cinco ferramentas ensino de filosofia

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Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 117-138, jan./jun. 2006 117 CINCO FERRAMENTAS PARA O ENSINO- APRENDIZAGEM DA FILOSOFIA Gabriele Greggersen * Resumo: Muitos professores que se vêem desafiados a tratar de temas filosóficos, como o preconceito, a igualdade, a justiça e a ética implícitos nos chamados “temas transversais” dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), ressentem-se da falta de preparo para a empreitada e de interesse de parte dos alunos. Muitas vezes não se dão conta de que se trata de temas filosóficos. Queixam-se, ainda, da concorrência desleal dos produtos da tecnologia e da carência de valores referenciais. Este artigo aborda as alternativas didáticas para tratar esses temas pedagogicamente, buscando na tradição do ensino da filosofia e em alguns pensadores, elementos para a construção de alternativas pedagógicas para o tratamento desses assuntos, adaptadas para a atualidade. Assim, o presente artigo argumenta em favor da articulação entre a filosofia e suas ferramentas e métodos tradicionais de educação, mediados pela linguagem oral e escrita, como uma alternativa para o ensino-aprendizagem de “temas transversais”. Busca-se, ainda, resgatar o espaço para a discussão interdisciplinar dos problemas filosóficos da atualidade destacados como temas transversais nos PCNs, que dizem respeito a todas as disciplinas curriculares. Palavras-chave: prática de ensino; ferramentas de aprendizagem; filosofia; literatura; ética; valores. Abstract: several teachers who see themselves challenged to handle philosophical issues, as prejudice, equality, justice and the ethics implicit * Mestre e Doutora em Filosofia e História da Educação pela FEUSP. Pós-Doutora pelo IEA/USP, autora de Antropologia filosófica de C.S. Lewis; O senhor dos anéis: da fantasia à ética; A magia das crônicas de Nárnia; Guarda- roupa mágico, além de organizadora de O evangelho de Nárnia e diversos artigos no campo da ética, educação e antropologia filosófica, e coordenadora do programa de educação à distância da Faculdade Teológica Sulamericana.

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Aspectos relevantes para o ensino de filosofia.

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Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 5, n. 9, p. 117-138, jan./jun. 2006 117

CINCO FERRAMENTAS PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DA FILOSOFIA

Gabriele Greggersen*

Resumo: Muitos professores que se vêem desafiados a tratar de temasfilosóficos, como o preconceito, a igualdade, a justiça e a ética implícitosnos chamados “temas transversais” dos Parâmetros Curriculares Nacionais(PCNs), ressentem-se da falta de preparo para a empreitada e de interessede parte dos alunos. Muitas vezes não se dão conta de que se trata detemas filosóficos. Queixam-se, ainda, da concorrência desleal dos produtosda tecnologia e da carência de valores referenciais. Este artigo aborda asalternativas didáticas para tratar esses temas pedagogicamente, buscandona tradição do ensino da filosofia e em alguns pensadores, elementospara a construção de alternativas pedagógicas para o tratamento dessesassuntos, adaptadas para a atualidade. Assim, o presente artigo argumentaem favor da articulação entre a filosofia e suas ferramentas e métodostradicionais de educação, mediados pela linguagem oral e escrita, comouma alternativa para o ensino-aprendizagem de “temas transversais”.Busca-se, ainda, resgatar o espaço para a discussão interdisciplinar dosproblemas filosóficos da atualidade destacados como temas transversaisnos PCNs, que dizem respeito a todas as disciplinas curriculares.

Palavras-chave: prática de ensino; ferramentas de aprendizagem; filosofia;literatura; ética; valores.

Abstract: several teachers who see themselves challenged to handlephilosophical issues, as prejudice, equality, justice and the ethics implicit

* Mestre e Doutora em Filosofia e História da Educação pela FEUSP. Pós-Doutora pelo IEA/USP, autora deAntropologia filosófica de C.S. Lewis; O senhor dos anéis: da fantasia à ética; A magia das crônicas de Nárnia; Guarda-roupa mágico, além de organizadora de O evangelho de Nárnia e diversos artigos no campo da ética, educação eantropologia filosófica, e coordenadora do programa de educação à distância da Faculdade Teológica Sulamericana.

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in the so called “transversal issues” of the National Curricular Parameters(PCNs), feel the lack of the respective preparation to that enterprise aswell as the lack of interest on the part of the students. Several times theyjust do not realize that they are philosophical. They also comply aboutthe unfair competition of the products of technology, as well as the absenceof reference values. This article leads with the educational alternativemeans to deal with such themes, searching on the tradition and somethinkers elements to the construction of pedagogical proposals, adaptedto present days. Thus we are arguing for the articulation betweenphilosophy and their traditional tools and methods of education, mediatedby oral and written language, as an alternative for the teaching and learningof the “transversal issues”. We also hope to rehabilitate the place for theinterdisciplinary discussion of main philosophical problems, which haveimplications for all areas, of several curricula and school programs.

Key words: practices of teaching; tools of learning; philosophy; literature;ethics values.

APRENDENDO A SE COMUNICAR

Um dos temas mais debatidos nos meios educacionais de hoje é a “inclusão”e os meios de torná-la uma realidade nas escolas. A justificativa para isso é opluralismo e a globalização, na chamada era dos direitos. A impressão que se tem éque os novos tempos e o novo milênio chegaram para tornar as sociedades “auto-maticamente” mais “igualitárias”.

Entretanto, só abrirmos os jornais e atentarmos para a realidade à nossa voltapara descobrirmos que a realidade não é bem assim, principalmente nas escolas. Nãopoucos se queixam da crise crescente dos valores e, por coincidência ou não, tambémda educação. E isso, não apenas considerando o aspecto salarial e de reconhecimentosocial da categoria, tanto dos pensadores da ética, os filósofos e os educadores, mastambém por todo tipo de violência que se tem observado nas escolas.

Diante da indisciplina geral e da crise da família em assumir o seu papel deformadora do caráter e dos princípios éticos, o professor sente-se engessado pelaimposição de uma “tolerância compulsória” em relação ao ensino de valores e prin-cípios morais.

Embora a LDB e os PCNs de filosofia anunciassem a centralidade da mesmanos currículos escolares, como sonhavam já os pioneiros da Escola Nova, com des-taque a Fernando de Azevedo e Paulo Freire, a filosofia tem sido inclusa e retiradado rol de disciplinas obrigatórias, quase que à mercê de interesses de grupos orafavoráveis, ora contrários, e, quando contemplada, tem sido reduzida a mais umamatéria conteudista, a corroborar com a distância já acentuada entre teoria e prá-tica na educação brasileira.

