filosofia nos olhos experiencias de ensino

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Organização Gerson Luís Trombetta Bruna de Oliveira Bortolini Ana Lucia Kapczynski o lh os experiências de ensino Filosofa nos FILO S OFIA

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Assim como a beleza, a filosofia também pode estar nos olhos de quem vê. Lançamento da Aldeia Sul Editora, o livro “Filosofia nos olhos: experiências de ensino” traz ideias, análises e sugestões para aprimorar o debate em sala de aula através de uma aproximação dos temas filosóficos com o universo cultural do aluno, buscando despertar não apenas interesse e envolvimento, mas também uma permanente mudança de olhar a respeito do mundo ao redor e das diferentes maneiras de interpretá-lo. O título da obra se explica logo na introdução assinada pelo organizador Gerson Luís Trombetta. Para mostrar na prática a possibilidade de carregar a “filosofia nos olhos”, o livro conta com cinco capítulos que falam das possíveis relações entre as questões filosóficas e algumas facetas do universo cultural como o cinema, o humor, a literatura, a televisão e as artes visuais, hoje tão presentes no cotidiano dos jovens estudantes. Os artigos são assinados por acadêmicos participantes do proj

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Page 1: Filosofia nos olhos experiencias de ensino

Organização

Gerson Luís TrombettaBruna de Oliveira Bortolini

Ana Lucia Kapczynski

olhosexperiências de ensino

Filosof a nos

FILOSOFIA

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Aldeia Sul Editora

Passo Fundo, 2013

Filosof a nos olhos: experiências de ensino,Gerson Luís Trombetta, Bruna de Oliveira Bortolini e Ana Lucia Kapczynski (Org.)

Editoração: Ivaldino Tasca e Marina de Campos

Projeto gráf co e diagramação:Marina de Campos

Capa:Marina de Campos a partir de esboço de Douglas Biondo

Consultoria geral:Janaína Tasca Mendes

aldeia sul

Publicado pela Aldeia Sul EditoraPasso Fundo - RS(54) 3601.1041 / 9157.6580 / [email protected]

Impresso pela Gráf ca BerthierAvenida Presidente Vargas, 907 - Cep: 99070-000Vila Rodrigues - Passo Fundo - RS(54) 3313-3255

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Sumário

Apresentação

“Nos olhos”: Método e didática no ensino de flosofa

por Gerson Luís Trombetta

O cinema vai à escola: o flme como recurso para a investigação flosófca

por Angelo Panisson e Bruna de Oliveira Bortolini

A ironia como estratégia didática para o ensino de flosofa

por Cosmo Rafael Gonzatto, Ivan Rodrigo Neuls, Roberto Quevedo e Gerson Luís Trombetta

Filosofando com narrativaspor Alexandre Hahn, Vera Lucia Dalbosco e

Gerson Luís Trombetta

Filosofa, amor e novelaspor Ana Lucia Kapczynski, Eliane Aparecida Berra, Margarete Endres Freitas e Gerson Luís Trombetta

Filosofando a partir de imagensDouglas Biondo e Sandra Mara da Rosa

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Apresentação

O retorno da f losof a como disciplina obrigatória nos currí-culos escolares trouxe como desaf o a necessidade de um novo olhar sobre o seu ensino. Considerando as especif cidades do conheci-mento f losóf co ainda não esclarecidas suf cientemente no contex-to escolar, muitos questionamentos são frequentes entre docentes da educação básica e na universidade, entre eles: o que realmente é preciso ensinar? O que é fundamental aprender? Por que ir à escola estudar se a internet oferece uma inf nidade de informações? Como ensinar num contexto em que a escola não é mais reconhecida como espaço atrativo para a produção do saber? O que ensinar em f losof a: sua história ou grandes temas f losóf cos, especif camente relaciona-dos à ética? Ensinar f losof a pressupõe uma educação moral? Estas são apenas algumas inquietações evidenciadas durante o curso de Licenciatura Plena em Filosof a da Universidade de Passo Fundo e retomadas pelos bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Ini-ciação à Docência (PIBID) de Filosof a. Muitas das fragilidades que encontramos hoje estão relacio-nadas à carência conceitual do que realmente signif ca a f losof a e o fazer f losóf co, assim como a própria concepção de seu ensino e me-todologias. Isso se deve, em parte, ao fato de que muitos professores não são formados em sua área de atuação, dif cultando a elaboração de currículos coerentes. O estudo da história da f losof a, atrelado ao livro didático e com aulas expositivas, é outro fator que provoca aver-

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são dos estudantes em relação à disciplina. Com base nas pesquisas realizadas e nas experiências com estudantes da educação básica cons-tatou-se que a flosofa pressupõe movimento, ação, investigação. Por isso seu ensino deve ser um processo dinâmico que parta do interesse do público discente e permita vivifcar os conceitos, ou seja, trazer os velhos temas flosófcos e ressignifcá-los à luz do contexto atual. A democratização dos meios de comunicação garante acesso a uma infnidade de informações às crianças e adolescentes, tornan-do-os cada vez mais exigentes em relação aos processos de ensino e aprendizagem. Tais mudanças ocorridas nos últimos anos geraram situações de crise na educação contemporânea, pois não se sabe com precisão os rumos que a escola tomará daqui por diante. Contudo, a certeza da necessidade de reinventar as relações com o saber aponta algumas diretrizes. Não há mais espaço para o modelo tradicional de educação, baseado na memorização e repetição de teorias abstratas. O professor e a escola há tempos deixaram de ser concebidos como única fonte de informação e conhecimento. Num mundo em rede, conectado, a maior necessidade dos estudantes não é mais ir à escola e absorver conteúdos de forma passiva, mas aprender a pensar o seu entorno. A escola contemporânea deve ser o lugar de produção do conhecimento, de construção de novos valores e metas. Um espaço de criação e de debate, onde o professor seja orientador do processo educacional e não concebido apenas como um arquivo de dados, com a simples tarefa de repassar informações aos alunos. Compe-te ao docente instigar os estudantes sobre diferentes assuntos para que a inquietação se transforme em aprendizado. E apropriar-se do universo cultural dos educandos resulta numa estratégia efcaz para compreender suas formas de pensar e conceber o mundo, a fm de ajudá-los a organizar seus próprios pensamentos. Em meio a estas problematizações, o grupo do PIBID de-dicou-se a pesquisar diferentes subsídios para aproximar o conheci-mento flosófco do cotidiano estudantil, colocando o diálogo como potencial didático para romper com o modelo tradicional de edu-cação. A ideia de trazer o estudante para o centro das discussões, fazendo com que ele percebesse o fazer flosófco como um momen-to importante para criação e produção de novos saberes, motivou a

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produção deste livro. Os artigos aqui publicados revelam que as aulas podem ser atrativas com a utilização de recursos de fácil acesso para mobilizar o pensamento flosófco, valorizando os conhecimentos prévios do alunado. A novela, o cinema, as imagens, as narrativas e o humor, elementos que dão corpo aos textos, permitem a experiência concreta com as teorias flosófcas, tidas como reduto dos notáveis intelectuais nas academias. Além de sensibilizar para a abordagem de temas flosófcos, estes recursos instigaram os estudantes, permitindo-os vivenciar determinados dilemas ligados à condição humana, de modo a elaborar novos conceitos e formas de pensar que ultrapassam os limites do senso comum. Este trabalho de pesquisa, realizado junto ao PIBID, contri-buiu signifcativamente no processo de formação do curso de Licen-ciatura em Filosofa, possibilitando vivenciar, na prática, realidades que perpassam a educação brasileira. Outro destaque foi o aprendi-zado de pesquisar em grupo e as parcerias com as escolas, resultando em novas amizades e no desejo de continuar buscando caminhos. As intervenções nas escolas mostraram que é possível qualifcar o pro-cesso educacional com iniciativas que parecem simples, como usar as mídias e os bens culturais consumidos diariamente, porque tornam as aulas atraentes e despertam o sentimento de pertença na produção flosófca. As discussões apresentadas nesta obra têm como fnalidade partilhar as experiências desenvolvidas durante as pesquisas, sem a pretensão de propor receitas para o ensino de flosofa, mas ideias que podem ser enriquecidas com a sua própria criatividade, caro leitor.

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¹Doutor em Filosof a, professor do Curso de Filosof a e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo/RS e coordenador do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.

“Nos olhos”: Método e didática no

ensino de f losof a

Gerson Luís Trombetta¹

O que o leitor vai encontrar a seguir é uma breve apresenta-ção das ideias que orientaram as experiências de ensino de f losof a ligadas ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID – Projeto Filosof a/Universidade de Passo Fundo) e desen-volvidas durante os anos de 2012 e 2013. Com a intenção de apre-sentar os raciocínios com clareza, organizamos o artigo em notas que, apesar de comporem um mosaico de referências gerais, podem ser lidas (e criticadas) de forma independente. Outro ponto que de-vemos alertar ao leitor é que não se deixe enganar pelo título “es-cancaradamente” pretensioso. Não se deve esperar aqui um retrato completo ou inédito sobre as exigências metodológicas e didáticas para o desenvolvimento de atividades de ensino de f losof a. Muito mais modesta, a intenção é compilar as ideias que foram “testadas” durante as atividades realizadas e que se mostraram dignas para fo-mentar discussões em círculos mais amplos. O artigo terá seu ob-jetivo realizado se conseguir “temperar” um pouco mais o debate sempre necessário sobre o ensino de f losof a no Brasil.

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1) A tarefa de conduzir uma aula de flosofa, de modo espe-cial nos anos fnais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, é, antes de tudo, uma escolha entre diversas possibilidades de conteúdo. Escolher “conteúdos” para uma aula de flosofa não é algo simples e automático, que pode ser decidido ao sabor de listas prontas, currícu-los amarelados pelo tempo ou roteiros de exames para vagas no ensino superior. Escolher um conteúdo já é escolher um método. Escolher um conteúdo para uma aula de flosofa é escolher também a maneira como vamos iniciar a aula, imaginar seus passos, estabelecer sequên-cias didáticas, imaginar a participação dos alunos e, principalmente, antever o “ponto fnal”, avaliando se a proposta chegou a termo.

2) De uma maneira bastante geral, podemos apontar quatro modos (ou modelos) mais ou menos distintos de se projetar uma aula de flosofa. Elencar separadamente quatro modos é uma opção didática. Em boa parte das aulas tais modos acontecem simultanea-mente, o que é bastante “saudável” para o enriquecimento da prática pedagógica. O primeiro modo poderia ser chamado de histórico, e possui como característica central identifcar a flosofa com a histó-ria da flosofa, privilegiando a sequência de pensadores e “escolas” que vão da Grécia Antiga até a contemporaneidade. O ponto frágil desse modelo é o risco de eliminar a dimensão propriamente flosó-fca da aula e restringir a flosofa a um conjunto de “dados” estan-ques sem conexão com o universo cultural no qual os alunos estão mergulhados. Obviamente que a história da flosofa disponibiliza um saboroso cardápio para qualquer aula de flosofa; além disso, é a fonte inesgotável onde o professor deve buscar seu “combustível” cotidiano. O inadequado é reduzir a história da flosofa a notícias rápidas sobre autores, contextos e obras, sem explorar a riqueza e a atualidade das teses flosófcas oferecidas pela tradição.

3) Um segundo modo poderia ser denominado de social ou sociológico. Objetivando atribuir um caráter eminentemente “transformador” para a flosofa, considera a sala de aula um espaço para desenvolver o “senso crítico”, privilegiando temas extraídos do contexto político e social atual. A aula de flosofa tende a trilhar o caminho do debate livre e da crítica social direta, elegendo preferen-

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cialmente temas como ideologia, alienação, massifcação, indústria cultural, etc. Apesar dos méritos dessa abordagem, principalmente no que diz respeito aos temas propostos, paira nela o perigoso “fan-tasma” da identifcação da flosofa com uma postura política espe-cífca. Esse “fantasma” restringe o discurso, empobrece a argumen-tação, tira de cena conteúdos fundamentais (e universais), o que, paradoxalmente, “fere de morte” o “senso crítico” que legitimava tal maneira de propor a aula de flosofa.

4) Oferecer aos alunos um quadro dos grandes temas da flo-sofa (entendida aqui como uma área do conhecimento específca) é o objetivo do terceiro modo. Vamos chamá-lo aqui de cultura flosó-fca geral, uma vez que nele o professor assume o papel de facilitador no processo de aprimoramento cultural do estudante. A tendência é que a aula seja notadamente expositiva e envolva os grandes temas da tradição flosófca, tais como: teoria do conhecimento, ontologia, es-tética, ética e flosofa política. O pressuposto é que os conteúdos já estão “prontos”, disponíveis e organizados (em manuais), bastando aos alunos aplicar esforço para entendê-los. É indiscutível a impor-tância dessa visão geral da cultura flosófca e indiscutível o quanto tem se tornado irresistível, principalmente nos contextos onde os currículos do ensino médio privilegiam a preparação para o ensino superior. As teorias mais infuentes da ética, os assuntos hegemôni-cos da teoria do conhecimento ocidental (racionalismo, empirismo, ceticismo, idealismo transcendental e pragmatismo), etc., ganham posição de destaque nas “listas de conteúdo” dos currículos escolares e dos vestibulares de algumas instituições. Apesar de todos os méri-tos e da óbvia necessidade de aulas serem organizadas pensando nele, o que preocupa é sua tendência de não deixar que a sala de aula se transforme em um espaço para “experiências flosófcas”.

5) O quarto modelo será denominado aqui de refexivo e foi o que serviu de inspiração para as atividades de ensino realizadas no Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID – Projeto Filosofa/Universidade de Passo Fundo) em 2012 e 2013. A palavra “refexão” é de uso comum no debate flosófco e costuma ser defnida de diferentes formas. No método adotado procurou-se

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dar um sentido preciso para tal termo: uma operação da consciên-cia que visa construir uma referência (conceitual) que ainda não se possui no início do processo. Tal processo produtivo (e criativo) é o que permite avançar no esclarecimento de um problema flosófco e se constitui no centro da “experiência flosófca” propriamente dita. Não faz parte da natureza desse breve artigo reconstruir as teorias flosófcas que amparam essa ideia de “refexão”. Basta apenas regis-trar que é na “Crítica da Faculdade do Juízo” de Kant que buscamos inspiração, de modo especial na estrutura do ajuizamento de gosto sobre o belo onde o autor do juízo precisa criar a própria referência para julgar. No exercício do gosto (ajuizamento) isso se mostra ne-cessário, pois a beleza não é algo empiricamente constatável, caracte-rística que permitiria resolver a questão no campo do conhecimento. Se a beleza fosse uma característica objetiva poderíamos vê-la como um dado, como algo que a lente de um microscópio acusaria. Entre-tanto, não é assim que as coisas se passam. O belo é algo que brota de um “trabalho” de julgar, de um jogo cujo resultado, como em todo jogo, é imprevisível. É como um juiz de direito que precisa delibe-rar sobre um caso complexo ainda não claramente previsto em lei e sobre o qual não existe jurisprudência. Para Kant essa é a “árdua” e ao mesmo tempo prazerosa experiência vivida pela consciência no julgamento do belo. Por certo precisamos clarear mais esse modelo geral e detalhar como a refexão ou processo refexivo foi adotado como método para as aulas de flosofa².

6) Método e didática designam aspectos diferentes da prá-tica pedagógica. Em termos simples, método (conforme a perspec-tiva que adotamos) é a consciência clara do “ponto de partida” e do “ponto de chegada”. Ou seja, no ensino de flosofa, possuir um método signifca ter clareza sobre como o processo vai ter início (se vai ser um texto da tradição, um tema social atual, uma inquietação existencial, etc.) e qual é o resultado que se espera ao fnal (se o aluno “absorveu” determinado conteúdo, se houve posicionamento

²Mais elementos sobre a pertinência da aplicação das teses kantianas sobre o ajui-zamento do gosto para um método de ensino de flosofa podem ser encontra-dos no artigo “O papel da operação refexiva no ensino e no exercício da flosofa: contribuições para uma idéia de flosofa no ensino médio”, referenciado ao fnal.

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e defesa de um argumento, se o aluno vivenciou o problema flosó-fco, etc.). Didática, por sua vez (e ainda em termos exageradamente simples), diz respeito às “táticas” e recursos a serem utilizados para realizar as expectativas oriundas do método. Para entender melhor a relação entre método e didática pensemos em uma viagem en-tre Porto Alegre e Buenos Aires. O método defniria nosso ponto de partida (Porto Alegre) e nosso ponto de chegada (Buenos Ai-res). Registremos que a escolha do ponto de partida da viagem já é também, numa analogia com o ensino de flosofa, a escolha de um determinado conteúdo. Se o ponto de partida é um texto clássico, uma decisão quanto ao conteúdo já foi tomada. A didática, por sua vez, é a maneira como a viagem será realizada. Podemos realizar o deslocamento de avião, trem, carro, ônibus, balão, navio, helicóp-tero, bicicleta ou a pé. Dependendo da ousadia, de quanto tempo disponibilizamos para a viagem e de quais (e quantas) “emoções” nos dispomos a viver, podemos trilhar caminhos alternativos e usar táti-cas mais arriscadas. A didática é um terreno fértil para a criatividade, pois sua tarefa fundamental é manter a “mobilização” da vontade para que os “viajantes” cheguem ao destino. A didática não tem um fm em si. Por mais atraentes que sejam as aventuras prometidas pela didática adotada, a viagem só ganha sentido quando chegarmos a Buenos Aires. Ou seja, é o método que vai determinar o sucesso da didática. Voltando ao território do ensino de flosofa, imaginemos uma aula repleta de recursos criativos, incluindo maravilhas da tec-nologia, redes sem fo, aplicativos, telas interativas, som, imagem e estímulos de todas as espécies. De nada adiantaria essa “riqueza” toda se o método não está absolutamente claro. Por outro lado, sem uma didática capaz de manter a consciência mobilizada, o método fca seriamente comprometido e a aula corre o risco de se perder na frieza de rituais burocráticos.

7) No método refexivo o ponto de partida é o universo cul-tural do aluno. Os conceitos, as ideias, as argumentações flosófcas estão profundamente conectadas com a vida, com as referências cul-turais em que estamos mergulhados. Não é preciso visitar tratados sofsticados para encontrar uma questão flosófca; não é preciso sair da “vida” para experimentar uma inquietação de natureza flosófca.

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Isso vale para a flosofa como vale para a matemática, para a física, para a química, etc. Não precisamos de um laboratório sofsticadís-simo para “experimentar” um problema de física. Uma boa “olhada ao redor” já nos dá informações de sobra para compô-lo. Modelar uma pergunta flosófca depende da maneira como “olhamos” para o “universo cultural”; depende do que carregamos “nos olhos”; de-pende dos ajustes de foco, das alterações de ângulo e das relações que somos capazes de encontrar. O primeiro desafo, portanto, é entender os elementos gerais do universo cultural do aluno. É uma tarefa complexa que envolve prestar atenção desde as especifcidades da faixa etária até o tipo de bem cultural que os alunos consomem. Duas coisas precisam ser destacadas aqui: em primeiro lugar o “uni-verso cultural” é dinâmico, o que exige atenção constante de parte do professor. Em segundo lugar, o “universo cultural” dos alunos tende a ser diferente daquele compartilhado pelo professor. Isso re-dobra a responsabilidade do professor em manter as “antenas” muito ligadas e, principalmente, cultivar um espírito democrático que seja capaz de compreender muito mais do que julgar.

8) A complexidade e a riqueza do universo cultural dos alu-nos deve se constituir na fonte dos problemas, das inquietações flo-sófcas a serem exploradas em sala de aula. Um problema flosófco é muito mais “mobilizador” quando já, de alguma forma, foi “experi-mentado” pelo aluno. Ao professor cabe, neste caso, conduzir o pro-cesso de transformação das “experiências vividas ou pensadas” em um problema flosófco. Vejamos um exemplo: um dos temas predi-letos para o debate com alunos adolescentes é a “liberdade”. O tema é, obviamente, abstrato e em torno dele orbitam concepções vagas e contraditórias. Uma das defnições mais comuns é que “liberdade” tem a ver com “fazer o que se deseja”. Essa defnição tem uma carga existencial muito forte e está ligada diretamente às experiências vivi-das pelos adolescentes nas relações com a família, com a escola e com a sociedade em geral. Descartá-la, simplesmente, por estar assentada em pressupostos contraditórios seria um gesto antipedagógico. Seria equivalente a “jogar fora o bebê com a água do banho”, desperdiçan-do a oportunidade de transformar a experiência vivida e seus compo-nentes existenciais em motivação para o processo de esclarecimento

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conceitual. A tarefa do professor passa a ser aqui, ao mesmo tempo, delicada e incisiva. É preciso receber as concepções dos alunos e, ao mesmo tempo, “desconstruí-las”, explicitando suas incongruências internas. O mecanismo para a realização da tarefa é a pergunta flo-sófca. No caso em questão, a pergunta poderia ser: “podemos ser li-vres fazendo o que não queremos?”. Pensemos na situação de alguém que deixa de fazer uma coisa que muito quer – passar um dia na praia – e decide investir esse tempo para estudar. Sua opção foi livre?

9) O universo cultural do aluno é também um terreno fértil para modelar estratégias didáticas. Poderosa e imprescindível aliada no processo de problematização, uma boa estratégia didática depen-de muito da criatividade e da ousadia do professor. Bens culturais como cinema, música, literatura, seriados, desenhos animados, po-esias, obras visuais, contos, etc., podem ser utilizados para abrir no-vos pontos de vista, novas relações e novas perguntas sobre o tema enfocado. É importante que a estratégia didática não apareça como um “agente estranho” ou como algo de “outro mundo”, completa-mente afastada do universo cultural do aluno. Claro que deve haver um compromisso – mesmo nas aulas de flosofa – de se apresentar ao aluno toda a riqueza possível oferecida pela arte e pelas novas ferramentas de comunicação. Entretanto, considerando o papel da didática, não se pode simplesmente desprezar os bens culturais con-sumidos pelos alunos; a familiaridade faz com que funcionem muito bem como “fatores de mobilização”. Uma das experiências realizadas com o método refexivo no PIBID (Filosofa/UPF) teve como centro da estratégia um trecho de novela (televisiva). A intenção era mobili-zar as consciências para abordar flosofcamente o “amor”. O fato de a novela ser um produto altamente consumido foi fundamental para a experiência ser bem sucedida³, contrariando expectativas “pessi-mistas” que consideravam tal bem cultural como mera narrativa ma-niqueísta eivada de interesses comerciais.

³Uma análise mais detalhada sobre a hipótese da novela televisiva servir como re-curso didático para aulas de flosofa encontra-se no artigo “Filosofa, amor e nove-las”, que compõe o presente livro.

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10) A capacidade de “ver” problemas flosófcos, de manter a flosofa “nos olhos”, exige que o professor se “nutra” incessante-mente no manancial oferecido pela tradição flosófca. Sem visitação constante a esse fundamental repertório de problemas e respostas, a capacidade de problematizar vai minguando, o momento importan-tíssimo de se compor perguntas flosófcas em uma aula é abreviado e a tentação de ser substituído por concepções sustentadas pelo “argu-mento da autoridade” fca difícil de vencer. Dito de outra maneira: “ver” e elaborar perguntas flosófcas sobre a linguagem, por exem-plo, é uma prática quase automática para aquele que visita debates centrais da flosofa da linguagem, lendo autores como Wittgenstein, Russel ou Austin. Além disso, os textos flosófcos são reveladores de possibilidades metodológicas. O conteúdo do texto é um “dado” que expõe também uma dinâmica específca de pensar e de produzir uma conclusão; a “forma” dessa dinâmica pode ser “pensada” pelo aprendiz. “Filosofar”, portanto, é algo que se aprende e se ensina junto com o conteúdo flosófco.

11) Os textos flosófcos, mesmo os mais complexos, podem (e devem) aparecer no contexto da aula. É importante que os alunos visualizem “formas” diferentes de responder as perguntas que eles mesmos ajudaram a elaborar. A tradição deve ser interpretada como uma aliada, uma parceira no processo, o que dá ao texto um sabor muito mais atraente. Considerando isso, é recomendável que o texto “se encaixe” na aula quando as perguntas flosófcas estiverem bem claras. O “volume” da voz do flósofo (recolhida no texto) não pode “abafar” a consciência participativa do aluno, mas deve impulsioná-la a um patamar de pensamento mais complexo, onde a argumentação exige mais consistência.

