), mesmo sobre conceitos (Deus, alma e liberdade) não tematizados à determinação cognitiva, têm de ser preservados, pois, ainda que inicialmente possam constranger a razão pelo fato de não serem respondidos da mesma maneira que foram os concernentes ao conhecimento determinado, esses conceitos têm origem no seio da própria razão e por isso está em condições de justificá-los. Desse modo Kant elucidou um critério claro a propósito da precedência da razão (Vernunft) no quesito dos conceitos aos quais ela tem um interesse especulativo, e não exclusivamente cognitivo. O não reconhecimento desse critério levou a que fosse esquecido o caráter purificador desse tratamento, explicitado como dialética da razão enquanto um katarticon da razão transcendental, para antes adotá-lo, em vez disso, desde um caráter prescritivo e doutrinal (dialética doutrinal). Nesse sentido Kant caracteriza os debatedores

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Walhalla... 163

investidos em alcançar uma vitória ou premiação através da dialética no sentido doutrinal como aqueles que “[...] dão golpes no ar e se batem contra a própria sombra [...]”, que se recompõe num abrir e fechar de olhos, como os heróis de Walhalla, para poderem se alegrar novamente em lutas incruentas. Kant ilustra o procedimento de avaliação dessa dialética da razão, tomada como purificadora e como instrução (mathésis), pela ideia de um tribunal da razão, em que o processo (em vez da violência) serve de mediador das decisões que devem valer como regras de instituição da crítica da razão, em vez de pela guerra visar garantir as suas afirmações e pretensões. Aqui a sentença toca a fonte das discussões, fonte à qual a razão tem o direito de alcançar para fazer com que cessem os conflitos intermináveis de uma razão simplesmente dogmática. Para Schiller, o homem pode ser oposto a si mesmo de duas maneiras: como selvagem, quando seus sentimentos imperam sobre seus princípios, ou como bárbaro, quando seus princípios destroem seus sentimentos. A ideia de apresentar a solução crítica kantiana se refere aqui, portanto, à salvaguarda do homem cultivado, que faz da natureza uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que ela põe rédeas apenas a seu arbítrio. Discutir o quanto a expressão da dialética no aspecto doutrinal – no caminho do dogmático como um estágio selvagem e no do cético como um estágio bárbaro – impede o avanço e a evolução ao degrau seguinte da razão, o do desenvolvimento do interesse prático racional como tarefa humana imprescindível, enquanto é desde a consideração de que pelo coração (interesse prático) se abre o caminho ao intelecto e tende a se expandir a consciência humana, e que o turvamento do papel purificador da instrução na compreensão da dialética da razão produz o efeito de obnubilar o desdobramento da tarefa prática da razão, tais são os objetivos a serem deslindados no presente texto. PALAVRAS-CHAVE: Tribunal da razão; Dogmático; Cético; Razão Transcendental; Crítica; Dialética. REFERÊNCIAS KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 5ª edição, 2001.

164 O ensino e a filosofia da ciência

SCHILLER, Friedrich. A Educação Estética do Homem numa série de cartas. Trad. Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1995.

Walhalla... 165

II

EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO INTELECTUAL: UMA LEITURA POLÍTICA E PEDAGÓGICA DOS ESCRITOS DE

JACQUES RANCIÈRE

Valmir Gonçalez dos Santos* Ester Maria Dreher Heuser**

RESUMO Essa proposta de comunicação ocupa-se do papel do professor no processo emancipatório do jovem educando e relaciona-o ao campo político, a partir dos escritos pedagógicos, estéticos e políticos de Jacques Rancière. Este filósofo mostra o papel primordial da concepção pedagógica que divide o mundo em dois, entre superiores e inferiores, para determinar a lógica das demais relações, inclusive as políticas. Segundo o filósofo, é por meio da pedagogia que se insere a falácia da desigualdade das inteligências e o mestre é peça chave para tanto. É no âmbito pedagógico tradicional, por meio do “mestre embrutecedor” que tal desigualdade ganha força. O que se opõe a esse mestre, Rancière denominará “mestre emancipador”, capaz de propiciar aos jovens uma emancipação intelectual. Primeiro, mostraremos o que Rancière entende pelos dois tipos de mestre e, a partir disso, relacionaremos pedagogia e política. Diante disso, a presente comunicação se empenha em refletir sobre as seguintes questões: o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser "reduzida", ou uma igualdade a ser verificada? Quais as consequências disso para o campo da política? Embrutecimento e a emancipação são conceitos que podem ser aclarados por meio da equivocidade do termo “instrução”: em uma acepção, tal termo pode assumir o sentido de confirmação de uma incapacidade e, em outra, forçar uma capacidade que se ignora a se reconhecer. Nesse primeiro o professor é o detentor do saber e o transmite ao aluno de forma tradicional, por meio de explicações, às quais fazem o aluno ser dependente de um mestre explicador para continuar a aprender. O

* UNIOESTE/Toledo; e-mail: [email protected] ** Professora Doutora da UNIOESTE; Tutora do PET Filosofia

Educação e emancipação... 167

embrutecedor prega ser necessária sua explicação para que exista o aprendizado. Com isso, divide o mundo entre aqueles que sabem e aqueles que precisam dos primeiros para lhes guiar. Começa então, desde a educação das crianças a se desenvolver a ideia de uma desigualdade das inteligências. O jovem se vê dependente de alguém que lhe mostre o caminho; aprende que é incapaz de seguir por si só. Mostraremos que a emancipação, por outro lado, se dá na medida em que o professor coloca o jovem de volta no processo de conhecer. Colocá-lo de volta é devolver-lhe a satisfação em descobrir, em achar, encontrar o saber por si mesmo. A partir disso, se sentirá poderoso, capaz, apto e competente; estará pronto para tomar suas próprias decisões e escolher pela sua vida, utilizando sua inteligência. Perceberá que também é capaz, assim como foi capaz de aprender sozinho a língua materna. Vale salientar, porém, que apenas alguém emancipado pode emancipar outra pessoa. Jamais uma instituição, um governo ou um partido conseguirá fazer isso. A emancipação não é um método social a ser disseminado nas instituições da sociedade e nem por iniciativa delas. Ele é o método dos homens e, por isso, não pode ser dirigido senão a indivíduos, jamais a sociedade. Após isso, sim, indivíduos emancipados podem vir a constituir uma sociedade emancipada que reconhece a primazia da igualdade em cada ser humano. Eis o momento em que pedagogia e política se aproximam afirmativamente, isto na medida em que aquela, ao propor a lógica da igualdade das inteligências, traz também à tona o que, de fato, significa a própria política e, com ela, a democracia. PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia; Política; Emancipação; Igualdade. REFERÊNCIAS: RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo, Editora 34, 1996. (a)

_____. Jacques. O mestre Ignorante. 2º Ed., - 1° reimp. - Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

_____. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. - 1ª Ed. – São Paulo: Boitempo, 2014.

168 O ensino e a filosofia da ciência

_____. O Dissenso. In: NOVAES, A. (Org.) A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. (b)

_____. El desacuerdo: Política y filosofía. Buenos Aires: Nueva Visión, 2010.

_____. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO Experimental Org. 2009(a)

_____. O inconsciente estético. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009(b).

_____. O espectador emancipado. trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo. Ed. WMF; Martins Fontes, 2012.

_____. Política, policía, democracia. Santiago: LOM Ediciones, 2006.

SIMONS, Maater; MASSCHELEIN, Jan; LARROSA, Jorge. Jacques Rancière, la educación pública y la domesticacion de la democracia. 1° Ed. – Buenos Aires: Miño Dávila, 2011.

Educação e emancipação... 169

III

USOS DA HISTÓRIA DA FILOSOFIA SOB A PERSPECTIVA DELEUZIANA

Gustavo Henrique Martins*

Ester Maria Dreher Heuser** RESUMO Essa comunicação tem origem na pesquisa individual realizada no PET-Filosofia/UNIOESTE, a qual está centrada, primeiro, nos estudos de algumas partes de obras do filósofo Gilles Deleuze nas quais ele se refere aos usos da História da Filosofia. Deleuze caracteriza diferentes usos da História da Filosofia, alguns que aprisionam o pensamento e outros que o libertam, promovendo o pensar. Será sobre as características desses usos que nos ocuparemos inicialmente. Este estudo haverá de promover, em nós, habilidades e condições conceituais para realizar o segundo momento da pesquisa que implicará na demora da leitura e seleção de artigos escritos em espanhol e português, em todas as edições da Revista Internacional Childhood y Philosophy (2005-2017), que referem filósofos, problemas e períodos que constituem isso que chamamos História da Filosofia. O objetivo geral da pesquisa é conhecer e analisar, a partir da perspectiva deleuziana, os usos feitos da História da Filosofia nos artigos dessa revista, os quais ousam relacionar a infância, as crianças, o ensino e a Filosofia. Ao final desse trabalho, com os artigos selecionados e identificados em um esquema didático, separados em cada uma das épocas da História da Filosofia e cada ramo estrutural da mesma, será então desenvolvida uma forma de apresentar os seus resultados, em um artigo, mesclando o percurso dos artigos da revista Childhood y philosophy (2005-2017) com a perspectiva de Deleuze. Nesta comunicação, pretende-se apresentar a primeira parte da pesquisa, dividida em duas secções. A primeira visa entender a perspectiva do filósofo Deleuze sobre a História da Filosofia, apresentar seus critérios

* UNIOESTE – Campus Toledo/PR; Bolsista do PET-Filosofia/FNDE; [email protected] ** Professora Doutora da UNIOESTE – Tutora do PET Filosofia

Educação e emancipação... 171

de uso e identificar qual a relação da História da Filosofia com o ensino da própria filosofia. Para adequar, conceituar e justificar esses dois aspectos, a História da Filosofia e o ensino da filosofia, se recorrerá ao que ele mesmo diz em O abecedário de Gilles Deleuze, especificamente nas letras H [de História da Filosofia] e P [de Professor] buscando compreender a importância da figura Deleuze como professor, afinal, o mesmo ficara quase 40 anos em sala de aula, ministrando aulas no ensino médio e também na universidade. Essa relação de Deleuze como filósofo e Deleuze como professor mostrará como o mesmo entende o ensino da filosofia, independente do público ou da idade do público alvo. Também recorreremos a alguns textos de seus livros Conversações (1990) e Diálogos (1998), este escrito com Claire Parnet, aluna e entrevistadora do filósofo no Abecedário. O segundo momento da comunicação busca estabelecer uma relação entre fazer filosofia e fazer arte, visto que Deleuze, por diversas vezes ao longo desses textos que compõem nossa pesquisa, faz referências a nomes consagrados do cinema, da literatura e da pintura. Os casos apresentados serão os remetidos por Deleuze a Van Gogh e Paul Gauguin para expressarmos o sentido daquilo que entendemos ser o que Deleuze chamou de “cor filosófica”, propriamente o que define o que ora nominamos “identidade filosófica”, (apesar de estarmos lidando com um crítico da identidade). PALAVRAS-CHAVE: Deleuze; História da Filosofia; Ensino da filosofia; Arte. REFÊRENCIAS DELEUZE, Gilles. O Abecedário de Gilles Deleuze. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da Educação, “TV Escola”, 2001.

DELEUZE, Gilles. Conversações (1972-1990). Trad. de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1992, 240 p. (Coleção TRANS).

DELEUZE, Gilles. Diálogos (Gilles Deleuze Claire Parnet). Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. Escuta, 1998, 184 p.

IV

UMA RELEITURA DO LIVRO VII DE PLATÃO O MITO DA CAVERNA

Eli Schmidtke*

Michele Cabral** RESUMO Platão nasceu no seio de antiga família nobre, em 428-7 a.C. Na juventude, acalentou o desejo de ingressar na vida pública. O encontro com Sócrates, do qual se tornou discípulo, e o impacto do julgamento e condenação à morte do mestre (399 a.C.) foram decisivos na opção pela Filosofia. Em 387 a.C., fundou a Academia. O livro sétimo da obra A república de Platão é conhecido pelo famoso mito, chamado de mito da caverna. O mito refere-se, basicamente, a pessoas que se encontram acorrentadas umas às outras desde a infância, de costas para a abertura da caverna e com sua frente voltada para os fundos, onde passam os dias vendo sombras e ouvindo vozes, sons e ruídos. Num determinado momento, um deles é libertado e consegue contemplar, observar, sentir o mundo real. Pode ver o sol, sentir o calor do mesmo, pode se aproximar das vozes, ruídos e sons e ver e sentir de onde vêm. Após se apossar de todo esse conteúdo o indivíduo libertado é convidado a retornar à caverna, quebrar as correntes e libertar os demais. Tal se faz necessário pois o mesmo foi libertado por alguém, não se libertou sozinho. Voltar a caverna e trazer os demais para a luz é o compromisso e o dever de todos que foram beneficiados de uma forma ou de outra pela ação de alguém externo ao grupo. Mas, e se a história fosse um pouco diferente? Se a caverna fosse apenas uma ilusão, um adereço, um enfeite, um embuste? E se os homens que se encontram em seu interior não fossem homens, apenas figuras representativas de uma outra realidade? Se as correntes que os prendiam, não fossem correntes, ou seja, se a ilusão proposta pelo autor se referisse a outras realidades?

* 4º. Ano filosofia; e-mail: [email protected]. Bolsista PIBID. ** Professora Mestra da Unioeste; Supervisora PIBID – Filosofia Unioeste; e-mail: [email protected]

Educação e emancipação... 173

Pretendemos explorar no decorrer desse trabalho uma possível interpretação do Mito da Caverna através de uma releitura do mesmo. Para isso, buscaremos estabelecer uma relação entre o mito e o livro IX, no qual Platão busca configurar e definir a alma humana. PALAVRAS-CHAVE: Platão; Mito; Caverna. REFERÊNCIAS PLATÃO. A República. Tradução Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª Edição. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.

MARÇAL. Jairo. Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009.

V

SEXO, SEXUALIDADE E GÊNERO: QUAL A DIFERENÇA?

Arielle Kant Lavarda* RESUMO Os tempos estão mudando, mais rapidamente do que qualquer ideologia, religião e pensamento possam acompanhar. As compreensões de sociedade, de social, de família, de política e de mulher mudaram. Juntamente com essas mudanças, ocorrem alterações nos aspectos da vida de cada sujeito, incluindo seus modos de convivência dentro de sua sociedade e regras sobre como deve se portar e pensar sobre o mundo à sua volta. Dentre os assuntos que foram incrementados em nossas vidas e participaram como principais fatores dessas mudanças, principalmente dentro da sociedade do “senso comum”, estão as noções de sexualidade e de gênero: a sexualidade como objeto de poder e controle (ou a noção da sexualidade tomada dessa forma, compreendendo o papel que ela desenvolvia nos séculos passados, quando não era entendida dessa forma); e o gênero como nova “classe” ou classificação do sujeito, podendo-se compreendê-lo como nova faceta da complexidade de um sujeito inserido na sociedade, bem como nova forma de compreender e estudar o feminismo, trazendo uma maior seriedade e reconhecimento aos estudos mais recentes. Entretanto, apesar dessas mudanças afetarem diretamente o âmbito de convívio comum dos sujeitos, também apresentam grandes mudanças em diferentes âmbitos da sociedade de elevado conhecimento e estudo, como uma universidade. A vida dentro da academia, apesar de sempre movimentada como um furacão, com informações, livros, teorias, conversas e trabalhos para todos os lados – o que deveria elevar o conhecimento intelectual e, consequentemente, a compreensão de mundo e normalização das mudanças –, acaba formando uma barreira – que chamaremos de “barreira-clássica” –, uma espécie de muro intelectual que barra a passagem de informações novas e compreensões modernas do sujeito, formada por sólidos tijolos de autores clássicos, que são acompanhados por uma horda de soldados

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Educação e emancipação... 175

estudiosos desses respectivos autores, ao mesmo tempo em que jogam pedras e cocô lá do alto nas novas teorias. Isso faz com que a comunidade intelectual seja a de maior dificuldade de acesso e contato. Em contraposição a essa barreira invisível, mas tão sólida e intransponível, surge a vontade de começar do básico, o menos complicado, para repassar essas mudanças a todos os interessados. Vê-se, então, necessária, uma básica distinção entre sexualidade e gênero, como são compreendidos hoje, como são usados nos estudos, como são ligados e, ao mesmo tempo, independentes um do outro. Além disso, é preciso compreender como sexo diferencia-se de sexualidade, e esta por sua vez, diferencia-se de gênero. Qual a relação desse último com o primeiro? Por que compreender o sexo para, só então, compreender a sexualidade? O que é físico e o que é social aqui? Para responder a tais questões iremos usar como norte o livro da Guacira Lopes Louro, onde ela faz um estudo do gênero e da sexualidade na educação, incrementando com referências à Joan Scott, historiadora feminista americana, estudiosa na área da história das mulheres a partir da perspectiva do gênero. Nesse sentido, esse resumo pretende apresentar, brevemente, os conceitos de sexo, sexualidade e gênero, mostrando suas diferenças e a linha tênue que une os três. PALAVRAS-CHAVE: sexo; sexualidade; gênero. REFERÊNCIAS LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6 ed. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 1997.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1840746/mod_resource/content/0/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf>. Acesso em: 20 de julho de 2017

VI

SENSO COMUM E O PONTO DE PARTIDA PARA A REFLEXÃO FILOSÓFICA NO ENSINO MÉDIO

Marcos Fernando de Souza Máximo*

RESUMO Este artigo intenciona perceber de que maneira, os alunos do Ensino Médio, com os quais tive contato ao trabalhar na docência de filosofia, reagem à disciplina de filosofia e as instigações de seus conceitos. Um primeiro problema a ser observado é o fato de que, muitos dos alunos do Ensino Médio, estão em formação de suas opiniões pessoais no que se refere a diversos temas polêmicos. E ao mesmo tempo passam por diversas pressões advindas do ambiente familiar, por exemplo para alçar o mercado de trabalho. A escola acaba sendo mais um ponto destoante no sentido de fornecer subsídios para que os adolescentes possam formar-se criticamente, pois estabelece uma formatação de ensino/aprendizagem baseada na reprodução simples de conteúdos, visando notas e resultados. No que concerne, especificamente ao ensino de filosofia, temos que: é possível perceber um real interesse dos adolescentes nas discussões dos filósofos, principalmente, se estas discussões forem “curiosas”. Porém, para não cair no empobrecimento do trabalho de discussões apenas por serem mais ou menos excêntricas, faz-se necessária uma abordagem que levem em consideração a fase e o contexto no qual o adolescente está inserido. Percebe-se que a maioria dos alunos estão em um momento do social no qual verifica-se certa “ortodoxia” de pensamento reforçada diretamente pelo conservadorismo de pais, professores e sociedade em geral. Sendo assim, quando os assuntos polemizam, por exemplo, o modelo religioso de pensamento, mesmo que se diga claramente que não é a estrutura do pensamento em si que está em questão, estes jovens acabam visualizando isso como um verdadeiro ataque a moral. Neste sentido, Jürgen Habermas, em seu texto Fé e Saber discorre sobre questões que, percebi, ajudam a desenvolver as abordagens filosóficas em sala de aula. Segundo

* UNIOESTE (Egresso); [email protected]

Educação e emancipação... 177

Habermas “não é levado em conta o papel civilizador de um senso comum democraticamente esclarecido que, em meio aos ânimos exacerbados da luta cultural, funciona como um terceiro partido, pavimentando seu próprio caminho entre a ciência e a religião”. Lembro ainda que esta minha reflexão está ancorada ao fato de, estas aulas de filosofia que ministrei, terem sido realizadas em um Colégio confessional católico. Não abordo, porém a questão puramente religiosa, mas em um sentido mais amplo, as noções de senso comum amplamente arraigadas no pensamento destes jovens. Trata-se aqui portanto, da necessidade de uma auto compreensão que leve em consideração e tem por base o senso comum dos indivíduos. A partir desta compreensão é que podemos instigar tais alunos a trilhar um caminho mais racional e científico dos conceitos filosóficos. Realizamos, portanto aquilo que Habermas chama de “esclarecimento científico do senso comum” e temos a possibilidade de um despertar para a filosofia no Ensino Médio. PALAVRAS-CHAVE: Senso Comum; Despertar crítico; Ensino Médio. REFERÊNCIA HABERMAS, Jürgen. Fé e Saber. Tradução: Fernando Costa Mattos. São Paulo: Ed. Unesp, 2013. pp. 1-26.

VII

REFLEXÕES SOBRE ALGUNS ASPECTOS DA VIRADA PRAGMÁTICA DA LINGUAGEM EM AUSTIN

Luiz Claudio Inocêncio*

Marcelo do Amaral Penna-Forte RESUMO O tema proposto para essa apresentação refere-se as conferências de John Langshaw Austin tais como compiladas na obra Quando dizer é fazer: palavras e ação. Na abordagem proposta, a linguagem em Austin é contrastada com a tradição e, a partir desse estudo, acompanharemos sua nova maneira de analisar a linguagem pautada na ação, realizando um exame dos seus diferentes usos, ou seja, a linguagem será analisada dentro de um determinado contexto social, com o sujeito em interação com o meio social. O que permeia todo esse novo horizonte não é mais uma análise semântica absolutamente centrada nos conceitos de sentido e referência, de verdade e falsidade. Para além disso, outros elementos passam a ser considerados importantes: o sujeito, a fala, as convenções, as intenções, o contexto e o meio onde o ato de fala é empregado. E investigar tais aspectos será de suma importância para o presente trabalho, pois é a partir deste estudo que se chegará a unidade central de investigação proposta por Austin. Nesse sentido, a ação aparece como elemento central para compreender a comunicação na obra de Austin. E isso vai direcionar a linha de pesquisa aqui proposta, tentando em certa medida mostrar o caráter relevante de tais apontamentos para um novo horizonte da linguagem que agora se mostra mais acessível ao público. O que por vezes foi apresentado como dicotomias entre linguagem e pensamento, ideia e representação do objeto, ou verdade e falsidade, torna-se algo mais complexo. Trata-se de uma nova forma de enfrentar um antigo problema referente, ao fim, à linguagem e sua relação com o mundo. A relação de instâncias separadas proposta pela tradição antiga e moderna de ligação entre mundo mental e mundo dos sentidos através da divisão dicotômica passa a ser direcionada para outro âmbito, o das

* UNIOESTE; [email protected]

Educação e emancipação... 179

ações, onde linguagem e realidade são instâncias interligadas. Nesta, os elementos investigados passam a ser analisados dentro de um determinado contexto, aproximando-se do discurso travado por atores reais e da prática cotidiana. Além disso, reorienta-se a análise da linguagem, que passa de algo a ser considerado primeiramente de modo abstrato e conforme suas propriedades formais para algo situado e conforme propriedades relativas às capacidades de seus usuários. O que se prioriza a partir de agora é uma abordagem da linguagem através de um exame de seus diversos usos em um contexto. Ressaltando também as convenções bem como as intenções do falante que compartilham de costumes em uma dada comunidade e em acordo com uma dada língua. Trata-se, enfim, de uma abordagem que explora os aspectos aludidos à virada pragmática e organiza a filosofia realizando um exame dos diversos usos da linguagem endereçada como ação em um ambiente contextualizado. PALAVRAS-CHAVE: Linguagem; Convenções; Intenções; Contexto; Ação. REFERÊNCIAS AUSTIN, Jonh Langshaw; Quando dizer é fazer; palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho\ Porto Alegre: Artes Médicas; 1990.

ROHDEN, Luiz. O poder da linguagem: arte e retórica em Aristóteles. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

VIII

REFLEXÃO SOBRE A SOCIEDADE INDUSTRIAL COM

INFLUÊNCIA TEÓRICA DE HERBERT MARCUSE

Lucas Paiva Scussiatto* RESUMO A civilização industrial europeia capitalista do séc. XIX, segundo o filósofo Herbert Marcuse. Apresenta um grande potencial para a privação da liberdade humana. Pois a maneira em que a civilização industrial se desenvolve com seus aparatos científicos e tecnológicos opera o conhecimento de forma restrita para o processo de libertação. Pois a tecnologia científica se torna um meio de controle da liberdade humana, pois com o domínio da tecnologia a transformação social e econômica se estagna na medida em que a tecnologia traz ao conformismo social. Portanto todo potencial de transformação social e capacidade crítica se encontra em declínio na sociedade industrial. Pois os indivíduos não percebem a maneira com que os aparatos tecnológico-científicos aumentam a sensação de conforto social por que fazem com que os indivíduos da sociedade industrial sintam uma falsa sensação de felicidade. Por este motivo a civilização industrial se vê com o seu potencial de transformação social obstruído pelo fascínio em que a tecnologia provoca nos seres humanos. Marcuse reflete também o modo em que racionalização presente no sistema fabril e no comércio da civilização industrial influência na liberdade humana. Por isto a racionalização científica instrumentaliza o conhecimento ao modo que se torne um pensamento uniforme assim como Marcuse reflete na obra filosófica: A Ideologia da Sociedade Industrial: Homem Unidimensional. Para transformar a condição de domínio da Civilização Industrial é preciso que se faça um processo de tomada de consciência da realidade em que os indivíduos estão submetidos a servidão. Conforme Marcuse reflete que “Toda libertação depende da consciência de servidão e o surgimento dessa consciência é sempre impedido pela predominância de

* UNIOESTE/FAG; [email protected]

Educação e emancipação... 181

necessidades e satisfações que se tornaram, em grande proporção, do próprio indivíduo” (MARCUSE, 1968, p. 28). Pois somente através de um processo consciência o verdadeiro significado de liberdade humana será retomado. O filósofo Herbert Marcuse salienta que o processo de libertação humana deve ser visto primeiramente em movimentos sociais que não estão totalmente habituados ao modo de viver da Sociedade Industrial do séc. XIX. Pois somente com o modo de viver alternativos ao sistema vigente que está fora da zona de conformismo social. Com isto os movimentos sociais alternativos como: Hippies, Estudantes, Literatos, Artistas e também alguns grupos de lideranças feministas fazem força ao resgate do contraditório e o potencial de crítica social. Por este motivo o processo de libertação opera em vista que tenha um olhar diferenciado para as circunstâncias do meio social estabelecido. Portanto a teoria filosófica do filósofo Herbert Marcuse remete a refletir sobre como medidas políticas e sociais alternativas ao sistema vigente de políticas podem transformar a condição social qualitativamente. PALAVRAS-CHAVE: Sociedade Industrial; Liberdade; Transformação Social. REFERÊNCIAS MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. Tradução: Giasone Rebuá.