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Por outro lado, fala-se em “temas transversais”, em que se destaca a ética,dando a impressão aos desavisados, que esse tópico não pertence à filosofia, comParâmetros Curriculares altamente sofisticados e conscientes de alguns problemasda filosofia da atualidade, como o relativismo moral e cultural:

Nega-se qualquer perspectiva de “relativismo moral”, entendido como “cada um élivre para eleger todos os valores que quer”. Por exemplo, na sociedade brasileira nãoé permitido agir de forma preconceituosa, presumindo a inferioridade de alguns (emrazão de etnia, raça, sexo ou cor), sustentar e promover a desigualdade, humilhar, etc.Trata-se de um consenso mínimo, de um conjunto central de valores, indispensável àsociedade democrática: sem esse conjunto central, cai-se na anomia, entendida sejacomo ausência de regras, seja como total relativização delas (cada um tem as suas, efaz o que bem entender); ou seja, sem ele, destrói-se a democracia, ou, no caso doBrasil, impede-se a construção e o fortalecimento do país. O segundo ponto dizrespeito justamente ao caráter democrático da sociedade brasileira. A democracia éum regime político e também um modo de sociabilidade que permite a expressão dasdiferenças, a expressão de conflitos, em uma palavra, a pluralidade. Portanto, paraalém do que se chama de conjunto central de valores, deve valer a liberdade, atolerância, a sabedoria de conviver com o diferente, com a diversidade (seja do pontode vista de valores, como de costumes, crenças religiosas, expressões artísticas, etc.).Tal valorização da liberdade não está em contradição com a presença de um conjuntocentral de valores. Pelo contrário, o conjunto garante, justamente, a possibilidade daliberdade humana, coloca-lhe fronteiras precisas para que todos possam usufruirdela, para que todos possam preservá-la. (MEC, 2006).

A ética é aqui genericamente entendida como o conjunto de princípiosque norteia a conduta e decisão moral, que podem ser entendidas como a práticadaqueles paradigmas teóricos. Longe de pretendermos entrar no mérito dedistinções e classificações das “éticas” variadas ou esgotarmos os pensadores quetêm algo a contribuir para o assunto neste artigo, pautamos-nos simplesmentepela ética clássica aristotélica, que explicitaremos mais adiante, desenvolvidaposteriormente por alguns pensadores medievais como Tomás de Aquino emodernos, como Kant e Heidegger.

O que é constatável em diversas pesquisas, realizadas em diferentes contextosescolares, não apenas do Brasil, o estado de angústia e desnorteamento do professor diantedas exigências contraditórias da sociedade, que exige do professor e da escola o tratamentodesses problemas, negando-lhes, ao mesmo tempo as ferramentas básicas para fazê-lo.

Mas o que se entende, na prática, pelos chamados “temas transversais”? Emsuma, trata-se de assuntos relacionados à pluralidade cultural, ética, saúde, ao meioambiente, trabalho e consumo, e à sexualidade nas escolas públicas, que têm se tradu-zido em projetos desarticulados e informais. Com isso, recaem muitas vezes numdiscurso ambíguo e contraditório, pautado pelo relativismo cultural, um precon-ceito velado ou um paternalismo modernizado.

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O que se pretenderá sustentar aqui é que uma das condições para o sucesso dosprojetos relativos a esses temas transversais definidos pelos Parâmetros Curriculares daEducação Nacional (PCNs) dos terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental – temastransversais (on line, 2004), sem prejuízos aos conteúdos elementares, é a filosofia. Mas,antes, é preciso entender melhor o conceito e a proposta da transversalidade:

Seus objetivos são:• compreender a cidadania como participação social e política, assim comoexercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitan-do o outro e exigindo para si o mesmo respeito;

• posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentessituações sociais, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e detomar decisões coletivas;

• conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, ma-teriais e culturais como meio para construir progressivamente a noção deidentidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país;

• conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro,bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicio-nando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais,de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características indi-viduais e sociais;

• perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente,identificando seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativa-mente para a melhoria do meio ambiente;

• desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de con-fiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social, para agir com perseverança na busca deconhecimento e no exercício da cidadania;

• conhecer o próprio corpo e dele cuidar, valorizando e adotando hábitossaudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida e agindo comresponsabilidade em relação à sua saúde e à saúde coletiva;

• utilizar as diferentes linguagens – verbal, musical, matemática, gráfica, plás-tica e corporal – como meio para produzir, expressar e comunicar suas idéias,interpretar e usufruir das [sic] produções culturais, em contextos públicos eprivados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação;

• saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos paraadquirir e construir conhecimentos;

• questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utili-zando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade deanálise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação.

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Além disso, os temas transversais fundam-se nos seguintes princípios queperpassam outros documentos referenciais, como o Estatuto da Criança e do Ado-lescente e os Direitos Humanos da Unesco:

• Dignidade da pessoa humanaImplica em [sic] respeito aos direitos humanos, repúdio à discriminação dequalquer tipo, acesso a condições de vida digna, respeito mútuo nas relaçõesinterpessoais, públicas e privadas.

• Igualdade de direitosRefere-se à necessidade de garantir a todos a mesma dignidade e possibi-lidade de exercício de cidadania. Para tanto há que se considerar o princípioda eqüidade, isto é, que existem diferenças (étnicas, culturais, regionais, degênero, etárias, religiosas, etc.) e desigualdades (socioeconômicas) que necessi-tam ser levadas em conta para que a igualdade seja efetivamente alcançada.

• ParticipaçãoComo princípio democrático, traz a noção de cidadania ativa, isto é, dacomplementaridade entre a representação política tradicional e a participa-ção popular no espaço público, compreendendo que não se trata de umasociedade homogênea e sim marcada por diferenças de classe, étnicas, reli-giosas etc. É, nesse sentido, responsabilidade de todos a construção e a am-pliação da democracia no Brasil.

• Co-responsabilidade pela vida socialImplica em [sic] partilhar com os poderes públicos e diferentes grupos so-ciais, organizados ou não, a responsabilidade pelos destinos da vida coletiva(UNESCO, on line).

Esse documento, que é mais do que uma diretriz e plano curricular desse tipode disciplina, explicita ainda os seguintes critérios para se considerar um tema“transversal”:

• Urgência socialEsse critério indica a preocupação de eleger como Temas Transversais ques-tões graves, que se apresentam como obstáculos para a concretização daplenitude da cidadania, afrontando a dignidade das pessoas e deteriorandosua qualidade de vida.

• Abrangência nacionalPor ser um parâmetro nacional, a eleição dos temas buscou contemplarquestões que, em maior ou menor medida e mesmo de formas diversas,fossem pertinentes a todo o país. Isso não exclui a possibilidade e a neces-sidade de que as redes estaduais e municipais, e mesmo as escolas, cres-centem [sic] outros temas relevantes à sua realidade.

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• Possibilidade de ensino e aprendizagem no ensino fundamentalEsse critério norteou a escolha de temas ao alcance da aprendizagem nessaetapa da escolaridade. A experiência pedagógica brasileira, ainda que demodo não uniforme, indica essa possibilidade, em especial no que se refereà Educação para a Saúde, Educação Ambiental e Orientação Sexual, já de-senvolvidas em muitas escolas.

• Favorecer a compreensão da realidade e a participação socialA finalidade última dos Temas Transversais se expressa neste critério: queos alunos possam desenvolver a capacidade de posicionar-se diante dasquestões que interferem na vida coletiva, superar a indiferença e intervir deforma responsável. Assim os temas eleitos, em seu conjunto, devem possi-bilitar uma visão ampla e consistente da realidade brasileira e sua inserçãono mundo, além de desenvolver um trabalho educativo que possibilite umaparticipação social dos alunos (UNESCO, on Line).

