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2 Temas jurídicos atuais: Volume VI

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TEMAS JURÍDICOS ATUAIS

Volume VI

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Carlos Alexandre Moraes José Francisco de Assis Dias Larissa Yukie Couto Munekata

(Organizadores)

AUTORES: Andryelle Vanessa Camilo Pomin

Carolina Emerick de Souza Claudinéia Veloso da Silva

Diogo Valério Félix Edmila Adriana Denig

João Paulo Sabaine Fagundes Marcela Gorete Rosa Maia Guerra

Marcelo Vinícius Dressler Mateus Augusto Brito de Souza

Mauro Luís Siqueira da Silva Simone Caroline Mauad

TEMAS JURÍDICOS ATUAIS

Volume VI

Primeira Edição E-book

Editora Vivens O conhecimento a serviço da Vida!

Toledo – PR – 2016

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6 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Copyright 2016 by

Carlos Alexandre Moraes / José Francisco de Assis Dias / Larissa Yukie Couto Munekata

EDITORA: Daniela Valentini

CONSELHO EDITORIAL: Dr. Celso Hiroshi Iocohama - UNIPAR

Dr. Daniel Eduardo dos Santos - UNICESUMAR Dra. Daniela Menengoti Gonçalves Ribeiro - UNICESUMAR

REVISÃO ORTOGRÁFICA: Prof. Antonio Eduardo Gabriel

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Bruno Macedo da Silva

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

ISBN: 978-85-92670-00-9

E-book

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados com exclusividade para o território na-cional. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmi-tida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qual-quer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

Editora Vivens, O conhecimento a serviço da Vida!

Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596

http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Temas jurídicos atuais, volume VI. / organizadores

T278 Carlos Alexandre Moraes, José Francisco de

Assis Dias, Larissa Yukie Couto Munekata;

autores, Andryelle Vanessa Camilo Pomin ...

[et al.]. – 1. ed. e-book – Toledo, PR: Vivens,

2016.

222 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-00-9

1. Meio ambiente. 2. Direito à propriedade. 3.

Agências reguladoras. 4. Direito previdenciário.

5. Direito administrativo. 6. Imposto de renda.

7. Democracia.

CDD 22. ed. 340

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.............................................................. I = ESTADO DEMOCRÁTICO FRENTE A CRISE ECOLÓGICA Marcelo Vinícius Dressler......................................................... II = O DIREITO À PROPRIEDADE DO INVENTOR E A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA SUA PROPRIEDADE INDUSTRIAL Andryelle Vanessa Camilo Pomin Edmila Adriana Denig................................................................... III = O ESTADO COMO AGENTE REGULADOR: UMA ANÁLISE DA AUTONOMIA PÚBLICO-PRIVADA FRENTE O PAPEL DAS AGÊNCIAS REGULADORAS Marcela Gorete Rosa Maia Guerra.............................................. IV = PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NO ÂMBITO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO Carolina Emerick de Souza Claudinéia Veloso da Silva........................................................... V = O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS E A FIGURA DO “CARONA” Mateus Augusto Brito de Souza Mauro Luís Siqueira da Silva........................................................ VI - A INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE JUROS MORATÓRIOS João Paulo Sabaine Fagundes Mauro Luis Siqueira da Silva........................................................

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8 Temas jurídicos atuais: Volume VI

VII = A CRISE NA DEMOCRACIA NO ESTADO MODERNO BRASILEIRO Diogo Valério Félix Simone Caroline Mauad...............................................................

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APRESENTAÇÃO A presente obra é o Sexto Volume de uma série

coletânea de “Temas Jurídicos Atuais”, nascida da iniciativa empreendedora dos organizadores, pretendendo valorizar a produção científica dos formandos em Direito, na Unicesumar; levando ao grande público o resultado de seus trabalhos apresentados como conclusão do curso de bacharelado. Neste Sexto Volume, são contemplados os seguintes temas: - no primeiro capítulo, ESTADO DEMOCRÁTICO FRENTE A CRISE ECOLÓGICA, de Marcelo Vinícius Dressler; - no segundo capítulo, O DIREITO À PROPRIEDADE DO INVENTOR E A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA SUA PROPRIEDADE INDUSTRIAL, de Andryelle Vanessa Camilo Pomin e Edmila Adriana Denig; - no terceiro capítulo, O ESTADO COMO AGENTE REGULADOR: UMA ANÁLISE DA AUTONOMIA PÚBLICO-PRIVADA FRENTE O PAPEL DAS AGÊNCIAS REGULADORAS, de Marcela Gorete Rosa Maia Guerra; - no quarto capítulo, PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NO ÂMBITO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO, de Carolina Emerick de Souza e Claudinéia Veloso da Silva; - no quinto capítulo, O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS E A FIGURA DO “CARONA”, de Mateus Augusto Brito de Souza e Mauro Luís Siqueira da Silva; - no sexto capítulo, A INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE JUROS MORATÓRIOS, de João Paulo Sabaine Fagundes e Mauro Luis Siqueira da Silva; - no sétimo capítulo, A CRISE NA DEMOCRACIA NO ESTADO MODERNO BRASILEIRO, de Diogo Valério Félix e Simone Caroline Mauad.

Boa leitura!

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= I =

ESTADO DEMOCRÁTICO FRENTE A CRISE ECOLÓGICA

Marcelo Vinícius Dressler* 1.1 INTRODUÇÃO

O debate em torno da proteção do meio ambiente e do

novo código florestal não diz respeito apenas a ruralistas e ambientalistas, mas sim toda a sociedade. Envolve o modelo exportador brasileiro, a biodiversidade, política agrária, concentração de terras, enfim, é um objeto de análise que merece tratamento especial por tratar das condições necessárias para o desenvolvimento da vida no planeta. Uma breve análise histórica nos revela a gênese de nosso país onde encontramos um modelo colonial extrativista, no qual havia abundância de terras, recursos e mão-de-obra. Desnecessário seria a preocupação com o meio ambiente em face da fartura. Essa é nossa raiz. E essa foi à mentalidade socioambiental que dominou a maior parte da nossa história, sob a identidade de colônia extrativista. Hoje percebemos que essa inesgotabilidade dos recursos naturais chegou ao limite.

O advento da sociedade industrial trouxe à situação da poluição e da devastação ambiental, revelando as cicatrizes da sociedade capitalista, nos últimos cem anos. Estamos retirando do ambiente mais recurso que ele pode oferecer, e por outro lado estamos usando o planeta como nossa “cloaca máxima”, jogando esgotos, lixo tóxicos, toda forma de resíduos metais

* Possui graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá- UEM (2012) e graduação em Direito pelo Centro Universitário de Maringá - Unicesumar (2014). Atualmente é professor na FASIPE, Faculdade de Sinop. Tem experiência na área de história, filosofia e sociologia do Direito, atuando principalmente no seguinte tema: radicalismo político; fascismo; positivismo jurídico; racismo. Atualmente cursa mestrado em ciências jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá - Unicesumar, iniciado em 2015, e cursa pós-graduação em Relações internacionais pela Faculdade Damásio de Jesus, com início e 2015.

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pesados que não se decompõem, além da sua capacidade de suportar, devido as maiores cargas advindas da superpopulação da sociedade de consumo.

A questão se agrava no momento que a água potável dá sinais de escassez, e a infraestrutura para sua extração, tratamento e distribuição são precárias e insuficiente. Até hospitais e escolas sofrem com a escassez. Nós temos um sistema de abastecimento extremamente fragilizado, onde não há proteção vegetal as margens dos reservatórios. Neste sentido é necessária uma nova cultura de cuidado com a água, na qual parece ser necessário elevar seu status de bem consumível para Direito Fundamental de 6º Dimensão. Diante desse contexto objetivamos expor a fragilidade das instituições democráticas e da incidência das normas constitucionais frente às tragédias e desastres ambientais, além de observar a legislação atual vigente de proteção da água e do meio ambiente. Assim, é imprescindível analisarmos brevemente as possibilidades de crise ecológica, as transformações drásticas que a atuação humana - no contexto capitalista - está infringindo a natureza e a dificuldade das instituições democráticas fazerem-se valer nos momentos de desastre pela decretação da Emergência.

Veremos que em situações de desastres ecológicos- tornados, terremotos, escassez de água- os estados mostram-se fracos e não garantem plenamente o exercício da existência digna à população. Abandonada, esta acaba por regredir a um estado de selvageria primitiva e violenta, incidindo em saques, homicídios, vandalismo, sendo obrigada a lutar pela sobrevivência.

Chega se assim ao conceito de “Cogito Proletário” de Slavoj Zizek1, ou seja, o “sujeito pós-traumático”, que “sobrevive à própria morte, à morte (apagamento) de sua identidade simbólica”, que cai na barbárie e violência generalizada, e permite ai então, a instauração de um Estado de Exceção militarizado. Conceito amplamente desenvolvido por Giorgio Agamben2, enquanto fenômeno político-jurídico expressa o “desequilíbrio entre direito público e fato político” e que tende a tornar-se a regra na sociedade atual, e suas características.

1 ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos- São Paulo: Boitempo, 2012 2 AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

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Por fim, queremos analisar a legislação brasileira que

tutela o meio ambiente e apresentar a teoria do direito à água como sexta dimensão dos direitos fundamentais, desenvolvida por Zulmar Fachin3, em sua obra: Acesso à Água Potável - Direito - Fundamental de Sexta Dimensão.

Como o Direito pode contribuir para evitar a degradação do meio ambiente? O ordenamento jurídico pátrio protege de forma eficaz, a água e o meio ambiente? Nossas instituições democráticas são fortes o suficiente para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos nos momentos de crise ecológica? O direito a água potável merece tutela especial legislativa? Essas são questões que eu pretendo responder neste artigo.

1.2 TEORIAS DAS CRISES DO MEIO AMBIENTE

Segundo o professor Edgar Morin4, em sua obra Rumo ao abismo? Vivemos em um tempo de incertezas e de crises de instituições. Ele afirma que o fim do século XIX e começo do século XX, os ideais iluministas foram retomados com força nas quais o Progresso seria provocado pelo desenvolvimento da razão, da ciência e da educação. Após a segunda guerra mundial constatou-se que todas essas soluções continham problemas em si e revelavam ambivalências positivas como negativas. A exploração econômica condenada à lei da concorrência do neoliberalismo, que visa apenas o lucro, traz consigo a morte da biosfera e, de novo, o fim da vida no planeta.

A questão da água enquanto bem cada vez mais raro e ameaçado pela crescente mercantilização, tem o potencial de tornar-se fonte de novas explorações, conflitos ou de futuras guerras. Por fim o crescimento exponencial da demografia humana parece tornar-se o problema mais grave a ser enfrentado pelos governos.

O autor John Gray, em sua obra Cachorros de Palha, busca o que significa “ser humano”, e afirma que a tradição do pensamento ocidental foi baseada em crenças arrogantes e

3 FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo:

Método, 2008 4 Morin, Edgar, 2007- Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

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equivocada sobre o lugar dos seres humanos no mundo. Filosofias tanto liberais como marxistas pensam que é destino dos homens dominar e conquistar a natureza, para isso abraçam a ideia de que os humanos são superiores aos outros animais. O autor argumenta que essa crença não passa de um preconceito e de uma ilusão cristã e iluminista.

Ele cita em sua obra uma passagem pertinente de James Lovelock:

Os humanos na terra comportam-se, de alguma maneira, como um organismo patogênico ou como as células de um tumor ou neoplasma. Crescemos em números e em transtornos para Gaia a ponto de nossa presença ser perceptivelmente inquietante (...) a espécie é agora tão numerosa que constitui uma séria moléstia planetária. Gaia está sofrendo de Primatemaia Disseminada, uma praga de

gente5.

Afirma ainda que a destruição do mundo natural é a

consequência do sucesso evolucionário de um primata excepcionalmente predador. Que ao longo da história e pré-história, o avanço humano coincidiu com a devastação ecológica.

Em suas palavras:

Uma população humana aproximando-se de oito bilhões só pode ser mantida devastando a terra. Se habitats selvagens passarem a ser usados para cultivo humano e habitação, se as florestas tropicais puderem ser transformadas em desertos verdes, se a engenharia genética possibilitar cada vez mais colheitas abundantes a serem extraídos de solos cada vez mais debilitados, então os humanos terão criado para si mesmo uma nova era geológica, a Eremozóica, a Idade da Solidão, na qual pouco restará sobre a terra além destes mesmo e do meio ambiente protético que os mantem vivos.6

Nas palavras de Gray:

5 LOVELOCK, 1991 apud GRAY, Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e outros animais. 5º ed.- Rio de Janiero: Record, 2007. Pg. 22. 6 Ib. Pg. 24.

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se a praga humana é realmente tão normal quanto parece, então à curva descendente deve espelhar a curva de crescimento da população. Isso significa que o grosso do colapso não levará mais que cem anos, e, por volta do ano de 2150, a biosfera deverá ter voltado, com segurança, à sua população de Homo sapiens pré-praga, algo entre meio e um bilhão”.7

Neste sentido, pode-se esperar que a Primatemaia

disseminada seja curada por uma queda, em grande escala, no número de humanos.

Por sua vez, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, em sua obra Vivendo no Fim dos Tempos8, afirma que o capitalismo aproxima-se de um colapso terminal; e identifica os quatro cavaleiros do apocalipse com a crise ecológica mundial, desequilíbrios no sistema econômico (crises de abastecimento), a revolução da biogenética e o crescimento da desigualdade social.

O referido autor enumera quarto “picos” (evolução acelerada) que se aproximam do limite do paradigma da quantidade e terão de mudar para o da qualidade: crescimento populacional, consumo de recursos, emissão de gás carbônico e extinção em massa de espécies.

Zizek cita ainda Dipesh Chakrabarty9, que elabora as consequências filosófico-históricas do aquecimento global: Afirma-se que os homens não têm mais uma simples relação com a natureza, mas afirma-se agora que os seres humanos são uma força da natureza no sentido geológico.

Segundo o autor:

uma nova era geológica começou, batizada por alguns cientistas de Antropoceno, (...) Aqui, o contra-argumento marxista padrão é que a passagem do Pleistoceno para o Antropoceno se deve inteiramente ao desenvolvimento explosivo do capitalismo e seu impacto global.10

Um fato preocupante que pode provar a entrada na nova

era são os recentes terremotos que ocorreram no interior da

7 Ib. Pg. 28. 8 ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos- São Paulo: Boitempo, 2012 9 CHAKRABARTY, 2009 apud ZiZEK, 2012, pg. 222. 10 Ib pg. 222-3

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China, em regiões que nunca experimentavam tais fenômenos. E a causa mais provável para tais tremores seja a construção da gigantesca hidrelétrica de Três Gargantas, que resultou em um enorme lago artificial, e sua pressão sobre a crosta terrestre influenciou o equilíbrio das fissuras subterrâneas tinham ocorrido. Ou seja, a ação humana já pode influenciar até mesmo terremotos.

Para Zizek:

Parece claro que as nações não deveriam adotar rumos socioeconômicos e tecnológicos que desestabilizassem as condições necessárias que permitem a existência de vida no planeta. Infelizmente nos tornamos um agente geológico que perturba as condições necessárias para nossa própria existência.11

1.3 INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS FRENTE À CRISE AMBIENTAL.

Conforme veremos a seguir, são nos momentos de crise

que descobrimos a força de nossas instituições democráticas, e são inúmeros os exemplos em que elas facilmente desmoronam, principalmente frente a desastres ecológicos, crises econômicas ou revoltas sociais.

São inúmeros os casos em que, após desastres ambientais, como terremotos, inundações ou falta de água, a população em meio ao desespero, abandona seus valores éticos, e como se abrisse um “Windows killer”, um estado psicológico de luta pela sobrevivência, capaz de passar por cima de qualquer valor moral, resulta em violência generalizada, abusos de todas as formas, saques estupros e homicídios. Nessas situações, a resposta do estado é decretar Estado de Exceção militarizado e governar por medidas de emergência.

Veremos como a ordem pública se desintegra em explosões violentas e saques após desastres naturais.

O filósofo Slavoj Zizek, em sua obra Violência12, analisa minuciosamente o caso do furacão Katrina que devastou o sul dos Estados Unidos em agosto de 2005. Em suas palavras:

11 Ib pg. 223 12 ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2014

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Durante alguns dias, Nova Orleans regrediu aparentemente para condição de uma reserva natural de saque, chacina e estupro. Tornou-se uma cidade de mortos e moribundos, uma zona pós-apocalíptica por onde erravam aqueles a que o filósofo Giorgio Agamben chama de Homini sacer- pessoas

excluídas da ordem civil. Infiltra em nossas vidas um medo de que uma desintegração semelhante de todo o tecido social possa acontecer a qualquer momento, devido a um acidente natural ou tecnológico- um terremoto, uma ruptura do sistema elétrico ou até mesmo o velho Bug do milênio. Reduza o nosso mundo ao estado de selvageria primitiva. Esse sentimento da fragilidade do nosso laço social é em si próprio um sintoma social. Precisamente quando e onde é de se esperar um impulso de solidariedade frente ao desastre, o que surge é o medo de que o egoísmo mais implacável exploda como explodiu em nova Orleans13.

Contudo a complexidade desse caso é analisada

profundamente pelo autor. Segundo ele, o que permitiu a onda de violência foi à demora e omissão do governo norte americano em tomar providencias e providenciar o resgate e socorro:

o efeito catastrófico imediato ao furacão- a inundação da cidade- deveu-se em grande medida a falhas humanas: as barragens de proteção não eram suficientes, e as autoridades não estavam preparadas para responder às previsíveis necessidades humanitárias que se seguiram. Mas o verdadeiro e maior choque teve lugar depois do acontecimento, enquanto efeito social da catástrofe natural. A desintegração da ordem social chegou como uma espécie de ação diferida, como se a catástrofe natural se repetisse como catástrofe social.14

Por certo que a Luisiana é muitas vezes considerada

para os americanos a “república das bananas dos Estados Unidos”, o terceiro mundo no território americano. A população de Nova Orleans era 68% negra e a maioria pobre e desfavorecida. Seria essa uma boa explicação para o atraso na reação das autoridades.

13 Id pg. 82 14 Ib pg. 83

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Contudo, esclarece o autor que investigações

posteriores revelaram que a maioria dos relatos de violência simplesmente não aconteceu e era boatos criados pela grande mídia e espalhadas como verdades, revelando o caráter preconceituoso da divisão racial e classista dentro dos Estados unidos.

Outro desastre natural mais recente demonstra como as instituições democráticas perdem força frente à Emergência. Em novembro de 2013 o Super tufão Hayan, considerado a tempestade mais forte da história, passou pelas Filipinas e deixou mais de 10 mil mortos. Os relatos dos sobreviventes revelam a situação de caos em que se encontravam como veremos:

De acordo com o Centro de Redução e Gestão de Riscos das Filipinas, cerca de meio milhão de sobreviventes perderam tudo durante o fim-de-semana: os familiares, as casas, o modo de vida, a comunidade. Simplesmente não têm para onde ir - os sobreviventes caminham pelos destroços como zombies, descrevia a Reuters. "Parece um filme de terror", comparava Jenny Chu, uma estudante de Medicina.15

Em Taboclan, o desespero tomou conta dos sobreviventes. Foram relatados saques e pilhagens em mercearias, supermercados e centros comerciais; assaltos a bancos e roubos de máquinas multibanco; casos de violência em hospitais, confrontos e agressões no aeroporto, que funciona como uma plataforma de distribuição de ajuda. "À chegada dos aviões, as pessoas começavam a empurrar-se, a bater-se, ou para chegar aos alimentos ou para serem levadas para longe dali", relataram as irmãs Tayag.16

As pessoas estão a enlouquecer, algumas de fome, outras de dor por terem perdido toda a família", explicava à AFP um professor de Tacloban, Andrew Pomeda, de 36 anos. "A situação é desesperada, as pessoas estão a saquear os supermercados em busca de leite, arroz. A tensão é palpável,

15 http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/tufao-haiyan-pode-ter-deixado-10-mil-mortos-nas-filipinas-32n8s36phm0nlwy1f6lowndce visualizado em 11/06/2015. 16 http://www.publico.pt/mundo/jornal/as-pessoas-estao-a-enlouquecer-algumas-de-fome-outras-de-dor-27384345 visualizado em: 11/06/2015

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e, se a situação se prolongar, na próxima semana vão andar a matar-se uns aos outros com fome", antecipou.17

Em nossa pátria também encontramos vários casos de

saques, roubos e mortes após desastres ambientais:

Um dia após o rompimento de um dique na cidade de Campos de Goytacazes, no norte do Rio de Janeiro, os moradores da localidade de Três Vendas, na zona rural, insistem em ficar em casa nesta sexta-feira (6). A área foi completamente alagada depois que um trecho da rodovia BR-356, que serve como barragem para conter as águas do rio Muriaé, se rompeu, criando uma cratera de aproximadamente 20 metros. Cerca de 1.000 famílias moram na região.18 O diretor da associação de moradores de Três Vendas, André Guedes, afirma que metade da população ainda está no local. “Muitos moradores ainda estão aqui, o medo é de serem roubados, gente que construiu isso tudo em uma vida corre o risco de ser roubada. Permanecem em suas casas aqueles que têm um pavimento acima”, conta o líder comunitário.19

“A reportagem do UOL não viu nenhuma patrulha policial

fazendo a segurança do local20”. Em março de 2004, Santa Catarina levou um susto com a aproximação do ciclone Catarina. Nos últimos dias, (novembro de 2008) o estado sentiu na pele, novamente, uma amostra de como imprevidência humana amplia o poder de destruição de uma "catástrofe natural”. O aguaceiro que desabou por lá arrasou encostas, transbordou rios e deixou um saldo, segundo a Defesa Civil, de quase 80 mil desabrigados, uma centena de mortes, 19 desaparecimentos e afetou a vida de 1,5 milhão de brasileiros.21

17 Idem. 18 http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/01/06/com-inundacao-moradores-de-campos-rj-ficam-em-casa-para-evitar-saques-e-criticam-autoridades.htm visualizado em 11/06/2015 19 Idem. 20 Idem. 21 Idem.

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1.4 CRISE HÍDRICA NO SISTEMA CANTAREIRA

O sistema Cantareira é o maior fornecedor de água da

região metropolitana de São Paulo, atendendo aproximadamente 20 milhões de habitantes. Contudo, desde 2013 os especialistas já alertavam para um possível colapso no fornecimento de água em razão dos baixos níveis dos reservatórios. “A falsa ideia de abundância hídrica no Brasil é um dos fatores que alimenta o desperdício22”.

Podemos levantar algum dos fatores que levaram a esta situação. Em primeiro lugar temos a grande concentração populacional da região. A questão é agravada com o desperdício na rede física, com vazamentos e falta de manutenção nas tubulações. Estima-se que 30% da água tratada é perdida antes de chegar as casas. Outro fator são os baixos índices de saneamento básico. De acordo com o Instituto Trata Brasil23, apenas 53% do esgoto de São Paulo recebe tratamento adequado.

A poluição que chega aos cursos d’água na região metropolitana da capital paulista inviabiliza o reuso da água e acirra a disputa da água pelos municípios. A estiagem histórica na região Sudeste nos últimos dois anos é apenas o ápice de um problema bem maior. Os caminhos para combater esse problema seriam melhorar o saneamento básico e intensificar as políticas de preservação ambiental, principalmente a proteção das áreas produtoras de água e controle do desmatamento.24

Enquanto a SABESP- empresa de capital misto que atua

em serviços de água e esgoto em 364 das 645 cidades paulistas, tem o governo de SP como principal acionista - afirma que o nível dos reservatórios está baixo devido à forte estiagem de chuva nas cabeceiras das represas, sabemos que a omissão do

22 http://www.namu.com.br/?q=materias/crise-de-agua-no-sistema-cantareira 23 INSTITUTO TRATA BRASIL. Saneamento no Brasil. 2014.

Disponível em: <http://www.tratabrasil.org.br/saneamento-no-brasil#SP>. Acesso em: 15 jun. 2015. 24 http://www.namu.com.br/?q=materias/crise-de-agua-no-sistema-cantareira

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governo em falta de planejamento e má gestão dos recursos hídricos são os principais fatores da crise.

A medida adotada pela SABESP para aliviar a crise é a captação do volume morto das represas:

Chamado pela Sabesp de reserva técnica, o "volume morto" é toda água que fica abaixo do nível das comportas e nunca havia sido usado para atender a população. Foi preciso instalar 3 km de tubulações e sete bombas flutuantes, orçadas em R$ 80 milhões, para captar o volume morto nas represas de Nazaré Paulista e Joanópolis. As obras concluídas em maio acrescentaram 182,5 bilhões de litros de água ao total disponível.25

Contudo estudos recentes apontam para a contaminação da água retirada veste volume morto:

O promotor de Justiça e secretário executivo do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema), do Ministério Público do Estado de São Paulo, Ricardo Manuel Castro, criticou a captação das reservas técnicas do Sistema Cantareira durante sessão da CPI na Câmara Municipal, que investiga contratos da Sabesp. Segundo ele, estudos feitos pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), ligada à Secretaria do Meio Ambiente do Estado, indicam que a qualidade da água traz riscos à saúde pública.26

O promotor de Justiça também rejeitou as afirmações da Sabesp de que a extensão da crise hídrica era imprevisível. Segundo ele, o Ministério Público, que ajuizou duas ações civis públicas, entende que “não se trata de imprevisibilidade, mas sim de absoluta falta de planejamento e má gestão dos recursos hídricos do Estado”. “Estou expressando fatos encontrados pelo Ministério Público em suas investigações”, frisou, ao ser questionado por suas afirmações pelo vereador Mário Covas Neto (PSDB). “Há pelo menos 12 anos, a Sabesp e o governo do Estado praticamente nada fizeram em termos de obras para reduzir a dependência da região metropolitana

25 http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/07/entenda-crise-no-cantareira.html Acesso em 15 jun. 2015. 26 http://planetasustentavel.abril.com.br/blog/planeta-agua/estudos-indicam-contaminacao-do-volume-morto-em-sp/?utm_source=redesabril_psustentavel&utm_medium=plus&utm_campaign=redesabril_psustentavel_planetaagua Acesso em 15 jun. 2015.

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22 Temas jurídicos atuais: Volume VI

do Sistema Cantareira, e hoje anunciam pacote de obras dispensando as licitações e dispensando, muitas vezes, o estudo ambiental necessário”, acrescentou Castro.27

Em 22 de setembro de 2014 uma manifestação contra a

falta de água no centro de Itu (102 km de São Paulo), que estava há sete meses em racionamento, terminou em tumulto e violência:

Segundo estimativa da Câmara, cerca de 2.000 pessoas participaram do ato. Um comitê eleitoral de dois políticos da região também foi depredado e os lojistas do comércio da região central fecharam as portas temendo mais confusão.28

"A crise hídrica de São Paulo tem um potencial

socialmente explosivo", diz Ruy Braga, sociólogo da Universidade de São Paulo (USP), que está entre os que enxergam potencial por si só na crise hídrica29.

Segundo Braga, a questão da água é representativa de problemas estruturais não resolvidos relacionados ao processo de desenvolvimento do país, em que pesam as questões do modo de viver na cidade, como a luta por moradia, o acesso a terra e a especulação imobiliária. Para ele, as ainda pouco numerosas e pouco frequentes manifestações em torno da água vão ganhar força porque "é uma crise abrangente o suficiente para detonar o estado de indignação social que tem se acumulado nos últimos anos". Ele acrescenta que a crise da água atravessa todo o Estado de São Paulo, parte do Rio de Janeiro e de Minas Gerais e abarca todas as classes sociais. “A inquietação se manifesta mais agudamente naqueles setores que estão vivendo o rodízio de água. Mas essa inquietação tende a se alastrar, na medida que a crise se aprofunda.”30

Continuando:

27 Idem. 28 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/09/1520497-camara-de-itu-sp-e-apedrejada-em-protesto-por-causa-de-falta-de-agua.shtml acesso em 15 jun. 2015. 29 http://www.ihu.unisinos.br/noticias/537613-protestos-contra-falta-de-agua-podem-se-ampliar- acesso em 15 jun. 2015. 30 Idem.

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O Estado democrático... 23

Para Braga, o problema do "desapossamento" aproxima a crise da água com o problema do transporte. "Não podemos esquecer que a Sabesp foi privatizada. Ela remunera seus acionistas com milhões de reais todo ano, tem uma gestão financeirizada, orientada fundamentalmente ao interesse dos seus acionistas e não em função da maior parte da população, que, nesse sentido, foi espoliada do recurso natural mais elementar, que é a água.31

Em todas as situações retratadas, com gente demais (São Paulo), água demais (Rondônia) ou água de menos (Nordeste), percebe-se que o Brasil ainda não despertou para a necessidade de adaptar-se a eventos extremos-sejam ou não efeito de transformações globais– que afetam a mais básica necessidade humana: água. Para beber, plantar, limpar e pescar.32

Os casos acima expostos revelam a fragilidade das

instituições democráticas frente a desastres naturais e revelam o surgimento de um novo comportamento humano, cruel e violento, que frente ao desespero e ao abandono, “luta” para sobreviver.

Ou seja, vimos o potencial da ordem pública se desintegrar em explosões violentas e saques e vandalismo após desastres naturais. A partir de agora será analisado o comportamento psicossocial desse ser “largado a própria sorte”. 1.5 A PERSONALIDADE TRAUMATIZADA: O HOMEM PÓS-TRAUMA Neste trabalho estamos interessados em investigar o homem “pós-trauma”, enquanto categoria social e jurídica e apresentar o que seria uma possível personalidade que explique o comportamento violento do ser que abandona o convívio civilizado padrão, e passa a lutar pela sobrevivência, ignorando padrões éticos e morais, frente à incapacidade das instituições democráticas e do direito fazer incidir suas normas nos momentos de crises.

31 Idem. 32 http://arte.folha.uol.com.br/ambiente/2014/09/15/crise-da-agua/ acesso em 15 jun. 2015.

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Neste sentido o Filosofo e psicanalista Slavoj Zizek, em sua obra Vivendo no fim dos tempos33, analisa como hoje em dia, as vítimas de traumas sociopolíticos trazem o mesmo perfil de vítimas de catástrofes naturais ou acidentes graves.

Traz que, para Freud e Lacan, trauma: “é a intromissão violenta de algo totalmente inesperado, algo para qual o sujeito não estava preparado, algo que o sujeito não consegue integrar34”. E que o trauma externo é “suprassumido”, interiorizado, e seu impacto se deve ao fato do real ser despertado por intermédio o trauma. Importa para o avanço da nossa pesquisa saber que:

Hoje, contudo, nossa própria realidade sociopolítica impõe versões múltiplas das intromissões externas, traumas que são apenas interrupções brutais e sem sentido que destroem a estrutura simbólica da identidade do sujeito. Há em primeiro lugar a violência física brutal: ataques terroristas como os do 11 de setembro, o bombardeio de “choque e pavor” dos Estados Unidos contra o Iraque, a violência das ruas, os estupros etc., as também as catástrofes naturais, os terremotos, os furacões etc. Há, em segundo lugar, a destruição “irracional” (sem sentido) da base material de nossa realidade interior (tumores cerebrais, mal de Alzheimer, lesões no cérebro etc.), que podem mudar totalmente e até destruir a personalidade do doente. Há, por fim, os efeitos destrutivos da violência sociosimbólica, como a exclusão social35.

Continuando, Zizek traz que o capitalismo global gera uma nova doença traumática com os mesmos efeitos de uma lesão cerebral:

Se para nós, no ocidente desenvolvido, o trauma é vivido em geral como uma intromissão momentânea, que perturba violentamente nossa vida cotidiana (uma ataque terrorista, um assalto ou um estupro, terremotos ou tornados...), o que dizer daqueles para quem o trauma é um estado de coisas permanente, um modo de viver, como para quem vive em países destruídos pela guerra, como o Sudão e o Congo? (...) o que resta não é o espectro do trauma, mas o próprio trauma.

33 ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos- São Paulo: Boitempo, 2012 34 Id pg. 197 35 Ib pg. 200

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O Estado democrático... 25

É quase um oximoro denomina-los sujeitos “pós-traumáticos”, já que o que torna a sua situação tão traumática é a própria persistência do trauma36.

Desta forma ele afirma que hoje em dia as vítimas de

traumas sociopolíticos trazem o mesmo perfil das vítimas de catástrofes naturais ou acidentes graves. Os choques externos destroem a psique da vítima, resultando no surgimento de um novo sujeito que “sobrevive à própria morte”. Suas características são: “ausência de envolvimento emocional, profunda indiferença e desapego; trata-se de um sujeito que não está mais “no mundo” no sentido heideggeriano37”.

O autor se questiona se: “o século XXI não será o século do sujeito pós-traumático desengajado, cuja primeira imagem emblemática, a do muselmann dos campos de concentração, multiplica-se na forma de refugiados, vítimas de terrorismo, sobreviventes de catástrofes naturais ou da violência familiar?”38

A relação entre o homem pós-trauma (homo Sacer) e as crises ecológicas permitem a decretação do Estado de Exceção, a decretação da “Emergência” pelo poder executivo, e os riscos que esta prática política pode causar as instituições democráticas.

Giorgio Agamben39 demonstra como grupos que estão no poder podem valer-se de momentos de crises e instabilidades institucionais para legitimar, de forma constitucional, sua permanência no poder por meio da adoção de “medidas excepcionais” com os quais possa restringir direitos e garantias fundamentais dos cidadãos chegando ao extremo da eliminação física de adversários políticos ou categorias inteiras de cidadãos.

Conforme foi demonstrado, verificamos que não é rara a hipótese das instituições democráticas- constituição- falharem após desastres naturais como o Furacão Katrina que assolou Nova Orleans em 2008, ou a crise hídrica do sistema Cantareira no solo pátrio no início de 2015. Que o comportamento comum que pode aparecer nessas situações de caos e desespero é a

36 Ib pg. 200-1 37 Ib pg. 201 38 Id pg. 202 39 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua I, trd. Henrique Burigo, 2 ed., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010 (Homo Sacer – Il Potere Sovrano e la nuda vita).

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revolta da população frente à ineficiência do Estado em lhe garantir seus direitos fundamentais, e que este pode aproveitar-se da situação de “Emergência” para decretar a Exceção e governar com amplos poderes, inclusive colocando os militares contra a população desesperada, para manter a ordem estabelecida- qualquer ordem.

Vimos ainda à despreocupação dos governos em âmbito global com a proteção do meio ambiente e as consequências alarmantes que podem ocorrer em todo o globo como o aquecimento global que ameaça a vida humana como um todo.

Veremos agora as principais causas e efeitos da crise hídrica segundo o pensamento de Zulmar Fachin em sua obra: Acesso à Água Potável- Direito Fundamental de Sexta Dimensão40.

1.6 ÁGUA POTÁVEL ENQUANTO DIREITO CONSTITUCIONAL.

Conforme o professor Fachin: “Apesar de parecer abundante, esse recurso é escasso. A água doce não se acha distribuída uniformemente no planeta. (...) Se, em termos globais, a água doce é suficiente para todos, sua distribuição nas diversas áreas do mundo não segue um padrão homogêneo41”.

Fachin traz o ensinamento de Maurício Waldman, em sua obra Natureza e sociedade como espaço de cidadania: “No início do século XXI, a imagem das grandes cidades está marcada por favelas, poluição do ar e das águas, enchentes, desmoronamentos, crianças abandonadas e violência (...). A depredação ambiental é inseparável do caos urbano nacional. A ausência de uma política habitacional tem como resposta a ocupação de áreas ambientais férteis, caso da beira dos córregos, encostas íngremes, várzeas inundáveis e áreas de proteção dos mananciais, que constituem a única alternativa para os excluídos do mercado residencial formal42”.

40 FACHIN, Zulmar. Acesso à água potável: direito fundamental de sexta dimensão/ Zulmar Fachin e Deise Marcelino da Silva. Campinas, SP: Millenium Editora, 2010. 41 Ib pg. 18. 42 Ib Pg. 29

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Logo, temos que a poluição das águas está longe de ser

um fator exclusivamente ambiental, por envolver questões econômicas, sociais e políticas.

O professor José Afonso da Silva entende que poluição da água é: “qualquer alteração de suas propriedades físicas, químicas ou biológicas que possam importar prejuízo à saúde, à segurança e ao bem estar das populações, causarem dano à flora e à fauna ou comprometer seu uso para fins sociais e econômicos43”.

Veremos agora como o professor Zulmar Fachin enfrenta a questão da constitucionalização do direito à água potável.

A proteção dos Direitos Fundamentais acompanha o curso da história e se acresce das novas necessidades humanas. No contexto atual, novos desafios se apresentam a sociedade- crise ambiental- e exigem da ciência jurídica novos instrumentos para garantir o equilíbrio de forças sociais.

De um lado temos o poder econômico, sempre avido por progresso, que transforma a natureza de forma bruta, nem sempre para melhor. De outro lado a massa social que sofre com os desastres ambientais e as doenças, porém não é isenta de culpa por jogar lixo e contaminar a natureza. Por fim aparece a figura do Estado, que trabalha de forma lenta e burocrática no sentido de proteger os bens naturais, desenvolver obras públicas e infraestrutura de prevenção de desastres e principalmente por negar acesso à informação e educação da população, sobre medidas protetivas e preventivas.

Ante o exposto, o professor Zulmar Fachin entende por necessário a constitucionalização do direito à água potável, para que esta norma fundamental vincule as três esferas de governo, incidindo deveres e mudança de atitudes tanto para o poder judiciário, executivo e legislativo. Logo se vê a necessidade de uma mudança de atitude, tanto da sociedade como do Estado.

Na referida obra de Zulmar Fachin encontramos que:

Afirma-se agora, a existência de uma sexta dimensão de direitos fundamentais. A água potável, componente do meio ambiente ecologicamente equilibrado, merece ser destacada e

43 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 6º ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

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alçada a um plano que justifique o nascimento de uma nova dimensão de direitos fundamentais44.

Neste sentido, água potável deve ser aquela adequada

ao consumo humano, que não cause doenças, enquanto o tratamento deve reduzir os agentes contaminantes para que não causem riscos à saúde pública.

Este jurista entende a necessidade da mudança de atitude na postura do Estado nas três esferas de poder. O judiciário deve decidir de modo a concretizar água como direito fundamental. O executivo deve criar políticas públicas para efetivar o cumprimento das decisões, enquanto o legislativo tem o dever de promulgar leis que priorizem a proteção e promoção desse novo direito, e limitem o poder do estado.

Fundamental para a efetivação desse direito é a conscientização da população, por meio da educação ambiental, do dever de proteger esse patrimônio coletivo.

Neste sentido ressalta a necessidade de sua constitucionalização:

Afirmou-se que o acesso à água potável é um direito fundamental. Nessa condição, ele necessita receber proteção jurídica expressa em benefício e cada pessoa. Tal proteção jurídica deve estar primeiramente na constituição federal, porquanto este é o local específico para abranger tais direitos45.

Gomes Canotilho ensina que a missão do direto

constitucional é transformar a sociedade e projetá-la aos objetivos da modernidade, expressando a liberdade, igualdade e fraternidade elevando-a a uma “utopia transformadora” pela constituição46.

Segundo Luís Roberto Barroso: “O novo século se inicia fundado na percepção de que o direito é um sistema aberto de valores. A Constituição, por sua vez, é um conjunto de princípios

44 Ib Pg. 74 45 Ib pg. 75 46 CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991.

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e regras destinados a realiza-los, a despeito de se reconhecer nos valores uma dimensão suprapositiva47”. 1.7 CONSIDESAÇÕES FINAIS

Frente à crise ambiental, à escassez de água potável, seu desperdício, enfim, e a fim de evitar maiores tragédias sociais após desastres ambientais, como surgimento do homem “pós-trauma” e o “Homo Sacer”, entendemos a necessidade de positivar a água potável enquanto direito fundamental a existência humana na constituição federal, conforme o pensamento do professor Zulmar Fachin.

Em sua obra ele esclarece que os direitos fundamentais são historicamente construídos; que hoje se impõem a necessidade de proteção da água potável para evitar catástrofes futuras- como as recentemente vistas no sistema Cantareira em São Paulo; Sustenta a existência de uma sexta dimensão dos direitos fundamentais e a necessidade da positivação deste direito na constituição por meio de uma Emenda Constitucional, como já ocorreu em outros países.

Tal dispositivo teria o seguinte texto: “Todos têm direito de acesso à água potável, devendo o Estado criar condições necessárias à sua efetiva concretização”.

A teoria neoconstitucionalista supera o fracasso político do positivismo científico ao se comprometer com a positivação de valores humanos, reforçando a importância da reflexão filosófica, ética e democrática como o direito à vida e à dignidade humana.