IX

QUESTÕES ÉTICAS NA GUERRA

Ruan Felipe Soares* Douglas Antonio Bassani**

RESUMO Durante toda a história da humanidade há relatos e resquícios de conflitos armados por diversos motivos, como territórios, religiões, riquezas etc... Toda guerra tem seus motivos, que podem ser considerados válidos por algumas pessoas, como matar outras ou exterminar campos de guerra e devastar cidades e países por exemplo. Mas esta pesquisa se concentrará não nos motivos da guerra, porém nos soldados que dela fazem parte presente, ou seja, os combatentes da linha de frente que se encontra com sua morte e tantas outras mortes ao seu redor. É possível ter uma postura ética em um cenário tão conturbado e devastado. Na obra Ética a Nicômaco, Aristóteles apresenta sua concepção de felicidade, que é a atividade da virtude e somente é possível com uma conduta diária de esforço, a práxis para educar ou controlar as paixões de forma contínua evitando todos os extremos: a virtude se encontra no meio. O ser humano deve se exercitar para obter o equilíbrio necessário para alcançar o “Bem Supremo”, ou seja, a felicidade, a qual se encontra no controle que a alma intelectiva exerce sobre a apetitiva. Da forma correta, os atos se tornam virtuosos e habituais. A virtude, para Aristóteles, não pode ser ensinada de forma alguma, essa era a grande crítica aos sofistas que discursavam e ensinavam a virtude. Para o filósofo, a virtude se dá frequentemente no indivíduo. Para ser um governante apto é necessário ser temperante, que é saber conformar o necessário com o esbanjamento. Esse é o grande princípio virtuoso de Aristóteles, e ele somente ocorre com uma rotina diária de treinamento. Desta forma, Aristóteles sustentaria que um bom soldado deve se preparar física e mentalmente com um treinamento habitual, não só fisicamente como é no período de guerra. Além disso,

* UNIOESTE; [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

Educação e emancipação... 183

no campo de batalha cada soldado se encontra com suas “perturbações éticas”, como, por exemplo, de que forma se dará seu futuro ou se chegará a ter um futuro. No livro “Nada de novo no front” o autor Erich Maria Remarque expõe suas experiências durante o período que passou em combate na Primeira Guerra Mundial, suas perdas e como agiu na linha de frente. Os relatos mostram que em um cenário de guerra, manter-se temperante é muito difícil, já que o abalo sofrido é muito grande. Além dos mais, na maioria das vezes, o suporte aos soldados é muito precário por causa da instabilidade do combate. A forma em que se encontram é aterrorizante. A possibilidade de manter uma ética na guerra é dificultada pelo contexto. O soldado deverá se esforçar muito para se alcançar a prática das virtudes, tais como, temperança e prudência superando deste modo as desregradas paixões. PALAVRAS-CHAVE: guerra; ética; Aristóteles. REFERÊNCIAS REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no Front. [tradução: Helen Rumjanek]. Porto Alegre: L&PM, 2004

ARISTÓTELES. Ética Nicômaco. [tradução: Leonel Vallandro e Gerd bornheim ]. São Paulo: Nova Cultura, 1991

X

PSICOLOGIA NAS OBRAS LITERÁRIAS: APOLOGIA DA INTROSPECÇÃO COMO MÉTODO DE

ACESSO AO CONHECIMENTO DE SI

Rodrigo Cavalheiro de Lima* RESUMO Nesta comunicação trataremos da ideia de filosofia como “ciência” do espírito, a ciência do mundo interior. Sendo o espírito uma realidade interior e subjetiva, só pode ser conhecido por observação interior. Para tanto a filosofia necessita de um método distinto da ciência da matéria. À ciência do espírito Farias Brito atribuiu como método a introspecção, isto é, a observação interior, a observação dos estados de consciência e dos movimentos do espírito. Brito argumenta contra a pretensão da psicologia moderna, que intenta objetivar a consciência e reduzi-la a um simples fenômeno. A filosofia do espírito pretende conhecer “a alma das cousas”, desse modo, o Filósofo Cearense considera o poder da psicologia dos poetas e romancistas, pois a descrição dos personagens é construída conforme as próprias paixões e sentimentos do autor. O que podemos observar em casos tão esplendidos como William Shakespeare, que em suas obras se mostra tão conhecedor da alma humana pela perfeição que narra os afetos e paixões de seus personagens, deixa-nos perplexos ao cogitar de onde vem uma imaginação tão acertada, pois não se mostra menos excelente com a criação de Julieta que a de Romeu, aliás, o dramaturgo se faz ainda mais conhecedor do coração feminino. Farias Brito opera uma crítica à psicologia moderna, a psicologia experimental. O filósofo abre um caminho para a observação interior, na qual a psicologia viva dos poetas e romancistas recebe uma posição mais exaltada, permitindo-nos ensaiar uma psicologia das obras literárias, possibilitando demonstrar a singularidade do mundo interior e, não obstante, nos leva a ver a ineficácia dos métodos até então usados na psicologia ou filosofia do espírito. Portanto, demonstra a necessidade de uma “orientação nova em filosofia”, e nos convida a considerar a

* UNIOESTE; [email protected]

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possibilidade de uma filosofia transcendente, a qual chama de psicologia, com seu objeto e método próprio. O filósofo brasileiro esclarece que quando nos utilizamos da observação exterior, ao observarmos os outros os julgamos como estando em uma ligação necessária, isto é, ligados por “sentimentos”, “emoções” e ideias análogas as nossas, ou seja, como sob o efeito de um espelho onde nos vemos no outro. Portanto, sempre existe introspecção, porém de forma indireta. A psicologia é a ciência da coisa em si, do ser verdadeiro, do ser consciente que é princípio de ação. Pois só por meio desta ciência e seu método se faz possível chegar à essência das coisas. Não podendo, portanto, utilizar-se de um método que observa apenas a pura fenomenalidade. É preciso chegar ao âmago das coisas. À realidade subjetiva é o mundo do espírito, princípio do conhecimento e do sentimento. E esta energia interna e profunda só pode ser conhecida por observação interior. Por isso o método empregado no conhecimento é a introspecção. O último escrito de Farias Brito acaba com um retorno a filosofia do autoconhecimento de Sócrates. Pois sendo a introspecção o método próprio da filosofia, sua aplicação se encerra no velho preceito socrático, “conheça-te a ti mesmo”. PALAVRAS-CHAVE: Método; Introspecção; Psicologia. REFERÊNCIAS BRITO, Raimundo de Farias. O Mundo Interior. 3ºEdição. Brasília: Senado Federal, 2006a.

BARRETO, Tobias. A ciência da alma ainda e sempre contestada. Textos de Filosofia brasileira. 2010. Disponível em:< http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2010/12/ciencia-da-alma-ainda-e-sempre.html> Acessado em: 01 jan. 2016.

CERQUEIRA, Luiz Alberto. Maturidade da Filosofia brasileira: Farias Brito. 2008. Disponível em: <http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2008/08/maturidade-da-filosofia-brasileira.html> Acesso em: 21 mar. 2015.

XI

PAULO FREIRE E A PEDAGOGIA DO OPRIMIDO: POR UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA

Caio Eduardo de Aguiar Scherer*

Fabio Antônio da Silva** RESUMO O pensamento de Paulo Freire parte da existência do homem e de seu meio tal qual é, e de suas propostas para mudar tanto um quanto o outro têm seu ponto de partida na educação. É através desta que se faz a prática de libertação dos oprimidos e também do próprio opressor. Libertação esta que implica também mudanças, não só do homem, mas do próprio meio histórico-social, ou seja, do mundo objetivo. Em Pedagogia do Oprimido (1987) a proposta parte da apresentação dos aspectos de opressão, para com isso buscar com o oprimido – e não apenas para ele – uma luta incessante de recuperação de sua humanidade. Fica explícito, na apresentação destes aspectos, a perda de humanidade do oprimido, ao passo que é enaltecida uma falsa humanidade dos opressores em suas operações como detentores do poder que oprime. Por isso, a libertação, que parte do oprimido, não liberta apenas um, mas os dois: quem é oprimido e quem oprime; quem anseia pela liberdade e quem se diz livre sem o ser. A proposta nevrálgica de Freire, nos parece, é de uma transformação social por meio da educação do oprimido, onde esta vai dar lugar a um “homem novo”, libertado e engajado em sua liberdade; onde a tarefa do educador, nos moldes desta pedagogia, é sobretudo criar um diálogo com as massas, não as explicar, mas deixar a própria opressão ser objeto de reflexão do oprimido: reflexão “que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que essa pedagogia se fará e refará ” (FREIRE, 1987, p. 17). A prática desta educação libertadora e humanista está na própria prática, na ação política, advinda

* Licenciado em História pela UNIPAR - Campus Cascavel – PR; Graduando do segundo ano do curso de licenciatura em filosofia UNIOESTE – Campus Toledo – PR; e-mail: [email protected] ** Professor Mestre da UNIOESTE

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do questionamento franco das práxis estabelecidas; a busca por sua transformação permeia toda pedagogia de Freire e o ponto de partida sempre vai ser o da ação. Até mesmo a reflexão tem de ser feita junto com a ação: quanto a descoberta do oprimido de que se é oprimido: “não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas que esteja associada a sério empenho de reflexão, para que se seja práxis” (FREIRE, 1987, p. 29). PALAVRAS-CHAVE: Opressão; Liberdade; Educação. REFERÊNCIA FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17º. Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

XII

O RACISMO E A VISÃO DE ALTERIDADE EM LÉVINAS

Nilson Rodrigo da Silva* RESUMO Por muito tempo o racismo foi visto como um sistema de ideias e valores do mundo europeu acerca da diversidade racial e cultural dos diferentes povos. Entretanto, o “surgimento” do racismo não foi um resultado da colonização europeia, por exemplo, o sistema escravista na antiga Grécia foi o primeiro a se “preocupar” com um argumento para discutir ou justificar a escravidão; o homem grego livre jamais poderia ser comprado como mercadoria para ser objeto de trabalho, visto que isso era considerado como antinatural. Contudo, não era um problema escravizar bárbaros, esses tendiam, por natureza, a se tonar escravos, de modo que seria irreversível não sê-lo. O racismo nessa época era justificado a partir de ideologias, uma vez que, existiam homens que se propunham a pensar em um possível princípio de pureza racial, naquele contexto em especifico, isso era justificado com base nos “genes” transmitidos de pais para filhos desse modo a instituição escravista grega se manteve por muito tempo justificada. Posto isto, podemos inferir que a interpretação do racismo como uma experiência da era contemporânea não é válida e sua raiz não está na escravidão dos povos africanos ou ameríndios; essa visão não é consistente historicamente, pois como observamos desde as mais antigas civilizações, culturas dominavam e discriminavam pessoas baseadas em aspectos físicos humanos como: cor da pele, formato da face, ou outras aparências físicas; muitas, ainda, ao perceberem essas diferenças olhavam de tal modo a ponto de segregarem essas pessoas por se considerarem superiores. O racismo é uma finalidade que visa à diminuição ou a anulação dos direitos humanos dos discriminadas, por esse motivo nesse trabalho temos por intento abordar alguns aspectos da história do racismo no mundo e no Brasil analisando como é possível pensar o problema do racismo pela visão de alteridade

* UNIOESTE - Campus Toledo; Bolsista PET – MEC/FNDE; [email protected]

Educação e emancipação... 189

do filósofo Emmanuel Lévinas, que promulga sua filosofia como um fator contribuinte na busca de uma forma mais humana de se viver em sociedade, onde cada indivíduo deve ter responsabilidade pelo próximo. Segundo o filósofo, na era contemporânea o homem age sem ter responsabilidade para com seu próximo, fechando-se no egoísmo, preocupando-se apenas com seu ser. O termo alteridade em sua significação retrata aquilo que é a base do conceito para o filósofo: Ser outro ou ser como outro, assim, nessa dimensão de ser para outro desenvolvemos sensibilidade, é um olhar para o outro mediante sua própria face. Lévinas propõe um novo agir ético aos homens, neste sentido há à necessidade de uma filosofia com um olhar de alteridade, ou seja, o homem deve possuir a condição do que é outro, daquilo que é distinto de si., ou melhor, adquirir responsabilidade com o outro, o que levaria a sair da totalidade de ser em si mesmo e se abrir a transcendência do outro. PALAVRAS-CHAVE: Lévinas; Racismo; Ética; REFERÊNCIAS FINLEY, Moses. Escravidão Antiga e Ideologia moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1991.

LÉVINAS, E. Totalidade e Infinito. Edições 70, Lisboa, 1989.

LÉVINAS, E. Ética e Infinito. Edições 70, Lisboa, 1988.

MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global Editora: Ação Educativa, 2006.

SANTOS, Ivair Augusto Alves dos. Direitos Humanos e as Práticas De Racismo. Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2012.

SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2004.

VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. São Paulo: Difel, 1984.

XIII

O MITO NO SURGIMENTO DA FILOSOFIA

Suzana Talita Tietz* Douglas Bassani**

RESUMO Podemos compreender a filosofia segundo duas principais concepções. Em seu sentido mais amplo, é possível afirmar que a filosofia se encontra em todos os seres humanos, independente do período e nação a que possam pertencer. Neste aspecto ela encontra-se na visão de mundo, na sua cultura, nos modos de agir, perceber e ser de uma pessoa ou um povo. Em seu sentido mais próprio ela é concebida como uma atividade humana racional, e deste modo, não encontramos a filosofia em qualquer cultura. A História e com ela grandes pensadores atribuem à cultura grega maior responsabilidade pela produção da genuína filosofia, sendo esta uma das maiores contribuições deste povo para o mundo ocidental. Entretanto, podemos nos questionar sobre quais as circunstâncias que proporcionaram, dentro do contexto grego, esta transformação de pensamento e ousadia mais racional. Ou seja, em qual situação encontravam-se os gregos que os estimulou a assumir uma atitude mais acentuadamente filosófica? Houve uma mudança de postura, denominada o “surto da filosofia” que diz respeito justamente à esta nova posição assumida gradativamente, do período arcaico até o auge do aparecer filosófico do período clássico. Por que devemos considerar esta mudança uma atitude genuinamente filosófica e porque a cultura grega é a cultura que possui, originalmente, estas características? Gerd A. Bornheim nos aponta que para compreender este surto da filosofia, deve-se estar ciente quanto a certas características muito peculiares à religião grega. A este respeito, a cultura grega não concebe suas divindades considerando-as como pertencentes a um mundo sobrenatural e, por assim dizer, aparte desta mesma realidade onde as coisas nos são dadas. É um povo que reconhece e constrói sua visão de

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

O mito... 191

mundo a partir dos entes dados em sua ordem natural. Os deuses do homem grego encontram-se presentes na própria realidade natural. Levando em conta estes pressupostos, deparamo-nos com uma via que se abre como possibilidade para o pensar propriamente filosófico. Portanto, o que se altera para a passagem do surgimento da filosofia é o modo de se colocar as questões diante dos mistérios do real. As inquietações se desenrolam através de pensamentos e teses, escritos para um público que vai crescendo pouco a pouco e que preocupa-se em relatar fatos diretamente, de uma maneira objetiva. Questões como a formação dos entes a partir do uno primordial, a luta e junção dos opostos, o eterno estado de transformação e mudança, são ideias fundamentais presentes na cosmologia dos primeiros filósofos que ainda denunciam um fundo mítico. Obviamente, a filosofia vai atingir seu auge de forma gradativa, tomando o lugar do mito e dando lugar ao logos dentro de vagarosos passos. Deve-se estar ciente, contudo, que a religião grega não é causa do nascimento da filosofia, nem a filosofia surgira pela carência de religião. Entretanto, é possível identificar uma ressonância, uma harmonia de conteúdos míticos que aparece reflexivamente na primeira fase da filosofia, denominada pré-socrática. Não se deve, portanto, falar de uma passagem radical do mito para a filosofia, mas de um entendimento e pensamento mítico para uma posição mais acentuadamente intelectual. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Mito; Gregos; Racional. REFERÊNCIAS BORNHEIM, Gerd A. O filósofos pré-socráticos. São Paulo: Editora Cultrix, 1993. 128p.

SPINELLI, Miguel. Filósofos pré-socráticos: primeiros mestres da filosofia e da ciência grega. 2° Ed. Porto Alegre: Editora Edipucrs, 2003. 392 p.

BARNES, Jonathan. Filósofos pré-socráticos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 367p.

BURKERT, Walter; LOUREIRO, M. J. Simões (Trad). Religião grega na época Clássica e Arcaica. Berlim, Colónia, Mainz: Editora W. Kohlhammer, 1993. 638 p.

192 O ensino e a filosofia da ciência

FLORIDO, Janice (Coord.); SOUZA, José Cavalcante de (Trad.); CIVITA, Victor (Ed.). Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 376 p.

O mito... 193

XIV

O DUALISMO CARTESIANO E O DUALISMO INTERACIONISTA DA PROPRIEDADE

Gustavo Henrique Rondis Cruvinel*

RESUMO Este trabalho objetiva expor brevemente o pensamento de René Descartes no que tange a sua maneira de pensar a relação mente-corpo. Ao analisar o dualismo da substância de Descartes pretende-se sinalizar a importância que teve esse pensamento e como foi necessário para a inauguração do problema atual mente-corpo e da própria filosofia da mente. Logo após investiga-se o dualismo da propriedade que, embora seja uma visão dualista, não propõe que existam duas substâncias, mas sim que o cérebro físico é dotado de propriedades não-físicas, sendo, portanto, menos radical que o dualismo Cartesiano da substância. Por fim faz-se uma apreciação acerca do problema mente-corpo. René Descartes, filósofo francês (1596-1650), após ter completado seus primeiros estudos no colégio Jesuíta de La Flèche, sai em viagens a fim de encontrar o verdadeiro conhecimento que, segundo ele, estaria ou nele mesmo ou no vasto mundo ao seu redor. Ele via na matemática a possibilidade de explicação de todo o universo. Segundo ele, tudo no universo estaria ordenado por leis matemáticas. Na busca de um conhecimento claro e distinto e em oposição ao pensamento vigente (aristotélico), ele se propõe a descontruir tudo o que conhecia até então para, a partir daí, reconstruir todo o conhecimento através de alicerces sólidos e seguros. Para isso utilizou-se da dúvida hiperbólica, isto é, pôs tudo em suspenso a fim de avaliar se se tratava realmente de algo verdadeiro, real. Descartes é considerado o grande expoente do pensamento moderno, sendo atribuída a ele a fundação do mesmo. Os sistemas de conhecimento de seu tempo estavam pautados no pensamento aristotélico e foram por ele desafiados e por fim, derrubados. A filosofia de Descartes é bastante ampla e engloba a matemática, as ciências físicas, a psicologia e a ética, tendo como base

* UNIOESTE; [email protected]

O mito... 195

aquilo que ele estabeleceu como fundamentos metafísicos que eram totalmente confiáveis e seguros. Ele postula que o conhecimento se dá diretamente, através desta coisa que chama “mente”, por meio da reminiscência. Entretanto, aquilo que nos interessa tratar aqui é o dualismo cartesiano. Descartes postula a existência de duas substâncias, uma extensa que corresponde à toda matéria encontrada no universo, e o pensamento que, segundo ele, trata-se de algo não-físico, desprovido de qualquer elemento material. Apesar de encontrarmos já em Platão esta distinção entre alma e corpo, bem como o desenvolvimento desta questão ao longo da história da filosofia, é em Descartes que encontramos o problema mente-corpo da forma como o conhecemos hoje. É por isso que, ao pensar o problema mente-corpo, é quase impossível não remeter ao pensamento cartesiano, visto que, de certa forma, foi ele o fundador da concepção atual deste problema mente-corpo. PALAVRAS-CHAVE: Dualismo; Mente; Interacionista; Descartes. REFERÊNCIAS AUDI, Robert. Dicionário de Filosofia de Cambridge. 2° ed. São Paulo: Paulus, 2011.

CHURCHLAND, Paul M. Matéria e consciência: uma introdução contemporânea à filosofia da mente. São Paulo. Editora Unesp, 1998.

DESCARTES, René. Discurso do Método; Meditações; Objeções e Respostas; As Paixões da Alma; Cartas; introdução de Gilles-Gaston Granger; prefácio e notas de Gerard Lebrun; Trad. de J. Guinsberg, Bento Prado J. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).

XV

O DIREITO À VIDA NO PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO (1909-2004)

Reginaldo César Pinheiro* Tiago Soares dos Santos*

RESUMO O presente trabalho visa apresentar o que Norberto Bobbio entende por governo e, ainda, questionar se uma lei pode ser boa, justa e decorrente da vontade de seu povo, mesmo que ela ignore um imperativo categórico, mais especificamente em relação ao Direito à Vida. O prestigiado pensador italiano classifica o governo de duas formas, quais sejam: dos homens e das leis. A primeira, dos homens, são aqueles que governam sob a égide de suas paixões. A segunda forma de governo, das leis, garante e assegura a igualdade contra as discriminações arbitrárias impostas pelo tirano e protege os cidadãos contra os desmandos de um déspota. E, por isso, conclui que a democracia é o governo das leis por excelência. É na democracia que se possibilita discutir a segurança da vida por meio do imperativo categórico Não Matar!. Nesse aspecto, cabe observar que o imperativo categórico Não Matar! foi formulado partindo das reflexões de Kant, o qual asseverou que um imperativo é uma regra prática onde um agir contingente se torne necessário devido à sua relevância universal. É, então, a partir da definição de imperativo categórico em Kant que Bobbio formula o seu imperativo categórico Não Matar!, isto é, algo não necessário, entretanto, torna-se obrigatório e aceitável universalmente. Assim, a discussão que se apresenta é no campo filosófico já que o imperativo não é propriamente pensado apenas como uma ação normativa ou legisladora. O imperativo categórico deve ser formulado como um princípio geral, supremo, válido e aceito dentro de uma ética normativa. A partir dessa máxima teórica deriva qualquer moral e esta deve se submeter mantendo-se o princípio da justiça e do direito inalienável da vida. O imperativo categórico

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] * UNIOESTE; e-mail: [email protected]

O mito... 197

estabelece objetivos gerais e, quando aplicados às legislaturas particulares e individuais de determinadas leis não cumprem ou destorcem à máxima do imperativo categórico, em especial do proposto por Bobbio. Essas distorções ficam mais evidentes quando se verifica, preliminarmente, que a produção legislativa acerca do Direto à Vida revela valores muito distintos, dentre os quais em uma mesma Constituição Federal uma norma assegura o direito à vida e em outra assegura o direito de matar. Cumpre esclarecer que o estudo tomará como parâmetro delimitador as quatro formas de explicitação do Direito à Vida estabelecidas por Bobbio: não matar, não abortar, socorrer quem está em perigo de vida e oferecer os meios de sustento a quem deles for carente, aplicando esses imperativos à legislação brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Direito à vida; Imperativo categórico – não matar! Constituição federal. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

DIAS, José Francisco de Assis. Não matar: o princípio ético não matar como imperativo categórico no pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004). Sarandi: Humanitas Vivens, 2008.

KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2003.

XVI

O CONCEITO DE VERDADE EM KARL POPPER

Fernando da Silva Severnini* RESUMO O presente trabalho procura demonstrar em linhas gerais o conceito de verdade no sistema filosófico popperiano. Se o conhecimento humano, desde os tempos mais remotos, almejou determinar a verdade incondicional sobre a natureza e tudo que nos rodeia, a filosofia de Karl Popper aborda o problema da verdade sob uma nova perspectiva, a saber, a partir da concepção de verdade aproximada. A constituição do conhecimento científico após vinte séculos de pesquisas é reinterpretada à luz da tese de que a verdade é elemento regulador de ordem metafísica e abre caminho para o indeterminismo científico, além de possibilitar pensar a ciência como sendo de natureza conjectural. Explicações causais e absolutas na tentativa de entender o funcionamento do cosmos e tudo que se encontra nele já não são mais plausíveis, e nosso argumento segue a ideia de que qualquer demonstração final em se tratando de conhecimento objetivo, não é possível, dado que o conhecimento é sempre provisório. Entretanto, não é por termos conhecimento provisório que abandonamos a busca da verdade. A “ideia de verdade” tem fundamental importância para a ciência, pois, atua como ponto norteador das pesquisas teóricas no processo de constituição de novos conhecimentos, dado que estamos sempre na busca incessante por teorias que nos aproximem mais da verdade. Mais de dois mil anos de história mostram que quanto mais o homem tentou ter certeza das teorias cientificas, mais certo de ter alcançado a verdade, mais enganado esteve, de certo que a dúvida é uma condição nada agradável, pois ela em si traz desconforto. Segundo Popper, a verdade não pode ser alcançada em sua plenitude, porém, é possível tê-la como elemento regulador das pesquisas científicas, ou seja, mesmo que a verdade não possa ser reconhecida enquanto tal, ela configura um recurso metodológico de primordial importância para determinar se teorias científicas descrevem

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

O mito... 199

ou não a realidade existente. Posto isto, é preciso atentar para a tese de que o conhecimento científico será sempre provisório, de modo que teorias, embora com grande poder de descrição de fatos, serão tomadas como próximas à verdade, ou seja, verossimilhantes, mas sem qualquer estatuto de descrição última da realidade PALAVRAS-CHAVE: Ideia de Verdade, Ciência, Concepção. REFERÊNCIAS POPPER, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica. Trad. Leônidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 2° ed., 1974.