É preciso esclarecer que, enquanto a interdisciplinaridade é um conceito teó-rico e complexo, que em suma significa fazer uma “reação química” entre diferentesdisciplinas pela interação entre professor/aluno – aluno/professor, a transversali-dade é prática de ensino que pretende realizar a interdisciplinaridade, levantando osconceitos comentados, como se procura deixar claro:

Amplos o bastante para traduzir preocupações da sociedade brasileira de hoje, osTemas Transversais correspondem a questões importantes, urgentes e presentes sobvárias formas na vida cotidiana. O desafio que se apresenta para as escolas é o deabrirem-se para o seu debate. Isso não significa que tenham sido criadas novas áreasou disciplinas. Como você poderá perceber pela leitura deste documento, osobjetivos e conteúdos dos Temas Transversais devem ser incorporados nas áreas jáexistentes e no trabalho educativo da escola. É essa forma de organizar o trabalhodidático que recebeu o nome de transversalidade. (UNESCO, on line).

Ramos (apud OLIVEIRA; SILVA, 1993, p. 126) destaca dois problemas nosprojetos não-formais e iniciativas “multiculturais” que se proliferam nas escolaspara combater particularmente o preconceito racial: a falta de continuidade e espe-cificidade desses projetos dentro do calendário escolar e a exclusão dos conteúdosbásicos em detrimento deles. “É preciso pensar na possibilidade de construção deprojetos culturais na área de educação não-formal, numa perspectiva que busque aomesmo tempo não ser um risco à educação escolar, nem ser um simples receptor deestudantes excluídos socialmente.” Ou seja, não se deve descartar os projetos infor-mais, mas inseri-los no planejamento curricular de forma articulada e harmoniosa.

E essa harmonia baseia-se na linguagem, que é o principal mediador da comu-nicação humana, permitindo fazer todas as articulações possíveis, a partir de umcampo comum, como se ressalta também nos já mencionados PCNs de ética.

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O que se observa na escola, hoje, no entanto, é um incrível desencontro delinguagens e, portanto, de interesses e visões-de-mundo, sem que muitas vezes osseus integrantes se dêem conta dessas divergências. A tendência é, assim, que seestabeleçam “pactos” ou simulações de iniciativas pedagógicas que velam tais dis-crepâncias, nos seguintes termos: “Você finge que está falando a minha linguagem,e eu finjo que entendendo a sua”; “Você me manda um e-mail sobre isso mais tardee está tudo resolvido”; ou “Amanhã resolvemos o assunto na reunião pedagógica”.

Assim, os aparentes esforços de fazer frente aos novos tempos, mesmo se con-siderarmos algumas iniciativas de inclusão, pluralismo e combate à violência encobremum distanciamento real entre os seus integrantes e um acordo tácito e praticamenteimposto, de exclusão de conteúdos e práticas pedagógicas elementares e fundamentaisao aprendizado, como os da filosofia clássica e das línguas, consideradas “ultrapassadas”.Fábio K. Comparato (2000, on line) aponta para uma contradição semelhante, queocorre na comunicação e aquisição de informações hoje em dia:

Os homens nunca se viram, tal como hoje, aproximados uns dos outros pelosinstrumentos de informação e comunicação... Essas cifras globais, no entanto,mascaram uma formidável desigualdade entre os que podem e os que não podemutilizar-se dessas maravilhas do engenho humano. (2000, p. 32).

Um dos clássicos da educação, Georges Gusdorf (1995a), insiste em dizerque não há educação sem o encontro real, o contato pessoal entre educando eeducador. Ele certamente colocaria em dúvida os cursos cem por cento a distância,que se pretendem “educativos” e não meramente instrumentais e técnicos.

Nesse sentido, por seu caráter pessoal ou até existencial, em outro texto do mes-mo autor, veiculado em Tempo Brasileiro, o trabalho pedagógico e a filosofia são con-siderados mais do que temas interdisciplinares. De certa forma o tópico se enquadra noque Gusdorf (1995b) chama “transdisciplinaridade”, que explica da seguinte forma:

Mais nova, mais fascinante, pelo menos na ordem lingüística, é a noção da trans-disciplinaridade; ela enuncia a idéia de uma transcendência, de uma instânciacientífica capaz de impor sua autoridade às disciplinas particulares; ela talvez designeum foco de convergência, uma perspectiva de mirada que juntaria o horizonte dosaber, segundo uma dimensão horizontal do saber, segundo uma dimensão horizon-tal ou vertical, as intenções e preocupações de diversas epistemologias. Pode-se tratarde uma metalinguagem ou meta-ciência, mas, na estratégia do saber, a ordemtransdisciplinar define uma posição-chave, da qual sonharam tomar posse todos osque as ambições do imperialismo intelectual atormentam. (p. 15).

Infelizmente, porém, como o próprio autor constata, essa linguagem é muito rarade se atingir no mundo contemporâneo, sendo que a maioria dos intelectuais da atua-lidade só pode sonhar com ela. Pergunta-se, até que ponto os projetos informais, rea-

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lizados na frente do computador, promovem o raciocínio, a criatividade e a reflexão sobreos temas transversais, como a ética, a desigualdade, a violência, as drogas, a sexualidade,que, em última instância, são filosóficos? Outra pergunta que se coloca nesse contexto é:em que medida os educadores estão preparados para abordar tais assuntos, não comomais uma novidade, mas de maneira reflexiva, inter e até transdisciplinar? Que tipo deformação filosófica lhes foi oferecida para tanto? Parece que os articuladores dos PCNs,por mais admirável que fosse o conteúdo do texto produzido, partem do pressuposto deque os professores, seus leitores estejam em condições não apenas de digeri-los, mastambém de aplicá-los, que dirá de forma reflexiva e crítica em sala de aula. Daí que nãooferecessem praticamente nenhum ferramental para a realização de tais ideais.

Espera-se que o professor, que hoje carrega o ônus adicional dos ditos temastransversais, particularmente o de filosofia e ética (quando há), seja capaz de abordartemas existenciais, ligados ao sentido da vida e à felicidade humana, num mundopautado pelo materialismo, desnorteamento ético e individualismo provocados, emparte, pelo uso indevido da tecnologia, para alimentar um consumismo materialista.

Já na época em que viveu, Erich Fromm (1980) diagnosticava esse problema,atribuindo-o a uma visão de mundo, ao que chamava “modo ter” de existência, emdetrimento do “modo ser”:

O modo ter de existência, a atitude centrada no móvel da propriedade e do lucro,necessariamente produz o desejo, e mesmo a necessidade da força... Para manter ocontrole da propriedade privada, precisamos empregar força para protegê-la daquelesque as tirariam de nós, porque eles, como nós, jamais podem ter o bastante; o desejo deTer propriedade privada produz o desejo de empregar violência a fim de furtar deoutros de maneira aberta ou velada. No modo Ter, a felicidade consiste na supe-rioridade sobre outros, no poder e, em última análise, na capacidade de conquistar,roubar, matar. No modo ser, essa felicidade consiste em amar, participar, dar. (p. 91).

Fromm não tem muita esperança para o futuro de uma sociedade quefunciona pelo “modo ter”, reificadora do ser, usando os horrores da Primeira Guer-ra Mundial como exemplo. Ficamos nos perguntando o que ele diria do terrorismodo mundo de hoje. Tudo indica que ficamos insensíveis para o ser no mundo e osubstituímos pelo modo ter, numa espécie de “recalque”. É preciso levar em conta,hoje em dia, que grande parte dos alunos pensa e age de acordo com o “modo ter”,de olhos fixos no que se espera que eles aprendam, sem lhes passar pela cabeça quese espera que eles “criem algo novo”.