Neste sentido o estado e a sociedade têm o dever de preservar os recursos hídricos para a geração presente e futura. A juridicidade deste direito fica mais forte dentro da constituição, vinculando o poder estatal e todos os indivíduos. 1.8 REFERÊNCIAS AGAMBEM, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo,

2004. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida

Nua I, trd. Henrique Burigo, 2 ed., Belo Horizonte: Editora

47 Idem.

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30 Temas jurídicos atuais: Volume VI

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O Estado democrático... 31

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deixado-10-mil-mortos-nas-filipinas-32n8s36phm0nlwy1f6lowndce visualizado em 11/06/2015.

http://www.publico.pt/mundo/jornal/as-pessoas-estao-a-enlouquecer-algumas-de-fome-outras-de-dor-27384345 visualizado em: 11/06/2015

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= II =

O DIREITO À PROPRIEDADE DO INVENTOR E A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA SUA PROPRIEDADE

INDUSTRIAL

Edmila Adriana Denig* Andryelle Vanessa Camilo Pomin**

2.1 INTRODUÇÃO A Propriedade Industrial é o título de concessão do

Estado para exploração exclusiva de marcas, de patentes, de desenhos industriais, e de outros bens. Ela está tutelada no ordenamento jurídico pátrio e tem a finalidade de proteger o interesse do inventor e de fomentar o desenvolvimento econômico e tecnológico do país.

Assim como outras categorias de propriedade, a propriedade industrial está sujeita ao cumprimento do princípio da função social.

O respeito incondicionado a este princípio pode ferir o direito de seu criador, violando alguns de seus direitos considerados personalíssimos, já que a propriedade industrial é fruto do seu intelecto e, muitas vezes, resultado de grande esforço e investimento.

* Mestranda em Propriedade Industrial e Inovação no Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Possui graduação em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (2014) e graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Maringá (2009). Atualmente é advogada - Atlas-PI Propriedade Intelectual Ltda. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Propriedade Industrial, atuando principalmente no seguinte tema: marca, registro, investimento. ** É graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (2005), especialista "lato sensu" em Direito Público pela Universidade Potiguar (2008), e mestre em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário Cesumar (UniCesumar). Professora dos cursos de graduação em Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e do UniCesumar. Coordenadora da Extensão do Juizado Especial Cível do UniCesumar. Pesquisadora pelo CNPQ em Direitos das Minorias, novos Direitos e Direitos da Personalidade. Advogada militante.

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O direito à propriedade do inventor... 33

O presente trabalho visa analisar este conflito de interesses entre o particular, daquele que se dedicou a criação do invento, e por direito detém a propriedade do mesmo, em face do interesse coletivo, especialmente daqueles que necessitam se utilizar deste invento, e não podem se submeter às condições de seu inventor.

Tratará, também, da imposição do Estado sobre a exploração de patentes, no que diz respeito ao cumprimento de sua função social. A partir da revisão doutrinária relacionada ao assunto, da legislação pertinente e de demais documentos eletrônicos, pretende-se determinar as consequências da interferência do Estado na propriedade industrial, especialmente, quando o mesmo impõe uma sanção pelo não cumprimento da sua função social, já que o bem em questão trata-se de fruto intelectual. E ainda, se essa interferência é legítima, quando pautada pela defesa do interesse coletivo.

2.2 DO CONCEITO E DISCIPLINA JURÍDICA DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL

A criação de soluções para problemas do dia a dia, e a

invenção de novos objetos para facilitar a vida humana, estão inteiramente ligados ao desenvolvimento da sociedade. Cada descoberta nova, desde a pré-história até a atualidade, foram ampliando a capacidade do homem. Tais descobertas e invenções estão presentes em todas as áreas necessárias para a sobrevivência humana, como a medicina, a química, a mecânica a elétrica e outras.

O advento da industrialização, e o consequente acirramento da concorrência entre as nações, intensificou a necessidade de criação de um meio para se proteger as invenções, o que fez surgir o sistema de Propriedade Intelectual.

A propriedade intelectual é o meio pelo qual as ideias criativas humanas são protegidas, tornando-se então uma propriedade daquele que se esforçou intelectualmente para produzi-la, nos campos industrial, científico, literário e artístico.

Como conceituou Robert M. Sherwood:

A propriedade intelectual é um conjunto de duas coisas: primeiramente são idéias, invenções e expressão criativa, que são essencialmente resultado da atividade privada. Em

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34 Temas jurídicos atuais: Volume VI

segundo lugar, há o desejo do público de fornecer o status de propriedade a essas invenções e expressões. Em outras palavras, a invenção e a expressão criativa, mais a proteção, constituem a propriedade intelectual.1

Essas atividades intelectuais são também chamadas de

ativos intangíveis ou bens incorpóreos, que por definição, são os bens que não possuem existência física e são baseados em conhecimento.

A Lei da Propriedade Industrial nº 9.279 de 1996, em seu art. 5º, considera a propriedade industrial como bens móveis para os efeitos legais2.

A propriedade intelectual é, usualmente, dividida em direito autoral e propriedade industrial. Esses dois segmentos, apesar de serem similares, recebem tratamento jurídico distinto, tanto quanto a proteção, bem como quanto aos direitos pessoais e patrimoniais deles decorrentes.

Tal é a relevância do tema, que em convenções internacionais já foi objeto de discussão em diversos tratados. Um dos tratados internacionais mais importantes sobre a matéria – A Convenção da União de Paris (CUP)3, definiu a propriedade industrial como o conjunto de direitos que compreende as patentes de invenção4, os modelos de utilidade5, os desenhos ou modelos industriais6, as marcas de fábrica ou de comércio,

1 SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico; tradução de Heloísa de Arruda Villela. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992, p 22. 2 BRASIL. Lei nº 9.279 de 14 de maio de 1996. 17 ed. São Paulo: Saraiva 2014. 3 INPI 2013, disponível em: http://www.inpi.gov.br/images/stories/CUP.pdf 4 Patente de invenção é o invento que cumpre os requisitos legais de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial (artigo 8º da Lei nº 9.279 de 1996). 5 Modelo de Utilidade é o objeto de uso prático, ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação (artigo 9º da Lei nº 9.279 de 1996). 6 Desenho Industriai é a forma plástica ornamental de um objeto ou o conjunto ornamental de linhas e cores que possa ser aplicado a um produto, proporcionando resultado visual novo e original na sua configuração externa e que possa servir de tipo de fabricação industrial

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O direito à propriedade do inventor... 35 as marcas de serviço7, o nome comercial8, as indicações de procedência9 ou denominações de origem10 e a repressão da concorrência desleal11. Note-se contudo, que dentre todos estes apenas a patente será objeto de análise neste trabalho.

No Brasil, o órgão responsável pelo andamento dos processos e concessão das propriedades industriais é o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Trata-se de uma autarquia vinculada ao Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, e é órgão responsável na esfera

(artigo 95 da Lei nº 9.279 de 1996). A expressão modelo industrial era a terminologia utilizada na lei anterior pertinente à matéria: Código da Propriedade Industrial, Lei No 5.772, de 21 de Dezembro de 1971, termo não mais utilizado atualmente no ordenamento pátrio. 7 Marcas são os sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais (artigo 122 da Lei nº 9.279 de 1996. O Código da Propriedade Industrial, Lei No 5.772, de 21 de Dezembro de 1971 fazia a divisão entre marca de fábrica e comércio e marca de serviço, tal divisão terminológica não foi adotada da nova lei da Propriedade Industrial, que a apenas adota a divisão entre classes de comércio e classes de serviço. Por outro lado, a nova lei (artigo 123 da Lei nº 9.279 de 1996 faz a distinção de marca de produto e serviço (aquela usada para distinguir produto ou serviço de outro idêntico, semelhante ou afim, de origem diversa), marca coletiva (aquela usada para identificar produtos ou serviços provindos de membros de uma determinada entidade) e marca de certificação (aquela usada para atestar a conformidade de um produto ou serviço com determinadas normas ou especificações técnicas, notadamente quanto à qualidade, natureza, material utilizado e metodologia empregada). 8 Considera-se nome empresarial a firma ou a denominação adotada, para o exercício de empresa (artigo 1.155, Código Civil de 2002). 9 Considera-se indicação de procedência o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço (artigo 177 da Lei nº 9.279 de 1996). 10 Considera-se denominação de origem o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos (artigo 178 da Lei nº 9.279 de 1996). 11 Constitui ato de concorrência desleal todo ato de concorrência contrário às práticas honestas em matéria industrial ou comercial (Art. 10 bis (2ª p. da Convenção da União de Paris).

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36 Temas jurídicos atuais: Volume VI

administrativa e ainda, consultado pela esfera jurídica em caso de conflitos12.

Segundo dados disponíveis no site do INPI, só no ano de 2013, foram realizados 33.989 pedidos de patentes, número que reforça a relevância deste estudo.

A lei brasileira que regula a matéria de propriedade industrial é a Lei nº 9.279 de 1996 – Lei da Propriedade Industrial, que substitui a Lei nº 5.772 de 1971 denominada de Código da Propriedade Industrial, substituição esta que surgiu da necessidade do Brasil em se adequar às normas internacionais de proteção industrial, após a Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, em inglês, General Agreement on Tariffs and Trade (GATT)13, que se iniciou em 1986.

Após várias discussões e negociações, no ano de 1994 esse acordo deu origem ao Acordo TRIPS – Acordo Sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio14. Este buscava a unificação da propriedade intelectual entre os países desenvolvidos e os emergentes, e representava um pressão internacional para modernização e adequação da legislação brasileira, já que a globalização e o avanço tecnológico aumentaram a circulação de mercadorias e informações, oportunizando a pirataria.

Segundo Haroldo Romanzini Júnior o Brasil resistiu em tratar sobre propriedade intelectual:

Os países em desenvolvimento, com destaque para o Brasil e para a Índia, reagiram com vistas a tentar reduzir a interferência do GATT na dinâmica doméstica e bloquear a

12 O INPI pode ser consultado, por exemplo, pelo juízo de onde tramita um processo judicial para confirmar a validade ou andamento do processo do registro ou patente. É ainda obrigatória sua participação como réu em processos de nulidade ou adjudicação de um determinado registro ou patente. 13 GATT passou por diferentes rodadas de negociação, a Rodada do Uruguai, que deu ênfase aos assuntos pertinentes a países em desenvolvimento. Dentre outros resultdados o final da Rodada Uruguai criou a Organização Mundial do Comércio e deu início às negociações do primeiro relevante acordo internacional sobre propriedade industrial. 14 INPI 2013, disponível em: http://www.inpi.gov.br/images/stories/27-trips-portugues1.pdf

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O direito à propriedade do inventor... 37

incorporação de novos temas na agenda, em especial, serviço, propriedade intelectual e investimentos. 15

Entende-se que tal resistência deve-se justamente ao

fato da incorporação de novas categorias de patentes, o que acarretaria em uma edição de lei totalmente nova e na necessidade de adequação do corpo técnico do INPI, já que até este momento não existia na legislação brasileira, patentes de fármacos, de químicas e de alimentos, mas, sobretudo, pelo aumento dos custos de produtos que seriam novos objetos de patente no Brasil.

Neste sentido:

Os países de origem das grandes empresas, como maciços investimentos em pesquisa, ciência e tecnologia, querem, evidentemente, que as patentes tenham a maior proteção possível, porque isso é benéfico para eles. Os países que produzem poucos produtos patenteados são, em geral, consumidores, como o Brasil, e querem, ao contrário, que as patentes, se existirem, tenham a maior flexibilidade possível.16

Foi também pelo fato do Brasil aderir ao acordo TRIPS

que surgiu a necessidade de aprimorar as regras para a licença compulsória para as patentes no ordenamento pátrio. Pois, ao se introduzir os medicamentos como produtos passíveis de exploração exclusiva, problemas como necessidade pública, calamidades, epidemias e tudo que estivesse relacionado com questões de saúde, poderia sofrer sérios problemas se a possível solução fosse um medicamento que estivesse no domínio de um único titular.

O decreto que prevê a licença compulsória será apresentado no item 3 deste trabalho, destinado a tratar da função social da propriedade industrial.

15 ROMANZINI JÚNIOR, Haroldo, O Brasil e as Negociações no Sistema GATT/OMC: Uma análise da Rodada Uruguai e da Rodada Doha, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 26 e 27. 16 INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Acordo TRIPS: acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade Intelectual. Brasília: INESC, 2003, p. 21.

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38 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Antes do acordo TRIPS, a Constituição Federal de 1988

em seu art. 5º, inc. XXIX, já previa a proteção dos direitos à propriedade industrial como garantia fundamental:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

O inc. XXIX destaca a importância do interesse social e

do desenvolvimento tecnológico e econômico do país que também serão abordados no item 3 deste trabalho.

2.2.1 Invenções

As criações humanas são frutos da adaptação do

homem à própria vida, uma forma de sobreviver e evoluir. Neste sentido

O poder da inteligência do homem e a atividade da sua imaginação criadora manifestam-se no domínio das artes e das ciências, como no campo da técnica e das industrias, em obras de vários gêneros, que encontram proteção na lei e constituem origem de variadas relações jurídicas.17

Uma criação intelectual, portanto, pode encontrar

proteção jurídica em diferentes textos legais, isso porque, são classificados em direitos imateriais distintos, com objetivos também distintos.

A invenção, por sua vez, está relacionada como uma nova forma de tecnologia, no sentido de criar novos objetos que visam solucionar problemas de ordem prática. Segundo José Henrique Pirangeli:

17 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. 1, t.1, p. 33.

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O direito à propriedade do inventor... 39

[...] criações se distinguem da invenção pelos fins que almejam, pois, enquanto as invenções se dirigem para a satisfação de exigências e necessidades de ordem prática ou técnica, as criações artísticas objetivam uma satisfação de ordem espiritual [...]. Seguindo essa ordem de ideias, não se pode incluir no âmbito de abrangência da lei as concepções meramente teóricas ou abstratas, que não podem oferecer qualquer conteúdo prático [...].18

Neste sentido, denota-se que a invenção se distingue da criação, pela finalidade a que se destina, sendo que a invenção está voltada a atividade industrial. Outra distinção que deve ser observada é a diferença da invenção em relação as descobertas e concepções abstratas, porque aquela não resulta, em si, da criação do homem, não podendo ser considerada invenção ou modelo”19. Descobrir algo não requer atividade inventiva, portanto, não pode ser considerada uma invenção. Já a concepção abstrata, por sua vez, de acordo com a definição dada pelo INPI é o processamento que não manipula diretamente forças da natureza ou proporciona a transformação da matéria, tampouco representa dados físicos e que proporcionem efeitos técnicos tais como métodos que otimizam recursos de hardware ou que confiram maior confiabilidade e segurança20.

Logo, uma invenção, requer uma atividade intelectual de seu criador, deve ainda, compreender as leis da física e da mecânica para que seja possível transportar a ideia do campo intelectual para o campo material, dessa forma alcançara o objetivo a que se destina, sendo possível sua industrialização, conforme denota João da Gama Cerqueira:

Todas as invenções industriais visam a um destes fins: criar novos produtos ou objetos materiais, ou criar novos meios para

18 PIERANGELI, José Henrique. Crimes Contra a Propriedade Industrial e Crimes de Concorrência Desleal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 86. 19 Instituto Danneman Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual. Comentários à Lei de Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 24. 20 Coordenação-Geral De Patentes, Procedimentos para o Exame de Pedidos de Patentes Envolvendo Invenções Implementadas por Programa de Computador, INPI 2011, p.10.

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40 Temas jurídicos atuais: Volume VI

se obter determinados efeitos, os quais tanto podem concretizar-se em um corpo ou objeto material (produto), como manifestar-se em um simples estado de coisas (resultado).21

No entanto, entender do que se trata uma invenção não

é suficiente para chegar ao conceito de uma patente, pois a patente, protege o invento concedendo o direito de privilégio do inventor.

Assim, deve-se ressaltar que nem todas as invenções, podem ser objeto de privilégio, mas apenas as que satisfizerem as condições que a lei estabelece. Dessa forma, concluísse, em primeiro lugar, que a noção de invenção privilegiável, pressupõe o conhecimento do conceito de invenção, em seu aspecto técnico, pois privilegiável é, simplesmente, a invenção que preenche as condições a que a lei subordina a concessão de patente. Em segundo lugar, mas com o mesmo entendimento que a noção de invenção privilegiável decorre exclusivamente da lei, a qual, pressupondo a existência de invenção, estabelece condições para a concessão da patente, ao mesmo tempo que indica as invenções excluídas da proteção legal.22

Portanto, para se conseguir obter uma patente é preciso que o objeto tenha a característica de invenção e, necessariamente, atenda os requisito legais. O próximo item trata da definição e dos requisitos legais da patente.

2.2.2 Patente

Para o art. 6º da Lei da nº9.279/1996, ao autor de

invenção ou modelo de utilidade será assegurado o direito de obter a patente que lhe garanta a propriedade, nas condições estabelecidas nesta Lei.

Por este dispositivo legal, observa-se que a patente é o título que irá conferir a propriedade da invenção ao autor, desde que esta obedeça aos requisitos legais.

João da Gama Cerqueira define que: Por meio da patente o Estado reconhece o direito do inventor, assegurando-lhe a propriedade da invenção e o seu uso

21 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. 2, t.1, p. 37. 22 Ibidem, p. 33.

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O direito à propriedade do inventor... 41

exclusivo pelo prazo da lei. Além disso, pela patente determina-se precisamente o objeto da invenção, sobre o qual recai o direito do inventor, e fixam-se os termos inicial e final do privilégio.23

É a patente, portanto, que irá garantir que a invenção

criada por um sujeito que preencha os requisitos legais irá proporcionar o privilégio da propriedade da invenção e garantir seu uso exclusivo por prazo determinado.

A definição dada pelo INPI, acrescenta ainda algumas vantagens da patente, como a sucessão e o direito de impedir que terceiros façam uso da sua invenção:

A Patente é um título de propriedade temporário outorgado pelo Estado, por força de lei, que confere a seu titular, ou aos seus sucessores, o direito de impedir terceiros, sem o seu consentimento, de produzir, usar colocar a venda, vender ou importar produto objeto de sua patente e/ou processo ou produto obtido diretamente por processo por ele patenteado. 24

Dessa forma, a patente implica nas mesmas vantagens

e características de qualquer outra propriedade. Seu titular se torna detentor exclusivo dela e tem o direito de controlar seu domínio, seja licenciando, alienando ou explorando, direito esse que tem efeito sobre terceiros e que não cessa com a morte do inventor, passando a constituir o patrimônio dos herdeiros.

Uma das principais diferenças entre a propriedade de uma patente comparado a outro bem tangível é o meio de obtenção. Conforme determina o Ministério da Indústria e Comércio, “a concessão da patente é um ato administrativo declarativo, ao se reconhecer o direito do titular, e atributivo (constitutivo), sendo necessário o requerimento da patente e o seu trâmite junto à administração pública.” 25

23 Ibidem, p. 103. 24 INPI 2012. Disponível em: http//www.inpi.gov.br. 25 http://www.mdic.gov.br/sistemas_web/aprendex/cooperativismo/index/apexctd/id/33

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42 Temas jurídicos atuais: Volume VI

2.2.2.1 Requisitos da patente

A obtenção de uma patente é bastaste criteriosa, o

pedido deve conter informações suficientes para que o técnico do INPI analise seu funcionamento, objetivo e aplicação industrial, conforme o art. 19 da Lei 9.279/1996, a descrição deverá ser pormenorizada:

Art. 19. O pedido de patente, nas condições estabelecidas pelo INPI, conterá: I - requerimento; II - relatório descritivo; III - reivindicações; IV - desenhos, se for o caso; V - resumo; e VI - comprovante do pagamento da retribuição relativa ao depósito.

Para a invenção alcançar uma carta patente deverá

atender os requisito legais de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial, elencados no art. 8º (se for considerada uma patente de invenção) e 9º, (se considerado um modelo de utilidade) da Lei 9.279/1996:

Art. 8º É patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Art. 9º É patenteável como modelo de utilidade o objeto de uso prático, ou parte deste, suscetível de aplicação industrial, que apresente nova forma ou disposição, envolvendo ato inventivo, que resulte em melhoria funcional no seu uso ou em sua fabricação.

Marcelo Augusto Scudeler esclarece o conceito desses

requisitos nos seguintes termos:

A novidade deve ser entendida como condição fática de que um objeto, para ser patenteado, deve representar uma novidade para a sociedade, isto é, totalmente desconhecido [...] O segundo requisito para a concessão da carta patente é que o objeto seja resultado de uma atividade inventiva, que

corresponde ao esforço intelectual do inventor. Nos termos do artigo 13 da LPI, a invenção é dotada de atividade inventiva

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O direito à propriedade do inventor... 43

sempre que, para um expert, a criação não represente um objeto de conteúdo óbvio e comum. [...] Por fim, exige-se que o objeto patenteado tenha aplicação industrial, no sentido de que esse objeto possa ser reproduzido em escala industrial, em uma linha de produção. Nesse ponto é afastada a possibilidade de patenteamento de manifestações artísticas, ou ideias e conceitos abstratos.26

Consequentemente, uma invenção, para ser objeto de

patente, além de ser nova para a sociedade, constituir atividade inventiva de seu criador, deve ser voltada para a indústria, tendo capacidade de ser produzida em escala, tornando-se um produto tangível, assim, descantam-se ideias e concepções abstratas.

O art. 10 da Lei 9.279/1996 apresenta uma extensa lista do que não pode ser patenteado:

Art. 10. Não se considera invenção nem modelo de utilidade: I - descobertas, teorias científicas e métodos matemáticos; II - concepções puramente abstratas; III - esquemas, planos, princípios ou métodos comerciais, contábeis, financeiros, educativos, publicitários, de sorteio e de fiscalização; IV - as obras literárias, arquitetônicas, artísticas e científicas ou qualquer criação estética; V - programas de computador em si; VI - apresentação de informações; VII - regras de jogo; VIII - técnicas e métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnóstico, para aplicação no corpo humano ou animal; e IX - o todo ou parte de seres vivos naturais e materiais biológicos encontrados na natureza, ou ainda que dela isolados, inclusive o genoma ou germoplasma de

26 SCUDELER, Marcelo Augusto. Do Direito das Marcas e da Propriedade Industrial. Campinas, SP: Servanda Editora, 2013, p. 36 e 37.

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44 Temas jurídicos atuais: Volume VI

qualquer ser vivo natural e os processos biológicos naturais.

Algumas dessas delimitações impostas pelo art. 10

estão totalmente em harmonia com os requisitos de atividade inventiva ou de aplicação industrial, outros, são excluídos do processo de patente, por estarem previstos em legislação específica, e ainda, podem constituir apenas proibição legal.

Desse modo, carecem de atividade inventiva a “descoberta” (inc. I), conforme explica o Instituto Dannemann Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual.

A simples descoberta não resulta, em si, da criação do homem, não podendo ser considerada invenção ou modelo. Porém, os meios para se chegar à descoberta e seu uso, podem, eventualmente, constituir matéria privilegiável.27

E também “o todo ou parte de seres vivos naturais” (inc.

IX), “(...) foi introduzida neste artigo para representar “descobertas”, onde não houve processo criativo desenvolvido pelo homem que resulte em uma invenção”28

Quanto à inaplicabilidade industrial, esta é intrínseca às “teorias científicas e métodos matemático” (inc. I), às “concepções puramente abstratas” (inc. II), aos esquemas ou métodos comerciais (inc. III), e às apresentação de informações (inc. VI).

Já as “obras literárias e científicas” (inc. IV); os“programas de computador” (inc V); e as “regras de jogo” (inc VII), além de não ter aplicação industrial, são disciplinados pela Lei dos Direitos Autorais: Lei nº 9.610 de 1998 e Lei de Programas de Computador: Lei nº 9.609 de 1998.

Em relação às “técnicas operatórias ou cirúrgicas e métodos terapêuticos” (inc. VIII), observa-se que trata-se de uma proibição legal, na qual, foi uma inovação da Lei nº 9.279/199629,

27 Instituto Danneman Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual. Comentários à Lei de Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 24. 28 Ibidem, p. 26. 29 O inc VIII tem basicamente o mesmo texto do Acordo TRIPs art. 27 (3.a) 3. Os Membros também podem considerar como não patenteáveis:

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O direito à propriedade do inventor... 45 porém, na opinião do Instituto Dannemann Siemsen, a proibição se dá, provavelmente por um posicionamento filosófico:

Não é pacífico, no entanto, o entendimento de que estas matérias não constituem invenção por definição e a exclusão aqui deve ser creditada mais a um posicionamento filosófico do que conceitual, inclusive porque o Código de 1971 não excluía a patenteabilidade dos métodos de diagnóstico. Havendo possibilidade de executar um técnica ou método em escala, deve se considerar que o requisito de aplicabilidade industrial está presente.30

Logo, o motivo da proibição não conta com consenso

doutrinário, visto que estão revestidos de atividade inventiva e aplicação industrial.

2.2.2.2 Algumas observações da tramitação do processo de patente

Atendidos os requisitos formais de suficiência descritiva,

pagamento da retribuição e identificação do inventor, mencionados no item anterior e elencados no art. 19 da Lei nº 9.279/1966, o INPI irá aceitar o pedido de patente. Este permanece em sigilo durante 18 (dezoito) meses31 e posteriormente é publicado para que aqueles que tiverem interesse em seu indeferimento, ou seja, aqueles que se entendam lesados pelo novo pedido colidir com invenção já existente, tenham a oportunidade de apresentar subsídios32 ao exame. Portanto, qualquer pessoa interessada poderá interferir

a) métodos diagnósticos, terapêuticos e cirúrgicos para o tratamento de seres humanos ou de animais; 30 Instituto Danneman Siemsen de Estudos de Propriedade Intelectual. Comentários à Lei de Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 26. 31 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 30. O pedido de patente será mantido em sigilo durante 18 (dezoito) meses contados da data de depósito ou da prioridade mais antiga, quando houver, após o que será publicado, à exceção do caso previsto no art. 75. 32 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 31. Publicado o pedido de patente e até o final do exame, será facultada a apresentação, pelos interessados, de documentos e informações para subsidiarem o exame.

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46 Temas jurídicos atuais: Volume VI

no exame de uma patente, apresentando para isso documentos ou informações técnicas que dizem respeito ao invento.

O titular que pretender dar continuidade ao processo de patente deve solicitar o pedido de exame33 e quitar taxas de retribuições anuais34 ao INPI. Sem as devidas quitações o pedido é arquivado35 e sequer será analisado, caindo a invenção em domínio público se o titular não solicitar o desarquivamento ou restauração no prazo legal36.

Destarte, para evitar a extinção do pedido da patente, e consequente domínio público do pedido o titular deverá estar atento aos requisitos legais, estará submetido ainda, a apreciação dos documentos de terceiros apresentados ao INPI, visto que é um processo público em que qualquer interessado poderá se opor.

Diante da complexidade e considerável burocracia de um processo de patente, supõe-se a carta patente recebida pelo titular, na oportunidade do deferimento de seu pedido, estará caracterizada de validade e conformidade legal, fazendo jus às suas prerrogativas de propriedade.

Deve-se salientar, porém, que embora complexo e criterioso, uma carta patente não confere propriedade vitalícia ao inventor, pois tem seus efeitos válidos por 20 (vinte) anos se for uma patente de invenção ou 15 (quinze) se for de um modelo de utilidade37. Ou seja, mesmo o processo sendo considerado

33 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 33. O exame do pedido de patente deverá ser requerido pelo depositante ou por qualquer interessado, no prazo de 36 (trinta e seis) meses contados da data do depósito, sob pena do arquivamento do pedido. 34 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 84. O depositante do pedido e o titular da patente estão sujeitos ao pagamento de retribuição anual, a partir do início do terceiro ano da data do depósito. 35 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 86. A falta de pagamento da retribuição anual, nos termos dos arts. 84 e 85, acarretará o arquivamento do pedido ou a extinção da patente. 36 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 87. O pedido de patente e a patente poderão ser restaurados, se o depositante ou o titular assim o requerer, dentro de 3 (três) meses, contados da notificação do arquivamento do pedido ou da extinção da patente, mediante pagamento de retribuição específica. 37 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 40 - A patente de invenção vigorará pelo prazo de 20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo 15 (quinze) anos contados da data de depósito.

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O direito à propriedade do inventor... 47 difícil, a propriedade de uma patente terá um prazo relativamente curto no que tange a exploração exclusiva pelo titular.

2.3 DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL

O homem, ao longo de sua evolução atribuiu grande

importância à propriedade. O instinto de se apropriar e de atribuir grande valor às coisas podem ser considerados como algo intrínseco ao ser humano, o que trouxe consequências para formação do modelo de sociedade.

Neste sentido Maria Helena Diniz afirma: O homem, como ser racional e eminentemente social, transforma seus atos de apropriação em direitos que, como autênticos interesses, são assegurados pela sociedade, mediante normas jurídicas, que garantem e promovem a defesa individual, pois é imprescindível que se defenda a propriedade individual para que a sociedade possa sobreviver. Sendo o homem elemento constitutivo da sociedade, a defesa de sua propriedade constitui defesa da própria sociedade. Assim, a propriedade foi concebida ao ser humano pela própria natureza para que possa atender suas necessidade e às de sua família. 38

Logo, a propriedade faz parte do simples fato de se estar

vivo e de conviver em sociedade, pois é a propriedade que irá atender as necessidade do homem e de sua família.

No conceito jurídico, propriedade é o direito de usufruir, gozar, dispor do bem e reavê-lo daquele que o tiver possuído injustamente, como expressa Código Civil em seu art. 1.228.

Mesmo bem antes da vigência do Código Civil atual, mas já em consonância com o mesmo, Luiz da Cunha Gonçalves, conceituou a propriedade como um direito efetivo, exclusivo e que deve obrigatoriamente ser respeitados por todos:

O direito à propriedade é aquele que uma pessoa singular ou coletiva, efetivamente exerce numa coisa determinada, em regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre

38 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 4º Volume: Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva 2007, p 104.

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exclusivo, e que todas as outras pessoas são obrigadas a respeitar. 39

Maria Helena Diniz, estabelece os elementos que

constituem o direito de propriedade: Os elementos que constituem o domínio, quais sejam: o direito de usar ou o jus utendi é o direito tirar do bem todos os serviços que ela pode prestar, empregando em seu próprio proveito ou de terceiros, bem como deixa-lo inerte; o direito de gozar ou o jus fruendi é o direito de explorar economicamente a coisa e de perceber seus frutos; o jus abutendi ou disponendi equivale ao direito de dispor da coisa ou poder de aliená-la, consumi-la, gravá-la de ônus ou submetê-la ao serviço de outrem; e por fim, o direito de reivindicar ou jus vindicatio, é o poder que tem

o proprietário de mover a ação para obter o bem de que injustamente o detenha. 40

Assim como as demais espécies de propriedade, a

propriedade industrial também contempla os atributos do domínio, quais sejam, de usar, gozar, dispor e reaver. Também está sujeita ao cumprimento da sua função social. A principal diferença entre a propriedade intelectual e as demais espécies de propriedade reside no fato de ela ser imaterial.

Antes de adentrar a questão da função social da propriedade industrial, é preciso analisar a função social da propriedade, que é uma garantia constitucional, conforme art.5º, inc. XXIII, “a propriedade atenderá a sua função social”.

Em harmonia com a Constituição o art. 1.228 do Código Civil dispõe os direitos do proprietário e, em seus parágrafos, limita expressamente esses direitos:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o

39 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil, Volume X, Tomo I. São Paulo, 1955, p. 199. 40 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, 4º Volume: Direito das Coisas. – São Paulo: Saraiva 2007, p. 114 e 115.

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estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. § 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. § 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente. [...]

Conforme pode ser observado nos parágrafos do art.

1.128, colacionados acima, o mesmo dispositivo legal determina os direitos de propriedade e também estabelece limites a ele.

O §1º versa sobre o respeito ao objetivo econômico e social. O legislador observa que pode haver outras razões para se limitar o poder do proprietário, como o equilíbrio ambiental, ou ainda, razões que podem estar determinadas em outras legislações além do Código Civil, ou seja, o rol de limitações não é exaustivo, mas sim exemplificativo.

No §2º há uma proibição do uso da propriedade em virtude de má-fé. E o §3º, determina que no caso de necessidade ou utilidade pública o proprietário pode perder o poder sobre o bem em atendimento ao interesse social.

Apesar das limitações poderem ser entendidas como uma proteção ao princípio da função social da propriedade, para José Afonso da Silva, a função social vai além das limitações, sendo parte do própria existência da propriedade:

A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Estes dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário àquela à estrutura do direito mesmo à propriedade. Constitui, portanto, o regime jurídico, na própria existência do direito à propriedade. 41

Logo, no entendimento deste autor, a função social não

se refere à limitação dos direitos do proprietário, mas ao próprio direito ao acesso à propriedade.

41 SILVA, José Afonso da, Curso De Direito Constitucional Positivo. 28 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 211.

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Neste sentido, ao garantir o direito de propriedade, o

Estado pretende uma eficiente utilização para a mesma: A implementação da função social pressupõe, não a sua supressão, mas a sua utilização conformada à ordem econômica e financeira, bem como à ordem social. É por meio do uso da propriedade e do desempenho das atividades econômicas, criadoras de novas riquezas, portanto, de novos tipos de propriedade, que podemos almejar a efetivação de sua verdadeira função social42.

Sobre um enfoque mais fraterno, Eduardo Salles

Pimenta defende que função social visa dar um equilíbrio às discrepâncias sociais:

(...) a função social é um valor para equilibrar os excluídos sociais, os quais tem mínimas ou quase nenhuma condição social, transformando a ação, direcionando o excluído social para a inclusão social, socializando-o com os demais membros, ordenando os fatos fenômenos e condições que ocorrem na sociedade de forma a diferenciar a existência humana normal, desequilibrada pela deficiência da falta de iniciativa individual na ordem econômica.43

Desse modo, a função social da propriedade visa dar

uma utilização adequada a mesma, pautada na ordem econômica e social, o que, consequentemente resulta no equilíbrio social, de modo a permitir que os menos favorecidos sejam incluídos socialmente, como reflexo da propriedade de outrem.

A função social dependerá da natureza da propriedade, e para cumpri-la, deverá atender às carências da sociedade na qual está inserida.

Quanto à função social da propriedade industrial, é importante ressaltar que no ano de 1809, D. João VI publicou o Alvará de Patentes, nesta oportunidade, o Brasil foi o 4º país a

42 VAZ, Isabel, Direito Econômico das Propriedades. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 7 e 8. 43 PIMENTA, Eduardo Salles [et. al.]. Direitos Autorais: Estudo em homenagem a Otávio Afonso dos Santos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 76.

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O direito à propriedade do inventor... 51 se manifestar quanto a criação de um sistema de propriedade industrial.

Neste documento, um trecho se monstra muito importante para análise da função social da propriedade industrial:

Sendo muito conveniente que os inventores e introdutores de alguma nova máquina e invenção nas artes gozem do privilégio exclusivo, além do direito que possam ter ao favor pecuniário, que sou servido estabelecer em benefício da indústria e das artes, ordeno que todas as pessoas que estiverem neste caso apresentem o plano de seu novo invento à Real Junta do Comércio; e que esta, reconhecendo-lhe a verdade e fundamento dele, lhes conceda o privilégio exclusivo por quatorze anos, ficando obrigadas a fabricá-lo depois, para que, no fim desse prazo, toda a Nação goze do fruto dessa invenção. Ordeno, outrossim, que se faça uma exata revisão dos que se acham atualmente concedidos, fazendo-se público na forma acima determinada e revogando-se todas as que por falsa alegação ou sem bem fundadas razões obtiveram semelhantes concessões. (Grifo nosso)

O Alvará deixa claro que a instituição do sistema de

propriedade industrial tinha o intuito de, ao recompensar o inventor, fomentar e incentivar a criação de inventos, mas também, como consequência, beneficiar a indústria, desenvolver o país e dar a oportunidade a toda nação de gozar do fruto dessa invenção.

O “caput” do art. 2º da Lei nº 9.279/1996 reproduz praticamente o mesmo texto do disposto na Constituição Federal (art.5º, XXIX): “A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerando o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se mediante: (...)”. Denis Borges Barbosa, quando faz uma análise das demais Constituições brasileiras constata:

A posição de ambas as Cartas e todas as anteriores se mantém inalterada: a concessão do privilégio, visando não o interesse do indivíduo, mas sim o interesse geral da sociedade,

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conceito abrangente no qual se acham contidos o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.44

A partir deste dispositivo da atual Lei da Propriedade

industrial, pode-se observar que o direito à propriedade industrial, não é um direito absoluto e independente, pois só existe para atender requisitos de interesse social, bem como e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Como se o sistema de proteção à propriedade industrial fosse criado justamente para fomentar o e crescimento e o desenvolvimento do Estado.

Observa-se ainda, que o legislador manifesta uma expectativa em beneficiar a economia, a sociedade, e o país como um todo, a partir da propriedade, que será concedida pelo sistema de propriedade industrial.

Denis Borges Barbosa faz a seguinte observação: Note-se aqui que essa constituição de direitos exclusivos é diversa da propriedade tradicional. Nesta, a relação se ancora até em estamentos pré-jurídicos, enfatiza a proteção dos interesses próprio do titular, apenas condicionados à função social; na propriedade intelectual, e especialmente nas

patentes, a propriedade nasce não sob a contenção, mas por inspiração e determinismo de interesse plúrimo.45

Como pode-se constatar, a função social é também um

requisito para se ter acesso à propriedade industrial, ou mesmo sua razão de existir.

Para José Henrique Pierangeli, a questão da função social da propriedade já é algo pacificado não só no Brasil mas também em vários países. Ao explicar as razões do sistema de proteção às patentes, o autor faz a seguinte anotação:

Constitui algo perfeitamente aceito no âmbito da doutrina e nos méritos governamentais dos vários países, que o sistema de patente é fonte de desenvolvimento. Daí a sua adoção por quase todos os países do nosso mundo, qualquer que seja seu estágio de desenvolvimento, não obstante algumas opiniões de que o privilégio produz efeitos negativos no campo do

44 BARBOSA, Denis Borges. Usucapião de Patentes e Outros Estudos de Propriedade Industrial. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2006, p 102. 45 Ibidem, p. 103.

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desenvolvimento industrial, pela limitação que impõe à livre concorrência. A realidade, porém, é bem outra, pois é justamente nos países em que não se resguarda o invento por meio da concessão do privilégio, que o desenvolvimento industrial é encolhido, às vezes até ínfimo. A falta de um sistema de patentes, e isso tem sido constatado, cria uma atmosfera de desanimo entre os empresários, que passam a não investir, ou a investir com muita parcimônia, na instalação de novas industrias.

Sendo assim, nota-se, que é irrefutável a importância da

propriedade industrial no desenvolvimento da sociedade. Ela está presente quando se obtém um resultado positivo em pesquisa e promoveu o desenvolvimento em todas as áreas da indústria, desde simples objetos que facilitam diferentes trabalhos até as mais modernas máquinas, ricas em tecnologia que permitiram o acesso à informática e à robótica; em alimentos com funções específicas para saúde humana até os mais modernos medicamentos que tratam de doenças que pareciam sem solução; nas produções agrícolas, otimizando a produção, etc.

Essa notória importância destaca ainda mais o princípio da função social da propriedade já que os benefícios advindos da sua existência deverão ser refletidos não só na defesa dos direitos do detentor da propriedade, mas também na defesa da sociedade como um todo, no sentido de que, protegendo sua criação, o detentor tem garantida a exclusividade, e o sociedade, tem a confiança na procedência e análise prévia do Estado.

2.3.1 Meios de intervenção estatal no domínio da propriedade industrial

A propriedade industrial cria, para seu titular, por meio

dos instrumentos da patente e do registro, direitos morais e patrimoniais exclusivos, que funcionam como recompensa pecuniária pela sua criação. Mas, a utilização dos bens produzidos pela criatividade humana vincula-se a observância dos interesses sociais, à necessidade de capacitação tecnológica nacional, ao progresso e ao bem-estar de toda a comunidade, conforme já demostrado.

Neste sentido, percebe-se a conveniência de se conciliar o legítimo interesse do inventor, enquanto criador de

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um bem socialmente útil e economicamente valorável, com a necessidade de torná-lo acessível à sociedade46. Quando essa conciliação não for possível o inventor terá seus direitos restringidos, conforme afirma Gama Cerqueira:

A propriedade das invenções, como a de direito comum, está sujeita à desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social art. 141, § 15, da Constituição Federal (1946) [Na Constituição de 1988 art. 5º, XXIV]. Permite ainda a Constituição que o invento seja vulgarizado, se isso convier à coletividade (...)47

Logo, em respeito à função social imposta à propriedade

industrial, os direitos do inventor poderão ser violados e, mesmo sem o seu consentimento, a exclusividade de sua criação pode ser desrespeitada e até mesmo extinta.

Como forma de se efetivar o cumprimento da função social da propriedade, o legislador previu a licença compulsória, a nulidade e a caducidade das patentes.

Conhecida popularmente como “quebra de patentes”, a licença compulsória na realidade não significa a quebra da patente, trata-se de uma previsão legal que obriga o titular da patente a licenciá-la em três casos específicos.