12) O último momento do método refexivo é a sistematiza-ção. A sistematização escrita4 cumpre o papel de “teste de qualidade” do processo desenvolvido, registrando desde a problematização ini-cial, as hipóteses construídas, até as questões que fcaram abertas. A inviabilidade de testar empiricamente, em “condições laboratoriais”,

4A elaboração de pequenos ensaios nos parece a maneira mais adequada de se es-truturar a sistematização.

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os conteúdos flosófcos produzidos durante a aula, não signifca um descomprometimento com a verdade ou uma autorização ao “debate pelo debate”. Pelo contrário, é exatamente por “respeito à verdade” que a sistematização se justifca. O rigor argumentativo e a lógica própria da escrita, balizas da sistematização, conferem a densidade que o conteúdo flosófco produzido em aula precisa para “impor-se” como verdadeiro. O momento da sistematização é o momento da conquista daquilo que a consciência ainda não tinha disponível no início, onde estava mergulhada no “vivido não problematizado”. Este é exatamente o ponto de chegada do método refexivo. Siste-matizar, porém, não signifca “fechar a questão”; signifca, sim, um convite para futuras investigações, um convite para mais leituras e debates, um convite para ver as questões do cotidiano com “outros olhos”, enfm, um convite para as próximas aulas de flosofa.

Referências

KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valério Rohden e Antônio Marques. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

TROMBETTA, Gerson Luís. O papel da operação refexiva no ensino e no exercício da flosofa: contribuições para uma ideia de flosofa no ensino médio. In: FÁVERO, Altair; RAUBER, Jaime J.; KOHAN, Walter O. Um olhar sobre o ensino de flosofa. Ijuí: Unijuí, 2002. p. 235- 247.

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O cinema vai à escola:O f lme como recurso para

a investigação f losóf ca

Angelo Panisson¹Bruna de Oliveira Bortolini²

Não importa uma formação voltada para a erudição, que acumula e empilha dados, mas uma formação que tenha como alvo a cultura, e que nos facilite o acesso ao que a humanidade construiu de melhor, ao mesmo tempo que nos impulsione a continuar criando, produzin-do cultura (MOSÉ, 2011, p. 167).

O universo escolar encontra-se inserido e constituído por ambientes e pessoas cada vez mais conectadas às novas tecnologias, aos novos meios de comunicação e à produção de conhecimento. O saber, há um bom tempo, deixou de ser produzido apenas de modo tradicional, em centros institucionalizados, por meio de memoriza-ção e exercícios repetitivos. Mais do que nunca vivemos num mundo em que a democratização do conhecimento e da informação é laten-te, acontece em tempo real através de diferentes suportes, acordos e trocas que, inevitavelmente, conduzem à necessidade de novas ma-neiras de se fazer e pensar a educação.

¹Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.²Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.

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Educar e aprender hoje devem ser entendidos como sinô-nimos de criar, produzir novos conceitos, valores e metas. Não há mais espaço para a reprodução de conhecimentos, não há mais cami-nhos prontos a serem seguidos. Mas de que forma é possível pensar a educação para além do modo tradicional? Como estimular o pen-samento a respeito das experiências cotidianas? Como incentivar os estudantes a lerem o mundo a partir de diferentes perspectivas? Uma das possibilidades para que a escola torne-se um am-biente vivo de construção de saberes mais próximo de questões que movem a vida das pessoas, que estimule os indivíduos a interpreta-rem o mundo e a agirem de forma transformadora na sociedade, é o uso dos bens culturais em sala de aula. Os bens culturais devem ser entendidos aqui não somente como um conjunto de elementos que atribuem identidade à cultura de um povo, de uma região ou local. Mas tudo aquilo que, independentemente do modo e do lugar onde é produzido, serve para consumo e usufruto de conhecimentos a partir de distintas formas de expressão. O cinema, por exemplo, um bem cultural de grande abran-gência dentro da sociedade, ao se tornar um aliado no processo de ensino e aprendizagem, revela-se como ponto de partida para a pre-paração de indivíduos mais aptos a compreenderem e se relaciona-rem com as novas formas de mensagens que lhes são disponibili-zadas, percebendo assim a sétima arte não somente como meio de entretenimento, mas como fonte inspiradora de debates. Para tanto, o objetivo deste estudo é analisar e debater em que sentido o cinema contribui para a aprendizagem dos estudantes, em específco nas aulas de flosofa. Pois parte do princípio de que o cinema, assim como as várias formas de expressão artística existentes, é espaço de elaboração de afetos e interfere diretamente no estado mental dos indivíduos, estimulando tanto sua sensibilidade quanto o domínio teórico da razão. O cinema apresenta em sua estrutura ideias que não são somente expressas ou construídas por meio da linguagem verbal. Ele trabalha com uma série de elementos e re-ferências que o possibilitam ser palco para abordagem de grandes questões e dilemas da vida humana, favorecendo, no âmbito educa-cional, uma melhor apropriação de conteúdos flosófcos por parte dos estudantes. Contudo é preciso que tal prática, ao ser realizada,

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esteja acompanhada de um bom esclarecimento metodológico que possibilite tanto ao professor quanto aos educandos compreender o trabalho a ser desenvolvido, tendo em vista o ponto de partida e o ponto de chegada. Para maior entendimento deste estudo, o trabalho está orga-nizado em duas partes. A primeira parte destaca a abordagem teórica das possíveis relações entre os temas estudados, cinema e flosofa, com base na ideia do cinema como criador e problematizador de conceitos flosófcos. Para tanto, serão utilizados os conceitos de Lo-gopatia e Filmosofa presentes nas obras “O Cinema Pensa” (2006) de Julio Cabrera, “Filmosophy” (2006) de Daniel Frampton e, re-centemente, uma interpretação de tais estudos no texto “Filosofl-mes e Filmosofas” (2012), do Prof. Dr. Gerson Luís Trombetta. Na segunda parte, o foco será em torno da análise e discus-são de alguns flmes que possam favorecer o diálogo entre flosofa e cinema dentro de sala de aula, na tentativa de esclarecer e exemplif-car os levantamentos téoricos abordados no primeiro capítulo. Tam-bém trata de alguns aspectos da dimensão metodológica do uso do cinema na escola, buscando enfatizar seu potencial educativo, com base no método da Comunidade de Investigação do flósofo Matthew Lipman.

1. A flosofa em cena: Considerações iniciais a respeito do uso do cinema em sala de aula

Há algum tempo o cinema apresenta-se como um dos diver-sos recursos artísticos que podem ser utilizados para experientação flosófca, isto porque a flosofa não precisa, necessariamente, es-tar baseada e ser discutida apenas logicamente para ser entendida. Ela pode ser pensada a partir de compreensões racionais e afetivas ao mesmo tempo, desde que estas sejam capazes de impactar signi-fcativamente seus espectadores. Porém, não de forma desmedida, em que exista uma explosão de emoções das quais não seja possível retirar nenhum aprendizado, a não ser a experiência traumática da situação. Impactar de maneira que os sujeitos possam aprender cog-nitivamente sobre determinada questão ou sentimento humano que pelo flme é retratado, entendendo que tal sentimento envolvido não 18

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diz respeito apenas ao personagem que o vivencia, mas que pode ser experimentado por todos os indivíduos. Como declara Cabrera:

Por meio dessa apresentação sensível e impactante, são alcança-das certas realidades que podem ser defendidas com pretensões de verdade universal, sem se tratar, portanto, de meras “impressões” psicológicas, mas de experiências fundamentais ligadas à condição humana, isto é, relacionadas a toda a humanidade e que possuem, portanto, um sentido cognitivo (2006, p. 20).

Tais experiências fundamentais ligadas à condição humana mostram-se como versões de mundo, capazes de nos fazer enxer-gar determinados problemas e colocá-los em debate. O cinema atua como um todo simbólico estruturado gerador de versões redescriti-vas, que permitem ao homem estabelecer relações mais esclarecidas com o meio que o cerca e com suas próprias inquietações. Questões flosófcas estão presentes em quase tudo o que po-demos experimentar em nossas vidas, contudo, reconhecê-las não é um trabalho fácil, pois exige preparo. Você seria capaz de encontrar problemas flosófcos assistindo aos flmes da Disney, por exemplo? Será que a animação de Peter Pan poderia ser pensada de forma dife-rente da habitual, quer dizer, para além das concepções estéticas ou como um meio de diversão? Suponhamos que sim, mas como? A atenção e o cuidado que se requer na hora de confrontar flosofcamente o flme é única, por mais simples que seja o objeto de observação, visto que o cinema costuma se utilizar de outras for-mas de expressão artística como é o caso da fotografa, da música e da literatura. O olhar destinado a este suporte artístico necessita de preparo teórico, sensibilidade e aprimoramento da percepção. Trabalhar com o cinema nas aulas de flosofa pressupõe, en-tre outras coisas, apreender tais habilidades, ou seja, ser capaz de reconhecer no flme elementos que vão além do entendimento dis-ponível pelo senso comum. Porém, para que tal atividade se reali-ze com efciência, torna-se necessário que o professor esteja apto a orientar os alunos no processo de experimentação da obra, tendo como princípio fundamental a clareza do trabalho que deseja rea-lizar. Questões-guias podem ser elaboradas pelo próprio professor visando facilitar o processo como, por exemplo: o que se pretende

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alcançar juntamente com a turma, quando há a proposta de experi-mentação de um determinado flme? Quais conceitos podem ser tra-balhados? O flme é próprio para exemplifcá-los? A obra é adequada à idade e aos interesses dos estudantes? O que deve ser observado? É necessário assistir ao flme por completo para compreensão das ideias a serem discutidas em aula? Entre outras. Dialogar flosofcamente com o flme requer que ele seja re-conhecido não somente pela história que narra, mas também por sua capacidade de trabalhar conceitos através de imagens em movimen-to. Conceitos geralmente são construídos dentro de um sistema ver-bal lógico, mas isso não os impede de serem articulados a outras for-mas de expressão linguística, como é o caso das imagens. Sabemos, por exemplo, que o conceito de Verdade presente no pensamento do flósofo René Descartes parte de um raciocínio puramente lógi-co e analítico, descrito em sua obra “Discurso do Método” (1637). Ao mesmo tempo o flme “Matrix” (1999), dos irmãos Wachowski, aborda tal conceito sem precisar utilizar-se de uma linguagem verbal extremamente metódica e complexa. Ele mostra o conceito através de imagens em movimento (com o apoio de todos os outros recursos envolvidos em sua criação), provocando no espectador inquietações semelhantes àquelas que ele experimentaria lendo a obra do flósofo. Contudo, no segundo caso, disporia-se de um recurso inexistente ao primeiro, o elemento pático (Páthos)³ em comunhão com a razão. Este elemento sensível (Páthos), segundo Cabrera (2006), permitiria ao cinema explorar questões que a linguagem verbal e flosófca, por sua rigidez formal, teria difculdades de abordar, atraindo o especta-dor refexivamente. Filmes que trabalham com questões flosófcas bem elabo-radas provavelmente não sejam compreendidos de imediato, o que também ocorre quando se inicia a leitura de textos flosófcos. Ques-tões flosófcas geralmente não se revelam nas primeiras perguntas. Por este motivo, a intervenção do professor na “leitura” do flme é fundamental para a compreensão da obra por parte dos estudantes.

³Páthos, palavra grega que remete a toda experiência humana ligada à arte, capaz de evocar sentimentos como paixão, compaixão, arrebatamento ou simpatia do espectador em relação à obra.

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Ao utilizar o flme para ilustrar ou investigar uma questão determinada, não se pode ser iludido com a ideia de que apenas um fragmento seu, abordado isoladamente, possa expressar de for-ma plena a proposta conceitual. Para que a compreensão de fato exista, os conceitos devem ser trabalhados a partir de uma sequência lógica ou de uma prévia narrativa e orientação, por parte do pro-fessor, sobre o contexto em que se desenvolve a trama e o que deve ser observado pelos estudantes a respeito. Justifcar as razões de tal experimento e a importância de sua problematização são formas de esclarecer melhor a proposta e contornar possíveis resistências, por parte dos educandos, em relação à atividade. Para Cabrera (2006), ao trabalhar conceitos expostos pelo flme deve-se submeter o espec-tador a um determinado tempo cinematográfco para que ele com-preenda as ideias que ali são desenvolvidas. É fundamental, por parte de quem o assiste, saber de que forma o conceito foi construído, como certo personagem foi parar em determinada situação, quais os motivos que o levaram a comportar-se de maneira específca e assim por diante. Dependendo da complexidade dos conteúdos e da lin-guagem empregada, é importante que o flme possa também ser exi-bido mais de uma vez, visando facilitar o entendimento de alguns as-pectos que, na primeira exibição, possam ter passado despercebidos.

1.2 O cinema como criador e problematizador de conceitos flosófcos

O cinema, além de proporcionar aos sujeitos, por vezes dis-tantes da Filosofa em função da resistência ao texto escrito, um con-tato mais próximo a ela e de ilustrar ideias flosófcas, pode ser visto também como criador de grandes questões flosófcas. Alguns flóso-fos contemporâneos e seguidores das ideias de Deleuze a respeito do cinema-pensamento (1985), como Daniel Frampton (2006), acre-ditam no flme como o próprio fazer flosófco. Mas de que maneira isto seria possível? Como o cinema poderia contribuir para a flosofa sem limitar-se apenas a ilustrar conceitos? Segundo Frampton, o ci-nema é em si pensamento e sob esta perspectiva seria capaz de não apenas estimular refexão, mas flosofar cinematicamente. Um flme flosofaria com imagens, assim como o flósofo faz flosofa com pa-

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lavras. Esta questão é acompanhada de várias outras questões pro-blematizadoras como, por exemplo, se é possível a flosofa ir além da liguagem verbal e como os argumentos seriam expostos no caso de uma Filosofa Cinemática. Ou ainda, de que forma saber quais flmes podem ser considerados propriamente cinema-flosofa? Poderia-se responder a estas questões, não de forma tão complexa como propõe Frampton, mas talvez pensando no cinema como impulsionador de indícios ou sintomas de ideias flosófcas. Como afrma Trombetta, “marcas flosófcas apresentadas pelos fl-mes, como algo a espera de um discurso complementar” (2012, p. 169). Ao encararmos a questão desta forma verifcaríamos que, jus-tamente pelo fato de o flme necessitar de um discurso complemen-tar, é que fazer flosofa com cinema não seria algo desinteressado e limitado à compreensão da história narrada. A atenção dedicada ao que é exibido na tela teria de ser redobrada, exigindo deslocamentos constantes da percepção em busca de elementos que possam servir à elaboração flosófca. Nesse sentido, compete ao professor, como principal orientador das discussões realizadas em sala de aula, criar condições propícias para que o educando consiga estabelecer as co-nexões necessárias à formação do discurso. Ao fomentar a discussão de temas ligados à flosofa por meio de um sistema simbólico que inclui a participação ativa do especta-dor, o cinema revela o seu potencial didático. Na medida em que confere este espaço de liberdade aos sujeitos, permitindo elaborações posteriores em relação aos conteúdos que aborda, torna possível o flosofar em sala de aula. O estudante deixa sua posição passiva de absorção de conteúdos e passa a elaborar, inventar novos conceitos, sendo capaz de relacioná-los. Ao ser colocado no centro da discus-são e convidado a produzir o seu próprio conhecimento no diálogo com o flme, ele consegue alcançar a autopercepção em seu proces-so de aprendizagem tornando-se, consequentemente, mais crítico, criativo e curioso em relação aos resultados alcançados. Encarar o recurso cinematográfco como potência criativa para o pensamen-to investigativo é provocar uma ruptura nas formas tradicionais de ensino e promover a autonomia intelectual dos educandos. Assim, a discussão gerada em torno do flme não se limitaria apenas a uma tradução do que foi apresentado, pelo contrário, ousaria na criação 22

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conjunta de novos saberes, a partir das questões deixadas pela obra. Experimentar o cinema nas aulas de flosofa, portanto, não deve limitar-se somente à instrumentalização do flme em benefício de um determinado conceito, nem fazer de seus conteúdos uma li-ção de moral. Deve-se reconhecer que ele é capaz de expor algumas ideias de forma própria, utilizando-se da sensibilidade dos recursos estéticos presentes em sua estrutra, para propor questões que quan-do bem trabalhadas podem contribuir signifcativamente para novos entendimentos. Pois, ao estar, na maior parte das vezes, comprome-tido com grandes dilemas da vida humana, como liberdade, amor, ódio, morte, encontra-se intimamente relacionado a construções f-losófcas, que por ele são expostas de forma dinâmica e acessível. Nesta perspectiva, efetivar o diálogo entre cinema e flosofa dentro do ambiente escolar – através de suportes cinematográfcos de interesse e compatibilidade ao nível de desenvolvimento e com-preensão dos educandos – contribui tanto ao crescimento intelectual e pessoal dos estudantes quanto para a formação de indivíduos mais sensíveis, refexivos e perceptivos aos problemas da vida em seu con-junto com o todo.

2. A comunidade de investigação como espaço para criação de novos saberes

Para que o cinema seja reconhecido como um recurso signi-fcativo ao processo educacional, a escolha do flme ou dos trechos utilizados, bem como sua contextualização e problematização, não deve possuir teor gratuito ou leviano. Trabalhar a possibilidade do cinema como criador e pro-blematizador de questões flosófcas em sala de aula requer, entre outras coisas, evitar entrincheiramentos em pré-conceitos, dogmas ou situações particulares inapropriadas à discussão em grupo que, por vezes, conduzem a abordagens retóricas. Quer dizer, posicio-namentos ou posturas que impossibilitam a abstração de conceitos, a criação de hipóteses ou a imaginação de situações-problema. Por este motivo, toda emoção ou situação apresentada pela película deve ser decantada visando evitar que o diálogo permaneça o tempo todo em torno de concepções demasiadamente pessoais. Mas de que ma-

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neira proceder para que o ambiente necessário à criação e o debate de ideias exista, evitando cair em tais entrincheiramentos? Como proporcionar um ambiente democrático, de posturas imparciais e ponderadas capazes de envolverem-se numa investigação sem pren-derem-se excessivamente a pormenores? Uma estratégia para tentar solucionar estas questões seria en-volver os estudantes em uma comunidade de investigação4. Tal ideia pressupõe que exista a possibilidade dos sujeitos envolvidos exporem suas percepções de mundo particulares, porém de forma que as indi-vidualidades de cada um, quando unidas, possam produzir um pen-samento coletivo sobre questões humanas universais. Por exemplo, se em um debate um estudante levanta uma questão sobre a temática do “ódio”, partindo de suas experiências próprias, é importante que a investigação não permaneça somente em torno dos motivos que o levaram a experimentar tal sentimento. A problematização deve ser expandida para um nível além do reino dos sentimentos, das opiniões ou dos pré-conceitos, quer dizer, um nível em que o individual pos-sa ser colocado em favor de um social. Nesta perspectiva, possíveis abordagens limitadoras do tema como a moral da história contada pelo aluno, ou uma explicação precária sobre o que é o “ódio”, dão lugar a perguntas como “o que nos faz odiar?”, “a origem do ódio sou eu ou o objeto/ser odiado?”, “apenas coisas ruins nos causam ódio?” “pode existir amor sem existir ódio?”, “o ódio possui alguma relação com o medo?” e ainda “é possível não sentirmos ódio?”. Mostrando que o tema de investigação não parte de uma verdade absoluta que deve ser apreendida por todos, mas que pode ser uma fonte de discu-são que, apesar de compartilhar concepções, sentimentos e crenças, não elimina o caráter problemático das mesmas.

4Comunidade de Investigação é um método criado pelo flósofo americano Matthew Lipman (1922 – 2010) que consiste em entender a educação como um espaço de in-vestigação ou “exploração autocorretiva de questões consideradas, ao mesmo tempo, importantes e problemáticas” (1990, p. 37). O trabalho desenvolvido não se baseia em verdades absolutas, mas prima pelo enfrentamento de problemas, onde a conclusão não é o mais importante, mas as descobertas feitas ao longo do processo de investigação. O método fundamenta-se na possibilidade do diálogo investigativo, ou seja, ato contínuo de pensar sobre o seu próprio pensamento, ao mesmo tempo em que se pensa sobre o pensamento do outro. Fator que exige um grande número de habilidades cognitivas, metodologias rigorosas, acordos e regras.

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Nortear-se pela possibilidade de universalização de um con-ceito, sem usar a película como mero instrumento ilustrativo, exige do espectador buscar o mais profundo problema, do qual todos os demais derivam, entendendo-o também como fonte de flosofa. É o reconhecimento do problema universal que abrirá espaço para a participação dos estudantes de forma mais crítica e espontânea. Tomando novamente “Matrix” como exemplo e o aplicando a esta discussão, observa-se que, em sua narrativa, diversas temáticas capazes de criar um sentimento de identidade nos indivíduos são trabalhadas. Há a questão da possibilidade de vida após a morte e também o romance entre os personagens Neo e Trinity. Em ambas as circunstâncias, corremos o risco de utilizarmos a obra como mero aparato ilustrador de uma ideia. Porém, quando se trata de uma ex-perimentação flosófca, algumas questões são mais pungentes do que outras. Ao analisar o conjunto de todas as situações construídas em torno do personagem Neo, nota-se que um dos problemas flo-sófcos de maior profundidade abordados na obra é o do Destino. Contudo, cabe ressaltar aqui que os problemas a serem in-vestigados não podem surgir do nada. Mesmo que na narrativa eles tenham uma razão de ser, a proposta de trabalhá-los em aula deve partir de uma prévia crença que se apresenta como problema para o grupo. Quer dizer, para que exista realmente a construção de novos saberes e para que o flme venha a somar neste processo, é importan-te que ele possua alguma conexão com as aulas que precederam a sua exibição ou pelo menos com as aulas que se originarão após a sua exi-bição. Ele deve apresentar-se como uma constante nas discussões em grupo, uma referência que pode ser consultada em outras ocasiões. Por exemplo, o flme “A Experiência” (2001) de Oliver Hirs-chbiegel, aborda questões que podem ser trabalhadas em uma série de aulas sequenciais. Temas como insubordinação e abuso de autori-dade, presentes em sua narrativa, poderiam desencadear um proces-so de investigação a respeito do conceito de Política. Não faltariam referências históricas para enriquecer tal debate e gerar abordagens subsequentes, pois muitos são os casos a respeito de como sociedades oprimidas tendem a se fortalecer enquanto grupo e de que forma o poder nas mãos de pessoas despreparadas pode ser nocivo para as organizações sociais. Deste modo, do ponto de vista da flosofa, o

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cinema constitui-se como um recurso importante ao conhecimento dos alunos e para seu esclarecimento de mundo, na medida em que é capaz de estabelecer conexões com o exterior, oferecendo indicativos para problematização.