De fato. O indivíduo de tipo ter sente-se até perturbado por novos pensamentos ouidéias sobre um assunto, porque o que é original põe em questão o acervo fixo dedados que ele possui. Na realidade, para aquele cuja principal forma de relacio-namento com o mundo é o ter, as idéias que não possam facilmente ser enfeixadas(ou anotadas) são assustadoras – como tudo o mais que aumenta e se transforma, eseja dessa maneira incontrolável. (FROMM, 1980, p. 47).

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A única esperança que o autor vê para um mundo assim dominado pelomodo ter é a alimentação de uma religiosidade explícita, consistente e saudável, àsemelhança do que propõe Émile Durkheim: a formação do caráter e da sociabi-lidade rumo à solidariedade, liberdade, responsabilidade e cidadania.

Durkheim foi o primeiro popularizador da educação, entendida como “ciên-cia pedagógica”. Diferente do paradigma positivista, entretanto, ele lhe atribuiu umestatuto essencialmente sociológico, ou seja, a educação é vista como parte daformação da sociedade, cuja missão essencial é a formação do caráter para o bomconvívio em sociedade, ou seja, para a solidariedade. Inclusive a religiosidade, aindaque vista como fenômeno universal, já que o sagrado é elemento essencialmentehumano, é visto como produto e parte da formação das civilizações.

Há controvérsias, se um humanismo radical, como o proposto por Fromm, emoderado, com traços de empirismo, como o de Durkheim, concordaria com a pro-posta contemporânea do retorno às discussões metafísicas e relativas à transcendência.

O fato é que enquanto alunos e professores, de todas as gerações e contextosculturais, não aprenderem a se comunicar e compartilhar efetiva e conscientementesuas visões de mundo, deixarão de se empenhar nesses campos, em busca demudanças reais e tenderão a tratar o mundo e os outros como coisas ou máquinasque é mister controlar em proveito próprio, o que é o início do fim de qualquercivilização humana.

APRENDENDO A ARGUMENTAR

Baseando-se em pequeno texto de uma autora britânica de contos policiais,Dorothy Sayers, intitulado The Lost Tools of Learning [Os Instrumentos Perdidos daAprendizagem], Wilson (1991) alerta para a importância de serem recobradas asferramentas clássicas da educação, tais como a gramática, a retórica e a lógica, mastambém outros conhecimentos naturais e matemáticos fundamentais, antes de seabordar assuntos mais “disciplinares”. Trata-se das chamadas “Artes Liberais”, divi-didas em trivium e quadrivium, que formavam a base constante do currículo desdea educação da Antiguidade até a Contra-Reforma, embora de modo já bastantedesgastado. A autora de contos policiais e pensadora, Dorothy Sayers, num discur-so em Oxford, no ano de 1947, reconhecia a situação “sem saída” do professormoderno, de quem se cobram coisas, antes atribuídas a outras instituições sociais,ao mesmo tempo em que lhe tiraram os instrumentos didáticos elementares.

Nesse sentido, Benevides (2001) lembra que a argumentação é uma “ferra-menta” ou arte fundamental para a formação, particularmente de valores, e que aliteratura tem um papel fundamental para o seu desenvolvimento:

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A didática dos valores supõe, como já visto, a lógica da argumentação. Aqui éimportante voltar ao tema de Antonio Candido, quando insiste que “nas nossassociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação,entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual eafetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estãopresentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. Aliteratura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a pos-sibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto aliteratura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a quenasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante”. (p. 27).

No mencionado Dossiê da Educação do Instituto de Estudos Avançados daUSP (BOSI, 2001, p. 487), faz-se homenagem a vários pensadores eminentes nacultura brasileira, como: João Guimarães Rosa, Machado de Assis e, o que achamoso mais importante para nossos efeitos, Sérgio Buarque de Holanda, de quem seobserva: “Espírito universal, reputado por sua erudição, nosso autor assimilava acultura do mundo para aplicá-la ao país. E não é porque fosse brasileiro e estudasseseu país que deixaria de escrever obras que se situam no mais alto patamar cos-mopolita: até nisso era democrático e popular.”

Sua maior arte foi articular literatura da mais alta qualidade com historio-grafia e sociologia, procurando “no passado forças de transformação que permi-tissem justamente emancipar-se dele”. (BOSI, 2001, p. 487).

Sócrates e os filósofos peripatéticos, que estão na raiz de toda cultura e ciênciauniversal, usavam a argumentação dialógica1 e o estudo da literatura, através daretórica, lógica, oratória ou mesmo da gramática, como ferramentas básicas deconstrução do conhecimento. Sócrates demonstrava o valor que atribuía a essasartes, também chamadas “liberais”, e seu domínio completo, através da sua meto-dologia que mesclava ironia com maiêutica.2

A comunicação entre mestre e aluno era tão intensa e interativa, que os diá-logos que teve com os seus alunos ficaram registrados para a posteridade, graças aoseu discípulo Platão. Desde então, essa forma de registro e meio de ensino argu-mentativo da filosofia foi praticada por diversos filósofos renomados, tais como:Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, em suas Quaestio disputata, Hume, PauloFreire, e outros. E ainda há quem os defenda na atualidade.

1 Expressão muito usada por Paulo Freire para indicar uma educação pautada pelo diálogo, interação e respeito aooutro como pessoa.

2 A ironia era a primeira fase da metodologia de Sócrates, que se pautava na convicção de que ninguém aprendeo que acha que já sabe e que é preciso fazer os alunos se conscientizarem do que ignoram, assumindo a posturahumilde do “só sei que nada sei” e dando o exemplo dessa postura, fazendo perguntas. A segunda fase, damaiêutica, que era o nome dado às parteiras, é o do auxílio e cuidado dado ao aluno, depois do “choque” daconcepção. Essa fase baseia-se na convicção de que a aprendizagem é um processo insubstituível e de que oprofessor é um auxiliador nesse processo.

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Inspirada, quem sabe, em Aristóteles, Bowery (1999) associa a argumentação àcapacidade de fazer perguntas, a partir de textos filosóficos. Ela apresenta a “pedagogiada pergunta” como alternativa não somente à abordagem de textos, mas à metodologiamais utilizada nos EUA para o ensino da filosofia, que é a temática. Essa metodologiatem certas vantagens, em termos de praticidade e comodidade para o professor, mas elapode vir a banalizar o conhecimento e a fazer os alunos perderem o interesse e aoportunidade de realmente apreciarem um pensador ou um texto. Ela explica melhor:

O que é a abordagem interrogativa da filosofia? Interrogar significa colocar questões arespeito de alguém ou algo. Utilizar o método interrogativo no ensino da filosofiasignifica engajar-se na “arte de fazer perguntas” cruciais para facilitar a abordagem dotexto, tanto para os estudantes, quanto para os professores. O ensino interrogativo dafilosofia associa-se naturalmente com o ensino narrativo da filosofia pois ambos sãofacilmente orientados para a questão fundamental: “Como a vida deve ser vivida?(BOWERY, 1999, p. 45).