________. “A ciência normal e seus perigos”. In: A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. Lakatos, Imre & Musgrave, Alan (Org). São Paulo: Cutrix & Editora da USP, 1979.

________. Conhecimento Objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia, v. 13, 1999.

XVII

O CONCEITO DE PESSOA HUMANA NO PENSAMENTO DE AGOSTINHO DE HIPONA

Leonan Ferrari Felipin*

José Francisco de Assis Dias** RESUMO O pensamento filosófico teológico de Agostinho (354 – 430) serviu-se do método e das reflexões neoplatônicas, sobretudo de Plotino (205 – 270) – conhecido como mais platônico do que o próprio Platão – estava envolto na missão de fundamentar os dogmas do cristianismo e de combater as heresias cristãs presentes em sua época, tendo por pontos de coerência às Sagradas Escrituras e a Tradição da Igreja Católica. Numa perspectiva histórica, Agostinho é considerado o "carro chefe" da Patrística. Este artigo, por sua vez, objetiva expor o que é pessoa humana no âmbito do pensamento de Agostinho, bem como, apresentar a relevância histórica de sua atuação neste conceito. Para tanto, perguntar-se sobre o que é pessoa humana é necessariamente pressupor o típico questionamento filosófico de séculos: o que é o homem? Para tanto, num modelo propriamente socrático, Agostinho reconhece a sua ignorância em relação a si mesmo e ao mesmo tempo, está consciente de que quer conhecer-se. Então, o nosso filósofo se propõe a caminhar, primeiramente, na busca de Deus, porque entende que este conhece o homem profundamente e que é Ele quem lhe pode revelar as verdades sobre si de que tanto procura. Dessa forma, os meios para a retomada de tais temas se possibilitam, sobretudo, mediante as obras Confissões e A Trindade. Na primeira, nos delongaremos com primordial atenção no livro X, onde o Bispo de Hipona amiúde pincela o aspecto interior do homem, partindo do gênero literário que ele inaugura – confissão –, desenvolvendo a memória como uma realidade da mens (parte superior

* UNIOESTE Campus Toledo; Bolsista PET – MEC FNDE; [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

O conceito de pessoa humana... 201

da alma, isto é, a mente) que está além do poder dos sentidos e que difere o homem dos demais seres, mas que ainda não é suficiente para o encontro com Deus, dado este que é necessário no que diz respeito à iluminação que Agostinho espera receber. Mesmo em meio a uma difícil e natural distinção dos campos de seu pensar, enquanto filósofo, assim como ele o é, Agostinho mostra o processo de interioridade que ele mesmo faz, buscando o discernimento entre a vontade humana e a divina, que abrirá compreensão ao encontro do "eu" enquanto pessoa. Na segunda obra, então, encontram-se a exposição das três Pessoas da Trindade que se relacionam analogamente com o espírito do homem. No total, são sete as abordagens de tríades psicológicas da alma humana presentes a partir do livro IX desta obra, entretanto, neste estudo, fixar-se-á no livro X que contém a seguinte: memoria (memória), intellegentia (inteligência) e voluntas (vontade). No que lhe diz respeito, esta natureza humana abordada por Agostinho, é via de possibilidade para a compreensão do ser pessoa humana, essência geral do homem, presente em seu pensamento. PALAVRAS-CHAVE: Agostinho; Pessoa humana; Interioridade; Homem. REFERÊNCIAS AGOSTINHO. Confissões. Trad: J. Oliveira; A. Ambrósio de Pina. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. – (Vozes de Bolso) ______. A Trindade. Trad: Agustino Belmonte. 4. ed. São Paulo, SP: Paulus, 1995. – (Patrística) COSTA, Marcos Roberto Nunes. 10 lições sobre Santo Agostinho. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. – (Coleção 10 Lições) FERNANDES, Maria Imaculada A. Interioridade e Conhecimento em Agostinho de Hipona. 2007. 104 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. DIAS, J. F. de A..; MONTAGNA, L. A. (org.) Interioridade e conhecimento em Agostinho de Hipona (354 - 430). Maringá, PR: Vivens, 2014.

202 O ensino e a filosofia da ciência

GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Trad: Eduardo Brandão. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1995. – (Paidéia) ______. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Trad: Cristiane N. Abbud Ayoub. São Paulo, SP: Editorial; Paulus, 2006. VAZ, Lima Vaz. Antropologia Filosófica I. São Paulo, SP: Loyola, 1991.

O conceito de pessoa humana... 203

XVIII

O BURACO DA FECHADURA: SARTRE E O FENÔMENO DO OUTRO

Tiago Soares dos Santos*

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva**

RESUMO O presente trabalho visa apresentar e discutir o fenômeno que possibilita a aparição do eu e do outro no pensamento sartreano. A descrição fenomênica se inicia do seguinte modo: pensemos que, por ciúmes, vício ou qualquer outro motivo, alguém tenha o hábito de olhar pelo buraco da fechadura ou de ouvir conversas alheias às escondidas. Mas, de repente, é flagrado por outrem. Alguém o vê nessa situação livremente escolhida. Dado o exemplo, passemos à análise. Quando o ciúme ou a curiosidade instigam a escuta e/ou observação clandestinamente, esse ser é todo em seu ato. Olha às escondidas por curiosidade. Faz-se todo curiosidade. Observa por ciúmes, é todo ciúmes. Aqui é o ser todo em seu ato, a consciência não-tética de si. Não existe um eu. A consciência é toda no seu ato intencional. O flagrante coloca o flagrado em uma situação vexatória. Vê-se descoberto por algo. Essa revelação não é um ato gnosiológico de si para consigo mesmo. O desvelar dessa condição é mediada pelo olhar do outro. Não vê um olho, mas reconhece um olhar que o classifica como ciumento ou curioso. Pelo reconhecimento do olhar do outro sobre o ser ciumento ou curioso. O eu, algo até então exclusivo da consciência reflexiva, é posto (n)a consciência irrefletida. Tornam-se ambos, consciência ciumenta e eu objetos constituintes do mundo do outro. A vergonha ou orgulho que se possa sentir no instante do flagrante é o reconhecimento de que se é tal como o outro vê. Existe, portanto, uma estrutura da consciência que só é revelada no encontro com o outro. Há, assim, uma estrutura ontológica do Para-si radicalmente diferente. Essa estrutura é minha, eu quem cuido, revela um

* UNIOESTE/IFPR; e-amail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

O conceito de pessoa humana... 205

ser meu, sem ser para mim. É meu ser para outro. Esse meu ser que só se revela frente ao outro é possível pela vergonha e/ou orgulho que sinto no flagrante ou encontro com esse outro. A vergonha e/ou orgulho são a ponte de mim comigo mesmo, no sentido de que a vergonha ou orgulho só o são diante de alguém. Essas condutas são o reconhecimento de que se é tal como o outro vê. Assim, o outro revela estruturas constitutivas de meu ser. O ser que aparece ao outro não reside no outro. Eu sou responsável por ele. A vergonha é vergonha de si diante do outro. Por meio da presença do outro há uma desintegração de meu ser como centro de referência dos objetos do mundo. Frente a frente com o outro, as coisas se afugentam de mim e escapam em direção a ele. Em Sartre, sem o outro, não seria possível saber quem sou. PALAVRAS-CHAVE: Vergonha; Reconhecimento; Eu; Outro. REFERÊNCIAS SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia Fenomenológica. 17 ed.Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

XIX

O ASPECTO DIFERENCIAL DO EU PENSO KANTIANO AO EU PENSO DE DESCARTES

Vanessa Henning*

César Augusto Battisti** RESUMO Pensar a filosofia de Descartes é pensar o cogito. Este elemento é essencial no sistema cartesiano, uma vez que assume o caráter de primeiro princípio de toda a sua ciência. O cogito, traduzido na frase “eu sou, eu existo”, é descoberto por meio do processo da dúvida, quando o sujeito que dúvida se depara com uma verdade impossível de questionar: a sua própria existência. Por se tratar de uma verdade que não depende de quaisquer faculdades ou elementos sensíveis, mas somente é reconhecida no interior do puro pensamento, Descartes a concebe como uma substância pensante, uma res cogitans, por ser o mesmo sujeito que pensa e que realiza todos os diversos atos de pensar no próprio pensamento Assim, em razão de permanecer idêntico a si mesmo na multiplicidade dos seus atos conscientes, isso mostra que o pensamento é o atributo principal do sujeito, sendo, portanto, a essência do eu penso cartesiano. Por outro lado, Immanuel Kant, em sua obra magna Crítica da Razão Pura, apresenta sua objeção ao eu “penso-cogito” de Descartes. Para o filósofo alemão, não é possível ter um conhecimento substancial de si mesmo (do eu penso). Isto porque o eu penso, entendido como uma unidade da consciência, deve acompanhar todas as representações, as quais são dadas anteriormente a todo pensamento, pois são provenientes da intuição sensível (do espaço e do tempo). Neste sentido, esse eu implica a unidade sintética do diverso dado numa intuição, porque esse múltiplo somente pode ser fornecido pela intuição sensível. Diante disto, o objetivo deste trabalho é mostrar como essa concepção refletirá no modo como o sujeito se conhece, uma vez que em Kant, não se pode ir além das determinações sensíveis para estabelecer uma identidade

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

O conceito de pessoa humana... 207

substancial que possa ser o correlato ontológico da consciência da própria identidade, como bem julgou Descartes em sua metafísica. Assim, diferentemente do pensamento de Descartes, o qual apenas concluía à força de aniquilar o cogito do instante, expulsando o tempo, atribuindo assim o seu valor a Deus e toda a infinidade, em Kant, com a finitude expressa em suas articulações, a apercepção e percepção, implica uma abertura no interior do cogito, a saber: a de um sujeito, um eu penso, que é espontaneidade e que determina a existência, mas que ela somente pode ser determinável como a existência de um eu receptivo, isto é, de um eu que tem conhecimento de si apenas como se aparece no tempo. PALAVRAS-CHAVE: Eu Penso, Sujeito, Substância, Tempo, Descartes, Kant REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Editora: Graal, 2ª edição. Rio de Janeiro – RJ, 2006.

DESCARTES, René. OEuvres de Descartes. Publiées par Charles Adam et Paul Tannery (AT). Paris: Vrin, 1996. 9 v.

________. Obra Escolhida. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Editora: Difusão Europeia do Livro. São Paulo – SP, 1962

________. Princípios da filosofia. Tradução de João Gama. Editora: Edições 70, Lisboa – Portugal, s/d.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Editora: Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 5ª edição, (versão digital). Lisboa – Portugal, 2001.

LANDIM FILHO, Raul. Evidência e verdade no sistema cartesiano. Edições Loyola. São Paulo – SP, 1992.

XX

NICOLAU DE CUSA E O PROBLEMA DE ACESSAR O CONCEITO DE DEUS

Sabrina Andrade Barbosa* Douglas Antonio Bassani**

RESUMO O presente trabalho pretende apresentar de modo breve a vida e obra do filósofo cristão Nicolau de Cusa, que é considerado o divisor de águas entre a Idade Média e a Modernidade. Quando jovem, conheceu Bernardino de Siena, um santo que na época pregava a Deus, e influenciado por ele resolveu dedicar seu tempo e sua intelectualidade a serviço da causa da Igreja. Se formou doutor em direito canônico e em 1430 e para então se tornar sacerdote, fez Teologia. Já na sua velhice, tornou-se um influente interlocutor do Papa Pio II, que era seu amigo pessoal. A filosofia Cusana se caracteriza pelo discurso de sentido que é tematizado principalmente em sua obra mais importante De Docta Ignorantia (1640) que tem o objetivo de demonstrar que quanto mais sábia uma pessoa for, mais ela reconhecerá a ignorância que lhe é própria. A máxima socrática “sei que nada sei” transmite isso muito bem. Após a irrupção do cristianismo, pensadores começaram a pensar o mundo a partir da ideia de ex nihilo, ideia estudada também por Nicolau, isso ofereceu-lhes a possiblidade de interrogar radicalmente o princípio, o problema da existência, de repensarem o problema da essência, já trabalhada pelos gregos, e na medida em que só interrogando a multiplicidade na sua origem pode-se resolver satisfatoriamente a sua articulação com a unidade. A filosofia cristã continuou a pensar a essência da multiplicidade colocando a partir dela o problema da existência da unidade fundante que ganha relevo na importância atribuída às provas da existência de Deus. Nicolau teve contato com a mística durante sua formação intelectual, por conta disso, se vê profundamente confrontado, pela questão do fundamento e sentido da criação, e o problema da presença de Deus no mundo das criaturas.

* UNIOESTE – Pibid Filosofia; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

O conceito de pessoa humana... 209

Constata-se que a filosofia Cusana trata principalmente acerca do conceito de Deus, e na obra De Docta Ignorantia, Cusa reflete: Como elaborar um discurso sobre Deus, se ele, como máximo, parece escapar de todo discurso? De acordo com o filósofo, a qualquer pergunta sobre Deus deve-se responder com aquilo que se pergunta. Para formar um conceito sobre Deus tem de se responder com precisão absoluta, um conceito justo como a justiça e um conceito verdadeiro como a própria verdade. E como Cusa argumenta que conhecimento humano é limitado, também, o nosso conhecimento conceitual é meramente aproximativo. Por isso, quando a questão é a elaboração de um conceito de Deus, se deve responder com o próprio conceito, ou seja, que Deus é o conceito do conceito, isto é, o conceito absoluto. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Medieval; Deus; conhecimento; REFERÊNCIAS DE BONI, LUIZ A. Filosofia Medieval. Textos. P. Alegre: EDIPUCRS, 2000.

GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

ANDRÉ, João Maria. Sentido, simbolismo e interpretação no discurso filosófico de Nicolau de Cusa. Coimbra, 1992.

XXI

MARX: A DIGNIDADE HUMANA E A JORNADA DE TRABALHO

Marilda Pereira dos Santos*

RESUMO Ao elaborar essa exposição, nos deparamos com uma afirmação de Immanuel Kant, em que o filósofo trata da questão humanidade, na obra Fundamentação da metafísica dos costumes, diz: “[...] Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca//simplesmente como meio” (KANT, 2011, p.73). Esta afirmação nos remete a um problema maior, a partir do momento em que passamos a pensar no problema da jornada de trabalho como exploração do homem tratado por Marx na obra O Capital. Deparamo-nos com este problema porque em Kant, a humanidade da pessoa é tratada como fim em si mesmo, enquanto para Marx, nos parece que a humanidade é tratada simplesmente como um meio, pois, como descreve em sua obra, o trabalhador como um agente livre, vende sua força de trabalho trocando-a por um salário que passa a ter um preço. O fato é que em Kant, no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Segundo o filósofo, “[...] quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, ela tem dignidade” (KANT, 2011, p. 82), logo, no nosso entendimento, o trabalho não pode ser considerado como uma mercadoria, equivalendo a um determinado preço. Mas, nos parece que em Marx, diferentemente do pensamento de Kant, o autor descreve no O Capital, o preço da força de trabalho equivalendo a um preço determinado pelo capitalista. Para Marx, o salário tem de expressar o valor da força de trabalho, como única mercadoria que o trabalhador possui, se diferenciando do preço da mercadoria da força de trabalho. Segundo o autor, a força de trabalho é uma mercadoria vendida pelo trabalhador, portanto, como qualquer mercadoria, tem seu valor

* E-mail: [email protected]

O conceito de pessoa humana... 211

determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de sua mercadoria. Ao vender sua força de trabalho, ela passa a ser propriedade daquele que há compra (o capitalista), isso se dará por certo período de tempo. Ocorre, porém, que o capitalista comprou a força de trabalho por seu valor diário, a ele pertence seu valor de uso durante uma jornada de trabalho, mas, essa jornada de trabalho não é uma grandeza constante, no qual só pode variar dentro de certos limites, não podendo ser prolongada para além de certo limite. Marx chama atenção para o fato desse limite máximo determinado, porque há limitação física da força de trabalho. Há também limites morais que impedem o prolongamento da jornada de trabalho. Ou, como diz: “[...] O trabalhador precisa de tempo para satisfazer as necessidades intelectuais e sociais, cuja extensão e número são determinados pelo nível geral de cultura de uma dada época” (MARX, 2013, p. 306). Pode-se assim concordar com a variação da jornada de trabalho se move, assim, no interior de limites físicos e sociais. Como afirma Marx, ambas as formas de limites são de natureza muito elástica permitindo as mais amplas variações. PALAVRAS-CHAVE: Dignidade; Jornada de trabalho; Trabalhador. REFERÊNCIAS FERRY, Luc. Uma leitura das três “Críticas”. Tradução de Karina Jannini. 3º ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Introdução de Pedro Galvão. Lisboa: Edições 70, 2011.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de Produção do Capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

________. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução e notas de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.

PASCAL, Georges. Compreender Kant. 7ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

XXII

MAL, GRAÇA E LIBERDADE NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO

Filipe Luís Brustolin*

José Francisco de Assis Dias** RESUMO Agostinho sempre se inquietou com a “existência” do Mal. Pois, se Deus é perfeitamente bom, como pode “existir” o Mal? O maniqueísmo “ensinava a existência de dois princípios eternos: o Bem e o Mal, isto é, Deus e a Matéria em luta perene entre si” 1. Tal concepção cosmológica é inadmissível para o Cristianismo. Para o pensamento cristão existe apenas um único Deus, o qual é o próprio Bem, eterno e imutável. Quanto ao Mal, Agostinho o explica da seguinte forma: o Mal não existe. Esta afirmação de Agostinho tem como princípio uma das máximas do Cristianismo: Deus é o Bem. Logo, tudo o que Deus cria é bom. Se tudo provém do Bem não pode existir o Mal2. Já que o Mal não tem existência própria e essencial, ele “seria” uma decorrência da vontade das criaturas livres quando estas decidem por se apartarem de Deus. Cabe aqui também ressaltar que é só em Deus que o ser humano é feliz, não nas suas criaturas tomadas privativamente, neste caso, nem o “amar” seria autêntico3. Ao dizer que o Mal não é, poder-se-ia inferir um problema no conceito da liberdade, pois, sendo as criaturas completamente livres, não se constataria uma deficiência na liberdade, visto que não poderiam escolher o Mal, apenas o Bem? Se compreendida completamente a definição de Mal para Agostinho o problema se resolve instantaneamente: as criaturas são sim livres, e ser livre é escolher entre uma coisa e outra, nisto é mister depreender que essas coisas que a

* UNIOESTE – Toledo-PR; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected] 1 Livro III. Capítulo 6. P. 72. Nota de roda-pé. 2 Livro VII. Capítulo 12. P. 192 3 Livro VII. Capítulo 16. P. 195.

O conceito de pessoa humana... 213

criatura escolhe através da sua liberdade existem; ora, como já se comprovou anteriormente, se existe é bom. Quando a liberdade dá as costas para o Bem eterno, dando origem à tristeza, morte, etc., sem afetar a substância de Deus, que permanece imutavelmente boa, ela não está sendo genuína, ela apenas o é quando de acordo com o Bem. Logo, a criatura que, por meio da liberdade, peca, não é mais livre, mas escrava da paixão 4. No quadro da liberdade, outro termo tem papel importante: a Graça. Basicamente define-se Graça pela ação providencial de Deus na existência da criatura. Mais uma vez parece-se surgir um paradoxo: como pode o homem ser livre com Deus agindo sobre ele? Factualmente, é somente pela Graça que o homem é verdadeiramente livre. Ela é presente gratuito e necessário de Deus; gratuita por ser dada ao homem livremente; e necessária pois sem ela o homem nada pode, só por ela que o homem pode ser justo e feliz 5; e é unicamente por intermédio dela que o homem se desprende do pecado 6. Em suma, o homem não é destituído de sua liberdade mediante ação da Graça divina, esta última, ao contrário, perfecciona a liberdade do homem.

REFERÊNCIAS: AGOSTINHO, Santo. Confissões. 1ª edição. São Paulo. Paulus, 2002. 450 p.

Bíblia Sagrada Ave Maria. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica). 206ª edição. São Paulo. Ave Maria, 2015.

4 Livro VIII. Capítulo 5. P. 214-215. 5 Livro X. Capítulo 31. P. 304. 6 Livro VIII. Capítulo 5. P. 216.

XXIII

INEXISTÊNCIA DO LIVRE-ARBÍTRIO: ESPINOSA E NEUROCIÊNCIA

Murilo Morato Santos*

RESUMO Desde a Grécia antiga os filósofos questionavam-se sobre os motivos pelos quais os homens agem como agem, e com o passar do tempo, diversas teorias tentaram explicar quais são os mecanismos que nos impulsionam a tomar certas decisões. Na última década, reaceso pelas recentes descobertas da ciência, o debate acerca do Livre-arbítrio dos homens passou a ser reconsiderado como problema fundamental para a Filosofia da mente e para a Ética. A Neurociência, embasada nos experimentos de Benjamin Libet (1916-2007) e de John D. Haynes (1971-*), ganhou enorme visibilidade, e como jamais na história, esteve tão presente em debates. Há quem defenda que a mente se reduz aos elementos simples da física, obedecendo às regras causais, e há também, casos tanto de filósofos quanto de cientistas que acreditam que a mente está realmente para além das condições físicas da natureza. O filósofo Benedict de Spinoza (1632-1677), em sua obra Ética, pressupunha que com sua teoria ontológica, o homem não era dotado do Livre-arbítrio, mas, que ainda assim, era livre. Separados por ao menos três séculos, aproximar a Liberdade proposta por Spinoza da condição causal determinista Fisicalista proposta pela Neurociência, a cada momento se faz menos assustadora, e se mostra, pelo contrário, mais possível e real. A relação Spinoziana entre Livre-arbítrio e Liberdade surge como decorrência das premissas básicas de sua proposta ontológica monista, que estabelece o desenvolvimento de todos os meios de existência como decorrentes de uma primeira substância, isto é, Deus ou Natureza. Tudo que segue adiante deste movimento de existência da substância primeira, respeita à necessidade natural do existir e ser das coisas naturadas, que em nada se difere da crença em determinação causal à qual os neurocientistas Fisicalistas se apegam. Os experimentos realizados por

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Inexistência do livre-arbítrio... 215

B.Libet e J.Haynes apenas corroboram aquilo que Spinoza já havia deduzido logicamente, que a mente é a ideia do corpo, e que, portanto, na maior parte do tempo somos escravos inconscientes das Necessidades da nossa natureza, ou para os cientistas, as leis da física natural. Spinoza, por meio de sua ontologia pode prever que a livre-vontade não era possível ao homem mediante os efeitos que lhe eram externos, e que, portanto, livre-arbítrio é apenas uma ilusão. O ponto de convergência entre Neurociência e spinozismo se dá ao concluir que não é possível a produção de efeito sem causa, e que, o homem é tão sujeito às leis da física/Natureza quanto qualquer outro objeto do mundo. Por fim Spinoza propõe um modelo de Liberdade sem Livre-arbítrio baseando-se em sua teoria dos três gêneros do conhecimento, onde torna-se possível atos criadores em que o indivíduo se autodetermina criando necessidades. Esta proposta Spinoziana, ainda que moldada sobre outros termos, reaparece no discurso dos cientistas Fisicalistas, afirmando ainda mais a compatibilidade entre a teoria do filósofo com as teorias científicas atuais. Portanto a aproximação entre o pensamento causal de Spinoza e o pensamento proposto pelos neurocientistas Fisicalistas, faz-se pertinente, pois apesar de partirem de pontos distintos, parecem nos conduzir às mesmas conclusões, de que não temos livre-arbítrio, mas ainda assim somos livres. PALAVRAS-CHAVE: Espinosa; Spinoza; Neurociência; Fisicalismo; Livre-arbítrio. REFERÊNCIAS SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. 2. ed. 2. Reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

SPINOZA, Benedictus de. Tratado da correção do intelecto. Trad. Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São Paulo; Coleção os pensadores, Abril Cultural, 1983.

CHAUÍ, Marilena. A nervura do real II: imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

HARRIS, Sam. Free Will. New York: Free Press, 2012.

216 O ensino e a filosofia da ciência

BALAGUER, Mark. Livre-arbítrio. Trad. Alexandre de Azevedo Palmeira Filho. 1.ed. – São Paulo: Infopress Nova Mídia, 2016.

COSENZA M. Ramon. Por que não somos racionais: como o cérebro faz escolhas e toma decisões. Porto Alegre: Artmed, 2016.