O primeiro é quando o titular exercer os direitos concedidos sobre a patente de forma abusiva ou pratica abuso de poder econômico, após verificação do fato administrativamente ou judicialmente48. Ou seja, mesmo possuindo propriedade sobre a patente, o titular não poderá exercer como bem entender o poder de monopólio sobre seu invento, não poderá abusar da exclusividade e buscar lucros exorbitantes, sob pena da perda do domínio temporário da patente.

46 VAZ, Isabel, Direito Econômico das Propriedades. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 420. 47 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. 2ª ed.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. 1, t.1, p. 187. 48 Lei nº 9279 de 1996, Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial.

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A segunda hipótese de licença compulsória, ocorrerá quando a patente não for explorada de forma adequada e completa ou a exploração que não satisfaça as necessidades do mercado49. Além de não poder explorar de forma abusiva, o detentor deverá atender satisfatoriamente o mercado.

E a terceira hipótese será nos casos de emergência nacional ou de interesse público50.

Esta última hipótese, foi criada no ano de 1999, pelo Decreto nº 3.201, com a finalidade de regulamentar a licença compulsória, como os prazos de licenciamento, forma de remuneração, produtos que possam ser de interesse público, possibilidade de prorrogação da licença compulsória, quais as questões que podem ser entendidas como de interesse público, possibilidade do licenciamento ser instaurado de ofício, extinção da licença compulsória e prerrogativas do INPI.

Neste sentido, indispensável a análise dos dispositivos abaixo:

Art. 4o Constatada a impossibilidade de o titular da patente ou o seu licenciado atender a situação de emergência nacional ou interesse público, o Poder Público concederá, de ofício, a licença compulsória, de caráter não-exclusivo, devendo o ato ser imediatamente publicado no Diário Oficial da União. Art. 5o O ato de concessão da licença compulsória estabelecerá, dentre outras, as seguintes condições: I - o prazo de vigência da licença e a possibilidade de prorrogação; e II - aquelas oferecidas pela União, em especial a remuneração do titular.

49 Lei nº 9279 de 1996, Art. 68 § 1º: Ensejam, igualmente, licença compulsória: I - a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação; ou II - a comercialização que não satisfizer às necessidades do mercado. 50 Lei nº 9279 de 1996, Art. 71. Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.

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§ 1o O ato de concessão da licença compulsória poderá também estabelecer a obrigação de o titular transmitir as informações necessárias e suficientes à efetiva reprodução do objeto protegido e os demais aspectos técnicos aplicáveis ao caso em espécie, observando-se, na negativa, o disposto no art. 24 e no Título I, Capítulo VI, da Lei no 9.279, de 1996. § 2o Na determinação da remuneração cabível ao titular, serão consideradas as circunstâncias econômicas e mercadológicas relevantes, o preço de produtos similares e o valor econômico da autorização.

A partir do Decreto, em especial dos arts. 4º e 5º

colacionados acima, é possível observar que, antes do licenciamento compulsório, serão tomadas certas precauções em respeito aos direitos do titular, como a verificação de que o mesmo não tem condições de atender a demanda, bem como a possibilidade de licenciamento por meio de contrato, e sua remuneração.

Logo, de alguma forma, mesmo tendo sido criado para disciplinar a licença compulsória nos casos de necessidade social, o Decreto defende os direitos do titular da patente, como por exemplo, ao determinar que haverá um prazo de licença compulsória, o que dá a oportunidade para que o titular se estruture a fim de dar o atendimento necessário, ou seja, não será por todo o tempo de validade da patente, podendo o titular voltar a ter o controle da sua patente.

O Decreto observa ainda, a hipótese de remuneração do inventor, que considerará as condições mercadológicas, o preço de produtos similares, ou seja, será feita uma análise econômica para se chegar há uma remuneração justa ao inventor, portanto, nesta hipótese, não será “quebrada” a patente, mas sim, licenciada de forma obrigatória.

Porém, importa ressaltar que o Decreto prevê uma exceção no que tange os direitos do inventor:

Art. 7o No caso de emergência nacional ou interesse público que caracterize extrema urgência, a licença compulsória de que trata este Decreto poderá ser implementada e efetivado o uso da patente, independentemente do atendimento prévio das condições estabelecidas nos arts. 4º e 5o deste Decreto.

Assim, a exceção contida no neste artigo diz respeito à

emergência extrema, ou seja, quando a necessidade de

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O direito à propriedade do inventor... 57 atendimento imediato se sobrepõe ao cumprimento das condições estabelecidas nos arts. 4º e 5º, o que poderia ser o caso de uma epidemia que se alastra rapidamente e os pacientes precisam de determinado medicamento patenteado para sobreviver, e o laboratório não poder atender a todos.

Para Denis Borges Barbosa, a instauração da licença compulsória de ofício se dará quando a necessidade se sobrepor à dilações probatórias.Neste sentido:

O pressuposto da concessão de ofício é a simples constatação de que o titular da patente ou seu licenciado não atende à emergência nacional ou interesse público. A natureza muitas vezes iminente da necessidade dispensa dilações probatórias minuciosas, sem prejuízo da eventual reparação do titular do direito licenciado.51

Muito embora, seja aplicada a licença compulsória em

caso de necessidade, pelo abuso ou atendimento insatisfatório, pode-se concluir que para evitá-la, o detentor de patente relevante para o desenvolvimento e o bem estar social, deverá, independentemente de sua vontade, aliar o invento com estratégia de produção e de distribuição no mercado e isso, sem explorá-la de forma abusiva. Assim se deu o recente caso do medicamento Tamiflu, cuja patente pertence ao laboratório Roche.

Segundo a Fundação Osvaldo Cruz, com a crescente demanda pelo referido medicamento, em decorrência da disseminação da gripe H1N1, houve por parte do governo brasileiro a consideração de licença compulsória, mas o governo e o laboratório Roche chegaram a um acordo e o licenciamento foi voluntário.52

51 BARBOSA, Denis Borges. As modificações do Decreto Regulamentador da Licença de Patentes por Interesse Público, S D, Disponível em < http://www.denisbarbosa.addr.com/doha.doc>, Acesso em 05 de outubro de 2014. 52 http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cssf/audiencias-publicas/audiencia-2013/audiencia-13.08/apresentacao

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Importante, esclarecer ainda, que a caducidade prevista

no art. 80 da Lei nº 9.279/199653, diz respeito à falta de uso por parte do titular quando, mesmo após ter sido licenciada compulsoriamente, o detentor não inicia a exploração ou no caso de não exploração, somada com o interesse de um terceiro em explorá-la. Logo, a patente, necessariamente, terá que ser utilizada, sob pena de prevalecer o interesse de terceiros sobre ela.

E a nulidade, prevista no art. 50 da Lei nº 9.279/199654, trata da invalidade da patente, quando não atendeu os requisitos formais, ou seja, mesmo após o titular ter em mãos a carta patente que lhe garante a propriedade, são verificados elementos que possibilitam de ela ser anulada judicialmente, por meio de ação movida pelo próprio INPI, ainda que a concessão seja consequência de seu próprio erro técnico.

O INPI é o órgão responsável pelo controle e concessão da propriedade industrial, dentro de suas prerrogativas está a de fiscalização de contrato de licença e transferência de tecnologia que regulam a forma de como a propriedade industrial será explorada, e ainda, o julgamento de nulidades administrativas e de caducidades, que podem ser instauradas de ofício pelo INPI ou por legítimo interessado. Esta é uma forma extrajudicial de

53 Art. 80. Caducará a patente, de ofício ou a requerimento de qualquer pessoa com legítimo interesse, se, decorridos 2 (dois) anos da concessão da primeira licença compulsória, esse prazo não tiver sido suficiente para prevenir ou sanar o abuso ou desuso, salvo motivos justificáveis. § 1º A patente caducará quando, na data do requerimento da caducidade ou da instauração de ofício do respectivo processo, não tiver sido iniciada a exploração. § 2º No processo de caducidade instaurado a requerimento, o INPI poderá prosseguir se houver desistência do requerente. 54 Art. 50. A nulidade da patente será declarada administrativamente quando: I - não tiver sido atendido qualquer dos requisitos legais; II - o relatório e as reivindicações não atenderem ao disposto nos arts. 24 e 25, respectivamente; III - o objeto da patente se estenda além do conteúdo do pedido originalmente depositado; ou IV - no seu processamento, tiver sido omitida qualquer das formalidades essenciais, indispensáveis à concessão.

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O direito à propriedade do inventor... 59 desapropriar a propriedade industrial, sempre oportunizando a defesa do titular55.

Pelo exposto, identificam-se nas patentes, regras e imposições que ultrapassam a função social presente em outras formas de propriedade, justamente devido a sua natureza de buscar proporcionar o desenvolvimento econômico social.

2.4 O DIREITO À PROPRIEDADE INDUSTRIAL E INTERESSE COLETIVO: APARENTE COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O direito à propriedade industrial está intimamente

ligado ao íntimo do ser humano, pois é fruto de sua inteligência, desse modo, pode-se considerar que uma criação intelectual faz parte da personalidade de seu autor.

Segundo Silvio Romero Beltrão os direitos da personalidade são fundamentados na dignidade da pessoa humana:

Os direitos da personalidade podem ser definidos como uma categoria especial de direitos subjetivos, que, fundamentados na dignidade da pessoa humana, garantem o gozo e o respeito ao seu próprio ser em todas as suas manifestações espirituais ou físicas.

O autor destaca ainda que: Esses direitos são inatos, tendo existência concomitante com a própria existência da pessoa humana e além disso são absolutos, irrenunciáveis e intransmissíveis, porque, sendo componentes da personalidade humana, não podem ser dissociados do seu titular. 56

Por ser decorrente do intelecto humano, a propriedade

industrial está ainda mais associada ao instinto de apropriação do homem, como uma necessidade de tornar o fruto de sua inteligência como parte de si mesmo.

55 Lei nº 9.279 de 1996, Art. 52. O titular será intimado para se manifestar no prazo de 60 (sessenta) dias. 56 BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade: de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 135.

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60 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Carlos Alberto Bittar incluiu as criações intelectuais entre

os tantos outros direitos da personalidade, destacando a importância do atributo moral e do direito patrimonial.

O elemento “moral” é a expressão do espírito criador de pessoa que se manifesta com a criação, e o elemento patrimonial consiste na retribuição econômica pela produção intelectual. 57

Aline Storer, entende que além de a invenção ser um

direito de propriedade, constitui também um direito natural, de ocupação e intelectual, sendo este direito garantido por dois elementos fundamentais e inalienáveis, que são a inteligência do homem, seu intelecto e sua livre disposição de vontade, pois ninguém poderá tirar do homem sua inteligência, mas apenas desfrutá-la, quando assim o consentir pela espontaneidade da vontade. 58

Dessa forma, é possível considerar os frutos do intelecto humano como direitos da sua personalidade, e por isso indissociável da pessoa de seu titular. E, consequentemente o direito à propriedade industrial se resulta em uma forma ainda mais importante, no sentido psíquico, de direito à propriedade.

Neste sentido, mesmo tendo sido criado mecanismos de defesa para o detentor da propriedade industrial, ainda assim, o obriga a cumprir os requisitos aqui tratados, sob a pena de violação de seus direitos.

O problema que consequentemente surge é que a imposição da função social seria uma forma de limitar um direito fundamental. Porém, conforme já tratado neste trabalho, tanto o atendimento à função social da propriedade quanto à segurança do privilégio de exclusividade da propriedade industrial estão no rol dos direitos e garantias fundamentais apresentadas no art. 5º da Constituição Federal.

57 BITTAR, Carlos Alberto. Tutela dos direitos da personalidade e dos direitos autorais nas atividades empresariais. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1993, p.89 58 STORER; MACHADO, Propriedade Industrial e o Princípio da Função Social da Propriedade. Disponível em: <http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/ aline_storer.pdf>. Acesso em: 20 de março de 2012, p.3.

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Direitos fundamentais nascem e se desenvolvem com as Constituições nas quais foram reconhecidos e assegurados59. As funções dos direitos fundamentais dividem-se em função de defesa ou de liberdade, prestação social, de proteção perante terceiros e de não discriminação60.

Sendo o Brasil um Estado democrático de direito, constitui-se em um Estado intervencionista que tem o dever, por mandamento constitucional de intervir concretamente na realidade social para efetivar, concretizar, os direitos fundamentais61. Compete, portanto, ao Estado a garantia dos direitos fundamentais, porém, tanto o cumprimento da função social quanto o privilégio da exclusividade devem ser conferidos pelo Estado.

Os dois direitos, estão ainda previstos na Declaração Universal dos direitos do homem:

Art. 17° 1. Toda a pessoa, individual ou coletivamente, tem direito à propriedade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade. Art. 27° 1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.

Contudo, ao conviver em sociedade, o indivíduo deve

buscar o bem desta na qual está inserido, devendo prevalecer o interesse social.

Neste sentido, Eliana Y. Abrão indica que o legislador constitucional já observa que os interesses sociais devem prevalecer aos privados: “Contemplando a propriedade, o legislador constitucional faz observar que seus fins sociais

59 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2.ed. Porto Alegre: Libraria do Advogado, 2001, p. 37. 60 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e direitos fundamentais. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 404. 61 GOTTEMS, Claudinei J; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (org). Direitos Fundamentais, da normatização à efetividade nos 20 anos de Constituição Brasileira. São Paulo: Boreal Editora, 2008, p.12.

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devem prevalecer em relação aos privados, do mesmo modo como faz em relação aos inventos.”62

Para Maurício Kioshi Kanashiro a melhor forma de solucionar estes conflitos está no equilíbrio, já que interesses públicos e coletivos sempre devem ser harmonizados:

Talvez, a fórmula para solucionar conflitos e promover o desenvolvimento da sociedade esteja realmente relacionado ao equilíbrio, no entanto, temos no direito a expressão “função social” que parece ser mais apropriada e de maior abrangência para o fim proposto. Além disso, evidenciam-se em muitos casos dois interesses a serem harmonizados pelo direito, qual sejam, o público (da coletividade) e o individual (do autor).63

Neste conflito entre dois direitos fundamentais caberá

apenas a analise justa do caso concreto a fim de solucionar a questão, veja-se:

Não há discricionariedade na concretização dos direitos fundamentais. Com efeito, podemos encontrar no caso concreto, eventual ponderação dos valores diante de um aparente conflito com outro direito fundamental. Em tais casos, a aplicação se dará” [...] mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio irá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo da cada um, na medida do possível.64

Justifica-se o conflito aqui levantado pelo fato de que

não é possível respeitar incondicionalmente o direito da personalidade de um inventor, tornando intocável sua criação, e ao mesmo tempo respeitar a coletividade e seus interesses. Conferir direitos a um inventor, deixando que este se utilize de sua propriedade industrial da forma que lhe for conveniente,

62 ABRÃO, Eliane Yachouh. Direitos do Autor e Conexos. São Paulo: Editora do Brasil, 2002, p 167. 63 KANASHIRO, Maurício Kioshi. A Proteção do Autor Empregado sob a Perspectiva da Função Social do Direito Autoral. Rio de Janeiro: Revista ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual nº 131, 2014, p. 22. 64 GOTTEMS, Claudinei J; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (org). Direitos Fundamentais, da normatização à efetividade nos 20 anos de Constituição Brasileira. São Paulo: Boreal Editora, 2008, p.16.

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O direito à propriedade do inventor... 63 acarretará na consequência de que aquele poderá ferir a necessidade da população. Ainda mais, quando houver abuso na forma que um produto patenteado está sendo comercializado, porque isso poderia atingir a dignidade daqueles que dependem dele.

De qualquer forma, diante da complexidade deste conflito, entre dois direitos fundamentais, não se pode negar que a função social da propriedade industrial está fundamentada na dignidade da pessoa humana, visto que a mesma é meta do Estado democrático de direito, bem como princípio norteador de todos os outros presentes no ordenamento jurídico pátrio.

A limitação imposta aos direitos do inventor edifica a dignidade da pessoa humana, no sentido de preservar àquilo que é mais precioso no convívio em sociedade que é o bem estar coletivo, função está atribuída ao próprio direito.

É importante ressaltar que não foi só com a finalidade de fomentar o desenvolvimento econômico, mas também de garantir a dignidade da pessoa humana que o sistema de proteção da propriedade industrial fora criado, e como bem observa o doutrinador Gama Cerqueira. “As invenções, modelos de utilidade, desenhos e modelos industriais não patenteados não podem ser protegidos com base nos princípios da repressão da concorrência desleal, por pertencerem ao domínio público”65.

Em outras palavras, sem a criação por parte do Estado de mecanismos de proteção, seria impossível a defesa dos direitos do inventor. Então, de certa forma, pode-se até considerar que existe uma relação de troca.

Assim, nota-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é um elemento edificador da função social da propriedade industrial, que deverá prevalecer em caso de necessidade e de respeito ao bem estar social.

65 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, v. 2, t.2, p. 379.

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64 Temas jurídicos atuais: Volume VI

2.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, a propriedade industrial tem grande

relevância na atualidade, sua exclusividade é garantida pela Constituição Federal. As patentes tem um importante papel junto ao desenvolvimento econômico e social, na criação de soluções das mais variadas áreas.

Sendo que a patente é um título de propriedade temporário outorgado pelo Estado, por força de lei, que confere a seu titular, todas as prerrogativas de qualquer outra propriedade, com exceção do fato da mesma ser temporária.

Assim como outras formas de propriedade as patentes também devem cumprir a função social, e, diferente das demais espécies de propriedade, as patentes surgiram na ordenamento jurídico justamente por questões de função social.

Pode-se considerar que no que se refere à concessão da patente por parte do Estado é uma relação de troca, o Estado reconhece e concede o direito à propriedade industrial e em troca o inventor oferece os dados de sua invenção na íntegra.

Essa oferta por parte do inventor pode permitir que ocorra a licença compulsória, se esta for de interesse público; consiste também em um relação de troca a própria concessão da propriedade industrial, como é o Estado que concede os direitos de exclusividade e oferece ainda, uma série de dispositivos legais para proteger seu proprietário do uso indevido.

O licenciamento compulsório e demais formas de perda dos direitos sobre a patente, são, na verdade, meios para equilibrar as diferenças sociais e garantir que todos tenham acesso ao progresso científico e, principalmente, direito à dignidade. Logo, as intervenções estatais estão previstas para se fazer prevalecer o bem estar coletivo.

Sendo patentes, consideradas bens imateriais intelectuais, que muitas vezes se confundem com o próprio detentor, já que são frutos do seu conhecimento, decaem sobre eles direitos da personalidade que não podem ser meramente desconsiderados quando se trata da prevalência do interesse público.

Assim, observa-se que pode haver um conflito entre dois direitos fundamentais, de um lado de privilégio do inventor e de outro o atendimento da função social fazendo prevalecer o

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O direito à propriedade do inventor... 65 interesse coletivo, sendo que ambos estão elencados do rol do art. 5º, da Constituição Federal.

Portanto, nesse impasse entre direito do inventor e direito da coletividade aos acesso aos bens necessários a manutenção da vida, claro de após devidamente analisado o caso concreto, o princípio da proporcionalidade e demais princípios constitucionais, deverá prevalecer a dignidade da pessoa humana, sendo esta considerada como um edificador da função social da propriedade industrial, que se demostra tão importante para o desenvolvimento das nações.

2.6 REFERÊNCIAS

ABRÃO, Eliane Yachouh. Direitos do Autor e Conexos. São

Paulo: Editora do Brasil, 2002. BARBOSA, Denis Borges. As modificações do Decreto

Regulamentador da Licença de Patentes por Interesse Público. S. D. Disponível em <http://www.denisbarbosa.addr.com/doha.doc>. Acesso em: 05 de outubro de 2014.

BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2003.

BARBOSA, Denis Borges. Usucapião de Patentes e Outros Estudos de Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. 1, t.1.

CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, v. 2, t.1.

CERQUEIRA, João da Gama. Tratado de propriedade industrial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, v. 2, t.2.

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66 Temas jurídicos atuais: Volume VI

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GONÇALVES, Luiz da Cunha. Tratado de Direito Civil. São Paulo, 1955, v. X, t. 1

GOTTEMS, Claudinei J; SIQUEIRA, Dirceu Pereira (org). Direitos Fundamentais, da normatização à efetividade nos 20 anos de Constituição Brasileira. São Paulo: Boreal Editora, 2008.

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PIERANGELI, José Henrique. Crimes Contra a Propriedade Industrial e Crimes de Concorrência Desleal. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2003.

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RODRIGUES Jr., Edson B.; POLIDO, Fabrício (orgs.). Propriedade Intelectual: novos paradigmas, conflitos e desafios. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

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VIZZOTTO, Alberto, A Função Social das Patentes Sobre Medicamentos. São Paulo: LCTE Editora, 2010.

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= III =

O ESTADO COMO AGENTE REGULADOR: UMA ANÁLISE DA AUTONOMIA PÚBLICO-PRIVADA FRENTE O PAPEL

DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

Marcela Gorete Rosa Maia Guerra*

3.1 INTRODUÇÃO Em todos os modelos políticos e ideológicos do Estado

é possível analisar o conflito entre a liberdade individual e os interesses públicos.

No processo evolutivo do Estado, a autonomia privada, em diversos momentos, é elevada a garantia fundamental sobreposta aos interesses da coletividade.

Contudo, este modelo de Estado Liberal mostrou-se ineficaz diante das inúmeras necessidades públicas. Assim, uma mudança de ideologia deste Estado foi medida necessária para assegurar a própria harmonia social.

Diante disto, com a proclamação do Estado Democrático de Direito pela Constituição Federal/88, vivencia-se um novo modelo ideológico-político estatal, que se apresenta, ao menos em tese, preocupado em conciliar interesses públicos e privados.

Trata-se do Estado regulador, interventor da ordem econômica, que visa assegurar a efetivação dos princípios constitucionais.

Para o auxílio desta atividade interventora, o Estado irá criar entes dotados de significativa independência e autonomia, responsáveis pela expedição de normas regulatórias, que devem ser observadas pelos agentes econômicos de determinado setor da economia. Contudo, infere-se que referida

* Discente do programa de Mestrado em Ciências Jurídicas com ênfase em Direitos da Personalidade do Centro Universitário de Maringá – CESUMAR. Bolsista da CAPES pelo Projeto PROSUP. Pós-graduada em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná. Advogada em Maringá/Paraná. Endereço eletrônico: [email protected].

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O Estado como agente regulador... 69 delegação de competência normativa a tais entes não está consubstanciada expressamente na Constituição Federal, o que ensejaria a dúvida quanto a sua constitucionalidade.

Além disso, até que ponto o Estado consegue conciliar a autonomia privada frente a interesses públicos? Como a Constituição Federal pode garantir a livre iniciativa e a propriedade privada, ao mesmo tempo em que pretende assegurar a todos uma existência digna e a valoração do trabalho humano? Seria possível para uma economia de mercado capitalista, voltada para fins sociais?

Ainda, em face da nova etapa da globalização, em que as empresas nacionais competem com empresas transnacionais, verifica-se um segundo embate vivenciado pelo Estado Regulador o qual ao mesmo tempo em que deve prever o incentivo da empresa nacional para expansão dos mercados, deve propor medidas regulatórias para impedir a dominação dos mercados e o abuso do poder econômico, em nome dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.

O objetivo deste trabalho é responder a estas questões, demonstrando qual o papel do Estado e de suas entidades reguladoras e similares na regulação da ordem econômica, verificando a constitucionalidade de sua atuação, bem como quais suas formas intervencionistas.

3.2 AGÊNCIAS REGULADORAS: UMA ANÁLISE DA AUTONOMIA PÚBLICO-PRIVADA

A criação das agências reguladoras marca uma

evolução do modelo ideológico-político do Estado. Desde os seus primórdios, o Estado, como ente

dinâmico, apresentou diversas formas sociais, políticas e econômicas, de sorte que a diversidade de concepções e ideologias do Estado significa também diferentes formas de atuação na sociedade, tanto na vida dos subordinados quanto na ordem econômica1.

No processo evolutivo do modelo estatal, verifica-se que o Estado de Direito, originário no limiar do sec. XVIII, simplificadamente definido como “submissão do poder a um

1 FARIA, Heraldo Felipe de. A intervenção do Estado na Economia. p. 1.

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regime legal e afirmação dos direitos individuais do cidadão”2, surge comprometido com o liberalismo, inspirado nos ideias de Adam Smith, construídos a partir de uma visão individualista, que no plano econômico expressa a atuação limitada do Estado na esfera econômica.

Assim, naquela época, as relações contratuais eram formadas de acordo com a livre vontade das partes, isto é, sem qualquer interferência do Estado como regulador da economia, vigorando a autorregulação dos negócios jurídicos e do próprio mercado, através da “mão invisível”, na expressão teórica de Adam Smith3.

Dessa forma, no Estado liberal não havia espaço para o que denomina de bem estar social, haja vista estar fundamentado no ideal de liberdade, pilar da Revolução Francesa do séc. XVIII, cujo objetivo primordial consistia em construir regras jurídicas para concretizar a liberdade individual e dar suporte formal às relações comerciais da iniciativa privada. Infere-se que neste momento, a autonomia privada se sobressaia diante dos interesses coletivos4.

A liberdade proclamada pelo liberalismo conduzia, de fato, a irreprimíveis situações de arbítrio. No domínio econômico expunha a classe menos favorecida à sanha dos poderosos. Logo na primeira fase da Revolução industrial, de que foi palco o Ocidente, é possível evidenciar os efeitos da liberdade do contrato, a desumana espoliação do trabalho, o doloroso emprego de métodos brutais de exploração econômica5.

Logo, como consequência inevitável, o regime liberal entrou em crise pelas próprias contradições do sistema econômico que produziu. Após os eventos catastróficos como Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Crise de 1929 e Segunda Guerra Mundial, a intervenção estatal na economia era necessária.

A liberdade humana deveria ser resguardada em direitos e garantias6, tendo como pressuposto a própria igualdade.

2 Ibidem. p. 2. 3 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988; 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 91. 4 FARIA, Heraldo Felipe de. op. cit. p. 2-3. 5 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social; 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. p. 59. 6 Ibidem.

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O Estado como agente regulador... 71

As Constituições Mexicana de 1917, Soviética de 1918 e Weimar de 1919 com seus ideais sociais, os quais procuravam garantir o direito das coletividades, embasaram o surgimento do chamado Estado Social, a partir do qual, o Estado de Direito deveria garantir a consecução de objetivos sociais, atuando diretamente na economia7.

Por sua vez, o Estado Social significa intervencionismo, enquanto instrumento para efetivação dos direitos proclamados como sociais, assim, tendo como pano de fundo a própria democracia, pretende oferecer a todos a garantia tutelar dos direitos da personalidade8.

Após a 2ª Grande Guerra, o Estado do bem-estar social se dedicou, especificamente, as seguintes formas de intervenção pública na economia: redistribuição de renda, que caracteriza como a transferência de recursos de determinado grupo de indivíduos, região para outra, bem como a provisão de garantias fundamentais, tais como educação, seguridade social, assistência médica, entre outras; e a estabilização macroeconômica, consistente em manter níveis satisfatórios de crescimento econômico e de emprego9.

Contudo, depreende-se que referidos meios interventivos restaram insuficientes para a efetivação dos interesses coletivos, haja vista o surgimento das falhas de governo ou falhas de mercado10.

Neste contexto, os Estados Modernos dedicam-se a um novo meio de intervenção pública, além das supracitadas, à regulação dos mercados, que visa corrigir as “imperfeições” do mercado.

Assim, ao longo desta transformação do modelo político-econômico do Estado, a liberdade individual, nitidamente, sofreu limitações, sendo que a autonomia privada encontrou restrições na supremacia do interesse público sobre o privado, nos fundamentos e objetivos que a Constituição Federal instituiu

7 SANTOS, Aloysio Vilarino dos. O Papel das Agências Reguladoras na Ordem Econômica e Social. Revista da Faculdade de Direito. p. 12. 8 BONAVIDES, Paulo. op. cit. p. 61. 9 MAJONE, Giandomenico. Do Estado Positivo ao Estado Regulador: causas e consequências da mudança no modo de governança. Livro: Regulação Econômica e Democracia: o Debate Europeu. São Paulo: Editora Singular, 2006. p. 2-5. 10 Ibidem, p. 4.

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para a efetivação do Estado Democrático de Direito, quais sejam: dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e livre iniciativa, construir sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional11.

Por conseguinte, a partir da atuação estatal na atividade econômica, há passagem do voluntarismo para o dirigismo contratual, onde o Estado, como agente regulador da economia e garantidor dos interesses públicos (sociais), de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como da ordem econômica, passa a ditar regras, instituir fundamentos que devem, em regra, obrigatoriamente ser observados e respeitados pelas partes contratantes12.

Este modelo regulatório de Estado tem o fim de realizar os valores de solidariedade social com a manutenção da democracia e da liberdade, conjugando a capacidade empresarial com a efetivação dos interesses públicos13, através da instituição de mecanismos jurídicos e materiais para acompanhamento da atividade privada no mercado, amparados juridicamente pelos princípios constitucionais da ordem econômica14, especialmente a livre concorrência, prejudicada pela liberdade econômica.

A regulação da economia significa o “estabelecimento e a implementação de regras para a atividade econômica destinadas a garantir o seu funcionamento equilibrado, de acordo com determinados objetivos públicos”15.

A Constituição Federal prevê que o Estado é responsável para exercer, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo, como agente normativo e regulador da atividade econômica16. Não obstante, para fortalecer e qualificar esta intervenção no domínio econômico, o Estado criou as agências reguladoras17, enquanto pessoas jurídicas de direito

11 Cf. art. 1º, incisos III e IV, e art. 3º, incisos I a III, ambos da CF/88. 12 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 92. 13 SANTOS, Aloysio Vilarino dos. op.cit. p. 14-17. 14 Cf. art. 170 e seguintes da CF/88. 15 MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1997, pág. 9 apud SANTOS, Aloysio Vilarino dos. op. cit. p. 18. 16 Vide Artigo 174, caput, CF/88. 17 NETO, Floriano Peixoto de Azevedo Marques; FERNANDES, Luís Justiniano de Arantes. As Agências Reguladoras no Direito Positivo

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O Estado como agente regulador... 73 público interno, em regra constituídas sob a forma de autarquia especial, caracterizadas como instrumentos de descentralização ou desconcentração da Administração Pública, cujo papel fundamental consiste em regular a atividade econômica das empresas privadas, agindo como verdadeiros órgãos fiscalizadores, visando à proteção do interesse público, bem como dos princípios e fundamentos da ordem econômica18.

A origem de uma agência reguladora relaciona-se a certa funcionalidade no mercado, isto é, nasce para atuar especificamente em determinado setor econômico ou atividade, como, por exemplo, para disciplinar a defesa da concorrência e condutas antitrustes; ou para regular as atividades mais específicas e complexas dos serviços públicos de infraestrutura econômica19.

No Brasil, há uma diversidade de agências reguladoras federais atuantes nos diversos setores da economia (energia elétrica, telecomunicações, produção e comercialização de petróleo, recursos hídricos, mercado audiovisual, planos e seguros de saúde suplementar, mercado de fármacos e vigilância sanitária, aviação civil, transportes terrestres), tais como: Agência Nacional de Telecomunicação - ANATEL, Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, ANCINE – Agência Nacional do Cinema, Agência Nacional de Aviação Civil

Brasileiro. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Editora Atlas, 2011. p. 1083. 18 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; (...) ambos da CF/88. 19 ALVEAL, Carmem. Estado e Regulação Econômica: O Papel das Agências Reguladoras no Brasil e na Experiência Internacional. Conferência proferida no Seminário de Direito Internacional e Regulação Econômica. Escola Superior do Ministério Público da União. Núcleo Regional no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 19-20/05/2003. p. 3.

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- ANAC, Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ, Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT, Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP, Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e Agência Nacional de Águas – ANA .

Em regra, como características comuns às agências reguladoras, relacionam-se20:

(...) 1 – serem constituídas como autarquias de regime especial, afastando-se da estrutura hierárquica dos Ministérios e da direta influência política do Governo, com acentuado grau de independência; 2 – serem dotadas de autonomia financeira, administrativa e especialmente, de poderes normativos complementares à legislação do próprio setor; 3 – possuírem poderes amplos de fiscalização, operar como instância administrativa final nos litígios sobre matéria de sua competência; 4 – possuírem controle de metas de desempenho fixadas para as atividades dos prestadores de serviço, segundo as diretrizes do governo e em defesa da coletividade, às quais se acrescentam; 5 – possuírem direção colegiada, sendo os membros nomeados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal; 6- seus dirigentes possuírem mandato com prazo de duração determinado; 7 – após o cumprimento do mandato, seus dirigentes ficarem impedidos, por um prazo certo e determinado, de atuar no setor atribuído à agência, sob pena de incidirem em crime de advocacia administrativa e outras penalidades.

Assim, estes entes da administração indireta

representam inovadora forma de fortalecer e qualificar a intervenção do Estado no domínio econômico, pois atuam de forma conjunta com o Estado no exercício de atividades regulatórias, isto é, que envolvem tanto regulação, fiscalização, sanção e solução de controvérsias no âmbito administrativo do setor econômico para o qual foram criadas21.

20 ARAUJO, Edmir Netto de. A Aparente Autonomia das Agências Reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (org.). Agências Reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002. p. 42. 21 NETO, Floriano Peixoto de Azevedo Marques; FERNANDES, Luís Justiniano de Arantes. op. cit. p. 1083.

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O Estado como agente regulador... 75 3.2.1 Surgimento das agências reguladoras no Brasil

A origem das agências reguladoras no Brasil encontra-

se amparada pelo direito comparado. A ideia de criação de entes reguladores surge na

Inglaterra, a partir de 1834, quando o Parlamento institui entes autônomos, com a finalidade de aplicação e concretização de medidas previstas em lei, bem como decidir suas controvérsias22.

Por sua vez, os Estados Unidos da América sofreram influência inglesa, e a partir de 1887, iniciaram a proliferação de uma série de agências, o que caracterizou o chamado “direito das agências” no Direito Administrativo norte-americano, por conta da organização descentralizada de tais entes23.

Contudo, em razão desta descentralização e a consequente desvinculação com o poder político americano, aquelas agências sofreram fortes influências de agentes privados entre os anos de 1965-1985, momento em que o modelo começou a ser redefinido para a consolidação da independência destes próprios órgãos, através de um controle externo adequado24.

Diferentemente do ocorrido nos EUA, o Brasil teve forte influência francesa, e incorporou em seus entes reguladores as ideias de centralização administrativa e forte hierarquia25.

No Brasil, a ideia de entes reguladores surge em meados de 1918, com a criação do Comissariado de Alimentação Pública, e cria novos traços com a instituição do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE pela lei 4.137, de 10 de setembro de 1962.

Mas, somente na segunda metade da década de 1990 que as agências reguladoras foram introduzidas no Brasil, apresentando traço distintivo dos supracitados entes: a sua

22 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. As Agências Reguladoras. REDAE: Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 6, maio/junho/julho de 2006 – Salvador/BA. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/redae-6-maio-2006-dinora.pdf, Acesso 04/12/2012. p. 3. 23 MORAES, Alexandre de. Agências Reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (org). op. cit. p. 23. 24 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. p. 4. 25 MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 23.

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independência, isto é, a autonomia funcional e financeira, com a responsabilidade em auxiliar o Estado no papel de agente normativo e regulador da ordem econômica, atuando em diversos setores econômicos, para as quais forem criadas.

3.2.2 A intervenção do estado na ordem econômica

Com advento do Estado Liberal, suas razões de

existência foram direcionadas ao mínimo existencial, cumprindo estabelecer a ordem e a paz social, relegando o mercado às regras da iniciativa privada, pautadas meramente em critérios econômicos. Porém, ao final do século XIX, vislumbra-se que o mercado não é capaz de satisfazer as necessidades humanas e tampouco possibilitar à justa distribuição de tudo aquilo que o sistema econômico capitalista produz. Surge, então, a figura do Estado Regulador cujo papel determinante é de fato intervir na ordem econômica para satisfazer as necessidades públicas definidas enquanto objetivos do Estado. 3.2.2.1 A ordem econômica e a sistemática constitucional

Ordem econômica, em regra, é uma expressão “usada

para referir uma parcela da ordem jurídica”26, significando o conjunto de todas as normas, qualquer que seja a sua natureza, atinentes à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos.

Por outro lado, na Constituição Federal, referida expressão transcende a relação com norma, significando um indicativo no modo de ser da economia brasileira, designando um verdadeiro “dever-ser”27.

A Constituição, em seu Título VII, nos artigos 170 a 192, estrutura a ordem econômica brasileira com fundamentos voltados na valoração do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo o fim de assegurar a existência digna, bem como dispõe princípios como a livre iniciativa, livre concorrência, redução das desigualdades regionais e sociais, função social da propriedade privada, entre outros. Assim, é com base nestes valores que as relações econômicas “deverão ser” (estar).

26 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 59. 27 Ibidem. p. 66-67.

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O Estado como agente regulador... 77

A Carta magna é programática, compreendendo além de regras, princípios gerais que se apresentam por todo o texto constitucional e orientam o processo de hermenêutica28. Nesse sentido, os preceitos dos artigos 1º, 3º e 170 revelam-se verdadeiras normas diretivas do contexto constitucional.

Alguns bem jurídicos contam com proteção especial nos dispositivos constitucionais, estando mencionados em diferentes qualidades ou funções29, e se relacionam, desde os seus fundamentos, objetivos, direitos e garantias fundamentais, até às disposições da ordem econômica e social, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana.

Logo, os fundamentos e princípios da ordem econômica estão relacionados com os próprios fundamentos e objetivos da Constituição, e, portanto, a atuação estatal, bem como à iniciativa privada, deve atentar-se a todas estas normas a fim de garantir o harmônico funcionamento da economia, que significa garantir que as relações econômicas se estabeleçam com respeito à dignidade do trabalhador, à livre iniciativa do empresário, à livre concorrência, visando à erradicação das desigualdades, entre outros30.

Com efeito, para garantir a boa funcionalidade da ordem econômica, a Constituição Federal dispõe diversas formas de o Estado, seja enquanto agente regulador ou sujeito econômico, atuar/intervir na ordem econômica, sanando as chamadas “falhas de mercado”31. 3.2.2.2 Atuação e intervenção

Os termos atuação e intervenção apresentam

significados distintos. A intervenção estatal significa uma

28 SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da Dignidade da Pessoa Humana no Estado Democrático de Direito. In: MOURA, Lenice S. Moreira de (org.). O Novo Constitucionalismo na Era Pós-Positivista: Homenagem a Paulo Bonavides; São Paulo: Saraiva, 2009. p. 85-120. 29 MELLO, Celso Antônio Bandeira de; Curso de Direito administrativo; 22ª edição; São Paulo: Malheiros Editores, 2007. pág. 764-765. 30 Ibidem, p. 762-763. 31 TAVARES, André Ramos. A Intervenção do Estado no Domínio Econômico. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord). op. cit. p. 227.

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atuação na economia além da esfera pública, portanto, na área de titularidade do setor privado, portanto, no domínio econômico.

Por outro lado, atuação estatal é a ação do Estado tanto na área de titularidade própria, quanto em área de titularidade do setor privado, ou seja, no campo da atividade econômica em sentido amplo, enquanto que a intervenção reporta-se ao campo da atividade econômica em sentido estrito32.

Em vista disto, quando o Estado presta serviço público ou regula a prestação de serviço público, está atuando na atividade econômica em sentido amplo, não praticando ato de “intervenção”.

A Constituição confere tratamento diferenciado aos termos “atividade econômica” e “serviço público”. No art. 173 enuncia as hipóteses, em caráter excepcional, em que é permitida a exploração direta de “atividade econômica” pelo Estado. Em contrapartida, no art. 175, define incumbir ao Poder Público “a prestação de serviços públicos”; e, no art. 174, determina a obrigação do Estado, como agente normativo, regular a atividade econômica33.

Atividade econômica em sentido amplo é gênero, que comporta as espécies: atividade econômica em sentido estrito e serviços públicos.

Serviço público é um tipo de atividade econômica de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, destinadas a pessoas indeterminadas, cujo desenvolvimento compete preferencialmente ao setor público34.

Atividade econômica em sentido estrito englobará as demais atividades que faltar característica de essencialidade, mesmo que seja desempenhada pelo Estado.

Assim, no art. 173 tem-se a definição de atividade econômica em sentido estrito. As hipóteses do art. 173 são aquelas nas quais é permitido ao Estado - União, Estados-Membros ou Municípios, atuar no campo da atividade privada. Enquanto que o art. 174 refere-se à atividade econômica em

32 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 90. 33 Cf. Artigos 173 a 174, CF/88. 34 MARÇAL FILHO, Justen. Serviço Público no Direito Brasileiro. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord); op. cit. p. 370.

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O Estado como agente regulador... 79 sentido amplo, aponta à globalidade da atuação estatal como agente normativo e regulador35, de mesma forma com o art. 170.