Por outro lado, a autora admite que certamente nem sempre a pergunta é omelhor meio de ensino, e que a maioria dos professores sentirá dificuldades eresistências internas contra esse recurso didático. É provável que muitos tenhamdificuldades em formulá-las, já que isso requer certa familiaridade com a filosofia ea literatura. Aristóteles, que considerava mais difícil perguntar do que tentar re-sponder, dizia que toda boa filosofia começa com uma boa pergunta. Ainda sim, aautora acredita que esse tipo de abordagem é um dos mais ricos e eficazes para oaprendizado, particularmente de temas filosóficos.

Quem sabe a falta de capacidade de perguntar da parte de professores e alu-nos seja uma das razões pelas quais os cursos de filosofia e certas abordagens dostemas transversais, sugeridos pelos recentes Parâmetros Curriculares Nacionais(PCNs) despertem tão pouco interesse hoje. Sem a argumentação e a problema-tização, as aulas tornam-se, em sua maioria, pesadas e insossas; ou então, por outroextremo, demasiadamente pragmáticas, contando com a apreciação de uma mi-noria de alunos.

Quanto aos PCNs, a atual diretora da Faculdade de Educação da USP, My-riam Krasilchik (apud Bosi, 2001), comenta:

Diretrizes, parâmetros, palavras que disfarçam enquadramentos, de múltiplasgavetas onde temos de nos encaixar. A quem falta coragem, na verdade, de dizer: “sãoprogramas, são obrigações que vocês têm que seguir?” [...] Há hoje um acervo deconhecimentos que precisa ser usado para fundamentar a tomada de decisão,refletindo valores, princípios, concepções teóricas de um governo, mas que nãopodem prescindir da realidade que está sendo tratada ou que precisa ser interpretadaà luz dessas concepções. (p. 27).

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Quem sabe a mesma insegurança que impede o professor de fazer perguntas sejaa razão da resistência contra a discussão das suas práticas de ensino-aprendizagem, par-ticularmente de temas filosóficos, que deveriam perpassar todas as disciplinas. Suspei-tamos que esse seja um dos fatores que faça com que cursos fundamentais para o bem-estar da humanidade, como o de Administração, Direito e Medicina, dêem tão poucoespaço para a filosofia ou, mais especificamente, para a ética ou a literatura.

Além de aprender a argumentar através da pergunta, Celso F. Favaretto(1993) frisa que o professor de filosofia deve se desiludir do desejo de transmitir aoaluno um “corpo fechado de conhecimentos”, aprendendo a posicionar-se a partirdo lugar de onde está falando.

Como se diz nos PCNs de ética:

A própria função da escola – transmissão do saber – levanta questões éticas. Para que e aquem servem o saber, os diversos conhecimentos científicos, as várias tecnologias? Énecessário refletir sobre essa pergunta. Além do mais, sabe-se que um conhecimentototalmente neutro não existe. É, portanto, necessário pensar sobre sua produção edivulgação. O ato de estudar também envolve questões valorativas. Afinal, para que seestuda? Apenas na perspectiva de se garantir certo nível material de vida? Tal objetivorealmente existe, porém, estudar também é exercício da cidadania: é por meio dosdiversos saberes que se participa do mundo do trabalho, das variadas instituições, da vidacotidiana, articulando-se o bem-estar próprio com o bem-estar de todos. As relaçõessociais internas à escola são pautadas em valores morais. Como devo agir com meu aluno,com meu professor, com meu colega? Eis questões básicas do cotidiano escolar.

Trata-se basicamente, então, de uma questão do relacionamento e da comuni-cação, de saber ouvir, que é a expectativa de quem pergunta, como fica claro também noclássico O Mestre, de Santo Agostinho. A pergunta implica ainda saber administrar aspalavras, o tempo e a profundidade adequados ao interlocutor e a saber articular a teoriaà experiência e ao imaginário do aluno, sem recair no pragmatismo. Em sua reflexão arespeito desse texto, Favaretto (1993, p. 102) conclui: “O ensino torna-se, assim,processo de constituição do espaço de encontro dos signos, possibilitando que oaprender se desenvolva pela exploração do atrito da linguagem na experiência.”

Acreditamos que isso se aplica ao professor de qualquer disciplina e é precisa-mente isso que procuram fazer os grandes mestres da filosofia. Então, a questãocentral que se coloca neste artigo é: o que podemos e até devemos conservar daspráticas de ensino esquecidas, e tão eficazes tanto para a comunicação, quanto paraa aprendizagem? O que é mister mudar nelas para darem conta de temas filosóficos,cujo lugar está hoje em parte transferido para os chamados “Temas transversais”?Ao que tudo indica, estamos sendo de tal maneira esquecidos das ferramentasclássicas para a transversalidade e transcendência, que muitas vezes deixamos delembrar sequer que exista tal “coisa” chamada filosofia. E particularmente a ética,que é disciplina essencial da filosofia, está correndo o risco de ser vitimada peloespírito do materialismo e pelo relativismo moral predominante.

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Combater esse perigo de alienação da reflexão filosófica é um dos objetivosimplícitos em um debate com Paulo Freire, que acabou sendo transformado numlivro, intitulado Por uma pedagogia da pergunta (1985, p. 23). Quando perguntam aPaulo Freire, o que é “ser ou não ser exilado”, ele que sugere essa pergunta deveria serformulada de forma “dialogada” para ser mais eficaz na mediação de importantesvivências e valores humanos, destacando que “o interessante do diálogo é que ele estácarregado não só de intelectualidade, mas também de emoção da própria vida”.

APRENDENDO A DIALOGAR

Então, não se trata de fazer qualquer pergunta, é preciso que ela seja “dialo-gada”. O diálogo é utilizado como método de aprendizagem da filosofia desde osgregos antigos, consagrado pelas obras de Platão. E a Idade Média não ignorou esselegado, que foi resgatado através de figuras como Santo Agostinho, São Tomás deAquino, Pedro Alfonsus e até, mais para perto da Reforma, por Comênio. Em seuartigo sobre a “Pedagogia Lúdica”, Luiz Jean Lauand cita um diálogo medieval,bem-humorado, entre um mestre e seu aluno, em que se afirma que essa meto-dologia servia para falar de assuntos dos mais complexos:

No diálogo de Alcuíno e Pepino, a seqüência de adivinhas começa quando o meninopergunta: “O que é a fé?” (fala 165). Ao que o mestre responde: “A certeza das coisasnão sabidas e admiráveis”. Ora, admirável (mirum) é precisamente um termo paradesignar adivinha: as adivinhas servem de modelo para a fé. Tanto num, comonoutro caso, temos já uma revelação mas não ainda a luz total, que só vem quando oenigma é resolvido e, no caso da fé, com a visio beatifica (a ligação dos enigmas coma fé remonta ao apóstolo Paulo, ao Pseudo-Dionísio Areopagita etc.) Petrus Alfonsususa suas anedotas para a formação do clero e tira conseqüências espirituais delas.Assim, a anedota da venda das ovelhas, é utilizada para ilustrar a máxima religiosa:“As riquezas deste mundo são transitórias como os sonhos de um homem que dormee que, ao despertar, perde, irremediavelmente, tudo quanto tinha...” (2000, p. 23).

E o diálogo tem precisamente essa característica de despertar o leitor para asriquezas fugidias, os insights da vida humana. Além dessa característica intuitiva e pes-soal, o diálogo apresenta ainda a vantagem do lastro da tradição. Não é por menos queesse foi um meio didático-pedagógico privilegiado por grandes mestres da história co-mo Sócrates, Platão, Agostinho, Jesus Cristo, etc., para a aprendizagem do filosofar.