Inexistência do livre-arbítrio... 217

XXIV

HIPÉRION, VIA EXCÊNTRICA E FORMAÇÃO: A DISSOLUÇÃO DAS DISSONÂNCIAS EM HÖLDERLIN

Tamara Havana dos Reis Pasqualatto*

RESUMO Foi para transmitir conteúdos filosóficos de grande importância por meio de um veículo estético intuitivo que o Hipérion foi pensado, elaborado e escrito – o que é diferente de especular a respeito desses temas – e ainda, talvez, para provar a possibilidade desse modo de transmissão desse tipo conteúdo. Hölderlin se mostrou extraordinariamente competente no tratamento de questões filosóficas: ele não só estudou e adquiriu uma vasta cultura filosófica como também produziu fragmentos teóricos através dos quais dialoga abertamente com a filosofia de sua época, produzida pelos autores do Idealismo alemão. Assim, uma apreciação completa do conteúdo do romance só é possível levando-se em conta o quanto a obra dialoga com os problemas filosóficos do período em que foi escrita, desde essa nova forma de escrita, por ele engendrada, na qual são apresentados de modo poético os problemas filosóficos. Um dos temas que mais ocupou seu pensamento foi o da superação da cisão entre sujeito e objeto, natureza e espírito. E na obra Hipérion apresenta uma solução a essas dissonâncias. Já que, enquanto não se conhece a fundo “[...] todo o pensamento subjacente a ele”, Hipérion torna-se um “[...] dos romances mais difíceis de se ler [...]” (Gabaudan (1996, p. 07). Na versão definitiva da obra é tratada a história de Hipérion, um homem maduro que retorna à sua terra natal, a Grécia, onde vive junto à natureza, após venturosas e dolorosas experiências. Desde aí escreve cartas a um amigo de origem alemã, Belarmino, para lhe narrar os acontecimentos de sua vida passada, da infância até o momento atual. Nesses relatos de suas experiências, alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, entusiasmos e frustrações, enfim, de seu aprendizado, o próprio ato de narrar vai transformando a maneira do agora eremita Hipérion ver

* E-mail: [email protected]

Hipérion... 219

as coisas que lhe aconteceram; nesse processo ele passa por uma última transformação e amadurecimento, pela possibilidade de revisitar e repensar a sua vida, proporcionada pela elaboração mesma destas cartas. Assim, mostra-se como não sendo mais o mesmo o Hipérion que escreve cartas a Belarmino e o Hipérion de que falam essas cartas, uma vez que elas não são escritas durante os acontecimentos, mas sim muito depois do ocorrido. Desse modo há um distanciamento temporal entre o eu narrador (o eremita que vive retirado na Grécia) e o eu que atua nas cartas (o jovem Hipérion). Esses acontecimentos, o do plano dos “[...] acontecimentos reais (A)” e o da reflexão do eremita que “escreve acerca de tais acontecimentos (B)”, podem ser organizados do seguinte modo: o Hipérion eremita que conta sobre seu passado não o faz como um simples narrador de histórias que as relata como um terceiro, alheio frente aos acontecimentos, como um expectador externo. Ao contrário, ele implica-se nesse passado e no momento em que relata também reflete acerca dos fatos; e desse modo o eremita vai ser transformando ao fio de suas reflexões. (Ferrer 1993, p.133) Assim a obra Hipérion se encerra afirmando que “[...] as dissonâncias do mundo são como a discórdia dos amantes [...]”, que “[...] a reconciliação está latente na disputa e tudo o que se separou volta a se encontrar [...]”, tal como “[...] as artérias se separam e retornam ao coração, e a vida una, eterna e fervorosa é tudo” (HÖLDERLIN, 2003, p. 166). Hipérion consegue, ao final de sua vida, encontrar essa medida divina, e cumpre o seu destino, alcançando a harmonia. Todavia, há um único modo de saber de que modo ele consegue isso: seguir o caminho percorrido pelo herói, isto é, sua via excêntrica. O objetivo do presente texto é discutir a função do conceito de via excêntrica desenvolvido, em conexão com a principais implicações dele no decorrer dos dois planos de narração do personagem, o dos acontecimentos reais de sua vida e no dos efeitos operados nela pelo segundo momento da reflexão a que se voltou Hipérion. Porém, para saber como ele consegue isso, é necessário, e é isso que o presente texto visa discutir. PALAVRAS-CHAVE: Hölderlin; poesia; filosofia. REFERÊNCIAS FERRER, Anacleto. La Reflexión del eremita: Razón, revolución y poesia en el Hipérion de Hölderlin. Madrid: Ediciones Hipérion, 1993.

220 O ensino e a filosofia da ciência

GABAUDAN, Helena Cortés. Claves para uma lectura de Hipérion: filosofía, política, ética e estética em Hölderlin. Madrid: Ediciones Hipérion, 1996.

HÖLDERLIN, Friedrich. Hipérion ou o Eremita na Grécia. Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.

Hipérion... 221

XXV

HEIDEGGER E KIERKEGAARD: CONSONÂNCIAS

Leosir Santin Massarollo Junior* Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

RESUMO Søren A. Kierkegaard e Martin Heidegger são enfáticos em "fixar" a angústia no mais profundo, originário e estrutural "recanto" do eu/Dasein. A tarefa aqui proposta é "percorrer" e analisar os pontos culminantes de tal conceito, a saber, a angústia, de modo a conquistar um possível denominador comum que nos forneça um território favorável para que a presente investigação avance. O que está propriamente em jogo é a "atuação" deste fenômeno/disposição privilegiada, o processo existencial/ existenciário "posto em marcha" pela existência e a problemática que envolve concepções em que a angústia "determina" o estrato onde o eu/Dasein deve crescer e medrar. Em seguida, a pesquisa abordará as seguintes conjecturas reguladoras, a serem corroboradas no decurso do texto: de que maneira a angústia põe o eu/Dasein num processo de autodescoberta progressiva? Como a angústia, quando tonalidade afetiva predominante, retira o Dasein do fenômeno essencial da inautenticidade, conduzindo-o por caminhos que só ele conhece, a saber, a autenticidade? Como a angústia, como índice da interioridade do eu, coincide com "vertigem da liberdade" e, no final, converte-se em "serva fiel"? Em seu conjunto, as questões agora levantadas, e as que serão levantadas durante a investigação, deverão contemplar os desdobramentos constitutivos das filosofias de Kierkegaard e de Heidegger no tocante ao fenômeno da angústia. Cabe indagar acerca do elenco temático e da dinâmica problematizadora. O homem toma consciência de si em estado de angústia; esta tonalidade afetiva fundamental expressa sua existência mais originária. A angústia está sempre em nós, participa da nossa condição de homem. Quando encarada em sua essência, nota-se que a angústia está ligada ao nada. "A angústia não é uma apreensão do nada. Entretanto, o

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

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nada se torna manifesto por ela e nela [...]” (QUE É METAFÍSICA, 1969, p. 33). Esta assertiva nos remete a outra: a ausência de objeto deste fenômeno. A posição de ambos os filósofos abordados volta a se equivaler: nada de externo afeta ou motiva a angústia; trata-se de uma desarmonia, um descompasso onde o horizonte da cotidianidade "fecha-se" para que, num movimento sem deslocação, o Dasein seja "remetido" a individualidade, ao nada constitutivo, onde acontece o essencial "ultrapassar" o ente. A possibilidade e a liberdade passam a assediar o Dasein, aprofundando a angústia e, concomitantemente, o contato com os recantos mais recônditos da individualidade. Dispositivo ou armadilha, o essencial da angústia desvela-se neste mencionado recolhimento. PALAVRAS-CHAVE: angústia; nada; eu; Dasein; liberdade. REFERÊNCIAS HEIDEGGER , M. Ensaios e Conferências/Martin Heidegger. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

___________. Ser e tempo. Edição em alemão e português com tradução de Fausto Castilho. Campinas, SP: Editora Unicamp, RJ: Vozes, 2012.

_________. Fenomenologia da vida religiosa. Trad. Enio Paulo Giachini, Jairo Ferrandin e Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes, 2014.

KIERKEGAARD, S. A. Migalhas filosóficas. Trad. Ernani Reichmann e Álvaro Luiz Montenegro Valls. Vozes: Petrópolis, 1995.

_________. O conceito de angústia. Trad. Álvaro Luiz Montenegro Valls. Vozes: Petrópolis, 2010a.

_________. O desespero humano. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: EdUnesp, 2010b.

FERRO, N. Estudos sobre Kierkegaard. São Paulo: LiberArs, 2012.

KAHLMEYER-MERTENS, R. S. 10 lições sobre Heidegger. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

224 O ensino e a filosofia da ciência

LÖWITH, K. De Hegel a Nietzsche: a ruptura revolucionária no pensamento do século XIX. São Paulo: EdUnesp, 2014.

STEIN, E. Compreensão e finitude - estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: EdUnijuí, 2001.

VALLS, A. L. M. Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado. Porto Alegre: Escritos, 2012.

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XXVI

GUERRA E PAZ SEGUNDO NORBERTO BOBBIO

Eduardo Bartzen da cunha* José Francisco de Assis Dias**

RESUMO Norberto Bobbio, filósofo e jurista italiano, nasceu dia 18 de outubro de 1909, na cidade de Torino, seu pai se chamava Luigi Bobbio, e era um cirurgião médico muito conhecido, casado com Rosa Caviglia. Tanto Luigi quanto Rosa sempre foram pais que se preocupava com o filho, dando a ele uma ótima infância e adolescência numa casa muito bela e, apesar de ser tido como rico, sempre foi muito humilde e soube valorizar o pouco. Toda a origem do pensamento de Bobbio a respeito tanto da democracia quanto de seus estudos sobre a ética e política se originam após sua entrada na resistência antifascista da qual o tornou revolucionário do movimento liberal-socialista. Bobbio, após participar da segunda guerra mundial, e sentir os abalos de uma guerra, começou a refletir e imaginar o problema existentes nas guerras atuais. A guerra, em grande parte dos casos é pensada como uma sociedade que busca atacar outras por sua vontade ou para benefício se sobrepondo a outra. A guerra, tanto antigamente como agora, nunca terá algum argumento que possa ser pensado para como forma de justificativa, mas Bobbio, devido ao fato de ter vivenciado uma resolve apresentar os argumentos pertinentes a mesma, mas Bobbio em nenhum momento se coloca como a favor da mesma mas sim os apresentas para introduzir ao que possa ser o seu pensamento sobre a paz. No que diz respeito a paz, existe a que é alcançada pela fé e a paz que Bobbio apresenta que é originada após o indivíduo sofrer a decadência da guerra e todas as suas formas de destruição e pavores que podem causar traumas ao indivíduo. O ser humano por natureza não é bom, pois sempre irá pensar na sua própria sobrevivência, mas Bobbio coloca a possibilidade de mudança presente em cada indivíduo e se houvesse uma reciprocidade, todos os seres vivos

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

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poderiam viver em harmonia, mas sabe-se que isso nunca será possível, pois algum estado sempre terá a ideia de se prevenir contra o outro. A guerra como forma de repreender os incorretos, nunca será uma forma justa de se ter justiça, pois algum estado vai sentir-se superior e em cima disso terá opção de escolha perante a vida alheia. Mas, para que haja uma harmonia, sempre será necessário que o ser humano seja regrado, dessa forma será obrigado a agir de forma correta para não cometer alguma infração e sofrer a consequência dessa ação. PALAVRAS-CHAVE: Resumo; XX Semana Acadêmica de Filosofia da Unioeste; Guerras; Conflitos; Pacifismo; Esperança; REFERENCIAS: BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

BOBBIO, Norberto. O problema da guerra e as vias da paz. São Paulo: Editora Unesp, 2003.

XXVII

GRAMSCI E A EDUCAÇÃO: A EDUCAÇÃO COMO TRANSFORMADORA DA SOCIEDADE

Rafaela Ortiz de Salles* RESUMO O presente artigo tem por objetivo explanar a concepção de educação de Antonio Gramsci, que viveu na Itália durante o regime fascista, em que presenciou a ascensão rápida da hegemonia burguesa e quanto a isso produziu grandes críticas. Gramsci foi filósofo, jornalista e grande crítico de sua época; como marxista herdou grandes lições de Marx, porém reformulou muitos de seus conceitos. Gramsci via na escola e na educação o poder de transformação da sociedade. Ele realiza então uma análise do modelo de educação da sua época a qual vai denominar de “Escola velha” ou “Escola classista”, tornando-se um crítico em relação à mesma, pois acreditava que esse modelo estava totalmente voltado ao sustento do sistema capitalista, sendo usado como mecanismo de dominação da sociedade. A partir disso, Gramsci produz uma nova concepção de modelo escolar a “Escola unitária” que deveria visar um ensino humanitário, abandonando a necessidade de um ensino cada vez mais metodológico. Gramsci priorizava a discussão pedagógica em torno do "exercer a cidadania" e acreditava que isso deveria ser um dos principais objetivos da escola, pois exercendo a cidadania e reivindicando seus direitos a sociedade civil estaria mais protegida da dominação e das ideologias da elite burguesa. Em Cadernos do Cárcere Gramsci traz a ideia que para se construir uma hegemonia é necessária uma força constante e organizada de toda a sociedade e essa seria a tarefa a ser realizada pela escola. Nesse sentido Gramsci não acreditava em uma “tomada” de poder que não fosse antecedida por transformações das visões de mundo e por mudanças de mentalidade. O teórico, que visava à construção do socialismo dentro da Itália fascista, acreditava que para este movimento realmente se concretizar, seria necessária a reformulação de toda a forma de pensar e agir da sociedade, e esse meio de transformação ocorreria no

* UNIOESTE – Campus Toledo; e-mail: [email protected]

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ambiente escolar. Neste trabalho, teremos a oportunidade de notar, tomada a perspectiva de Gramsci, o quanto a educação é transformadora do real, que apenas ela é capaz de mudar a concepção de uma sociedade, e que é a partir dela que pode surgir novas ideologias, assim como pretendia o teórico marxista. Gramsci, sempre reforçou que não existe uma sociedade sem ideologia, independentemente de qual ideologia estiver dominando no momento. Porém, na época em que escreveu suas críticas, sua grande preocupação era com o que a educação estava se tornando, pois aos poucos ela estava perdendo seu poder de formação de intelectuais para apenas formar cidadãos voltados para o mercado de trabalho; e é com essa grande crítica que trabalharemos no presente artigo. PALAVRAS-CHAVE: Gramsci; Educação; Escola unitária. REFERÊNCIAS GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Volume 2: Os intelectuais. O princípio educativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

SAVIANI, Dermeval. Gramsci e a educação no Brasil: para uma teoria gramsciana da educação e da escola. Disponível em: file:///C:/Users/USER/Desktop/gramsci%20e%20a%20educação.pdf

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. 4ª ed. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

FORTUNATO, Sarita Aparecida de Oliveira. Escola, educação e trabalho na concepção de Antonio Gramsci. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/educere/educere2009/anais/pdf/2015_2166.pdf

MONASTA, Attilio. Antonio Gramsci. Tradução: Paolo Nosella. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

XXVIII

GRAÇA E LIBERDADE NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO

Antonio Rangel dos Reis*

José Francisco de Assis Dias**

RESUMO Através desse trabalho, pretendemos aprofundar a ideia de graça e liberdade de Santo Agostinho, o estudo se dará pela análise da obra, bem como, através de leitura de artigos relacionados ao assunto. De início, partiremos do conceito de liberdade de Agostinho, ou seja, de que a liberdade está no fato de Deus conceder ao ser humano o Livre Arbítrio. Essa liberdade não significa que Ele não sabe de tudo, para Agostinho fomos criados por Deus, mas não fomos criados e programados para seguir exatamente aquilo que Ele programou, eis que nos deu o livre arbítrio, que seria a possibilidade de escolha entre uma coisa ou outra, sem nenhuma interferência na escolha... Liberdade, entretanto, constitui em algo sem nenhuma barreira, nem mesmo as barreiras morais. A liberdade que Deus nos concede, entretanto, se for pensada da forma como posta, não é total, portanto, não é liberdade. De fato, se através do livre arbítrio se desvia da ordem estabelecida, haverá uma consequência, que seria a perda de algo, da graça. A Graça, seria alcançada pelo amor, mas sem qualquer pagamento, pois Deus nada quer, pois de nada precisa, ele concede a graça. Porém, existe o problema do pecado que afasta o ser humano da Graça. É no exercício do livre arbítrio, agindo de acordo com a vontade de Deus que se alcança ou se concretiza a liberdade. Ainda quanto a Graça, não podemos perder de vista que a verdadeira ou a mais importante é a Salvação da Alma, que dá ao ser humano a possibilidade de entrar em contato com o Divino, mas, existem várias outras pequenas graças que alcançamos no dia a dia, são

* UNIOESTE – Toledo-PR; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

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coisas que acreditamos serem concedidas por Deus, por merecermos, tais como milagres, saúde, discernimentos e outros. Ainda, dentro dessa graça, existem, também, as virtudes, que, como dom de Deus, somente por força da graça que poderemos alcançar o mesmo ocorrendo com a vocação, que é graça. Mas, a problemática está no fato de exercermos o direito da liberdade em desacordo com a pretensão de Deus e mesmo assim alcançar algumas pequenas graças, bem como, em não conseguir uma graça mesmo cumprindo com as obrigações impostas por Deus. Também, iremos indagar sobre a impossibilidade da interferência de Deus sobre as criaturas, na verdade, sobre tudo que foi criado por ele, tanto sobre os seres humanos quanto os demais seres, por ferir, quem sabe, a ideia da onipresença ou das afirmações de que Ele não está nesse tempo, por estar fora do tempo. PALAVRAS-CHAVE: Graça; Liberdade; Santo Agostinho.

REFERÊNCIAS https://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo/article/viewFile/26088/18727

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Nova Cultural, 2004.

BUCKINGHAM, Will. BURNHAM, Douglas. (2011) O livro da filosofia: as grandes ideias de todos os tempos. Rio de Janeiro: Globo.

XXIX

GÊNESE E ESTRUTURA DA FORMA DINHEIRO EM MARX

Gilmar Derengoski* Jadir Antunes**

RESUMO De acordo com o filósofo alemão Karl Marx, o processo mercantil – a relação de troca estabelecida entre produtores, vendedores e compradores de mercadorias, desdobra-se constantemente no espaço e no tempo em categorias cada vez mais abstratas e ilusórias. Exemplo disso é o dinheiro ou a forma-dinheiro que por si só não possui nenhum valor, atua no mercado como regulador universal do processo mercantil sem possuir utilidade alguma além de equiparar mercadorias das mais distintas formas. Para Marx, a objetividade que o dinheiro proporciona ao processo mercantil acaba ofuscando toda a realidade da mercadoria bem como a realidade dos agentes envolvidos nesse processo. A realidade concreta, sensível e objetiva da produção mercantil é ocultada em função de algo que parece possuir vida própria no mercado, o valor – a grandeza de valor representada pelo dinheiro. A partir disso Marx objetiva “realizar o que jamais foi tentado pela economia burguesa, a saber, provar a gênese da forma-dinheiro” (MARX, 2013, p. 125). Para isso, remete suas análises aos tempos mais remotos do modo de produção capitalista, analisando de perto a forma mais simples de relação entre duas mercadorias – a troca direta e objetiva entre duas mercadorias, o escambo propriamente dito, afirmando que o enigma da forma-dinheiro, jamais solucionado pela econômica burguesa tradicional não reside em suas formas mais consolidadas, mas sim em sua forma mais simples de manifestação. Segundo Marx a relação de troca direta entre mercadorias desdobrou-se em novas formas no decorrer do tempo, ocultando e ofuscando assim cada vez mais a realidade da mercadoria. Com base nisso, objetivamos nesse pequeno ensaio, demonstrar como Marx supera o enigma da forma dinheiro, partindo da relação simples

* UNIOESTE – Toledo; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

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entre duas mercadorias até sua forma mais consolidada – o dinheiro em equivalência geral, ou seja, como a grandeza de valor de uma mercadoria em relação com o mundo das mercadorias, abstraí todas as suas características sensíveis das mercadorias? Para tal, analisaremos o conceito de valor relativo, o conceito de valor equivalente, o conceito de valor, os desdobramentos da forma valor, a forma universal do valor e por fim a forma-dinheiro, ressaltando que “o dinheiro é uma forma equivalente geral do valor, na qual o valor das mercadorias aparece como puro valor de troca”, (BOTTOMORE, 2013, p. 176), sendo tal valor, algo puramente social, existente apenas em relação com outras mercadorias, independentemente de seu caráter útil. PALAVRAS-CHAVE: Dinheiro; Enigma; Relativo; Equivalente; Valor. REFERÊNCIAS MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Tradução Rubens Enderle. São Paulo-SP: Editora Boitempo, 2013. BOTTOMOTE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro-RJ: Editora Zahar, 2013.

XXX

FORMAÇÃO HUMANA: UMA VISÃO A PARTIR DE IMMANUEL KANT SOBRE A

EDUCAÇÃO NO ENSINO MÉDIO

Marcieli Postal*

RESUMO Este trabalho tem por objetivo analisar a concepção Kantiana de educação, tendo como base seu livro “Sobre a Pedagogia”, estabelecendo uma relação com o papel da Filosofia na formação humana no Ensino Médio. Na condição de futura docente, na área de Filosofia, compreendo a formação humana como base de uma formação básica aos estudantes do Ensino Médio. A educação concebe professor e aluno como sujeitos no processo do conhecimento. Não é a simples transferência de quem sabe a quem não sabe. De acordo com Saviani “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (1995, p. 11). Durante minha trajetória acadêmica, teve como papel fundamental na minha concepção de educação voltada para a formação humana a minha experiência há três anos como bolsista de Filosofia no PIBID – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência, ao me conceder uma visão diferente da sala de aula, ajudando na minha formação ao me proporcionar experiência, conviver durante a graduação no ambiente escolar, aplicar intervenções em sala, de maneira a abrir um universo completamente diferente do que costuma vivenciar enquanto estudante de ensino médio. Logo na introdução, Kant afirma “O homem é a única criatura que precisa ser educada” (KANT, 1999, p. 11), percebemos assim, que o ser humano é distinto de outros animais, sendo a educação fundamental na formação humana. Em nosso contexto atual, marcado pela era da globalização, da tecnologia, da informação instantânea, uma educação voltada à formação humana mostra-se indispensável para a construção do indivíduo consciente

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

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moralmente, ético, com responsabilidade, com visão para o coletivo. Portanto, através da Filosofia, procuro evidenciar a importância em buscar uma educação que possibilite a construção de uma capacidade crítica, potencializando as capacidades humanas, com vista à emancipação do ser humano, possibilitando, assim, uma solidificação no exercício da cidadania. PALAVRAS-CHAVE: Educação; Formação Humana; Docência; Ensino Médio; Filosofia; REFERÊNCIAS SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Critica: primeiras aproximações. 5ª Ed. Campinas, SP: Autores Associados,1995.

KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. 2º Ed. Unimep, 1999.

XXXI

FILOSOFIA E TEURGIA NO NEOPLATONISMO DE JÂMBLICO DE CÁLCIS: ANÁLISE ACERCA DO MÉTODO

DE ASCENSÃO

Gabriel Arienti Barbieri* José Francisco de Assis Dias**

RESUMO Diariamente nos deparamos com grandes e consagrados nomes e pensamentos da filosofia. Estes pensamentos, como de Platão e Aristóteles, trataram de lidar com as primeiras questões da filosofia, que atualmente apenas reinventa-se ou usa-se de suas perguntas primeiras para responder a questionamentos hodiernos. Ambas filosofias deixaram discípulos que prosseguiram o pensamento de uma forma diferente, “não linear”. Este caráter é importante pois alegoriza, como uma filosofia não é estática e molda-se no caráter daquele que a pratica, gestando-se na forma do pensador que a carrega. Platão deu bases e fundamento ao neoplatonismo. Dentro deste mesmo, pode-se colocar dois círculos: o primeiro, propagado por Plotino por meio de seus escritos, unificados por seus discípulos e posteriormente intitulado Enéadas; o segundo, guiado por Jâmblico, nascido em Cálcis, ao qual teve contato com os discípulos de Plotino e fundou uma escola chamada Apamea, na Síria (LIMA, F. L, 2013, p. 3). No que tange o aspecto mais importante de toda filosofia, poder-se-ia chamá-lo de Telus Filosófico, isto é, a finalidade, poder-se-ia elencar a felicidade mediante a sabedoria e a virtude, mas que se interligam diretamente no grau de experiência e proximidade entre o filósofo e o Uno (a fonte criadora, ou até mesmo, a Divindade). Isto torna-se divisor de águas e contraditório entre Plotino e Jâmblico, na medida que divergem em suas ferramentas para tal feito. Plotino como contribuinte filosófico de uma tradição cristã e de uma herança filosófica teológica, assume papel importante de formar e auxiliar as bases de tais

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

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filosofias, assim como ocorreu com Platão. Desta forma, o autor empreende na filosofia, mediante a contemplação do Uno, isto é, a proximidade do homem à fonte, tendo como ferramenta um estado meditativo, em busca do êxtase e deleite de encontrar-se perante a presença da Deidade. Este estado de “contemplação” constitui a chamada “conversão”, o retorno à fonte, que se inicia ao perceber sua queda (como mostra Platão no diálogo “Fédon”). Jâmblico atua mediante o ensinamento platônico, unido ao pensamento de Plotino, mesclando-o com um ensinamento puramente pagão (de tradição helênica), inspirado sempre no antigo culto Órfico, nos mistérios de Elêusis, à linhagem grega passada por Homero e Hesíodo e parte de sua herança cultural, interligada ao Egípcios, tomando proporções diferentes de seu "rival" filosófico. Nisto, ele posiciona-se admitindo a incapacidade da filosofia de chegar à Divindade, e propondo a necessidade da atuação destas forças superiores, as quais se contempla mediante o êxtase da prática Teúrgica, influindo na vida sensível, auxiliando ao retorno à fonte (REALE, 2008, p. 167). Insere uma nova arte (Τέχνή), chamada de Θεουργική Τέχνή (Arte Teúrgica), ou simplesmente, Teurgia, (MOREIRA, J. C, 2013, p. 67): A Teurgia (JAMBLICO, 1997, p. 155, tradução livre) assume papel indispensável, auxiliando e trabalhando em conúbio com a filosofia, retratada claramente na escola filosófica de Jâmblico (LIMA, 2013, p. 3), mas que traz consigo um caráter enigmático e amplamente discutido por tempos sobre sua eficácia, mas elevada como fato perante aqueles que falaram sobre ela. PALAVRAS-CHAVE: Neoplatonismo; Jâmblico; Teurgia; Alma; Filosofia Antiga, Filosofia Greco-Romana. REFERÊNCIAS REALE, Giovanni. Plotino e Neoplatonismo / Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, nova edição corrigida, abril de 2008.