2.1 Desconstruir para construir: O flme em camadas e sua importância para a elaboração flosófca

A composição fílmica é algo que vai além de fotografas se-quenciais. Em um mesmo processo de criação cinematográfca dia-logam entre si, luz, som, imagem, texto, espaço e tempo. Camadas que dão ao flme formato onírico e ao mesmo tempo real, propor-cionando aos indivíduos experimentarem um mundo fctício por um certo período de tempo. Quando homogeneizadas, tais camadas levam o espectador a “participar” deste mundo repleto de sensações, mergulhando nele o mais fundo possível, despreocupado com sua integridade física por estar confortável na posição de espectador. Se o corpo do espectador está a salvo, não se pode dizer o mesmo de sua mente. É exclusivamente ela que é bombardeada e desnorteada com as informações tão distantes do “mundo real particular”. Esta predisposição do espectador em relação aos recursos utilizados pelo cinema para capturar a mente em seus labirintos é fundamental para que uma nova experiência aconteça. Entregar-se a tal experimentação, permitindo-se transportar para uma outra di-mensão, desvinculada dos afazeres e preocupações cotidianas, contri-bui para uma melhor assimilação e percepção das marcas flosófcas deixadas pelo flme. Abrir-se a esta possibilidade facilita o processo de toda e qualquer investigação e o recurso cinematográfco passa a ser entendido como fonte de conhecimento. Estar atento às peculiaridades do flme oferece maior clareza na hora de identifcar seu núcleo flosófco. O que a película expressa de universal não é dito somente por meio da fala dos personagens ou de suas ações, mas pode ser o conjunto de todas as suas camadas. Um quebra-cabeça que só faz sentido quando montado. Ao levá-lo para a sala de aula é preciso respeitá-lo como referência para o aprendizado. Do mesmo modo que as obras clássicas, o flme só será signifcativo 26

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se o seu interlocutor estiver disposto a dialogar com suas potenciali-dades. No flme “Antes de Partir” (2008), de Rob Reiner, é possível perceber a harmonia entre as camadas que o compõem. A trilha so-nora, a fotografa, a expressão no rosto dos personagens, o conjunto de falas, são elementos capazes de envolver e arrebatar o espectador diretamente, tornando-se relevante aos seus sentimentos. Ao tratar o problema da morte, talvez da perspectiva mais efciente para abor-dá-lo, ou seja, a conquista dos sonhos em vida, oferece a percepção de detalhes específcos de um tema intrínseco à condição humana, mas que talvez poucos pensem a respeito: “a vida terá valido a pena na hora da morte?”. “Antes de Partir” conta a história de dois enfer-mos, com poucos meses de vida pela frente, que se conhecem em um quarto de hospital e resolvem realizar, enquanto há tempo, as vonta-des que gostariam de ter satisfeito na juventude. Ao mostrá-los via-jando para diversos lugares e arriscando a própria vida em aventuras (o que seria quase uma contradição do termo “aproveitar a vida”), o flme abre a possibilidade de discutir o conceito de morte com diver-sas idades sem esbarrar em crenças e preconceitos. E, ao apresentar este problema tão angustiante de forma suave e cômica, é capaz de amenizar o medo, oferecendo maior segurança aos envolvidos para discutir a temática. Torna-se evidente que quando bem escolhido, não só pelo tema, mas por todo o leque de possibilidades que oferece, o cinema é uma ótima porta de entrada para as aulas de flosofa. Seja atraindo a atenção dos estudantes por meio do enredo, trilha sonora, fotografa ou gênero, os flmes têm a capacidade de transportar seus especta-dores para uma dimensão de experimentação que não buscamos ou encontramos no dia a dia, mas que somos impelidos inevitavelmente ao assisti-los. Fator importante, pois o flme não deve ser concebido como um organismo afastado das intervenções do espectador, onde não há nenhuma espécie de envolvimento. Ele necessita do olhar investigativo de quem o contempla. Um olhar capaz de trazer à tona seus conteúdos flosófcos. Ele precisa ser parafraseado, reinventado, verbalizado. Existe, portanto, o que podemos chamar de progressão do entendimento quando somos absorvidos pela película e conse-guimos problematizá-la. É na Comunidade de Investigação que o ato

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de interpretação e desconstrução ocorre para o surgimento de uma nova compreensão. Nela os conteúdos conhecidos são postos à prova e reconhecidos, ou não, pelos demais, criando um entendimento de ordem superior, não acabado, mas refnado, como afrma Lipman:

Os resultados obtidos [no processo de investigação] são sempre provisórios e falíveis, de modo que o que produzimos hoje pode se tornar objeto de investigação e questionamento amanhã, uma vez que a autocorreção é um dos pilares de sustentação do pensamen-to de ordem superior (apud LIPMAN, 2007, p. 30).

A discussão gerada não busca simplesmente solucionar pro-blemas, mas aguçar os argumentos usados em suas possíveis reso-luções, o que inevitavelmente conduz a novas perguntas e maiores aprofundamentos em relação aos temas estudados. Nessa perspec-tiva, é possível dizer que os desafos da escola contemporânea nos exigem competências diferentes daquelas que serviam antigamente. Aprender de forma passiva, sem a presença do pensamento crítico e da experimentação, não contribui à formação humana, somente ao isolamento de cada indivíduo. Aproximar o cinema da sala de aula é estimular o pensamento conexo, ou seja, a capacidade dos estu-dantes de assimilar ideias, mas também, a partir de suas impressões de mundo, criar novas interpretações e valores para aquilo que é experimentado cinematicamente. Ao assumir uma postura investi-gativa em relação às potencialidades flosófcas expressas no flme, o educando apropria-se das situações-problema e passa a produzir seus próprios julgamentos. Ele deixa de acumular dados e começa a pensar sobre as informações que recebe. Pensar é uma atividade que necessita de exercício constante e a sala de aula deve ser um espaço onde esta iniciativa seja valorizada.

Referências

A EXPERIÊNCIA. Direção: Oliver Hirschbiegel. Alemanha: 2001. 1 DVD.

ANTES DE PARTIR. Direção: Rob Reiner. Estados Unidos: Warner Bros, 2008. 1DVD.

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CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à flosofa através dos flmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

DELEUZE, Gilles. Cinema1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasi-liense, 1985.

DESCARTES, René. Discurso do método: regras para a direção do espí-rito. São Paulo: Martin Claret, 2003.

FÁVERO, Alcemira Maria [et al]. A prática dialógica na comunidade de investigação: possibilidades de uma educação para o pensar. In: Diálogo & Investigação: perspectivas de uma educação para o pensar. Passo Fundo: Méritos, 2007, p. 7-42.

FRAMPTON, Daniel. Filmosophy. London: Wallfower Press, 2006.

LIPMAN, Matthew. A comunidade de investigação e o raciocínio críti-co. São Paulo: Centro Brasileiro de Filosofa para Crianças, 1995.

MATRIX. Direção: Andy Wachowski, Lana Wachowski. Estados Unidos: Warner Bros, 1999. 1DVD.

MOSÉ, Viviane. O homem que sabe: do homo sapiens à crise da razão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

TROMBETTA, Gerson Luís (Org.). Lugares Possíveis: metamorfoses da arte no tempo e no espaço. Passo Fundo: Méritos, 2012.

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A ironia como estratégia didática para

o ensino de f losof a

Cosmo Rafael Gonzatto¹Ivan Rodrigo Neuls²

Roberto Quevedo³Gerson Luís Trombetta4

Inúmeras pesquisas relacionadas à temática da educação já foram realizadas, sejam elas na escola pública ou particular, tanto nos anos iniciais quanto no ensino médio. O que a maioria delas possui em comum é o objetivo de buscar compreender como nasce o interesse dos estudantes durante o processo de aprendizagem. Essas pesquisas aconteceram devido ao fato de a maioria dos estudantes não demonstrar interesse e motivação em participar efetivamente do processo educativo. Dessa maneira, à medida que se deseja compreender a im-portância da disciplina de f losof a na escola, torna-se imprescindí-vel reconhecer quais são as metodologias de ensino que devem ser usadas para o melhor entendimento do estudante no processo de

¹Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.²Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.³Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.4Doutor em Filosof a, professor do Curso de Filosof a e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo/RS e coordenador do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.

olhosExperiências de ensino

Filosof a nos

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aprendizagem. O presente texto tem como principal objetivo refetir acerca de metodologias de ensino de flosofa, visando contribuir na escolha de didáticas que instiguem o interesse dos estudantes diante dos conteúdos flosófcos. Este texto é fruto das experiências realizadas junto ao projeto PIBID Capes (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Do-cência). As observações realizadas in loco possibilitaram compreender que a desmotivação dos estudantes pela escola e/ou conteúdo pode estar relacionada a uma gama de fatores, os quais seria impossível lis-tar aqui pela insufciência de dados mais detalhados. No entanto, o estudo concentrou-se naqueles que foram observados durante o pe-ríodo de realização dessa pesquisa, incluído a signifcativa mudança na sociedade causada pelo avanço tecnológico (que inevitavelmente interfere no comportamento humano, principalmente dos jovens), o distanciamento de ideias e concepções de mundo entre professores e estudantes, a metodologia que rege as atividades em sala de aula, normalmente expositiva e tradicional, e os conteúdos desatualizados ou afastados da realidade dos estudantes. Considerando os desafos para a prática docente observados nas escolas, o presente estudo objetiva apontar alternativas didáticas para o ensino de flosofa por meio de uma sensibilização introdutó-ria sobre a temática Filosofa e humor Irônico e a utilização de uma metodologia dialógica que motive os estudantes. À primeira vista, essa combinação pode parecer estranha. Porém, à medida que se re-fete sobre as atuais concepções de flosofa e se busca fundamenta-ção em sua história, é possível perceber o quanto a ironia se constitui num ótimo instrumento para o ensino. Partindo desse pressuposto, foram levantadas algumas questões para direcionar a intervenção nas escolas como: em que sentido a arte de fazer rir poderá se fundir com a flosofa, uma vez que o conhecimento flosófco traz consigo um legado de sérias discussões teóricas, desavenças conceituais e diálo-gos de extrema profundidade? É possível conciliar humor e flosofa? Se a sala de aula é um espaço que reúne estudantes e professor e se estabelece um vínculo de amizade entre os pares, por que não fazer dessa oportunidade um momento descontraído para aprender? De onde vem a ideia de que é necessário os estudantes fcarem quietos e imóveis para aprender? Por que a sala de aula tem essa característica

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de ser um ambiente triste e desmotivador? Com a fnalidade de responder às perguntas apresentadas aci-ma, propomos uma experiência flosófca utilizando a ironia como método. E por último, mostrar de que maneira o tema, ao ser analisa-do e fexionado diante da prática desenvolvida em sala de aula, pode ajudar a contribuir para o ensino de flosofa. Será possível pegar uma carona com o velho e infnitamente citado Sócrates para uma viagem nos braços da ironia? Se sim, pede-se então licença ao lega-do flosófco para explorar essa qualidade do ilustre pensador grego.

1. Conceito de ironia

A palavra ironia nem sempre é facilmente conceituada. A difculdade encontrada no entendimento do conceito de ironia pode estar relacionada à ampla carga semântica intrínseca à própria ironia. A palavra ironia carrega diversas possibilidades de interpretação, de incertezas signifcativas e ambíguas. Ela pode ser confundida com dissimulação, hipocrisia, fngimento, mentira, dentre outras. No dicionário Houaiss ironia signifca “uma fgura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender”. Sugere que pode ser utilizada “literariamente para criar ou ressaltar certos efei-tos humorísticos”. A ironia revela-se como uma maneira inteligente, se não rumar ao sarcasmo, de trabalhar contrastes. Ao interrogar o interlocutor de forma irônica a respeito de determinada questão, é possível fazer com que ele perceba as fragilidades de seu argumento, desconstrua e reconstrua algumas “verdades”, crie e explore novos conhecimentos. Filosofcamente falando, a ironia remete a Sócrates que, nos diálogos platônicos, constantemente utilizava este recurso simulan-do estar num patamar de aprendiz. Ao utilizar tal estratégia para interrogar seu interlocutor, acabava fazendo-o embrenhar-se em contradições e dar um passo além das verdades preconcebidas. Con-tradições que evidenciavam o caráter errôneo de muitas verdades determinadas sem uma refexão mais aprofundada. O verbo que originou a palavra ironia signifca perguntar. É possível descrever ironia como simulação, como capacidade sutil de dizer uma coisa pensando em outra. Desta forma, a ironia é uma 32

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atitude mental de um indivíduo perspicaz e ágil de raciocínio. É a ação inteligente de dizer uma coisa com o fm de fazer entender ou-tra coisa que é geralmente o seu contrário.

2. A ironia na flosofa

Na concepção de Kierkegaard, parece que a ironia confgura-se no mal-entendido, na dualidade entre o fenômeno e o conceito. Nos diálogos socráticos ela se manifesta na pergunta sem resposta que causa a perplexidade. A ironia pode ser vista como a determi-nação da subjetividade. É possível arriscar dizer que em Sócrates a realidade tida como verdadeira parece ser cada vez mais irreal e irô-nica. O flósofo grego tornou-se estrangeiro para si mesmo. Para ele a realidade dada não era tão facilmente decifrada como seus interlo-cutores pensavam que fosse. A ironia socrática colocava em dúvida desde a mais simples até a mais complexa realidade. Em Sócrates, a ironia pode ser reconhecida por possuir mais malícia do que ignorância ou humildade. Visto que seria uma fal-sa ignorância perguntar-se sobre aquilo que de antemão já se tem conhecimento. A ironia socrática pretendia uma relação de supe-rioridade perante o interlocutor. O método de interrogação usado pelo flósofo ateniense tinha como objetivo principal evidenciar as contradições existentes em determinados discursos, certos descom-passos entre a situação simulada e os atos que podem ser vistos no dia a dia. Sócrates, através do seu método, levava o interlocutor a entrar em contradição, fazendo com que ele começasse a duvidar do seu próprio conhecimento, percebendo e reconhecendo que não sabia tão bem aquilo que julgava saber. Ao libertar indivíduos de seus preconceitos, colocava-o em condições de uma análise mais sé-ria sobre o assunto em questão, adotando como ponto inicial de sua investigação flosófca a frase “só sei que nada sei”. Não se está, neste texto, exaltando a ironia no sentido de-preciativo. Por mais que os exemplos utilizados da ironia socrática possam expressar uma falsa humildade, tal postura não tem como objetivo ridicularizar o outro. Busca-se, acima de tudo, purifcar as verdades e construir conhecimento. No teatro, principalmente no teatro humorista como stand-up comedy, que está em alta atualmen-

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te, a ironia é a base dos textos utilizados por estes artistas, recurso que ao mesmo tempo pode proporcionar um alto grau de descontra-ção, prender a atenção, despertar interesse e tecer duras e verdadeiras críticas no sentido de fomentar a refexão. O método socrático de flosofar aponta diretrizes para a apli-cação de atividades alternativas enquanto proposta de aulas de floso-fa motivadoras. Fazer humor, trabalhar com a ironia não é fazer algo de qualquer maneira, nem minimizar a seriedade do que se está fa-zendo. Pelo contrário, para conseguir ironizar a própria ação é neces-sário estar munido de clareza na fnalidade deste recurso, optar por uma metodologia bem elaborada e ter objetivos bem determinados.

O flósofo cumpre com sua função de educador quando auxilia o cego que pensa que tudo sabe e vê a discernir a natureza de cada imagem e de que objeto ela é imagem. Se aquele que se eleva às alturas, a ponto de sua inteligência se tornar hegemônica em re-lação à sua opinião, tende a desistir das coisas humanas, uma vez que sua alma aspira a instalar-se em tais alturas, Sócrates o recorda de sua tarefa de ajudar os “cegos” a se desvencilhar dos grilhões que os aprisionam à sedução das imagens deformadas e geradas na esfera de domínio dos sentidos (ZUIN, 2013, p. 9).

Sócrates defendia a ideia de que seria preciso conhecer para po-der falar. Em sua época a democracia grega pressupunha uma “igual-dade” entre os cidadãos, capacitando-os a exprimir suas opiniões e interesses em assembleias na construção da comunidade. No entanto, a postura socrática foi julgada como escandalosa ao criar um método semelhante a uma fgura de linguagem. De forma irônica Sócrates indagava sobre os assuntos em discussão a fm de delimitar e esclare-cer conceitos, colocando em “xeque” a relação irônica entre interiori-dade e exterioridade, pensamento e palavra, proposição e signifcado. A postura irônica de Sócrates estava mergulhada em uma atuação docente informal. Não era remunerada, nem ofcializada. Ele acreditava na missão de parteiro da verdade. A prática da maiêu-tica, voltada para o conhecimento de si, propiciava aos seus interlo-cutores a realização do trabalho de parto da verdade, conduzindo-os na busca do signifcado das palavras de seus próprios discursos. A missão socrática seria a de dar à luz ou despertar consciências. Mis-são que este trabalho propõe através das intervenções em sala de 34

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aula lançando mão do mesmo recurso utilizado pelo flósofo grego. A ironia aqui tem como principal objetivo purifcar as ideias que permeiam o discurso carente de refexão. Para Sócrates o discurso não era objetivamente representado pela ideia. O dito correspon-dia a signifcados diferentes ou opostos, passíveis de múltiplas inter-pretações, porque “[...] o exterior não estava absolutamente numa unidade harmônica com o interior, mas antes era o contrário disto” (KIERKEGAARD, 1991, p. 25). O método socrático vislumbrava ampliar o pensamento, desfazendo ilusões.

É justamente a realização da maiêutica, cuja nuance é imanente-mente irônica, que permite a refexão de que o fenômeno não é a essência. Através das relações dialógicas entre o mestre e o discípu-lo, observa-se a manutenção da tensão entre a palavra e a intenção velada, a qual, ao mesmo tempo em que se torna manifesta através da dedução, suscita novas formas de interpretação. Não é obra do acaso que a ironia anseia pela liberdade subjetiva, ou seja, aquela liberdade que anuncia a possibilidade da construção de novos iní-cios. E se tal raciocínio for aplicado com maior ênfase na interpre-tação das questões pedagógicas, nota-se que estes novos inícios são incentivados pelo educador que faz uso da dimensão emancipató-ria da ironia quando não apresenta um raciocínio conclusivo ao aluno, mas sim o estimula para que refita a respeito da temática discutida e expresse suas próprias deduções (ZUIN, 2013, p. 4-5).

Sócrates não buscava produzir um conhecimento, mas dar à luz as ideias provindas dos seus interlocutores. A exemplo das partei-ras gregas, dentre elas sua mãe, o flósofo dava à luz o conhecimento a partir do que já estava no interior de cada pessoa. Sócrates se julga-va como alguém que não tinha saber algum, apenas sabia perguntar mostrando as contradições de cada argumento, levando os indiví-duos a produzirem um juízo segundo uma refexão que superasse a tradição, os costumes e as opiniões alheias.

A ironia socrática revela seu potencial formativo quando demole as certezas sobre determinados conceitos, na medida em que as essências de tais conceitos não se restringem ao modo como eles aparecem. As aparências, que são equivocadamente consideradas como os pontos fnais das defnições conceituais são, na verdade, os pontos de partida dos jogos que se estabelecem entre signifcan-tes e signifcados (ZUIN, 2013, p. 2).

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Por meio do comportamento irônico, confgurado pela sub-jetividade dialética, Sócrates fngia ser ignorante, fngia nada saber no intuito de ensinar os outros e questionar a ordem existente. Ele também sofreu crítica à sua postura, por vezes interpretada como sarcástica ou de falsa humildade. “Daí nós vemos que tanto pode ser irônico fngir saber quando se sabe que não sabe, como fngir não saber quando se sabe que se sabe” (KIERKEGAARD, 1991, p. 218).A ironia e a maiêutica constituíam as principais formas de atuação do método dialético de Sócrates. Assim desfazia equívocos propor-cionando a criação de juízos mais fundamentados na razão. Dessa forma, a ironia manifesta-se no momento em que a palavra, com-preendida como fenômeno, se mostra em oposição ao pensamento, compreendido como essência. No jogo irônico, o sujeito é negativa-mente livre, pois o enunciado não corresponde ao seu pensamento, sendo, ao contrário, distorcido do sentido imediatamente pretendi-do. “É nessa perspectiva de análise que a ironia socrática [...] pode suscitar os novos princípios, que se desvelam no jogo da alteridade entre signifcantes e signifcados das palavras” (ZUIN, p. 7). A de-fnição mais apropriada de ironia, segundo Kierkegaard, é a “fgura do discurso retórico, cuja característica está em se dizer o contrário do que se pensa” (1991, p. 215). Contudo, o conceito de ironia não se apresenta de forma sistematizada, devido à inconsistência da lin-guagem e à ressignifcação do próprio conceito ao longo da história. O pensamento irônico, a exemplo da arte, da música e da poesia, diz mais do que o pensamento objetivo é capaz de explicitar. A ironia atesta a própria incapacidade da linguagem em representar experiências centradas na realidade dada. Por trás do papel, da lin-guagem objetiva, nem sempre existe o mundo real, mas a imensidão que se dá além da escritura, além do livro. A ironia pode sobrepor-se a si mesma quando o sujeito pressupõe ter sido compreendido por-que é difícil comprovar a existência de uma relação idêntica entre a sua palavra e o seu pensamento. A ironia é superada quando a coisa dita representa, identica-mente, o pensamento. O discurso comum difere do discurso irôni-co. Busca-se a relação de verdade entre a palavra e o pensamento, a identifcação entre a essência e o fenômeno. O sujeito que se subme-te ao jogo irônico se depara com a descoberta de que a realidade não 36

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tem sentido único ou não é imediatamente legível. A metodologia socrática esbanjava na utilização de recursos analógicos para fazer, muitas vezes de forma irônica, com que seus interlocutores constru-íssem novas respostas para questões que julgavam respondidas com segurança. Construir conhecimento utilizando a metodologia inter-rogativa é um desafo digno de sábios tanto quanto é a capacidade de manusear a arte da ironia para fazer com que os interlocutores consigam ver mais de um lado da mesma questão. Essa parece ser uma das grandes pistas que a ironia propicia: fazer perceber que uma mesma afrmação pode ter várias formas de confrmá-la, bem como de negá-la. Possibilita dizer algo e, ao mesmo tempo, desdizê-lo. Essa arte implica inteligência e, ao mesmo tem-po, desperta inteligência. E o melhor é perceber que a metodologia interrogativa da ironia propicia a chance de aprender com humor. A ironia é uma arte sedutora que comporta algo enigmático. Por outro lado, a ironia pode assumir certo aspecto de nobreza ao se permitir uma compreensão indiretamente e com difculdade. No entanto, mesmo quando rebaixada à categoria de discurso simples, a ironia “[...] viaja na carruagem de um incógnito e desta posição elevada olha com desdém para o discurso de um pedestre comum” (KIERKEGAARD, 1991, p. 216). O irônico passa a se identifcar com a suposta desordem que ele quer combater, ou desfruta da relação de oposição, mas sempre consciente de que sua aparência é o contrário do seu pensamento. A ironia do jogo discursivo consiste em parecer aprisionado na própria ideia que mantém o outro preso. Kierkegaard afrma:

E quanto mais o irônico tiver sucesso com a fraude, quanto me-lhor aceitação sua moeda falsa tiver, tanto maior será sua alegria. Mas ele saboreia esta alegria sozinho e tem todo o cuidado para que ninguém perceba sua impostura (1991, p. 217).

Mostrar-se como fgura de oposição é também característica da ironia. É comum o irônico aparentar-se simplório demais; jogar falso, rebaixando-se para exaltar a suposta sabedoria do outro, ser o verdadeiro ingênuo e, ao mesmo tempo, mostrar-se tão interessado em aprender que o outro sente alegria em deixá-lo “dar uma olhada

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nos seus vastos terrenos, diante de um entusiasmo sentimental e lân-guido” (KIERKEGAARD, 1991, p. 218). A ironia paira num constante movimento de duplicidade: o irônico, parecendo ser simplório, ser honesto e ser sincero, capta o entusiasmo sublime do outro. Por isso, quanto menos irônico se apa-renta ser, mais a ironia é elevada, pois o irônico, escondido em sua interioridade, incógnito, mantém-se ainda mais livre para encenar. Mesmo que sempre permaneça consciente e distante do próprio jogo da encenação, a ironia implica em ser outro em determinada circuns-tância, uma ação que deve ser acompanhada de habilidosa poética artística. A ironia é gozo subjetivo, prazer desfrutado na medida em que o sujeito se liberta da realidade ao qual está vinculado porque o irônico se isenta de qualquer intenção imediata, de qualquer fm em si mesmo. Ao conseguir impor veracidade à sua dissimulação, atua na realidade encenada por ele e sente-se livre. Essa liberdade é concedida por força da ironia. Contudo é impossível detectar, na postura irônica, os limites do certo, do ver-dadeiro, do absoluto e do defnitivo porque o irônico não pode ga-rantir nada, a não ser, paradoxalmente, a sua própria postura irônica. Tal postura se dá pelo convencimento, pela comoção, pela percepção e pelo jogo cujo resultado é o efeito causado no outro. A postura irônica consegue censurar por meio de um elogio irônico ou elogiar através de uma censura irônica. O comportamento irônico pode ser identifcado com o comportamento hipócrita, uma vez que a inte-rioridade do irônico se apresenta em oposição à sua exterioridade. Para Kierkegaard, o hipócrita está imbuído de sentimento de maldade, embora se esforce por parecer bom. Ao irônico só interessa parecer diferentemente do que é de fato. Esconde sua brincadeira na seriedade ou sua seriedade na brincadeira, postura que pode ser confundida com escárnio. A ironia situa-se, somente, no campo me-tafísico, porque determinações morais como bondade ou maldade são a rigor “demasiado concretas para a ironia” (KIERKEGAARD, 1991, p. 223). Pode custar tempo para o irônico vestir a roupagem correta, adequada à personagem que ele mesmo inventou de ser. “O irônico entende do assunto e possui um lote considerável de másca-ras e fantasias à sua livre escolha” (KIERKEGAARD, 1991, p. 244). 38

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3. A ironia e o ensino da flosofa hoje

Com base nas investigações acerca da ironia socrática, é possível abordar alguns aspectos que foram sendo apresentados nas atividades docentes desenvolvidas com o uso da ironia nos debates flosófcos. Em primeiro lugar, trazer o aspecto da amizade. Não é possível contar com um bom resultado das discussões sem um bom relacionamento entre os próprios estudantes e destes com o profes-sor. Notou-se que a amizade que caracterizava o método socrático de flosofar torna-se indispensável na atuação efciente porque permite que todos possam se expor, pois os interlocutores sabem que no am-biente formado entre eles não haverá consequências temíveis.