Em seu Novo dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio B. de Holanda Ferreira(s.d, p. 473) conceitua “dialogar” como sendo, entre outras coisas: “Travar oumanter entendimento [...] com vistas à solução de problemas comuns; entender-se;comunicar-se.” “Diálogo”, por sua vez, quer dizer “troca ou discussão de idéias”

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com a mesma finalidade. E essa prática não parece estar presente em certas con-cepções “críticas” da educação que se encontram impregnadas nos meios filosófico-pedagógicos, que tendem a atitudes fundamentalmente denunciatórias e reducio-nistas, que pouco contribuem para a melhoria do estado atual das coisas na educa-ção. O diálogo verdadeiro certamente precisa partir do diagnóstico dos problemasdo aqui e agora. É preciso lembrar, por outro lado, que não basta denunciar e“desmistificar” situações que consideramos distorcidas e injustas: violência na es-cola, crise de valores, indisciplina, dificuldades materiais e cognitivas.

Já na sua época, Kant reconhecia esses problemas, que são, na realidade,universais da educação, localizando-os na segunda fase da mesma, que segue à docuidado, como tão bem-explicita Oliveira (2006). A disciplina por seu turno pre-para o caminho para a parte positiva da educação que é a formação (Bildung) ou acultura (Kultur). Este modo de se referir à disciplina e à cultura como negativa epositiva é uma distinção que ocorre em todos os lugares nos escritos de Kant. Porexemplo, na Crítica da razão pura ele afirma:

A compulsão pela qual a tendência constante para desobedecer certas regras éreprimida e finalmente extirpada é chamada de disciplina. Ela é distinta da cultura,que deve dar meramente um tipo de habilidade, sem cancelar qualquer outrahabilidade já presente. Para a formação (Bildung) de um talento, o qual já possui emsi próprio o impulso para se manifestar, a disciplina oferecerá, portanto, umacontribuição negativa: a cultura e a doutrina (Doktrin) uma contribuição positiva. (A709/B 737 – A 710/B738).

Analisando a obra do filósofo, Oliveira entende que os dois termos gerais“Bildung” e “Kultur” são usados como sinônimos por Kant, e incluem dentro delesuma variedade de processos mais específicos tais como a instrução (Unterweisung)(441), o ensino (Belehrung) (449) e a orientação (Anführung) (452). É tambémimportante lembrar que “cultura”, como os outros estágios da educação, é freqüen-temente utilizado por Kant num duplo sentido: às vezes esse termo se refere àformação geral da humanidade para além da animalidade na raça humana comoum todo. Às vezes, esse termo se refere a processos educacionais mais específicosdirigidos a grupos particulares assim como a indivíduos.

Mais adiante, o autor resume a filosofia educacional de Kant nos seguintes termos:

A educação prática, no seu sentido amplo, possui três partes: “1) a formação mecâ-nico-escolástica em relação à habilitação; 2) a formação pragmática concernindo àprudência; 3) a formação moral que concerne à ética” (455). Essas três partes daeducação prática “mapeiam” os três estágios – cultura, civilização e moralização –dentro da história humana (Cf. Antropologia 324) assim como “mapeiam” os trêstipos de imperativos – técnico, pragmático e moral – analisados na Fundamentação eem outros textos. Mas a teleologia interna dessas três partes inter-relacionadas injeta

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uma forte dimensão normativa a cada uma. Todas as partes da educação visambasicamente à moralização, mesmo que os participantes individuais agindo em umnível pré-moral de cultura e civilização estejam freqüentemente desapercebidos desteobjetivo maior. O plano da natureza é “a perfeição do ser humano através da culturaprogressiva” (Antropologia 322) e na maior parte do tempo nós somos participantesinconscientes desse plano. (OLIVEIRA, 2006, p. 35).

Embora Kant não esmiuçasse uma “didática de ética” específica, sua filosofiaprática incluía a possibilidade de ensino da ética, posta em dúvida por algunsfilósofos modernos e pós-modernos, sugerindo uma metodologia, primeiro, doexemplo, e segundo, da pergunta dialógica:

O método erotemático é, por sua vez, subdividido no “modo dialógico de ensino” eno “modo catequético de ensino”. No modo dialógico, o professor questiona a razãodo estudante, e no modo catequético, o professor meramente questiona a memóriado estudante” (Metafísica dos Costumes 478). Os métodos catequéticos e dialógicostambém são freqüentemente discutidos em várias preleções de lógica mas eles têmum emprego especial em ética. O método catequético envolve mero “trabalho dememória” no qual o estudante recita pensamentos que não são ainda os seuspróprios, mas com o método dialógico ou o modo Socrático de ensinar, o professor eo estudante, alternam perguntas e respostas entre si. De um modo alternativo, com ométodo socrático “o estudante questiona o professor (que de fato ainda é umestudante). (OLIVEIRA, 2006, p. 27).

Kant defendia ainda um determinado “catecismo moral”, pelo qual certa-mente não seria aceito nos meios educacionais contemporâneos.

Mas o que certamente seria aceito e foi reiterado por educadores contempo-râneos como Paulo Freire é que é a necessidade de uma filosofia prática e dos cos-tumes, que ponha em ação, ou, em sentido filosófico mais técnico, ponha em atoou realize o que Paul Ricoeur fazia na sua crítica literária e que denominou “círculo-hermenêutico”. Depois de uma aproximação aberta, quase ingênua do texto, épreciso confrontá-lo com a realidade em busca do sentido verdadeiro para além dosreflexos do desgaste e da corrupção a que estão sujeitas as coisas, para reconstruí-loatravés do que Paulo Freire chamou “práxis libertadora”.

Nesse sentido, ninguém melhor do que Paulo Freire para elucidar o conceitode diálogo. Para ele, longe de representar algum combate entre titãs intelectuaiscom complexo de superioridade acadêmica, “diálogo” nada mais é do que “conver-sar”, assumindo todos os riscos envolvidos nessa prática.

E ao fazê-lo, estamos aceitando, responsavelmente, nos expor a uma experiência sig-nificativa: a de um trabalho em comunhão. Isto não significa, porém, de maneiranenhuma, que um tal empenho negue ou anule o que seja marcadamente meu e teu,enquanto expressão mais profunda de nós, no produto final e comum. Este fazer emcomunhão, esta experiência dialógica me interessam enormemente. (1985, p. 10-11).

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Em seguida, Paulo Freire sustenta de forma convincente que o que há de tão ricono diálogo encontra-se precisamente no seu estilo, pautado pela oralidade, que o tornaleve e saboroso, mas ao mesmo tempo, também, aplica rigor à investigação da realidade:

É importante, contudo, sublinhar que a vivacidade do discurso, a leveza da oralidade, aespontaneidade do diálogo, em si mesmos, não sacrificam em nada a seriedade da obraou a sua necessária rigorosidade. Há quem pense ingenuamente que o rigor da análisesó existe quando alguém se fecha em quatro paredes, por trás de uma porta bem segura,fechada com enorme chave. Só aí, na intimidade silenciosa dos livros ou laboratórios,seria possível a seriedade científica. Não, eu acho que aqui, fechados, mas ao mesmotempo abertos para o mundo, inclusive ao da natureza que circunda o seu escritório,podemos fazer e estamos fazendo algo sério e algo rigoroso. O estilo é diferente,enquanto oral. É mais leve, mais afetivo, mais livre. (1985, p. 11).