LIMA, F. L. Jâmblico de calcis, uma abordagem introdutória ao filósofo do neoplatonismo. Rio de Janeiro: Principia, 2013.

MOREIRA, J. C. Filosofia e Teurgia no De Mysteriis de Jâmblico: Um estudo dos Livros I, II e III. São Paulo: PUC-SP, 2013.

238 O ensino e a filosofia da ciência

JÂMBLICO. Sobre los Misterios Egipcios. / Tradução de Enrique Ángel Ramos Jurado. Madri: Editorial Gredos, 1997.

Filosofia e teurgia... 239

XXXII

FEUERBACH E MARX: FETICHISMO E CAPITALISMO

Péricles Ariza* Rosalvo Schütz**

RESUMO Em Preleções Sobre a Essência da Religião, Ludwig Feuerbach procura complementar suas teses apresentadas em A Essência do Cristianismo, onde a partir de uma união entre a antropologia e a fisiologia procura descrever e refletir sobre a gênese e essência da religião ou adoração religiosa. Além de nos depararmos com as críticas dirigidas à teologia e aos chamados filósofos teólogos, entre eles Hegel, encontramos, também, importantes contribuições de Feuerbach para a filosofia, como por exemplo, sua teoria materialista e sua crítica ou estudo da religião e, neste caso em especial, sobre o fetichismo. Tendo sua origem primeiramente na adoração dos objetos e imagens da natureza e, em seguida, na adoração dos objetos e imagens criadas pela imaginação ou fantasia do espírito humano, o fetichismo e a religião tornaram-se, segundo Feuerbach, durante o curso evolutivo da história humana, em forças e instrumentos poderosos de dominação e alienação, assim como uma força de oposição à cultura (ciência) – embora estas aparentemente possam parecer “evoluir” ou “progredir” – e ao progresso racional dos seres humanos, progresso esse tanto no campo moral e social, da relação dos homens entre si e consigo mesmos, como em termos materiais e de relação do homem com a vida, ou seja, com a natureza. Para Feuerbach, o conflito e a desarmonia da relação entre o homem e a natureza, assim como da relação do homem consigo mesmo, tem sua origem na alienação humana. O problema do fetichismo levantado por Feuerbach em suas Preleções sobre a essência da religião será apropriado e reelaborado de forma genial e inovadora por seu contemporâneo Karl Marx em O Capital, quando este busca analisar e revelar os segredos por detrás da forma mercadoria e da forma dinheiro, assim como em toda a sua crítica

* UNIOESTE; e-mal: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

Filosofia e teurgia... 241

à economia política e ao estado moderno. A análise crítica desenvolvida e apresentada por Marx em O Capital sobre a mercadoria, o caráter fetichista desta e da economia política, onde formas autônomas e estranhas de relações passam a dominar os próprios produtores, certamente carrega muito da contribuição teórica e da filosofia materialista de Ludwig Feuerbach. Seja como for, como bem defendeu Marx em suas Teses sobre Feuerbach, não basta nos limitarmos a uma crítica da religião ou, ainda, não basta que a filosofia se limite a interpretar o mundo, é preciso transformá-lo. Assim sendo, não basta que interpretemos o capitalismo e cheguemos à conclusão de que se trata também este de uma religião, mas trata-se de identificar as condições sociais que os legitimam para, através de uma práxis transformadora e emancipadora, combater esta religião e seu fetichismo alienante e anti-humanista, trata-se de transformar a terra e a sociedade em um habitáculo mais humano e racional. PALAVRAS-CHAVE: Religião; Fetichismo; Capitalismo; Praxis; Emancipação. REFERÊNCIAS FEUERBACH, Ludwing. Preleções sobre a essência da Religião. Campinas, SP: Papirus, 1989.

_________. Essência do cristianismo. Campinas, SP: Papirus, 1988.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital; - São Paulo: Boitempo, 2013.

SCHUTZ, Rosalvo. Religião e Capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

_________. Feuerbach e Marx: duas críticas a partir de um mesmo horizonte. Ágora Filosófica, Ano 1, No1, jan-jun/2001.

XXXIII

FÉDON: A TEORIA DA REMINISCÊNCIA

Emerson Diego Maier* Nelsi Kistemacher Welter**

RESUMO Neste artigo, tive por intenção fazer uma análise interpretativa e temática da “teoria da reminiscência” de Platão, tomando por base para meu artigo o diálogo Fédon. O referido diálogo se passa em uma prisão de Atenas, no último e derradeiro dia de vida de Sócrates, que por sua vez, estava cercado por seus discípulos e admiradores. O assunto que perdura por todo o diálogo é a indagação sobre “a imortalidade da alma”. É verdadeiramente espantosa a conduta genuinamente bonançosa e natural, com a qual Sócrates se comporta frente à morte. Este momento em questão carrega consigo uma descomunal indagação: Por que Sócrates esteve tão sereno em seu leito morte? Em algumas falas inicias do referido diálogo, Sócrates, demonstra ter dúvidas com relação à condição “pós morte”, no entanto, no decorrer do diálogo, ele defende firmemente sua tese, sem “sofismas” ou subterfúgios. Além do que, Sócrates, discorre racionalmente e honradamente até o derradeiro alento de vida, no entanto, acolhe e examina potencialmente as objeções de Símias e Cebes, contra a teoria da reminiscência. No que diz respeito à “teoria da reminiscência”, sobre a qual é-me imperioso tratar neste artigo, esta possui duas funções relativas e diversas: psicológica, gnosiológica e metafísica. A função psicológica intui, que as almas singulares são entes “pré-existentes” em relação às concreções perecíveis do mundo físico e consequentemente, aos corpos sensíveis. As almas singulares “sempre já foram” não podendo ser pensadas como um “quando” ou “tempo” além da morte ou antes da vida, mas pensadas através de um “sempre já foram” mantendo sua entidade singular e genuinamente peculiar. As funções gnosiológicas e metafísica, justificam

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professora Doutora da UNIOESTE.

Filosofia e teurgia... 243

a possibilidade do “Saber” (a priori) e consequentemente a singularidade absoluta e suprema das Formas. PALAVRAS-CHAVE: Sócrates; Reminiscência; Gnosiológia; Metafísica; Eterno REFERÊNCIAS PEGORARO, Evandro; SOUZA, Juliano de. Concepção e imortalidade da alma em Platão. Disponível em: [http://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/pdfs/2010_02_02.pdf] 2010.

ARAÚJO, Hugo Figueiras de. A Estetização da Alma pelo Corpo no Fédon de Platão - Universidade Federal da Paraíba - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa Integrado de Doutorado em Filosofia [http://tede.biblioteca.ufpb.br/bitstream/tede/5615/1/arquivototal.pdf] 2012.

COSTA JÚNIOR, Lourival Bezerra da. O Argumento dos Contrários e a Hipótese Sobre a Imortalidade no Fédon de Platão - Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa Integrado de Doutorado em Filosofia UFPB – UPFE – UFRN. Disponível em: [http://www.cchla.ufrn.br/ppgfil/paginas/doutorado/tese/PDF/tese_lourival_bezerra.pdf] 2013

XXXIV

ENSINO DA FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NO CAMPO: ANÁLISE DAS DIFICULDADES, NECESSIDADES E

DESENVOLVIMENTOS

Jéssica Dal Piva*

RESUMO O objetivo desse artigo é apresentar uma análise sobre a interação entre o ensino da filosofia e da sociologia e a educação do campo. Visando as dificuldades dos professores diante dessa nova abordagem e as necessidades dos alunos das escolas do campo, e ainda, fazendo uma análise sobre como poderiam ser aplicadas esses aprendizados e deixando mais próximo do estudante os temas e assuntos da aula. O tema surgiu a partir de inquietações, referentes à forma de ensino do campo, a qual também fui ensinada, com professores por vezes despreparados e com pouca referência das questões sociológicas e também das questões que se referem ao campo. Dessa forma, pode-se proporcionar uma redefinição da educação do campo através da filosofia e da sociologia, aprontar melhoramentos para a qualidade de vida no meio rural e as necessidades de preparar os professores para trabalhar com a realidade desses estudantes. Talvez a maior dificuldade, seja apresentar para esses estudantes, como essas duas disciplinas, contribuem para o seu cotidiano. É preciso que se faça uma reflexão sobre os problemas, dificuldades e as necessidades, das atividades escolares e da forma de ensino, para que em equipe decidam e façam mudanças necessárias, resultando assim em uma proposta eficaz e também democrática. É preciso visar o crescimento do aluno e da escola em que ele está inserido, aqui me refiro ao ensino-aprendizagem. Assim, a filosofia e a sociologia possuem algumas estratégias que possam desenvolvem a permanência desses jovens no campo, conhecendo os sujeitos e objetos dessas disciplinas. Desenvolver um ensino-aprendizado que contribua com esse desenvolvimento pessoal e profissional, é de

* E-mail: [email protected]

Ensino da filosofia... 245

grande relevância. Pode ser analisado também, que muitos estudantes buscam o aprendizado para que possam permanecer no meio rural. Por fim, tanto a filosofia e a sociologia relacionada à educação do campo podem ajudar a garantir uma qualidade na educação e entender a realidade rural, por meio de sua vinculação com as ações do campo e do conhecimento teórico. Assim, a filosofia e a sociologia no meio rural contribuem para o desenvolvimento. Eles agregam muitos valores e questões dos jovens, educação, desenvolvimento, opiniões e reflexões sobre o meio que estão. Juntos são importantes na elaboração de novas visões e permanência no meio que vivem. Desenvolver o rural é procurar a qualidade de vida de forma garantida aos jovens, tanto a filosofia, quanto a sociologia é o vínculo principal para que as contribuições desse desenvolvimento aconteçam, segundo o conhecimento teórico e as concepções que são apresentadas. É preciso mostrar aos jovens do meio rural e também do meio urbano que não é apenas agricultura, plantações diversas e criação de animais que existe no meio rural, e que nesses campos podem ser desenvolvidas as tecnologias, histórias de vida, diversidades culturais e de raças, entre vários outros aspectos, que também são do meio urbano. As dificuldades encontradas nos meios rurais devem ser sanadas com as ajudas governamentais, pois, existem ali, muitas questões que envolvem a transformação da sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia; Sociologia; Educação no Campo. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei nº. 11.684, de 02 de junho de 2008 - das Diretrizes e Bases da Educação Nacional: legislação básica. 2. ed. Brasília: PROEP, 1996a.

CADERNOS SECAD 2. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Educação do Campo: diferenças mudando paradigmas. Henriques, Ricardo; Marangon, Antônio; Delamora, Michiele (orgs) Adelaide Chamusca. Ministério da Educação. Brasília – DF, março de 2007.

DOURADO, L. Gestão escolar democrática: a perspectiva dos dirigentes escolares da rede municipal de Goiânia. Goiânia: Alternativa, 2003.

246 O ensino e a filosofia da ciência

FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? 7ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.

LDB. Lei de Diretrizes e Bases. Lei nº 9.394, de 20 de setembro de 1996.

RIOS, José Arthur. O que é e como surgiu a Sociologia Rural. 1979.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

TOMAZI, Nelson Dacio. Sociologia para o Ensino Médio. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

________. “Entrevista com Nelson DácioTomazi”. In: Revista Eletrônica Inter-Legere. Número 03 (Jul/Dez 2008).

Ensino da filosofia... 247

XXXV

DIREITOS DO HOMEM COMO PRÉ-REQUISITO PARA A IMPLANTAÇÃO DA DEMOCRACIA E DA PAZ NO PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO (1909-2004)

Medeia Lais Reis*

José Francisco de Assis Dias** RESUMO Abrir caminhos e não fechar as portas para o conhecimento, são as razões que justificam a influência que Norberto Bobbio teve nos vários campos de sua atuação acadêmica. A contribuição de Bobbio ao conhecimento encanta e é de grande validade para o homem hoje, pois, desde a modernidade o objeto de estudo da filosofia tem sido o homem e todas suas relações com o mundo. Os nexos que Bobbio deixou sobre as questões dos direitos do homem, razão, paz e democracia fundamentam o interesse por estudá-lo, além da grande contribuição acadêmica, pois, quando se trata de um tema tão abrangente e presente no dia-a-dia, envolve-se com o que se julga fundamental para obtenção da tão almejada eudaimonia; o que Bobbio irá chamar de paz. Obtém-se através de seus escritos valiosa contribuição, seja no âmbito acadêmico, filosófico e social. Bobbio considera os Direitos do homem como direitos históricos, ou seja, direitos nascidos em alguma circunstância: o homem e sua relação com a sociedade (nada está determinado previamente, são as ações concretas realizadas no cotidiano que definem uma determinada ação), sempre havendo novos desafios a serem questionados. Bobbio uniu pensamento e ação ao longo de sua vida, o que se torna ainda hoje de grande importância para todo leitor que almeja por direitos e que deseja a paz. Os direitos do homem por maior importância que tenham, são direitos históricos, isso quer dizer: nascidos em alguma circunstância, que se caracterizam por lutas por liberdade, nascidos de forma gradual, através dessa afirmação a pesquisa será guiada

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

Direitos do homem... 249

pela obra coletânea A era dos direitos, de Norberto Bobbio. Os direitos do homem são condições para haver democracia; sem direitos do homem não há democracia. Bobbio entende que um método democrático é necessário para proteção dos direitos do homem. Em muitos momentos recorre-se à obra intitulada Dicionário de Política, onde alguns termos que soam confuso ou de difícil compreensão, lá ficam mais claros e melhor conduz a pesquisa. O problema dos direitos do homem é estritamente ligado aos problemas da democracia e da paz, problemas esses aos quais Bobbio dedicou a maior parte de seus escritos políticos. A proteção e o reconhecimento dos direitos do homem estão na base das constituições democráticas modernas: a paz é necessária para o reconhecimento e a efetiva proteção dos direitos do homem em cada Estado e no sistema internacional. Direitos do homem, democracia e paz são três atividades necessárias de um mesmo movimento que se dá na história: sem direitos garantidos ao homem não tem como haver democracia, e sem democracia não existem as mínimas condições para soluções pacíficas dos conflitos. Bobbio traz através dos três movimentos históricos (Direitos do Homem, Democracia e Paz), a busca do ideal da “paz perpétua”; a Democracia é a sociedade dos cidadãos, e os indivíduos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos, direitos fundamentais, assim, haverá paz estável, paz essa que não tenha a guerra como alternativa. Bobbio irá discutir os direitos do homem tanto em um contexto histórico quanto teórico. PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos; Democracia; Paz; Norberto Bobbio. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BOBBIO, Norberto. O Terceiro ausente: ensaios e discursos sobre a paz e a guerra.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 2007.

250 O ensino e a filosofia da ciência

BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

DIAS, José Francisco de Assis. Não Matar!: o princípio ético não matar como imperativo categórico no pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004). Sarandi-PR: Humanitas Vivens, 2008.

DIAS, José Francisco de Assis. Norberto Bobbio: introdução ao pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004). Sarandi-PR: Humanitas Vivens, 2009.

DIAS, José Francisco de Assis. Direitos Humanos: introdução à história dos direitos humanos. Sarandi-PR: Humanitas Vivens, 2009.

DIAS, José Francisco de Assis. Consensus omnium gentium: o problema do fundamento dos direitos humanos no pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004). Maringá-PR: Humanitas Vivens, 2013.

Direitos do homem... 251

XXXVI

DEUS [MORAL] ESTÁ MORTO! O CRITICISMO NÃO PODIA IR MAIS LONGE DO QUE MOSTRAR A

INDEMONSTRABILIDADE DO SISTEMA DA RAZÃO

Vanessa Brun Bicalho* Luciano Carlos Utteich**

RESUMO A filosofia transcendental de Kant assenta-se na “arte dos sistemas” e busca sustentar a unidade dos conhecimentos sob uma ideia. Este fomento dos fins essenciais da razão (Vernunft) só pode ser admitido desde o pressuposto de que o pensamento alcance um sistema organizado. Um tal sistema da razão se mostra lícito, portanto, se forem estabelecidas não só as possibilidades, mas também os limites da razão pura. Nesse sentido cada uma das esferas da razão deve estar articulada segundo uma ideia; a isso Kant denomina de filosofia. Visto que a filosofia tem, necessariamente, dois objetos (natureza e liberdade), seu propósito é duplo: demarcar os limites entre aquilo que podemos conhecer (instituído por uma Metafísica da Natureza) e aquilo que podemos pensar (possível por uma Metafísica da Liberdade). Uma vez que o pensamento de Schelling (principalmente nas Cartas filosóficas sobre o Dogmatismo e o Criticismo, 1795) se opôs ao modo kantiano de sustentar a unidade sistemática, enquanto era apoiada por um apelo ao argumento do Deus moral, tematizaremos essa esfera do puro pensar da filosofia transcendental, desde o propósito daqueles argumentos vinculados ao à construção do fim e da unidade do domínio sistemático. Kant recorreu ao conceito de sumo Bem como objeto e fim último da razão pura prática, após haver demonstrado o princípio da liberdade como fundamento da lei moral. E, assim como a razão pura (Vernunft) exige na esfera teórica a totalidade absoluta das condições, na esfera prática coube à faculdade da razão prática conceber o sumo Bem como arquétipo da totalidade. Mas o passo além, conduzido por Kant, foi o de buscar

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE

Deus [Moral]... 253

auxílio para demonstrar isso nos postulados práticos, visando alcançar por aquele arquétipo o repouso e a unidade da razão. Isto significou ter sido colocada tanto a possibilidade como a promoção da felicidade como dependente do postulado da existência de Deus. Schelling ateve-se a isso, a saber, ao fato de que esse postulado é antes um ideal teórico atrelado ao pensamento de um fim e de uma meta, e não uma prova racional da realidade de Deus. Nesse sentido a questão sobre os limites da razão, já tematizada por Kant, é por ele recolocada. E nesses termos é reformulada essa indagação: faz-se necessário exclusivamente recorrer aos postulados da razão prática a fim de demonstrar a pertinência da noção de Deus (moral) no domínio da razão filosófica? Ainda que compactuem conjuntamente, Kant e Schelling, que a filosofia deve ser concebida desde uma unidade sistemática, não resulta o questionamento schellinguiano um aprofundamento da questão anteriormente posta por Kant? Para Schelling há um “fio solto” na tentativa kantiana de explicitar o postulado de Deus por meio de um postulado prático. No fundo, por meio desse postulado Kant funda o argumento de um Deus que tem de ser pensado exclusivamente sob ou por meio de um imperativo moral. Para Schelling há um estratagema teórico montado nesse argumento, desde o qual Kant procura evadir-se previamente “contra todo perigo, através de um Deus moral”. Isto é, Kant evita o peso e a densidade complexa da noção de Deus enquanto representa, como totalidade e infinitude, “uma potência absoluta”. Schelling pauta então um outro modo de admissão dessa noção, a saber, enquanto investiga a unidade subjacente aos e condicionadora dos postulados práticos, que se resumem a ser promessas inalcançáveis da razão: trata-se de procurar aquela unidade trazida originalmente pela natureza (Natur), em face da qual toda outra representação de unidade se mostre uma ideia vazia (a ideia de um Deus moral “[...] não tem sequer um lado filosófico; não somente não contém nada de sublime, mas não contém, de modo geral, nada; é tão vazia quanto qualquer outra representação antropomórfica” (Primeira Carta, p. 285). A falência dessa argumentação kantiana – de que nem Deus, nem o sumo Bem alcançam algo além do domínio meramente teórico – aponta, por isso, à insuficiência da tentativa de fazer da noção de Deus o conceito que dá amparo à unidade sistemática da razão transcendental. Ser fim último da moralidade significa coisa diferente do que ser unidade absoluta, que fundamenta a atividade mesma da razão transcendental como um todo. Por identificar aí uma fraqueza na razão explicitada por Kant, Schelling antevê o caráter ex

254 O ensino e a filosofia da ciência

machina do conceito kantiano de Deus e investiga um caminho para resolver essa aporia, na medida em que a razão é sistemática. Desse modo, o objetivo será tematizar a noção de Deus como o Incondicionado da natureza, mas a cuja unidade só é possível pensar desde uma outra perspectiva, uma crítica mas complementar à abordagem kantiana. PALAVRAS-CHAVE: Kant; Sistema da razão; Deus; Incondicionado. REFERÊNCIAS KANT, Immanuel. Crítica da razão pura – (1781/1ªed. - 1787/2ªed.). Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 7ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática (1788). Tradução: Artur Morão. 9ª Edição. Lisboa: Edições Setenta, 2008.

SCHELLING, Friedrich W. J. Cartas Filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo (1795). Os pensadores. Tradução: Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

Deus [Moral]... 255

XXXVII

DEBATE SOBRE A FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE CIÊNCIAS

Douglas Antonio Bassani*

RESUMO O objetivo da comunicação será expor o debate que aparece na segunda metade do século XIX sobre a inclusão ou exclusão da filosofia da ciência e também da história da ciência nos cursos de ciências da natureza. Mostraremos que no início desse debate o objetivo era o afastamento da filosofia e história da ciência dessas áreas, procurando fazer com que o acadêmico tivesse contato apenas com os manuais contemporâneos para um entendimento daquilo que a pesquisa laboratorial exigia, sobre os rumos contemporâneos da pesquisa, e não um contato, através de disciplinas, da filosofia e da história da área específica, na tentativa de fazer uma abordagem mais ampla do campo específico do conhecimento e também uma compreensão melhor da área da própria ciência. Um dos expoentes desse debate é o filósofo Thomas Kuhn, que defendia a autonomia da história e da filosofia da ciência em relação aquilo que deveria ser recortado dela para a explicação acadêmica, porém, entendia também que elas deveriam ser restringidas nesses cursos, por introduzirem um espírito crítico na seleção de paradigmas, quando o processo de desenvolvimento da pesquisa é o mais fundamental no período de ciência normal. Na década de 80 essas disciplinas voltaram a fazer parte dos currículos dos cursos de ciências, começando pelas universidades da Inglaterra e depois pelas Universidades da Europa de maneira geral, por entenderem que havia uma certa esterilidade em tais conhecimentos, e a tentativa de aproximação destas áreas com os anseios da comunidade científica era uma tarefa, altamente difícil diga-se, da filosofia e da história da ciência. O objetivo é debater essa reintrodução da filosofia e história da ciência nos currículos a partir da década de 80 a partir de uma perspectiva interessante fornecida por Michael Matthews através de dua obra

* Professor Doutor da UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Deus [Moral]... 257

“História, Filosofia e Ensino de Ciências: a tendência atual de reaproximação (1995)” e debater de que forma um conhecimento da natureza da ciência é possível através desta reintrodução. Nesta obra Matthews já não discute a necessidade da reintrodução, mas de que forma a história e filosofia da ciência poderiam auxiliar o acadêmico na compreensão de aspectos mais gerais de ciência, por exemplo, na tentativa de compreender que o trabalho com microestruturas atômicas não é algo inédito na contemporaneidade, mas que já foi pensado e elaborado teoricamente na filosofia grega; e a tentativa procuraria abordar quais seriam as semelhanças e diferenças entre a abordagem clássica, da abordagem teórica contemporânea acerca das microestruturas atômicas. Seria também uma forma de fazer recortes na história e debater filosoficamente sobre os principais desenvolvimentos contemporâneos da ciência nas suas mais variadas pesquisas. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia da Ciência; História da Ciência; Thomas Kuhn; Michael Matthews. REFERÊNCIAS MATTHEWS, Michael R. História, Filosofia e Ensino de Ciências: a tendência atual de reaproximação. In: Caderno Brasileiro de Ensino de Física. Florianópolis, v. 12, n. 3, p. 164-214, 1995.

KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo, Perspectiva, 1995.

SILVA, Marcos R. da. “História da Ciência e Natureza da Ciência”: debates e consensos. In: Caderno Brasileiro de Ensino de Física. Florianópolis, v. 30, n. 2, pp. 287-322, 2013.