O jogo irônico-dialético socrático, enquanto produção do conhe-cimento humano não pode se ‘crisalizar’, ou seja, se encapsular a ponto de se dirimir as cargas afetivas que lhe são imanentes. Quando isto acontece, então predomina a carga afetiva sarcástica que dilacera os argumentos alheios por meio da soberba intelectu-al daquele que não admite se equivocar no domínio dos conceitos discutidos (ZUIN, 2013, p. 15).

O maior temor que se pode apresentar ao ato flosófco for-mado entre os estudantes é uma sutil consciência da própria igno-rância. Para isso é preciso que não se tomem iniciativas destrutivas que venham a desestimular a coragem que cada um alimenta em relação à própria exposição ao diálogo. Outro aspecto que se torna vital ao processo é a disposição ao debate. “Com efeito, muitas pes-soas, meu caro amigo, antes deste dia, com frequência têm assumido uma tal disposição de espírito em relação a mim, que estão prontas realmente para morder-me se delas retiro alguma noção tola” (PLA-TÃO, p. 56). Nessa passagem do diálogo com Teeteto, Sócrates dei-xa claro que o flosofar nem sempre é agradável, pois tira o indivíduo de sua estabilidade. Para amenizar as possíveis aversões o assunto a ser tratado deve ser de interesse dos envolvidos. A sensibilidade aos anseios dos estudantes está no horizonte vislumbrado pelo professor. A forma com que o assunto é apresentado pode desembocar tanto no sucesso quanto no fracasso da atividade flosófca. Pode-se exemplifcar da seguinte forma: numa turma um determinado recur-

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so audiovisual pode desencadear boas discussões e em outra pode ser encarado de forma apática. Isso porque cada grupo possui caracte-rísticas próprias, dependendo do meio em que os estudantes vivem, seus hábitos, infuências culturais, etc. Durante as intervenções nas escolas para aplicação da ativi-dade do PIBID foi utilizado um recurso extraído da internet chama-do Destiny. Com este vídeo deu-se início aos debates. Como o as-sunto das aulas foi o destino ou predestinação, esse vídeo contribuiu na obtenção de bons resultados, pois trouxe o tema de forma um tanto quanto confusa. A confusão inicial fez com que os estudantes procurassem entender qual a mensagem do episódio apresentado. Esse aspecto trouxe o início do debate: o espanto. O recurso audiovi-sual mobilizou os estudantes em descobrir o que estava implícito nas imagens, levando-nos a concluir que a partir das diversas colocações que vão surgindo é mais fácil detectar as contradições dos pensamen-tos. Se os estudantes estiverem dispostos e provocados com um bom recurso eles também conseguem detectar problemas em raciocínios por conta própria. Nesses casos o professor precisa ser ágil para aju-dar na organização das ideias, além da necessidade de conhecimento prévio do assunto tratado para dialogar com as variáveis argumenta-tivas que surgirem no grupo. A estranheza pode ser de grande valia para o processo de aprendizagem. Como a atividade proposta estava ligada ao humor e mais precisamente à ironia, surgiu a ideia de utilizar exemplos estra-nhos. Diante da pergunta “o que uma espiga de milho tem a ver com uma aula de flosofa?” – que a princípio parece não possuir nada em comum – é possível chegar a pontos interessantes. E, de fato, foi o que aconteceu em tal experiência. Com uma espiga de milho em mãos foi possível provocar os estudantes no sentido de localizarem as profundas diferenças que o ser humano possui em relação a ou-tros seres. A espiga de milho, em oposição ao homem, não escolhe o que vai ser ou qual sua fnalidade no mundo, ela não pode interferir nas sequências naturais de sua vida. Entretanto, apesar da diferença entre poder escolher ou não o que se vai fazer em relação à própria vida, a questão das limitações também foi despertada. Apesar de o ser humano poder optar por fazer algo ou não, ele, assim como a espiga de milho, possui limitações que ultrapassam suas possibilida-40

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des de escolha. Não há, por exemplo, como querer ter nascido em outro lugar, ter outro corpo, etc. Essa experiência, que nos ajudou a refetir sobre predestinação, revela que para o processo do agir peda-gógico não há necessidade de um ambiente muito rígido. É possível trabalhar de uma forma mais descontraída, desde que se tenham as condições favoráveis. No entanto, para que a atividade não fque apenas em um ambiente de exposições de opiniões é necessário que se apresente aos estudantes o tema da aula de uma forma sistemática. A utilização de um texto possibilita a aproximação de uma forma-ção de conceitos mais elaborada. O texto pode ser bem trabalhado se possuir uma linguagem acessível. Porém, mesmo que a lingua-gem seja simples, é importante que traga as ideias dos pensadores da flosofa, ainda que estes não sejam diretamente citados logo de início. É possível elaborar conceitos sem tocar diretamente no nome dos flósofos. Não se nega o ato de fazer referências aos pensadores que deram origem às ideias trabalhadas, mas apresentar as teorias flosófcas de modo mais compreensível, tendo o cuidado para não despertar antipatia por parte dos estudantes.

Considerações fnais

O trabalho ajudou a perceber, de forma mais nítida, que o humor pode ter sido deixado de lado no que se refere ao flosofar. Entretanto, ao refetir e remodelar as concepções, nota-se que atra-vés do humor, de modo especial a ironia, é possível pensar, ensinar e fazer flosofa. A sala de aula pode ser um ambiente de reunião, convivência e aprendizados onde sejam discutidos conceitos abs-tratos e construídos conhecimentos de forma descontraída. A rela-ção entre educador e educando é marcada por uma interação mais humana sem, contudo, cair em demasiados gracejos e zombarias. O embasamento teórico sobre o conceito de ironia contri-buiu para a prática em sala de aula, elucidando as possibilidades da utilização do humor no fazer flosófco. Apoiando-se na leitura que Kierkegaard faz da ironia socrática e nas informações de Zuin sobre Sócrates, foi traçado um paralelo entre a compreensão de ironia e a possibilidade de sua aplicabilidade como ferramenta de educação. E por fm, a síntese entre teoria e prática comprovou a compatibilidade

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existente entre flosofa e ironia, visualizando as possibilidades do exercício flosófco em sala de aula através do humor. Zuin diz: “Ora, quem é que consegue rir e elevar-se ao mes-mo tempo? Provavelmente o educador que é capaz de rir, irônica e pedagogicamente de si ao reconhecer suas próprias limitações, tem mais chances de alcançar tal feito que, antes de ser feito divino, se faz ato humano, demasiadamente humano” (2013, p.16). O estudo ajudou a compreender que o conhecimento, o domínio das teorias e sua historicidade são indispensáveis, mas que a forma de transmitir, de refetir e reconstruir é o que faz com que uma aula de flosofa desperte interesse. Cabe aquela velha máxima: “muitas vezes é mais importante o jeito como se faz até mesmo do que o que se faz”. Fazer flosofa com sabedoria irônica pode ajudar a desenvolver profundas e sábias refexões se fzer com que tal exercício não seja fastidioso.

Referências

DESTINY, curta de animação. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=wEKLEeY_WeQ. Acesso em: 19 set. 2013.

GEIER, Manfred. Do que riem as pessoas inteligentes? Uma pequena flosofa do humor. Rio de Janeiro: Record, 2011.

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

KIERKEGAARD, Soren. O conceito de ironia. Petrópolis: Vozes, 1991.

PLATÃO. Diálogos. Teeteto (ou do conhecimento), Sofsta (ou do ser), Protágoras (ou sofstas). São Paulo: Edipro, 2007.

PLATÃO. A república. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

ZUIN, Antonio. A dialética socrática como paideia irônica. GT: Filoso-fa da Educação, n. 17, p. 1-17. Disponível em: http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/GT17-2754--Int.pdf. Acesso em: 19 set. 2013.

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Filosofando com narrativas

Alexandre Hahn¹Vera Lucia Dalbosco²

Gerson Luís Trombetta³

Positivamente, contar histórias é uma das mais belas ocupações hu-manas: e a Grécia assim o compreendeu, divinizando Homero que não era mais que um sublime contador de contos de carochinha. To-das as outras ocupações humanas tendem a explorar o homem; só essa de contar histórias se dedica amoravelmente a entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo (Eça de Queirós).

O presente artigo é fruto de pesquisas e discussões teóri-co-metodológicas propostas pelo PIBID – Filosof a/UPF e objetiva pensar a narrativa como estratégia mobilizadora ou mediadora da ref exão f losóf ca com alunos do ensino fundamental e médio. Tal proposta nasceu de um trabalho de pesquisa anterior, desenvolvido nas escolas, onde percebeu-se a necessidade de desaf ar e estimular a ref exão f losóf ca usando temas do interesse dos alunos. Faz-se necessário, antes de prosseguirmos no nosso objetivo,

¹Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.²Professora de História e Filosof a na rede municipal de ensino de Passo Fundo.³Doutor em Filosof a, professor do Curso de Filosof a e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo/RS e coordenador do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.

olhosExperiências de ensino

Filosof a nos

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levantar algumas questões: seria a narrativa um recurso didático fe-cundo para ser usado no ensino de Filosofa numa época em que os jovens estão envoltos pelo mundo tecnológico e imagético? Como desenvolver discussões flosófcas por meio do trabalho com narrati-vas? A que narrativa nos referimos? Pensando no objetivo e nas questões acima expostas, organi-zamos o texto em três partes. Primeiro nos ocupamos com o concei-to e valor do uso das narrativas como suporte pedagógico; segundo, levantamos elementos para pensar a narrativa como meio para sus-citar discussões flosófcas e, por último, apontamos possibilidades concretas do uso da narrativa para as aulas de flosofa.

1. Signifcado e importância pedagógica da narrativa

Quando falamos em narrativa, nos voltamos ao passado, a uma lembrança, uma história, um antes de dormir. Histórias que passa-ram de geração em geração, criadas por fatos acontecidos ou muitas vezes criados (fccionais) para, nos momentos de descanso, nos re-meter à refexão, nos aproximar de uma melhor atitude, da moral ou de uma cultura desconhecida. Na retórica clássica, a narração, ou narratio, tinha como ob-jetivo informar e instruir o auditório e, de certa forma, persuadi-lo. Mas também era vista como entretenimento. O termo narrativa pro-vém, segundo o dicionário Houaiss, do latim narrare, que remete ao ato de contar, relatar e expor um fato. Para muitos autores das ciências sociais, de modo geral, a narrativa é referida para designar as diferentes maneiras dos seres humanos contarem suas experiências no mundo. Constitui-se, as-sim, numa forma de relato das experiências vividas ou reconstrução a partir das histórias ou experiências de vida. A reconstrução de fatos históricos construídos e narrados por historiadores são, por exemplo, formas de narrativas, analíticas ou factuais. Na linguagem literária a narrativa refere-se a gêneros como novelas, fábulas, romances, con-tos, crônicas, anedotas e está envolto por um fato, tempo, lugar, per-sonagem, implicando de modo geral numa relação de causa e efeito. Sendo fctícia ou real, possui grande signifcado ao ser humano, pois 44

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sempre está ligada ao mundo da experiência. As narrativas podem ser classifcadas de diversas formas e tam-bém com objetivos diferentes. Tomamos aqui o conceito de narrativa na perspectiva literária, como experiências que se tornam fontes de histórias reais ou fctícias e que não deixam de estar impregnadas por valores e costumes de quem as conta, podendo ser tomadas como pontos de refexão para problemas cotidianos ou apenas para diver-são. Ao envolver-se com os enredos, nos transportamos ao tempo da história como quem migra para o tempo da imaginação. Os mitos, por exemplo, nos instigam sobre a nossa existência, o nosso mundo, o desconhecido e a análise sobre nossa realidade. Já os contos e as fábulas cumprem um objetivo mais claro de conduzir o destinatário – ouvinte ou leitor – para uma consciência moral. Num mundo de atualizações constantes, marcado pela pre-sença rotineira de blogs, vlogs, videoclipes e seriados, colocando a imagem como ponto central, leva-se a crer que há um desencan-tamento para com as narrativas contadas ou escritas. Por mais que hoje a tecnologia tenha nos desencantado da magia dessa tradição de ler, contar e ouvir histórias, algumas perguntas são pertinentes. Por exemplo, quem nunca ouviu falar de “Alice no País das Ma-ravilhas”, “Chapeuzinho Vermelho” ou “Os Três Porquinhos”? Por que tais narrativas permanecem na memória dos jovens e adultos? As narrativas auxiliam no aspecto da memória pessoal e da dimensão coletiva ou social, adquirindo importância subjetiva que envolve o emocional ou afetivo dos fatos. A produção de narrativas possibilita compartilhar conhecimentos nos grupos, constituindo-se em instrumento potencializador de desenvolvimento intelectual do aluno. Pode criar a interação entre o aluno e seu mundo de fantasia através da descrição da trama em um cenário específco, localizan-do o estudante no tempo e espaço em que a história se desenvolve, fazendo-o se sentir como sujeito ativo deste ambiente. Como diria o crítico literário e flósofo Walter Benjamim, “a narração não se esgota, é densa e envolve o passado e o futuro e tem multiplicidade de linguagens; sendo assim, é constitutiva do sujeito, afrma que ele tem senso prático e retira da experiência o que ele conta e incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes” (1985, p. 201). Os autores do ensaio “Filosofa e literatura: diálogo motiva-

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do a partir de Platão e Tchekhov”, ao comentarem sobre a importân-cia da literatura no ensino, afrmam que enquanto a flosofa traz à tona a problemática existencial do ser humano, a literatura apresenta esta mesma problemática simbolicamente, através da fcção. As duas áreas são complementares na medida em que representam a vida de quem as lê e atuam no pensamento e na constituição dos sujeitos. Assim, para os autores, as duas disciplinas tornam-se importantes, pois trabalham com o aspecto formativo do indivíduo. Pela experi-ência proporcionada por seus personagens, a literatura toca na vivên-cia dos leitores. A flosofa, pelo rigor do pensamento questionador, aprofunda outros âmbitos diferentes de tais vivências. Porém, é mais fácil para a mente expressar os conteúdos (valores) através de histó-rias do que por conceitos. Trombetta (2011) indica seis formas diferentes de relacionar flosofa e literatura. Dentre estas destaca que, tanto uma quanto a outra, se ocupam das mesmas problemáticas que envolvem o ser humano, mas abordando-as de forma diferente. A literatura, por não ter o compromisso com o rigor conceitual, pode abordar temas de forma mais direta e instigante. Isto não signifca, porém, segundo o autor, uma fraqueza da literatura, mas sim sua potencialidade. As potencialidades do artista de ser direto, de criar as signif-cações, fazer o leitor viver e envolver-se emocionalmente indicam o ponto essencial na narrativa literária para fomentar e mediar o diálo-go flosófco. Inegavelmente, cada pessoa está fundada na capacidade de poder narrar uma história ao outro, cada qual com sua particula-ridade. A narrativa tem a capacidade de elucidar desde os jovens até os mais conhecedores. Podemos então encarar o processo flosófco como uma ponte a ser atravessada e a narrativa como as cordas que dão suporte a este longo caminho. 2. Elementos metodológicos para uso da narrativa no ensino de flosofa

O ensino de flosofa vem tentando se reinventar, debatendo cada vez mais sobre como instigar usando novas práticas ou rea-daptando as didáticas tradicionais. Atualmente não se aceita mais o ensino retórico baseado na análise de obras clássicas. Com esta 46

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atitude chama-se para a necessidade de ensinar o aluno a elaborar problemas, desenvolver argumentações, aprender a pensar, elaborar conceitos e, fugindo da comodidade, possibilitar assim ao educando uma vivência de experiência flosófca mais ampla e intensa. Lipman, no seu livro “A flosofa vai à escola”, comenta que A narrativa pode ser um meio ideal para exercitar o pensamento flosófco, pois as histórias envolvem personagens com as quais os estudantes se comparam, se identifcam ou discordam. A fcção nor-malmente se aproxima do conhecimento comum, das experiências de vida, permitindo uma melhor compreensão dos problemas flo-sófcos e instigando no educando o desejo de debate e investigação. Afrma o referido autor:

Por meio de modelos fccionais é possível mostrar aos alunos que eles próprios podem pensar mais racionalmente e mais criativa-mente, pois queremos tanto estimulá-los a pensar como estimulá-los a pensar melhor. Se a leitura do texto é seguida de discussões críticas e interpretativas sobre as ideias escondidas nas entrelinhas dos romances, como tesouros numa caça ao tesouro, os alunos dis-putarão ansiosamente uns com os outros o momento de expressá-los oralmente, podem ser estimulados a escrevê-los, quer na forma de ensaio, diálogos, contos ou poesia (LIPMAN, 1988, p. 211).

O autor defende que o trabalho flosófco deve ser estimula-do desde a infância e a partir de textos fccionais, denominando-os de novelas flosófcas. A base da metodologia proposta por Lipman é o diálogo. Este elemento é o que vai permitir à criança ou ao jo-vem expressar seus pensamentos e construir determinados processos mentais. Assim, ele propõe que os educandos sejam dispostos em círculos, que seja realizada a leitura do episódio e em seguida solici-tado que falem sobre a narrativa, dando início à problematização e ao debate. Durante as conversas o professor pode introduzir outras questões instigando os alunos a se posicionarem explicitando seus argumentos e problematizações. Nossa proposta de uso de narrativas no ensino da flosofa segue o desejo de desenvolver uma experiência de ensino na linha do fazer flosófco defendido por Lipman. Somos adeptos da ideia de que os textos narrativos, como os contos, que chamam para o fan-

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tástico, podem instigar o debate e a refexão. O diálogo, a partir das ideias e experiências individuais, possibilita fazer o exercício flosó-fco de modo mais brando, sem perder a profundidade. O trabalho com a narrativa exige, porém, a provocação do experienciado para além do senso comum, para que se constitua em refexão. É preciso provocar através do diálogo, do problema, da descoberta do que está por entre as linhas da metáfora, “o que poderia ser e não está presen-te”. Em síntese, este modo da tratar a flosofa prima pela descoberta e análise dos problemas flosófcos e não se fxa na rigidez da exegese do texto clássico.

3. Uma possibilidade metodológica de uso da narrativa

Ao pensar na metodologia mais adequada para desenvolver discussões flosófcas por meio de um trabalho com narrativa, sur-gem-nos algumas questões: Qual temática deveríamos abordar? Que história melhor se enquadraria na temática em questão? Quais pro-blemas seriam pertinentes de ser abordados no decorrer do diálogo? Partindo do objetivo de debater sobre o sentido da nossa existência e prevendo os assuntos que pudessem ser elencados pelos alunos durante a discussão, julgamos conveniente falar da vida e do sentido da existência a partir do grande dilema da morte. Como diz um antigo ditado, “das coisas da vida só a morte é que se sabe que é certa”. Para muitas pessoas a revelação da morte é o início das perguntas sobre a vida, das indagações que tomamos como particulares, ou seja, pensar sobre a morte não só nos deixa pen-sativos como nos torna pensadores. Afnal, por que nos preocupa-mos com a vida? Podemos compreendê-la? Optamos pelo conto “O Compadre da Morte”, adaptado por João Monteiro e presen-te no livro “Contos Tradicionais do Brasil”, de Câmara Cascudo. O conto “O Compadre da Morte” pertence à tradição oral de vários países e foi adaptado e reestruturado de forma diferente em cada obra escrita. Em linhas gerais, fala da história de um homem chamado José, que era pobre e tinha tantos flhos que não havia mais a quem convidar para apadrinhar o último que estava por vir. Desesperado, José sai pela rua, encontra a morte e a convida para ser 48

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madrinha do rebento. Convite que é prontamente aceito e aí começa uma complicada relação de amizade e traições envolvendo o tema da morte. O conto prossegue de uma moral que é aterradora de um dos maiores medos da humanidade, a hora da nossa morte, e brinca com a situação que todos teremos um dia de passar na vida. Tal conto ser-viu como mobilizador do trabalho realizado em sala de aula, sendo utilizado como instrumento de introdução ao tema. Na narrativa, é dada a ideia de que enquanto houver vida tudo pode se arranjar, mas a morte é necessariamente irrevogável. O que caracteriza a morte é a certeza de que nunca podemos dizer que estamos resguardados dela ou que nos afastamos, ainda que momentaneamente, de seu impé-rio; mesmo que às vezes não seja provável, a morte é sempre possível. Tendo a morte como iminente e deferível a todos, pode-mos pensar algo positivo sobre ela? Conforme Savater, “é a morte prevista que, ao nos tornar mortais (isto é, humanos), também nos transforma em viventes” (2001, p.16). Ou seja, o indivíduo começa a pensar na vida quando se dá por morto. Assim temos várias ques-tões para problematizar depois do conto. O que sabemos sobre a morte? Temos alguma certeza sobre ela? Existe vida antes da morte? Se vamos morrer, que sentido tem estar vivo? O que signifca estar vivo? O que é uma vida que vale a pena ser vivida? O que faríamos se soubéssemos que iríamos morrer em alguns dias? É a morte que nos torna humanos? Poderíamos encontrar sentido na vida sem a possibilidade da morte? O que faz com que as pessoas queiram viver? Como explicar o suicídio se o medo da morte provoca o despertar para a existência? Heidegger, um dos flósofos contemporâneos que muito trabalhou sobre o tema da morte, considerou-a como a condição constitutiva da existência humana. É ela que dá a dimensão de fni-tude. Ao pensar sobre a morte o homem faz a experiência do nada e angustia-se. A experiência da angústia joga-o para a exigência de ter que ser alguma coisa. Portanto, é a consciência sobre sua fnitude, ou seja, sobre o fato que cedo ou tarde morrerá que impele o ser humano a “ter-que-ser”. Tomamos as palavras de Sócrates, no diálogo “Fédon”, onde Platão escreve que flosofar é “preparar-se para morrer”. No entanto,

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o que pode signifcar “preparar-se para viver”? Pensar sobre a con-dição humana (mortal) que temos é o que justamente faz da morte algo tão importante para nós. Todas as tarefas e empenhos da nossa vida são formas de resistência à morte, que como dito antes, é inevi-tável. É a consciência da morte que transforma a vida em um assunto de seriedade para cada um, algo que deve ser refetido.

Considerações fnais

O trabalho nos levou a compreender o quanto podemos elaborar de atividades flosófcas com apenas uma obra em mãos e que, com o surgimento de vestígios de indagação dos estudantes, é possível sempre reavaliar nossas práticas pedagógicas e perceber que nossas conclusões não esgotam o assunto porque o diálogo evidencia que nossas ponderações podem ser frágeis se comparadas com as melhores argumentações provindas do grupo.

Quando creditamos aos artistas compreensão (insight) e imagina-ção, queremos dizer que seus trabalhos nos possibilitam compre-ender mais efetivamente os signifcados a serem encontrados em nossa própria experiência. Toda apreciação estética nos engrande-ce neste sentido, mas a apreciação da criatividade de um trabalho engrandece de algum modo misterioso nossa capacidade para tal engrandecimento: ela faz crescer nossa força para crescer (CAR-RIÈRE, 2008, p. 89).

Por fm, reafrmamos insistentemente a importância do res-gate e manutenção do trabalho com narrativas literárias como forma de construção de narrativas pessoais em um tempo único, que muda tão rapidamente, mas somente por incentivo da refexão poderá vir a ser executado com plenitude. O trabalho com a narrativa na escola deve ser constante-mente revisto e atualizado, pois como o mundo transforma-se coti-dianamente, a narrativa também sofre metamorfoses. Ao narrarmos, organizamos uma essência própria que é dada por conta das nossas experiências humanas que devemos repassar e moldar em outros, levando a imaginação dos alunos a reconstruir o seu mundo numa refexão que talvez antes não tivesse maior plenitude para se moldar.

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Nas palavras de Benjamim:

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. [...] O extraordinário e o miraculoso são narrados com maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso atinge uma amplitude que não existe na infor-mação (1996, p. 203).