3.2.2.3 As falhas de mercado

Para a ideologia do liberalismo econômico, a economia

de mercado não apresentaria distúrbios que afetassem as transações privadas. O próprio mercado se autorregularia36.

Entretanto, no decorrer da história, os princípios liberais restaram insuficientes para o devido amparo de funcionamento da economia e das necessidades públicas, em virtude disto a intervenção pública tornou-se imprescindível para corrigir os problemas de mercado que afetam as transações privadas.

As “falhas de mercado” são circunstâncias que prejudicam o desenvolvimento equilibrado da ordem econômica37.

Costuma-se reconhecer a existência de cinco falhas de mercado38: “1ª existência de monopólios naturais e de concentração econômica; 2ª presença de bens públicos; 3ª externalidades; 4ª assimetrias de informação; e 5ª problemas de coordenação”.

Na primeira falha de mercado, a capacidade de concorrência dos mercados é comprometida. Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência39 são desrespeitados, havendo deficiência de mercado e prática de abuso do poder econômico.

Quanto à segunda falha de mercado, os bens públicos envolvem a questão da dificuldade de individualizar o custo a ser incorrido por cada um de seus usuários, tendo em vista que seu consumo não é exclusivo, o que acaba gerando um desestímulo

35 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 101-106. 36 SCHAPIRO, Mario Gomes. Estado, Economia e Sistema Financeiro: Bancos Públicos como Opção Regulatória e como Estrutura de Governança. In: LIMA, Maria Lúcia L. M. Padua (coord.) Agenda

Contemporânea: Direito e Economia, 30 anos de Brasil; Tomo 2; Cap. 04. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 120-123. 37 TAVARES, André Ramos. op. cit. p. 227. 38 SCHAPIRO, Mario Gomes. op. cit. p. 125. 39 Cf. art. 170, CF/88.

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aos agentes econômicos a empreendê-los, haja vista nenhuma pessoa ter sua cota parte do bem40.

As externalidades, em regra, são problemas que o sistema de preços, por si só, não consegue combater. Já as assimetrias de informações traduzem a diferença de capacidade das partes contratantes em exercer sua livre vontade contratual. Enquanto que os problemas de coordenação relacionam-se com problemas empresarias de investimentos interdependentes.

Estas falhas representam limites para o funcionamento “autorregulável” dos mercados41.

Por sua vez, a mitigação de tais vícios requer do Estado à composição de instrumentos interventores capazes de atuar de maneira corretiva na economia, o desenvolvimento de atividades regulatórias, tais como, criação de dispositivos regulatórios na defesa da livre concorrência e lei antitruste, fixação de tarifas, controle ambiental, estatização de alguns setores econômicos (monopólios naturais), entre outras42.

3.2.3 Formas de intervenção no domínio econômico

A doutrina clássica apresenta três modalidades de

intervenção: intervenção por absorção ou participação; intervenção por direção e intervenção por indução43.

No primeiro caso, o Estado intervém no domínio econômico, no campo da atividade em sentido estrito, isto é, suas ações são desenvolvidas enquanto agente (sujeito) econômico.

Na intervenção por absorção, o Estado assume integralmente o controle dos meios de produção em determinado setor econômico, atuando em regime de monopólio. Quanto à intervenção por participação, o Estado assume o controle de parcela dos meios de produção, atuando em regime de competição com as demais empresas privadas que permanecem a exercitar suas atividades no mesmo setor44.

Verifica-se que a segunda e terceira formas de intervenções citadas, significam uma ação do Estado sobre o

40 SCHAPIRO, Mario Gomes. op. cit. p. 127. 41 Ibidem. 42 TAVARES, André Ramos. op. cit. p. 225-227. 43 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 143. 44 TAVARES, André Ramos. op. cit. p. 230-231.

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O Estado como agente regulador... 81 domínio econômico, ou seja, um agir também no campo da atividade econômica em sentido estrito, todavia, não como sujeito econômico, e sim, como agente regulador, desenvolvendo atividades reguladoras da ordem econômica, as quais utilizará de seu “poder de polícia” para interferir na economia, através da instituição de leis e atos administrativos, conforme previsto no art. 174 da CF/8845.

Em relação à intervenção por direção, a ação do Estado está voltada em estabelecer mecanismos e normas de comportamento compulsório, imperativas e cogentes, que devem ser observadas por todos os sujeitos do domínio econômico.

Por fim, a intervenção se dará por indução quando o Estado, manipulando os instrumentos de intervenção em conformidade das leis que regem os funcionamentos dos mercados, direciona a economia para os fins que almeja, como por exemplo, através de estímulos, incentivos de toda ordem, a quem participe de determinada atividade46. 3.3 ESTADO EMPRESÁRIO E REGULAÇÃO DO MERCADO

Regular os mercados, de uma forma geral, significa,

para o Estado, empreender ações para manter o equilíbrio das relações econômicas, garantindo que os valores e princípios da ordem econômica sejam respeitados47. O Estado interfere na ordem econômica de diversas formas, seja instituindo regras disciplinadoras, ou participando diretamente da exploração da atividade econômica48.

A modalidade de intervenção no domínio econômico pressupõe atuação direta do Estado na ordem econômica,

45 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit. p. 765. 46 Vide ADI 3512, Relator Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 15/02/2006, DJ 23-06-2006 PP-00003 EMENT VOL-02238-01 PP-00091 RTJ VOL-00199-01 PP-0029 LEXSTF v. 28, n. 332, 2006, p. 69-82. 47 Cf. item 1.2. 48 SANTOS, Cristiana Espírito Santo Rodrigues. A Excepcionalidade Constitucional do Estado-Empresário Brasileiro. Revista Controle – doutrina e artigos, V. IX – n.1 – Jan/Jun 2011; Tribunal de Constas do Estado do Ceará, Instituto Escola e Capacitação Ministro Plácido Castelo. p. 317-318.

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assumindo o controle dos meios de produção de determinado setor da economia.

Com efeito, a lei define os meios e possibilidades de intervenção estatal enquanto agente econômico49, estabelecendo quais as atividades econômicas que serão desenvolvidas em regime de monopólio – intervenção por absorção50, como também às hipóteses em que competirá com a iniciativa privada nos demais setores econômicos – intervenção por participação, caracterizando a figura do Estado Empresário51.

A ordem econômica traz princípios e fundamentos voltados à atividade econômica, desenvolvida por particulares. Ficando a encargo do Estado, em regra, os serviços públicos52.

Quando o Estado presta serviço público ou regula a prestação de serviço público não pratica ato de intervenção na economia53.

Assim, o Estado Empresário significa a forma de exploração da atividade econômica em sentido estrito que, embora de titularidade do setor privado, em caráter excepcional, tratam-se dos casos de: imperativo da segurança nacional (CF, art. 173, caput); relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput); e monopólio outorgado à União (CF, art. 177)54.

Nos artigos 177, 21, inciso XXXIII, da CF/88, estão dispostas as atividades exercidas em regime de monopólio, e no artigo 173 a possibilidade excepcional de atuar nos demais setores econômicos ao lado da iniciativa privada, quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

No caso do art. 177 – monopólio do petróleo, gás natural, e mesmo do artigo 21, XXXIII - energias nucleares, por exemplo, as razoes creditadas aos imperativos da segurança nacional é que justificam a previsão constitucional de atuação do Estado, como agente econômico, no campo da atividade

49 Cf. art. 170 a art. 181 da CF/88. 50 Cf. art. 177, incisos I a V, CF/88. 51 Cf. item 1.3. 52 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit. 53 Cf. Item 1.2.2. 54 BARROSO, Luís Roberto. Apontamentos sobre as Agências Reguladoras. In: MORAES, Alexandre de (org.). op. cit. 113-118.

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O Estado como agente regulador... 83 econômica em sentido estrito, a título de monopólio, pelo interesse nacional na exploração de tais atividades.

Não há neste caso a prestação de serviço público, haja vista para isso o Estado não necessitar de “autorização” constitucional, já que atender as necessidades públicas é seu dever55.

Por sua vez, o art. 173 contempla a possiblidade de o Estado atuar em qualquer outro setor econômico, desde que esta intervenção seja necessária também aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, diferindo-se da forma de monopólio, pois, além das atividades para exploração não estarem expressamente previstas na Constituição, o exercício da atividade econômica se dará ao lado de empresas privadas, em regime de competição.

Verifica-se que a presença destes requisitos para este meio de intervenção desestimula a estatização da atividade econômica56.

Quando a intervenção for necessária aos imperativos da segurança nacional, significa dizer que será imprescindível para garantir a própria existência e razão de ser do Estado. Isto porque, determinadas atividades econômicas são estratégias para se garantir a soberania do Estado e independência da nação. Quanto ao interesse coletivo, embora tratar-se de espécie de interesse público, não é o mesmo que o dos serviços públicos. Neste caso, interesse coletivo expressam particularismos, interesses corporativos57.

Além disso, em proteção aos princípios da livre concorrência e da livre iniciativa, as empresas públicas estarão sujeitas ao mesmo regime jurídico das empresas privadas, inclusive enquanto obrigações tributárias, comerciais, trabalhistas e civis, sem privilégios fiscais58.

Ainda, a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, qualquer forma que vise eliminar a concorrência entre a iniciativa privada e o aumento arbitrário dos lucros do Estado-Empresário, haja vista que o seu fim, em tese, é interferir na ordem econômica como, agente

55 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 125. 56 TAVARES, André Ramos. op. cit. p. 243. 57 SANTOS, Cristiana Espírito Santo Rodrigues. op. cit. p. 325-328. 58 Cf. Art. 173, § 1º, inc. II e § 2º, CF/88.

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empresário, para equilibrar os mercados, mantendo a essência de agente regulador, e não apenas lucrar com referida atividade.

Contudo, nas últimas décadas, este modelo interventivo enfrenta uma decadência, deixando de ser a principal forma interventiva, dando lugar a privatização e à intervenção sobre o domínio econômico, na medida em que as funções regulatórias desempenhadas pelo Estado Empresário restaram ineficazes e insuficientes59.

Diante disto, a criação das agências reguladoras marca um novo modelo de Estado, o Estado Regulador, que concede parcela de seu poder regulatório para estes órgãos da administração pública indireta, enfatizando a intervenção sobre o domínio econômico.

3.3.1 A livre iniciativa e a livre concorrência: uma análise crítica

A livre iniciativa, um dos fundamentos da ordem

econômica, a princípio, representa a liberdade econômica ou de iniciativa econômica do setor privado em explorar a atividade econômica em sentido estrito.

O Estado não tem a prerrogativa de privar os particulares do direito ao desempenho de determinada atividade econômica ou mesmo condicioná-la a autorização do poder público, salvo as exceções previstas em lei, como nos casos de monopólio estatal (art. 177, CF)60.

A atividade a ser empreendida, e os meios usados para tanto, resultam de uma livre decisão dos agentes econômicos, por expressa previsão constitucional. Neste sentido, basta observar que no art. 174 da Constituição, a livre iniciativa resta assegurada na medida em que o planejamento, obrigatório para as atividades desenvolvidas pelo Estado, é mero indicativo para o setor privado61.

Contudo, esta é somente uma das faces da livre iniciativa, a expressão, ainda, revela, além da liberdade econômica da empresa privada, a liberdade titulada pelo

59 BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p. 116-117. 60 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit. p.766. 61 Cf. art. 170, CF/88.

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O Estado como agente regulador... 85 trabalho, tendo em vista ser corolária da valorização do trabalho humano62.

Com efeito, no art. 1º, a Constituição traça como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. E como alicerce da ordem econômica, prevê, novamente, a livre iniciativa ao lado da valoração do trabalho humano.

Assim, a Constituição Federal garante tanto a liberdade de escolha do empresário em explorar determinado ramo do setor econômico, como também a liberdade de escolha do trabalho pela pessoa individualmente considerada. Além disso, concilia esta livre iniciativa aos demais fundamentos e princípios constitucionais, tais como: a própria valoração do trabalho humano, dignidade da pessoa humana, defesa do consumidor, livre concorrência, valores supralegais que consistem em verdadeiras garantias individuais, que obrigatoriamente devem ser preservados pelo Estado e por toda sociedade.

Evidente, portanto, a limitação da autonomia privada diante da autonomia pública, na medida em que o Estado, com auxílio de seus entes reguladores, institui normas orientadoras da atividade econômica, para manter equilíbrio da ordem econômica, do mercado e das forças sociais.

Basta uma análise do conjunto de princípios e fundamentos esculpidos desde os artigos 1º, 2º e 3º, até o art. 170 da Constituição Federal para lograr na referida conclusão. Constata-se que a livre iniciativa, que garante o exercício da atividade econômica livre de impedimentos, ao mesmo tempo deve respeitar o trabalho humano, tendo como fim assegurar a todos, empresários e trabalhadores, uma existência digna.

Por sua vez, a livre concorrência, princípio da ordem econômica63, é consectária da livre iniciativa. O princípio completa o fundamento. Desrespeitada a livre concorrência, a livre iniciativa resta prejudicada, e o abuso do poder econômico caracterizado.

O princípio da livre concorrência significa o livre jogo das forças de mercado na disputa da clientela64.

62 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 203. 63 Cf. art. 170, inciso V, CF/88. 64 PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição

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Trata-se de igualdade jurídico formal no processo

comportamental competitivo no mercado, e não de igualdade material entre os agentes econômicos, uma vez que o próprio sistema de mercado garante a manifestação de poder econômico, sendo a desigualdade inafastável em um regime de livre iniciativa65.

O que não se admite é o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, ou qualquer forma que objetive eliminar a concorrência entre a iniciativa privada e o aumento arbitrário dos lucros, de acordo com art. 173, § 4º, da CF/88.

A livre concorrência, por conseguinte, é forma de tutela tanto do consumidor como da própria iniciativa privada. Afinal, o abuso do poder econômico que elimine a concorrência, por exemplo, a formação de trustes e cartéis, frustra a iniciativa privada, ao mesmo tempo em que prejudica o direito do consumidor em comprar produtos na lei da melhor oferta, é maléfica a livre iniciativa.

Para reprimir o abuso do poder econômico e zelar pelos princípios constitucionais, foi criado o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, inicialmente pela Lei 4.137/62, transformado em autarquia federal pela Lei 8.884/94, alterada recentemente pela Lei 12.529/2011, vinculado indiretamente ao Ministério da Justiça66.

O CADE é encarregado da fiscalização da livre concorrência no País, suas missões institucionais tem natureza repressiva, preventiva e educativa, exercendo funções judicantes, cujas decisões não se submetem a revisão hierárquica, porém não se caracteriza como agência reguladora: é uma simples autarquia, não uma autarquia especial, mas que da mesma forma, auxilia o Estado na intervenção econômica

Federal. 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 247. 65 REALE JR., Miguel. A Ordem Econômica na Constituição. Texto Inédito. apud GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 206. 66 JÚNIOR, João Carlos Leal; PRADO, Martha Asunción Enriquez. Análise Crítica ao Modelo de Apreciação de Atos de Concentração pelo CADE em Cotejo com o Sistema Europeu de Defesa da Concorrência. p. 7-12.

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O Estado como agente regulador... 87 sobre o domínio econômico67, atuando na prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica68.

De todos os princípios e fundamentos esculpidos, depreende-se que a Constituição Federal apesar de adotar como regime econômico o capitalismo, por outro lado consagra o Estado Social, com valores sociais supremos que devem obrigatoriamente seguidos nesta econômica de mercado.

Há uma proposta constitucional de harmonia entre a livre iniciativa privada, a liberdade individual, proteção à propriedade privada, exploração da atividade econômica, obtenção de lucro do empresário, conciliada a interesses públicos, isto é, que se referem à sociedade como um todo, como a função social da propriedade, valoração do trabalho, dignidade da pessoa humana, que limitam a autonomia privada.

Não obstante esta ideia de consonância entre o capitalismo com o Estado Social, para teoria crítica, a Constituição propõe a falsa ideia de Justiça Social, apenas promove os ideais desta sociedade capitalista que se encontram somente no “mundo do dever-ser”, já que a economia de mercado perpetua e aprofunda desigualdades que estão em sua própria origem69.

Todavia, o fim de criação do Estado é organizar a sociedade e proteger seus administrados. Assim, sua intervenção na ordem econômica capitalista, seja como agente econômico, ou regulador, é necessária para que os valores sociais sejam respeitados e efetivados, afinal, não estamos diante do liberalismo econômico, a proposta da Constituição Federal é de fato, de uma sociedade capitalista comprometida com valores sociais.

67 FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Agências Reguladora: Legalidade e Constitucionalidade. p. 19. 68 Cf. art. 36 da Lei 12.529/2011, que dispõe sobre as infrações contra ordem econômica. 69 NOBRE, Marcos; A Teoria Crítica: Filosofia - passo a passo 47. 3ª ed. Zahar: Rio de Janeiro, 2011. p. 21-34.

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3.3.2 A internacionalização dos mercados.

A atual fase da globalização do mundo expressa um

novo clico de expansão do capitalismo70. O processo de integração das economias e sociedades de diversos países assume uma perspectiva surpreendente. Verifica-se um verdadeiro “surto de universalização do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório”, que cria uma nova etapa na economia mundial: mundialização dos mercados71.

A produção capitalista ultrapassou os limites das fronteiras geográficas, os bens produzidos nos diversos países circulam por todo o mercado global.

Assim, a perspectiva do desenvolvimento econômico, em razão deste mercado globalizado, não é mais local, restrita ao mercado nacional, e sim internacional. Neste cenário, surge para as empresas, grandes, médias e pequenas, um grande desafio em sua reestruturação para adequarem-se as novas exigências de produtividade, agilidade e capacidade de inovação, a fim de ampliação dos mercados consumidores72.

Diante disto, o Estado juntamente com suas entidades – agências reguladoras assumem papel primordial na regulação da economia, especialmente na proteção da livre iniciativa, para garantir o desenvolvimento e expansão do poder econômico das empresas nacionais para que possam competir em condições de igualdade com as multinacionais.

Todavia, este fomento para as empresas nacionais expandirem seus mercados pode ser prejudicial à própria livre iniciativa dos pequenos empresários, que diante da concentração de capital, não terão condições de sobreviverem em seu próprio território 73.

De fato, a constituição de monopólios estatais prejudica a livre iniciativa, afinal, o controle exclusivo de uma atividade econômica por uma única pessoa jurídica, gera acúmulo de grande poder econômico, sendo prejudicial aos consumidores e a toda ordem econômica.

70 IANNI, Octavio. A Era do Globalismo. 9ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 11. 71 Ibidem, p. 13. 72 Ibidem, p. 14. 73 PETTER, Lafayete Josué. op. cit. p. 179.

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O Estado como agente regulador... 89

Entretanto, o incentivo de desenvolvimento das empresas nacionais para expandirem os seus mercados, não deve ser voltado para a dominação do mercado nacional, e sim para a expansão do mercado a nível global.

O Estado brasileiro vivenciou grandes fusões entre importantes empresas de vários setores econômicos. Infere-se que dentre estas incorporações empresarias, algumas foram benéficas para a expansão do mercado nacional, elevando a economia a nível internacional, como por exemplo, o caso da BRF – Brasil Foods, empresa nascida da união entre os frigoríficos Sadia e Perdigão, e o caso da AmBev, união entre as cervejarias Antarctica e Brahma, atualmente no ranking das três maiores cervejarias do mundo, responsável gerar milhões de empresas e circulação de capital no país, bem como o recolhimento de impostos.

Por outro lado, uma fusão que a princípio não logrou nesta “expansão do mercado”, malgrado estar aprovada pelo CADE, foi entre as empresas Gol - Linhas Aéreas e Webjet – Linhas Aéreas. Neste caso, a empresa Gol adquiriu a Webjet, mas, com o intuito de dominação do mercado local, visto que a maioria das linhas aéreas oferecidas são domésticas, e não internacionais. Além disso, verifica-se que foi uma incorporação maléfica ao sistema econômico constitucional, haja vista que logo após a extinção da empresa Webjet, houve aumento de preços das passagens aéreas, desrespeitando o direito dos consumidores e a livre concorrência, e demissão de milhares de trabalhadores.

Assim, o incentivo ao desenvolvimento empresarial nacional não é sinônimo de expansão da economia no mercado global. É necessário que o Estado e suas entidades reguladoras ponderem sobre as atitudes empresarias que visem à dominação do mercado nacional que prejudica a livre concorrência, e não a internacionalização, a fim de manter em harmonia e equilíbrio os princípios constitucionais da ordem econômica.

3.4 A FORÇA NORMATIVA DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

As agências reguladoras foram constituídas no Brasil

como autarquias de regime especial, integrantes da administração pública indireta, dotadas de autonomia político-

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administrativa e autonomia econômico-financeira, para realizar as tradicionais atribuições do Estado de regular e fiscalizar a ordem econômica74.

Por sua vez, a noção de regulação da economia implica na integração de diversas funções75: editar regras, assegurar sua aplicação e reprimir infrações contra ordem econômica, a fim de manter equilíbrio dos interesses das diversas forças sociais existentes.

Portanto, no exercício de suas prerrogativas, as agências reguladoras detém certa competência normativa76.

Trata-se de uma forma de delegação legislativa, sendo uma consequência do novo panorama administrativo do Estado, que exige a descentralização da administração pública, para efetivar as novas exigências de celeridade, eficiência, e eficácia fiscalizatória77.

Contudo, este poder normativo das agências reguladoras é limitado frente aos preceitos constitucionais sobre competência legislativa, e diante da separação dos poderes, a qual deve ser integralmente respeitada, mantendo a centralização governamental no Poderes Políticos – Executivo e Legislativo78.

Neste sentido, as agências reguladoras poderão receber do Poder executivo, por meio de lei de iniciativa do Poder executivo, uma delegação para exercer seu poder normativo de regulação, competindo ao Congresso Nacional a fixação das finalidades, dos objetivos básicos e da estrutura das Agências, bem como a fiscalização de suas atividades.

Diante disto, as agências reguladoras não poderão, no exercício deste poder normativo, inovar primariamente a ordem jurídica, ou seja, regulamentar matéria para a qual inexista um prévio conceito genérico em sua lei instituidora, tampouco criar ou aplicar sanções não previstas em lei.

74 MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 25. 75 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Regulação da Economia: Conceito e Características Contemporâneas. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord). op. cit. p. 1035. 76 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Agências Reguladoras: Legalidade e Constitucionalidade. pág. 1. 77 MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 19. 78 Ibidem, p. 20.

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O Estado como agente regulador... 91

É um poder normativo complementar com fundamento no princípio da eficiência da Administração Pública79, afinal, a eficiência cria para o Estado a responsabilidade que não se reduz nem ao risco administrativo, nem à igualdade perante os encargos públicos, mas antes as incorpora em nome da obrigação que lhe é imposta, ao exercer funções reguladoras no mercado, de evitar as assimetrias de informação que funcionem como um incentivo para o comportamento oportunista dos agentes privados, levando o mercado a uma disfunção80.

A eficiência é a base constitucional da delegação de poder às agências, por isso inexiste inconstitucionalidade. Afinal, referido princípio exige que a Administração seja dotada de competências reguladoras de natureza técnica e especializada, sob pena de ineficácia dos meios regulatórios. Além disso, esta delegação de competências é necessária como forma de garantia da própria independência da agência reguladora, de modo que possa tomar as imediatas decisões para a plena regulação econômica.81

Assim, o poder normativo das agências reguladoras não abrange o poder de inovar na ordem jurídica ou contrariá-la, mas sim o de definir regras instrumentares que visem à proteção dos preceitos constitucionais da ordem econômica de forma célere, em respeito ao princípio da legalidade, e a separação dos poderes82.

3.4.1 A regulação do direito concorrencial

Todas as leis de criação das agências reguladoras

preocupam-se em ter uma previsão para proteger a livre concorrência e, consequentemente, o direito do usuário em escolher livremente pelo prestador do serviço ou produtor do bem, impedindo assim, a dominação de mercados e o abuso do poder econômico83.

79 Cf. Art. 37, CF/88. 80 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. op. cit. p. 10. 81 Ibidem, p. 12. 82 ARAUJO, Edmir Netto de. op. cit. p. 55. 83 MANEZELLO, Maria D’Assunção Costa. Agências Reguladoras e o Direito Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2002. p. 149.

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92 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Todavia, além das agências reguladoras na proteção da

livre concorrência, verifica-se a presença primordial do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, com a atuação regulatória prevista pela lei 12.529/10.

O CADE é entidade estatal responsável em fiscalizar os agentes econômicos, e coibir a prática de infrações à ordem econômica e condutas anticoncorrenciais84.

Além disso, exerce controle de atos e contratos empresariais que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, e das fusões e incorporações de empresas, no sentido de impedir a dominação dos mercados85.

Infere-se que a atuação na proteção da livre concorrência entre o CADE e as agências reguladoras é conjunta, afinal, diversas leis criadoras das autarquias especiais, como, por exemplo, a lei de criação da ANATEL – lei 9.472/97 prevê a aplicação das normas gerais de proteção à ordem econômica prevista na lei 12.529/1086.

Entretanto, desta parceria em salvaguarda da livre concorrência, é possível que surjam conflitos de competência de julgamentos das infrações à ordem econômica, por isso é necessário que haja uma harmonia procedimental e decisória entre estes entes da administração pública indireta, para que não seja comprometida a eficiência de abertura do mercado para a livre concorrência, e a proteção ao consumo87.

3.4.2 Regulação e normatização

A Constituição Federal, no Art. 174, expressamente faz

distinção entre os termos normatizar e regular: Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade

econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este

84 Cf. Art. 36 da Lei 12.529/10 85 Cf. item 3.2. 86 Cf. art. 7º da Lei 9.472/97. 87 LEHFELD, Lucas de Souza. ANATEL e as Novas Tendências na Regulamentação das Telecomunicações no Brasil. In: MORAES, Alexandre de. op. cit. p. 91.

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O Estado como agente regulador... 93

determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

Normatizar é o conjunto de medidas legislativas criadas

pelo Estado para exercer as funções previstas no supracitado artigo, como interventor econômico. Tais normas devem ser editadas a luz das regras constitucionais de competência legislativa, em respeito à Separação dos Poderes, cabendo, assim, ao poder legislativo, por natureza, a edição de leis que inovem na ordem jurídica, criando direitos, obrigações, aos agentes econômicos.

Por outro lado, depreende-se que o termo regular possui parcela de normatização, afinal, a regulação inclui dentre suas funções, a de editar regras para o setor econômico88.

Contudo, como a função precípua do Poder Executivo é de administrar, cabe a este apenas estabelecer regras infralegais, orientadoras e disciplinadoras da ordem econômica, que não sejam contrárias a leis, ou que caracterizem atos autônomos89.

Assim, trata-se de uma questão definidora de competências. E como as agências reguladoras foram criadas justamente como órgãos da administração pública indireta, independentes e autônomos, com o fim de regulação econômica, não há como negar que possuem parcela de competência normativa, que por sua vez, não se confunde com o poder normativo do legislativo ou com o regulamentar do executivo90.

Logo, o poder normativo das agências reguladoras é vinculado às normas legais pertinentes, sem inovar na ordem jurídica, e não de regulamentar leis e muito menos criar situações jurídicas autônomas que estabeleçam novos direitos, deveres ou penalidades, em respeito à garantia fundamental prevista no artigo 5º, inciso II, que ninguém será obrigada a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, isto é, em observância ao princípio da legalidade91.

88 Cf. item 4. 89 ARAUJO, Edmir Netto de. op. cit. p. 41. 90 ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Teoria da Regulação. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord). op. cit. p. 1022. 91 ARAUJO, Edmir Netto de. op. cit. p. 41

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94 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Desta forma, tais preceitos normativos estarão

subordinados a lei criadora da agência reguladora, a qual deverá atuar no ramo específico da atividade econômica que foi criada, e terão como objetivo corrigir as falhas de mercado, como, por exemplo, promovendo a adequada informação dos consumidores, coibir práticas que visem à dominação dos mercados e abuso do poder econômico e controlar preços92.

3.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A economia capitalista sofreu um processo de

transformação ideológica. Com origem nos ideais do Estado liberal, laissez faire - laissez passe, o mercado se autorregularia. Contudo, com o passar das décadas, verificou-se, em verdade, justamente o contrário, o mercado não consegue se autorregular, sendo a intervenção estatal necessária para corrigir as falhas de mercado.

Assim, o modelo de Estado Regulador surge após a decadência deste Estado Liberal, conciliado a ideia de Estado Social, com o objetivo de intervir direta e indiretamente na ordem econômica, para assegurar a concretização dos interesses públicos.

Dessa forma, para auxiliar o Estado nesta intervenção indireta sobre o domínio econômico, surgem as Agências Reguladoras, criadas na forma de autarquias especiais, com o objetivo de regular a ordem econômica, fiscalizando os agentes econômicos em suas atividades, a fim e zelar pela preservação dos princípios da ordem econômica: valoração do trabalho humano, livre iniciativa, livre concorrência, direito ao consumidor, entre outros.

Depreende-se que esta regulação estatal deve ser feita a luz novo estágio da globalização no cenário mundial: da internacionalização dos mercados. Dessa forma, as ações regulatórias, além de garantir a efetivação dos princípios da ordem econômica, devem propiciar o fomento da empresa nacional na expansão de seus mercados, a fim de que possam

92 PEREZ, Marcos Augusto. As Vicissitudes da Regulação Econômica Estatal: Reflexão sobre as Lições do Direito Norte-Americano em Comparação com o Direito Brasileiro. In: CARDOZO, José Eduardo Martins; QUEIROZ, João Eduardo Lopes; SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos (coord). op. cit. p. 1071.

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O Estado como agente regulador... 95 competir com as empresas transnacionais, sob pena de dominação do mercado nacional pelas empresas estrangeiras.

Por outro lado, para que este processo regulatório reste plenamente eficaz, com base no princípio constitucional da eficiência da Administração Pública, foi delegada às agências reguladoras uma parcela de poder normativo, respaldado em sua independência. Todavia, este poder normativo das agências reguladoras limita-se a expedição de regras disciplinadoras e orientadoras da atividade econômica, não podendo inovar na ordem jurídica, ou serem contra lei, em respeito à separação dos poderes e ao princípio da legalidade.

Diante deste cenário de intervenção econômica, infere-se que autonomia privada está limitada frente à autonomia pública, haja vista ser função do Estado Democrático de Direito garantir a todos os seus administrados uma sociedade livre, justa e solidária, satisfazendo as necessidades públicas, ou seja, embora a liberdade individual, a livre iniciativa, propriedade privada sejam ideais liberais consagrados na Constituição, não são absolutos, estando limitados diante dos princípios e direitos fundamentais consagrados pelo Estado Social.

Portanto, a interpretação constitucional revela, que malgrado o regime econômico adotado ser capitalista, existem valores sociais que devem ser garantidos, a fim de que a própria ordem jurídica, econômica e social seja assegurada.

3.6 REFERÊNCIAS

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O Estado como agente regulador... 97 MANEZELLO, Maria D’Assunção Costa. Agências Reguladoras

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98 Temas jurídicos atuais: Volume VI

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= IV =

PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS NO ÂMBITO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

Carolina Emerick de Souza* Claudinéia Veloso da Silva**

4.1 INTRODUÇÃO O Direito Administrativo origina-se no século XVIII em

decorrência da Revolução Francesa e com ele o Estado Liberal. Ao passar dos anos o modelo estatal evolui originando o Estado Social e posteriormente o Estado Democrático de Direito. Neste último modelo surge à ideia de Estado Subsidiário, onde o contexto de incentivo a iniciativa privada e a busca da concretização de parcerias entre ente público e privado originou a criação das Parcerias Público-Privadas.

O surgimento das PPPs no ordenamento jurídico brasileiro deu-se sob inspiração nas normas inglesas, tendo em vista que o Private Finance Initiative (PFI) surgiu na Inglaterra visando à solução ao deficit público limitador do desenvolvimento do país. A partir de tal influência o governo federal editou algumas leis visando fomentar a iniciativa privada e a celebração de parcerias, sendo estas a Lei nº. 8.666/93; Lei nº. 8.987/95; Lei nº. 9.074/95; e Lei nº. 9.648/98, e ainda a Lei nº 11.079/2004, que institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública.

As Parcerias Público-Privadas são contratos que estabelecem vínculo obrigacional entre a Administração Pública e a iniciativa privada visando à implementação ou gestão, total ou parcial, de obras, serviços ou atividades de interesse público, em que o parceiro privado assume a responsabilidade pelo financiamento, investimento e exploração do serviço,

* Graduanda do Curso de Direito. Centro Universitário Cesumar – Maringá/PR. E-mail: [email protected] ** Professora Mestre. Universidade Estadual de Londrina – Londrina/PR. E-mail: [email protected]

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100 Temas jurídicos atuais: Volume VI

observando, além dos princípios administrativos gerais, os princípios específicos desse tipo de parceria.

Neste contexto, no ano de 2009 o Governo de Minas assinou com o consórcio nacional Gestores Prisionais Associados (GPA), o contrato de Parceria Público-Privada (PPP) para construção e gestão de um complexo penitenciário em Ribeirão das Neves/BH. Tal parceria originou primeiro complexo penitenciário do Brasil construído e administrado por empresas particulares que fora inaugurado no ano de 2013.

O presente artigo, através da análise do contrato de PPP prisional, traz a discussão acerca da importância da implantação destes projetos no âmbito do sistema penitenciário brasileiro, tendo como principais objetivos a reabilitação e ressocialização dos condenados. Apresentando como problemática o choque de uma garantia constitucional, que assegura a dignidade da pessoa humana como direito fundamental, com a lei infraconstitucional, que prevê a impossibilidade da delegação do poder de polícia administrativa à iniciativa privada.

4.2 PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPs) NO BRASIL

4.2.1 Desenvolvimento histórico

O surgimento dos primeiros traços do Direito

Administrativo deram-se com o grande impacto da Revolução Francesa no século XVIII, originando o Estado Liberal, modelo estatal que caracterizava-se por um Estado com intervenção mínima e uma sociedade civil de atuação máxima. Nesse sentido a finalidade do Estado limitava-se em assegurar a ordem pública, como expõe o doutrinador constitucionalista Luís Roberto Barroso:

[...] foi a Revolução Francesa, com seu caráter universal, que incendiou o mundo e mudou a face do Estado – convertido de absolutista para liberal – e da sociedade, não mais feudal e aristocrática, mas burguesa. Mais que isso: em meio aos acontecimentos, o povo torna-se, tardiamente, agente de sua própria história. [...]1

1 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo

Modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 47.

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Parcerias público-privadas... 101

Assim o Estado pouco intervia nas questões econômicas e sociais, restringindo-se em apenas determinar os direitos individuais na medida do necessário para assegurar a ordem pública, pois acreditava-se que liberdade e igualdade existentes no meio social seriam capazes de equilibrar tais questões, como bem aduz Pedro Lenza:

Podemos destacar então, nesse primeiro momento, na concepção do constitucionalismo liberal, marcado pelo liberalismo clássico, os seguintes valores: individualismo, absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e proteção do indivíduo.2

No entanto, em meados do século XIX, começam a

surgir reações negativas em relação ao Estado Liberal, tendo em vista que, ante a falta de intervenção estatal, a burguesia passa a ter grande atuação no poder, marginalizando os não pertencentes a esta classe; surgindo uma nova classe social - o proletariado - que vivia a margem da sociedade, gerando uma enorme desigualdade econômica e social. Assim discorre Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Em meados do século XIX, começam as reações contra o Estado Liberal [...] as grandes empresas tinham se transformado em grandes monopólios e aniquilado as de pequeno porte; surgia uma nova classe social – o proletariado – em condições de miséria, doença, ignorância, que tendia a acentuar-se com o não intervencionismo estatal pregado pelo liberalismo.3

Fica evidente que os ideais propostos na Revolução

Francesa - liberdade, igualdade e fraternidade - voltados para a proteção da sociedade e economia, não foram de fato observados, tornando-se impossível o fim da desigualdade gerada pelo modelo estatal em questão, nos dizeres de Irene Patrícia Nohara, “[...] muito embora o lema da Revolução tivesse

2 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 58. 3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 8.

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102 Temas jurídicos atuais: Volume VI

sido liberdade, igualdade e fraternidade, apenas o primeiro princípio foi efetivamente perseguido [...]”4.

Deste modo, após a Segunda Guerra Mundial, apresenta-se uma nova modalidade estatal, o Estado Social, visando findar com o problema advindo do modelo estatal anterior, ou seja, o abismo existente entre os detentores do capital e os proletariados. Para Celso Antônio Bandeira de Mello:

Até um certo ponto da História havia a nítida e correta impressão de que os homens eram esmagados pelos detentores do Poder político. A partir de um certo instante começou-se a perceber que eram vergados, sacrificados ou espoliados não apenas pelos detentores do Poder político, mas também pelos que o manejavam: os detentores do Poder econômico. Incorporou-se, então, ao ideário do Estado de Direito o ideário social, surgindo o Estado Social de Direito, também conhecido como Estado de Bem-Estar (Welfare State) e Estado-Providência.5

O Estado passa a ter como objetivo a busca pela

igualdade entre as pessoas, intervindo na ordem econômica e social, visando sempre o bem comum, não mais individualismo existente no modelo estatal anterior. Nas palavras de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

O Estado do Bem-estar é um Estado mais atuante; ele não se limita a manter a ordem pública, mas desenvolve inúmeras atividades na área da saúde, educação, assistência e previdência social, cultura, sempre com o objetivo de promover o bem estar coletivo.6

O novo posicionamento interventivo do Estado, onde

este monopoliza a realização de serviços públicos com a atuação no âmbito da saúde, educação, assistência e previdência social e cultural, ao passar do tempo apresenta problemas pelo seu caráter impositivo e a falta de liberdade

4 NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:

Atlas, 2012. p. 19. 5 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 48. 6 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São

Paulo: Atlas, 2011. p. 3.

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Parcerias público-privadas... 103 individual da população. Surgem os primeiros problemas derivados da insuficiência do Estado em prestar serviços à população, problemas estes gerados pelo seu crescimento e também pela crise financeira enfrentada por este. Diante disto, Celso Antônio Bandeira de Mello afirma:

É verdade que nos últimos anos o Estado Social de Direito Passou, em todo o mundo, por uma enfurecida crítica, coordenada por todas as forças hostis aos controles impostos pelo Estado e aos investimentos públicos por ele realizados.7

Tais fatos originam um novo modelo estatal, o Estado

Democrático de Direito, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro neste modelo “[...] O que se almeja é a participação popular no processo político, nas decisões do Governo, no controle da Administração Pública”8. Ocorre neste momento a humanização do interesse público, passando a levar em consideração os valores essenciais à existência digna. Visando-se reduzir as desigualdades sociais, propiciando o bem-estar social a toda a coletividade e ainda, submeter o Estado a uma ideia de justiça, e não à lei em sentido apenas formal.

Neste sentido, complementa Irene Patrícia Nohara: Neste contexto, surge, a partir da segunda metade do século XX, a reflexão acerca da necessidade de enunciação de um Estado Democrático de Direito, isto é, de um Estado que

preservasse os objetivos sociais do Estado Social, mas que simultaneamente procurasse garantir princípios democráticos de uma perspectiva pós-positivista.9

Juntamente com este Estado Democrático surge a ideia

de Estado Subsidiário, não se tratando de um novo modelo estatal, mas sim da aplicação do princípio da subsidiariedade no modelo atual. O princípio em questão prega a diminuição da

7 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 49. 8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 14. 9 NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:

Atlas, 2012. p. 23.

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104 Temas jurídicos atuais: Volume VI

barreira entre Estado e sociedade, cabendo ao Estado por um lado abster-se de exercer atividades que o particular tem condições de exercer mediante sua própria iniciativa e com seus próprios recursos, e por outro, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Cabe a este promover, estimular, criar condições para que o indivíduo se desenvolva livremente e igualmente dentro da sociedade”10.

Esta característica determina que o Estado apenas exercerá as atividades extremamente essenciais, tais como defesa, segurança, legislação, polícia e justiça, delegando todo o resto para a iniciativa privada; Tal fato gera três mudanças marcantes no âmbito administrativo do país, sendo estas: a prática de privatizações, o crescimento das técnicas de fomento, e por fim, as várias ferramentas de parcerias celebradas entre o setor público e o privado. Nesse sentido aduz Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

[...] a existência de serviços públicos exclusivos do Estado é contrária ao princípio da livre iniciativa; e a ideia de que serviços públicos possam ser prestados por empresas estatais contraria a livre concorrência. A consequência foi a liberalização de serviços públicos, ou seja, a privatização, não da forma de gestão, mas das próprias atividades, que perderam a qualidade de serviços públicos e passaram a ser consideradas atividades privadas, abertas à livre iniciativa.11

Foi nesse contexto de incentivo a iniciativa privada e

busca da concretização de parcerias entre ente público e privado, que se deu a criação das Parcerias Público-Privadas (PPPs), tendo como pioneira nesta iniciativa a Inglaterra. Este sistema surge objetivando atender à necessidade de realização de obras de infraestrutura, para as quais o governo não dispõe de recursos suficientes, e também privatizar a Administração Pública, transferindo ao ente privado grande parte das funções administrativas do Estado. Nas palavras de Fernando Vernalha Guimarães:

10 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 16. 11 Ibidem, p. 17.