XXXVIII

“CREATIO EX NIHILO”: A CRIAÇÃO A PARTIR DO NADA EM SANTO AGOSTINHO

Caroline De Paula Bueno*

José Francisco de Assis Dias** RESUMO A criação do mundo, desde a antiguidade, sempre teve diversas explicações, uma delas é a criação a partir do nada, do latim creatio ex nihilo, sendo essa uma hipótese defendida pelo filósofo e teólogo Agostinho, bispo de Hipona, que durante a idade média trouxe uma perspectiva sobre a criação do mundo por Deus; nessa hipótese o autor defende a ideia de que a criação do mundo só pode ocorrer devido a criação a partir do nada, pois outras formas seriam impossíveis, visto que, se se considera a criação por meio da emanação da própria substância de Deus ter-se-ia que desconsiderar que Deus é um ser infinito, imutável, que não é sujeito a alterações ou a destruição, por isso o que existe foi criado por Deus e não da natureza de Deus. Além disso, Deus cria tudo o que existe e não gera o que há no universo, visto que, para gerar algo pressupõe a derivação da substância de quem ou daquele que o gera; outro ponto que fortalece a hipótese de “criação a partir do nada” é quanto à diferenciação entre criação e fabricação, pois a fabricação exige uma matéria prima anterior, e como não há nada antes da criação feita por Deus essa ideia de fabricação é descartada. Assim sendo, a criação seria a única maneira possível da existência de tudo o que há. Dessa forma, por meio desse pequeno trabalho buscar-se-á trazer os principais conceitos e pensamentos do bispo filósofo Agostinho de Hipona sobre o tema da criação do mundo a partir do nada, creatio ex nihilo; para isso far-se-á uso do método de pesquisa bibliográfica a partir da obra “Confissões” do próprio autor estudado (Agostinho) e também de artigos acadêmicos que vão de encontro e estão relacionados com os

* Acadêmica da UNIOESTE/Campus Toledo; Bolsista PET – MEC/FNDE ** Professor Doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

Deus [Moral]... 259

pensamentos de Agostinho. Portanto, a criação a partir do nada (creatio ex nihilo), compreende um pensamento defendido pelo bispo de Hipona, com o intuito de elencar a hipótese mais aceita por ele, da criação, levando em conta que o surgimento do mundo por emanação não seria possível, visto que Deus é perfeito; além disso, a geração do mundo ou a fabricação também não são possíveis de serem pensadas já que a primeira depende de um ser gerador, e com isso o que é gerado possuiria características do seu gerador, por fim, a fabricação, que precisaria de uma matéria prima, e como não existia nada antes da criação, não se pode falar nem em fabricação, pois, seria um absurdo. PALAVRAS-CHAVE: Agostinho de Hipona; Criação do mundo; Creatio ex nihilo. REFERÊNCIAS COSTA, Marcos Roberto Nunes; BRANDÃO, Ricardo Evangelista. A teoria da criação, segundo Agostinho. Universidade Católica de Pernambuco. Ágora Filosófica, Ano 7; n. 1; jan./jun. 2007 – 7.

HIPONA, Agostinho. Confissões. 2007. Acervo digital <http://img.cancaonova.com/noticias/pdf/277537_SantoAgostinho-Confissoes.pdf> Acesso em: 20/11/2016.

________. Confissões. Editora Nova Cultura Ltda. Coleção os pensadores. São Paulo, SP. Edição 1999. Tradução Oliveira Santos e Ambrósio de Pina.

XXXIX

CONTRIBUIÇÕES DO CINEMA PARA O ENSINO DE FILOSOFIA

Michelle Silvestre Cabral*

Célia Machado Benvenho** RESUMO Este trabalho visa apresentar uma abordagem filosófica realizada sobre a prática do uso da arte cinematográfica na escola. Para tanto, utilizamos a proposta de Júlio Cabrera, pensador contemporâneo autor da obra O cinema pensa (2006), entre outras. Para este autor, embora tradicionalmente os filósofos tenham adotado a forma textual de exposição de conceitos como seu estilo padrão, isso não significa que esta seja a única forma de desenvolver conhecimentos nesta área. Nos próprios textos filosóficos clássicos podemos verificar variações de linguagem e estilos, desde exposições sistemáticas, poemas, ensaios e aforismos. Segundo essa perspectiva, não haveria incompatibilidade em considerar o cinema e a literatura também como meios de problematizar questões filosóficas, formular ideias sobre o mundo e o homem, estabelecer relações, comparações, enfim, elaborar conceitos. Desta forma, a noção de conceito, concebida tradicionalmente como produto exclusivo do intelecto, resultado de uma depuração de todo elemento sensível e afetivo, precisaria ser reconsiderada/desconstruída. Cabrera pensa que o traço distintivo do conceito não seria meramente seu aspecto intelectual, pois ao nos depararmos com certas situações desdobradas em imagens, colocamos em atividade a capacidade organizativa do intelecto que, diante do material sensível-afetivo, entra em interação com ele. Este tipo de experiência gera o que Cabrera denomina de conceito-imagem, algo sem definição precisa, tornado compreensível unicamente na medida em que é instaurado a partir de uma experiência. Os conceitos-imagem presentes no cinema tornariam possível perceber aspectos do mundo não captados por uma

* Professora mestra da UNIOESTE, e-mail: [email protected] ** Professora Doutoranda da UNIOESTE, e-mail: [email protected]

Deus [Moral]... 261

racionalidade unicamente lógica que pauta a escrita filosófica. Neste sentido, para Cabrera, a experiência cinematográfica, marcada pelo impacto sensível, não deve ser reduzida a isso, pois abrange algo de intelectual também. Com a concepção de uma inseparabilidade entre afetividade e logicidade, o autor instaura o conceito de logopatia (logos e pathos), apontando para a superação da dicotomia rígida entre intelectualismo e afetividade e defendendo que a dimensão do afeto também pode oportunizar a cognoscibilidade de algo. Na esteira da teoria cinematográfica de Cabrera, acredita-se que o trabalho com o cinema na escola, a partir de uma abordagem filosófica, pode servir, entre outras coisas, para desenvolver o senso afetivo dos estudantes, além de envolvê-los de forma mais efetiva nas principais problemáticas sociais que os afligem e que constituem seu cotidiano. Através do trabalho de análise filosófica de filmes que retratem questões sociais de diferentes ordens, acredita-se poder propiciar uma aprendizagem ativa dos envolvidos, no sentido de contribuir para a transformação real de práticas e na desmistificação de temas urgentes, porém abandonados à margem das discussões formais da escola. Neste sentido, arriscamos que a experiência cinematográfica mediada pela leitura filosófica dos conceitos-imagem relativos às problemáticas sociais, possam produzir uma interação e apropriação de conteúdos mais significativa aos estudantes além de proporcionar uma importante alternativa ao trabalho dos professores com estes temas. PALAVRAS-CHAVE: Cinema; Ensino de filosofia; Conceitos-imagem. REFERÊNCIAS CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Tradução Roberto Vinagre. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

GALLO, Silvio. A filosofia e seu ensino: conceito e transversalidade. Ethica, Rio de Janeiro, v. 13, n. 01. p.17-35, 2006.

XL

CONCEPÇÃO DE DEUS EM SANTO ANSELMO

Josiane Santos da Silva* José Francisco de Assis Dias**

RESUMO Para Santo Anselmo, o lema de suas investigações e todo seu pensamento está na ideia de Deus. Ele formula as provas de Deus a priori na obra Proslogion e a posteriori na obra Monologion sendo essas obras as mais famosas. A centralidade do problema de Deus em Santo Anselmo é fundamental porque ele parte da ideia de que Deus existe e em suas investigações ele busca saber o que é esse Deus, qual a sua natureza. Para ele, a existência de Deus já é um pressuposto e seu objetivo é desvendar como se constituiu esse Deus. Este texto abordará a obra Monologion escrita em 1077, que tem como objetivo explicar através da razão as características da essência de Deus. Neste contexto, Santo Anselmo elenca provas a posteriori da existência de Deus, as quais irão formar uma “concepção realista dos universais”, uma concepção platônica. Santo Anselmo elabora as provas da existência de Deus a partir de como o mundo chega a Deus, e elenca quatro evidências presentes na natureza, por isso provas a posteriori, as quais se baseiam pelos princípios de bondade, grandeza, existência e perfeição. A criação ex- nihilo - a criação a partir do nada - diante das provas apresentadas por Santo Anselmo, pode-se deduzir que há um ser que existe por si mesmo e que transmite existência a todas as coisas; esta natureza suprema é única e superior a todas as coisas. Para Santo Anselmo, Deus cria a partir do nada, sendo “o nada” entendido aqui como ausência de algo que possa originar alguma coisa. Assim, a natureza suprema não cria a partir de algo e sim fez a existência do universo por meio dela e do nada, tornando o que não existia em algo, compreendendo que na

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI-Unicesumar; e-mail: [email protected]

Deus [Moral]... 263

inteligência da natureza criadora, todas as coisas já tinham sua maneira de ser. Outra obra a ser trabalhada é o Proslogion escrita em 1078, onde será trabalhado o que Kant chamou de “Argumento ontológico”, quando Santo Anselmo, após sofrer críticas à sua primeira obra Monologion, resolveu criar um argumento a priori que pudesse provar a existência de Deus. Assim, ele cria um argumento que tem como princípio a própria ideia de Deus: “Nós acreditamos, com efeito, que tu és alguma coisa maior do que a qual nada pode ser pensado” (Anselmo, 2008). O objetivo de Santo Anselmo sempre foi provar a existência de Deus e sanar todas as dúvidas que daí surgia e desse modo, ele queria “esclarecer com a razão aquilo que já se possuía com a fé”. Apesar de querer estabelecer que a razão possa iluminar as verdades de fé por meio de argumentações dialéticas, para Santo Anselmo a fé continua sendo a base fundamental inegável de todo pensamento racional. Santo Anselmo teve como missão procurar as confirmações da fé no âmbito da razão, mas sem esquecer que a fé estava em primeiro lugar e através dela se ilumina a razão. PALAVRAS-CHAVE: Santo Anselmo; Deus; Prova a priori e a posteriori; criação ex-nihilo. REFERÊNCIAS ANSELMO, Anselmo. Proslogion seu Alloquium de Dei existentia. Tradução José Rosa. Universidade da Beira Interior covilhã, 2008.

_________. Santo Anselmo e Pedro Aberlado, Os pensadores. Tradução Ângelo Ricci, Ruy Afonso da Costa Nunes. 4. Edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.

REALE. G.; ANTISERI, D. História da filosofia: patrística e escolástica. Volume 2. Tradução Ivo Storniolo. Editora Paulus. São Paulo, 2003.

GILSON. Etienne. A filosofia na Idade Média. Martin Fontes, São Paulo, 2001.

XLI

CONCEITO BANALIDADE DO MAL NO HOLOCAUSTO BRASILEIRO: UM PROBLEMA ÉTICO-POLÍTICO

Ana Claudia Barbosa Nunes*

Pâmela Antkiewicz da Rosa Corrêa Elger** RESUMO O livro Eichmann em Jerusalém, escrito pela filósofa Hannah Arendt, em 1961 é um relato sobre o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, responsável pela deportação dos judeus aos campos de concentração. Eichmann é caracterizado como: burocrata, comum, normal, banal e superficial. Eichmann não era antissemita, não considerava os judeus como inferiores, até mesmo não os matou por pura ambição, ódio ou qualquer doença psíquica. Eichmann era capaz de pensar, contudo renunciou ao pensamento, na medida em que foi condicionado pelos seus superiores a cumprir seus deveres, sem questionar, sem analisar o que é certo ou errado, sendo considerado uma mera engrenagem. Quando o homem é praticante da banalidade do mal, ele renuncia de sua faculdade espiritual do pensar. Arendt afirma “pensar é estar fora do mundo” (Arendt, p.57). Esse estar fora do mundo implica romper com o cotidiano, refletir, voltar aos acontecimentos e significá-los. O conceito de banalidade do mal é somente para entender o fenômeno ocorrido, entender porque um ser humano foi responsável pela morte de milhões de outros seres humanos, sem refletir sobre o que ocorreu. No Brasil em 1903 foi fundado Hospital psiquiátrico Colônia de Barbacena, cerca de 70% dos pacientes não possuíam nenhum transtorno mental, tornou-se um local de campo de extermínio de todos os que eram considerados desajustados, ou seja, não atendiam aos padrões sociais da época, nem aos interesses das classes dominantes. Os médicos psiquiatras sabiam que a maioria das pessoas não possuía qualquer tipo de problema, mesmo assim foram antiéticos de aceitar e internar as pessoas naquelas condições, padronizando os diagnósticos. Do mesmo modo, enfermeiros

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Conceito banalidade do mal... 265

e auxiliares que viveram diante de toda aquela crueldade, também “aceitaram” tudo aquilo, afinal o governo havia determinado que no hospital ficasse toda a escória da sociedade. Os funcionários trataram as atrocidades ocorridas como algo comum, assim como Eichmann sabia que aquelas pessoas iriam morrer, mas não se sentia culpado pelas mortes. Poderíamos determinar a banalidade do mal como um problema ético-político? Todo homem é considerado um ser ético na medida em que se preocupa com seu agir em relação ao outro, retirando-se do mundo sendo esse deslocamento da realidade um ato de liberdade. Quando o indivíduo não é livre, está no meio de seus afazeres, vivendo como pode, sem que ele tenha qualquer possibilidade de se retirar do mundo e fazer suas escolhas. Quando se eleva ao máximo a categoria de política, o indivíduo pensa suas ações com respeito à coletividade. Os praticantes da banalidade do mal não se deslocavam do mundo, não tinham juízos acerca do mundo, sendo, portanto, não livres. Estão de tal modo no processo que nem conseguem se distanciar de formular os juízos que fariam tomar a decisão para a conduta correta, respondendo ao sistema. Indivíduos não livres seguem a norma imposta pelo sistema. Os valores humanos são anulados e a lei do sistema se mantém acima de qualquer lei. Tais indivíduos deixaram de ser crítico, além de deixar de ajuizar o que é certo e errado. PALAVRAS-CHAVE: Banalidade do mal; Holocausto Brasileiro; Hannah Arendt. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. Antônio Abranches, Cesar Augusto R. de Almeida, Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

EM NOME DA RAZÃO, Helvécio Ratton, Tacísio Vidigal, Minas Gerais, Grupo Novo de Cinema Produções e Distribuições de Filmes

266 O ensino e a filosofia da ciência

Brasileiros; Associação Mineira de Saúde Mental, 1979. Disponível em: https://player.vimeo.com/video/162724580?title=0&byline=0&portrait=0 . Acesso em: 17/07/2017.

Conceito banalidade do mal... 267

XLII

ASPECTOS DA PROPAGANDA UTILIZADOS NA CONSTRUÇÃO DE UM GOVERNO TOTALITÁRIO

Ana Claudia Barbosa Nunes*

Pâmela Antkiewicz da Rosa Corrêa Elger** RESUMO A obra O sistema totalitário de Hannah Arendt faz uma reflexão sobre o papel da propaganda no domínio Nazista na Alemanha, tornando compreensíveis os motivos da apatia que a população desenvolveu perante as atividades do governo. A propaganda em um governo totalitário é primordial para a manutenção corrupta deste, pois a manipulação é necessária para subjugar as massas e fazer com que aceitem e desejem as ações tomadas pelos seus líderes. Hitler fez uso massivo da propaganda, demonstrado aptidão e articulando as leis a seu favor. Nesse governo a propaganda era utilizada como estratégia de controle, manipulação e repressão das atividades no dominio do regime. Por meio da propaganda um estado totalitário demonstra a sua força e o seu potencial, conquistando cada vez mais adeptos, seja pela simpatia ou pelo terror que promove. Segundo Arent “[...] o que caracteriza a propaganda totalitária melhor do que as ameaças directas e os crimes contra indivíduos é o uso de insinuações indirectas, veladas e ameaçadoras contra todos os que não derem ouvido aos seus ensinamentos, seguidas de assassino em massa[...]” (Arendt,1978, p.437) O regime nazista tinha profundo apelo à disseminação de sua ideologia, o desenvolvimento de uma raça pura e superior a todas as outras. Para isso, defendiam que os seres humanos considerados inferiores fossem esterilizados e, se possivel eliminados, para evitar a sua disseminação e contaminação da raça alemã. “A propaganda nazi concentrou toda essa nova e promissora visão num só conceito que chamou de Volksgemeinschaft. Essa nova comunidade, tentativamente concretizada no movimento nazi na atmosfera pré-totalitária, baseava-se na absoluta

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Aspectos da propaganda... 269

igualdade de todos os alemães, igualdade não de direitos, mas de natureza, e na suprema diferença que os distinguia de todos os outros povos” (ARENDT, 1978, p. 455). Também era comum o uso de símbolos, comícios e discursos de Hitler proferidos à população pelos meios midiaticos, sendo este conhecido como um exímio orador. Outra característica encontrada na formação das propagandas totalitárias do regime Nazista é a eleição de um inimigo comum que passa a ser responsabilizado por todos os aspectos negativos da comunidade e que se deve combater em qualquer circunstância. Esse ódio é transmitido e se configura como um elo entre a sociedade, pois os indivíduos que a constituem se unem em prol de um objetivo em comum. Conforme Arentd “[...] propaganda evidencia uma das principais características das massas modernas. Não acreditam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam nos seus olhos e ouvidos, mas apenas na sua imaginação [...]. (Arendt, 1978, p. 445) A sujeição ao regime era tanta que até mesmo os Alemães que não concordavam com as políticas do partido, e por ventura protegessem qualquer refugiado, eram punidos com a retirada de seus direitos fundamentais e até enviados para campos de concentração. Portanto, pretende-se demonstrar por meio deste trabalho, que a ascensão Nazista não é somente um efeito produzido a partir da repressão da sociedade alemã, mas que devido às estratégias utilizadas pelo partido, eles passaram a ser desejados e apoiados pela nação alemã. PALAVRAS-CHAVE: Arendt; Propaganda; Totalitarismo. ARENDT, Hannah. O sistema totalitário. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978.

A GRANDE DEPRESSÃO DE 1929. Disponível em: https://historiandonanet07.wordpress.com/2015/07/29/a-grande-depressao-de-1929/.Acesso em: 28/02/2017.

A GRANDE DEPRESSÃO DE 1929. Disponível em: http://www.pstu.org.br/a-crise-de-1929-e-a-grande-depressao/ . Acesso em: 28/02/2017.

270 O ensino e a filosofia da ciência

A GRANDE DEPRESSÃO DE 1929. Disponível em: http://mundoestranho.abril.com.br/historia/o-que-foi-a-grande-depressao/. Acesso em: 28/02/2017.

BIOGRAFIA DE HITLER. Disponível em: http://seuhistory.com/biografias/adolf-hitler. Acesso em: 28/02/2017.

BIOGRAFIA DE HITLER. Disponível em: http://docslide.com.br/documents/quem-era-hitler-leon-degrelle-56599daaa33c9.html. Acesso em: 28/02/2017.

ECONOMIA DA ALEMANHA NAZISTA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Economia_da_Alemanha_Nazista. Acesso em: 28/02/2017.

ALEMANHA NAZISTA. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Alemanha_Nazi. Acesso em: 28/02/2017.

NAZISMO. Disponível em: http://www.infoescola.com/historia/nazismo/.Acesso em: 28/02/2017.

Aspectos da propaganda... 271

XLIII

APROXIMAÇÕES CRÍTICAS DE KARL MARX À MODERNIDADE

Gerson Lucas Padilha de Lima*

Rosalvo Schütz** RESUMO Como podemos circunscrever a teoria de Marx como herdeira e crítica da modernidade? O projeto sociocultural da ilustração moderna se constituiu de duas linhas de forças básicas. A primeira linha visava o conhecimento racional e científico do mundo natural e social enquanto tais. Tal conhecimento intencionalizava retirar do mundo os bens e serviços indispensáveis à produção e reprodução social da vida. Mediante esse conhecimento racional (segunda linha de força) era possível a organização jurídica e política da sociedade, possibilitando a autonomia e liberdade dos indivíduos na história. Esta acepção culminou no sistema lógico e ontológico de Hegel, para o qual o real é preciso ser reconstituído no âmbito da razão. Marx, embora servindo-se de Feuerbach opera a inversão materialista da filosofia hegeliana, utiliza-se das categorias teóricas e metodológicas de Hegel para empreender a análise crítica do capital que se generalizou no modo de produção capitalista e se caracteriza como um valor em crescimento, cuja natureza é de se manter enquanto tal na medida em que se valoriza. Igualmente, Marx reconheceu que a filosofia do direito de Hegel apreendeu os princípios e a dinâmica do Estado moderno. Todavia, essa filosofia que se manifestou como a expressão madura do projeto iluminista da modernidade, ao estar comprometida com a tessitura política/econômica e sociocultural da ordem burguesa, não atingiu com profundidade o âmbito da crítica e, por conseguinte, serviu como elemento ideológico de sua justificação. Todavia, o projeto moderno homogeneizado pela burguesia produziu em suas entranhas os agentes sociais capazes de empreender sua superação. A classe trabalhadora (os explorados, os

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor doutor da UNIOESTE.

Hipérion... 273

dominados e os oprimidos socialmente) organizada em classe para si tem a possibilidade efetiva de mediante a práxis social realizar a “utopia concreta” da emancipação humana. Este projeto emancipatório se funda na razão sensível que faz partir sua investigação do diagnóstico da sociedade realizada pela razão instrumental moderna, que por ser parcial e insuficiente, precisa ser aprofundada à análise; que reconhece os potenciais emancipatórios existentes, mas não abordados e bloqueados na sociedade; que articula em sua investigação os princípios teóricos e os condicionantes históricos pertencentes a esta sociedade; que aposta na vinculação entre teoria e prática e/ou entre conhecer e agir; que busca compreender o mundo por aquilo que ele pode ser e ainda não é; e que reconhece os condicionamentos sócio-históricos e subjetivos dos agentes que buscam conhecer e agir no mundo que está em constante movimento, sendo assim escapável de qualquer exame definitivo sobre o seu modo de ser, e que igualmente, é refratário a qualquer caminho definitivo elaborado a priori e que supostamente a humanidade deveria trilhar para promover sua emancipação. PALAVRAS-CHAVE: modernidade; Marx; emancipação social. REFERÊNCIAS MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.

_________. O Capital: crítica da economia política. Livro I. Volume I. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. 3ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

SCHÜTZ, Rosalvo. “O que faz da teoria de Karl Marx uma teoria crítica? Convergências entre Theodor Adorno e Enrique Dussel”. Crítica e utopia: perspectivas brasileiras e alemãs. Porto Alegre: Sulinas, 2012.

XLIV

APOLO E DIONISO EM NIETZSCHE

Ademir Menin* RESUMO Nesta comunicação procurar-se-á esclarecer o problema do surgimento dos conceitos de apolíneo e dionisíaco existentes nas obras de Friedrich Nietzsche, ligando-os ao pensamento de Arthur Schopenhauer e às obras teóricas de Richard Wagner sobre a música. A proposta desse estudo é explicitar como o autor de O mundo como vontade e representação foi sempre lido por Nietzsche de modo a ser considerado o seu mestre, apesar da “ruptura filosófica” praticada por este último a um certo momento da evolução do seu pensamento. Tendo em vista esse papel de Schopenhauer, tem-se a intenção de estudar mais a fundo até onde o filósofo de Danzica influenciou Nietzsche e quais as críticas movidas por este último ao primeiro, principalmente no que se refere à concepção de arte. Não resta dúvida que a influência de Schopenhauer e de Wagner contribuíram enormemente na produção filosófica de Nietzsche, pois esses dois personagens da cena filosófica e artística sempre estiveram presentes na vida do nosso filósofo de maneira muito profunda. A esperança inicial de Nietzsche em relação a Wagner, que transparece principalmente em O nascimento da tragédia, é que este, com a sua habilidade artístico-musical, pudesse fazer renascer na Alemanha contemporânea o antigo modelo grego da tragédia ática, principalmente aquela proposta por Ésquilo e Sófocles, onde aparece de maneira evidente o espírito de Apolo e Dioniso, os deuses da mitologia grega que representavam a vida e reafirmavam no homem grego a vontade de viver através da arte trágica. No dizer de Nietzsche, foi a partir do tragediógrafo Eurípides que a arte trágica passou por grandes mudanças, pois este propôs um modo novo de vivência dessa arte, fazendo com que o homem grego comum passasse da plateia ao palco. Nietzsche vê nesses dois elementos naturais, apolíneo e dionisíaco - na embriaguez de

* Professor mestre da UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Hipérion... 275

Dioniso e no sonho de Apolo -, a explicação do efeito catártico da obra de arte. PALAVRAS CHAVES: Schopenhauer, Wagner, Nietzsche, apolíneo, dionisíaco. REFERÊNCIAS NIETZSCHE, F. O caso Wagner. Trad.: Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

______. Nietzsche contra Wagner. Trad.: Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

_______. A visão dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

______. Introdução à tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

______. Schopenhauer come educatore. A cura di Mazzino Montinari e giorgio Colli. Milano: Adelphi, 2009.

______. Nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. 2. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005.

______. Parerga e Paralipomena. Trad. Giorgio Colli, Milano: Adelphi, I e II tomo, 2007.

XLV

A NEGAÇÃO DA VONTADE DE VIVER EM ARTHUR SCHOPENHAUER

Henrique Pacheco Précoma*

RESUMO O presente trabalho busca apresentar e comentar o conceito de negação da Vontade de viver definida por Arthur Schopenhauer. Este é apresentado no livro IV de O mundo como vontade e representação. No livro o autor desenvolve primeiramente o conceito de Vontade, sendo esse um dos principais conceitos utilizado por ele, o qual é essencial para a compreensão tanto da vontade de viver, como de sua negação, que será apresentada. A vontade é para ele transformadora do mundo, o que move o mundo e toda sua existência; sendo livre e poderosa, ela se manifesta na natureza e no homem de formas diferentes. Segundo o autor “a Vontade sempre quer a vida, precisamente porque esta nada é senão a exposição daquele querer para a representação” (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 357-358). Para ele, a Vontade é necessária para a existência, tanto do mundo como da vida, pois a vontade é que gera a representação e, por isso, a vontade de viver e inevitável e nela está presente tanto a vida como a morte. A vida é a manifestação da Vontade, “a fonte e o sustentáculo de seu conteúdo é a Vontade de vida, ou a coisa-em-si-que somos nós” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 363). O ser é necessário para que haja a vontade, pois a vontade do ser é que transforma o seu mundo; o ser em sua vivência para ele se apresenta em uma luta constante, e como um sofrimento, e entre essa luta e sofrimento há momentos de prazer. Para ele, a “Vontade de vida, preocupa-se tão-somente com a conservação da espécie, o indivíduo sendo-lhe nulo” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 424), ou seja, para a vontade a preocupação é com a espécie, enquanto geração de vida; a morte está inclusa na vontade de vida, em um equilíbrio entre geração e morte.