Cada pessoa está fundada na capacidade de poder narrar uma história ao outro, cada qual com sua particularidade. A narrativa tem a capacidade de elucidar desde os jovens até os mais conhecedores. É repassando uma história hoje que amanhã podemos escrever outra.

Referências

BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política v. I. São Paulo: Brasiliense, 1996.

CÂMARA CASCUDO, Luís. Contos tradicionais do Brasil. Belo Hori-zonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1986.

CARRIÈRRE, Jean-Claude. Contos flosófcos do mundo inteiro. São Paulo: Ediouro, 2008. p. 89-94.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Obejtiva, 2001.

LIPMAN, Matthew. A flosofa vai à escola. São Paulo: Summus, 1990.

PLATÃO. Fédon. São Paulo: Nova Cultural, 1991.

QUEIRÓS, Eça de. A correspondência de Fradique Mendes. Memórias e notas. Porto: Lelloe Irmão – Editores, 2001.

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RAMOS, Flavia Broccheto. Filosofa e Literatura: diálogo motivado a partir de Platão e Tchekhov. Revista Educação, Porto Alegre, v. 34, n. 3, set/dez. 2001, p. 317-323.

SAVATER, Fernando. A morte, para começar. In: As perguntas da vida. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TROMBETTA, Gerson Luís. As vertigens do inominável: sobre o sublime em Kant e Beckett. In: BOMBASSARO, Luiz Carlos. et al. Pensar sensí-vel: homenagem a Jaime Paviani. Caxias do Sul: Educs, 2011, p. 511-526.

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Filosof a, amor e novelas

Ana Lucia Kapczynski¹Eliane Aparecida Berra²

Margarete Endres Freitas ³Gerson Luís Trombetta4

A obrigatoriedade do retorno da f losof a nos currículos escolares da educação básica tem sido alvo de discussão nas rodas de debates de grandes intelectuais brasileiros: de um lado estão os que defendem o ensino da história da f losof a e de outro está quem sustenta o estudo de temas f losóf cos. Os estudos realizados até o momento evidenciaram que tanto a história da f losof a quanto os temas f losóf cos devem ser abordados, porém a partir de uma me-todologia fundamentada no universo cultural das classes estudantis. A mobilização da consciência pode ser motivada por recursos que inicialmente não explicitam os temas f losóf cos, mas que permitem extrair problemas cotidianos conjunturais passíveis de ser investiga-dos à luz dos clássicos f losóf cos. Para isso sugerimos a utilização de cenas das novelas brasileiras na experiência f losóf ca como ponto de partida do processo ref exivo, por sua característica de apropriar-se do conhecimento do senso comum.

¹Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.²Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.³Professora de Filosof a na rede estadual (Instituto Cecy Leite Costa/Passo Fundo).4Doutor em Filosof a, professor do Curso de Filosof a e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo/RS e coordenador do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.

olhosExperiências de ensino

Filosof a nos

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Na pesquisa realizada com os alunos do Instituto Cecy Leite Costa e da Escola Estadual Nicolau Araújo Vergueiro5 constatou-se que o hábito de assistir novelas é a principal forma de lazer para um expressivo número de famílias, possivelmente por ser uma atividade de baixo custo e pela acessibilidade aos canais abertos de televisão, tornando-se parte do ambiente doméstico e das relações familiares. A fcção passa a fazer parte do cenário de suas vidas enquanto entre-tenimento. Num sentido geral, as novelas também visam preencher o vazio existencial e resolver as contradições da vida por um processo de sublimação, isto é, de confortar-se sem resolver os problemas, através de um prazer ilusório. Assistir televisão, especialmente novelas, é a primeira e mais signifcativa atividade depois do trabalho. A passividade dos telespec-tadores em frente à tela provoca uma espécie de ataraxia, sendo mais cômodo que reagir frente às adversidades da vida. Embora os teles-pectadores estejam cientes dos propósitos de debates que cada autor pretende provocar na opinião pública, poucas pessoas conseguem refetir acerca dos conteúdos apresentados nas novelas, identifcar a mensagem implícita em cada cena, pois as novelas aforam o imagi-nário contido em cada subjetividade. As telenovelas traduzem uma forma particular de atração, fascínio, capacidade de envolver o estí-mulo sensorial sem o menor esforço psicológico. O sentimento do prazer e a curiosidade são o que garantem os altos níveis de audiência. As novelas lidam com ambiguidades quando tratam de questões éticas, colocando o contraponto dos problemas ao extre-mo oposto, muitas vezes desconsiderando uma análise refexiva. Ao passo que as injustiças são denunciadas, sugere-se que em nome da justiça tudo é válido, inclusive fazer injustiças. A ideia de vida fácil e impunidade também são reforçadas pelas novelas aos públicos ado-lescentes que creem poder burlar compromissos e responsabilidades, acreditando que isso não irá comprometer a formação de seu caráter. É comum ouvir dos estudantes a expressão “não dá nada” quando são convocados a cumprir as tarefas escolares. A adolescência é um período de confitos que permeia a for-mação da personalidade, tornando os jovens vulneráveis às interfe-

5Levantamento de dados socioeconômicos para o PIBID – Projeto Filosofa/UPF.

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rências provocadas pelas mídias, cujos conteúdos precisam ser pro-blematizados para não infuenciar de forma negativa a sua conduta. Ao passo que os autores pretendem denunciar determinados proble-mas sociais, acabam infuenciando comportamentos destrutivos nas cenas apresentadas6. Convém ressaltar que esta faixa etária é marca-da pelo desejo de pertença e de ser aceito pelo grupo, tornando os jovens vulneráveis à assimilação de comportamentos questionáveis. Os adolescentes são mais receptivos a seguir as normas do mercado de consumo porque, ao aderir aos modismos, acreditam estar em evidência e ser valorizados pela sociedade. Nesse campo, as novelas infuenciam no modo de vestir, nos gostos musicais, no consumo de determinados produtos, nos relacionamentos e nos vocabulários adotados que os estudantes levam para a sala de aula sem questionar. A refexão flosófca dos conteúdos apresentados pelas nove-las contribui no discernimento entre o real e o imaginário, além de possibilitar questionamentos relacionados aos valores. O imaginário é indispensável para a sobrevivência humana e foi o que motivou o surgimento da própria flosofa. Está relacionado com a criatividade, com a elaboração de hipóteses e com a capacidade de pensar, mas adquire sentido quando posto em sintonia com a realidade concre-ta. Aproximando o real do imaginário, as novelas facilitam refexões sobre o universo cultural estudantil, uma vez que os temas apresen-tados são de domínio popular. A ideia do amor perfeito é o que cau-sa maior fascínio e provoca inquietações nos adolescentes que estão vivenciando os confitos de suas primeiras experiências amorosas, tornando-se o aporte principal para as discussões flosófcas. As novelas pretendem transmitir os valores defendidos em determinados momentos históricos, atingindo negativamente os jo-vens que não desenvolveram habilidades sufcientes para julgar o que consideram certo ou errado. Dentre os paradigmas questionáveis ci-tamos o apelo à exposição excessiva dos “corpos sarados”, estímulos de fundo erótico, principalmente em relação ao corpo feminino, vulgarização da sexualidade, atribuição do trabalho como penali-

6Por exemplo, formas sutis de enganar, matar sem deixar vestígios, ludibriar e atingir os objetivos sem escrúpulo algum. Os vilões das novelas acabam tornando-se ídolos de muitos adolescentes.

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zação aos fracassados. O consumismo e a concepção distorcida de núcleo familiar não legitima a autoridade dos pais ou tutores. Assim, as teledramaturgias traduzem sentimentos aforados nos públicos adolescentes, ditam comportamentos, modos de vestir e linguagens. Este artigo discute a infuência da fcção televisiva no senso comum, visando fomentar refexões flosófcas. Com a fnalidade de apresentar as novelas na elaboração das aulas de flosofa, dividimos este artigo em três tópicos: no primeiro momento contextualizamos a estrutura das novelas brasileiras no processo histórico e organiza-cional dos enredos. No segundo momento sugerimos possibilidades de utilização das novelas nas aulas de flosofa. E, no terceiro mo-mento, apresentamos os resultados e discussões acerca da aplicação do plano de aula com a utilização de uma cena de novela como motivação para as refexões flosófcas.

1. A estrutura das novelas televisivas brasileiras

As novelas brasileiras apresentam uma estrutura comum de onde partem os diferentes enredos sustentados pelos confitos e con-tradições que permeiam as histórias. O romance é o eixo condutor, embasado no drama e na violência. Em torno da fcção são abordados problemas sociais específcos e transmitida uma concepção de justiça relacionada ao maniqueísmo7. Entretanto, a ideia de maniqueísmo que se coloca numa primeira impressão apresenta ambiguidades nas questões relacionadas ao bem e ao mal, pois os personagens de boa índole também revelam o seu lado perverso, assemelhando-se à vida concreta. Do mesmo modo, os vilões também apresentam razões plausíveis para justifcar sua conduta imoral. O entretenimento é o objetivo central dos enredos, cuja f-nalidade consiste em suprir as carências humanas e transmitir aos te-lespectadores uma concepção de felicidade. O amor perfeito subsiste às contradições e confitos, o que normalmente não ocorre na vida

7Os romances nas teledramaturgias acontecem em meio à luta do bem contra o mal. Nas novelas, a justiça é entendida como punição aos vilões da história fctícia, sendo legítima a morte de quem faz mal aos outros, o que normalmente acontece no fnal de cada trama numa atitude praticada pelas vítimas da história. O conceito de justiça nas novelas distancia-se da compreensão no sentido jurídico onde os réus são punidos de acordo com a legislação vigente.

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concreta. A possibilidade de experimentar as emoções vivenciadas pelos personagens resulta numa espécie de satisfação dos telespecta-dores que tomam para si os dramas apresentados nas novelas. Con-forme Zuin,

o indivíduo, no exercício da fruição da obra de arte, acaba por experienciar uma verdadeira catarse, pois o reencontro efetivado consigo mesmo [...] de sua atividade racional livre com suas pul-sões, representa a sua reintegração no próprio gênero humano, agora não mais como coisa, mas sim como interventor, como su-jeito. Ele experimenta o gozo de poder assimilar um sentimento qualquer, como, por exemplo, o amor e o ódio (1999, p. 52).

O ideal de amor apresentado nas novelas fascina as pessoas porque permite ao telespectador assumir o lugar dos personagens, fazendo acreditar na possibilidade de experimentar tais sentimentos na vida concreta. Os romances da fcção instigam o público adoles-cente que está vivenciando intensamente tal sentimento em meio aos confitos que permeiam a afrmação de sua identidade e a fanta-sia de um relacionamento perfeito na vida adulta. Ainda que as obras de fcção não pretendam qualquer com-promisso com a realidade, as mídias acabam infuenciando compor-tamentos. A persuasão é o elemento chave dos enredos das novelas; articulando o real e o ideal as teledramaturgias acabam infuencian-do a conduta humana a partir dos interesses que regem a sociedade, divulgados sob o prisma da classe dominante que detém os meios de comunicação. Pretendendo garantir audiência, as novelas brasileiras pro-porcionam fortes emoções nos telespectadores. Ao falar do medo no suspense, Bittencourt diz:

Os meios de comunicação [...] seriam afetados caso o medo fosse extinto, pois não haveria mais a possibilidade de explorarem a elevação dos níveis de audiência por meio dos estímulos estéticos fortes proporcionados pela exibição de cenas violentas, que exer-cem sobre a afetividade humana um impacto ambíguo: ao mesmo tempo em que geram repugnância, geram também o desejo de contemplação do horror (2009, p. 25).

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O romance é o fo condutor das novelas brasileiras, incorpo-rando questões políticas, sociais, morais, ideológicas, culturais e pu-blicidade. As tramas giram em torno do bem com a tarefa de vencer o mal, por meio de disputas entre vilões e heróis. Tanto a violência quanto as afeições endossam os enredos. Em meio ao paradoxo do amor e ódio vivenciados pelos personagens, as mídias buscam sensi-bilizar e despertar a curiosidade dos telespectadores. Harmonizando as palavras, os sons e as imagens, as novelas tornam-se altamente atrativas. A etimologia da palavra novela provém do termo italiano novella que signifca relato, comunicação, notícia, novidade. A no-vela transmite uma identifcação popular com o desejo, objetivan-do a fuga da realidade para aliviar o desencanto da vida. Atinge o imaginário dos desejos mais profundos, normalmente reprimidos na vida concreta, tornando-se o escape perfeito porque não cobra nada, simplesmente quer que o público se afeiçoe com a fantasia. Os elementos estruturais das novelas compreendem a ação, o tempo, o espaço, a linguagem e a trama, assemelhando-se ao conto onde a imaginação do autor é livre e tudo se justifca, não havendo compromisso com a realidade. A ação é desenvolvida na história, os-tentando os dramas e os contos, cujo tempo é determinado pelo no-velista de acordo com o enredo desenvolvido na história e pela ade-são dos telespectadores. O espaço é vinculado estritamente ao tempo e à mensagem que a novela pretende transmitir, com enfoques nas questões sociais e culturais. Por exemplo, as novelas de época tra-duzem especifcidades socioculturais de um determinado contexto histórico como a linguagem, comportamentos, valores, crenças etc. No Brasil, assim como nos Estados Unidos, as teledramatur-gias surgiram nos anos 1950, readaptando as novelas de rádio que já eram sucesso desde os anos 1930. No fnal da década de 1960, as no-velas ganharam a “cara brasileira”, retratando realidades específcas do nosso país. Anteriormente eram importadas as novelas mexicanas e de outros países latino-americanos. Nos anos 70, as novelas con-quistaram elevados índices de audiência e o mercado publicitário. Depois dos anos 80, as teledramaturgias atingiram graus elevados de sofsticação e padrão profssional, convertendo-se produtos de exportação. A rede Globo monopolizou a indústria nacional das te-58

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lenovelas e sua hegemonia8 poucas vezes foi ameaçada. Há décadas as telenovelas têm sido classifcadas como um produto de entretenimento de pouco ou nenhum valor cultural, in-clusive de serem prejudiciais aos seus telespectadores. Vários fatores políticos e estéticos sustentam tal análise e alimentam o preconceito intelectual contra as telenovelas. Em meio às críticas, muitos escri-tores e diretores têm se engajado em qualifcar suas tramas. Numa espécie de merchandising social, várias questões têm sido colocadas, gerando discussões e refexões nas diferentes classes sociais e regiões do país. A antropóloga Heloísa Buarque de Almeida, em seu livro “Telenovela, consumo e gênero”9, diz que os telespectadores reagem criticamente aos conteúdos das novelas, principalmente em relação aos temas políticos e morais, destacadamente em questões relativas à sexualidade. Quanto à promoção de consumo feita pelo gênero, o coti-diano escolar revela que tanto os meninos quanto as meninas apro-priam-se dos modismos transmitidos pelas novelas, desde a concep-ção de beleza, os simbolismos, o modo de vestir-se e de falar.

2. O paradoxo do amor na fcção e na vida real

A selvageria do desejo e o encanto do amor se relacionam à ordem social, implicando em questões morais e éticas. Nesse senti-do, o estereótipo de corpo e a relação com a sexualidade estão dire-tamente associados às normas culturais e legais determinadas pela sociedade, interferindo no modo como os indivíduos lidam com sua afetividade. Na sociedade ocidental, por exemplo, a sexualidade é vivenciada em meio a tabus, sendo considerada pecaminosa ou ile-gítima quando não exercida de acordo com os paradigmas sociais. Isso se refete na defesa do casamento monogâmico heterossexual,

8Fazer teledramaturgia e concorrer com a Globo não é tarefa fácil. As telenovelas globais continuam sendo os programas de maior audiência da TV aberta no Brasil – principal-mente a novela das nove. Mesmo que seja considerada um “fracasso”, a novela da Globo ainda é o produto mais assistido em seu horário de exibição.

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9Disponível em: http://www.guiadasemana.com.br/em-casa/noticia/novelas-e-sua-au-diencia. Acesso em 17/03/13. Citação disponível: http://lazer.hsw.uol.com.br/telenove-las2.htm. Acesso em 03/04/13. A obra completa foi encontrada em: http://www.bibliote-cadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000237834&fd=y. Acesso em 07/04/13.

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no preconceito que gira em torno das relações homossexuais e na proibição do aborto. E tudo isso tem a ver com a relação estabelecida com o corpo humano, exercida pela coletividade, e que incide sobre o indivíduo. Essa crise comportamental é tomada nos enredos das novelas, tornando-se um dos poucos espaços que tratam dos assun-tos polêmicos dos quais as pessoas resistem em assumir uma postura contrária às determinações sociais. Os personagens da fcção assumem papéis que explicitam os desejos mais íntimos que as pessoas não assumem publicamente, mas vivenciam ou gostariam que acontecessem na prática. Apresen-tando um misto do proibido com o socialmente aceito, as novelas exploram as dicotomias existentes entre os impulsos instintivos e as interdições determinadas pela razão, ampliando a visão das diver-sas facetas que compreendem um determinado problema. O amor enaltece o ser humano e traduz as contravenções sociais, por isso torna-se fascinante nas novelas. Com o intuito de compreender o amor flosofcamente para confrontar com as narrativas da fcção, abordaremos o tema a partir de alguns enfoques centrais.

2.1 Alma gêmea: o amor é predestinação?

Cada ser humano tem sua alma gêmea, um dia irá encon-trá-la e viverá feliz para sempre ao lado da pessoa certa, sem o risco da dúvida de ter errado na escolha. O sentido escatológico do amor enquanto fnalidade última do ser humano alimenta o imaginário do senso comum e de muitos poetas na busca da realização plena na vida. É essa a ideia de amor transmitida nos romances das novelas. Quando os personagens encontram sua “cara metade” são capazes de vencer todas as adversidades da vida, os desencontros, o ciúme e a inveja dos outros. Entretanto, para atingir a perfeição do amor precisam experimentar o sofrimento, passar por um processo de pu-rifcação para receber o prêmio no fnal. A teoria da predestinação é a mais solicitada para explicar a vida romântica. Tal crença perpassa o imaginário social, pois as frustrações amorosas são vistas como um processo de transição para alcançar a felicidade suprema ao lado da pessoa certa. Na concepção de Botton, “por meio do fatalismo romântico, evitamos o pensa-60

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mento impensável de que a necessidade de amar é sempre anterior ao nosso amor por qualquer pessoa em particular” (1997, p.16). Afnal, o amor é um sentimento inato ou amamos porque nos ensinaram a amar? Se a paixão acontece de forma tão rápida, é talvez porque o desejo de amar precedeu o amado, ou seja, a neces-sidade inventou sua solução. O sentido do amor é algo subjetivo, dinamizado em meio às manifestações místicas que cada pessoa car-rega consigo. Por outro lado, cada vivência amorosa é uma experiên-cia única; moldado pela participação de ambos no relacionamento, o amor afeta o modo de ser de cada um. De acordo com Botton, “o amor reinventa nossas necessidades com velocidade e especifcidade únicas” (1997, p. 21). Quando acontece um amor à primeira vista temos a sensa-ção de que já conhecíamos esta pessoa. As coincidências e as circuns-tâncias levam a crer que o encontro foi algo inédito, com mínimas chances de ter acontecido. Tudo parece encaixar; a pessoa certa, o lu-gar certo e o momento certo. O desconhecido parece ser o refexo de si próprio. Assim que uma pessoa começa a procurar sinais de atra-ção mútua, qualquer coisa que o amado diz ou faz pode ser levado a signifcar tudo. Muito antes de termos a chance de nos familiarizar-mos com a pessoa amada, podemos estar repletos da curiosa sensa-ção de que já a conhecíamos. É como se estivéssemos nos encontra-do em algum lugar antes, numa vida passada ou em nossos sonhos. O trivial adquire sentido único e supremo, fazendo com que o inexplicável atinja o mundo das crenças para encontrar uma teoria plausível e capaz de esclarecer os mistérios da vida. Platão explicou o sentimento de familiaridade com a pessoa amada através do mito do Andrógino, declarando ser a “outra metade” há muito perdida, à qual nosso corpo estava originalmente ligado, cuja unidade foi rom-pida por desobediência aos deuses. O encantamento é a primeira fase do amor, enquanto a atra-ção é apenas uma possibilidade de amar; o amor é fundamentado na maturidade dos sentimentos entre duas pessoas que se conhecem em profundidade. A convivência gera confitos e modifca os sentimen-tos, causando frustrações e situações difíceis de administrar. As crises conjugais mostram a realidade: confrmam as convicções de que o amor tudo suporta ou fazem acreditar que estamos ao lado da pes-

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soa errada, ou ainda, que o destino quis assim. Sempre que algo de calamitoso nos acontece, somos levados a olhar além das explicações causais cotidianas para compreender por que fomos escolhidos para receber punição tão terrível e intolerável. Se o amor é predestinação ou escolha, é difícil de explicar. O amor acontece quando menos esperamos e nos impõe a responsabi-lidade de decidir os rumos da própria existência. Uma escolha que compromete também a vida do outro, permeada por momentos de alegrias e dissabores. Pouco importa se o amor sempre existiu ou foi inventado. O amor é bom porque nos livra da frieza da racionalidade.

2.2 O amor é desrazão e sabedoria

A sabedoria pode problematizar o amor tanto quanto o amor pode problematizar a sabedoria. As novelas endossam a tensão dialo-gal permanente que envolve o antagonismo e a complementaridade existente entre amor e sabedoria, tornando-se problema flosófco. Assim como o amor, o entendimento do sentido para a própria vida pode ser pensado como algo exterior, mas compreendido somente na vida concreta de cada pessoa. As ciências humanas tendem a tratar os sujeitos como ob-jetos abstratos, desconsiderando as idiossincrasias e os impulsos emocionais que determinam a vida humana. O amor, ao qual o ser humano está sujeito, é algo que se vive subjetivamente e também se está submisso, por isso o amor possui estreita relação com a poesia e a arte como forma de expressão deste sentimento. O gênero humano é defnido como o conjunto de seres racionais e sábios, mas isso não isenta de ser afetado pelas emoções. Conforme Morin, “ser homo im-plica ser igualmente demens: em manifestar uma afetividade extre-ma” (2002, p. 7), signifcando ser tênue a fronteira entre a virtude e a loucura. O ser humano é fonte de amor e de ódio, de humanização e de barbárie, de razão e de desrazão. Das desordens da afetividade irrompe o imaginário, a invenção, a criação, o amor e a poesia, sendo que o pensamento racional, crítico, complexo e a argumentação sur-gem da necessidade de controlar o homo demens. A sabedoria requer prudência e temperança para compreender as contradições da vida humana, sendo o amor o ápice supremo da sabedoria e da loucura.62

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A espécie humana é condenada a viver o paradoxo da razão e da demência. Igualmente, a complexidade que envolve a vida coloca o ser humano num mundo de aparências, pois a realidade mais pro-funda escapa ao tempo, ao espaço, aos sentidos e ao nosso entendi-mento. Conforme Morin, “nosso mundo da separação, da dispersão, da fnitude signifca também o mundo da atração, do reencontro, da exaltação. E estamos plenamente imersos neste mundo que é de nossos sofrimentos, felicidades e amores” (2002, p.8). O amor não pode ser explicado por princípios lógicos; ape-nas ama-se. Tornar vivo o encantamento do amor é indispensável para dar sentido à própria existência, considerando que o amor mo-biliza rumo aos objetivos propostos. O romantismo serve para aliviar as decepções e reinventar o amor, mas não deve encobrir a realidade humana a ponto de levar as pessoas a viver num mundo de ilusões. O amor possui diferentes formas de expressões que precisam ser res-peitadas numa sociedade plural. De acordo com Tiburi,

quando inventamos o padrão do amor romântico e acreditamos na sua ilusão sem poder realizá-la, estragamos o amor, pois o ro-mantismo é apenas uma das formas do amor e pode custar muito caro o preço de sua contradição: a infelicidade pelo desvio do padrão. Se o amor é um padrão, uma gaveta na qual devemos nos encaixar, ele produz infelicidade e nega seu propósito original e, por isso, já não é amor, mas degeneração do amor (2005, p. 13).