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Parcerias público-privadas... 105

O progressivo recurso a formas de direito privado na atuação estatal, caracterizando o que se batizou no passado de fuga para o direito privado, introduz o direito administrativo numa renovada esfera de relação com os privados. [...] o contraponto da ausência de suficiente fluxo de recursos públicos à necessidade de expansão e desenvolvimento dos Estados, calcado primordialmente na execução de obras e serviços de infraestrutura, conduziu à busca por novos instrumentos de financiamento do setor público.12

Conclui-se que o surgimento das PPPs no âmbito

mundial e no âmbito nacional, é fruto de uma longa evolução do Estado, desde a Revolução Francesa até a contemporaneidade. Originando-se da necessidade da criação de mecanismos que suprissem a carência do ente público e promovessem ao máximo o bem estar social.

4.2.2 Aspectos legais

O surgimento das PPPs no ordenamento jurídico pátrio

deu-se sob inspiração nas normas inglesas, tendo em vista o pioneirismo da Inglaterra em desenvolver projetos de parceria entra Estado e empresas privadas, criando inicialmente o Private Finance Initiative (PFI), visando à solução ao deficit público limitador do desenvolvimento do país. Outros países europeus desenvolveram formulas similares ao contrato criado na Inglaterra, surgindo posteriormente uma terminologia universal para tais contratos, batizada de Public Private Partnerships. Fernando Vernalha Guimarães descreve:

Algumas iniciativas, como do Reino Unido, desenvolveram projetos de parceirização entre Estado e empresas privadas (Private Finance Initiative), buscando-se soluções ao déficit (sic) público limitador do desenvolvimento. Outros países europeus desenvolveram fórmulas similares [...] Planta-se, nesse cenário, a noção de uma fórmula contratual universalmente batizada de Public Private Partnerships.13

12 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: Parceria público-privada. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 17. 13 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: Parceria público-privada. 1.

ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 17.

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106 Temas jurídicos atuais: Volume VI

É valido ressaltar ainda a influência do ordenamento

jurídico francês, tendo em vista que a teoria do contrato administrativo no Brasil edificou-se sobre os elementos jurídico-estruturais herdados da teoria geral e do pensamento civilista francês do início do século XX.

Realizando inicialmente a distinção entre contrato administrativo e contrato privada, tendo relevância apenas no âmbito processual; sendo que no início do século, origina-se o critério material de serviço público, fundamentando as diferenças entre atividade pública e privada, tendo em vista que o serviço público que busca o interesse geral, trata-se de direito comum e portanto deve submeter-se à jurisdição administrativa. Neste sentido afirma Fernando Vernalha Guimarães “A doutrina francesa, acolhendo o critério do serviço público – e já influenciada por este –, cuidou de construir uma base teórica para a explicação do contrato administrativo [...]”14.

Assim evidencia-se a influência estrangeira no ordenamento jurídico pátrio, seja no que diz respeito ao sistema de PPP propriamente dito, ou ainda, no que refere-se a teoria do contrato administrativo, tendo em vista que esta é indispensável para a formulação do contrato de parcerias entre ente público e privado. Sob tal influencia complementa Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Mais uma vez, o legislador brasileiro baixa normas sob a inspiração do direito estrangeiro, seja do sistema da common law (já que a parceria público-privada teve origem no direito inglês), seja no direito comunitário europeu, onde o instituto vem sendo também adotado, sem que haja um modelo único para parcerias.15

A partir de tais influências o governo federal editou

algumas leis visando fomentar a iniciativa privada e a celebração de parcerias, dentre estas se destacam: Lei nº. 8.666/93; Lei nº. 8.987/95; Lei nº. 9.074/95; Lei nº. 9.648/98. Tais leis são de suma importância para o ordenamento administrativo brasileiro, pois através do sancionamento destas foi possível editar a Lei nº

14 Ibidem, p. 28. 15 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 145.

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Parcerias público-privadas... 107 11.079/04, que veio a tratar especificamente do sistema de PPPs, ocasião em que as leis anteriores passaram a ser utilizadas subsidiariamente nos casos de PPP. Deste modo, para um melhor entendimento se faz necessário tecer breves considerações a respeito de cada uma delas, o que se passa a fazer:

A Lei nº. 8.666, de 21 de junho de 1993, instituiu normas para licitações e contratos da Administração Pública; e, após algumas alterações, passou a disciplinar todos os contratos administrativos. No que diz respeito aos contratos de obra e serviços, abrangendo a empreitada e a tarefa, destacam-se duas características, a de estabelecer regras próprias do regime administrativo e também a supremacia da administração pública sobre o ente privado, neste sentido afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

[...] a Lei nº. 8.666/93 não apenas estabeleceu sujeições próprias do regime administrativo (arts. 7º a 12), como também assegurou à Administração uma série de prerrogativas que a colocam em situação de supremacia sobre o particular.16

Sabendo-se que a Lei nº. 8.987/95 dispõe acerca da

concessão e permissão de serviços públicos, e também sobre a concessão de obra pública; e ainda, que a Lei nº. 9.074/95 estabeleceu normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos; a doutrinadora Maria Luiza Machado Granziera traz em sua obra a tradicional distinção entre concessão e permissão de serviço público, as caracterizando da seguinte forma:

Concessão de serviço público é o contrato pelo qual a Administração Pública delega a um particular a execução de um serviço público em seu próprio nome, por sua conta e

risco. A remuneração dos serviços é assegurada pelo recebimento da tarifa paga pelo usuário. 17

16 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 263. 17 GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Contratos administrativos:

gestão, teoria e prática. São Paulo: Atlas, 2002. p. 111.

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108 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Ainda no entendimento da doutrinadora, a permissão de

serviço público não possui natureza de contrato, sendo um ato unilateral da Administração Pública, podendo ser revogado a qualquer momento, e ainda “[...] discricionário, porque depende de decisão de mérito administrativo [...]”18, onde deve-se verificar a conveniência e a oportunidade da permissão.

Já a doutrinadora Irene Patrícia Nohara afirma que algumas diferenças entre concessão e permissão de serviço público, anteriormente identificadas na doutrina, encontram-se ultrapassadas na atualidade, tendo em vista o reconhecimento da natureza contratual da permissão. Assim o artigo 40 da Lei nº 8.987/95 reiterou, ainda que em redação confusa, o reconhecimento contratual dado pela Constituição Federal à permissão. Sendo que o caráter de precariedade não se coaduna com a natureza contratual da permissão, sendo esta extinta.

Nas palavras de Irene Patrícia Nohara: Antes se dizia que enquanto a concessão tinha natureza jurídica contratual, a permissão era ato unilateral e precário. Também se costumava reservar a concessão para contratos em que houvesse investimentos mais expressivos, sendo a permissão utilizada com maior frequência para negócios menos dispendiosos.19

A mencionada doutrinadora destaca ainda que a

revogabilidade unilateral do contrato na modalidade de permissão é algo que já ocorreu na concessão, mudando-se apenas a denominação de revogação para encampação, não devendo ser tratada como diferenciação dos institutos.

E que nem mesmo o fato do contrato de permissão ser da modalidade de adesão diferencia-o do contrato de concessão, pois ambos são contratos cujas cláusulas já vêm preestabelecidas, seja nas disposições regulamentares ou na minuta do contrato previsto no edital da licitação, sem a possibilidade de o particular vencedor do certame inferir em sua composição.

18 Idem. 19 NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:

Atlas, 2012. p. 468.

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Parcerias público-privadas... 109

Neste sentido, na ADI nº 1.491-DF o STF decidiu que o artigo 175, parágrafo único, da Constituição Federal, “afastou qualquer distinção conceitual entre permissão e concessão, ao conferir àquela o caráter contratual próprio desta”.20

Restando assim, na concepção de Irene Patrícia Nohara, apenas duas características contrastantes entre concessão e permissão, sendo estas:

1. concessão é feita à pessoa jurídica ou consorcio de empresas (art. 2º, II da lei); enquanto a permissão é feita à pessoa física ou jurídica (art. 2º, IV, da lei) – assim, não há concessão para pessoa física, nem permissão para consórcio de empresas; e 2. enquanto a concessão é feita na modalidade de licitação concorrência, a permissão admite outras modalidades de licitação.21

Consequentemente, nota-se que não há traços

relevantes para diferenciar a concessão da permissão de serviço público, o que na prática ocasiona confusão na utilização dos institutos. Neste sentido Celso Antônio Bandeira de Mello, reconhece que o uso da permissão vem sendo desvirtuado, destacando o fato de a Administração estar conferindo, a título de permissão, serviços públicos que demandariam permanência, estabilidade e garantias razoáveis em prol de seu prestador. 22

A respeito da Lei nº. 9.648, de 27 de maio de 1998, essa altera dispositivos das Leis nº. 8.666, 8.987 e 9.074; Maria Sylvia Zanella Di Pietro leciona que por tratarem-se de leis que dispõem sobre contratos administrativos e licitações, aplicam-se aos Estados, Distrito Federal e Municípios apenas as normas gerais nelas contidas.23

20 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo STF nº 117, jul. 1998. Relator: Ministro Carlos Velloso. 1º de julho de 1998. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo117.htm. Acessado em: 08 de out. de 2014. 21 NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:

Atlas, 2012. p. 469. 22 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 703. 23 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São

Paulo: Atlas, 2011. p. 264.

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110 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Quanto a Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004,

esta institui normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública. Para Juarez Freitas a criação desta lei deu-se como “[...] tentativas adicionais de enfrentar, sem recorrer à privatização pura e simples, [...] as graves deficiências na prestação dos serviços públicos”.24

A justificativa para criação desta lei ampara-se no sucesso alcançado em diversos países que adotaram este sistema, tais como Inglaterra, Irlanda, Portugal, Espanha e África do Sul, e também na possibilidade de crescimento da econômica nacional, tendo em vista que o ente privado supriria a carência do ente público. Aduz Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

As justificativas constam na mensagem que acompanhou o projeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional [...] depois de assinalar que o procedimento das parcerias “alcançou grande sucesso em diversos países, como a Inglaterra, Irlanda, Portugal, Espanha e África do Sul, como sistema de contratação pelo Poder Público ante a falta de disponibilidade de recursos financeiros e aproveitamento da eficiência de gestão do setor privado”, acrescenta-se que "no caso do Brasil, representa uma alternativa indispensável para o crescimento econômico, em face das enormes carências sociais e econômicas do país, a serem supridas mediante a colaboração positiva do setor privado”.25

Por fim, percebe-se que as influências inglesa e

francesa foram indispensáveis para a evolução do ordenamento administrativo brasileiro, tendo em vista que na primeira surgiu o sistema de PPP propriamente dito e na segunda deu-se a criação da teoria do contrato administrativo. Nota-se ainda que todas as leis foram criadas com o intuito de reestruturar a infraestrutura básica, suprindo a carência do ente público e promovendo o bem estar social, visando a garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

24 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 318. 25 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 145.

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Parcerias público-privadas... 111 4.3 PECULIARIDADES DO CONTRATO DE PPP NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

4.3.1 Características dos contratos de PPP

A Lei nº 11.079/04 institui normas gerais para licitação e

contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública brasileira. De acordo com essa legislação, a contratação das PPPs poderá ser realizada por toda a administração pública, no âmbito dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A partir da leitura do artigo 2º, da lei já mencionada, é possível conceituar a PPP como um contrato administrativo de concessão de serviço público, na modalidade patrocinada ou administrativa; devendo o valor do contrato ser superior a R$20.000.000,00 (vinte milhões de reais); com prazo de vigência não inferior a cinco, nem superior a trinta e cinco anos; não podendo ter como objeto unicamente o fornecimento de mão-de-obra, o fornecimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública;

Vale ressaltar que antes da celebração do contrato, deve ser constituída sociedade de propósito específico, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria, e ainda, que a contratação de parceria público-privada será precedida de licitação na modalidade de concorrência, conforme prevê os artigos 9º e 10 da Lei de PPP.

Nas palavras do doutrinador Alexandre Mazza: [...] podemos conceituar parceria público-privadas como contratos administrativos de concessão, nas modalidades administrativa ou patrocinada, com duração entre cinco e

trinta e cinco anos, mediante previa concorrência, com valor do objeto superior a R$20.000.000,00 (vinte milhões de reais), caracterizados por um compartilhamento de riscos entre

Estado (parceiro público) e pessoa jurídica privada (parceiro privado), sendo pactuada a criação de uma sociedade de propósito específico para administrar a parceria.26

26 MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 3. ed. São

Paulo: Saraiva, 2013. p. 448.

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112 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Nos termos do artigo 2º, parágrafo 1º da Lei nº

11.079/04, entende-se por concessão patrocinada “a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº 8.987/95, de 13-2-1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado”.27

Já a concessão administrativa, segundo o parágrafo 2º do artigo anteriormente citado, “é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens”.28

Do artigo 2º e seus parágrafos, resulta que a parceria público-privada pode ter por objeto a prestação de serviços público ou de obras públicas, ou ainda, a prestação de serviços de que a Administração seja a usuária direta ou indireta, envolvendo ou não, no segundo caso, a execução de obra e o fornecimento e instalação de bens.

Na primeira modalidade, tem-se a concessão patrocinada, em que a remuneração compreende tarifa do usuário e contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado; na segunda modalidade, tem-se a concessão administrativa, em que a remuneração é feita exclusivamente por contraprestação do parceiro público ao parceiro privado.

Neste sentido Fernando Vernalha Guimarães faz a seguinte distinção:

A concessão patrocinada é um contrato administrativo de concessão que pressupõe necessariamente o sistema tarifário integrado por contraprestações pecuniárias da Administração Pública.29 Na concessão administrativa não haverá tarifação como via de ressarcimento do concessionário. O pagamento do contrato será provido exclusivamente pela Administração.30

Para diferenciar a parceria público-privada da

concessão prevista na Lei nº 8.987/95, a Lei de PPP denominou

27 BRASIL, Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004. 28 Idem. 29 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: parceria público-privada. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 90. 30 Ibidem, p. 168.

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Parcerias público-privadas... 113 a concessão de serviço público genérica de concessão comum, deste modo José dos Santos Carvalho Filho chama a PPP de contrato de concessão especial de serviços públicos.31

A Lei de Parceria Público-Privada define ainda, em seu artigo 4º, sete diretrizes de observância obrigatória na celebração de parcerias público-privadas, sendo estas: a) eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade; b) respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução; c) indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; d) responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias; e) transparência dos procedimentos e das decisões; f) repartição objetiva de riscos entre as partes; g) sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria.

Quanto às garantias, o artigo 8º da Lei de PPP prevê que as obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública em contrato de parceria público-privada poderão ser garantidas mediante: a) vinculação de receitas; b) instituição ou utilização de fundos especiais previstos em lei; c) contratação de seguro-garantia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder Público; d) garantia prestada por organismos internacionais ou instituições financeiras que não sejam controladas pelo Poder Público; e) garantias prestadas por fundo garantidor ou empresa estatal criada para essa finalidade; f) outros mecanismos admitidos em lei.

Ainda acerca do artigo 8º, Alexandre Mazza destaca a inconstitucionalidade do inciso I deste, através das seguintes palavras:

A previsão de vinculação de receitas de impostos (art. 8º, I, da Lei n. 11.079/2204) como forma de garantia das obrigações assumidas pela Administração Pública é inconstitucional por violar a norma do art. 167, IV, da Constituição Federal [...]32

31 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 415. 32 MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 3. ed. São

Paulo: Saraiva, 2013. p. 451.

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114 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Por fim, conclui-se que a parceria público-privada, tanto

na modalidade administrativa, quanto na patrocinada, é realizada após a análise da conveniência e da oportunidade do emprego de PPP ao serviço que se pretende implementar, e ainda, a avaliação de sua viabilidade econômico-financeira, sendo esta a responsável pela definição do modelo de parceria.

4.3.2 Atividades de interesse público que podem ser abrangidas pela PPP

Para entrar no mérito das atividades de interesse

público, inicialmente, é necessário definir seu significado, sendo este a reunião de interesses individuais que se torna o interesse de todos, interesse comum a cada um dos membros da sociedade. Podendo o interesse público confrontar um direito individual de um cidadão específico, mas nunca contrapor-se ao conjunto de interesses individuais.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello: [...] o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade e pelos simples fato de o serem.33

Neste sentido, destaca-se a divisão criada por Renato

Alessi entre: interesse público primário e interesse público secundário.34 Segundo expõe Marçal Justem Filho na primeira espécie enquadram-se aqueles interesses que a Administração deve perseguir no desempenho genuíno da função administrativa, uma vez que abarcam os interesses da coletividade como um todo; já a segunda diz respeito aos

33 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo.

22. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 58. 34 ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano. Milano: Giuffrè, 1953, apud BAPTISTA, Isabelle de. O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado: uma análise à luz dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito. Revista TCEMG. Belo Horizonte. n. 1, jan. fev. mar. de 2013. Disponível em: http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1768.pdf. Data de acesso: 27 de jul. de 2014.

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Parcerias público-privadas... 115 interesses imediatos do aparato administrativo, independente dos interesses coletivos.35

Vale ressaltar ainda, que o ideal é que os interesses primário e secundário coincidam, mas havendo conflito entre eles, sempre prevalecerá o interesse público primário.

Faz-se necessário também a definição de serviços públicos, sendo estes todas as atividades administrativas executas pelo poder público de forma direta ou indireta, ou ainda, por colaboração dos particulares, sob regime de direito público, para que desta forma sejam atingidas as finalidades essenciais do Estado. Neste sentido aduz Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Toda atividade material que a lei atribui ao estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.36

O serviço público é sempre incumbência do Estado,

conforme previsto no artigo 175 da Constituição Federal. No entanto não só o poder público realiza a prestação de serviços públicos, o que faz por meio dos entes da administração pública direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e indireta (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista); mas também ocorrem as parcerias firmadas entre a administração e os particulares, como no caso das concessionárias e permissionárias de serviços públicos.

Nos termos do artigo 175 da Constituição Federal “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.37

Neste contexto, é valido destacar que a transferência do serviço público de titularidade do Estado pode dar-se através da outorga ou pela delegação. Sendo a outorga a transferência da

35 JUSTEM FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo:

Saraiva, 2005. p 38-39. 36 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 103. 37 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de

outubro de 1988.

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116 Temas jurídicos atuais: Volume VI

própria titularidade do serviço da pessoa política (Estado) para a pessoa administrativa (entidade criada pelo Estado), que o desenvolve em seu próprio nome e não no de quem transferiu, é sempre feita por lei e somente por outra lei pode ser mudada ou retirada.

Já na delegação, o Estado transfere unicamente a execução do serviço, sem transferir a titularidade, para que o ente delegado o preste ao público em nome do Estado, mas por sua conta e risco; assim ocorre com a concessão, permissão e autorização, como modalidades de delegação de serviços.

A esse respeito declina Irene Patrícia Nohara: Diz-se que o Estado tanto pode praticar descentralização por serviços ou por colaboração. Na descentralização por serviços, há o fenômeno da outorga, ou seja, o Estado cria ou autoriza a criação de uma pessoa jurídica à qual se transfere por lei a titularidade do serviço público. [...] Já a descentralização por colaboração designa a

transferência da execução de determinado serviço por meio de contrato ou por ato unilateral, à pessoa privada previamente existente e que vença a licitação, caso em que o Estado conserva a titularidade do serviço. Delegação a particulares é a transferência pela via contratual de serviços públicos.38

Evidencia-se que para a atividade de interesse público

ser abrangida pela PPP depende da delegação desta por parte do Estado, como exemplo tem-se o ato do Comitê Gestor de Parceria Público-Privada Federal - CGP, por intermédio da Resolução nº 3, de 14 de dezembro de 2011, que definiu os projetos prioritários para execução no regime de parceria público-privada, abaixo relacionados:

I - modernização da infraestrutura e operação dos órgãos destinados ao reparo e à manutenção dos meios navais (Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro); II - implantação de infraestrutura, operação e manutenção do complexo esportivo do Centro de Educação Física Almirante Adalberto Nunes (CEFAN); III - construção e manutenção de empreendimento residencial a ser empregado como Próprio Nacional Residencial (PNR), a

38 NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo:

Atlas, 2012. p. 467.

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fim de atender o pessoal que comporá as instalações das Organizações Militares do Complexo Naval em Itaguaí; IV - construção e manutenção de novo Colégio Militar em Manaus - AM; V - modernização da infraestrutura de abastecimento de veículos militares e seus serviços correspondentes (Abastecimento e Gerenciamento de Frota); VI - fabricação e manutenção de novo fuzil desenvolvido pela Indústria de Material Bélico do Brasil (Fuzil-Imbel); VII - concessão dos Parques Nacionais de Jericoacara, Serra das Confusões, Sete Cidades e Ubajara; e VIII - concessão dos Parques Nacionais de Brasília, da Chapada dos Veadeiros e das Emas.39

Serve também como exemplo o projeto aprovado pela

Câmara Municipal de Maringá, na data de 06 de agosto de 2014, que autoriza a Prefeitura de Maringá a abrir licitação para conceder os serviços de coleta, tratamento e destinação final dos resíduos sólidos por meio de parceria público-privada (PPP).40

Tem-se ainda, a PPP Prisional de Ribeirão das Neves/BH, onde no ano de 2009 o Governo de Minas assinou com o consórcio nacional Gestores Prisionais Associados (GPA), o contrato de Parceria Público-Privada (PPP) para construção e gestão de um complexo penitenciário, visando através da modernização da gestão pública atingir uma política de segurança ligada aos direitos humanos, prezando pela reintegração do preso e o bem-estar da sociedade.

Frequentemente a PPP também é utilizada em setores como rodovias, ferrovias, aeroportos, portos, transporte urbano,

39 COMITÊ GESTOR DE PARCERIA PÚBLICO-PRIVADA FEDERAL - CGP. Com base no disposto pelo art. 14, I, e pelo art. 2º, § 3º, do Decreto nº 5.977, de 1º de dezembro de 2006, por unanimidade, resolve. Resolução nº 3, de 14 de dezembro de 2011, publicada no Diário Oficial de 27 de agosto de 2012. Disponível em: http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/ppp/legislacao/federal/resolucoes_2e3_2011.pdf. Acesso em: 26 de jul. 2014. 40 GATTI, Murilo. Câmara aprova PPP para a coleta de lixo. odiario.com, Maringá, 06 de ago. de 2014. Disponível em: http://digital.odiario.com/cidades/noticia/854896/camara-autoriza-prefeitura-terceirizar-a-coleta-de-lixo/. Acessado em: 07 de ago. de 2014.

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saneamento e tratamento de esgotos, geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, petróleo e gás, construção de prédios públicos, unidades prisionais, habitação, escolas, hospitais, centros de convenção, entre outros.

Assim sendo, os projetos de PPP abrangem diversos setores de infraestrutura, bastando para tanto haver a carência da atividade e a possibilidade de delegação por parte do Estado.

4.2.3 Vantagens e desvantagens dos projetos de PPP

Todo e qualquer empreendimento é passível de

vantagens e desvantagens, o objetivo do tema ora abordado é enumerar os benefícios e os riscos que advém das PPPs.

A doutrina acusa vantagens relevantes para a Parceria Público-Privada no que tange aos riscos da atividade e aos fatores econômicos do empreendimento:

Compartilhamento de riscos entre a Administração Pública e o setor privado no contrato de PPP; eficiência, aperfeiçoamento e qualidade na prestação do serviço público, tendo em vista o emprego das competências do setor privado e a vinculação da sua remuneração ao seu respectivo desempenho; otimização da construção em termos de prazo e custo devido à ausência de descontinuidades;41

Também aponta como positivas a “integração do

projeto, da construção e da operação permite ponderações (trade-offs) entre investimentos e custos de manutenção, operação e modernização e atualização das facilidades”; igualmente, a “garantia na prestação do serviço, pois a remuneração está vinculada à disponibilidade de uma utilidade ou à prestação de um serviço, não a uma atividade isolada (projeto, execução, manutenção, etc.)”.42

41 FIOCCA, D. e OLIVEIRA, G., apud GRILO, Leonardo, et al. A implementação de Parcerias Público-Privadas como alternativa para a provisão de infra-estrutura e serviços públicos no brasil: visão geral. Secretaria de Estado de Economia e Planejamento: Programa de Parcerias Público-Privadas do Estado do Espírito Santo. . Vitória. Disponível em: http://www.ppp.es.gov.br/_midias/pdf/91-4b4477c456a43.pdf. Data de acesso: 27 de jul. de 2014. 42 Idem.

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Da mesma forma tem-se a possibilidade de antecipar investimentos, que pode ser quitado ao decorrer do tempo, através de recursos advindos da exploração econômica do serviço ou pela remuneração paga pela administração.43

Além desses aspectos, a doutrina ainda destaca como vantajosos:

Aumento da carteira de projetos economicamente viáveis, tendo em vista a possibilidade de execução de projetos sem auto-sustentação financeira com contraprestação do Estado; confiabilidade para o setor privado, em virtude da estabilidade e das garantias no contrato; flexibilidade do contrato, uma vez que o contratado assume não somente obrigações de meio como também de resultado e dispõe de certa liberdade para a execução do serviço;44

Outrossim ressalva-se a “possibilidade de um

investimento contínuo do ente privado durante todo o contrato”; e também o “prazo limite de execução (35 anos) superior ao fixado na legislação atual (05 anos), possibilitando o desenvolvimento de projetos de infra-estrutura (sic) de grande porte”;45

Por fim, pode-se apresentar a possibilidade da partilha entre setor público e privado de ganhos como vantajosa, e ainda, o aumento da eficiência no desempenho do serviço visando o bem comum.46

Embora possuam inúmeras vantagens, as PPPs podem oferecer sérios riscos, caso sua adoção seja feita sem um bom planejamento e sem mecanismos de controle, afetando a eficiência na realização da obra. Assim, Valter Moura do Carmo e Thalita Carneiro Ary pontuam como desvantagens das PPPs o choque de interesses entre o setor privado envolvidos nas PPP

43 FIOCCA, D. e OLIVEIRA, G., apud GRILO, Leonardo, et al. A implementação de Parcerias Público-Privadas como alternativa para a provisão de infra-estrutura e serviços públicos no brasil: visão geral. Secretaria de Estado de Economia e Planejamento: Programa de Parcerias Público-Privadas do Estado do Espírito Santo. . Vitória.

Disponível em: http://www.ppp.es.gov.br/_midias/pdf/91-4b4477c456a43.pdf. Data de acesso: 27 de jul. de 2014. 44 Idem. 45 Idem. 46 Idem.

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e a sociedade destinatária dos serviços e atividades; o planejamento inadequado dos arranjos; o risco acentuado de aumento do endividamento público; o excesso de projetos; a gestão de projetos ineficientes; os atrasos e aumentos de custos; a degradação prematura dos ativos; e por fim os custos elevados de operação e manutenção.47

Pode-se destacar ainda como desvantagem específica da PPP no âmbito penitenciário, a colisão entre a indelegabilidade do poder de polícia, prevista na Lei 11.079/2004, com os direitos fundamentais inerentes a cada ser humano, previstos na Constituição Federal. Onde de um lado têm-se os defensores da impossibilidade da delegação de determinadas funções ao ente privado para a manutenção do poder administrativo nas mãos do Estado, e de outro os que colocam acima de qualquer outra norma a garantia de preceitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, saúde, trabalho, entre outros.

Por fim, nota-se que o número de desvantagens se faz menor do que o número de vantagens proporcionadas pelas PPPs, o que torna esta espécie de parceria eficiente e vantajosa para o Estado, ainda que possua alguns riscos, tendo em vista que trata-se de um mecanismo que visa suprir a carência do ente público e promover a garantia do bem estar social através da preservação dos direitos fundamentais.

4.3.4 Necessidade de um regulamento adequando o contrato de PPP

A Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, instituiu

normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da Administração Pública, no entanto a partir de uma análise minuciosa desta lei é possível notar a necessidades de ajustes normativos e uma sistemática redefinição da ambiência regulatória. Nas palavras de Juarez Freitas:

47 CARMO, Valter Moura do. ARY, Thalita Carneiro. A parceria público-privada como forma de viabilizar os investimentos em infra-estrutura no país. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Florianópolis, 2006. Disponível em: http://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra/SENIOR/RESUMOS/resumo_1123.html. Data de acesso em: 27 de jul. de 2014.

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As parcerias público-privadas/PPPs, previstas na Lei 11.079/2004, embora imprescindíveis ajustes normativos e aconselhável uma sistemática redefinição da ambiência regulatória, são tentativas adicionais de enfrentar, sem recorrer à privatização pura e simples, os sérios “gargalos” da congestionada infra-estrutura (sic) e as graves deficiências na prestação dos serviços públicos.48

Neste sentido, nota-se que o doutrinador Juarez Freitas

é um dos pioneiros na discussão acerca da inicial desnecessidade da criação do modelo de contrato de PPPs, e posteriormente a criação da Lei nº 11.079 de 2004, destaca a necessidade de um regulamento adequando o contrato de PPP.

Primeiramente Juarez Freitas destaca que o contrato de PPPs é um modelo de “concessão” do Poder Público diferenciado das “concessões comuns” previstas na Lei nº 8.987 de 1995, distinguindo-se no que diz respeito à contraprestação pecuniária. Sendo que esta prestação poderia ocorrer através da admissão do adicional da tarifa pelo Poder Público no contrato de “concessão comum” por meio da complementação da Lei nº 8.987. Assim o meio juridicamente mais viável teria sido inserir aperfeiçoamentos às Leis de Concessões e de Licitações, com muito maior sistematicidade e proveito prático, ocasião em que seria dispensável a criação do modelo de PPP.

Em seguida o doutrinador afirma que, a criação da lei de PPPs foi mais impactante na esfera do marketing político do que seria a simples alteração das Leis de Concessões e de Licitações, e tendo em vista que já há a previsão do contrato de PPP em uma lei específica, a solução atual é a alteração e melhoria da lei existente.

As PPPs, no demasiado estrito modelo brasileiro, são “concessões” do Poder Público (ao lado das examinadas “concessões comuns”) que assumiram versão limitada no cotejo com a experiência internacional. Isso porque quiseram ser versões “blindadas” de contratos administrativos, com profusão de garantias apenas de pergaminho. Teria sido juridicamente viável – ainda que menos impactante na esfera

48 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 318.

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do marketing político – inserir aperfeiçoamentos às Leis de Concessões e de Licitações, com muito maior sistematicidade e proveito prático.49

Nota-se que regulação pública das PPPs e também das

concessões “comuns” deve fazer parte do rol das mudanças institucionais urgentes, com incorporação do que há de melhor nas tendentes mudanças de paradigma do Direito Administrativo.

Dentre as reconfigurações necessárias Juarez Freitas destaca que:

Deve haver uma mudança de estilo da regulamentação estatal, abandonando as práticas de imposição unilateral e autoritária, reconhecendo a primazia vocacional da conciliação, da arbitragem e da mediação, sem abdicar, quando impositivo, de seu poder-dever de punir; o desenvolvimento de competência técnica compatível com o primado da persuasão e da negociação, ou seja, investir na qualificação específica dos agentes reguladores.50

Aponta ainda a necessidade de alcançar o equilíbrio

entre retornos econômicos e sociais, respeitando a intangibilidade da equação econômico-financeira, e também a divisão de ganhos e benefícios entre o parceiro público com o usuário.51

A doutrina destaca ainda como indispensável: a regulação de PPPs e das concessões “comuns” deve ser socialmente controlada, assim como a atuação do Órgão Gestor, para evitar excesso intrusivo do Executivo; profunda e democrática reforma institucional que consagre as Agências e as demais autarquias reguladoras (tais como o CADE e a CVM) como órgãos de Estado, mais que de governo, apesar de integrarem a Administração indireta; evitar o equívoco assaz comum de facciosismo ou de unilateralismo: seu objetivo é o de tutelar a pluridimensionalidade da delegação

49 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 319. 50 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 350. 51 Ibidem, p. 351.

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contratual, não hesitando em adotar medidas sancionatórias até em ralação às pessoas jurídicas de direito público;52

E ainda, salienta que “o Estado Regulador tem o dever

de observância da rede de direitos fundamentais, mais que das regras, não podendo praticar o não direito”; e acrescenta “a regulação estatal precisa operar como redutora consistente dos custos de transação”.53

Por fim traz o fato de que deve haver a promoção do desenvolvimento, em todos os âmbitos, destacando-se o desenvolvimento humano, e ainda, tendo em vista função social da PPP, deve haver também a transparência no âmbito do setor regulado e no exercício da sua própria missão.54

Em resumo são estas as propostas, apresentadas por Juarez Freitas, voltadas a renovar a regulação brasileira, visando aperfeiçoamento do Direito Administrativo, ante as necessidades do Século XXI e sua crise regulatória mundial.

4.4 PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPs) NO ÂMBITO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO 4.4.1 Implantação de projetos de PPP no âmbito do sistema penitenciário

Um dos grandes problemas enfrentados pela

administração pública é a precariedade e ineficiência do sistema prisional brasileiro, onde os locais que em tese serviriam para reabilitação e ressocialização dos condenados, na prática são caracterizados pela superlotação carcerária. Assim a estrutura física dos estabelecimentos penais tornam-se insuficientes para a demanda, submetendo os presos a um ambiente insalubre, de condições precárias de alimentação, vestuário e higiene.

A ex-detenta, Rosiane Cristina R. Costa, consegue retratar em seu artigo, Memória do Cárcere, de uma forma clara, profunda e chocante, a falência do sistema prisional e a violação dos direitos humanos, regra dentro do cárcere:

52 Ibidem, p. 352. 53 Ibidem, p 353. 54 Ibidem, p 354.

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Ninguém ali dentro está comprometido com a ressocialização, nos dizem o tempo todo que somos culpadas, vagabundas, burras, inúteis... Fazem com que a gente se sinta como vermes perto delas, passam para gente que elas são certas porque estão cumprindo com o dever social (trabalhar por um mísero salário até a morte), e nós não, somos seres anormais, aberrações e muito mais... O Estado finge que está tudo bem e para a sociedade fica a impressão de que uma pessoa que é presa não muda porque não presta. Mas não é essa a realidade. O Estado não oferece as mínimas condições para que um criminoso seja reintegrado na sociedade. Não há saúde no sistema prisional em nenhum sentido, não há saúde física e muito menos psicológica. Para quem não tem visita não há o que comer, não há remédios e o pior: essas pessoas são as mais castigadas porque eles sabem que não vai haver ninguém para denunciar.55

Tendo em vista que o Estado encontra dificuldades em

administrar o sistema prisional e garantir os direitos humanos mais elementares, a proposta de constituir Parcerias Público-Privadas aparece como uma das soluções viáveis para a crise atual.

O Estado de Minas Gerais, objetivando atrair empresas privadas para construir e gerenciar os presídios, no dia 17 de janeiro de 2008, lançou o modelo de PPP, na modalidade de concessão administrativa, aplicado no sistema penitenciário pela primeira vez no Brasil. Envolvendo a construção de cinco unidades prisionais que abrigarão sentenciados do sexo masculino e uma central de serviços em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte, numa área cedida pela CODEMIG (Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais), conforme disposto no edital de concorrência n.º 01/2008 do Estado de Minas Gerais:

O ESTADO DE MINAS GERAIS, por meio da SECRETARIA DE ESTADO DE DEFESA SOCIAL – SEDS –, torna público

55 COSTA, Roseane Cristina R. Memórias do Cárcere. In: MATTOS, Virgílio de (Org.). Desconstrução das Práticas Punitivas, apud

GUEDES, Cristiane Achilles. A Parceria Público-Privada no sistema prisional. Revista do CAAP. Belo Horizonte. v. 31, n. 1, jan.-jun. de 2010. Disponível em: http://www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista/article/viewFile/267/265. Data de acesso: 27 de jul. de 2014.

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Parcerias público-privadas... 125

que fará realizar a LICITAÇÃO acima identificada, sob a modalidade de concorrência internacional, para a seleção de proposta mais vantajosa e contratação de CONCESSÃO ADMINISTRATIVA para a construção e gestão de complexo penal no Estado de Minas Gerais, em conformidade com a Lei Federal nº 11.079/04, a Lei Estadual nº 14.868/03 e, subsidiariamente, com a Lei Federal nº 8.666/93 e suas alterações, Lei Federal nº 8.987/95, Lei Federal nº 9.074/95, e demais normas que regem a matéria, regulando-se pelo disposto no presente EDITAL.56

O Complexo Penal será composto das seguintes

Unidades Penais: 3 unidades - Regime Fechado com 608 vagas cada uma; 2 unidades – Regime Semiaberto com 608 vagas cada uma; 1 unidade Central de Serviços denominada Célula–mãe; Portanto a capacidade total do Complexo Penal será de 3.040 vagas, assim distribuídas: 1.824 vagas em Regime Fechado e 1.216 vagas em Regime Semiaberto.

A assinatura do contrato para início da construção do complexo penitenciário deu-se em 16 de junho de 2009, pelo então governador Aécio Neves e pelo ex-secretário de Estado de Defesa Social, Maurício Campos Júnior, com o consórcio Gestores Prisionais Associados (GPA), vencedor da licitação. Ao assinar o contrato para a construção do complexo

penitenciário de Ribeirão das Neves, o ex‐governador enfatizou: Estamos fazendo mais uma vez história em Minas. O que estamos contratando não são apenas vagas no sistema prisional que, eventualmente, poderia levar à impressão de que haveria privatização do setor, estamos contratando resultados. Foram estabelecidos parâmetros muito objetivos que a empresa terá que cumprir, do ponto de vista da garantia da segurança, por exemplo, como inibição de fugas, seja o caminho da ressocialização dos presos, e oportunidade de trabalho e de educação.57

56 ESTADO DE MINAS GERAIS, Edital de Licitação: Concorrência nº 01/2008 – SEDS/MG, de 17 de janeiro de 2008. Disponível em: http://www.ppp.mg.gov.br/images/documentos/Projetos/concluidos/Complexo_Penal/edital_e_anexos/Corpo%20do%20Edital%2001.2008.pdf. Acessado em: 08 de out. de 2014. 57 Aécio Neves assina contrato para da construção da primeira penitenciária do país por meio de PPP. SEDS, Belo Horizonte.

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No contrato de PPP prisional foram firmados os deveres

de cada um dos parceiros, onde o ente privado é responsável pela execução de projetos de educação de qualidade, frequência de presos trabalhando e estudando, atendimento psicológico e jurídico, sistema de contenção de presos, infraestrutura da cela e do presídio, alimentação, rouparia, higiene, cuidados com a saúde, entre outros.

Já o Estado, por sua vez, é responsável pela custódia, tutela, encaminhamento e execução da pena dos condenados. Neste sentido explica o coordenador da unidade setorial de PPP da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), Marcelo Costa:

Em cada unidade há um gerente de operações do parceiro privado e um diretor público de segurança, responsável pelas questões disciplinares, o que é uma função indelegável.58

A transferência de presos começou no dia 18 de janeiro

de 2013, sendo que no dia 28 do mesmo mês, o governador Antonio Anastasia inaugurou a Unidade I do Complexo Prisional Público-Privado, ocasião em que afirmou:

Essa inovação das PPPs é fundamental, porque conseguimos conciliar as questões formais, próprias do processo de execução penal, com aquilo que há de mais moderno em gestão privada, especialmente nas questões relativas àquilo que é o cerne dessa PPP, que é a reinserção da pessoa na sociedade, dando a ela trabalho e educação.59

Disponível em: https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=673&Itemid=71. Acessado em: 21 de ago. de 2014. 58 Tecnologia e humanização são destaques na PPP Penitenciária. SEDS, Belo Horizonte. Disponível em: https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1651&Itemid=71. Acessado em: 21 de ago. de 2014. 59 Governo de Minas inaugura primeira penitenciária do Brasil feita em parceria público-privada. SEDS, Belo Horizonte. Disponível em: https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=2102&Itemid=71. Acessado em: 21 de ago. de 2014.

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Parcerias público-privadas... 127

Deste modo, nota-se que o objetivo central da PPP prisional é garantista, cumprindo o ideal constitucional da pena privativa de liberdade que é a reinserção do sentenciado à sociedade, preservando todos os seus direitos e garantias previstos na Lei Maior; gerando um grande benefício não só para o egresso, mas também e principalmente para toda a sociedade, que se beneficia com maior chance de reabilitação do outrora delinquente, diminuindo as chances desse individuo incorrer em um novo desvio de conduta.