Numa das suas últimas coletâneas, Pedagogia dos sonhos possíveis, Paulo Freirenos brinda com um diálogo mantido com os alunos de uma escola, a respeito daimportância da literatura. As crianças mostram ter maior consciência do que osadultos sobre o assunto. Não é para menos que elas gostem tanto de ouvir histórias.E contá-las é uma arte que também está em extinção no mundo de hoje.

APRENDENDO A NARRAR

Um instrumento pedagógico muito aproveitado pelos professores para tratarde temas filosóficos é o do imaginário popular dos contos, mitos e lendas. Uma dasvantagens desse tipo de literatura é que, ao mesmo tempo em que ele causa um tipode distanciamento e estranhamento, simula o mesmo tipo de dinamismo necessá-rio para o “filosofar”. A estrutura dos contos clássicos é semelhante: 1. identificaçãode um problema concreto; 2. análise e observação mais profunda da realidadeenvolvida; 3. transcendência dessa realidade, com auxílio de um elemento mágico;4. volta ao mundo do “aqui e agora” com a solução para o problema.

Grandes pensadores como Sartre (1984, p. 127) reconheceram nos contos,principalmente os fantasiosos, grande potencial, maior quem sabe, do que a refle-xão filosófica, para o ensino da moral, como sugere esse trecho de sua “autobio-grafia literária”: “Não é o herói quem quer; nem a coragem, nem o dom bastam, émister que haja hidras e dragões.”

Embora normalmente a solução dos problemas filosóficos representasse, naverdade, um novo problema ou questão filosófica, isso não nos isenta de fazermostentativas de resposta provisória, como as sugeridas por grandes pensadores comoRicoeur e Paulo Freire (2001, 203) e, a menos que queiramos não passar de meros“espectadores” da vida. “A educação que se vive na escola não é a chave das trans-

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formações do mundo, mas as transformações implicam educação. É neste sentidoque sempre digo: a força da educação está na fraqueza; não podendo tudo, podealguma coisa.” (FREIRE, 2001, p. 203).

Os autores de uma coletânea, dedicada à abordagem e didática dos contospopulares em sala de aula, além das importantes distinções e esclarecimentos sobrea função social dos contos e sua origem, que é análoga à da própria filosofia, apon-tam para uma razão de ser puramente educacional:

Os contos populares fazem parte de uma literatura originalmente oral, viva e sonora,destinada a um auditório que não sabia ler, mas que determinava a técnica da exposiçãoda própria narrativa: exposição simples, que segue a seqüência lógica, sem pormenor quedemore ou que não seja indispensável. Raramente se abando-na a ação principal pelasecundária. O que conta é a ação dramática. Não há descrições particularizantes. Prende-se ao imaginário ou à memória coletiva, que serve de repertório comum ao maior númerode ouvintes. (BRANDÃO, 2000, p. 85-86).

Assim, os contos funcionam como meio de comunicação entre pessoas deum mesmo auditório e, possivelmente, de uma mesma cultura. Dessa forma, elespermitem uma identificação do ouvinte com o conteúdo, concretizando temasexistenciais como a morte, o medo do desconhecido, o amor, e tornando-se facili-tadores da aprendizagem. Isso vale particularmente para a aprendizagem de valores,fazendo-a tornar-se muito mais vivencial e significativa e menos formal, aindamais, se considerarmos a realidade multicultural brasileira:

Deve-se enfatizar o caráter essencialmente oral dessas narrativas em que predomina ouso do registro informal [...] É fundamental que o professor perceba a importânciade se trabalhar também com esse tipo de texto na sala de aula, pois vivendo num paísde várias etnias e num contexto em que as distâncias e os espaços que separam ospovos encurtaram, a convivência com o multicultural se impõe. E também porque,nas palavras de Mindlin, as culturas se equivalem. É na diferença e na pluralidadeque se encontra o sentido de humanidade. Sentido que ultrapassa os limites estreitose perigosos do etnocentrismo. (BRANDÃO, 2000, p. 82).

Por outro lado, além de ajudar a superar idiossincrasias e a dinamizar o con-teúdo, esse tipo de literatura permite também apreender o outro lado da filosofia damudança e da transformação, que é o da permanência e continuidade. De certaforma, os contos provocam uma ruptura com o aqui e agora, apontando uma aber-tura para o cosmo, o todo, através do vislumbre de “outros mundos”, convidando,ao mesmo tempo, para uma atuação local: “Os contos conservam, basicamente, os“motivos” dos relatos tradicionais, modificando-os ou enriquecendo-os com inova-ções, provindas das peculiaridades regionais das diferentes comunidades por ondesão transmitidos de geração a geração pelos narradores locais ou estrangeiros.”(GUIMARÃES apud BRANDÃO, 2000, p. 90).

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Por sua estrutura altamente dinâmica, os contos funcionam como uma espéciede catalisadores extremamente eficientes ou elementos motivadores de debates pro-fundos sobre questões essenciais da filosofia e da busca de respostas para os mesmos.Isso se aplica particularmente à literatura de cordel, como destaca Brandão:

Nesse contexto, a narrativa oral, que tem suas origens nos narradores e narrativasmedievais, também sofre suas alterações. Com a imprensa e o romance, há umatransfiguração dessa arte popular, que passa a ser literatura, passa a ser impressa. Nocaso particular do cordel, há praticamente a transposição do oral para o escrito. Emtermos atuais, pode-se dizer que o cordel mantém, enquanto narrativa, algumascaracterísticas de origem, como a função social educativa, de ensinamento, aconselha-mento, e não apenas entretenimento ou fruição individual. Tem também um sentidoagregador, na medida em que, no momento de comercialização – integração àprodução industrial –, são contados oralmente trechos de histórias para grupos deouvintes [...] Constitui-se em um gênero intermediário entre a oralidade e a escrita. Fazuma espécie de ponte de passagem entre uma cultura popular e outra, literária. Por isso,mantém algumas pistas da oralidade ao ser transposto para o texto escrito e impresso.Em termos de dialogicidade, pode-se dizer que as histórias são contadas e recontadas eque o sujeito-narrador dialoga com o já produzido na medida em que reelabora o queouviu e acrescenta sua contribuição própria – dados da experiência, “visão-de-mundo”e formação cultural geral. (2000, p. 120).

Graças a esse potencial, os contos, os mitos e as lendas, foram consideradosmeios didáticos suficientes, ao lado das mencionadas Artes Liberais, para a formaçãoglobal do ser humano, no período áureo do ideal da Paidéia grega, utopia essa que semanteve em mira até a Idade Média, ao fim da qual, infelizmente, foi reduzida aoconceito de educação ou até de pedagogia. A razão para o desgaste desses conceitos,bem como os da própria filosofia e da ética é a tendência da cultura modernaindustrializada à reificação e ao materialismo, como vimos anteriormente.

APRENDENDO A SER

De acordo com um eminente filósofo e teólogo alemão, Josef Pieper, omáximo do ser é a virtude. Ser virtuoso, por sua vez, significa, simplesmente,buscar o máximo de si enquanto pessoa. Nesse contexto, ele resgata os conceitosfundamentais da ética clássica, “ética das virtudes” ou “ética dos valores”.