A vivência do amor é permeada de desafos porque envolve dois seres distintos, com maneiras próprias de pensar e agir, muitas vezes incompatíveis. Outro aspecto a considerar são as mudanças de comportamento que o ser humano adquire ao longo da vida, no jeito de ser e na visão de mundo. Por isso o amor precisa ser reinven-tado constantemente para que a relação perdure, fazendo sobreviver aquele sentimento que se transforma em projeto de vida, através do erotismo que ultrapassa os limites do desejo e dá sentido ao amor para além dos limites do corpo. Por outro lado, a sociedade estabele-ce estereótipos de amor que não condizem com a realidade concreta, levando a uma concepção cética em relação ao amor ou restringindo a conceitos utópicos. No entendimento de Botton, “em nossos mo-mentos mais idealistas, imaginamos o amor romântico como sendo

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próximo do amor cristão, uma emoção universal [...] um amor que não tem condições, que não traça limites” (1997, p. 80). O absurdo do amor consiste na incompatibilidade entre o ideal de perfeição e a prática que acontece nos indivíduos que ma-nifestam seus desejos por meio do próprio corpo. De acordo com os alunos que participaram das ofcinas do PIBID em flosofa nas escolas, o amor é um sentimento bom que nos faz ter afeto por de-terminada pessoa, ainda que não tenhamos argumentos sufcientes para explicar nossas inclinações. Não há como falar em amor sem considerar a dimensão da corporeidade, todos os requisitos físi-cos e sentimentais que compreendem o jeito de ser de cada pes-soa, bem como sua orientação sexual. Para Botton (1997, p. 44), o amor é marcado por uma extrema idiossincrasia; o amor român-tico fala a linguagem de um corpo específco com sua simbologia. O desejo do amor move a descobrir o outro, a encontrar a beleza mais sublime escondida em cada ser que pode começar pela atração aos aspectos físicos e permanece na contemplação de tudo o que a outra pessoa passa a representar. O encantamento eleva o sen-timento ao mundo das ideias, uma espécie de reminiscência de re-cordar o que já estava previamente em nós, tornando difícil explicar se a beleza faz nascer o amor ou se é o amor que faz nascer a beleza. Embora a humanidade elabore suas teorias com aspectos comuns em todas as sociedades, o amor é interpretado pela cultura, não havendo uma explicação em si. O êxtase provocado pelo amor leva a enxergar somente as qualidades, causando frustrações quando nos deparamos com os de-feitos do outro. Do mesmo modo que o sedento tem alucinações com água, a necessidade de amor provoca alucinações com o homem e ou a mulher ideal. A insanidade do amor está na recusa de reconhe-cer a normalidade inerente ao amado. Como somente o corpo está exposto aos olhos, há esperança do amante apaixonado pela fdeli-dade da alma ao seu invólucro, a esperança de que o corpo possua a alma adequada. Ninguém duvida da legitimidade do amor que sen-te. O difícil é crer na possibilidade de que a pessoa amada seja apenas uma fantasia interior, com pouca conexão com qualquer realidade objetiva. Dizem que os amantes não podem permanecer flósofos por muito tempo porque o amor é o espaço da crença, em oposição 64

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ao impulso flosófco, que é o de duvidar e inquirir. A assertiva apre-senta um problema flosófco: se a racionalidade é incompatível com o amor, como explicar o amor flosofcamente? A racionalidade da flosofa não a fez esquecer o amor, de falar da essência humana? O sentimento do amor é desejado ao mesmo tempo em que as pessoas preferem não estar movidas por ele. O amor é alegria e so-frimento; a alegria de ter e o sofrimento de não tê-lo por inteiro. No entanto, as pessoas preferem o risco de estar erradas e apaixonadas a estar em dúvida e sem amor. Por outro lado, a vida exige um pouco de fantasia para que fque mais bela, leve a atraente. Uma dose de romantismo e poesia é indispensável para nos livrar dos paradigmas calculistas que tiram o encanto existencial quando levados à radica-lidade. As ilusões fazem mal quando não podem ser sustentadas e alienam ao invés de proporcionar a utopia que impulsiona rumo à realização humana. O amor é um sentimento que está amplamente ligado à constituição da identidade porque envolve todo o ser, sendo que a formação da personalidade de cada indivíduo é mensurada pelo amor recebido desde o seu nascimento. Uma criança amada tende a comportar-se de maneira diferenciada em relação àquela que vive num ambiente conturbado e hostil, reproduzindo em seu cotidiano o tratamento que recebe em casa. Ninguém fca imune à experiência amorosa, pois em cada relacionamento adquirimos um pouco dos outros e os outros levam um pouco de nós, ainda que haja separação. Na busca do futuro perfeito, a realidade profunda do amor escapa à inteligência e à análise da razão porque as motivações do amor provocam sensações místicas que impedem de enxergar o pre-sente real. De acordo com Botton “amar alguém implica uma grande preconcepção, uma decisão tomada de que alguém é um gênio ou a pessoa mais bonita da terra baseados em quase nada, uma abor-dagem muito distante da postura neutra que a compreensão real poderia pedir” (1997, p. 135). Muitos pensadores procuraram conceituar o amor na tradi-ção flosófca. De acordo com Philippe, em Pitágoras a vida perfeita é a vida contemplativa, a ascese de purifcação da alma e do corpo (1999, p. 16-18). O amor na flosofa grega é o amor contemplativo, simbolizado pela união e o grande desejo que torna o flósofo capaz

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de receber a revelação, a verdade. Somente o ser humano que ama progride na inteligência. O amor desperta a inteligência e permite ir até o fm dos esforços. Para Empédocles, o universo é governado pelo amor e pelo ódio. O amor unifca e ordena, enquanto o ódio é uma força de divisão, oposição e desagregação. Em Platão, o eros é um amor fundamental, signifcação última, que torna o ser humano capaz de ultrapassar a si próprio, de contemplar. Epicuro desenvolve a moral do prazer, mas não o prazer sensível e sensual. O prazer supremo é o da contemplação; o prazer mais perfeito, mais consciente, mais lím-pido. O prazer é o ânimo do amor, que faz ir ao encontro do outro. O amor não se opõe nem se identifca com o prazer; é fonte de prazer. O desvelamento do amor é reconhecido em sua originali-dade. Em Hegel a ideia de amor não é o amor, pois a ideia é algo abstrato e o amor é concreto. O amor ultrapassa os limites da razão e está associado à liberdade, à fdelidade, ao impulso do desejo, ao prazer e ao instinto, sendo algo que nos une ao outro e envolve toda a pessoa que ama. É um sentimento presente no corpo e na alma, uma sensibilidade que eleva ao amor espiritual e permite encontrar o outro. O amor não se opõe à razão, mas está além. A razão não con-segue perceber verdadeiramente o que é o amor em si mesmo. Por isso a inteligência deve estar a serviço do amor para que ele se torne mais lúcido. Amar é sair de si mesmo. É no amor que ultrapassamos a consciência de que temos autonomia. É preciso ter autonomia para amar, mas se a autonomia fcar em primeiro plano pode impossibi-litar uma pessoa de amar. Em meio ao paradoxo da dependência do amor e a busca da autonomia, Philippe nos adverte:

Entre nossa inteligência e nossa capacidade de amar, deve haver uma espécie de cooperação sempre mais íntima: da mesma ma-neira que nossa inteligência nos desperta ao amor, assim o amor conduz a nossa inteligência a ir mais longe (1999, p. 32),

De acordo com o mito de Eros, o amor ultrapassa todas as convenções e foi concebido de maneira não consentida. Em sua nar-rativa, Platão fala que na festa do nascimento da deusa Afrodite, a Pobreza que nada tinha e mendigava junto à porta os sobejos da mesa, aproveita o momento oportuno para conceber um flho de

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Engenho, que tinha a inteligência de um gênio e representava a su-perabundância, enquanto este dormia no jardim depois de consumir vinho. O amor-eros está situado entre os dois extremos, mas identif-ca-se mais com sua mãe e signifca falta, a espera de um sentido para a vida; é desejo jamais satisfeito e dá consciência de nossas carências. Por outro lado, o amor herda de seu pai a aspiração pelo belo e pelo bom; é vigoroso, ardente e flósofo. A teoria do amor jamais chegará a uma síntese perfeita por-que elementos contrários a constituem. Por isso a flosofa é amor pela sabedoria, é o desejo de suprir a sua falta. O amor é mediação entre a ignorância e o saber. O amor é, simultaneamente, muito forte e muito frágil. Amar é aceitar ser dependente.

2.3 O amor e suas interfaces: a paixão e a liberdade

O amor é desejo. É inevitável. Resolvendo nossa necessidade de amar, nem sempre poderemos determinar nossa necessidade de de-sejar. Somente a sabedoria nos ensina que os primeiros impulsos nem sempre são verdadeiros. O amor está além das ideias e não pode ser explicado através do logos. É mediação, união dos opostos da pobreza e da inteligência; sendo despojado, vive à procura do belo e do bom. A idealização romântica é a fase do amor imaturo. Quando maduro é marcado pela consciência de que o bem e o mal existem dentro de cada pessoa; é pacífco e recíproco. Nas palavras de Phi-lippe, “Platão é o flósofo do eros, do amor em sua originalidade única, instintiva e profundamente humana que possui exigências so-bre-humanas” (1999, p. 13). O amor eros é um delírio divino. Da reminiscência surge o sentimento íntimo do apaixonado. Fixando os olhos do nous sobre o Belo, a alma pode amar de maneira desinteres-sada. O amor é o único remédio para nossa queda porque permite reencontrar a vida perfeita. O amor flia ou amizade, desabrocha na reciprocidade e não se distingue do amor paixão. Em Platão, o amor aparece pelo aspecto da necessidade (procriação) e gratuidade. Se mostra como uma espé-cie de instinto profundo, enraizado no coração do homem e da mu-lher, onde um e outro quer encontrar sua unidade perdida. O amor

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em si não existe; é um conceito abstrato e compreendido pela expe-riência interna enquanto vínculo que nos une vitalmente a alguém.

É verdadeiro que se toma consciência do amor que se tem por alguém, quando se está privado da sua presença pela primeira vez: sua ausência toma-se intolerável. A consciência do amor se realiza a partir de um amor não satisfeito, de um desejo. Mas a consci-ência do amor não é o amor: eis talvez a confusão mais profunda desse ponto de partida da pesquisa flosófca sobre o amor (PHI-LIPPE, 1999, p. 39).

A paixão é apetite, inclinação, tendência e orientação que atrai. Embora o pensamento tomista esteja embasado por princípios teológicos, esta conceituação se aplica também na compreensão do amor erótico, que é o nosso objeto de estudo. A paixão é um apeti-te natural e sensível. Entretanto, não existe paixão em estado puro porque os seres humanos são racionais, acrescentam sentido aos seus impulsos e são dotados de liberdade. A paixão é o ponto de partida para o amor, é um amor sensível. A paixão é desejo que impulsiona o sentimento de posse, confrontando com a liberdade do outro. O indivíduo apaixonado está sempre angustiado porque o amor que nos possui não o temos por inteiro. O sentimento do amor não nos dá garantias; convive-mos com a liberdade do outro, diante da necessidade de escolhas e do risco da rejeição ao confessar nosso desejo. Dentre as ironias do amor está o fato de que é mais fácil seduzir com segurança aqueles por quem estamos menos atraídos, tendo presente que a seriedade do desejo adia os jogos de indiferença necessários para uma ação calculada. A atração provoca sensação de inferioridade e impotência, comparada com a perfeição que atribuímos à pessoa amada. A tragédia do amor é saber que ele não escapa às dimensões temporais, pois o ser humano é capaz de deixar de amar ou se tornar indiferente. Quando um relacionamento acaba, o amor é substituí-do pelo ódio, ressentimento ou sentimento de culpa. Se perder um amor é experimentar a morte, o terrorismo romântico é a certeza de que a morte do amor pode não ser evitada. Não se pode culpar um amante por amar ou não amar, pois é uma questão além da sua escolha e de sua responsabilidade.68

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2.4 Amor e felicidade

O amor é a confrmação do eu. No entanto, o perigo da con-frmação do “eu” numa relação consiste no estabelecimento de uma dependência absoluta, em designar a outra pessoa os rumos de nos-sa existência e o compromisso de defnir nossa identidade, quando toda infelicidade provém da incapacidade de conviver com a solidão de um quarto. A intimidade não destrói o confito eu/outro, embora a acomodação resultante da convivência aproxime a linguagem e os costumes que passam a ser apropriados por ambos na relação. Con-forme Botton, “talvez seja verdade que não existimos de fato até que haja alguém para nos ver existindo” (1997, p. 127). Se o eu não é uma estrutura adequada, sua fuidez exige os contornos fornecidos por outros para dar sentido à nossa existência. Diante dessa acepção, amor e interesse são equivalentes, signifcando que amar alguém im-plica profundo interesse por essa pessoa. No imaginário popular, amar é sinônimo de felicidade. O romantismo tem suas verdades, mas apelando para um enfoque da realidade. Se o amor é um sentimento bom, prazeroso e causa eu-foria, por outro lado não erradica o sentimento de incompletude e, portanto, não garante felicidade plena. O amor provoca emoções in-tensas e confituosas, as quais o ser humano não domina por inteiro, gerando insegurança e reações imprevisíveis. Tensionando o desejo e o medo da felicidade, este sentimento leva a adiar planos, encarar como perturbadora a proximidade do outro e a incapacidade de vi-ver o presente por receio de ter chegado o que se desejou por toda a vida, pois a presença do outro interpela, impõe responsabilidade. De acordo com Botton, “é muito mais fácil aceitar a felicidade quando ela surge por meio de coisas que se pode controlar, que foram adqui-ridas após muito esforço e razão” (1997, p. 160). O despertar do amor vem carregado de simbolismos subje-tivos, culturais e em torno da situação que envolve o encontro de duas pessoas. Parte do encantamento de ambos pela novidade e o relacionamento vai tomando forma com o decorrer do tempo, no processo de reconhecimento do outro enquanto membro integrante da própria existência. A maturidade do amor requer aceitação recí-proca, coloca frente ao anseio de que o amante nos admire despidos

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de nossas virtudes externas e passe a apreciar a essência de nosso ser sem realizações. O amor é felicidade quando for um laço capaz de unir. Caso contrário transforma-se em ódio. O flósofo Philippe (1999, p. 38-39) nos diz que para Sócrates o amor verdadeiro volta-se para o belo e para o bem e é um desejo jamais satisfeito. O amor é um vínculo que une duas pessoas e as leva a algo que não possuem. Não sendo deus, o amor é intermediário entre o belo e o feio, entre o bem e o mal. O amor eros é intermediário entre o humano e o divino, um elo que une o eterno e o corruptível. O amor é relação, desejo e depen-dência. Sendo desejo de imortalidade, está ligado à fecundidade, ao anseio de eternizar o que somos, sentimos e a encontrar a felicidade por meio dos nossos projetos de vida que precisam ser constante-mente reinventados.

3. As novelas nas aulas de flosofa

A experiência neste projeto de pesquisa mostrou que as no-velas são assimiladas no cotidiano das famílias brasileiras mais pelo seu discurso que pelo seu conteúdo. As pessoas relatam as cenas, mas poucas refetem acerca de seus teores. Em contrapartida, os estudos realizados até o momento sinalizaram que o ponto de partida para a investigação flosófca, com públicos adolescentes, deve estar de acordo com assuntos de domínio popular para fomentar debates, pois estudantes da educação básica ainda não possuem alto nível de desenvolvimento intelectual para interpretar textos flosófcos com-plexos e de difícil compreensão. A abstração dos clássicos tenderia à aversão das classes discentes ao estudo de flosofa. Por outro lado, a peculiaridade da flosofa de questionar seus próprios pressupostos torna-se um campo fértil para fomentar o espírito investigativo nos adolescentes que são questionadores por natureza. O conceito de flosofa carrega em si uma diversidade de compreensões que difcultam o estabelecimento de metodologias adequadas à educação formal. Por um lado é vista como concepção de mundo individual e de grupos, sendo comum ouvir expressões como “esta é a minha flosofa de vida ou a flosofa da nossa insti-tuição ou empresa”, e por outro enquanto atividade intelectual es-70

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pecializada. Elli Benincá, em seu artigo “A formação do professor de flosofa” (FÁVERO, RAUBER, KOHAN, 2002, p. 276-284), parte de uma distinção feita por Gramsci entre a flosofa espontânea e a flosofa erudita. A flosofa espontânea se estrutura em concepção de mundo e torna-se orientativa do agir humano, relacionando-se à consciência prática. A flosofa erudita é uma atividade intelectual especializada, desenvolvida por flósofos profssionais sistemáticos. A distinção entre a flosofa espontânea e a flosofa erudita, quando conduzida à radicalidade, gera dicotomia entre a teoria e a prática, o que pode levar à negação da própria flosofa. Por seu caráter prático, a flosofa espontânea baseia-se no senso comum; é um conhecimento transmitido e altamente dogmá-tico. Sendo assimilada nos cotidianos culturais, torna-se aporte para atingir níveis mais elevados de erudição, enquanto os conhecimen-tos teóricos da flosofa técnica difcultam a aprendizagem nos meios escolares, levando à rejeição e falta de legitimidade dos conteúdos numa proposta de aulas expositivas. A abordagem dos conteúdos deve levar em conta que o êxito na escolha da metodologia a ser adotada está relacionado com a capacidade de cada educador ou educadora em despertar o desejo de aprender e o sentimento de pertença do es-tudante nos debates. Normalmente as turmas se afeiçoam mais com professores e professoras que desenvolvem aulas descontraídas e com abertura para o diálogo, onde os estudantes são convidados a partici-par dos processos de investigação e de construção do conhecimento. A metodologia que propomos aproxima o conhecimento prévio dos alunos com a compreensão dos grandes sistemas flosóf-cos, percorrendo o caminho da doxa à episteme. Se nos limitarmos às opiniões dos alunos aos assuntos abordados, não avançaremos para a aquisição de conhecimentos flosófcos porque, pelo caráter dogmá-tico do senso comum, os alunos tendem a fazer valer os seus pontos de vista. A tarefa docente, nesse contexto, é a de evidenciar as fragi-lidades de suas opiniões e confrontar os problemas contemporâneos com as teorias flosófcas já desenvolvidas para testar sua validade e atualizar os conceitos. A linguagem adequada também é fundamental para que haja diálogo entre os pares. O uso das novelas nas aulas de floso-fa é interessante porque os problemas abordados tendem a ser de

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conhecimento comum e as pessoas formulam opiniões em relação às tramas da fcção. Vale salientar que as novelas mexem em feridas sociais que são tratadas com preconceito, cujos problemas podem ser abordados nas aulas de flosofa de modo indireto. Mesclando a fantasia e a realidade, a fcção auxilia na refexão dos confitos viven-ciados pelos estudantes, principalmente nos temas relacionados aos valores, sentimentos e concepções de mundo. A montagem de imagens, com referência direta à nação bra-sileira, emoldura a história de amor e ódio que culmina no suspense (HAMBURGER, 2011, p. 16). Centrada no romance, a teledra-maturgia busca garantir audiência em meio aos confitos amorosos e nas contradições que permeiam os relacionamentos, pois o amor envolve uma complexidade que se tece em conjunto com fos extre-mamente diversos e de diferentes origens. O romance é a literatura constitutiva do amor que o torna visível, sensível e ativo e, simulta-neamente, exprime a verdade, a ilusão e a mentira que podem cir-cundar o amor, envolvendo componentes reais, mitológicos e ima-ginários que representam a realidade humana. O amor enraíza-se na corporeidade pela atração sexual, precede a palavra e procede na linguagem, relacionando o profano com o sagrado (MORIN, 2002, p. 16-18). Na cultura ocidental, o tema do amor expressa a tensão existente entre a ideia de perfeição da alma e impureza da carnalida-de. Envolvendo a corporalidade em sua concepção ampla, incluindo o corpo, a sensibilidade, a paixão e a sexualidade, a relação amorosa é desprezada pelo dualismo antropológico. A alma perfeita, que par-ticipa do Uno, cai num corpo que é mau, por ser material. O corpo é a participação no Princípio perverso; o querer, o amor, o desejo se fxa na pluralidade e impede o retorno à Unidade do ser (DUSSEL, 2000, p. 34-35). O face a face amoroso é uma experiência mística e extática que transgride normas, regras e interdições. O amor se defne como princípio de degradação, desintegração e regeneração universais, tornando-se problema central das tramas abordadas nas novelas. As pulsões de vida e morte que permeiam o sentimento do amor são temas propícios para as aulas de flosofa porque sensibilizam para a discussão de questões que envolvem subjetividades e a vida social. A partir de episódios das novelas podemos abordar temas baseados nos 72

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principais eixos da tradição flosófca como mitologia, ontologia, an-tropologia, ética e linguagem, começando pela indagação inicial que motivou toda a flosofa (o que é o ser humano?), seguida de outras questões propostas nos currículos escolares. Os episódios apresentados nas novelas brasileiras oferecem aportes de investigação para as aulas de flosofa e se tornam ferra-mentas didáticas porque combinam emoções, razão e confitos éti-cos. Supondo que os sentimentos geram inquietações, as cenas das novelas apresentam subsídios mobilizadores da consciência porque mexem com questões confitivas do cotidiano e podem ser transfor-madas em problemas flosófcos. Os enfoques dos enredos da fcção, no desenrolar de suas histórias, podem ser apropriados para debates nas aulas de flosofa como temas relacionados à mitologia, que apa-recem com frequência nas novelas, ao ceticismo e às questões éticas e morais. O fazer flosófco pode ser motivado em torno de assuntos polêmicos ou na conduta dos personagens que demonstram pos-turas confusas em relação às ações boas ou más. Os problemas da lógica podem ser extraídos das novelas nos chavões utilizados pe-los personagens, nas atitudes ingênuas ou nos cálculos usados para praticar violência ou manifestações de amor. No campo da flosofa da linguagem, as novelas também resgatam expressões coloquiais ou adicionam novos vocábulos. Por fm, muitos temas flosófcos po-dem ser extraídos das novelas. Basta um pouco de criatividade.

4. Discussão dos resultados: as intervenções nas escolas

O sistema social vigente trata como ignorância o ato de per-guntar, tendo as respostas prontas como referencial de inteligência. A flosofa, no entanto, vem para desacomodar e questionar, o que gera desconforto para muitos professores que conduzem suas aulas baseados nos moldes tradicionais. As experiências obtidas junto às escolas revelaram o quanto a inquietação dos adolescentes permane-ce velada. A metodologia escolhida para as intervenções do PIBID foi acolhida com expectativa pelos estudantes que avaliaram ter sido um espaço único de participar do processo refexivo, oportunizando a

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livre expressão e a construção de novos conceitos com auxílio das teorias flosófcas. O diálogo sensibilizou os alunos para a necessi-dade da observação, dos questionamentos e da investigação no fazer flosófco, tornando-os mais autônomos na defesa de pontos de vista e no desenvolver da argumentação. Depois desta experiência as pro-fessoras afrmaram que os alunos não seriam mais os mesmos. De acordo com as professoras Margarete e Vera, os alunos não aceitam mais a condição de meros ouvintes em sala de aula. Após cada intervenção, as bolsistas Eliane e Ana solicitaram que os estudantes registrassem, por escrito, suas impressões. Den-tre as respostas, destacamos: a importância de falar sobre os senti-mentos, que a interação entre alunos e professoras foi essencial, que a aula possibilitou falar sobre o que os alunos pensam e ouvir as opiniões dos outros, bem como conhecer outras formas de pensar. Vários relatos revelaram a importância do envolvimento dos alunos nas discussões da aula, atuando como sujeitos na construção do co-nhecimento. A aula provocou novos questionamentos, abrindo pos-sibilidades de atualizar os conceitos e relacionar o conceito primário (amor) com conceitos secundários (paixão, desejo, etc.). Na concepção de um aluno, “essa aula foi de longe a melhor do ano até agora; levantamos vários questionamentos, perguntas fo-ram feitas e também respondidas. Mostramos que não precisa ser al-guém de idade para entender e ter interesse sobre assuntos diversos”. Outra aluna relatou que “nesse dia nós passamos a olhar com outros olhos essa questão do amor; começamos a ter outros conceitos por-que falar sobre amor é muito bom e não precisamos ter medo de admitir isso, pois todo ser humano ama mesmo que seja em silên-cio”. Um terceiro aluno escreveu que a aula ampliou visões sobre o assunto e partiu da “ideia maravilhosa de juntar duas coisas que o ser humano não pode fcar sem: a flosofa e o amor”. Conforme a professora Margarete, as bolsistas criaram iden-tidade com a turma, ainda que no pouco tempo de interação. No relatório, pelo menos dois alunos chamaram as bolsistas de “meni-nas”, mesmo que ambas tenham mais de quarenta anos de idade, levando a concluir que foi estabelecido o vínculo de reciprocidade entre as acadêmicas e a turma. O texto elaborado pela Ana sugeriu que a flosofa não é algo distante, mas que se uma acadêmica foi 74

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capaz de escrever um texto para refetir em aula, os alunos também são capazes de mostrar o que sabem. Enfm, a experiência motivou os alunos a produzir textos. Os resultados da aplicação do plano de aula foram satisfa-tórios, apesar do escasso tempo, aliado com o estranhamento en-tre bolsistas e estudantes, tenha difcultado o processo refexivo em termos de profundidade e sistematização, pois em uma aula não é possível criar um ambiente favorável para dialogar e explorar as am-biguidades das respostas. Mesmo assim, o retorno dos alunos foi signifcativo pela repercussão da atividade do PIBID nas escolas. De acordo com relatos das professoras supervisoras Margarete e Vera, os alunos de outras turmas pediram a aplicação deste plano de aula e as intervenções do PIBID despertaram o interesse e a curiosidade dos professores de outras áreas. Uma professora de literatura pediu au-torização para utilizar o texto elaborado pela Ana em sua disciplina. A professora Vera comentou, em conversa informal, que percebeu maior rendimento nas aulas de flosofa quando substituiu sua preo-cupação com o ensino de conteúdos pelo diálogo acerca dos proble-mas flosófcos. No balanço fnal das aulas concluiu-se que os debates fuí-ram, embora não tenham envolvido todos os membros das turmas. Os alunos demonstraram interesse e inquietações sobre o tema pro-posto. Também foi observado que alguns alunos não falaram devi-do à própria timidez e não expressaram suas opiniões por receio da reação da turma. Um aluno específco, repetente, chamou muito a nossa atenção. O próprio professor DDG comentou que é um aluno bastante complicado no trato com os professores, mas demonstrou interesse pelo assunto e foi quem mais participou da aula. O aluno afrmou que esta aula fez parte de seu mundo, falando a mesma lin-guagem dos estudantes. Esta experiência nos fez compreender que muitos alunos rendem mais quando podem manifestar suas opini-ões, interagir com os colegas e professores. Que este tipo de inter-venção feita pelo PIBID aguça a curiosidade e o debate, possibilitan-do a partilha de saberes e a construção coletiva de conhecimentos. No fnal das aulas foram realizadas avaliações quanto ao mé-todo apresentado. Os estudantes disseram que a aula possibilitou resultados satisfatórios e que a metodologia adotada foi interessante,

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pois ao conversar sobre o tema proposto a aula tornou-se mais leve, distanciando-se das aulas maçantes que normalmente acontecem. O assunto curioso (ou não tratado anteriormente a partir desta aborda-gem) proporcionou aulas interativas e instigantes. A maneira como foi abordado o assunto, diz um aluno: “torna as aulas menos monó-tonas e oportuniza expor nossas opiniões”.