As Unidades II e III foram inauguradas em setembro de 2013 e junho de 2014, respectivamente. Cada um dos presos do CPPP custa atualmente ao Estado cerca de R$ 2.700 por mês, incluindo os custos da construção dos pavilhões, em contrapartida no sistema presidiário de Minas Gerais, o custo mensal de cada preso é de R$ 2.800. 60

De acordo com o Ministério da Justiça, o custo per capita mensal, nas 1.420 penitenciárias estaduais do país, é em média de R$ 1.800. Já nos quatro presídios federais de segurança máxima (Campo Grande, Catanduvas, Porto Velho e Mossoró), que abrigam os criminosos mais perigosos do país e chefes de quadrilhas organizadas, o custo por mês de cada preso é de R$ 3.312, também em média. 61

O custo mensal por preso vem previsto na Cláusula 12 do contrato de PPP prisional:

CAPÍTULO V – DO VALOR ESTIMADO DO CONTRATO E DA REMUNERACAO DA CONCESSIONÁRIA CLÁUSULA 12 – DO VALOR ESTIMADO DO CONTRATO

12.1. O VALOR ESTIMADO DO CONTRATO é de R$ 2.111.476.080 (dois bilhões e cento e onze milhões e quatrocentos e setenta e seis mil, setecentos e oitenta reais), calculado com base na soma dos valores nominais, constantes em valores de 2008, da CONTRAPRESTAÇÃO PECUNIÁRIA MENSAL e da PARCELA ANUAL DE DESEMPENHO,

60 Com custo mensal de R$ 2.700 por detento, primeiro presídio privado do país é inaugurado em Minas Gerais. SEDS, Belo Horizonte.

Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/01/17/com-custo-mensal-de-r-2700-por-detento-primeiro-presidio-privado-do-pais-e-inaugurado-em-minas-gerais.htm. Acessado em: 08 de out. de 2014. 61 Idem.

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128 Temas jurídicos atuais: Volume VI

calculadas com base no teto do VALOR DA VAGA DIA DISPONIBILIZADA E OCUPADA EM UNIDADE DE REGIME FECHADO, ao longo do período de CONCESSÃO ADMINISTRATIVA. 12.2. O teto do VALOR DA VAGA DIA DISPONIBILIZADA E OCUPADA EM UNIDADE DE REGIME FECHADO previsto no item 10.12 e do EDITAL DE CONCORRÊNCIA Nº 01/2008 - SEDS é de R$ 75,00 (setenta e cinco reais), sendo que o VALOR DA VAGA DIA DISPONIBILIZADA E OCUPADA EM UNIDADE DE REGIME FECHADO proposto pela CONCESSIONÁRIA e adjudicado na LICITAÇÃO é de R$ 74,63 (setenta e quatro reais e sessenta e três centavos), na base da PROPOSTA ECONÔMICA.62

Neste sentido, nota-se que a implantação do CPPP torna-se vantajosa também aos cofres públicos, pois o valor de R$ 2.700 pagos por mês por cada preso da CPPP inclui os custos da construção dos pavilhões, já o custo de R$2.800 ao mês de cada preso no sistema presidiário de Minas Gerais não inclui tais valores, assim o sistema de PPP prisional gera uma economia nos custos que o Estado teria na construção de uma unidade prisional do mesmo porte.

Na data de 27 de novembro de 2013 surge a primeira falha do Complexo Prisional, a fuga de um detento da Unidade I, apesar de ser considerada uma prisão moderna e de extrema segurança, a penitenciária começa a apresentar problemas internos comuns às prisões existentes em todo o país. Pela gravação do sistema de vigilância do CPPP conclui-se que a fuga ocorreu em razão de falha na segurança, haja vista que nenhum funcionário vigiava a unidade onde são fabricados macacões, lá estavam somente o fugitivo e outros dois detentos que colaboraram com a fuga.

Conforme previsto no contrato, o não cumprimento das condições estabelecidas, como por exemplo, a ocorrência de fugas e rebeliões, implicará em desconto automático no valor a ser pago pelo Estado. Portanto devido ao ocorrido, a Empresa GPA, parceira privada na administração do CPPP, pode ser multada em R$ 900 mil pelo Estado, além disso, foi realizado um

62 Contrato de Concessão Administrativa Nº 336039.54.1338.09. SEDS, Belo Horizonte. Disponível em: https://www.seds.mg.gov.br/images/seds_docs/editalpppnovo/anexo%206%20-%20contrato%20concess%E3o%20adm%20ppp.pdf. Acessado em: 21 de ago. de 2014.

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Parcerias público-privadas... 129 corte nos repasses do governo ao parceiro privado no valor de R$ 10.108,31. Nos termos do contrato:

CAPÍTULO XIII – DAS SANÇÕES E PENALIDADES APLICÁVEIS ÀS PARTES CLÁUSULA 33 – DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS

33.1. No caso de inadimplemento total ou parcial das obrigações deste CONTRATO pela CONCESSIONÁRIA, a CONCESSIONÁRIA estará sujeita, sem prejuízo das sanções de natureza civil e penal, às penalidades aplicáveis pelo PODER CONCEDENTE, nos termos deste CONTRATO: 33.1.1. Advertência forma, a versar sobre o descumprimento das obrigações assumidas e a determinação da adoção das necessárias medidas de correção; 33.1.2. Multa; 33.1.3. Caducidade da CONCESSÃO ADMINISTRATIVA; 33.1.4. Suspensão temporária do direito de participação em licitações e impedimento de contratar com a Administração Pública, por prazo definido no art. 6º, da Lei Estadual nº 13.994, de 18.09.01, e no art. 24, do Decreto Estadual nº 44.431, de 29.12.06; 33.1.5. Declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública, enquanto perdurarem os motivos determinantes desta punição e até que seja promovida sua reabilitação perante a Administração Pública Estadual, que será concedida sempre que a CONCESSIONÁRIA ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes; 33.1.5.1. A aplicação da sanção de declaração de inidoneidade é de competência exclusiva do Secretário de Estado de Defesa Social. 33.1.6. Descredenciamento do sistema de registro cadastral.63

Ainda neste sentido, na data da assinatura do contrato o

ex-governador Aécio Neves havia afirmado: Foram estabelecidos parâmetros muito objetivos que a empresa terá que cumprir, seja do ponto de vista da garantia da segurança, por exemplo, com inibição de fuga, seja no

63 Contrato de Concessão Administrativa Nº 336039.54.1338.09. SEDS, Belo Horizonte. Disponível em: https://www.seds.mg.gov.br/images/seds_docs/editalpppnovo/anexo%206%20-%20contrato%20concess%E3o%20adm%20ppp.pdf. Acessado em: 21 de ago. de 2014.

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130 Temas jurídicos atuais: Volume VI

caminho da ressocialização dos presos, com oportunidade de trabalho e de educação.64

Vale ressaltar que por ser pioneiro na implantação do

mecanismo das PPP no sistema prisional o Estado de Minas Gerais deve enfrentar todos os tipos surpresas e falhas, e ainda, aprender como solucioná-las, o que de certo modo facilita a gestão das futuras PPPs prisionais em outros Estados, pois já terão um modelo a ser seguido.

Por fim, destaca-se o fato de que seguindo o exemplo do Estado de Minas Gerais, outros Estados como Amazonas, Goiás, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo, também estão direcionando a construção e gestão de presídios a contratos de PPPs, buscando a modernização da gestão pública e uma política de segurança ligada aos direitos humanos, prezando pela reintegração do preso e o bem-estar da sociedade.

4.4.2 Impossibilidade da delegação do poder de polícia administrativa na modalidade contratual dentro do sistema jurídico nacional

A parceria público-privada caracteriza-se pela

delegação de algumas funções estatais ao parceiro privado, sendo estas atividades denominadas instrumentais ou secundárias, ressalvando que determinadas atividades estatais jamais serão delegáveis, por serem competências decisórias imperativas e coercitivas da Administração Pública e pressuporem o exercício do poder estatal destinado à realização de valores fundamentais.

Nessas condições afirma Fernando Vernalha Guimarães:

Nos casos em que houver atos meramente matérias e instrumentais à manifestação jurídica de competências exclusivas ou típicas estatais (preparatórios ou sucessivos),

64 Aécio Neves assina contrato para da construção da primeira penitenciária do país por meio de PPP. SEDS, Belo Horizonte. Disponível em: https://www.seds.mg.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=673&Itemid=71. Acessado em: 21 de ago. de 2014.

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Parcerias público-privadas... 131

não haverá atribuição de competência decisória acerca das razões que conduzem à interferência na propriedade e liberdade dos particulares.65

O legislador brasileiro ao elaborar os diplomas que

cuidam do regime jurídico das PPPs teve o cuidado de preservar a atuação estatal da delegação à gestão privada relativa ao exercício de certas funções públicas, como a manifestação do poder de polícia, da função jurisdicional, entre outras exclusivas do Estado. Segundo Juarez Freitas:

A PPP deve respeitar a indelebilidade de funções exclusivas do Estado. Convém sulcar que, assim como nas mencionadas leis estatais, a Lei 11.079/2004 deixa expresso que, na contratação de PPP, uma das diretrizes reside na indelegabilidade, mencionando, de modo não-exaustivo (sic), as funções de regulação e do exercício do “poder de polícia” (art. 4º, III).66

Ocorre que, apesar de previstas na legislação, há uma

ausência de fechamento tipológico quanto às atividades estatais indelegáveis, pelo fato do artigo 4º, inciso III da Lei 11.079/2004 finalizar a previsão legal com os termos “de outras atividades exclusivas do Estado”. Assim evidencia-se a dificuldade de especificar os grupos de atividades que devem ser obrigatoriamente reservadas ao Estado. Nos termos do artigo:

Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes: [...] III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; [...]67

Para a delimitação do que é atividade indelegável é

necessário a análises dos casos concretos, onde deve ser observado o princípio da república, buscando sempre satisfazer o interesse coletivo através da atuação do Estado. E se a

65 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 247. 66 Ibidem, p. 334. 67 BRASIL, LEI Nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004.

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132 Temas jurídicos atuais: Volume VI

concessão de determinada função puder gerar riscos de frustração da garantia deste princípio, então esta atividade não deve ser delegada. Nas palavras de Fernando Vernalha Guimarães:

A indelegabilidade de certas atividades estatais pressupõe compreender o conteúdo jurídico do princípio da república, que impõe a reserva de poderes instrumentais à satisfação do interesse do povo nas mãos do Estado. A sua partilha não poderá ser admitida ante o risco de frustração de objetivos constitucionais que deverão ser perseguidos pelo Estado.68

Para tanto, existe uma distinção classificatória entre

gestão estratégica, que é a função mais elevada, compreendendo a direção e orientação de um serviço; a gestão operacional, abrangendo a gestão do funcionamento de um serviço em seus aspectos de regulação e otimização – logística, resolução de conflitos, racionalização, dentre outros; e a gestão executiva, referente à execução material da prestação. Novamente Fernando Vernalha Guimarães destaca:

Usando-se desse critério de classificação, seria lícito afirmar que os particulares poderão receber, no terreno da prestação de serviços relacionados a funções típicas do Estado, transferência da função executiva. Nunca delegação de competências decisórias (presentes na gestão estratégica e, em alguma medida, na gestão operacional de serviços), próprias da manifestação exclusiva da Administração. Transfere-se não a autoridade decisória, mas os instrumentos de que esta serve.69

Nesse sentido já se posicionou o STF na ADI 1717, pela

indelegabilidade da atividade típica de Estado ao ente privado: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE

68 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: Parceria público-privada. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 242. 69 GUIMARÃES, Fernando Vernalha. PPP: Parceria público-privada. 1.

ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 249.

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Parcerias público-privadas... 133

FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5º, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime. (STF - ADI: 1717 DF, Relator: SYDNEY SANCHES, Data de Julgamento: 07/11/2002, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 28-03-2003 PP-00061 EMENT VOL-02104-01 PP-00149).70

No Brasil, as atividades essenciais de produção e

aplicação do direito são indelegáveis, visando o monopólio da força e da imposição, atividades estas que manifestam o poder e império do Estado. Neste sentido Juarez Freitas afirma “A idéia-guia (sic), aqui e sempre, reside no caráter vinculante do direito fundamental à boa administração pública e na indissociável valorização das Carreiras de Estado”.71

Ao que diz respeito especificamente ao poder de polícia, esse se evidencia pelo uso de poderes imperativos e coercitivos destinados a assegurar a manutenção da ordem pública e a realização de direitos fundamentais. Podendo os atos de polícia serem gerais e abstratos, ou específicos e concretos, apresentando os atributos da exigibilidade e da coercibilidade. Segundo Irene Patrícia Nohara:

70 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1717 DF. Brasília, 7 de novembro de 2002.

Disponível em: http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/772345/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-1717-df. Acessado em: 11 de out. de 2014. 71 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 335.

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134 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Em sentido vulgar, a palavra polícia no Brasil é associada mais comumente à corporação encarregada de zelar pela ordem e da segurança pública. Contudo, do ponto de vista do Direito Administrativo, poder de polícia possui significado mais amplo, consistente na atividade de condicionar e restringir o exercício dos direitos individuais, tais como a propriedade e a liberdade, em benefício do interesse público.72

Este poder caracteriza-se pela discricionariedade, auto

executoriedade e coercibilidade. Sendo que a primeira característica significa a liberdade que a Administração Pública tem de estabelecer, de acordo com sua conveniência e oportunidade, quais serão as limitações impostas ao exercício dos direitos individuais e as sanções aplicáveis nesses casos. A segunda característica diz respeito à Administração Pública poder exercer o poder de polícia sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário. E por fim, a terceira característica refere-se ao fato dos atos do poder de polícia poderem ser impostos aos particulares, mesmo que, para isso, seja necessário o uso de força para cumpri-los.

Vale ressaltar ainda, que para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, atualmente deve ser acrescentada uma quarta característica, a indelegabilidade, sendo este o tema central desta seção, nas palavras da doutrinadora:

Costuma-se apontar como atributos do poder de polícia a discricionariedade, a autoexecutoriedade e a coercibilidade, além do fato de corresponder a uma atividade negativa. Pode-se atualmente acrescentar outra característica que é a indelegabilidade do poder de polícia a pessoas jurídicas de direito privado.73

Ante a impossibilidade de delegação do poder de polícia,

o Complexo Prisional de Ribeirão das Neves sofre as primeiras consequências advindas da intervenção do particular no sistema prisional brasileiro, tais como a ação civil pública que acusa o Governo de Minas Gerais de terceirizar atividades indelegáveis.

72 NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 136. 73 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São

Paulo: Atlas, 2011. p. 120.

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Parcerias público-privadas... 135

O Ministério Público do Trabalho (MPT), baseado na tese de que é ilícito terceirizar funções integrantes do sistema prisional, propôs ação civil pública, contra o governo de Minas Gerais e o consórcio nacional Gestores Prisionais Associados (GPA), processo nº PAJ: 869.2011.03.000/0.

Nesses termos, o procurador do Trabalho, Geraldo Emediato de Souza, afirma:

Entre os postos de trabalho terceirizados estão atividades relacionadas com custódia, guarda, assistência material, jurídica e à saúde, uma afronta à Lei 11.078/04 que classifica como indelegável o poder de polícia e também a outros dispositivos legais. Além de ser uma medida extremamente onerosa para os cofres públicos, poderá dar azo a abusos sem precedentes.74

Para a juíza da ação, Jane Dias do Amaral, trata-se de

típico poder de polícia que limita o direito de ir e vir dos presos com os objetivos de preservação da paz social, da segurança pública, além dos objetivos pedagógicos em relação ao condenado, afirmando: “Assim a execução penal e todos os serviços a ela inerentes devem ser realizados por funcionários públicos concursados, nos termos do art. 37 da CF/88”.75

A sentença fixou o prazo de 365 dias para que o Governo do Estado promovesse concurso público para a substituição dos empregados irregulares por servidores públicos, cominando multa de R$ 10 mil por dia em caso de descumprimento. O Estado também estaria impedido de assinar novos contratos com pessoas físicas ou jurídicas para atuar na administração das unidades prisionais, sob pena de multa de R$ 500 mil por contrato.

Desse modo, percebe-se que o entendimento do referido julgado é no sentido da “indelegabilidade do poder de polícia” entendendo esse de modo a abranger toda a tutela do

74 Justiça do Trabalho considera ilícita a terceirização no Presídio Público Privado de Ribeirão das Neves. MPT 3ª Região, Belo

Horizonte, 02 de abr. de 2014. Disponível em: http://www.prt3.mpt.gov.br/procuradorias/prt-belohorizonte/170-justica-do-trabalho-considera-ilicita-a-terceirizacao-no-presidio-publico-privado-de-ribeirao-das-neves. Acessado em: 25 de ago. de 2014. 75 Idem.

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preso, desde a sua segurança até o cuidado com a sua salubridade e higidez física e mental. Apontando como solução a substituição dos funcionários contratados pelo parceiro privado por servidores públicos, a serem contratados pelo regime de concurso.

Todavia, o posicionamento exarado do referido julgado, colide em parte com a proposta da parceria público-privada, como se pode observar no “CAPÍTULO VII – DAS OBRIGAÇÕES DAS PARTES” do contrato firmado entre o Governo de Minas Gerais e a GPA, onde visando suprir a carência Estatal no âmbito penitenciário e garantir a dignidade da pessoa humana prevista na Constituição Federal, busca-se uma melhor qualidade de vida para os detentos.

Incumbindo ao ente privado o dever da construção e gestão do complexo prisional, no que diz respeito à educação, trabalho, atendimento psicológico e jurídico, infraestrutura das celas e do presídio, alimentação, rouparia, higiene, cuidados com a saúde, entre outros, e permanecendo a segurança, execução da pena e força policial, a cargo do Estado. Havendo em cada unidade prisional um gerente de operações do parceiro privado e um diretor público de segurança, responsável pela execução das funções indelegável do Estado.

Ademais, parte da doutrina admite a delegação da atividade típica de Estado para o ente privado, em circunstâncias excepcionais ou hipóteses muito específicas, mediante delegação propriamente dita ou em decorrência de um simples contrato de prestação de serviços. Como exemplo tem-se os poderes reconhecidos aos capitães de navios, ou ainda, a fiscalização de normas de trânsito por meio de radares eletrônicos, neste sentido o STF reconheceu a repercussão geral do tema no ARE 662186, de relatoria do Ministro Luiz Fux:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. APLICAÇÃO DE MULTA DE TRÂNSITO POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PODER DE POLÍCIA. DELEGAÇÃO DOS ATOS DE FISCALIZAÇÃO E SANÇÃO A PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO. AGRAVO PROVIDO PARA MELHOR EXAME DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Decisão: Trata-se de agravo contra decisão que inadmitiu Recurso Extraordinário interposto com fundamento no artigo 102, III, “d”, da Constituição da

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Parcerias público-privadas... 137

República, em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, assim do: “Ação ordinária. Objeto. Declaração de ilegitimidade e restituição de multas de trânsito quitadas. Ilegitimidade da BHTrans. Sociedade de economia mista. Impossibilidade. STJ. Procedência dos pedidos iniciais. Firmado, pelo Superior Tribunal de Justiça, o entendimento sobre a inviabilidade da BHTrans, sociedade de economia mista, na aplicação de multas de trânsito, declara-se a ilegitimidade dos autos de infração elaborados e determina-se a restituição dos valores arrecadados pela entidade. Recurso não provido.” No recurso extraordinário, a recorrente argui ofensa aos artigos 5º, inciso XXXV, 30, incisos I e V, 37, cabeça e inciso XIX, e 175, da Carta da Republica. Para tanto, sustenta que o exercício do poder de polícia de trânsito pode ser delegado à sociedade de economia mista. Assevera que a Lei Municipal 5.953/91 autorizou a criação da BHTrans com a finalidade de controlar e executar os serviços de trânsito no Município de Belo Horizonte, consoante o disposto no art. 24 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97), bem como no interesse público local, nos termos do art. 30 da Constituição da República da 1988. Em contrarrazões, a recorrida alega que a BHTrans tem apenas poder de polícia fiscalizatório, sendo vedada a imposição de sanções. Acrescenta que os agentes da recorrida são empregados celetistas, pertencentes à administração indireta e, portanto, incompetentes para o exercício do poder de polícia. O extraordinário não foi admitido na origem. Em sequência, a recorrente interpôs o presente agravo. Finalmente, por entender que o tema constitucional versado nestes autos é relevante do ponto de vista econômico, político, social e jurídico, além de ultrapassar os interesses subjetivos da causa, esta Corte reconheceu a repercussão geral do tema constitucional. É o Relatório. DECIDO. O agravo preenche todos os requisitos de admissibilidade, de modo que o seu conhecimento é medida que se impõe. Ex positis, PROVEJO o agravo e determino a conversão em recurso extraordinário para melhor exame da matéria. À Secretaria para a reautuação do feito. Publique-se. Brasília, 04 de setembro de 2014. Ministro Luiz Fux Relator Documento assinado digitalmente (STF - ARE: 662186 MG, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 04/09/2014, Data de Publicação: DJe-176 DIVULG 10/09/2014 PUBLIC 11/09/2014).76

76 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo: ARE 662186 MG. Brasília, 04 de setembro de 2014. Disponível

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138 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Com efeito a problemática se mostraria melhor

solucionada com a observância da Constituição Federal, que é taxativa em seu artigo 1º, inciso III, ao tratar a dignidade da pessoa humana como direito fundamental:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...]77

E ainda, em seu artigo 5º, inciso XLIX, a Constituição

Federal garante aos presos o respeito à integridade física e moral. Nos termos do artigo:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; [...]78

Neste sentido, o artigo 38 do Código Penal, segue a

previsão da Lei Maior, ao garantir a manutenção dos direitos dos condenados no que diz respeito a sua integridade física e moral, nos termos do artigo tem-se que “o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral”.79

em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4162202. Acessado em: 11 de out. de 2014. 77 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. 78 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. 79 BRASIL, Código Penal, de 7 de dezembro de 1940.

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Parcerias público-privadas... 139

Segundo Ingo Wolfgang Sarlet, tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade. Gerando um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como garante condições existenciais mínimas para uma vida saudável.80

Outrossim, há que se verificar que empiricamente a gestão prisional pelo parceiro privado consegue com sucesso preservar as garantias e preceitos constitucionais dos detentos, conferindo-lhes maior dignidade no cumprimento da pena. O que em mais de 180 anos não foi conseguido pelo Estado, que atualmente é um dos maiores problemas a ser enfrentado pelos governantes, haja vista a falência do sistema carcerário, juntamente com a saúde, educação, entre outros. Neste sentido aduz Guilherme de Souza Nucci:

Na prática, no entanto, lamentavelmente, o Estado tem dado pouca atenção ao sistema carcerário, nas últimas décadas, deixando de lado a necessária humanização do cumprimento da pena, em especial no tocante à privativa de liberdade, permitindo que muitos presídios se tenham transformado em autênticas masmorras, bem distantes do respeito à integridade física e moral dos presos, direito constitucionalmente imposto.81

Conclui-se assim que a interpretação da lei não pode

obstar a efetiva aplicação dos direitos sociais e fundamentais do indivíduo, como no caso dos sentenciados, sob pena de flagrante inconstitucionalidade, trazendo uma insegurança jurídica sem precedentes. Ante tal fato, entende-se que a segurança deve permanecer como dever do Estado, devendo ser delegada apenas a gestão da infraestrutura e prestação de serviços básicos para a garantia do cumprimento de uma pena digna nos ditames da Lei Maior, preservando assim a dignidade da pessoa humana.

80 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60. 81 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 6ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 990.

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4.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O surgimento da Parceria Público-Privada no âmbito

mundial deu-se através de uma longa evolução do Estado, desde a Revolução Francesa até a contemporaneidade. Originando-se da necessidade da criação de mecanismos que suprissem a carência do ente público e promovessem ao máximo o bem estar social.

Nota-se que as influências das normas inglesa e francesa foram preponderantes para a evolução do ordenamento administrativo brasileiro, tendo em vista que o sistema de PPP propriamente dito surgiu na Inglaterra e a criação da teoria do contrato administrativo deu-se na França. A Lei nº 11.079/2004, juntamente com as leis nº 8.666/93, 8.987/95, 9.074/95 e 9.648/98, foram criadas com o intuito de reestruturar a infraestrutura básica do Brasil, visando à garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

A PPP pode ser em duas modalidades, administrativa ou patrocinada, devendo essa contratação ser realizada após a análise da conveniência e da oportunidade do emprego de uma destas modalidades ao serviço que se pretende implementar, e ainda, a avaliação da viabilidade econômico-financeira da parceria, sendo esta a responsável pela definição do modelo de parceria.

Quanto às vantagens e desvantagens advindas do contrato de PPP, fica claro que o número de desvantagens se faz menor do que o número de vantagens, o que torna esta espécie de parceria eficiente e vantajosa para o Estado, ainda que possua alguns riscos. Por tratar-se de um mecanismo que visa suprir a carência do ente público e promover a garantia do bem estar social através da preservação dos direitos fundamentais.

O contrato de PPP trata-se de um modelo de “concessão” do Poder Público diferenciado das “concessões comuns”, no que diz respeito à contraprestação pecuniária. Deste modo, teria sido viável inserir aperfeiçoamentos às Leis de Concessões e de Licitações, o que tornaria dispensável a criação do modelo de PPP. Entretanto, tendo em vista que tal lei já foi criada, surge a necessidade de renovar a regulação brasileira, visando aperfeiçoamento do Direito Administrativo,

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Parcerias público-privadas... 141 ante as necessidades do Século XXI e sua crise regulatória mundial.

No âmbito prisional, o Estado de Minas Gerais foi pioneiro ao firmar essa modalidade contratual com o consórcio nacional Gestores Prisionais Associados, envolvendo a construção de cinco unidades prisionais que abrigarão sentenciados do sexo masculino e uma central de serviços em Ribeirão das Neves, região metropolitana de Belo Horizonte. Tendo como objetivo principal a reinserção do sentenciado à sociedade, preservando todos os seus direitos e garantias previstos na Lei Maior.

A exemplo do Estado de Minas Gerais, outros Estados como Amazonas, Goiás, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo, também estão direcionando a construção e gestão de presídios a contratos de PPPs, buscando a modernização da gestão pública e uma política de segurança ligada aos direitos humanos.

No entanto, ao firmar parceria com o setor privado, o Estado depara-se com o obstáculo denominado “indelegabilidade do poder de polícia”, sendo este entendido de modo amplo, abrangendo toda a tutela do preso, desde a sua segurança até o cuidado com a sua salubridade e higidez física e mental. Sendo uma possível solução para a terceirização em tese ilegal do poder de polícia a substituição dos funcionários contratados pelo parceiro privado por servidores públicos, a serem contratados pelo regime de concurso, alternativa essa apresentada pelo judiciário, no processo nº PAJ: 869.2011.03.000/0.

Por outro lado, há que se considerar os benefícios trazidos pela PPP prisional aos reclusos, onde a gestão prisional pelo parceiro privado consegue com sucesso preservar suas garantias constitucionais, conferindo-lhes um cumprimento de pena digno.

Em vista de tudo o que foi debatido, entende-se que o melhor caminho para reestruturação do sistema penitenciário brasileiro seria através da realização de contratos de PPPs, devendo a segurança permanecer como responsabilidade do Estado, e sendo delegada apenas a gestão da infraestrutura e prestação de serviços básicos aos detentos, de modo a garantir a humanização da pena, prevista no artigo 5º, XLIX da Constituição Federal.

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142 Temas jurídicos atuais: Volume VI

4.6 REFERÊNCIAS Aécio Neves assina contrato para da construção da primeira

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= V =

O SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS E A FIGURA DO “CARONA”

Mateus Augusto Brito de Souza*

Mauro Luís Siqueira da Silva**

5.1 INTRODUÇÃO O Estado é a força central que impulsiona o

desenvolvimento de um país, recolhe tributos, presta serviços públicos e controla as atividades econômicas. A contratação de serviços e a aquisição de bens não são o objetivo da administração estatal, porém são inerentes a esta atividade uma vez que são essenciais para que se alcance o interesse público.

Já disse o mestre Hely Lopes Meirelles “na administração pública não há liberdade e nem vontade pessoal”.1 Ou seja, o administrador deve sempre fazer aquilo que a lei lhe ordenar e como nos diz Márcio alexandrino “o estado de direito é assim chamado, pois nele vigora o império da lei”2. Destarte pode-se concluir que os procedimentos para aquisição de bens ou para contratação de serviços devem ser pautados pelos princípios norteadores da administração pública, quais sejam o princípio da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. Logo fica claro a importância de se estabelecer uma forma de contratação

* Advogado. Graduado em Direito pela UniCesumar – Centro Universitáro de Maringá – PR. ** Mestre em Direito - UEL - Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito do Estado - UEL - Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Direito - UEM - Universidade Estadual de Maringá. 1 MEIRELLES, Hely Lopes; AZEVEDO, Eurico de Andrade; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, Jose Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 37° Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 89. 2 ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO Vicente. Direito Administrativo Descomplicado.14° Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007, p. 138.

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O sistema de registro... 147 diferenciada para o poder público, da onde surge então o dever de licitar por expressa disposição constitucional3.

Hodiernamente as bases do procedimento licitatório estão estabelecidas na Lei Geral de Licitações e Contratos4 que em seu artigo 15, inciso II, esgrima: “as compras sempre que possíveis, deverão ser processadas através de sistema de registro de preços”. Claro fica que o sistema de registro de preços pode ser um método dotado de grande potencial e que contribui de forma eficiente para os contratos por parte da administração pública, trazendo à esta vantagens tanto em relação aos preços dos produtos/serviços contratados, como em relação à própria licitação já que aparece neste sistema a figura do “carona” que utiliza-se da ata de registro de preços já aproveitada por licitação anterior, tornando o procedimento mais célere e econômico. No entanto a figura do carona não é aceita de forma pacífica pela doutrina e nem pela jurisprudência, o que demonstra a necessidade de uma análise sobre sua utilização.

5.2 LICITAÇÕES

A licitação surge como forma de se garantir que a

administração pública contrate aqueles fornecedores com melhores condições. Em outras palavras, é uma série de atos que obedecem de forma rígida à lei e deste modo não admite discricionariedade na escolha do contratado, evitando assim que fique a livre escolha do administrador público. José Cretella Júnior5, aduz sobre a licitação:

Procedimento administrativo preliminar complexo, a que recorre à administração quando, desejando celebrar contrato com o particular, referente a compras, vendas, locações, obras, trabalhos ou serviços, inclusive os de publicidade, seleciona, entre várias propostas feitas, a que melhor atende ao interesse público, baseando-se para tanto em critério objetivo, fixado de antemão, em edital, a que se deu ampla publicidade.

3 Artigo. 37, inciso XXI. 4 Lei 8666/1993 5 CRETELLA JÚNIOR, José. Dicionário das Licitações Públicas. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 115.

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148 Temas jurídicos atuais: Volume VI

A licitação é contrato por excelência, ou seja, é um

acordo de vontades, firmado entre as partes e que cria direitos e gera deveres entre estes, embora seja típico do direito privado, o contrato é utilizado pela administração pública na sua pureza originária ou com as adaptações necessárias aos negócios públicos.6

Porém a licitação possui a natureza jurídica de procedimento administrativo com fim seletivo, isto é, um conjunto de atos e documentos que serão empregados na confecção de uma decisão administrativa.7

Entende-se que o contrato dito administrativo guarda algumas características ou exigências que o diferencie do contrato particular, essas exigências podem ser classificadas em dois tipos: Internas, o contrato há de ser sempre consensual, oneroso, comutativo, geralmente formale realizado intuitu personae; consensual, pois é de mutuo acordo entre as partes; oneroso, pois será remunerado conforme por ele for estipulado; comutativo porque deve gerar compensações recíprocas entres as partes; formal, quando não dispensado por lei, deve ser escrito conforme os requisitos legais exigidos; intuitu personae se caracteriza na exigência de que o próprio contratado realize o ato.

A segunda característica é denominada externa e se trata da exigência de prévia licitação para a contratação pública, entende-se a licitação como o processo pelo qual um ente público, percebida a necessidade de novos produtos ou serviços, abre aos interessados a possibilidade de realizarem ofertas para prestação e/ou entrega do produto. Trata-se de processo obrigatório conforme a constituição8, salvo hipóteses previstas em lei.

Porém embora seja obrigatória em regra para se descobrir quem contratar e, vincule desde então a administração a contratar com o vencedor, a licitação não gera a obrigação de contratar uma vez que apenas habilita o vencedor a contratar

6 MEIRELLES, Hely Lopes; AZEVEDO, Eurico de Andrade; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, Jose Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 37° Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.211. 7 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 24. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2011. 8 Artigos 37, XXI e 175.

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O sistema de registro... 149 com a administração e gera mera expectativa de direito, se trata, portanto, de ato discricionário.

O procedimento licitatório começa com a abertura do processo pela autoridade competente, esta determina a realização e define o objeto e os recursos hábeis para despesa. Logo após, segue-se a audiência pública, esta necessária para divulgar e tornar claro para a população o interesse e a conveniência da obra ou serviço. Após a audiência segue o edital de convocação que como lei interna da concorrência e da tomada de preços, vincula inteiramente a administração e os proponentes9. “Licitação é, pois o processo geral, prévio e impessoal empregado pela administração para selecionar entre várias propostas apresentadas, a que mais atenda ao interesse público”10.

O processo licitatório é complexo e por vezes falho é regido inicialmente pela lei 8.666/93, este processo recebeu duras críticas com o passar dos anos devido a sua rigidez. No entanto toda sua burocracia justifica-se no artigo 3° da referida lei, artigo este que determina a observância dos princípios da isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, igualdade, publicidade e a probidade administrativa, bem como a vinculação de todo o processo ao seu instrumento convocatório e ao julgamento objetivo.

5.3 SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS

Trata-se de um conjunto de procedimentos,

regulamentado pelo decreto n° 7892, de 2013, que objetiva registrar preços de produtos e/ou serviços, através de licitação na modalidade de concorrência ou pregão, esta última sendo precedida por ampla pesquisa de mercado - para que a administração pública possa utilizá-los futuramente. Mesmo que não se constitua como modalidade de licitação, o sistema de registro de preços depende do procedimento licitatório, seja na modalidade de pregão ou concorrência.

9 MEIRELLES, Hely Lopes; AZEVEDO, Eurico de Andrade; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, Jose Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 37° Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 289. 10 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 302.

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O sistema de registro de preços envolve no mínimo três

participantes que são: o órgão gerenciador, que é o responsável pelo certame e gerenciamento da ata de registro de preços; o licitante, que participa da licitação e integra a ata de registro de preços; a administração pública que utiliza a ata de preço; a ata de registro de preços ao qual é instrumento vinculativo onde se registram as condições estabelecidas para que possam ser reivindicadas futuramente.

O sistema de registro de preços não segue a mesma sistemática dos procedimentos de aquisição de bens ou serviços, pode-se concluir que ele é uma ferramenta que objetiva realizar contratações de forma a equalizar o estrito cumprimento da lei com a necessária eficiência da administração pública.

O registro de preços por parte do fornecedor não obriga a administração a contratar, respeitando assim sua discricionariedade, obriga porém o fornecedor, caso contratado a entregar o produto ou serviço nas condições estabelecidas, salvo em caso fortuito ou força maior. A administração pública terá a faculdade de realizar licitação específica para a aquisição pretendida, desde que assegurada preferência ao fornecedor registrado em igualdade de condições.

Este sistema de contratações é recomendado quando não for possível definir a quantidade exata a ser contratada ou quando houver a necessidade de contratações frequentes, devido a este fim, os órgãos ou entidades da administração pública poderão manter os registros cadastrais da ata de registro de preços por até um ano.

Diante da impossibilidade de se definir a quantidade a ser contratada é recomendado cautela, é de extrema importância que se possa ao menos definir a quantidade máxima a ser contratada no período licitado, pois será defeituoso o edital que deixar a livre discricionariedade da administração à quantidade a ser contratada visto que a incerteza sobre quantitativos mínimos e máximos afasta os empresários sérios e acaba por elevar os preços para a administração pública, pois é de notório saber que os custos são diversos em razão da quantidade. A administração deve evitar o sistema de registro de

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O sistema de registro... 151 preços para preços de retalho e aproveitá-la para preços por atacado11.

Todavia deve-se levar em conta que o contrário também pode ocorrer, a administração poderá ter a oportunidade de contratar uma quantidade baixa pelo valor de uma compra vultosa, e ainda existe a discricionariedade da contratação e verificando que ocorreria uma desvantagem econômica o órgão público poderia realizar uma contratação específica, embora seja claro que boa parte destes transtornos podem ser evitados com uma ampla pesquisa mercadológica realizada antes do sistema de registro de preços.

Sendo assim percebe-se que as vantagens da adoção do sistema de registro de preços são muitas, destaca-se, por exemplo, a redução do número de licitações, celeridade no processo de aquisição, redução do volume de estoque e do espaço físico utilizado para guarda, somente a compra das quantidades necessárias, evitando o desperdício, o fato de atender outras unidades e não só a licitadora e a desnecessidade de reserva orçamentária.

5.4 DA CONTRATAÇÃO CONTINUADA.

As contratações de serviços continuados envolvem a

necessidade de planejamento e uma prévia elaboração de um projeto básico para aquele serviço, logo, considerando como certos e determinados os serviços continuados, não podem estes participarem da sistemática do Sistema de Registro de Preços, pois o artigo 3° do Decreto n° 7.892/2013 em seu inciso IV esgrima:

Art. 3º O Sistema de Registro de Preços poderá ser adotado nas seguintes hipóteses:[...] IV - quando, pela natureza do objeto, não for possível definir previamente o quantitativo a ser demandado pela Administração.

As hipóteses previstas nesse inciso visam atender a

imprevisibilidade da quantidade ou do momento a se contratar,

11 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos – 15. Ed. São Paulo: Dialética, 2012.

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já os serviços continuados previstos na Lei 8.666/9312, são serviços de natureza ininterrupta e portanto não tem fundamento para a contratação de serviços terceirizados.

Além de que, se levar em consideração a necessidade de se planejar a contratação, compromete-se a possibilidade da participação dos “caronas” nas respectivas atas de registro de preços, em razão de que muito provavelmente aquele quantitativo cotado não irá suprir esse atendimento, por conseguinte, em respeito aos princípios da eficiência e da economicidade, nesses casos deve-se utilizar a modalidade de pregão em sua forma ordinária, sem registro de preços, casos os bens a serem fornecidos sejam do tipo “comum”.

5.5 DO CARONA

O sistema de registro de preços traz sérias dúvidas em

relação à figura do carona, regulamentada pelo artigo 22 do decreto 7.892/13, a figura do carona causa controvérsia por permitir que qualquer órgão do governo utilize da ata de registro de preços mesmo que não tenha participado da licitação que lhe deu origem13.

Vale salientar, porém, que a norma não autorizou simplesmente qualquer órgão a aderir ao resultado de qualquer licitação promovida, não se encontra esta elasticidade na lei. Pelo contrário, essa possibilidade é restrita ao sistema de registro de preços.

Desta forma podem-se classificar os usuários da ata de registro de preços em dois grupos: órgãos participantes ao qual comparecem e participam da implantação do sistema de registro de preços, com atuação prevista pelo artigo 2°, IV do decreto n° 7892/02; e órgãos não participantes que são comumente chamados de “carona” e estão previstos no artigo 2°, V do mesmo Decreto.

Logo fica evidente a vantagem do órgão participante em relação ao carona, já que aquele tem suas expectativas de

12 Artigo 57, inciso II. 13 Decreto n°7822/02 art. 22: Desde que devidamente justificada a vantagem, a ata de registro de preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da administração pública federal que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador.

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O sistema de registro... 153 consumo previstas em ato convocatório; tem o compromisso dos fornecedores para com o fornecimento; e pode solicitar de forma automática os serviços/produtos previstos no sistema de registro de preços. Enquanto que este depende de consulta e anuência prévia do órgão gerenciador; indicação do órgão gerenciador do fornecedor/prestador de serviço; aceitação do fornecedor/prestador; e ainda devem-se manter as mesmas condições do registro.

Primeiramente verifica-se a vantagem, a validade e a compatibilidade da ata de registro de preços, em sequência solicita-se a intervenção do órgão gestor para negociar como fornecedor, só então o fornecedor é contatado para definir as condições de preço e fornecimento, desde que não prejudique o cumprimento das obrigações já assumidas, poderá, o fornecedor, aceitar fornecer o bem/serviço.

5.6 A INTENÇÃO DE REGISTRO DE PREÇOS

Trata-se de um procedimento sistematizado e

operacionalizado, que pode ser acessado através da rede mundial de computadores e que possibilita aos interessados na realização da licitação o uso do sistema de registro de preços de um determinado bem ou serviço divulgando sua intenção de compra para o restante da Administração Pública Federal, o que oportuniza a realização do certame licitatório de forma conjunta. Em outras palavras, a intenção de registro de preços permite a realização de uma única licitação com a junção das necessidades de vários órgãos federais. A principal meta da intenção de registro de preços é que esses órgãos informem de forma antecipada às quantidades que desejam contratar, estimulando-os dessa forma a integrar a fase de planejamento de compra compartilhada, o que fortalece a economia quanto ao aumento da escala. À vista disso, os possíveis “caronas” podem se tornar participantes, já dos procedimentos iniciais da licitação, o que reduziria o número de adesões a ata de registro de preços, por órgãos não participantes. O Decreto n° 7.892/13 em seu artigo 4° torna obrigatória a utilização da intenção de registro de preços e estabelece ainda, a sua operacionalização.