Ela se resume a quatro princípios básicos, ou seja, às chamadas “virtudescardeais”, que são a sabedoria ou prudência, ou “ver as coisas como elas são”; ajustiça, ou “dar ao outro o que lhe é devido”; a moderação, que é o “resistir àtendência ao caos e à autodestruição”; e à fortaleza, que é a força do mais fraco,perseverança ou persistência.

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A virtude, lembra Ferreira (s/d., p. 1.478), é a “disposição firme e constante paraa prática do bem; boa qualidade moral; força moral; valor; ato virtuoso; castidade,pureza; modo austero de vida”. Tudo isso certamente é válido e nos lembra a condutamoral que também se encontra intimamente associada à ética. Por outro lado, Pieper(1999) defende um conceito um pouco mais amplo de virtude, que transcende oâmbito comportamental, resgatando um sentido que mais nos interessa aqui, ainda queseja o mais remoto e esquecido: “Qualidade própria para que se produzam certosefeitos, característica, propriedade”. Ou seja, a primeira ordem para quem deseja ser, jáfoi formulada por Píndaro na Antiguidade: “Torna-te aquilo que tu és.”

Ninguém melhor do que Pieper (1999) para elucidar esse conceito: “Virtude,também esta é uma palavra fora de moda. Mas virtude significa o mesmo que ‘estarcerto enquanto homem’, por exemplo: ser justo, forte, administrar na medida certaos próprios impulsos vitais.”

Luiz Jean Lauand elucida esse conceito de moral, a partir da filosofia dobrincar, nos seguintes termos:

A moral é o ser do homem , doutrina sobre o que o homem é e está chamado a ser. Amoral é um processo de auto-realização do homem; um processo levado a cabo livree responsavelmente e que incide sobre o nível mais fundamental, o do ser-homem:“Quando porém se trata da moral, a ação humana é vista como afetando não a umaspecto particular mas à totalidade do ser do homem... ela diz respeito ao que se éenquanto homem” (I-II, 21, 2 ad 2). A moral, assim entendida, pressupõe co-nhecimento sobre a natureza humana (e, em última instância, a Deus, como seuautor). A forma imperativa dos mandamentos (“Farás x...”, “Não farás y...”), naverdade, expressa enunciados sobre a natureza humana: “O homem é um ser tal quesua realização requer x e é incompatível com y.” E numa sentença só à primeira vistasurpreendente: “As virtudes nos aperfeiçoam para que possamos seguir devidamentenossas inclinações naturais.” (LAUAND, 2000, p. 25).

Essa antropologia filosófica, fundada em São Tomás de Aquino, não estámeramente interessada no bem-estar do ser humano, na medida em que se tornahumano, como Fromm e tantos outros o entenderam, mas numa espécie de “LeiNatural”, como a formulava o pensador e crítico literário britânico, C. S. Lewisque, à semelhança de Fromm, mas de uma perspectiva bem diferente da humanistae autônoma, estabelece dois pontos acerca da moralidade do homem:

Primeiro: que os seres humanos, em todo o mundo, sabem que devem comportar-seduma certa maneira, e que não podem livrar-se dessa situação. Segundo: que eles narealidade não se comportam daquela maneira. Conhecem a Lei da Natureza, e ainfringem. Este dois fatos são a base de toda a reflexão quanto a nós mesmos e quantoao universo em que vivemos. (1995, p. 4).

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Em seguida ele estabelece uma diferença entre Lei Natural e instintos, queseriam as teclas de um instrumento, enquanto a primeira seria a pauta, que traz aharmonia. Também não se trata, necessariamente, de alguma imposição social, jáque aprendemos praticamente tudo o que sabemos dos pais e do meio social, comoa matemática e as ciências, sem que elas necessariamente tenham sido “impostas” àforça. O que toda aprendizagem requer é a confiança na autoridade do educador,que não quer dizer autoritarismo e não se contradiz com igualdade e liberdade.

Nesse sentido, ser virtuoso é desenvolver as características próprias do bomcaráter, como destacam Fromm e Durkheim, e os valores, como se frisa no própriotexto dos PCNs de temas transversais. Não se trata absolutamente de adotar umcomportamento que pareça estranho, inédito ou diferente do procedimento nor-mal, mas, pelo contrário, é agir da forma mais coerente e co-natural ao seu próprioser verdadeiro, é desenvolver o máximo de si, é ceder à atração natural exercida pelobem, é buscar a excelência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos autores aqui estudados e de suas visões de mundo, do serhumano e de sua formação, pode-se afirmar que há muito o que dizer e aprendernesse campo, através do resgate dos clássicos mestres da filosofia, e daqueles que“subiram em suas costas”, buscando uma visão mais abrangente. Não se trata demera nostalgia ou conservadorismo, mas de valorização dos tesouros já colhidospela humanidade e que podem ser aplicados ao tempo presente. Nesse sentido,muitos outros autores poderiam ainda ter sido citados.

Limitamo-nos, neste artigo, a apresentar cinco ferramentas clássicas para oensino-aprendizagem. Nesse sentido, o maior mestre é a própria vida, na medidaem que seja desfrutada de forma reta, saudável e bela. E isso certamente se aplica,em primeiro lugar, ao próprio educador.

Essa é precisamente a conclusão a que tantos educadores de diferentes épocaschegaram e que Lauand ressalta no artigo citado: não importa a partir de que tipode narrativa se adquiram os valores: deles nos fala toda a criação divina, para alémdo seu estado decaído. A natureza, portanto, nada mais é do que uma grandenarrativa do Criador. E ela nos fala de forma misteriosa, lúdica e criativa.

Para encerrar essas reflexões acerca da proposta dos temas transversais e doresgate do que a filosofia e a literatura clássica têm a nos dizer a esse respeito,lembramos de autores nacionais, que, embora nem sempre tivessem sistematizadoa sua prática de ensino como Monteiro Lobato e Guimarães Rosa, estão igualmentecarentes de resgate, especialmente no que diz respeito à sua metodologia e

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pedagogia. Autores como Cecília Meireles, Ana Maria Machado e Malba Tahan,procuraram – além de nos fornecer ferramentas ótimas para o ensino da filosofia,particularmente da ética – colocar a sua filosofia de ensino em ação, numa práxistransformadora. E, considerando a particularidade de cada um desses autores e oestatuto epistemológico de todas as áreas educacionais aqui envolvidas, esse diálogointer e transdisciplinar promete ser rico de soluções criativas para as dificuldades doeducador de encontrar e defender o lugar da filosofia nos currículos escolares.

Assim, acreditamos estar fornecendo saídas criativas, ainda que não particu-larmente “inovadoras”, para o tratamento de temas filosóficos essenciais no con-texto atual de reificação, violência e solidão, implícitos nos chamados “temastransversais”, de maneira não apenas interdisciplinar, entendida como a reaçãoquímica que acontece quando professores de diferentes áreas resolvem trocar idéiase planejar suas aulas juntos, gerando resultados totalmente novos e inesperados,mas transdisciplinar, no sentido de abertura para a transcendência, conformeconceituado por Gusdorf, logo de início.

E para realizar isso, é certamente preciso, para além das mencionadas ferramentas,algo ainda mais importante, que é fé, esperança e amor, virtudes teologaisacrescentadas por São Tomás de Aquino, conhecido por ter “batizado” as virtudescardeais de Aristóteles. Mas esses são temas para um novo artigo.

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