Considerações fnais A interferência das telenovelas no cotidiano dos indivíduos tem se apresentado como fonte de observação, estudos, discussões e tais ações ocorrem tanto em nossa sociedade como em outras. É por se apresentar com tanta ênfase na vida das pessoas que as te-lenovelas tornaram-se para muitos foco de admiração, discussões e polêmicas. Shiavo (2005), reportando-se a Maria Tereza Monteiro, diz que “assistir novelas constitui-se em um hábito extremamente valorizado pelo público feminino [...] sobretudo por provocar uma ruptura em seu cotidiano atribulado e quase sempre desprovido de outras alternativas de lazer”. Entretanto, os resultados desta pesquisa comprovaram que as novelas despertam o interesse da população em geral, sem mencionar as mulheres. Num debate com alunos do ensino médio sobre o poder de infuência das novelas, um aluno disse que os homens também estão preocupados em ter um corpo atlético como o de galã de novela. Na sequência falou que os ado-lescentes são facilmente induzidos sem ao menos perceber que isto está acontecendo. Na aplicação do questionário às famílias, um pai manifestou que, em sua opinião, as novelas exercem infuência ne-gativa sobre os adolescentes e revelou que encontra difculdades em administrar a educação de suas duas flhas adolescentes num mundo demarcado pela comunicação, mas carente de diálogo. A evidente crise na educação comprova que a escola não está preparada para dialogar com os confitos sociais devido à sua complexidade, bem como não compete às instituições educacionais resolver questões que são de responsabilidade das famílias, embora possa haver parcerias nesse processo. A flosofa entra no cenário es-colar como esperança de dar respostas a esta crise existencial, geran-do uma série de confusões sobre o papel a ser exercido pelo professor 76

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de flosofa. Com base nos estudos realizados até o momento foi possível compreender que é preciso resgatar o sentido originário da flosofa de provocar refexões e recriar conceitos a partir de proble-mas que partem do universo cultural dos estudantes. Fazendo parte do cotidiano das pessoas, as novelas oferecem subsídios para refexões relacionadas à sua estrutura e sobre os temas específcos que compreendem as tramas. Há um pressuposto didáti-co na fcção de apresentar os problemas a partir da compreensão do senso comum, de modo semelhante aos confitos vivenciados pelas pessoas, facilitando a prática de motivar as classes estudantis a inda-gar sobre a consistência dos conteúdos, a linguagem adotada, a con-tribuição das novelas para a elevação ou não do nível cultural, entre outros assuntos. Por outro lado, a teledramaturgia aborda problemas sociais a partir de temas específcos que são tomados pela flosofa, como o tema do amor que instigou memoráveis pensadores e conti-nua a inquietar os públicos adolescentes. No decorrer desta pesquisa foram constatados dois desafos fundamentais relacionados à didática voltada ao ensino de flosofa: a escolha de uma metodologia capaz de motivar o envolvimento dos estudantes nos debates e a adoção de uma linguagem acessível para que os adolescentes possam apropriar-se das discussões. Nesse con-texto, a utilização de cenas das novelas pode ser um aporte para a re-fexão de grandes temas da flosofa, partindo do material não flosó-fco que se torna atraente porque mexe com o lúdico e o imaginário. A aproximação do abstrato com a realidade permite compreender a complexidade que envolve os conceitos, as ambiguidades implícitas e suas inter-relações. As refexões acerca das novelas atentam para o desenvolvi-mento da análise crítica das questões cotidianas que interessam ao pensamento flosófco, possibilitando o processo de vivifcação, além de fornecer subsídios para a investigação flosófca. Sabendo-se que a telenovela é formadora de opinião e que os telespectadores con-fam e acreditam naquilo que é apresentado nas tramas, o processo investigativo do trivial contribui no desenvolvimento da capacidade de analisar e questionar o que está sendo posto como verdadeiro. Ao adquirir autonomia de pensamento, os estudantes podem tirar pro-veito dos temas polêmicos para pensar qual o papel que a novela vem

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desempenhando em suas vidas, ou seja, a experiência refexiva sobre os temas mostrados nas telenovelas contribuirá no desenvolvimento da visão flosófca em relação às questões cotidianas. Sem a pretensão de afrmar ideologias, as aulas de flosofa visam desenvolver a autonomia do pensamento crítico e refexivo referente aos problemas cotidianos, fator indispensável para analisar desde as questões mais simples às mais complexas que compreendem as contradições inerentes à vida humana. Quando os problemas f-losófcos são extraídos do universo cultural dos estudantes, maiores serão as chances de êxito na investigação e conceituação. Com base nas entrevistas realizadas com estudantes do ensino médio foi cons-tatado que todas as famílias assistem às novelas dos canais abertos de televisão, especialmente da rede Globo, e se envolvem com os assuntos abordados, embora não refitam acerca dos seus conteúdos. Sendo assim, as teledramaturgias oferecem subsídios interessantes para o fazer flosófco, tomando por base tanto os temas específcos quanto a própria estrutura das novelas para desvendar as ambiguida-des implícitas nos conceitos apresentados e na intencionalidade que esta forma de entretenimento incute na população, como a proposi-ção de valores e novos paradigmas éticos. Durante as intervenções do PIBID os estudantes foram re-ceptivos ao tema, à metodologia de trabalho e criticaram as aulas expositivas que inviabilizam o exercício de desenvolver habilidades de pensamento. A cena da novela possibilitou tratar indiretamente o tema do amor, que causa certo desconforto, por mexer com questões íntimas da vida dos estudantes. Percebeu-se que os adolescentes são imediatistas e céticos em relação ao amor, pois vários alunos disse-ram que o verdadeiro amor existe somente na relação entre pais e flhos. A ideia de alma gêmea não apareceu como algo presente no imaginário de todos os estudantes, embora tenham questionado cer-tas coincidências em suas experiências amorosas. As intervenções nas escolas possibilitaram reconhecer as pre-disposições cognitivas e afetivas dos estudantes e apontaram desafos para a prática docente como a necessidade do conhecimento prévio sobre o assunto, assim como a sensibilidade para entender os con-teúdos e as intencionalidades presentes nas falas, as quais podem apresentar interpretações dúbias. Foi possível perceber, através do 78

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perfl dos estudantes envolvidos, que os adolescentes apropriam-se da palavra e não aceitam a condição passiva na relação com o co-nhecimento, pois vivemos na era da interatividade. O diálogo pos-sibilitou canalizar o potencial dos discentes à produção do conhe-cimento além de oportunizar o confronto com as ideias diferentes. Uma aluna relatou que durante o diálogo flosófco pode conhecer o modo de pensar de seus colegas, as inquietações comuns e fnalizou dizendo que a escola deveria criar outros espaços para que os adoles-centes conversem sobre assuntos de seus interesses. Nas entrelinhas das falas dos alunos percebeu-se que os adolescentes esperam de seus educadores algumas respostas às suas dúvidas, o que normalmente não acontece na família. Constatou-se que a comunidade de investigação permite ir além da prática refexiva sobre os conteúdos e torna-se uma experiên-cia de cidadania. No grupo, os estudantes aprendem a conviver com o diferente, com as divergências de ideias, a reconhecer que muitas questões são comuns aos adolescentes, os méritos e as fragilidades de suas concepções. A reciprocidade ensina a reconhecer valores como respeito, solidariedade e colaboração, indispensáveis na convivência humana, no trabalho e para o melhor aproveitamento dos estudos, pois o diálogo é um ensaio de conviver com a democracia. Por fm, a flosofa deve ser tratada como uma disciplina nos currículos es-colares, além do seu objetivo de contribuir no desenvolvimento de habilidades voltadas ao exercício da cidadania. A prática docente exige o estabelecimento de vínculo com os estudantes para que o diálogo aconteça, bem como a postura de autoridade frente à classe. O professor precisa ter algo a oferecer, a acrescentar no processo educativo dos estudantes para que haja legi-timidade na sua função. Um ambiente democrático e descontraído não exclui a exigência de regras e de reconhecer os distintos papéis competentes a cada participante na coletividade. A versatilidade deve ser uma qualidade do educador ou educadora. A efciência pro-fssional passa pela capacidade de adequar o trabalho às diferentes realidades existentes em cada classe e de perceber as manifestações dos estudantes expressas de distintas maneiras. O planejamento pedagógico deve contemplar momentos delimitados para cada passo da aula, com a fnalidade de manter o

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interesse da turma nos assuntos abordados. A hora da sistematização deve ser planejada, com o tempo necessário para a elaboração de textos bem fundamentados, pois atribuir esta tarefa para o fnal da aula poderá sugerir que a escrita seja uma atividade de menor impor-tância no fazer flosófco. A aplicação de um texto de fundamentação teórica após o diálogo contribui para a síntese e a retomada das prin-cipais ideias postas em debate. Para auxiliar na produção de textos, a elaboração de um esquema na lousa é de fundamental importância para visualizar todo o processo refexivo e auxiliar na formulação de conceitos. O diálogo é indispensável no ensino da flosofa, mas deve ser confrontado aos conceitos elaborados na História da Filosofa para evitar a fragmentação do conhecimento flosófco, ou seja, a investigação flosófca não isenta a necessidade de aulas expositivas, intercaladas às dialogadas, para buscar nas fontes o embasamento teórico. As aulas de flosofa devem exceder o plano das opiniões e passar da doxa à episteme, uma vez que aprender flosofa pressupõe desenvolver habilidades de leitura, interpretação e escrita, bem como competências de conhecer sua história e conceitos. O tempo previsto para as aulas de flosofa na educação bá-sica é limitado. Um período semanal de quarenta e cinco minutos é insufciente para desenvolver os três momentos principais de sensi-bilização, problematização e síntese. Na experiência realizada cons-tatou-se que as aulas podem ser planejadas em blocos, reservando um período para a produção de textos. O diálogo é fundamental na experiência flosófca. No entanto, alternativas devem ser oferecidas com a fnalidade de contemplar as diferentes inteligências presentes nas turmas. Um tema poderá ser refetido através da arte e outras manifestações culturais. Em todas as intervenções os estudantes manifestaram inte-resse na continuidade do trabalho. A disposição para escrever o que pensam e o que entenderam sobre o amor provou que o trabalho de-senvolveu o sentimento de pertença na produção do conhecimento. Durante os debates os estudantes sentiram-se valorizados em con-tribuir no processo do aprendizado individual e coletivo e provou que a flosofa mexe com convicções, conceitos pré-defnidos, sensi-bilidade e crenças. Quando confrontados com a existência humana, 80

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os conceitos são vivenciados, facilitando a compreensão das teorias abstratas. Nas intervenções do PIBID e nas pesquisas realizadas pelos acadêmicos e professores supervisores, constatou-se que o trabalho em grupos foi o maior desafo, desde a divisão de tarefas, ouvir as críticas dos colegas durante a exposição dos resultados parciais, mas também um grande aprendizado de convivência e produção coletiva de conhecimentos. A experiência permitiu compreender que o tra-balho em equipe num grupo de docentes é exigente porque congrega as mais diversas concepções de educação, disposições para qualifcar o trabalho, resistência às mudanças e comprometimento com o cole-tivo. Os primeiros ensaios realizados junto às escolas foram oportu-nidades únicas de perceber a realidade concreta da educação pública, propiciando a aproximação entre a teoria aprendida na academia com a prática, agregando qualidade ao processo formativo.

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Filosofando a partir de imagens

Douglas Biondo¹Sandra Mara da Rosa²

Quem transmite uma imagem submete um inocente (DEBRAY, 1993, p. 100).

Por meio do PIBID, inseridos dentro do contexto escolar como observadores, percebemos, entre tantas demandas, a necessi-dade de explorar crítica e f losof camente a arte a partir da imagem. Como uma possibilidade de interpretar o mundo com o auxílio de uma compreensão f losóf ca, este recurso se concretiza a partir do momento em que entendemos que a linguagem, os sentimentos e a razão compõem a estrutura da imagem artística, assim como o próprio ser humano. Estes componentes são transportados à ima-gem e absorvidos pelo espectador num elo de comunicação entre as partes. Entende-se que ao f losofar a partir de imagens em sala de aula, estar-se-ia proporcionando aos alunos um objeto de estudo que contemple a formação humana. Amparada nos clássicos da f losof a, o uso de determinadas imagens pode se apresentar como uma nova experiência f losóf ca.

¹Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.²Bolsista do PIBID – Projeto Filosof a/UPF.

olhosExperiências de ensino

Filosof a nos

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Apesar dos gregos não desenvolverem a técnica da pintura para muito além de vasos e murais, e esta apenas como tentativa de narrar a personalidade de seus heróis e deuses e não a própria his-toria em si, a flosofa como herança grega percebe a necessidade de uma mínima iniciação à análise da imagem. Tal necessidade se dá a partir do momento em que entendemos a imagem como linguagem, carregada de informações e poder comunicativo que nem sempre são explícitas ou passíveis de uma leitura adequada. Toda a arte comunica algo direta ou indiretamente aos nos-sos sentidos. As imagens proporcionam uma visão sobre o homem, sua cultura e historicidade; são carregadas de intencionalidade e po-dem realizar funções tão diversas quanto dar prazer, aumentar o co-nhecimento, ensinar, propor ideais, satisfazer desejos ou indicar pa-drões. Apresenta insistentemente um bombardeiro linguístico-visual que em sentido físico procura produzir efeitos, modifcar condutas e, quando ligadas a intencionalidades, por vezes acaba não passando pela crítica e pela refexão. No contexto escolar, ao considerar estas intencionalidades, a flosofa pode olhar as imagens com um dis-curso crítico, flosófco e investigativo, permitindo ao aluno analisar informações para além daquilo que a imagem comunica explicita-mente. Sem perceber, talvez, todos nós nos encontramos como pre-sas vulneráveis em uma teia artisticamente tecida para nos amarrar a interesses e ideologias. “Quanto mais imagens vemos, mais nos arriscamos a ser iludidos” (JOLY, 1999, p. 9). A realidade implícita numa imagem pode não ser percebida se o observador não estiver apto a interpretá-la. Objetivando ilustrar nossa proposta, serão apre-sentados três pontos estruturais com o intuito de facilitar o entendi-mento do ensino de flosofa por meio de imagens. Primeiramente, será feita uma abordagem do poder da imagem no comportamento humano. Num segundo momento apresentaremos os elementos co-municativos na imagem, demonstrando as ferramentas e estratégias artísticas utilizadas por ela para comunicar. Num terceiro momento faremos uma breve iniciação à análise da imagem. E, por último, es-truturaremos uma atividade pedagógica com a fnalidade de refetir flosofcamente a partir de imagens. O presente artigo olha para as artes visuais tratando a ima-84

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gem como uma importante ferramenta ou como um material didáti-co riquíssimo para desenvolver o pensamento flosófco no ambiente escolar. Tem o intuito de aproximar a flosofa do universo cultural dos estudantes do ensino fundamental e médio, a fm de cumprir com o objetivo de apresentar possibilidades de investigação flosófca a partir de elementos presentes nas artes visuais, principalmente os que compõem a imagem. O aspecto central que norteará as suges-tões de investigação flosófca se dará pela refexão do que está im-plícito na imagem. A ideia presente nesta questão está em perceber que a arte é como uma janela que nos permite ver tudo, mas não nos deixa sentir a brisa do vento e caminhar por entre as ruas ou bosques, mesmo sabendo que estes são reais. Ou seja, há intenções nas ima-gens para além daquilo que vemos.

1. O poder da imagem no comportamento humano

Expressar a vivência humana através da imagem faz parte da história da humanidade desde os tempos remotos. É impossível saber com precisão em que época iniciaram-se as primeiras representações gráfcas por meio de imagens. Segundo Janson (1992, p. 14), foi nos últimos estágios do paleolítico, através da arte da pintura mural (ainda que esta não seja compreendida como a imagem que conce-bemos atualmente), que a história apresentou os primeiros elemen-tos visuais pictóricos criados pelo homem. As pinturas de Altamira e Lascaux já foram alvo de várias especulações quanto ao propósito de sua criação. No entanto, estas representações fgurativas, inde-pendentemente dos motivos pelos quais foram criadas, até os dias de hoje comunicam através de suas formas. Criam um anseio, mui-tas vezes místico, com relação à intencionalidade de suas criações. Há sempre uma linguagem implícita nas imagens, um de-sejo, um querer dizer algo para além das palavras. Debray (1993, p. 59) afrma que há uma magia contida na criação de imagens e que estas fazem parte do ser humano ainda primitivo. Estes poderes são lapidados cada vez em suas técnicas ao ponto que esta magia age sobre a humanidade de forma positiva ou negativa. O poder da imagem sobre o comportamento humano encontra-se presente nas fotos, lembrando pessoas queridas, outras rasgadas em momento

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de ódio; está presente nas religiões, disseminando entre incrédulos mensagens de fé e movendo multidões. Mais cruelmente, talvez, este “poder” apresenta-se na imagem publicitária, principalmente nas propagandas, seduzindo e aforando todo desejo e sentimento ausen-te das nossas relações, ou ainda, despertando a incontrolável vontade e o inconsciente impulso de agir pela opinião alheia. Para Debray (1993, p. 109), a publicidade é descrita como sedução, perversão, intimidação, poluição, ocupação, condicionamento. Conceitos re-forçados pela indústria cultural que exerce poder sobre o público. A imagem mobiliza com facilidade e pode se apresentar como um perigoso instrumento de poder. Segundo Debray, o “po-der das imagens” é o de “produzir efeitos” ou “modifcar condutas” (1993, p. 109). Diz ainda que, da mesma forma que há palavras que machucam, envenenam, provocam entusiasmo, trazem alívio, assim também há imagens que causam náuseas, arrepios, fazem estreme-cer, salivar, chorar, excitam, condenam, levam a tomar decisões, a comprar determinado objeto ou a votar num candidato em vez de outro. Para o autor a imagem é muito mais contagiosa que a palavra. No entanto, não são só aspectos negativos que as imagens podem sugerir. Debray afrma que a imagem é benéfca porque é simbólica (1993, p. 61). A expressão simbólica, conforme o autor, é o antôni-mo exato de diabólico, aquele que separa. Desta forma, simbólico é tudo aquilo que aproxima. Lembra Joly que “do mito da caverna à Bíblia, aprendemos que somos nós próprios imagens, seres que se assemelham ao Belo, ao Bem e ao Sagrado” (1999, p. 16). O olhar, no mito da caverna, re-laciona-se plenamente com a curiosidade. A humanidade, não se li-mitando somente em ver, se reporta para outra realidade e a imagem, neste sentido, se transforma num fo condutor, um elo do homem “interior” com o mundo “exterior”, propiciando um encontro pre-ceptivo. A autora ainda afrma que “a imagem mental corresponde à impressão que temos quando, por exemplo, lemos ou ouvimos a descrição de um lugar, a impressão de o ver quase como se lá esti-véssemos” (1999, p. 20). A imagem mental é semelhante com a da fantasia ou a do sonho, no entanto, a imagem é imagem por si só em qualquer âmbito e assim como provoca alucinação visual outros sen-tidos também são solicitados, como o olfato e o tato. A obra de arte 86

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participa destas mesmas fontes, ou seja, tanto aquele que cria como aquele que contempla uma imagem compõe um cenário imaginário, o que não implica a responsabilidade de se assumirem as fraquezas. Por conseguinte, desfrutam e deleitam dos prazeres e paixões que só a realidade poderia lhes oferecer. O consciente, que se manifesta pela palavra, não expressa senão aquilo que o inconsciente já tem em imagem. E tudo aquilo que no mundo real se expressa pela palavra é senão, e antes de tudo, uma imagem mental. Verdade e imaginação expressam-se no mundo real através da imagem e todo discurso possível é apenas fruto desta contemplação. O pintor ou o produtor destas imagens materializa, de certo modo, o que agita e perturba sua alma, adquirido através das experiências passadas. O espectador, ao tentar desvendar o segre-do do artista, compartilha dos mesmos sentimentos e é chamado a pensar sobre sua existência ou convidado a tomar uma posição frente a um novo mundo que se apresenta. Berger afrma que “quanto mais criativa a obra, mais profundamente ela permite compartilhar da experiência que o artista tem do visível” (1999, p. 12).