Notório se faz as vantagens da implementação da intenção de registro de preços, dentre as quais cumpre ressair; a redução das licitações e seus custos administrativos; a

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padronização dos bens e serviços contratados; o aumento da participação dos órgãos nas licitações e a consequente diminuição do número de “caronas”; o ganho de escala, pois, quanto maior a quantidade que se contratada maior poderá ser o desconto ofertado, o que atende ao princípio da economicidade previsto pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 70.

5.7 DA LEGALIDADE

A principal divergência se dá no âmbito da legalidade,

parte da doutrina entende que não há permissão legal para a figura do carona, já que essa figura foi criada pelo Decreto 3.931/01 sendo posteriormente regulada pelo Decreto 7892/13 não sendo prevista, porém pela Lei 8.666/93 que é a responsável pela regulamentação das licitações. Assim se manifesta Joel de Menezes Niebuhr14:

Em outras palavras, somente a lei pode obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa; somente ela é quem pode criar primariamente direito. Os decretos do Presidente da República, dos governadores ou dos prefeitos estão sempre abaixo dela: servem apenas para dizer como elas devem ser cumpridas, operacionalizadas pela Administração Pública. Os decretos não criam direitos, apenas dizem como eles devem ser executados pela Administração Pública, e, no máximo, determinam como os cidadãos devem cumprir as suas obrigações, criadas por lei, perante a mesma Administração Pública. Nota-se diferença de grau hierárquico entre as leis e os decretos. Além disso, de todo modo, há normas jurídicas que não podem ser baixadas através de decretos, mesmo que não sejam contrárias a leis, dado que os mesmos não podem, repita-se, criar primariamente direitos, mas tão-só estabelecer como eles devem ser cumpridos. Noutras palavras, há questões que, sob pena de serem reputadas inconstitucionais, não podem ser objeto de decreto; dependem de lei.

A prática do carona seria inválida, portanto na medida

em que frustra a obrigatoriedade da licitação prevista no artigo

14 NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão Presencial e Eletrônico. Curitiba: Zênite, 2004, p. 29.

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O sistema de registro... 155 37, inciso XXI da Constituição Federal e não cabe invocar uma licitação já realizada com tempo e finalidade já definidas15.

Em sentido contrário argumenta Sergio Veríssimo de Oliveira Filho16.

Em nosso sentir [...] a prática limitada do carona não fere os princípios da legalidade e da obrigatoriedade de licitação. Não fere o princípio da legalidade porque a própria Lei n. 8.666/93 conferiu a cada ente federativo a prerrogativa de regulamentar o seu SRP de acordo com as peculiaridades regionais ou locais. E a prática do carona, embora não tenha sido prevista na Lei geral, decorre da dinâmica do procedimento licitatório e da execução da ata de registro de preços, razão pela qual não pode ser considerada inovação indevida por parte do Chefe de Executivo. Igualmente, não fere o princípio da obrigatoriedade de licitação, pois, embora o ente ou o órgão não participante do certame, ao “tomar carona” em ata alheia, deixe de realizar a sua própria licitação, o bem ou o serviço registrado e o seu fornecedor foram selecionados mediante procedimento licitatório promovido pelo ente que empresta a sua ata de registro de preços, pelo que a afirmação de que o carona equivaleria a uma dispensa indevida de licitação não parece correta.

E assim se posiciona a maioria dos tribunais brasileiros,

como por exemplo, o tribunal de contas da união: A resposta é a extensão da proposta mais vantajosa a todos os que necessitam de objetos semelhantes, em quantidade igual ou menor do que o máximo registrado. Depois de ressalvar os casos de contratação direta e impor, como regra, o princípio da licitação, a Constituição Federal define os limites desse procedimento, mas em nenhum momento obriga a vinculação de cada contrato a uma só licitação ou, ao revés, de uma licitação para cada contrato. Essa perspectiva procedimental fica ao alcance de formatações de modelos: no primeiro, é possível conceber

15 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos – 15. Ed. São Paulo: Dialética, 2012. 16 OLIVEIRA FILHO, Sérgio Veríssimo. O Sistema de Registro de Preços e o Carona. Revista Zênite — Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba, n. 204, p. 120, fev. 2011.

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156 Temas jurídicos atuais: Volume VI

mais de uma licitação para um só contrato, como na prática se vislumbra com o instituto da pré-qualificação em que a seleção dos licitantes segue os moldes da concorrência, para só depois licitar-se o objeto, entre os pré-qualificados; no segundo, afigura do carona para em registros de preços ou a previsão do art.112 da Lei nº 8.666/93. Desse modo, é juridicamente possível estender a proposta mais vantajosa conquistada pela Administração Pública como amparo a outros contratos. O fornecedor do carona é uma empresa que assegurando ao órgão gerenciador a certeza da disponibilidade do objeto, ainda pode se for da sua conveniência, suportar a demanda de outros órgãos, pelo mesmo preço declarado na licitação como proposta mais vantajosa. O carona no processo de licitação é um órgão que antes de proceder à contratação direta sem licitação ou a licitação verifica já possuir, em outro órgão público, da mesma esfera ou de outra, o produto desejado em condições de vantagem de oferta sobre o mercado já comprovadas. Permite-se ao carona que diante da prévia licitação do objeto semelhante por outros órgãos, com acatamento das mesmas regras que aplicaria em seu procedimento, reduzir os custos operacionais de uma ação seletiva. É precisamente nesse ponto que são olvidados pressupostos fundamentais da licitação enquanto processo: a finalidade não é servir aos licitantes, mas ao interesse público; a observância da isonomia não é para distribuir demandas uniformemente entre os fornecedores, mas para ampliar a competição visando a busca de proposta mais vantajosa [...]. Aliás, importa destacar que depoimentos colhidos de servidores integrantes de órgãos que sistematicamente têm sido carona em registro de preços revelam inclusive que o procedimento serve para desestimular a oferta de preços elevados, nas licitações convencionais. De fato se o órgão decide fazer uma licitação porque não tem certeza de que o Sistema de Registro de Preços de outro órgão é, de fato, a proposta mais vantajosa, a hipótese de poder ser carona inibe a pretensão de sobrevalorização de propostas. O aprimoramento do Sistema de Registro de Preços e a intensificação do uso do carona levarão inevitavelmente ao expurgo dos preços abusivos, pois a publicidade de ofertas disponíveis será cada vez mais ampliada [...]. Por fim, é importante assinalar que nenhum sistema está imune a desvios de finalidade, mas essa possibilidade não pode impedir o desenvolvimento de processos de modernização.

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O sistema de registro... 157

O Tribunal de Contas da União teve a oportunidade de analisar afigura do carona, admitindo a sua regularidade como procedimento em tese. O TCU considerou regular a utilização de Sistema de Registro de Preços para a contratação de operadora de planos de saúde, impondo a condição de o edital vedar a utilização da ata de registro de preços por órgãos/entidades não-participantes. Embora não apresentando restrições à tese de adesão de não-participantes – caronas – nesse caso específico, entendeu não haver possibilidade de aferir se o preço vencedor será mais vantajoso ou compatível com a faixa etária do quadro de pessoal do “carona”, pois o valor original da contratação é vinculado às peculiaridades das faixa sectárias do pessoal do órgão gerenciador.

Porém o tribunal de contas do Paraná diverge: O TCE/PR recebeu consulta sobre a possibilidade de os municípios deste estado aderirem às atas de registros de preços de outros entes administrativos da esfera federal, estadual ou municipal. Analisando o art. 15 e parágrafos da Lei n. 8.666/93, o relator ressaltou que ‘em nenhum momento esse dispositivo prevê a possibilidade de que uma entidade pública que não tenha participado da elaboração do edital licitatório possa aproveitar-se desse procedimento para efetuar a aquisição de produtos do vencedor do certame’. Logo, no entender da Corte de Contas paranaense, o Decreto n. 3.931/01, que regulamentou o Sistema de Registro de Preços, extrapolou os limites constitucionais de sua utilização no que concerne ao carona. Ainda, ressaltou tratar-se, ‘por vias oblíquas, da introdução de uma nova causa de dispensa de licitação, mediante decreto do Poder Executivo Federal, não prevista na norma geral’. Por fim, a Corte de Contas estadual decidiu por considerar ‘inconstitucional a adesão a ata de registro de preço na forma prevista no art. 8º do Decreto n. 3.931/01, por ofensa aos arts. 22, XXVII, e 37, XXI e 84, IV da

Constituição Federal, que exigem lei federal para a disciplina do processo licitatório, notadamente, quanto à previsão de causa de dispensa ou inexigibilidade, e por ofensa à disciplina da habilitação, ao princípio da legalidade, da vinculação ao edital, da isonomia, da impessoalidade, da moralidade e da economicidade’ (TCE/PR Consulta n. 19310/2010.Rel. Auditor Ivens Zschoerper Linhares. DJ: 09/06/2011) [grifo nosso].

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158 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Embora ainda haja polêmica quanto ao uso do carona,

logo se percebe que a aceitação desta modalidade é majoritária entre os tribunais brasileiros, levando-se em conta a praticidade e a economia gerada pela realização de uma consulta em ata de licitação já realizada. Destarte pode-se ter a figura do carona como benéfica a administração pública visto que este instituto permite ao órgão administrativo verificar o produto desejado em condições de vantagens em relação ao mercado diante de prévia licitação realizada por outro órgão e que com o acatamento das mesmas regras que aplicaria em seu procedimento reduziria seus custos administrativos. Deve-se entender que a finalidade da licitação não é servir os licitantes, mas servir o interesse público e permitir, portanto a administração pública o acesso aos melhores bens pelos melhores preços. Pois a possibilidade de aderir à ata é conhecida dos licitantes, o que leva a crer que os fornecedores podem oferecer um preço mais razoável a administração pública, esperando uma aquisição de “escala” a seus produtos.

Apesar de amplamente aceita nos tribunais a figura do carona, estes recomendam certa cautela quanto a seu uso e impõem algumas restrições, quais sejam: comprar individualmente até o limite do que foi registrado ou de forma conjunta até o máximo do quíntuplo do registrado; não aderir a atas que tenham licitado quantidades inferiores a sua própria demanda; obedecer às regras de pagamento impostas pelo órgão gerenciador em edital; provar que o preço licitado é compatível com o de mercado17.

Neste moldes pretendem os tribunais regularizar o uso do carona e tentar pacificá-lo dentro da doutrina.

Seguindo este pensamento, têm-se que a Constituição Federal de certa forma define os limites deste procedimento, mas não obriga que cada contrato seja vinculado a apenas uma licitação ou, ao contrário, que se tenha uma licitação para cada contrato. Esse prisma procedimental está ao alcance de formatações de modelos: primeiro é possível ter mais de uma licitação para um único contrato, como pode verificar no instituto da pré-qualificação em que a seleção dos licitantes segue a

17 FERNANDES, J. U. Jacoby. Carona em Sistema de Registro de Preços: uma opção inteligente para redução de custos e controle. O Pregoeiro, v. 3, out. 2007.

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O sistema de registro... 159 regra da concorrência, e somente depois há a licitação do objeto, entre os pré-qualificados. Segundo, com a figura do carona é possível de forma jurídica alcançar a proposta mais vantajosa com o amparo de outros contratos.

Neste sentido o Plenário do Tribunal de Contas da União prolatou acórdão n° 2692/2012, que impõem certos limites a figura do carona.

Assim, embora o instituto da adesão a ata de registro de preços possibilite, conforme salientou o recorrente, a redução dos custos com licitações e a desburocratização, sua utilização de forma ilimitada não pode ser aceita, por contrariar princípios básicos que vinculam a Administração Pública ... O fato de as adesões às atas estarem sujeitas aos controles dos órgãos de fiscalização, como, aliás, ocorre com qualquer outro ato que envolva recursos públicos, não é garantia de que não haverá dano ao erário, uma vez que, em geral, o controle ocorre após o ato. Outrossim, a sujeição a diversos tipos de controle não retira das adesões ilimitadas o caráter de infringência aos princípios isonomia, da competitividade e da economicidade ... Vê-se que, associada à "escolha livre e incondicionada" do gestor, o efeito multiplicador das contratações propiciado pela atual sistemática do "carona" - aventado como fator de economia processual - vulnera a Administração Pública, expondo-a a riscos desarrazoados... Dessa forma, uma vez que, em consonância com as reconhecidas vantagens do Sistema de Registro de Preços, a determinação contida no subitem 9.2.2 do Acórdão 1.487/2007 - Plenário não teve como objetivo vedar por completo a prática da "carona", mas tão somente buscar limites para a adesão tardia de registro de preços realizados por outros órgãos e entidades, "visando preservar os princípios da competição, da igualdade de condições entre os licitantes e da busca da maior vantagem para a Administração Pública ... Dessa forma, a fixação do limite a ser adquirido em edital [...]dá plena transparência aos fornecedores a respeito da estimativa de quantitativos a serem adquiridos por cada participante. O entendimento detalhado pelo TCU na referida deliberação reduz a assimetria de informações associada à absoluta imprevisibilidade, na sistemática até então adotada pelos órgãos e entidades federais, do total de "caronas" que eventualmente poderiam ser agregados ao certame original e mitiga, assim, a possibilidade de comportamento oportunista por parte de eventuais licitantes fraudadores.

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160 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Até então admitia-se que qualquer órgão ou entidade que aderisse, poderia contratar a mesma quantidade designada na ata de registro de preços, ou seja, se dez órgãos aderissem à ata de preço, o montante licitado poderia ser acrescido em dez vezes, o que descaracterizaria o objetivo da licitação, uma vez que quanto maior a quantidade contratada maiores são as chances de se alcançar um preço razoável, enquanto a retórica se faz verdadeira, quanto menor a quantidade contratada mais custosa pode ser a licitação, portanto, entendeu o egrégio tribunal que todos os contratos não devem ultrapassar a quantidade que foi licitada na ata de registro de preço, independentemente do número de aderentes. Em outras palavras, orienta o Tribunal de Contas da União que o detentor da ata e os eventuais caronas não poderão contratar em conjunto quantidade superior a inicialmente licitada. De forma que se preserve o objetivo da licitação de encontrar o fornecedor mais benéfico para a administração pública e não há dúvidas que na grande maioria dos casos o fornecedor mais benéfico é aquele que oferece os melhores preços.

5.7.1 Existências de um mercado paralelo

É cada vez mais frequente a utilização da figura “carona”

e de sua utilização pela Administração Pública, assim como sua presença nos meios de divulgação, criando-se assim um mercado paralelo de bens e serviços que surge, oferecendo à administração pública os objetos de atas de Registro de preços em vigor.

Se anteriormente a administração pública precisava se preocupar em publicar editais e divulgar licitações, hoje em dia os particulares detentores de atas de registro de preços são quem divulgam seus produtos de forma muito vantajosa para o administrador, pois estes produtos não precisam de licitação. O carona proporciona o oferecimento de produtos ou serviços que já se encontram na ata de registro de preços, o que pode vir a se tornar um avassalador balcão de negócios e um incontrolável mercado paralelo às aquisições pelos órgãos públicos através de processos licitatórios. Transformando-se em uma gigantesca rede de corrupção, pois a forma de adesão não possui qualquer

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O sistema de registro... 161 tipo de controle sobre os atos praticados, tal como publicação, que o decreto sequer mencionou sua necessidade.

Fato este que inspirou Joel de Menezes Niebuhr18, fazer um verdadeiro desabafo:

O carona é o júbilo dos lobistas, do tráfico de influência e da corrupção, especialmente num País como o nosso, com instituições e meios de controle tão frágeis. Os lobistas e os corruptores não precisam mais propor o direcionamento de licitação; basta proporem o carona e tudo está resolvido.

Ademais há de se falar que a figura do carona é muito

útil ao administrador que não planeja que subverte a correta ordem de atos necessários para a aquisição de bens ou serviços, que consta na lei. A aquisição pelo carona é na maior parte das vezes realizada de forma inversa, estando o produto em ata é este oferecido ao administrador e este por sua vez verifica sua necessidade considerando a facilidade da aquisição, ignorando dessa forma alternativas que poderiam ser mais vantajosas a administração.

Não há, portanto, planejamento ou estudo prévio para verificar se o produto/serviço atenderia às necessidades, nem qual o quantitativo ou a forma de aquisição mais benéfica.

Assim se pronunciam Madeline Rocha Furtado e Antonio Pereira Vieira19:

Na necessidade de adquirir um bem ou um serviço, adere-se às Atas, nas quais o objeto não contempla a real necessidade do órgão interessado, modifica-se o pedido, suascaracterísticas, suas especificidades, periodicidade, freqüência na execução, prazos derecebimento, quantitativos, métodos, etc. Modifica-se o projeto inicial, visando aatender à Ata quando deveria ser o inverso, a Ata poderá ou não atender ao requisitado.” [...]

18 NIEBUHR. Joel de Menezes. “Carona” em Ata de Registro de Preços: Atentado Veemente aos Princípios de Direito Administrativo. ILC – Informativo de Licitações e Contratos, nº 143. Curitiba: Zênite jan. 2006 19 FURTADO, Madeline Rocha e VIEIRA, Antonieta Pereira. Cuidados nas aquisições pelo sistema de registro de preços. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo Horizonte, ano 6. n. 67, jul. 2007, p. 70-72.

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162 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Nessa ótica, ainda poderíamos trazer uma prática desordenada da adesão pelo "carona", quando da "substituição" do objeto inicialmente registrado na Ata, por equivalente, quando o fornecedor não detém o quantitativo necessário para a adesão, muitas vezes negocia-se a substituição do objeto por outro, porém, utilizando-se os itens registrados na Ata.

Esta inversão de valores é prejudicial ao interesse

público, inibe e frustra a concorrência e a isonomia, pois adéqua o interesse público às condições de um fornecedor específico.

Evidente se faz este mercado paralelo, com negociações feitas antes e durante o processo de adesão a uma ata de registro de preços, e que se destina a proporcionar o mínimo de transparência e publicidade e como consequência alcança-se o controle das contratações da administração pública de forma irregular e prejudicial aos cofres públicos e ao próprio estado democrático de direito. Assim se posiciona Justen Filho20

A consagração do 'carona' favorece a prática da corrupção. Em primeiro lugar, envolve a realização de licitações destinadas ao fornecimento de quantitativos enormes, o que se constitui em incentivo a práticas reprováveis. Isso não significa afirmar que existem desvios éticos apenas nas licitações de grande porte. O que se afirma é que a grande dimensão econômica de uma licitação eleva o risco de corrupção em vista do vulto dos valores envolvidos. Mais grave, consiste na criação de competências amplamente discricionárias. Ao assegurar ao ente administrativo a faculdade de escolher entre utilizar ou não utilizar um registro de preços, abre-se oportunidade para a corrupção. Não significa que a existência do registro de preços seja um instrumento intrinsecamente propício à corrupção: a figura do "carona" é intrinsecamente propícia à corrupção. E o é porque uma entidade pode ou não se valer de um registro de preços, segundo uma escolha livre e incondicionada.

5.8 DA DISCRICIONARIEDADE DO ATO

A administração pública possui alguns poderes que lhe

permitem garantir a prevalência do interesse público sobre o particular. Destaca-se o poder discricionário que permite uma

20 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2008, p. 197.

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O sistema de registro... 163 maior liberdade para a prática dos atos administrativos, permitindo ao administrador um juízo de oportunidade e conveniência.

Diogenes Gasparini explica que: Há conveniência sempre que o ato interessa, convém ou satisfaz ao interesse público. Há oportunidade quando o ato é praticado no momento adequado à satisfação do interesse público. São juízos subjetivos do agente competente sobre certos fatos e que levam essa autoridade a decidir de um ou outro modo. O ato administrativo discricionário, portanto, além de conveniente, deve ser oportuno. A oportunidade diz respeito com o momento da prática do ato. O ato é oportuno ao interesse público agora ou mais tarde? Já ou depois? A conveniência refere-se à utilidade do ato. O ato é bom ou ruim, interessa ou não, satisfaz ou não o interesse público?21

Este poder de decisão sobre a oportunidade e

conveniência deve ser sempre norteado para um fim de interesse público, sem que nunca se relacione ao interesse pessoal do administrador público, sob pena de ilegalidade.

Necessário se faz deixar claro que não são todos os elementos que compõe os atos administrativos que são discricionários. Em se tratando de competência, forma e finalidade, o ato administrativo sempre deverá ser vinculado, de forma a se sujeitar aos limites estabelecidos em lei22.

A discricionariedade trata-se, portanto, de uma escolha permitida ao administrador, dentro dos limites legais, sendo assim a lei permite que o administrador opte por uma entre as várias ações possíveis, sendo, no entanto, todas igualmente válidas à luz do direito, o administrador deve então levar em conta critérios subjetivos para sua escolha, partindo do ideal que deseja alcançar e guiando-se dentro dos princípios legais, considerando critérios como, conveniência, oportunidade e justiça, que são de certa forma, inerentes a própria administração pública.

21 GASPARINI, Diogenes, Direito Administrativo, 14ª ed., Saraiva, 2009, p. 97 22 CATANESE, Elisabeth; MURTA, Camila C, GARCIA, Gisele Clozer P. Os Limites do Poder Discricionário da Administração Pública. Dez. 2010.

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164 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Evidencia-se, portanto o importante papel da

discricionariedade dentro da administração de forma à permitir ao administrador escolher a melhor hora e maneira de agir, tornando o ato mais eficiente, relevante e democrático.

A discricionariedade torna, portanto, o ato inerente a moral do próprio administrador, uma vez que cabe à este o juízo de valores que levará ou não o ato a se concretizar, trazendo para si a responsabilidade da pratica ou da ausência da pratica deste ou daquele ato.

Partindo desta premissa, chega-se a ideia de que não há como julgar um procedimento administrativo como bom ou ruim, este será uma coisa ou outra dependendo de quem decide quando e como usá-lo, logo a figura do “carona”, data vênia opinião contrária, não é automaticamente um convite à corrupção ou à prática de atos administrativamente imorais, trata-se apenas de um procedimento que a luz do direito permite ao administrador público uma resposta mais ágil e adequada à necessidade de sua administração, cabe portanto à este administrador avaliar como se utilizar desta ferramenta. 5.9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A guisa do aqui exposto chega-se a ideia do importante

papel que o sistema de registro de preço pode desempenhar para a melhora da prestação dos serviços públicos, tornando-os menos custosos para a administração o que se reflete em toda a sociedade. Como qualquer ideia ou projeto, o sistema de registro de preços não está isento de erros, mas devido a sua crescente utilização, aos poucos os erros vão sendo sanados, até que se tenha um sistema que ao menos em tese seria um modelo a ser seguido por toda a administração pública. Não obstante, diante da realidade que se apresenta esse modelo, está cada dia mais distante, não sendo assim porém inalcançável.

O sistema de registro de preços traz em seu bojo o poder discricionário do administrador de optar por uma ata de preços de uma licitação já realizada ou a criação de uma nova licitação. Através da figura do carona, portanto, como todo ato discricionário, cabe ao administrador a decisão, e as consequências dessa decisão refletem a própria efígie do administrador, estando assim sujeito a moral de quem o utiliza.

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O sistema de registro... 165 Se utilizado for, de boa-fé, com planejamento e impessoalidade, o sistema de registro de preço pode ser um importante aliado da administração, melhorando assim a qualidade de todo o serviço prestado, desde o preço da mercadoria, até a logística de armazenamento, que neste caso pode ser reduzida.

Em contracorrente, ao utilizar-se deste sistema de forma pessoal, irresponsável ou visando lucro próprio, o sistema de registro de preços pode ser um importante aliado do administrador e um grande inimigo da administração, permitindo não apenas que se comprem produtos ou serviços sem o uso de licitações, como também permite a criação de um mercado paralelo e ainda o direcionamento dos pedidos para um produto ou fornecedor específico.

A figura do carona segue a mesma lógica, é inerente a personalidade daquele que detém o poder de escolha. Devido a essa característica, o carona, não é ainda aceito por todos os tribunais pátrios, aqueles que aceitam tal figura tomam o cuidado de tentar controlá-la, essa falta de unanimidade reflete na administração pública, pois, não permite que haja uma certeza jurídica a respeito, por exemplo, da legalidade dessa sistemática.

Faz-se necessário, portanto, um posicionamento coordenado dos tribunais quanto à figura do carona e sua utilização. E mais importante que isso, faz-se necessário a conscientização do administrador público dos limites da utilização desta figura suas consequências. Frente à uma natureza humana extremamente gananciosa cabe ainda uma maior fiscalização junto ao poder público, de forma a fazer com que os administradores hajam de forma correta seja por boa-fé ou por temor.

Como corolário deste artigo, fica-se a ideia de que a figura do carona é um procedimento muito importante e eficiente para a administração pública, mas por depender de características subjetivas, fica à mercê do administrador podendo ser uma grande vantagem ou uma grande desvantagem para o poder público, não podendo porém confiar plenamente na boa vontade do administrador, cabe ao ministério público, a sociedade e aos tribunais de contas, uma fiscalização mais rígida e profunda, não apenas nesta situação em especial, mas em todos os atos da vida pública. Cabe ao administrador a prestação de contas sempre que lhe for solicitado, em

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166 Temas jurídicos atuais: Volume VI

contrapartida é dever moral da sociedade, participar mais ativamente do controle de gastos públicos.

Quanto à legalidade desta figura, a jurisprudência ainda não foi pacificada, mas tudo leva a crer que embora tenha suas divergências é cada vez mais aceito que se trata de um sistema legal, o que em pouco tempo poderá ser aceito com unanimidade pelos tribunais.

5.10 REFERÊNCIAS

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= VI =

A INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE JUROS MORATÓRIOS

João Paulo Sabaine Fagundes*

Mauro Luis Siqueira da Silva** 6.1 INTRODUÇÃO

Pensar no Poder de Tributar do Estado pressupõe

encontrar os limites de sua atuação. A Carta Constitucional não se limita em reconhecer a insurgência dos contribuintes face ao exercício desmedido do Estado de seu poder de tributar, reconhecendo também uma séria de direitos e garantias oponíveis ao Estado, que no exercício de seu poder de tributar avança sobre o patrimônio do particular.

Assim, o interesse fazendário não se apresenta absoluto ou, em certa medida, afastado de limites, tratando-se de um poder que encontra limites delineados no Estado de Direito, daí decorrendo a importância da regra matriz tributária, em especial do imposto de renda, que ao determinar o critério material, não deixa margem ao fisco federal para dar outro contorno ao que denomina renda ou proventos. Para tanto, há que se considerar um incremento patrimonial real ou efetivo desprovido de qualquer característica ou aspecto indenizatório, na medida em que a natureza jurídica da indenização se funda no ressarcimento do prejuízo sofrido pela parte, tendo, portanto, seu fundamento no âmbito da responsabilidade civil.

* Bacharelando de Direito pelo UniCesumar – Centro Universitário CESUMAR, orientando do Professor Mestre Mauro Luis Siqueira da Silva. ** Mestre em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL)

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A inconstitucionalidade da incidência... 169 6.2 CONSIDERAÇÕES GERAIS ACERCA DA TRIBUTAÇÃO E COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA SOBRE O IMPOSTO DE RENDA

Em primeiro plano, destaque-se o papel da tributação no

sentido de ser o principal meio de manutenção do Estado, com a finalidade, conforme ensina Roque Antonio Carrazza1, de arrecadar os recursos necessários para a realização dos fins sociais como garantia de segurança, saúde, educação, dentre outros.

Neste mesmo sentido, dispõe Hugo de Brito Machado2:

A tributação é, sem sombra de dúvida, o instrumento de que se tem valido a economia capitalista para sobreviver. Sem ele não poderia o Estado realizar seus fins sociais, a não ser que monopolizasse toda a atividade econômica. O tributo é inegavelmente a grande e talvez única arma contra a estatização da economia.

Para tanto, a Constituição Federal, considerada “fonte

direta por excelência do direito tributário, no Brasil”3, para evitar abusos do Estado, detentor do poder de tributar, e garantir a segurança dos contribuintes, traçou diretrizes e limites acerca da tributação, fixando cinco espécies de tributos, quais sejam: os impostos; as taxas; as contribuições, contribuição de melhoria e os empréstimos compulsórios, cumprindo no presente estudo identificar as características genéricas do imposto, que, nas lições de Luciano Amaro4, são:

a) são instituídos mediante previsão legal de fatos típicos (em regra descritos na norma definidora de competência), que, uma vez ocorridos, dão nascimento à obrigação tributária;

1CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 30. 2 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 24. 3 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 29. 4 AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 20. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 103.

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b) não se relacionam a nenhuma atuação estatal divisível e referível ao sujeito passivo; c) não se afetam a determinado aparelhamento estatal ou paraestatal, nem a entidades privadas que persigam fins reputados de interesse público.

Desta forma, temos que os impostos se destinam à

manutenção das atividades gerais do Estado, não se limitando a financiar um ou outro serviço público específico, como ocorre com as taxas e contribuições, ainda, há que se mencionar o fato da existência de um sistema rígido de competências, muito bem definidas e dividas entre os entes da federação.

Nas lições de Roque Antonio Carrazza5, ao determinar as competências tributárias, a Carta Magna criou uma regra-matriz de incidência que indicou a hipótese de incidência possível, o sujeito ativo possível, o sujeito passivo possível, a base de cálculo e a alíquota possível dos grupos de espécies tributárias.

No que se refere especificamente aos impostos, esta regra-matriz discriminou, a fim de se limitar a ação do legislador infraconstitucional, o poder de criação de cada um dos entes federativos, ou seja, delimitou quais impostos podem ser criados, em caráter exclusivo, pela União, os Estados, os Municípios e pelo Distrito Federal.

Neste diapasão, o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza é de competência exclusiva da União, conforme determina o artigo 153, em seu inciso VIII da Constituição Federal de 1988.

Hugo de Brito Machado6 nos apresenta a justificação da competência da União para a criação do Imposto de Renda:

Justifica-se que seja esse imposto da competência federal porque só assim pode ser utilizado como instrumento de redistribuição de renda, buscando manter em equilíbrio o desenvolvimento econômico das diversas regiões (...).

5 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 33. 6 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 319.

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A inconstitucionalidade da incidência... 171 6.3 ASPECTOS DA REGRA MATRIZ TRIBUTARIA DO IMPOSTO SOBRE A RENDA E PROVENTOS DE QUALQUER NATUREZA

Na dicção do artigo 43 do Código Tributário Nacional, o

Imposto de Renda incide sobre aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou de proventos de qualquer natureza, desde que indiquem um acréscimo patrimonial do contribuinte.

Neste sentido, a doutrina de Yoshiaki Ichihara7 traz o seguinte conceito de Imposto de Renda:

Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza, de competência privativa da União, incide sobre a renda proveniente do capital, do trabalho e da combinação de ambos, que importe na aquisição da disponibilidade jurídica ou econômica que resulte um acréscimo patrimonial e por proventos de qualquer natureza, qualquer acréscimo patrimonial não compreendido no conceito de renda, sujeito à observância dos princípios constitucionais, tributários, explícitos e implícitos, além das limitações constitucionais ao poder de tributar, podendo o contribuinte ser pessoa física ou jurídica, devendo a tributação ser uniforme em todo território nacional, mas sujeita a uma tributação segundo a capacidade contributiva, com a observância dos princípios da universalidade, generalidade e progressividade.

Em suma, Imposto de Renda prescinde da

disponibilidade jurídica ou econômica de todo e qualquer acréscimo patrimonial, desde que proveniente de uma renda ou de proventos de qualquer natureza.

Ainda, há que se mencionar os critérios informadores acerca da incidência do Imposto de Renda, quais sejam: a generalidade, a universalidade e a progressividade, conforme determina o artigo 153 da Constituição Federal, em seu parágrafo 2°.

7 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 238.

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Neste sentido, leciona Roque Antonio Carrazza8 acerca

da generalidade: Por generalidade entendemos que o imposto há de alcançar todas as pessoas que realizam seu fato imponível. E isto independentemente de raça, sexo, convicções políticas, credo religioso, cargos ocupados etc. noutros falares, este critério veda as discriminações e privilégios entre os contribuintes.

Sobre a universalidade, ensina o mesmo autor9:

Já por universalidade temos que o IR deve alcançar todos os ganhos ou lucros, de quaisquer espécies ou gêneros, obtido pelo contribuinte no território brasileiro e – desde que respeitados os acordos que visam a evitar bitributação internacional – também no exterior. Em linha de princípio, nada deve escapar à sua incidência, pouco importando a denominação dos rendimentos, sua origem, a condição jurídica de quem os aufere ou a nacionalidade da fonte. Tal avaliação global conecta o tributo aos princípios da capacidade contributiva e da igualdade.

Já para Yoshiaki Ichihara10, a universalidade e a

generalidade seriam quase sinônimos no sentido de incidir sobre o todo, sem qualquer tipo de distinção, ou seja, tratar os iguais como iguais e os desiguais como desiguais, à luz do princípio da igualdade, que deve ser concretamente aplicado quando da incidência do Imposto de Renda.

Em resumo, podemos entender que o critério da generalidade vem para determinar que o Imposto de Renda deve ser aplicado a todos indistintamente, sem discriminação de qualquer tipo, ressaltando, que este é aplicável tanto a pessoas físicas, quanto à pessoas jurídicas, ainda que por alíquotas distintas em respeito ao princípio da isonomia de que trata o artigo 5° da Constituição Federal.

8 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 68. 9 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 69. 10 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 238.

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A inconstitucionalidade da incidência... 173

E que o critério da universalidade vem para determinar que o Imposto de Renda deve incidir sobre tudo o que for renda ou proventos, na forma da Lei, incluindo tanto os elementos positivos, quanto os negativos, que venham a aumentar ou diminuir o patrimônio do contribuinte.

Por fim, o critério da progressividade vem determinar que as alíquotas aplicáveis na base de cálculo do Imposto de Renda devem ser progressivas, ou seja, quanto maior a base de cálculo, maior será a alíquota aplicada.

Destarte, conforme ensina Roque Antonio Carrazza11, a progressividade é corolário dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, posto que os contribuintes com maiores rendimentos são atingidos por um tratamento fiscal de maior gravidade do que os contribuintes que tenham uma capacidade econômica diminuta, contribuindo assim para a distribuição de renda e efetivação da igualdade material aclamada pela Constituição Federal.

Voltando ao cerne da materialidade do Imposto de Renda, esta se consubstancia com a percepção de renda e proventos de qualquer natureza. Sendo estes definidos como acréscimos patrimoniais de origem diversa da renda, a qual se trata do produto do trabalho, do capital ou de ambos conjuntamente, tudo na forma do artigo 43 do Código Tributário Nacional.

O mesmo artigo traz como fato gerador “a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” sobre a renda ou proventos de qualquer natureza, denominação que traz certa confusão acerca do que se trata disponibilidade jurídica, por um lado, e do que se trata disponibilidade econômica, do outro.

A definição de renda e sua natureza jurídica, bem como as diferenças entre disponibilidade jurídica e disponibilidade econômica, serão abordados mais adiante no capítulo 4 deste estudo, devido à importância de se detalhar as particularidades destes institutos jurídicos para melhor entendimento da inconstitucionalidade da incidência do imposto de renda sobre juros moratórios, tema objeto deste artigo.

11 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 72.

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Uma vez que o fato gerador e suas especificidades

serão explanados em momento oportuno, cumpre, ainda se tratando das características gerais da materialidade do imposto de renda, tratarmos de seus aspectos pessoal, espacial, temporal e valorativo.

No seu aspecto pessoal, encontramos os personagens que integram a relação jurídico tributária. No polo ativo, por se tratar de um imposto federal cuja competência, conforme já estudado, é determinada pela Constituição, temos a União. Já no polo passivo, temos o contribuinte, conforme ensina Alimoar de Andrade Baleeiro12:

Assim, poderá figurar no polo passivo o contribuinte pessoa física ou jurídica, desde que “titular da disponibilidade” conforme preconiza o artigo 43 do Código Tributário Nacional. Devido à possibilidade da retenção ou desconto na fonte do imposto de renda, surge ainda mais uma figura no polo passivo: o “responsável tributário”.

Acerca do responsável tributário, ensina Yoshiaki Ichihara13:

A possibilidade de transferir o encargo de reter na fonte, com a transferência da responsabilidade, no caso de omissão, à fonte pagadora, não transforma o responsável em contribuinte, mas esta figura do responsável tributário, é aquele previsto no art. 121, parágrafo único, II, do CTN, que por ligação indireta com o fato gerador, o nexo causal é por ter contribuído para que o tributo deixe de ser recolhido pelo descumprimento de um dever instrumental ou acessório, ou ainda pelo critério de benefício.

Destarte, no polo passivo da relação jurídico tributária do

imposto de renda os contribuintes, temos a pessoa física ou jurídica, residente ou não em território nacional, desde que o fato gerador tenha ocorrido neste; e o responsável tributário, mesmo que, neste último caso, se perca a natureza pessoal do imposto.

12 BALEEIRO, Aliomar de Andrade. Direito tributário brasileiro. 11.

ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 313. 13 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 239.

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Sobre o seu aspecto espacial, ensina Yoshiaki Ichihara14 que, por se tratar de imposto federal, o imposto de renda poderá ser aplicado por toda extensão do território nacional, podendo ocorrer “incentivos localizados”, admitindo exceções ao princípio da territorialidade. No mesmo sentido, Alfredo Augusto Becker15, tratando do aspecto espacial define como “coordenadas de lugar” da hipótese de incidência do imposto de renda.

Assim, o aspecto espacial nos traz que o imposto de renda poderá incidir sobre a renda ou proventos de qualquer natureza, desde que produzidos e/ou percebidos dentro do território nacional, independentemente se o contribuinte é ou não residente no país.

Tratando-se do seu aspecto temporal, temos, como regra geral, que o imposto de renda incide sobre a renda ou proventos de qualquer natureza percebidos dentro de um lapso temporal determinado. É o que Luciano Amaro16 chama de “fato gerador periódico”, que se dá nas hipóteses de incidência anual.

Em consonância a esta hipótese, leciona Hugo de Brito Machado17:

Tratando-se de imposto de incidência anual, pode-se afirmar que o seu fato gerador é da espécie dos fatos continuados. E em virtude de ser a renda, ou o lucro, um resultado de um conjunto de fatos que acontecem durante determinado período, é razoável dizer-se também que se trata de fato gerador complexo.

Partindo desta premissa, temos que o artigo 105 do

Código Tributário Nacional, que determina que “a legislação

tributária aplica‐se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes”, não foi recepcionado pela Constituição Federal, posto que contraria o disposto no artigo 150, III, deste dispositivo legal.

14 Ibid. 15 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed.

São Paulo: Lejus, 2002, p. 403. 16 AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 20. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 142. 17 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 234.

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Neste diapasão, ainda tratando da regra geral acerca do

aspecto temporal da incidência do imposto de renda, temos o sistema de “ano base” 18 para se apurar a base de cálculo, caracterizada pela aquisição de renda ou proventos de qualquer natureza, como veremos adiante, percebidos dentro do lapso temporal de um ano.

Da análise deste sistema, entendemos o porquê a questão da violação do princípio da irretroatividade por este sistema encontra-se há muito superada. Isto porque, como vimos, considera-se que o fato gerador se dá no último momento do ano base, ou seja, no dia 31 de dezembro de cada ano, assim qualquer alteração da legislação anterior à ocorrência do fato gerador não viola os princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei, conforme doutrina de Yoshiaki Ichihara19.

Esta hipótese de incidência do imposto de renda pelo sistema de ano base, como vimos, é a regra geral para tributação. Há, porém, outros métodos de arrecadação em que o fato gerador não ocorre durante um determinado período de tempo20, é o que ocorre, por exemplo, com o imposto descontado na fonte.

Assim sendo, o imposto de renda poderá ter sua incidência tomando como base vários momentos de ocorrência do fato gerador, cabendo ao legislador, dentro dos limites constitucionais, definir em que hipóteses se utilizará o sistema de “ano base” ou se fará a arrecadação através da retenção na fonte pagadora.

Por fim, o aspecto valorativo da materialidade do imposto de renda se desprende do que preconiza o artigo 44 do Código Tributário Nacional que a base de cálculo do imposto é o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis. No mesmo sentido, Eduardo Sabbag21 discorre em sua doutrina:

18 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed.

São Paulo: Lejus, 2002, pp. 403 e 404. 19 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 239. 20 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 239. 21 SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de direito tributário. 4. ed.

São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1.135.