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Hipérion... 277

Negar a vontade requer o abandono do individualismo, reconhecer o sofrimento dos outros e igualar-se a este sofrimento; um afastamento e repúdio a conflitos e a desvio de virtudes, ou seja, a negação da vontade consiste em negar os prazeres onde o homem se torna indiferente a tudo. A negação consiste em abandonar preceitos que tornam o homem consciente apenas de seus próprios desejos e vontades; tem por objetivo uma apreciação da vontade virtuosa para com os outros; abdicar aos bens em favor dos outros não apenas os ajuda como também promove o afastamento das tentações que são provocadas pelos bens materiais. PALAVRAS-CHAVE: Vontade; Vontade de vida; Negação da Vontade de vida. REFERÊNCIAS SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução, Apresentação, Notas e Índices de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.

XLVI

A NEGAÇÃO COMO EXERCÍCIO DA INTERPRETAÇÃO EM HEIDEGGER

Neusa Rudek Onate*

Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens**

RESUMO A negação ganha um papel de possibilidade que articula, nos conceitos heideggerianos, o prévio de uma visada fenomenológica, em outras palavras, a negação possibilita, na fenomenologia de Heidegger, os conceitos desde a posição prévia, cujo objetivo é evitar uma interpretação que comprometa o sentido originário, distinguindo-o dos sentidos derivados de interpretações. Para se compreender o sentido de negação, é necessário considerar o nada como a origem da negação. Sob tal pressuposto, o filósofo estabelece duas afirmações: a primeira que, “a negação é também um modo do comportamento nadificador, que está fundado no nadificar do nada”; a segunda, “que a negação não é o único comportamento pelo qual o ser-aí é sacudido pelo nadificar do nada” (REIS, 2011, p. 123). Convém, que, precisemos o decisivo a partir destas duas afirmações: que a negação é um modo de comportamento que proporciona ao ser-aí um impacto, que por sua vez é desencadeado pela nadificação do nada e, que a negação, é sobretudo, um procedimento oriundo de tal processo nadificador (nichtendes Verhalten). O modo de comportamento nadificador como negação e, a negação em si como exercício do entendimento são completamente distinguíveis. A negação em si mesma como exercício do entendimento pode ser considerada como uma operação que apresenta dois resultados: a formação de conceitos opostos e a “inversão no valor de verdade de uma proposição [...], essa dupla função da negação seria condicionada pela negação enquanto comportamento nadificante” (REIS, 2011, p. 124). Este comportamento nadificante do ser-aí é o que possibilita a visada desde o

* Mestranda da UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor Doutor da UNIOESTE.

A negação como exercício... 279

horizonte prévio, cujo comportamento pode ser explicado pela noção de angústia. A angústia é o comportamento nadificante que se origina do nada, isto é, a angústia não tem uma motivação oriunda da existência. É uma atividade afetiva (Stimmung) de estatuto ontológico, cujo papel é metódico e a negação no sentido de desvinculação atinge sua plenitude ao recuar de qualquer fonte de identificação. Ela é motivada pelo nada mesmo e, se caracteriza como uma desvinculação do campo de atenção da existência humana para, a partir desta desvinculação, apropriar-se ou tomar posse da condição constitutiva desde a visada prévia do ser-aí mesmo. “Com a determinação da disposição de humor fundamental da angústia atingimos o acontecer do ser-aí no qual o nada está manifesto” (HEIDEGGER, 1979, p. 40). A vinculação ao campo da existência humana e a desvinculação são constitutivas do ser-aí, contudo, vinculação e desvinculação não se caracterizam como atos decididos, isso significa que não é uma capacidade de auto revelação decidida no âmbito da existência, não é uma ação da subjetividade. Convém, ressaltar, que Heidegger não abandona a tendência à formalização da fenomenologia precedente (Husserl), mas a leva a uma acentuação, a um plano mais radical. O caráter dissuasivo (a advertência negativa) na ação executiva relacional da indicação formal possibilita um acesso livre e direto ao fenômeno enquanto tal, concebendo, portanto, a condição de possibilidade fenomenológica para explicar as categorias formais. PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; Nada; Negação; Fenomenologia; Interpretação. REFERÊNCIAS HEIDEGGER, M. Sein und Zeit (1927). In: GA 2, ed. Friedrich-Wilhelm von Herrmann, Frankfurt, V. Klostermann Verlag, 1977.

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280 O ensino e a filosofia da ciência

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REIS, R.R. Aspectos do pensamento indicativo-formal: negação e justificação. In: Natureza Humana, São Paulo, versão impressa ISSN 1517-2430, vol.13 n.1, p. 117-133, 2011.

VILLEVIEILLE, L. Heidegger, de l’indication formelle à l’existence Bulletin d’analyse phénoménologique IX 5, ISSN 1782-2041 http://popups.ulg.ac.be/bap.htm Université Paris-Sorbonne (Paris IV), 2013. PP. 1-96.

WAELHENS, Alphonse. La filosofía de Martin Heidegger. Traducción de Ramón Ceñal. Universidad Autonoma de Puebla, 1986.

A negação como exercício... 281

XLVII

A INEFABILIDADE DO UNO E A NOÇÃO DE INTELECTO NA FILOSOFIA DE PLOTINO: UMA PERSPECTIVA DE

GIOVANNI REALE

Paloma Fernandes de Oliveira* José Francisco de Assis Dias**

RESUMO Para ter êxito ao conceituar algo, é essencial delimitar, primeiramente, o que não é para extrair o sentido real do que se busca. Muitos filósofos pensaram num princípio final de todas as coisas; Aristóteles o chamou de essência (ousía) e o Motor Imóvel; os primeiros filósofos da antiguidade encontraram nos elementos da natureza a explicação para a causa primordial de todas as coisas. Plotino transcende essas percepções olhando além da essência, substância, alma, corpo, pois tais coisas são de natureza múltipla. Como a alma que possuí várias atividades (potência), a capacidade de raciocinar, de desejar e perceber, mesmo que estejam unidas na própria alma tornando-a uma faz com que seja múltipla e divisível. E assim “É preciso, pois, concentrar-se no que é realmente “uno’’ livre de qualquer multiplicidade e mesmo de qualquer simplicidade, se deve ser realmente simples” (Enéadas, V, 3, 16; III, 8, 10). Em parâmetro com a noção de phýsis, Reale denota a associação de infinitude com imperfeição por ser indeterminado e incompleto e o finito por ser determinado e completo. Plotino vai além destas perspectivas encontrando uma absoluta transcendência no Uno: possuí sua infinitude por ser simplesmente Uno (ou até nada mais que o Uno), por não ser limitado á medidas, números, imagens e formas. Para compreender a noção de infinito, deve-se olhar para o infinito captando a ideia de que é ato puro. É ilimitada, inexaurível e imaterial potência produtora. Para Plotino o infinito é potência no sentido de atividade, uma vez que o Uno é criador de si e de todas as outras coisas. O Uno

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor doutor da UNIOESTE; bolsista do ICETI – Unicesumar; e-mail: [email protected]

A negação como exercício... 283

não o pode ser atribuído à pobreza, mas é potência infinita. É o Sumo por estar “acima do ser (da ousía e da essência), acima do pensamento e também acima da vida” (REALE, 2008, p. 49). Não pode ser confundido com Intelecto e nem com inteligível. Apesar de possuir um poder produtivo, como o de raciocínio e sensação, por exemplo, não é possível colocá-lo no patamar do Uno já que também é de característica dual entre sujeito inteligente e objeto inteligível. Por isso mesmo que, na concepção plotiniana é impossível para o intelecto compreender o Uno, pois “ele’’ foge de todas as características que conseguimos alcançar. Conseguimos descrever suas propriedades e aspectos a partir do que percebemos já em seu desdobramento e não o que realmente é em si. “Tal é o intelecto: por isso não é o primeiro, mas deve existir o que está além dele [...] o intelecto é dual, pois é intelecto e inteligível ao mesmo tempo. Se ele é dual, precisamos conceber o que existe antes da dualidade” (Enéadas, III, 9, 2008, p. 73). Partindo desta, aproximamos ao entendimento do Uno e sua inefabilidade. O inefável é o que, por ter um grau elevado de beleza e plenitude, não é possível caracterizá-lo. Aquilo que transcende todas as outras coisas, e nada do que falamos que é o revela, apenas lançamos sinais (semaínein). Por ora, podemos distinguir que o Uno, com sua inefabilidade, simplesmente é. PALAVRAS-CHAVE: Neoplatonismo; mística; inefável; intelecto; Uno; Filosofia Antiga. REFERÊNCIAS REALE, Giovanni. Plotino e Neoplatonismo. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, nova edição corrigida, abril de 2008.

PLOTINO, Enéada. III. 8 [30]: sobre a natureza, a contemplação e o Uno. Introdução, tradução e comentário: José Carlos Baracat Júnior, Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2008.

XLVIII

A FIGURA FEMININA NO MITO E SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DA MULHER

CONTEMPORÂNEA

Bruna Eloiza Bertuol* Marcio Prigoli Santetti

RESUMO Neste trabalho pretende-se realizar uma reflexão sobre o papel do mito na sociedade. Não há dúvidas de que o mito é a forma mais primitiva que o ser humano encontrou para tentar entender e explicar a realidade. Por meio do mito, o ser humano expressa seus medos, angústias, desejos e sonhos, buscando um meio de dar sentido aos fenômenos por ele presenciados e, assim, se situar no mundo. Ele está presente em toda a história da humanidade e, embora de modo menos ativo, é utilizado até os dias de hoje. Além de sua função de explicar aspectos da realidade, o mito tem como finalidade também organizar a sociedade, legitimando e determinando muitas das ações e crenças do ser humano. Nesse sentido, qual seria o papel do mito na construção da função da mulher na sociedade ocidental? Como o mito influenciou nesse aspecto? Para abordar este tema, toma-se como base o mito grego clássico de Pandora (do famoso poeta épico Hesíodo, presente nas obras “Teogonia” e “Os trabalhos e os dias”), especificado no período da Atenas Clássica e o mito de Eva, originário da cultura judaico-cristã, especificado em Portugal, século XIII a XIV. Tanto Pandora quanto Eva, apesar de serem personagens de épocas muito diferentes, desempenharam o mesmo papel: foram usadas para explicar como as mulheres surgiram no mundo e qual o seu papel na sociedade. Nas épocas em que esses mitos foram difundidos, o mito desempenhava um papel fundamental no dia a dia das pessoas, ou seja, elas usavam o mito como critério para organizar toda a sociedade. O mito ditava o que era certo, o que era errado e como agir em determinadas situações. Portanto, a criação e difusão dos mitos

* CEEP – Pedro Boaretto Neto; e-mail: [email protected]

A figura feminina... 285

de Pandora e Eva foram extremamente importantes para a definição do papel das mulheres no mundo. Agora, como exatamente esses mitos influenciaram a realidade das civilizações da época? Que hábitos, consensos e ideias eles ajudaram a formar sobre o sexo feminino e a sua função no mundo? Através de pesquisas, foram observados alguns resultados dessas influências e, a partir disso, faz-se uma reflexão: esses mitos, mesmo sendo muito antigos, ainda influenciam as sociedades contemporâneas? Nós sabemos que muitos conhecimentos e hábitos que temos hoje são, indireta ou diretamente, ligados ou influenciados por ideais criados tanto na época da Grécia Antiga quanto no período Medieval. Portanto, esses ideais, positivos ou não, tem algum peso no cotidiano das mulheres? Se sim, em que aspecto? PALAVRAS-CHAVE: Grécia Antiga; Portugal Medieval; Eva; Pandora; Mitologia; Mulher na contemporaneidade; Misticidade e contemporaneidade. REFERÊNCIAS SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão; ANDRADE, Marta Mega. Mito e gênero: Pandora e Eva em perspectiva histórica comparada. cadernos pagu, n. 33, p. 313-342, 2009.

CASSIMIRO, Érica Silva; GALDINO, Francisco Flávio Sales; SÁ, G. M. As concepções de corpo construídas ao longo da história ocidental: da Grécia antiga à contemporaneidade. Revista Μετάνοια, n. 14, 2012.

TÔRRES, Moisés Romanazzi. Considerações sobre a condição da mulher na Grécia Clássica (sécs. V e IV aC). Mirabilia: electronic journal of antiquity and middle ages, n. 1, p. 48-55, 2001.

DE JESUS, Ester Zuzo. O possível entrelaçar do eterno Mito feminino: Eva e Lilith em Pandora. Anagrama, v. 3, n. 2, p. 1-14, 2009.

CORINO, Luiz Carlos Pinto. Homoerotismo na Grécia antiga–homossexualidade e bisexualidade, mitos e verdades. Biblos, v. 19, p. 19-24, 2008.

286 O ensino e a filosofia da ciência

CASTILHOS, Zuleica Carmen; LIMA, Maria Helena Machado Rocha; CASTRO, Nuria Fernandez. Gênero e trabalho infantil na pequena mineração: Brasil, Peru, Argentina, Bolívia. 2006.

DA SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão. O Gênero nas narrativas de criação de Pandora e de Eva: um ensaio de leitura histórica comparada II.

DUBY, George. Idade Média, Idade Dos Homens: Do amor e outros ensaios. Tradução de: Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SAFFIOTI, Heleieth IB. Primórdios do conceito de gênero. Cadernos pagu, v. 12, p. 157-163, 1999.

A figura feminina... 287

XLIX

A EXISTÊNCIA DE DEUS PARA RENÉ DESCARTES

Eduardo Chicone* Lucas Salles**

RESUMO Este é um trabalho produzido para a disciplina de Teoria do conhecimento do segundo ano de filosofia com o objetivo investigar a existência de Deus para Descartes e sua tese acerca do conhecimento. Filosofo francês, também conhecido como pai da filosofia moderna, racionalista do século 17, se preocupava com a ordem e a clareza do conhecimento, com o desenvolvimento das ciências naturais e a corrente empírica de pensamento acerca do conhecimento, buscando investigar estes critérios, propôs um método filosófico que permitisse distinguir o verdadeiro do falso, pensamento este demonstrado radicalmente em suas obras, entre essas, as Meditações. Descartes pôs em dúvida os sentidos e a veracidade do conhecimento adquirido pela experiência, propondo sua investigação através da lógica, criando assim uma das correntes filosóficas mais importantes de sua época, chamado Racionalismo. Nesta, aplica seu método ao conhecimento da própria existência como ser pensante, a comprovação da existência de Deus e a distinção real entre a mente e o corpo. Descartes não se contentou em provar somente a sua existência como ser pensante, pôs-se a provar também a existência do mundo e as leis da natureza como astronomia, física e medicina, porém, as ciências universais, podem ter veracidade acerca daquilo que se pode conhecer, como por exemplo um cálculo numérico, sempre será exato, pois, o objeto de estudo é puramente racional e não se apresenta no mundo da forma que é observado. Também se ateve ao problema de explicar como um ser imperfeito, como o sujeito, poderia conceber a ideia de perfeição. Seria impossível o imperfeito gerar a perfeição (ou a ideia de perfeição). A não ser que esta ideia fosse doada por um ser plenamente perfeito. Deus, que garantiria a verdade das ideias claras e

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** UNIOESTE.

Organizadores 289

distintas. Para explicar como se pode entender a ideia da existência de Deus para Descartes, torna-se necessário compreender o método utilizado por ele para se chegar à veracidade das ideias, ou seja, o método da dúvida. Através de seu método, o filósofo, primeiramente, apresenta a prova ontológica, qual seja, de que a ideia de Deus supõe já ao mesmo Deus; a segunda prova será a prova a priori, desenvolvida através do fato de o imperfeito compreender o perfeito; e na sequência, apresentará a prova a posteriori, desenvolvendo a ideia de que o ser perfeitíssimo inclui a priori sua existência. Por meio da lógica, Descartes explica como podemos compreender à ideia inata de Deus. Primeiramente, vamos pensar em uma ideia, então, ao ter o primeiro contato com essa ideia, admitiríamos que não sabemos sobre ela, ao fazer isso, seria possível que pudéssemos duvidar desta ideia, gerando uma instiga que nos faria conhecer a verdade depois de desconhecê-la. PALAVRAS-CHAVE: Descartes; Ideia; Existência de Deus. REFERÊNCIAS DESCARTES, René. Princípios da Filosofia. Lisboa: Edições 70, 1681.

DA SILVA, João André Fernandes. As provas da existência de Deus nas Meditações Metafísicas de René Descartes. Disponível em: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/6393/6393_5.PDF. Acesso em 06/06/16.

BRAGA, Romulo Vitor. Filosofia, livro único. São José dos Campos: Editora Poliedro, 2012.

L

A ÉTICA EPICURISTA: A AMIZADE COMO PONTO FUNDAMENTAL DOS EPICURISTAS

Anderson Felipe dos Santos Souza*

Lincoln Arthur Radons de Carvalho**

RESUMO A polis grega estava à beira da ruína, a aristocracia somente dava poder a poucos e a população sentia-se sem representação. Todos estavam sem esperanças, somete buscando poder e ouro. Epicuro ensinava em seu jardim sobre um novo estilo de vida: uma busca pelo “prazer do repouso”, constituído pela ataraxia (ausência de perturbação) e pela aponia (ausência de dor), deixando de lado todos os prazeres mundanos, que ele chamava de “prazeres do movimento”, ou seja, prazeres que, em suma, são físicos e mutáveis, prazeres que não duram e que no fim somente trazem dor. Epicuro nota que o povo grego busca somente o “prazer do movimento”. Por causa dessa busca pelo “prazer errado” Epicuro começa a ensinar para seus discípulos a busca pelo prazer que leva ao “prazer do repouso”. Para chegar ao “prazer do repouso” o homem, segundo Epicuro, deve buscar a auto eficiência através de seu autodomínio, para que assim se torne em si mesmo sua própria lei, capaz de ser feliz independentemente das circunstâncias. O homem deve renunciar aos prazeres que somente possam trazer aflição, como a busca pelo poder e a ganância, que neste período a polis grega estava passando, e assumindo que deverá aceitar a dor quando esta está ligada à algum bem futuro. Isso tudo pode ser encontrado em sua Ética, um caminho para se viver melhor, um meio que Epicuro achou para que os gregos se sentissem felizes novamente e com esperança. Dentro da canônica (nome dado ao conhecimento dos epicuristas) é que encontramos toda a sabedoria de Epicuro para seus alunos, uma coisa que não é muito explorada ao falarmos de sua Ética, a amizade, que para os epicuristas era

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** UNIOESTE.

Organizadores 291

a maior força para a convivência dentre eles. Epicuro afirmava que: “De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade”, ou seja, a amizade era a maior de todas as aquisições que o homem poderia conseguir após chegar no “prazer do repouso”. Nós iremos nos aprofundar neste ponto em específico, demonstrando como Epicuro demonstra sua Ética e os pontos para a busca pelo “prazer do repouso”. E após esta demonstração, iremos argumentar como era a visão de Epicuro sobre a amizade e sua importância para os epicuristas e para o próprio Epicuro, pois se ela é a maior aquisição da sabedoria para a felicidade, é que a amizade tem importância fundamental, pois ela seria a peça-chave para a convivência dos epicuristas e, assim sendo, uma nova forma de vivência para os gregos. PALAVRAS-CHAVE: Epicuro; ética; prazer do repouso; amizade. REFERÊNCIA SILVA, Agostinha da; et alii. Os pensadores: Epicuro, Lucrécio, Cícero, Sêneca, Marco Aurélio. 3. Ed. Abril, 1985, 591p.

LI

A EDUCAÇÃO BASEADA EM SUA ORIGEM, OBJETIVOS E FUNÇÕES

Maira Rosa de Oliveira da Rocha*

RESUMO Em cada época do tempo, a educação atendeu a determinados objetivos, que correspondiam a visões de homem e de mundo. Embora não existam provas, historiadores relatam que a educação entre os grupos primitivos ocorria de forma espontânea, ou seja, as crianças ou jovens aprendiam por imitação, ao observarem os maiores em suas atividades elementares, que eram a pesca, a caça, a agricultura, etc. A observação de fenômenos meteorológicos, alguns rituais sagrados e a preparação para a guerra, com o passar dos séculos, passaram a fazer parte da educação dos jovens, que para isso precisavam ser treinados. (LUZURIAGA, 1981). A escrita sistematizada criada no oriente, associada a organização social que se estabeleceu levou a criação de escolas e mestres em alguns dos países orientais. No Egito, as crianças frequentavam a escola a partir dos 6 ou 7 anos, sendo as escolas elementares para o povo e as escolas superiores ou eruditas para os filhos dos funcionários. A educação entre os hebreus, baseada nos livros sagrados tinha duração de 10 anos. Entre os hindus, a educação era privilégio das castas superiores, embora não fossem comuns as escolas, geralmente os pais eram responsáveis pela educação dos filhos. Na China, a educação sistematizada só ocorreu a partir do período imperial, e dividia-se em elementar e superior. A educação clássica, desenvolvida entre os séculos V a. C. e V d. C., diz respeito a educação ocidental, e compreende Roma e Grécia. A educação grega teve quatro períodos: heroica; cívica; clássica/humanista e helenística/enciclopédica. A educação romana teve três principais períodos: heroico-patrícia; de influência helênica; e Imperial. A educação medieval se desenvolveu na época em que o cristianismo alcança toda a Europa. O caráter é essencialmente religioso, dogmático, predominando matérias abstratas, literárias, com prejuízo a educação intelectual e

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Organizadores 293

científica. É empregado o uso do latim como língua única. (LUZURIAGA, 1981). Já a educação humanista foi criada após o século XV, período da Renascença, considerada como uma nova versão do conhecimento greco-romano. A educação cristã reformada é resultado da Renascença, surgiu no século XVI, e como resultado, uma educação cristã reformada, tanto católica, como protestante. A educação católica pós renascença, foi marcada por um movimento conhecido por Contrarreforma. As ordens religiosas, das quais se destaca a dos jesuítas, foram as responsáveis por disseminar o cristianismo por meio da educação durante séculos. A educação realista com base na filosofia e nas ciências de Galileu, Copérnico, Newton e Descartes deu início aos métodos da educação moderna. Com base nas ideias de Jean-Jacques Rousseau, a educação naturalista teve influência decisiva a educação moderna. Rousseau considerava como pressupostos para a educação: a liberdade, a atividade pela experiência, a diferença entre a mente da criança e do adulto, ele dizia que para cada aluno deveria haver apenas um educador. Suas ideias inspiraram pensadores e educadores, dos quais se destacou Pestalozzi. Os males da Lei 5.692/71 e da Lei 5.540/68, instituídas pela Ditadura Militar, para a educação brasileira refletem-se ainda hoje nos três níveis de ensino. PALAVRAS-CHAVE: Educação; Legislação; Cidadão REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Artigos referentes ao Capítulo III,Seção I, “Da Educação”.

LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. 13 ed. São Paulo: Nacional, 1981.

LII

A DENOMINAÇÃO DAS PALAVRAS NO USO DA LIGUAGEM EM WITTGENSTEIN

Lucas Antonio Vogel*

RESUMO A presente comunicação tem por objetivo fazer um estudo sobre alguns conceitos usados na concepção de linguagem de Wittgenstein. Trabalharemos aqui a visão do segundo Wittgenstein, tomando por base a obra “Investigações Filosóficas”, onde o filósofo faz uma explicação sobre os jogos de linguagem, fazendo, dessa forma, uma relação da linguagem com as práticas de ensino utilizadas. Iremos explicar, nesse trabalho, que para o filósofo austríaco, usando-se do ponto de vista de Santo Agostinho, as palavras da linguagem que usamos têm por objetivo denominar os objetos existentes, ou seja, que cada palavra que usamos tem sua própria significação, nesse sentido, para ele, a outra forma de empregar a linguagem é através do signo, onde o mesmo pode representar números, objetos ou cores. Wittgenstein aponta que as crianças usam formas primitivas da linguagem quanto estão aprendendo a falar e, sendo assim, a linguagem é puramente um treinamento e não explicações. A linguagem no diálogo será sempre executada por um sujeito A e um sujeito B e pelo povo que aprendeu essa língua. Assim, as crianças são educadas para executar essas palavras, relacioná-las aos objetos e poder, dessa forma, entender essas palavras quando escritas por outros. Para o filósofo, a práxis da linguagem consiste em alguém agir de acordo com a linguagem que lhe é enunciada, assim, ele explica que nos jogos da linguagem são usados signos que estão na forma primitiva da linguagem, e é por meio dela que as crianças começam a utilizar as palavras. Digamos, então, que as palavras da linguagem designam, conforme o seu uso empregado à descrição, que deve levar ao uso da palavra designando o objeto em questão. Mas apenas dizer que cada palavra designa algo ainda não diz muita coisa, pois devemos

* UNIOESTE; e-mail: [email protected]

Organizadores 295

esclarecer a diferença que queremos fazer das palavras quando estas são semelhantes, e explicar as palavras ou sílabas sem significação que ouvimos numa música, por exemplo. Dessa forma, como se coloca um nome em cada coisa que existe, se coloca uma etiqueta em um produto para marcar ela. Wittgenstein nos mostra que temos várias possibilidades de frases que podemos formular, como frases de afirmação, pergunta, comando, etc. Nesse sentido, o filósofo afirmará que a expressão “jogo de linguagem” vai frisar que o pronunciar da linguagem será considerado uma parte de atividade ou até uma “forma de vida”. Pra tal uso da linguagem, acredita-se, então, que aprendemo-la para podermos nomear os objetos que estão à nossa volta. E ainda veremos por que chamamos as palavras de “denominações de objetos”, no sentido de que quando não sabemos o nome de um objeto nos perguntamos “o que é isso” para saber sua denominação e empregar esse nome ao objeto, sendo que a definição ostensiva deve ser interpretada em cada caso por si mesma para não confundir um nome próprio com uma cor, uma raça e assim por diante. PALAVRAS-CHAVE: linguagem; objeto; denominação. REFERÊNCIAS WITTGENSTEIN, Ludwing. Investigações filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultura, 1999.