2. Os elementos comunicativos nas imagens

Toda imagem proporciona uma visão sobre o homem, sua cultura e sociedade. Debray afrma que “diante de qualquer imagem, foto, quadro, estampa, plano, perguntemo-nos antes de tudo: em direção de que o autor levantou a cabeça?” (1993, p. 63). Ou seja, os elementos históricos e culturais devem ser considerados no momen-to em que se observa a imagem. Na pintura o caráter histórico é visível, proporcionando ao espectador um olhar sobre a própria construção do mundo. As ima-gens publicitárias falam do contexto histórico atual e a absorção in-consciente das informações se torna muito mais suscetível, pois se confunde com o real do qual estamos acostumados. Ela se apresenta carregada de intencionalidade, destinando-se a seu público-alvo. É visto que há nas imagens elementos comunicativos. Joly (1999, p. 104) aponta para a existência de elementos explícitos e implícitos, que comunicam para além da escrita, do contexto sócio-histórico e da fguração em si. Um exemplo disso pode ser observa-

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do no trânsito; no signifcado das cores de uma sinaleira, ou em uma placa de trânsito com seta em curva, ou num triângulo vermelho ao longo de uma via, imediatamente nos remete a pensar e concluir sobre a sinuosidade da curva que está por vir, ou a entrar em estado de alerta para o possível acidente nas proximidades. “A natureza da reciprocidade da visão é mais fundamental do que a do diálogo fala-do” (BERGER, 1999, p. 11). Na concepção de Joly (1999, p. 104), há três tipos de mensa-gens que constituem a comunicação visual: uma mensagem plástica, uma mensagem icônica e uma mensagem linguística. As mensagens plásticas compreendem as cores, formas, composição e textura. Já as mensagens icônicas são as fgurativas. E as linguísticas são represen-tadas pelas palavras ou pelo discurso que pode ser feito da imagem, o que varia de acordo com a recepção do espectador. Uma imagem poderá adquirir diferentes signifcados, depen-dendo do contexto. Para Joly, “uma fotografa (signifcante) repre-sentando um alegre grupo de pessoas (referente) pode signifcar, de acordo com o contexto, foto de família ou, na publicidade, a alegria ou convívio (signifcados)” (1999, p. 37). Desta forma fca evidente que, mesmo a imagem pictórica que não traz consigo a mensagem linguística, carrega em seu interior, na textura, nas linhas e na cor uma intencionalidade. As mensagens implícitas são perceptíveis aos olhos que, reportadas ao inconsciente, aforam nossos sentimentos através dos signifcados, e isto se dá a nível universal. Na sequên-cia Joly (1999, p. 45-46) afrma que a imagem é uma Linguagem Universal e revela a possibilidade de existirem esquemas mentais e representativos arquétipos ligados às experiências comuns a todos os homens, o que facilita o diálogo com a flosofa que trata justamente das universalidades humanas. A Igreja Bizantina já tinha na Arte Sacra Iconográfca as fun-ções da cor muito bem desempenhadas e presentes. É sabido que a tabela de cores está dividida em cores quentes e frias, mas a arte iconográfca vai além de simples sensações térmicas. Ela aponta para a capacidade que a cor tem de elevar os sentimentos e de sugerir informações pré-estabelecidas no inconsciente humano. O Cristo Pantocrator, um ícone da tradição Bizantina feito no século XV, ao retratar o manto vermelho que cobre o corpo de 88

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Cristo representa sua hu-manidade. A túnica azul esverdeada mostra sua di-vindade e eternidade, a estola dourada em seu om-bro representa a realeza. As linhas, as textu-ras e a cor dão à imagem signifcado particular e objetividade específca em cada composição, transmi-tindo ao espectador senti-mentos e intenções. Toda-via, entre estes elementos, a cor é responsável por despertar os sentimentos. A cromoterapia e a ilusão de ótica podem ser apre-sentadas como um discur-so atual em relação ao uso da cor e sua infuência no comportamento, na psique, na saúde humana, e mostrar que a nossa percepção do mundo é em grande parte autoproduzida.

3. Iniciação à análise da imagem

Para Joly, “uma iniciação básica à análise da imagem deveria precisamente ajudar-nos a escapar da impressão de passividade (e mesmo de ser bombardeado)” (1999, p. 10). Afrma a autora que um dos motivos pelos quais as imagens podem parecer ameaçadoras é que estamos no centro de um paradoxo.

Por um lado, lemos as imagens de um modo que nos parece per-feitamente natural, que aparentemente não exige qualquer apren-dizagem e, por outro, temos a sensação de ser infuenciados, de modo mais inconsciente do que consciente, pela perícia de alguns iniciados que nos podem manipular submergindo-se da nossa in-genuidade (1999, p. 9-10).

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Figura 1. O Cristo Pantocrator. Fonte: <http://www.padrefelix.com.br/ima-gens/icone16.jpg>. Acesso em: 17 set. 2013.

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Na concepção de Debray (1993, p. 49), em relação à ima-gem e seu signifcado, convém ter cuidado para não confundir o que se “percebeu” com o que “deve” ser percebido. Aponta o autor que pensar uma imagem supõe, em primeiro lugar, que não se confunda pensamento e linguagem, já que a imagem faz pensar por meios di-ferentes de uma combinação de signos. “O signifcado das palavras é encontrado nos dicionários, mas não para uma imagem, porque não há equivalente verbal para uma sensação colorida” (1993, p. 49). Ou seja, interpretar e analisar uma imagem não consiste em tentar en-contrar ao máximo uma mensagem preexistente, como se faz numa interpretação textual, mas em compreender o que a mensagem traz de signifcação nas entrelinhas que se apresentam na sua estrutura ar-tística, no momento histórico ao tempo real em que se faz a análise. Reconhecer símbolos nas mensagens visuais e interpretá-los são duas operações complemente diferentes, tanto para Joly quanto para Debray. Sendo que a cada nova leitura é possível uma nova in-terpretação, pois esta está vinculada a um contexto individual ligado tanto ao ato de criação como às expectativas e experiências do espec-tador, aos elementos implícitos que formam a obra, sua historicidade e ao momento em que ela se apresenta. O fato de reconhecer certos símbolos não nos informa nada além do que estes signifcam se não comparados com o todo que envolve a criação e sua apresentação.

A imagem não é a linguagem falada por nossas crianças porque não tem nem sintaxe nem gramática. Uma imagem não é nem verdadeira nem falsa, nem contraditória nem impossível. Não sendo uma argumentação, não pode ser refutável. Os códigos que podem ou não mobilizar são somente de leitura e interpretação (DEBRAY, 1993, p. 60).

Sendo assim, a partir de interpretações particulares será apre-sentada uma análise dos elementos e signos que consideramos rele-vantes e carregados de signifcação de duas imagens. Destacando a composição artística e as considerações sobre a análise, abordaremos a linguagem explícita e implícita que a imagem utiliza para se co-municar e manifestar seu “poder” de persuasão. Segue a análise das obras “Daniel na cova dos leões” e “Resposta de Daniel ao rei”, de Briton Revière. 90

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Figura 2. Daniel na cova dos leões, por Briton Revière (1872). Fonte: http://www.bbc.co.uk/arts/yourpaintings/paintings/daniel-in-the-lions-den-97646. Acesso em 17 set. 2013.

Figura 3. Resposta de Daniel ao rei, por Briton Revière (1890). Fonte: http://www.bbc.co.uk/arts/yourpaintings/paintings/daniels-answer-to-the-king-205919. Acesso em 17 set. 2013.

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3.1 Elementos explícitos

Os elementos explícitos são os mais rapidamente visíveis na imagem, como a cor predominante, cenário e personagens. Nas duas obras de autoria do pintor Briton Revière (1872 e 1890), pode-se apontar estes elementos como sendo um cenário subterrâneo onde a incidência da luz é baixa e se dá por um único foco de luz, e nele estão inseridos o personagem bíblico Daniel e os leões.

3.2 Elementos implícitos

Os elementos implícitos são percebidos em um segundo momento. Referem-se à cor particular dos elementos fgurativos, a luz, forma, textura, composição e linhas.

A cor que prevalece na fgura 2 é o negro acastanhado, com-pondo um cenário sombrio que nos remete à noite e esta, por sua vez, associada ao mal, nos traz o medo. A luminosidade se dá pela incidência de um foco de luz vindo das costas de Daniel em direção aos leões, ou seja, Daniel não vê a luz. O corpo e o rosto dos leões são compostos por linhas curvas, onduladas e circulares. Este tipo

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de linha é responsável por causar movimento, confusão, violência à imagem e são responsáveis por despertar a sensação de agressividade na obra. Estão presentes no chão, o que amplia a tensão e o desequi-líbrio entre Daniel e as feras. Em Daniel prevalece a existência de linhas retas, inclinadas, horizontais e verticais. Este tipo de linha é responsável por transmi-tir tranquilidade, dar segurança e frmeza. Estão presentes no corpo logo acima da cabeça de Daniel, mas se contrapõem com a cor preta da túnica que remete ao medo e à morte. Há uma evidente relação de confito entre Daniel e os leões, o círculo maior, que é o ponto central da obra, dá ênfase às feras e não inclui o personagem. Há cer-ta expectativa pairando no ar em relação ao que está por acontecer entre os personagens.

A luminosidade e a cor que prevalece no cenário da fgura 3 também é o negro acastanhado. Porém o ambiente é muito mais iluminado pela incidência de luz vinda da abertura logo acima da ca-beça de Daniel, que agora vê a luz, o que tranquiliza a cena. As linhas curvas e circulares nos leões são bem menos evidentes em relação à fgura 2. Não há mais a mesma agressividade nas feras, pois as linhas retas prevalecem tanto no corpo das feras como em todo o cenário

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que as envolve. Fica evidente nesta obra uma relação recíproca entre os leões e Daniel. O chão, antes ondulado, agora é formado por grandes lajes em linhas retas, diminuindo a tensão entre os personagens. O círculo maior (ponto central da obra) inclui Daniel na relação com as feras. A expectativa de antes é interrompida pela vitória de Daniel que agora olha para a luz.

4. Filosofando a partir de imagens

Considerando o discurso e as refexões realizadas até o mo-mento, entendemos que toda imagem se manifesta de forma comu-nicativa em suas diferentes representações e modos de linguagem. Desta forma, a criação de meios (recursos), articulados a metodolo-gias pedagógicas que possibilitem novas e diferentes leituras e relei-turas das imagens em sala de aula, pode ampliar o conhecimento e desenvolver a formação humana através da experiência flosófca. Vejamos, de forma singular, um exemplo desta proposta pe-dagógica que surgiu a partir dos estudos realizados no PIBID e que buscou refetir flosofcamente a imagem, no contexto de uma sala de aula. Analisando os componentes explícitos e implícitos da ima-gem e estes comparados a outras interpretações como o contexto sócio-histórico dos alunos, foi possível alcançar uma compreensão além do que a imagem suscita em si. Somente o resultado deste con-fronto serve como uma interpretação plausível da mensagem ine-rente à imagem no momento e na circunstância em que ela for apli-cada. O tema central do plano de aula foi sobre estética e partiu da seguinte problemática: as noções de belo ou feio se resumem apenas a uma questão de gosto ou nossas escolhas revelam também nossos “pré-conceitos”? Parece estranho falar sobre estética segundo as teorias da f-losofa clássica por soar algo distante da realidade. No entanto, a estética interfere em quase todas as decisões tomadas durante o dia a dia, compondo um cenário que muitas vezes não passa pela crítica e pela refexão. Utilizamos da estética para vestir, para comer, defnir roteiros de viagens e para comprar, escolhas que não se limitam ape-nas aos objetos, mas estão presentes também nas nossas relações e na 94

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forma como percebemos e somos percebidos no mundo. Trombetta afrma que “o processo de estetização do mundo não é algo superfcial ou um simples processo para tornar a vida mais agradável e os espaços mais atraentes” (2009, p. 320). O indi-víduo que se insere nesta dinâmica adota para si a lógica do prazer individualizado e imediato, tornando-se incapaz de tolerar desejos e pontos de vista contrários aos seus. O discurso do corpo perfeito em prol de uma vida saudável mascara um comportamento sombrio de discriminação como fator de engajamento social, o que legitima a exclusão. O personalizado, o belo segundo meus conceitos, revela um sentimento de ausência e o anseio de supri-lo. Vivemos no âmago da estética. Tal afrmação é reforçada pela alta procura por academias, clínicas e cirurgias plásticas e salões de beleza. Hoje é possível realinhar do fo de cabelo à unha do pé a fm de delineá-lo a modelos e padrões estereotipados, idealizados pela sociedade de consumo. Quem não se enquadra a estes padrões sente não pertencer ao mundo que o cerca. Desta forma, a estética torna-se um terreno fecundo para o “fazer flosófco” em sala de aula, pois proporciona refexões sobre assuntos de ordem universal à exis-tência humana. A intervenção na escola teve como objetivo referente ao con-teúdo, confrontar as mensagens visuais com os conceitos flosófcos. O conhecimento sobre as teorias da estética, os aspectos do belo, do feio e do gosto, confrontados com a diversidade e historicidade cul-tural, possibilita ampliar o entendimento sobre os critérios de beleza para além das aparências, da subjetividade e do senso comum. Os objetivos referentes às habilidades visavam, a partir do diálogo em grupo, ampliar a capacidade de visualizar, sistematizar e argumentar sobre os problemas flosófcos, defendendo posicionamentos objeti-vos através da fala e da escrita. Reconhecer a validade das informa-ções e ideais que podem se apresentar sobre as diversas formas na estrutura das imagens proporciona, através da refexão flosófca dos elementos comunicativos, contemplar a formação humana. Com a fnalidade de motivar a aula, projetamos a imagem original de David e confrontamos com uma segunda imagem modi-fcada.

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Inicialmente, com a fgura da David esculpida por Miche-langelo, questionamos os alunos sobre o que estavam vendo na ima-gem. Perguntamos a eles se sabiam quem era o homem na escul-tura e que título lhe era dado na cultura grega. Simultaneamente à exposição, foram anotadas na lousa as reações que surgiram na turma, como sorrisos, deboche, ironia e outras manifestações. Com a segunda imagem, a alterada, questionamos novamente o que eles viam. Perguntamos se esta imagem era agradável aos sentidos e se a fgura agora apresentada poderia receber o mesmo título de deus da beleza na cultura grega. Da mesma forma, foram pontuadas na lousa as reações que surgiram. Na sequência conceituamos a beleza e a estética segundo os gregos e a flosofa, frisando que a perfeição e a simetria dos traços era o que caracterizava algo como belo e que a estética estava vincu-lada ao sentir. Este sentir na flosofa tem por objeivo estudar a na-tureza da beleza e as emoções que os objetos despertam nas pessoas. Para os gregos havia uma preocupação com a verdade: a verdadeira beleza estava na natureza e a preocupação com as formas simétricas representava a busca por esta verdadeira perfeição.96

David, por Michelangelo. Fonte: http://upload.wikimedia.org/wiki-pedia/commons/6/63/Michelangelos_Da-vid.jpg. Acesso em: 19 set. 2013.

David, por Dalesdesignes.net.Fonte: http://dalesdesigns.net/david.htm. Acesso em: 19 set. 2013.

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Depois colocamos as duas imagens lado a lado e prossegui-mos com a investigação flosófca com base nas seguintes indagações: qual a essência, as características que defnem o que é o belo e o que é o feio? Quais os pontos em comum e os divergentes que indicam beleza ou a feiura nas imagens? A beleza está nas formas, “na casca”, ou na essência das pessoas? Beleza é uma questão de escolha, de gos-to, de condição, de cultura, de época? A minha beleza pertence a mim ou ao outro? Quando vemos um casal com diferença de idade, ou se um dos dois é muito “feio”, porque logo pensamos que há in-teresse de uma das partes? Pode haver beleza em algo feio? Se gosto não se discute, porque ao conhecer algo novo nos proporcionamos a possibilidade de começar a gostar? A beleza é um valor universal ou poderá mudar de indivíduo para indivíduo? A tal frase “gosto não se discute” é plausível? Defnimos beleza a partir daquilo que dá prazer aos nossos sentidos? O que justifca a busca pelo corpo perfeito? Buscamos saúde ou mascaramos a necessidade de nos enquadrarmos a padrões sociais? A beleza está em todo o corpo, ou consideramos algumas partes como tabu? Por que a beleza do corpo está, na maio-ria das vezes, associada à mulher? O diálogo foi motivador para que os alunos refetissem sobre o tema central do plano de aula, que partiu da pergunta “O belo ou o feio: apenas uma questão de gosto ou nossas escolhas revelam também nossos ‘pré-conceitos’?” No entanto, se fez necessário ainda realizar uma análise das imagens quanto aos elementos implícitos e o que eles comunicam. Desta forma, é importante apresentar as imagens, destacando as linhas, a luz, a cor e demais elementos de caráter implícito que surgirem, e a partir deles fazer uma releitura das imagens ampliando as signifcações. Tal refexão tem a intenção de proporcionar ao aluno perceber que atribuímos informações e valores ao que vemos, e que isto já está sugerido na estrutura artística que compõe a imagem. Na imagem à esquerda percebemos uma composição forma-da por linhas retas, inclinadas e verticais. Tal combinação de linhas torna a imagem mais leve, atribui sensação de frmeza e equilíbrio ao personagem. Faz com que o olhar percorra toda a imagem, sem se prender em um único ponto, proporcionando ao espectador que ele contemple o todo. Também há três formas piramidais na imagem

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apontando para o centro, o que reforça a centralidade, o equilíbrio e a harmonia. A luminosidade prevalece na cor branca, o que nos remete ao bem. O tom de branco pálido da fgura está em sintonia com o fundo, insinuando harmonia. Há um foco de luz mais intenso no personagem chamando a atenção do espectador para a parte mais elevada do corpo, reforçando a sensação de leveza. Na imagem à direita percebemos uma composição formada por linhas circulares e poucas retas. Linhas circulares prendem o es-pectador em pontos, o que contribui para que o olhar não percorra a imagem, tornando a visualização fatigante. Há muitos pontos de atenção ou de tensão, isto causa certa desconcentração e a distração do olhar é inevitável. Os círculos estão dispostos em maior quantida-de na metade para baixo da imagem reforçando o peso da fgura. Há uma única forma piramidal tentando apontar a centralidade, porém ela é sucumbida por outras duas formas maiores que salientam o volume da fgura. A luminosidade da foto ganhou um tom mais sombrio de verde envelhecido. Não há mais sintonia com o fundo. Na parte superior da imagem e no corpo da fgura foram reforçados os tons escuros, o que dá peso à imagem e nos remete a um pensamento sombrio negativo.

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5. Considerações fnais

É visto que, como toda expressão, as imagens comunicam algo. Direta ou indiretamente nossos sentidos são afetados por elas e aquilo que vemos muitas vezes não se refere verdadeiramente com tudo o que a imagem pode comunicar. Este poder que a imagem tem de nos comunicar sem a permissão, ou desejo de leitura, é algo que ela traz inerente à sua particularidade e essência como imagem. Manifesta-se nos elementos que a compõem desde o momento de sua criação. As mãos de quem as cria são um depositário de informa-ções relacionadas a experiências subjetivas. Há também uma lingua-gem que se atribui à imagem no decorrer da historicidade e outras que acrescentamos conforme nossas subjetividade. No entanto, não há passividade e nem ingenuidade numa imagem. “Quem transmite uma imagem submete um inocente”, afrma Debray (1993, p. 100). Ou seja, quem cria uma imagem, por mais que seja uma força de sua expressão, atribui certa intencionalidade. A “sujidade dos olhos” do criador que captura a realidade é refetida na imagem; o espectador, por sua vez, de forma contemplativa associa estas informações à sua subjetividade, somando a seus desejos e ausências signifcados, valor e necessidade de transcendência. A possibilidade de flosofar com imagens se explica justa-mente por sua característica própria de tocar os sentimentos do ob-servador. A análise das imagens proporciona à flosofa refetir so-bre as intencionalidades, contribuindo para a formação humana. O tema a ser refetido pode se referir a questões subjetivas como o prazer, o conhecimento, o ódio, o amor, os desejos, as superstições e ir ainda para muito mais longe, como as relações humanas, políticas e sociais. Entretanto, é preciso apoiar-se sempre nos clássicos da flo-sofa para efetivar uma refexão propriamente flosófca. Tanto a intencionalidade, o tema da aula e a discussão f-losófca, num primeiro momento surgem dos elementos explícitos da imagem, proporcionando uma maior e efetiva participação dos alunos. No entanto, eles podem surgir também a partir do momento em que se faz a releitura dos elementos explícitos e implícitos. Desta forma, o elemento surpresa pode ser um aliado para motivar e des-pertar o interesse à refexão flosófca.

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O professor deve ser mediador e árbitro favorecendo para que o diálogo permaneça sobre o tema central do plano de aula, evitando-se assim a dispersão, e aproveitando da melhor forma pos-sível o tempo. O debate de cunho crítico, criterioso e participativo é importante para promover, tanto quanto a diversidade de ideias, quanto o aperfeiçoamento das mesmas que serão validadas quando o professor linkar a refexão que surgir no debate com os conteúdos flosófcos. A aula de flosofa com imagens pode ser considerada satisfa-tória se percebido que o envolvimento e a avaliação dos alunos deixa clara a necessidade de reconhecer os elementos que compõem a ima-gem e a força comunicativa inerente a eles. Também será satisfatória se houver reconhecimento que a refexão sugerida, a abordagem que se faz da imagem é de caráter flosófco, pois apontam para temas de cunho universal encontrados na flosofa clássica. A experiência na escola evidenciou que é preciso ter um pla-nejamento para nortear as aulas, mas a fexibilidade do professor para dialogar com questões imprevisíveis abordadas pelos alunos, assim como um conhecimento prévio sobre análise da imagem, é indispensável. Quando apresentamos a primeira imagem, os alunos fcaram surpresos, sem entender a intenção com a utilização do recurso. Os elementos que se fzeram primeiramente observados foram os de ca-ráter explícito, pois o nu de David foi motivo de graça, piadinhas, e até de vergonha para alguns. Ao projetar a segunda imagem houve risos e o tom irônico e debochado das colocações, revelando-se certo preconceito ou tabu. A proposta temática só foi evidenciada após a demonstração das duas imagens, porém não de forma direta. Os alunos a reconheceram afrmando que a aula ocorreria em torno da beleza e não da estética. Partiu dos alunos o relato de que a sociedade defne o corpo magro como padrão de beleza a ser seguido. Os valores atribuídos pelos alunos a este estereótipo de beleza foram cuidado, saúde, bon-dade, estima. Evidenciou-se nas colocações de alguns que seria mais fácil relacionarem-se com o personagem de David magro. Há uma compatibilidade ou reconhecimento sociocultural subjetivo, que re-conhece e atribui valor a este perfl, reconhecendo-o como o “mais 100

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adequado” e “correto”. Quando apresentamos a imagem de David alterada, as ex-pressões faciais dos alunos e os comentários soaram de forma agres-siva, em tom de ironia e deboche. Os valores atribuídos a esta fgura frisavam certo asco, e apontavam para algo além da aparência, como a doença, o desleixo, o mal e a imoralidade. A imagem de David alterada foi chocante, causou impaciência e tensão no ambiente. Os alunos se comportaram a partir deste momento como se, a partir daí, estivessem todos diante de um problema. Foi possível perceber na discussão flosófca que conforme as investigações e os esclarecimentos acerca dos critérios de beleza, gosto, historicidade e implicidade das imagens, o posicionamento dos alunos sobre o assunto foi se modifcando. “Antes de conhecer as pessoas criamos pré-conceitos”, afrmou um aluno. Tal refexão surgiu após o debate flosófco que evidenciou a atribuição de valores sugerida nas imagens e a interpretação superfcial que os observado-res correm o risco de fazer. Por fm os alunos concluíram que a dis-cussão ampliou o conhecimento sobre o tema e que a interpretação da imagem esclarece os motivos pelos quais elas são feitas. Concluiu-se também que as interpretações e os elementos artísticos não estão apenas restritos à imagem, mas que se manifestam nas pessoas e nas relações cotidianas. A fala de uma aluna atribuiu que, apesar da refexão ser im-portante, a mesma não teria praticidade na vida real, não acrescen-taria nada além do que ela já havia pensado. Afrmou ainda que as pessoas não se relacionam com outras pessoas considerando apenas o caráter ou a estética, pois elas não mudam o que são, mas procuram semelhantes. Tal conclusão parece relevante, sendo que poderia ser entendida como uma falta de compreensão da aluna, tendo visto que a implicabilidade da estética foi retratada no início da intervenção. Porém indica a necessidade de serem abordados outros assuntos ou até mesmo a necessidade de reforçar a discussão sobre o mesmo tema no cotidiano. Há a necessidade de esclarecer aos alunos que refetir sobre as imagens implica reconhecer a universalidade das informa-ções e a força de persuasão das mesmas. Por fm, concluímos que o ato de reconhecer e interpretar flosofcamente mensagens visuais está intimamente ligado ao dis-

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curso verbal. Uma vez que a separação das dimensões verbal e visual não pode ser afrmada, mas se validam como linguagens, tal possi-bilidade inviabiliza o discurso flosófco, na medida em que fcamos presos a simples interpretações subjetivas disponíveis pelo senso co-mum. A imagem necessita da linguagem verbal para ser enunciada, esmiuçada, refetida, compreendida, discutida, criticada. Imagem e linguagem se completam, pois do contrário a publicidade não as usaria de forma tão articulada e homogênea.

Referências

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FEITOSA, Charles. Explicando a flosofa com arte. 1. Reimpressão. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. 197 p.

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TROMBETTA, Gerson Luís. Estetização e embrutecimento: retratos da cultura contemporânea. In: SOPELSA, Ortenila; TREVISOL, Joviles (Orgs.). Currículo, diversidade e políticas públicas. Joaçaba: Unoesc, 2009, p. 319-334.

TROMBETTA, Gerson Luís (org). Lugares possíveis: metamorfose da arte no tempo e no espaço. Passo Fundo: Méritos, 2012. 256p.

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