RUY, Mateus Cazelato. O conceito de jogos de linguagem nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Disponível em: http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/arqtxt/resumos-anais/MateusCRuy.pdf.

LIII

A CRÍTICA AOS MÉTODOS CIENTÍFICOS

José Luiz Giombelli Mariani* Douglas Antônio Bassani**

RESUMO O presente trabalho busca apresentar e comentar alguns dos principais conceitos de Paul Feyerabend, considerando que para este o desenvolvimento da ciência não é linear e sim um processo anárquico. O filósofo é conhecido principalmente por sua teoria anarquista da ciência e a obra utilizada no trabalho será Contra o Método. A ciência não pode ser entendida, segundo Feyerabend como fatos e observações de fatos simplesmente. Para ele, a ciência é bem mais complexa, nela se encontra ideias, interpretações de fatos, problemas criados, conflitos entre teorias, etc., portanto ao analisar a história da ciência o pensador percebe que ela não é tão linear quanto parece, mas sim, é caótica, complexa e cheia de enganos. A grande questão colocada por Feyerabend frente esta análise diz respeito aos métodos; sabemos que alguns métodos foram aceitos pela comunidade científica em detrimentos de outros. No que consiste tal escolha? Como escolher um método e considerá-lo “verdade” por um período e desconsiderar todo o restante de questões oriundas dos diversos debates e pesquisas? O filósofo da ciência desenvolve a partir dessas questões o seu anarquismo científico, contrário as principais metodologias nas ciências propostas na época. Para ele, “Fica evidente que tais violações não são eventos acidentais, não são o resultado de conhecimento insuficiente ou de desatenção que poderia ter sido evitada. Pelo contrário, vemos que são necessárias para o progresso” (FEYERABEND, 2003, p. 31), ou seja, segundo o pensador as violações devem ser vistas como naturais e importantes no progresso da ciência, e a única regra necessária na ciência que abarca todas as possibilidades é o que o pensador chama de “tudo-vale”, ou seja, não importa o quão “fundamental” e “racional” pareça uma teoria, sempre existirá circunstâncias em que ela deverá ser ignorada

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** Professor doutor da UNIOESTE.

Organizadores 297

e adotada a regra oposta. O pensamento de Feyerabend é importante para desconstruir um falso endeusamento da ciência, mostrando que ela não é pautada na razão e na linearidade, mas sim em experimentos e pesquisas diversas. O autor faz assim um apelo aos cientistas para que todos se envolvam no debate e deem suas contribuições para o verdadeiro enriquecimento da ciência e da nossa cultura. Assim, “A tarefa do cientista, contudo, não é mais ‘buscar a verdade’ ou ‘louvar a deus’ ou ‘sistematizar as observações’ ou ‘aperfeiçoar as predições’” (FEYERABEND, p.45, 2003). Então, qual será a tarefa do cientista para o anarquista? Para ele, a tarefa genuína de todo cientista é “tornar forte a posição fraca”, ou seja, sustentar o movimento do todo e assim instigar o debate em torno dos diversos métodos e teorias científicas. PALAVRAS-CHAVE: Anarquismo Epistemológico; metodologia; contrarregra. REFERÊNCIA FEYERABEND, Paul. Contra o Método. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

LIV

A CONTRADIÇÃO DA CONSCIÊNCIA MORAL MODERNA NA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL

Patrícia Riffel de Almeida*

Rosalvo Schütz** RESUMO Ao passo que nas duas primeiras seções da IIª parte da Filosofia do Direito Hegel analisa i) o “direito de saber” da vontade moral, segundo o qual apenas lhe é imputável como sua ação aquilo que ela sabe no seu propósito (pelo qual “não se pode acusar de parricídio a Édipo”), bem como ii) o “direito da intenção” ou “do discernimento”, isto é, “que a qualidade universal da ação não seja apenas em si, porém seja sabida pelo agente e que, com isso, já tenha sido colocada na vontade subjetiva” (HEGEL, 2010, §121, p. 137), na IIIª seção, O bem e a consciência moral, ele passa à análise da relação entre o bem e a vontade. “O bem”, afirma, “é a ideia como unidade do conceito da vontade e da vontade particular” (§129). Porém, como “todos os estágios são na realidade a ideia, porém os primeiros a contém em sua forma mais abstrata”, a vontade, a princípio ainda não foi integrada ao bem, mas antes fecha-se em si mesma: a subjetividade, “na sua universalidade refletida sobre si, é a absoluta certeza de si mesma dentro de si, o que põe a particularidade, o que determina e o que decide – a consciência moral” (§136). A consciência moral, embora consistindo na “profunda solidão interior” da certeza de si mesma, faz desaparecer “toda exterioridade e toda determinação”, “dissolve em si toda determinação do direito, do dever e da existência” (§138). A partir do §140, Hegel apresenta o seu processo gradativo de degeneração, o qual leva ao paroxismo a absolutização do ponto de vista moral subjetivo. Vemos a consciência passar pelas figuras do agir com má consciência para a hipocrisia, o probabilismo, a má ação por boa intenção, a ética da convicção e a ironia. Assim se articula uma “dialética negativa” cujo conteúdo pode ser entendido como uma “reconstrução

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** UNIOESTE; e-mail: [email protected].

A contribuição da consciência... 299

dialético-especulativa da autonomia moral kantiana, fortemente estilizada na perspectiva da sua posterior radicalização idealista por Fichte e da sua absolutização subjetivista pelos românticos” (MÜLLER, 1996, p. 85). Finalmente, no §141, que responde pela passagem da moralidade à eticidade, Hegel formula a relação de oposição contraditória que se estabelece entre o bem e a consciência moral pela pretensão de ambos de elevarem-se à totalidade. Ambos como tais são unilaterais e não estão ainda postos como o que são em si. “Este ser posto o alcançam em sua negatividade, nisto que eles, do modo como unilateralmente se constituem como totalidades por si, (...) se suprimem e, através disso, reduzem a momentos, a momentos do conceito, que se revela como a sua unidade” (HEGEL, §141 A apud MÜLLER, 1996). Tal como o modelo especulativo da resolução da contradição no fundamento na Iª seção da Lógica da Essência, quando a independência dos opostos se converte no seu ser-posto, “pela eliminação das determinações da essência que se contradizem em si mesmas”, a essência se põe como fundamento, e “a oposição independente volta assim, por meio de sua contradição, a seu fundamento” (HEGEL, 2011, p. 160). Com isso, a subjetividade se torna infinita e o bem torna-se o universal concreto da vida ética ou da eticidade. Buscaremos compreender a passagem da moralidade para a eticidade com o auxílio da teoria da contradição da Lógica da essência, dos §§507-512 da Enciclopédia das ciências filosóficas, e do capítulo “A boa consciência – A bela alma, o mal e o seu perdão” da Fenomenologia do espírito, onde a visão moral do mundo (Weltanschauung) termina por conduzir à auto-supressão da certeza moral subjetiva, construída por Hegel aí como passagem para a religião (MÜLLER, 1998, p. 103). PALAVRAS-CHAVE: moralidade, eticidade, bem, consciência moral, contradição. REFERÊNCIAS HEGEL, G.W.F. Ciência da lógica – excertos. Trad. Marco Aurélio Werle. São Paulo: Barcarolla, 2011.

_________. Ciência da lógica: 3. A doutrina do conceito. I – “Subjetividade”, III. “O silogismo”. Trad. Federico Orsini. In: A teoria hegeliana do silogismo: tradução e comentário. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.

300 O ensino e a filosofia da ciência

_________. Ciencia de la lógica. Trad. Augusta y Rodolfo Mondolfo. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1976.

_________. Elements of the Philosophy of Right. Edited by Allen Wood, trans. H. Nisbet. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

_________. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995.

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_________. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito natural e Ciência do Estado em compêndio – Introdução. Tradução, notas e apresentação de Marcos Lutz Müller. Coleção Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução, nº 10. Campinas (SP): IFCH/UNICAMP, 2005.

_________. Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito natural e Ciência do Estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses, Agemir Bavaresco, Alfredo Moraes, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa, Greice Ane Barbieri e Paulo Roberto Konzen. São Leopoldo: Ed. Unisinos/Loyola, 2010.

_________. Principios de la filosofia del derecho. Trad. Juan Luis Vermal. Barcelona: Edhasa, 1999.

MÜLLER, Marcos L. “A crítica de Hegel aos postulados da razão prática como deslocamentos dissimuladores”. Studia Kantiana. São Paulo: USP, v.1, n.1, pp. 101-150, 1998.

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A contribuição da consciência... 301

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LV

A CONTEMPORANEIDADE NO ENSINO ESCOLAR DE ARTES

Edemar José Baranek*

Angelo Paulino de Souza RESUMO Com o advento da modernidade na visualidade em meados do século XIX e seus desdobramentos ao longo do século XX, que após os impactos renovadores das vanguardas modernistas é definitivamente consolidado no pós-guerras, emanam novas concepções do que é arte, de sua materialidade, sua concepção de campo expandido e principalmente sobre quem é o artista. No entanto, a maioria das pessoas ainda apresenta um alfabetismo visual ligado às artes visuais renascentistas, buscando imagens reconhecíveis e uma visão da genialidade do artista. Há necessidade de se pensar a arte como fruto das transformações contemporâneas, da reorientação dos seus pressupostos e da crítica das ilusões da modernidade. Pois, especialmente a partir da década 1960 e o surgimento da arte conceitual e suas vertentes, o artista pós-moderno está na situação de um filósofo: a obra que realiza não é em princípio governada por regras estabelecidas e não pode ser julgada por regras determinadas. Não há mais uma pureza visual. A visualidade, a ciência, a linguagem ou outras áreas do conhecimento não estão em absoluto isolamento, mas interligados e entrecruzados, refletindo a sociedade em que o artista está imerso e a obra é produzida: em hibridismo. Mostrando a necessidade de deslocamento da questão da autonomia dos conhecimentos para uma abrangência das qualidades relacionais e das processualidades. Assim, partindo da proposta do ensino escolar de artes baseado em uma tríade de contextualização social e histórica, fruição das obras e prática do fazer artístico, cabe a escola ampliar o debate sobre os limites da razão moderna e suas ambiguidades, destacadamente em seu esforço de manter, a todo custo, consenso e identidades, seja nas artes, na política, no social ou na educação,

* Centro Universitário Internacional (Uninter); e-mail: [email protected]

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buscando a mediação do desenvolvimento do conhecimento. Assim, o ensino de artes, apoiado e interligado nas demais áreas do conhecimento, deverá propiciar uma educação pela experiência para a interpretação. Mas a experiência da arte, ressaltadamente na educação, não está na compreensão e nem no adestramento formal, artístico, perceptivo, embora possa conter isso, e sim no questionamento da contemporaneidade e na emancipação do sujeito. Para tanto, aliar a pedagogia histórico-crítica permite ampliar o campo de ação da educação, incluindo a contextualização social do sujeito na discussão do ensino de artes. Pois a arte não é um instrumento de comunicação e sim de resistência. A arte surge da necessidade de criação, não para o mero prazer do criador, sendo significativo para o criador e para o fruidor somente aquilo que é absolutamente necessário. Desta forma, espera-se que o ensino escolar possibilite a imersão do sujeito em seu ambiente coetâneo, usando as artes como veículo para uma melhora da vivência social e, talvez, superação do modelo vigente. PALAVRAS-CHAVE: ensino triangular; pedagogia histórico-crítica; visualidade. REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão. Arte/educação como mediação cultural e social. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

BASBAUM, Ricardo. Além da pureza visual. 2. ed. Porto Alegre: Zouk, 2016.

DOMINSCHEK, Desiré Luciane; SILVA, Wilson da; SOUZA, Daniela Moura Rocha de. Por uma educação crítica e transformadora: em defesa da pedagogia histórico-crítica e da emancipação da prática docente. Revista Intersaberes, v. 11, n. 22, p. 110-124, jan./abr. 2016.

FAVARETTO, Celso, F. “Arte Contemporânea e educação”. In: Revista Iberoamericana de Educación, n. 53, p. 225-235, 2010.

LOPONTE, Luciana Gruppelli. “Arte e metáforas contemporâneas para pensar a infância e educação”. In: Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 37, p. 112-122, jan./abr. 2008.

LVI

CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DA MORALIDADE A PARTIR DE HEGEL

Tarcilio Ciotta*

RESUMO A partir da “Filosofia do Direito” de Hegel pode-se afirmar que uma ação só pode ser qualificada como moralmente boa ou má quando o agente sabe, quer e reconhece aquela ação como sua. Esta é a condição de possibilidade, sem a qual, não há como atribuir ao sujeito a responsabilidade do ponto vista moral. O sujeito precisa reconhecer-se na ação, ou seja, afirmá-la como sendo o resultado do seu propósito e da sua intenção. É necessário, portanto, que a ação seja expressão da vontade subjetiva - do seu saber e do seu querer - na exterioridade objetiva. Somente com o preenchimento desta condição elementar é que se pode atribuir a um sujeito responsabilidade moral pelos seus atos. Este é o ponto de vista do propósito do agente que leva em consideração a sua condição subjetiva e, neste sentido, a ação só lhe poderia ser imputada se esta estivesse em conformidade com o aspecto do saber e do querer interno do sujeito. Porém, se toda a ação do sujeito fosse apenas inscrita e interpretada sob esta primeira condição, se poderia afirmar que a responsabilidade moral dependeria apenas das condições subjetivas do agente. Mas esta é somente a primeira condição da ação moral, avaliada a partir do propósito, ou seja, da expressão da vontade subjetiva. Porém, os efeitos da ação na exterioridade podem se estender para além do saber e do querer subjetivo do agente. Aqui reside a diferença entre o propósito e a intenção na ação moral. A intenção diferencia-se do propósito porque leva em consideração os aspectos externos da ação. Quando o ato interno da vontade subjetiva se exterioriza como ação no mundo objetivo ele pode conter outros elementos necessários ou universais inscritos naquela ação e que não foram previstos no seu ponto de partida, enquanto propósito, mas que se conectam e atuam com uma lógica própria implícita naquela ação. A

* Professor do PPG Filosofia – UNIOESTE; e-mail: [email protected]

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intenção ao levar em conta a objetividade da ação no mundo exterior - diferentemente do propósito que considera somente o saber e o querer subjetivo da vontade - inclui como exigência, tanto o conhecimento da ação em si mesma, quanto o das circunstâncias objetivas, por meio das quais, ela se desenvolve no mundo exterior, segundo uma lógica própria que transcende à vontade subjetiva. Em outras palavras, a vontade como intenção tem que incluir em seu atuar também a representação das circunstâncias, porque é por meio delas que ela se dirige a seus fins através da sua ação. Como conclusão pode-se afirmar que o propósito mostra o aspecto subjetivo e abstrato da responsabilidade moral concebida como ação de um sujeito isolado, enquanto que a intenção, destaca o aspecto universal inscrito na ação, onde, o fim subjetivo se conecta com o bem-estar dos demais incluindo, aí, a sua dimensão de universalidade. PALAVRAS-CHAVE: Hegel; Moralidade; Propósito; Intenção. REFERÊNCIAS HEGEL, G. W. F. Grundlinien Philosphie des Rechts oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986 (Taschenbuch Wissenschaft).

_____. Princípios de la filosofía del derecho: o derecho natural y ciência política. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1975.

_____. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou, Direito natural e ciência do estado em compêndio. Tradução de Paulo Meneses...[et al.]. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.

_____. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830). Tradução de Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995. (vol. III)

LVII

MARCUSE: A OBJETIVAÇÃO DO HOMEM PELA LINGUAGEM E PELO PENSAMENTO UNIDIMENSIONAL

Marcelo Barbosa* Rosalvo Schütz**

RESUMO Este artigo tem o objetivo de discutir dois textos de Herbert Marcuse, que são: O Fechamento do Universo de Locução e A Vitória do Pensamento Positivo: Filosofia Unidimensional. Estes textos compõe o livro: A ideologia da sociedade industrial – o homem unidimensional (1964), onde Marcuse tematiza uma sociedade unidimensional organizada por parâmetros racionais e lógicos, que legitimam uma ordem de dominação que instrumentaliza os homens e a natureza. O primeiro texto é um dos que compõe o primeiro tópico do livro, onde Marcuse discute a unidimensionalização da sociedade. Trata-se de expor, como na sociedade industrializada se atribuiu uma funcionalização da linguagem que ajuda a repelir elementos não conformistas, limitando a linguagem uma característica operacional e instrumental, que contribui para ordenar e organizar a sociedade segundo os interesses de dominação. Além do mais, uma linguagem unidimensional é também anticrítica e antidialética, pois se encontra fechada dentro de um universo de locução, que comunica decisões e sentenças de comando. O segundo texto é um dos que compõe o segundo tópico do livro, onde Marcuse discute a unidimensionalização do pensamento. Trataremos de expor a partir deste texto a crítica de Marcuse à filosofia positivista, que busca uma harmonia entre a teoria e a prática, desde que a realidade possa ser cientificamente compreendida e que se possa tornar industrial e tecnológica. Desse modo, o mudo empírico se mostra como objeto do mundo positivo, aparecendo como o resultado de uma experiência restrita que reduz o sujeito humano a um indivíduo abstrato e mutilado por um comportamento unidimensional.

* UNIOESTE; e-mail: [email protected] ** UNIOESTE; e-mail: [email protected]

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Portanto, o objetivo é mostrar, nos dois casos, o quanto a concepção positivista restrita aos limites de uma Teoria Tradicional cria um véu mitológico sobre a razão, subordinando todos os fatos a uma sistematização de não contraditórios, negando a realidade histórica e seus potenciais revolucionários. Nestes limites da Teoria Tradicional, tanto na sociedade quando no pensamento, institucionaliza-se um determinado tipo de vida e de comportamento que busca fazer do ser humano um reflexo de sua razão instrumental bloqueando os potenciais emancipatórios. PALAVRAS-CHAVE: Unidimensional; Marcuse; Razão; Teoria Tradicional. REFERÊNCIAS MARCUSE, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial: O Homem Unidimensional. Trad. Giasone Rebuá. Zahar, Rio de Janeiro, 1968.

LVIII

O PROBLEMA DO FUNDAMENTO FILOSÓFICO DOS DIREITOS HUMANOS EM NORBERTO BOBBIO (1909-2004)

Fernando da Rocha

José Francisco de Assis Dias. RESUMO Esta comunicação tem por objetivo investigar a possível fundamentação filosófica do direito do homem a partir do pensamento político de Norberto Bobbio (1909-2004). Ainda hoje os problemas enfrentados em relação aos direitos sociais provocam a investigação para compreender a estrutura fundante dos direitos ao homem. O trabalho é uma análise qualitativa eminentemente bibliográfica tendo por base as obras coletâneas de Norberto Bobbio, importante filósofo-político teorizador do direito em uma filosofia política voltada à democracia que em seus escritos evidenciou a fundamentação dos direitos humanos. Autor de importantes obras como A era dos direitos (2004); O problema da guerra e as vias da paz (2003); O conceito de sociedade civil (1982); O terceiro ausente (2009); essas coletâneas foram cruciais para a elaboração deste projeto assim como as obras do professor Dias: Não matar! (2009); Introdução ao pensamento de Norberto Bobbio (2009); e Consensus omnium gentium (2013). Investigar este tema é certamente buscar respostas plausíveis ao direito do homem que é garantido por fundamentações concretas. É também partir de uma filosofia voltada ao direito constituído aos homens que por vezes não são beneficiados por seus direitos. Para Bobbio, os direitos dos homens precisam de um estatuto ontológico e devem ser examinadas as relações de questões centrais da liberdade, igualdade e direitos. Partindo da investigação das leis que garantem os direitos humanos, pode-se compreender melhor quais são os direitos humanos fundamentais enquanto ser, vivente racional, e os direitos atribuídos aos homens em uma coletividade. No coletivo, pertencentes à sociedade, há três importantes movimentos para que o direito dos homens seja garantido, isto é, a fundamentação do direito está ligada intrinsicamente à democracia e à paz. Há uma universalidade em relação ao conhecimento

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do homem que pode compreender seu direito através do pressuposto necessário, a paz; relação de paz democrática, constante para que os homens possam gozar de seus direitos fundantes naturais como resposta ao progresso histórico, a uma sociedade que almeja a flexibilidade da boa ação entre paz, democracia e direito. Bobbio, ao tratar questões de democracia e igualdade aponta os esforços necessários para se garantir a liberdade em confronto direto com o poder político; as limitações do poder e do estado evidenciadas ao não cumprimento da liberdade. Liberdade e democracia que têm seu início a partir do Estado, sendo que neste meio social haverá divergências no que diz respeito à observância e ao cumprimento desses dois movimentos não lineares, que reflete diretamente na fundamentação dos direitos. O Estado constituído não só governa como também tem a função de conservar os direitos, sendo que por este motivo têm limites que contribui com todo o povo, desde que as práticas das normas gerais estejam em harmonia, isto é, que as formas do poder: Executivo, Legislativo e Judiciário se voltem ao bem de todos e que os direitos e deveres sejam cumpridos segundo as regras do estado. Bobbio identifica que o direito do homem não é mais uma questão de fundamentação ou algo que comprove que os mesmos o possuem, mas sim o problema de protegê-lo, isto é, seu direito é constituído, mas inúmeras vezes os direitos são violados. O problema do fundamento dos direitos humanos em Bobbio faz com que os homens olhem seu pensamento crítico a partir dos direitos sociais: direitos e deveres. Também uma análise em relação à fundamentação filosófica dos direitos do homem, isto é, partindo de uma política que pelas lentes de Norberto Bobbio é possível identificar a problemática pertinente aos direitos do homem, podendo investigar a possibilidade de uma fundamentação filosófica dos direitos humanos, a partir do pensamento político de Norberto Bobbio (1909-2004). PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos; Fundamento filosófico; Norberto Bobbio. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 11. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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BOBBIO, Norberto. O terceiro ausente: ensaios e discursos sobre a guerra,1ed. 2009.

DIAS, José Francisco de Assis. Consensus omnium gentium: o problema do fundamento dos direitos humanos no pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004). Maringá-PR: Humanitas Vivens, 2013.

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ORGANIZADORES:

DOUGLAS ANTONIO BASSANI é Doutor em Filosofia pela UNICAMP (2008), Mestre em Filosofia pela UFSM (2000) e Graduado em Filosofia pela UCPEL (1998). Atualmente é professor associado da Filosofia na UNIOESTE, coordenador de área do PIBID e coordenador da XX Semana Acadêmica de Filosofia. Atualmente desenvolve pesquisas na área de Filosofia da Ciência do século XX e História da Ciência.

Organizadores 313

ADEMIR MENIN é professor colaborador junto ao Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Mestre em Filosofia junto à Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (PUG) com dissertação em Arthur Schopenhauer. Participou da XX Semana Acadêmica de Filosofia 2017 como vice-coordenador. Atualmente desenvolve pesquisas na área de Metafísica e Conhecimento, especificamente no âmbito da Fenomenologia heideggeriana em relação ao “conceito de tempo”. Participa também do Grupo de Estudos Nietzsche junto à própria UNIOESTE.

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MARCIELI POSTAL é acadêmica do terceiro ano do curso de licenciatura da Universidade Estadual do Oeste do Paraná; bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), vinculado a CAPES/MEC. Participou como organizadora da XX Semana Acadêmica de Filosofia.

Organizadores 315

JOSÉ LUIZ GIOMBELLI MARIANI é acadêmico do quarto ano do curso de licenciatura em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), vinculado a CAPES/MEC. Cursou três semestres do curso de Filosofia na Faculdade Palotina (FAPAS) de Santa Maria – RS. Participou como organizador da XIX e da XX Semana Acadêmica de Filosofia da UNIOESTE, evento organizado pelo Centro Acadêmico de Filosofia. Atualmente desenvolve pesquisa na área de Filosofia da Ciência. Participou entre os anos de 2014 à 2016 como membro do Diretório do Centro Acadêmico de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, ocupando o cargo de Coordenador Geral.

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JOSÉ FRANCISCO DE ASSIS DIAS é Professor Adjunto da UNIOESTE, Toledo-PR; professor permanente do Mestrado em Gestão do Conhecimento nas Organizações, na UNICESUMAR; professor permanente do Mestrado em Filosofia da UNIOESTE; pesquisador do Grupo de Pesquisa “Educação e Gestão” e do Grupo de Pesquisa “Ética e Política”, da UNIOESTE, CCHS, Toledo-PR. Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália; Doutor em Filosofia também pela mesma Pontifícia Universidade; Mestre em Direito Canônico também pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana; Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade; Especialista em Docência no Ensino Superior pela UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela UNICESUMAR. Pesquisador bolsista em produtividade do Instituto Cesumar de Ciência, Tecnologia e Inovação (ICETI). E-mail: [email protected]

Organizadores 317

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