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(...) É o montante real, arbitrado ou presumido, da renda e do provento de qualquer natureza. Aliás, é bom que se memorize que não existe “renda presumida”. Presumido ou arbitrado pode ser o montante da renda. Adota-se, no Brasil, um critério de aferição de base de cálculo “pelo montante absoluto da renda ou provento” (critério global ou unitário), segundo o qual as alíquotas incidem sobre o total dos rendimentos, independentemente de sua origem ou razão. Assim, a incidência ocorre sobre o crédito líquido do contribuinte, ou seja, a diferença entre a renda ou provento bruto auferido e os encargos admitidos em lei, tais como gastos com dependentes, planos de saúde etc. devem-se somar todos os rendimentos e lucros de capital da pessoa física e seus dependentes (rendimento bruto) e subtrair os encargos (reais ou presumidos) autorizados pela legislação (rendimento líquido).

Há de se destacar, porém, conforme nos traz Alfredo

Augusto Becker22, nos casos em que o cálculo da renda líquida é impraticável ou incontrolável, o legislador opta, como base de cálculo, pela “receita bruta”. Contudo, embora o legislador utilize esta denominação, não chega a ser uma “receita bruta”, mas apenas a receita ou rendimento bruto, o que descaracteriza a natureza jurídica do imposto de renda, como veremos logo abaixo.

Esta é a atual regra para a pessoa física, incidindo o imposto de renda sobre o rendimento bruto mensal auferido. Porém, como visto, esta regra irá admitir algumas exceções como, por exemplo, as despesas com dependentes e com planos de saúde.

Todavia, nas lições de Hugo de Hugo de Brito Machado23, verificamos uma violação desta regra aos preceitos constitucionais, senão vejamos:

A rigor, na definição da base de cálculo do imposto de renda pela legislação ordinária podem ser constatadas diversas violações da Constituição, posto que levam à incidência do imposto sobre algo que não é renda. Por outro lado, o próprio

22 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed.

São Paulo: Lejus, 2002, p. 399. 23 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 327.

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sistema do qual decorre o pagamento do imposto na fonte em valor superior ao devido na declaração anual de ajuste também fere a Constituição Federal, pois termina sendo uma forma oblíqua de instituir empréstimo compulsório.

Assim, como medida de justiça tributária e em

atendimento aos preceitos constitucionais, a fim de atender os objetivos fiscais e extrafiscais do imposto de renda, como melhor forma de direito teríamos que voltar a considerar como base de cálculo, no caso de pessoa física, a renda líquida por esta auferida, posto que uma tributação arbitrária sobre a renda bruta do contribuinte, pode assumir, conforme observado, caráter de empréstimo compulsório, que na legislação brasileira atual, só é admitido em casos específicos.

Já com relação à pessoa jurídica, a base de cálculo do imposto de renda é o lucro que, conforme disposto no artigo 44 do Código Tributário Nacional, poderá assumir o caráter de real, arbitrado ou presumido.

Neste sentido, Yoshiaki Ichihara24 dispõe em sua doutrina:

Assim, a legislação do Imposto de Renda e Provento de Qualquer Natureza admite três formas de apuração: do lucro real, que é a regra das pessoas jurídicas em geral, apurada considerando a receita, menos as despesas e com as adições e exclusões; lucro presumido, aplicável por opção às pessoas jurídicas que tenham uma receita inferior ao limite fixado por lei, através de uma presunção de lucro e com isso dispensando o cumprimento de algumas obrigações acessórias; e lucro arbitrado, quando na falta de informações, descumprimento de obrigação acessória ou dever instrumental formal etc., todas as condições fixadas em lei, o fisco arbitra o lucro tributável.

Esclarecidos as diferenças de base de cálculo para a

pessoa física e para a pessoa jurídica, ainda em relação ao aspecto valorativo, importante ressaltar que, da mesma maneira, as alíquotas de incidência do imposto de renda, serão aplicadas de maneira distintas.

24 ICHIHARA, Yoshiaki. Direito Tributário: atualizado até EC 67/10 e LC 138/10. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 241.

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Assim, conforme ensina Hugo de Brito Machado25, a alíquota para as pessoas jurídicas será proporcional, ao passo que para as pessoas físicas, atenderá ao critério da progressividade, já exaustivamente explanado neste estudo.

Em suma, assim como as limitações advindas da competência estabelecida pela Constituição Federal, as características gerais acerca da materialidade, aqui demonstradas, se apresentam como inibidores da atuação arbitrária do legislador na determinação dos parâmetros para incidência do imposto de renda.

No capítulo que segue analisaremos a fundo o conceito de renda e suas consequências jurídicas, que, na maioria das vezes, também se mostram como limitadores à atuação estatal, os quais passamos a analisar a partir de agora.

6.4 DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA DE “RENDA” PARA FINS DE TRIBUTAÇÃO

Ao que se observa a Constituição Federal em seu artigo

153, III determina a competência da União para instituir imposto sobre “renda e proventos de qualquer natureza”, dispondo, ainda, sob quais critérios este deverá se orientar.

Desta forma, é transparente que a Carta Magna adotou um conceito amplo e genérico de renda, abrangendo, igualmente, os proventos de qualquer natureza. O artigo 43 do Código Tributário Nacional, ratifica e complementa este conceito quando dispõe que renda é “o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos” e que proventos são “acréscimos patrimoniais” não compreendidos no conceito de renda.

Em análise ao acima exposto, percebemos que não há um conceito restritivo, tanto na Constituição quanto no Código Tributário Nacional, do que seria renda ou proventos, o que leva alguns estudiosos à falsa conclusão de que o legislador ordinário é livre para conceituar o que seria renda e proventos de qualquer natureza.

Neste sentido, ensina Hugo de Brito Machado26:

25 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 325. 26 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 321.

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Em face das controvérsias a respeito do conceito de renda, há quem sustente que o legislador pode livremente fixar o que como tal se deva entender. Assim, porém, não nos parece que seja. Entender que o legislador é inteiramente livre para fixar o conceito de renda e de proventos importa deixar sem qualquer significação o preceito constitucional respectivo. A Constituição, ao atribuir competência tributária à União, alude a renda e a proventos. Assim, entender-se que o legislador ordinário pode conceituar, livremente, essas categorias implica admitir que esse legislador ordinário pode ampliar, ilimitadamente, essa atribuição de competências, e tal não se pode conhecer em um sistema tributário como o brasileiro.

Corroborando com este entendimento, Roque Antonio

Carrazza27, aponta no sentido de que, mesmo que o legislador tenha certa liberdade para definir o que é renda, este deverá fazê-lo observando os conceitos oferecidos pelas Ciências Econômicas e esteja em consonância com os princípios constitucionais que limitam a incidência do imposto de renda, observando-se, principalmente, o princípio da capacidade contributiva, posto que a Constituição estabelece que renda e proventos devem se mostrar como riquezas ou ganhos novos.

Posto que o legislador deva atuar dentro destes limites constitucionais, não poderá denominar renda ou proventos, aquilo que não seja renda ou proventos, ou seja, que não se caracterize por ganho ou riqueza nova. Neste sentido a doutrina nos traz conceitos destes institutos em análise, a fim de facilitar o entendimento do que o legislador estaria autorizado, ou não, de aplicar a incidência do imposto de renda.

Começaremos exaurindo o que a doutrina conceitua como “proventos de qualquer natureza”. Assim Humberto Ávila28 discorre sobre o conceito de proventos:

O conceito de proventos de qualquer natureza compreende todos os acréscimos patrimoniais não incluídos na noção de renda. Tudo aquilo que foi acrescido ao conjunto de direitos e

27 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 57. 28 ÁVILA, Humberto. Conceito de Renda e Compensação de Prejuízos Fiscais. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 32.

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A inconstitucionalidade da incidência... 181

obrigações de um sujeito considera-se acréscimo patrimonial. Nesse patrimônio incluem-se, em função do princípio da capacidade contributiva, apenas os direitos avaliáveis economicamente que são acrescidos ao patrimônio.

Em sentido distinto dispõe Misael Abreu Machado

Derzi29:

provento é forma específica de rendimento tributável, tecnicamente compreendida como o que é ‘fruto não da realização imediata e simultânea de um patrimônio, mas sim, do acréscimo patrimonial resultante de uma atividade que já cessou, mas que ainda produz rendimentos’, como os benefícios de origem previdenciária, pensões e aposentadoria. Já proventos em acepção ampla, como acréscimos patrimoniais não resultantes do capital ou do trabalho, são todos aqueles de ‘origem ilícita e bem aqueles cuja origem não seja identificável ou comprovável’ (cf. MODESTO CARVALHOSA, op. cit., p. 194);

Porém, no nosso entendimento, a melhor definição é a

dada por Roque Antonio Carrazza30, que em uma conceituação una para renda e proventos de qualquer natureza, os define como os ganhos econômicos, fruto do capital e trabalho, ou de ambos, apurados em seu valor líquido, ou seja, a soma das entradas mais a subtração das saídas, em um determinado período de tempo. Em suma seria o “acréscimo patrimonial no tempo”.

Neste sentido, Humberto Ávila31 corrobora com esta conceituação quando ensina que a renda seria o “produto líquido calculado durante o período de um ano”, dispondo ainda que:

O conceito de renda pressupõe uma fonte produtiva. Ora, somente uma atividade organizada para o ganho é que pode

29 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e de patrimônio: efeitos da correção monetária insuficiente no imposto de renda. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 24. 30 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 39. 31 ÁVILA, Humberto. Conceito de Renda e Compensação de Prejuízos Fiscais. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 34.

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182 Temas jurídicos atuais: Volume VI

perceber ‘renda’. Elemento subjetivo da hipótese de incidência do imposto sobre a renda é a finalidade de auferi-la.32

Em suma, podemos conceituar “renda e proventos de

qualquer natureza” como o acréscimo patrimonial, advindo de uma fonte produtiva, seja esta o capital, o trabalho ou ambos, apurado em seu valor líquido produzido em um determinado período de tempo.

Esta única conceituação tanto para renda, quanto para proventos de qualquer natureza, se faz cabível mesmo que, como visto, alguns doutrinadores apresentem distinção acerca da conceituação destes dois institutos. É o que passamos a deslindar a partir de agora, para melhor entendimento do objeto em estudo.

Em princípio, cumpre lembrar que o artigo 43 do Código Tributário Nacional já nos traz uma distinção entre renda e proventos de qualquer natureza, quando coloca aquela como “o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos”, e estes como “os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior”, caracterizando um aspecto residual.

Daí podemos extrair que renda seria todo acréscimo patrimonial fruto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, e que proventos seriam todo acréscimo patrimonial não decorrentes do capital ou do trabalho. Ocorre que a Constituição, desde 1934, não nos revela tal entendimento, conforme ensina Luciano Amaro33:

Em suma, quando a Constituição (desde 1934) se reporta a “renda e proventos de qualquer natureza”, está utilizando sinônimos imperfeitos, e a locução “de qualquer natureza” parece-nos ter sido utilizada para não deixar dúvida de que todo ingresso de riqueza nova no patrimônio de alguém, qualquer que seja a origem deste proveito, é passível de incidência do tributo. Em rigor, ainda que a Constituição dissesse “renda”, tout court, não estaria vedada essa definição

32 Ibid., p. 32. 33 AMARO, Luciano da Silva. Imposto de Renda: Regime Jurídico. In:

MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.); NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Coord.). Tratado de direito tributário: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p.

395.

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A inconstitucionalidade da incidência... 183

ampla do campo material do imposto, segundo a teoria do acréscimo patrimonial.

Assim, tal entendimento vem para ratificar a

conceituação una para renda e proventos de qualquer natureza, posto que a Constituição adotou a teoria do acréscimo patrimonial, sendo este o objeto de incidência do imposto, independentemente de sua origem, vindo a denominação destes institutos apenas como forma de firmar tal teoria e impor limites à ação do legislador infraconstitucional.

Oportuno se faz, também, aclararmos a distinção entre renda e rendimentos para melhor compreensão de nosso estudo. Assim sendo, conforme doutrina de Roque Antonio Carrazza34, rendimento seria “qualquer ganho, isoladamente considerado”, já renda, como já vimos, seria o acréscimo patrimonial, apurado em seu valor líquido, em determinado lapso temporal.

Em consonância com este entendimento, leciona Misabel Abreu Machado Derzi35:

A ideia de rendimento é só a de determinado ganho e sua noção independe do tempo. Já a noção de renda está integrada necessariamente pela ideia de período de tempo (cf. op. cit., p. 2-3). A soma dos rendimentos pessoais (como remunerações de fatores produtivos), por certo lapso de tempo, é que configura a renda. Destarte, fica transparente a diferença entre renda e

rendimentos, posto que o conjunto destes por um certo período de tempo é que irá formar aquela, que se trata do objeto da hipótese de incidência do tributo em análise. Não fosse assim, o imposto de renda, ao incidir sobre rendimentos simplesmente, estaria adentrando no patrimônio do contribuinte, que também se difere do conceito de renda como veremos a seguir,

34 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 39. 35 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e de patrimonio: efeitos da correçao monetaria insuficiente no imposto de renda. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 19.

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caracterizando assim o confisco, que, como já estudamos, é proibido pela Constituição Federal.

Para o artigo 91 do Código Civil, patrimônio é toda “universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”, ou seja, é toda universalidade de bens e direitos já adquiridos em tempos passados, constituindo a “renda”, um mero acréscimo patrimonial em um determinado período de tempo.

Neste sentido, Misabel Abreu Machado Derzi36, trazendo patrimônio como sinônimo de capital, ensina:

Esse capital, possuído em determinado momento no tempo por seu titular, não é passível de tributação pelo imposto de renda, nem como pagamento, nem como transferência. Configuram pagamentos de capital os meros fluxos de moeda, bens ou serviços que correspondem a simples trocas onerosas entre patrimônios distintos, de forma equivalente, de modo que não advenha daí nenhum acréscimo para algum deles (com a consequente perda no outro). (...)

Assim sendo, proibido fica o legislador de adentrar na

esfera patrimonial do contribuinte, salvo no que se refere ao acréscimo patrimonial acumulado dentro de um determinado lapso temporal, sob pena de violar o princípio de proibição ao confisco, posto que o patrimônio particular é inviolável nos termos da Carta Magna.

Vencidos os aspectos gerais acerca da conceituação de “renda e proventos de qualquer natureza”, de suma importância se faz adentrarmos na análise aprofundada da materialidade do fato gerador, ou seja, a “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” de que trata o artigo 43 do Código Tributário Nacional.

O referido dispositivo legal, ao determinar o fato gerador do imposto de renda, nos traz uma problemática de distinguir o que seria disponibilidade jurídica e o que seria disponibilidade

36 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e de patrimonio: efeitos da correçao monetaria insuficiente no imposto de renda. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 19.

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A inconstitucionalidade da incidência... 185 econômica. Nesta seara, Eduardo Sabbag37 faz uma análise acerca destes institutos:

Passemos agora à análise dos conceitos de disponibilidade econômica e disponibilidade jurídica: a) Disponibilidade econômica: é a obtenção da faculdade de usar, gerar e dispor de dinheiro ou de coisas conversíveis. É ter o fato concretamente. A disponibilidade “financeira” não é sinônimo de disponibilidade econômica. Esta última é somente aquela que representa incorporação ao patrimônio. Nada impede, no entanto, que a lei ordinária agregue o “elemento financeiro” ao fato gerador, desde que tenha havido prévia disponibilidade econômica ou jurídica. b) Disponibilidade jurídica: é a obtenção de direitos de créditos não sujeitos à condição suspensiva, representados por títulos ou documentos de liquidez e certeza. Representa o “ter o direito, abstratamente”. O IR só pode incidir quando há acréscimo patrimonial, salientando-se que não há necessidade de o rendimento ser efetivamente recebido pelo sujeito passivo, sendo suficiente que este tenha adquirido o direito de crédito sobre ele, ou seja, a disponibilidade jurídica. Portanto, se um comerciante vende um produto no último dia do ano, porém só recebe o pagamento no 1° dia do ano subsecutivo, considera-se para fins de tributação, a data da venda, e não a do “recebimento”, pois com a venda o contribuinte adquire a disponibilidade jurídica sobre o rendimento tributável.

No mesmo sentido, Hugo de Brito Machado38, ensina

que disponibilidade econômica advém do recebimento efetivo do valor que caracteriza um acréscimo patrimonial. E a disponibilidade jurídica se caracteriza pela simples obtenção do crédito deste valor, ainda que não esteja efetivamente em poder do contribuinte, conforme esclarece o mesmo autor na sequência:

Para uma adequada compreensão do sentido da expressão “disponibilidade jurídica”, todavia, deve ser esclarecido que o crédito capaz de configurar essa disponibilidade é somente aquele que esteja efetivamente à disposição do contribuinte,

37 SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de direito tributário. 4. ed.

São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1.135. 38 MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014, p. 322.

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186 Temas jurídicos atuais: Volume VI

vale dizer, o crédito do qual este possa lançar mão sem qualquer obstáculo, de fato ou de direito. Para que se considere consumado o fato gerador do imposto de renda é necessário que exista a efetiva disponibilidade da renda ou dos proventos.

Em suma, a disponibilidade econômica se daria em

relação ao valor proveniente de acréscimo patrimonial já realizado e em efetivo poder do contribuinte, ao passo que a disponibilidade jurídica existiria em relação à simples obtenção do direito (crédito) ao valor decorrente de acréscimo patrimonial.

Ocorre que, na lição de Luciano Amaro39, tal diferenciação se mostra errônea, uma vez que o dispositivo legal normatiza o fato econômico de se ter disponibilidade, quer seja econômica ou jurídica, sobre valor proveniente de acréscimo patrimonial realizado, percebido ou não, dentro de um lapso temporal.

Desta forma, pouco importa se o contribuinte percebeu efetivamente o acréscimo patrimonial ou se apenas ocorreu a realização deste, constituída na forma de um crédito. Importando para a lei somente se este se encontra disponível para tributação, dentro dos limites estabelecidos pelo conceito de “renda e proveitos de qualquer natureza”.

Neste diapasão, assevera Luciano Amaro40:

A ideia geralmente condensada é a de que, em princípio, tanto é tributável a renda percebida quanto a renda ganha (embora ainda não recebida). A discussão, portanto, é, antes de tudo, terminológica. Em suma, o CTN acolheu as expressões (que nos parecem impróprias) “disponibilidade econômica” e “disponibilidade jurídica” para explicitar a referida ideia de que a renda pode ser tributada desde o momento em que, tendo sido produzida, se incorpora ao patrimônio do titular (quer essa agregação se dê em dinheiro, quer se dê em bens ou em créditos).

39 AMARO, Luciano da Silva. Imposto de Renda: Regime Jurídico. In:

MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.); NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Coord.). Tratado de direito tributário: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2011, p.

390. 40 Ibid., p. 391.

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A inconstitucionalidade da incidência... 187

Assim sendo, tratar-se-iam as expressões “econômica” e “jurídica” de determinar o modo de utilização da renda, e não a forma como ela é adquirida, pouco importando, assim, para se determinar sua disponibilidade para fins de tributação.

Desta forma, poderíamos chegar a conclusão de que o fato gerador do imposto de renda se materializa com a aquisição da renda ou proventos, desde que disponíveis, caracterizados pelo acréscimo patrimonial, apurado em seu valor líquido dentro de um determinado período de tempo.

6.5 NATUREZA JURÍDICA DOS JUROS MORATÓRIOS

Adentrando na análise específica sobre a incidência do

imposto de renda sobre juros moratórios, de suma importância se faz definirmos a natureza jurídica destes, posto que, uma vez aclarada esta natureza, simples será a conclusão de que a hipótese de incidência do tributo em estudo é inconstitucional.

Para tanto destrincharemos o conceito de juros moratórios, analisando o que é juros e o que é mora, para, então, definirmos a natureza jurídica deste instituto jurídico que advém da teoria das obrigações do direito civil.

Começamos esta análise definindo o que são os juros, para tanto, invocamos os ensinamentos de Maria Helena Diniz41, que dispõe:

Os juros são o rendimento do capital, os frutos civis produzidos pelo dinheiro, sendo, portanto, considerados como bem acessório (CC, art. 92), visto que constituem o preço do uso do capital alheio, em razão da privação deste pelo dono, voluntária ou involuntariamente. Os juros remuneram o credor por ficar privado de seu capital, pagando-lhe o risco em que incorre de não mais o receber de volta.

Assim, os juros, como bem acessório, integrará o

principal toda vez em que, como forma de remuneração, for feito o uso do bem de certa pessoa, ficando esta privada de sua utilização, mesmo que involuntariamente, ou quando, como forma de indenização, vem para ressarcir à privação indevida do bem ao credor.

41 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações - volume 2. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 430.

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188 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Destarte, a doutrina classifica os juros em dois grandes

grupos: os juros remuneratórios e os juros moratórios ou devidos como consectário, conforme doutrina de Fábio Ulhoa Coelho42 que assim ensina:

Devem-se distinguir os juros remuneratórios dos devidos a título de consectário. Remuneratórios são os juros contratuais que o mutuário ou o devedor de valor parcelado devem pagar ao mutuante ou credor. Representam parte da obrigação principal do objeto de contrato. Já os juros devidos a título de consectário são os que o inadimplente deve à parte inocente da relação obrigacional como um dos desdobramentos da indenização.

Desta forma, os juros moratórios, objeto de nosso

estudo, se mostra como um dos efeitos da mora, caracterizado pela sua natureza indenizatória. Para melhor entendermos esta natureza, imperioso se faz a análise da mora e suas consequências.

Para tanto, indispensável se faz a leitura do artigo 394 do Código Civil que dispõe que “Considera‐se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser

recebê‐lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer”.

Neste sentido, ensina Sílvio de Salvo Venosa43:

A mora constitui o retardamento ou mal cumprimento culposo no cumprimento da obrigação, quando se trata de mora do devedor. Na mora solvendi, a culpa é essencial. A mora do credor, accipiendi, é simples fato ou ato e independe de culpa.

Corroborando com este entendimento, Fábio Ulhoa

Coelho44 dispõe que a mora se caracteriza pelo atraso no cumprimento de uma obrigação do devedor que não realiza a contraprestação na data aprazada ou do credor que se recusa a aceitá-la.

42 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: volume 2. 2. ed. rev.

São Paulo: Saraiva, 2005, p. 183. 43 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 316. 44 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: volume 2. 2. ed. rev.

São Paulo: Saraiva, 2005, p. 171.

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A inconstitucionalidade da incidência... 189

Assim sendo, transparente fica a natureza indenizatória da restituição advinda da mora de uma das partes da relação obrigacional, posto que, o descumprimento ou mal cumprimento desta resulta em um dano ao patrimônio da pessoa prejudicada, que contava com o adimplemento da obrigação na data aprazada.

Percebemos isso na análise que Silvio de Salvo Venosa45 elabora acerca dos efeitos da mora, senão vejamos:

O devedor moroso responde pelos prejuízos que a mora der causa. Ele paga, portanto, uma indenização. A indenização não substitui o correto cumprimento da obrigação. Toda indenização serve para minorar os entraves criados ao credor pelos descumprimentos; no caso, cumprimento defeituoso da obrigação. Se houve tão só mora e não inadimplemento absoluto, as perdas e danos indenizáveis devem levar em conta o fato. No pagamento de dívida em dinheiro, por exemplo, os juros e a correção monetária reequilibram o patrimônio do credor. (...)

Desta análise chegamos a melhor conceituação acerca

dos juros moratórios, em nossa opinião, apresentada por Maria Helena Diniz46 que transcreve que “Os juros moratórios consistem na indenização pelo retardamento da execução do débito”.

Por oportuno, ainda, se faz citar que os juros moratórios são classificados em dois grupos: os juros moratórios convencionais e os juros moratórios legais. Os primeiros, também chamados de contratuais, são aqueles advindo do acordo de vontade entre as partes, não podendo exceder ao montante de 12% anuais. Já os segundos, são os devidos mesmo na omissão de acordo entre as partes, e se regularam pela mesmas taxas da mora relativa ao pagamento de tributos federais, tudo conforme ensina Fábio Ulhoa Coelho47.

45 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 319. 46 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações - volume 2. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 433. 47 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: volume 2. 2. ed. rev.

São Paulo: Saraiva, 2005, p. 183.

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190 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Por fim, transparente fica que a natureza jurídica dos

juros moratórios é indenizatória, decorrente dos prejuízos decorrentes do descumprimento da relação obrigacional, razão pela qual se mostra inconstitucional a incidência do imposto de renda sobre estes, como passamos a explanar a partir de agora.

6.6 INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA SOBRE OS JUROS MORATÓRIOS

O debate acerca da inconstitucionalidade da incidência

do imposto de renda sobre juros moratórias, gravita em torno do requisito do acréscimo patrimonial, pois tudo aquilo que assim não se caracterizar, não configurará renda ou proventos, não podendo, desta maneira, serem alcançados pela incidência do Imposto de Renda do artigo 153, III, da Constituição Federal e ratificada e complementada pelo art. 43 do Código Tributário Nacional.

É o que ocorre com as indenizações, conforme ensina Roque Antonio Carrazza48:

Tal se dá com as indenizações, que não tipificam rendas tributáveis por meio de IR, já que nelas se mostra todo ausente este sentido de acréscimo patrimonial. Melhor esclarecendo, nas indenizações transparece a vocação meramente compensatória ou reparatória por perdas sofridas por uma pessoa em decorrência do fato de outra haver se comportado de modo contrário ao devido.

De fato, a indenização se presta para reestabelecer o

equilíbrio patrimonial que tenha sido atingido por um dano causado por outra pessoa, ficando esta obrigada a reparar o prejuízo causado. Desta maneira, não há como se considerar a indenização como um acréscimo patrimonial, posto que esta tem a função de reparar danos causados ao patrimônio49, ou seja, reagregar aquilo que foi perdido por conduta danosa de outrem.

48 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 191. 49 CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros,

2009, p. 191.

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A inconstitucionalidade da incidência... 191

Em suma, é transparente que a indenização, de qualquer modalidade, não figura como um acréscimo patrimonial, mas sim como um ressarcimento aos danos causados ao patrimônio do contribuinte, não revelando, desta forma, sua capacidade contributiva.

Neste diapasão, a capacidade contributiva se mede pela disponibilidade de riqueza nova auferida em determinado período de tempo, levando-se em conta o mínimo existencial do contribuinte para que não se exceda os fins da tributação. Assim, sabendo-se da natureza das indenizações, claro fica que esta não caracteriza capacidade contributiva50.

Além do princípio constitucional da capacidade contributiva, uma eventual tributação de quantia advinda de verba indenizatória pelo Imposto de Renda, também caracterizaria expressa violação ao princípio da vedação ao confisco, também, preceito constitucional que restringe a atuação do legislador.

Ora, autorizar que o legislador infraconstitucional decrete a incidência do Imposto de Renda sob verbas indenizatórias, seria o mesmo que permitir que este, ao seu arbítrio, adentrasse na esfera patrimonial do contribuinte, passando assim a constituir um confisco por parte do Estado51, o que é vedado pela atual Constituição.

Então, é transparente que qualquer dispositivo infraconstitucional que determinasse a tributação dos valores advindos de verbas indenizatórios caracterizaria séria violação ao preceitos constitucionais que orientam e limitam a ação do legislador na determinação das hipóteses de incidência do Imposto de Renda.

Assim sendo, qualquer lei que, porventura, determine esta tributação, deverá ser declarada inconstitucional, é o que nos esclarece Misabel de Abreu Machado Derzi52:

Será inconstitucional, então, a lei federal que tribute a receita representativa de mera reposição de bens patrimoniais

(por terem sido objeto de aplicação de capital da pessoa),

50 Ibid., p. 195. 51 Ibid., p. 196. 52 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Os conceitos de renda e de patrimonio: efeitos da correçao monetaria insuficiente no imposto de renda. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 20.

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192 Temas jurídicos atuais: Volume VI

como pagamento de capital ou reembolso das despesas feitas para a produção da receita. (...)

Como exaustivamente trabalhado no capítulo anterior,

os juros moratórios em sua essência possuem natureza indenizatória, posto que se prestam a ressarcir os danos causados pela demora do adimplemento, ou pelo mal cumprimento, de obrigação quer pelo devedor, quer pelo credor.

Desta forma, como acabamos de aclarar, sendo inconstitucional a hipótese de incidência do Imposto de Renda sobre valores que advenham de verbas indenizatórios, por consequente, inconstitucional será, também, a incidência do imposto de renda sobre juros moratórios.

6.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A guisa de uma conclusão, o imposto de renda tem sua

materialidade definida pelos aspectos constitucionais, e, como pressuposto o incremento patrimonial, assim, guardando relação direta com a capacidade econômica do sujeito passivo.

Ao que se observa, o exercício da competência da União para instituir o imposto de renda e proventos de qualquer natureza, não se justifica fora do eixo, o qual se denomina acréscimo patrimonial.

Assim, a incidência do imposto de renda deve ser aferida mediante a identificação da natureza dos vários elementos que compõe valores recebidos pela totalidade, ou seja, na composição do montante recebido pelo contribuinte, deve-se identificar claramente a natureza de cada encargo financeiro, de sorte que os juros moratórios, por sua natureza, guardam um elemento de reparação do patrimônio do contribuinte do imposto de renda, na medida em que, o importe pago a título de juros de mora representa, sobretudo paga pelo atraso no pagamento, evidenciando, assim, sua natureza reparatória, e, portanto, não agregando valor ao patrimônio do contribuinte, não se justificando, assim, a incidência do imposto de renda.

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A inconstitucionalidade da incidência... 193 6.8 REFERÊNCIAS CARRAZZA, Roque Antonio. Imposto sobre a Renda (Perfil

Constitucional e Temas Específicos). 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

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MACHADO ,Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

SABBAG, Eduardo de Moraes. Manual de direito tributário. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

AMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

______. Imposto de Renda: Regime Jurídico. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.); NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord.); MARTINS, Rogério Gandra da Silva (Coord.). Tratado de direito tributário: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2011.

COSTA, Regina Helena. Principio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2003.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002.

BALEEIRO, Aliomar de Andrade. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações - volume 2. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil: volume 2. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2005.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

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= VII =

A CRISE NA DEMOCRACIA NO ESTADO MODERNO BRASILEIRO

Diogo Valério Félix*

Simone Caroline Mauad**

7.1 NTRODUÇÃO No âmbito familiar, social, midiático e até mesmo

acadêmico, emprega-se a palavra democracia como algo corriqueiro, compreendido e significado por todos, sem a indagação de sua real definição nos dias atuais e sua constituição significativa ao longo da história da humanidade.

A democracia percorreu um longo caminho desde a sua emergência na Grécia Antiga encontrando-se hoje numa encruzilhada frente ao aumento da exclusão social, fragilidade da representação política, insuficiência do funcionamento das instituições jurídicas e ausência de espaços públicos de debate.

Frente ao entendimento que a democracia não consiste em mero instrumento de escolha de governantes, nem com ele se confunde, ao passo que o exercício da soberania popular não se esgota no momento do voto, a presente investigação se direcionará, primeiramente, a uma breve explanação dos

* Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (2008). Mestrado em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (2012), tendo como linha de pesquisa os direitos da personalidade e seu alcance na contemporaneidade. Defendeu a dissertação Crítica a Teoria Clássica dos Direitos da Personalidade. Atualmente é professor da UNICESUMAR - Centro Universitário de Maringá e da Faculdade Cidade Verde – FCV. Coordenador do Curso de Pós Graduação em Planejamentos e Projetos Ambientais da Faculdade Cidade Verde - FCV. Integrante da Rede Internacional de Estudos Schmittianos (RIES), composta por especialistas de diversos países. Tem experiência na área de Teoria Geral do Direito e Filosofia do Direito. ** Graduada em Direito pela UniCesumar – Centro Universitáro de

Maringá – PR. Endereço eletrônico: [email protected]

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A crise da democracia... 195 diversos entendimentos de democracia, para posteriormente tratar dos modelos representativos de democracia frente à soberania popular no decorrer da historicidade humana.

A hipótese que orienta o presente trabalho é substancialmente a crise da democracia brasileira, reduzida a mera normalização das instituições políticas, por intermédio da crise das instituições jurídicas, bem como do espaço público, enquanto arena de debate, onde os argumentos serão lançados à apreciação política.

7.2 DEMOCRACIA NA FORMAÇÃO DO ESTADO MODERNO

A palavra democracia tem origem grega, sendo formada

pela união do termo demos que significava povo e kratia (de kratos) que significava poder, ou seja, o poder nas mãos do povo, o direito popular de participar (via debate e decisão) da política de uma comunidade1. Dessa forma, tomando a etiologia da palavra, a democracia vinculava-se originalmente ao poder de decisão, soberania popular e distribuição equitativa de poderes de decisão e de execução. Todavia, esse conceito apresentou diferentes representações ao longo do contexto histórico humano, sofrendo mudanças no decorrer da Antiguidade Clássica, na Idade Moderna e no período contemporâneo.

Bobbio2 explica que, desde a Idade Clássica o termo democracia foi empregado para designar uma das formas de governo, ou melhor, um dos diversos modos com que pode ser exercido o poder político, especificando na atualidade uma forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo.

De acordo com a Teoria Clássica, a democracia é a forma de governo pela qual o poder é exercido por todos os cidadãos juridicamente assim considerados, contrapondo a monarquia e a aristocracia, regimes nos quais o governo incumbe, respectivamente, a um só e a poucos. A Teoria Medieval, de origem romana, acrescenta o elemento soberania ao poder do

1 CABRAL NETO, Antônio. Democracia: velhas e novas controvérsias. Estudos de Psicologia. v.2, n.2, p.287-312, 1997. 2 BOBBIO, Noberto. Democracia. In Dicionário de Política. BOBBIO, Noberto; MATTEUCI, Nicola; e PASQUINO, Gianfranco. São Paulo. Editora Unb. 5. ed., 2004. p. 319-329.

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povo, que se torna representativo ou é derivado do poder do príncipe. Por fim, a Teoria Moderna, ou Teoria de Maquiavel, distingue as formas básicas de governo: a monarquia e a república, equiparando essa última à democracia3.

As democracias gregas, que correspondiam a uma

aristocracia, eram classificadas como democracias diretas, visto que os cidadãos reuniam-se em assembleias para resolver assuntos do governo da cidade. Em Atenas, berço da democracia direta, o povo reunia-se no Ágora (praça pública central) para o exercício direto e imediato do poder político (o Ágora pode ser comparado ao que se compreende nos tempos modernos como parlamento). Todavia, o comparecimento à assembleia era permitido apenas aos indivíduos do sexo masculino, com mais de dezoito anos, filhos de pai e mãe atenienses.

A democracia ateniense foi, dessa forma, marcada por fortes elementos de exclusão, na medida em que não se estendia a toda população. Dela foram excluídos os metecos – estrangeiros domiciliados em Atenas, na sua grande maioria gregos de outras regiões - que, mesmo estando obrigados a pagar impostos e a prestar o serviço militar, tinham vedada a participação em cargos públicos por não pertencerem à demos. Foram igualmente excluídos os escravos, que constituíam a grande parte da população, as mulheres e os jovens com idade inferior a dezoito anos [...] Os estudos que tratam dessa problemática destacam a existência de indícios os quais sugerem que apenas um número reduzido de cidadãos exerciam o direito de falar na Assembléia. Era depositada em alguns líderes uma certa credibilidade no sentido de formular as linhas da conduta política a ser seguida. Entretanto, a decisão sobre a adoção ou não dessa política

cabia sempre à assembléia popular e não ao líder4. Dessa forma, a democracia ateniense formalmente

assegurava a igualdade política a todos os cidadãos, mas, no plano real também acabava expressando o caráter limitativo da participação política.

3 Idem. 4 CABRAL, p.289.

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A crise da democracia... 197

Após o esvaecimento da experiência democrática dos gregos antigos (guerra ocorrida entre os anos 431 e 404 a.C.), os ideais democráticos praticamente desapareceram do cenário político, instaurando-se, por toda a Idade Média o absolutismo (sustentáculo a governos despóticos)5. Dessa forma, a democracia ressurge no panorama político, somente dois mil anos depois, com o constitucionalismo moderno, por meio da democracia representativa, no qual o povo passou a não participar diretamente da tomada de decisão sobre os temas de seu interesse, mas a escolher representantes que deveriam representá-los e tomar tais decisões.

Nesse contexto, como forma de o povo ser soberano, decidir e ter poder, mesmo sendo numeroso e espalhado em grande território, passa a instaurar-se o regime representativo de democracia, no qual a vontade do povo passa a ser expressa em órgãos competentes e representantes, fundados e legitimados no consentimento da maioria dos cidadãos. Assim, na democracia indireta ou representativa mantém-se a soberania popular, via vontade geral, o sufrágio universal, com pluralidade partidária e de candidatos, separação dos poderes, regime presidencialista, limitação das prerrogativas do Estado e a igualdade de todos perante as leis6.

Já a democracia semidireta trata-se de uma modalidade em que se alternam as formas clássicas da democracia representativa, aproximando-a para da democracia direta idealizada e praticada pelos gregos. Configuram-se como institutos representativos da democracia semidireta o referendum, o plebiscito, a iniciativa, o voto popular e o recall, direcionados a garantir a intervenção e poder de decisão popular7.

Visto que a essência da democracia funda-se na ideia de que a decisão deve abranger a escolha da maioria (de maneira a cumprir a função de ser modelo de governo eficiente para o povo), que cabe ao povo tomar as decisões políticas de interesse relevante (de forma direta ou indireta, por meio de representantes eleitos) e que a democracia depende

5 CABRAL, p.289. 6 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. O princípio democrático no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. 7 Idem.

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diretamente do contexto político, histórico, cultural, econômico e ideológico de cada país, buscou-se demonstrar nesse trabalho, como o conceito de democracia sofreu transformações no decorrer da história da humanidade e se faz presente na representação política brasileira.

7.2.1 O contrato social como instrumento de instituição do Estado Liberal

Avaliar o processo histórico que refletiu na formação do

atual Estado Democrático de Direito, consiste em analisar a forma do sistema governamental despótico, regime comum na maioria dos Estados antes do processo de democratização no final do século XVIII, além de compreender sob a ótica dos filósofos racionalistas da época, a transformação do homem natural para o homem civil, na busca por direitos sociais negados por um Estado totalitário.

Os sinais iniciais ocorreram com a Revolução Francesa no final do século XVIII, conhecido como o “século das luzes”, pois segundo Florenzano foi o marco da queda do Regime Absolutista, da separação do Estado da Igreja, bem como o desenvolvimento do pensamento filosófico e científico baseado no racionalismo, individualismo e liberdade absoluta do homem8.

Contudo, com a dissolução da monarquia, houve a implantação do sistema capitalista, como resultado da grande expansão do mercado de capitais, desse modo, a liberdade positiva que o homem ansiava fervorosamente iria deixar de ser absoluta, sendo assim em conformidade com Hobbes no dizer que é da natureza do homem ser guiado por um líder, com o intuito de colocar limites aos instintos naturais que pertence a ele desde o nascimento, pois da mesma forma que o rebanho de ovelhas precisa de um pastor para guiá-las, o homem precisa de um soberano9.

Nesse sentido, segundo Rousseau, o homem ao sair de seu estado de natureza, ao qual lhe é movido pelo instinto de justiça, encontra-se a necessidade de controlar suas ações por

8 FLORENZANO, Modesto. As Revoluções Burguesas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981, p.24. 9 HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, formas e poder de um estado eclesiástico e civil. tradução Rosina D’Angina; consultor jurídico Thélio

de Magalhães. São Paulo: Martim Claret, 2009,

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A crise da democracia... 199 meio da moralidade, razão pela qual outorga o direito ilimitado ao qual gozava anteriormente, para obedecer às leis impostas por um soberano10.

A esse respeito para Rousseau, as leis são as formas de liberdade que o homem delegou a si, mas, diferentemente da Idade Média, onde a liberdade é faculdade de querer e não querer, independentemente da razão, fato que, na modernidade a liberdade se traduz no sentido negativo11.

Corroborando esta ideia, Locke afirma que, o homem é um ser livre para adquirir e administrar os bens de acordo com os próprios interesses, mas que esta faculdade não é absoluta, pois não lhe é permitido atentar contra a vida de outrem, segundo seus instintos naturais para defender a propriedade12.

Há que se observar que na concepção do mundo, segundo o pensamento cristão, o próprio Deus outorgou leis para limitar as ações humanas, ora, os direitos naturais são à base fundamental da elaboração dos direitos civis, que nada mais é do que a vontade geral para a formação do contrato social.

Assim, continua o pensamento de Locke13:

O estado de natureza tem para governá-lo uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida, saúde, liberdade ou posses. Pois sendo todos os homens artefato de um mesmo Criador onipotente e infinitamente sábio, todos eles servidores de um Senhor soberano e único, enviados ao mundo por Sua ordem e para cumprir Seus

10 ROUSSEAU, Jean Jacques. O Contrato Social: princípios do direito político. Tradução de Edson Bini. Obra de 1985. Bauru: EDIPRO, 2. Ed, 2015, p.24. 11 ZENNI, Alessandro Severino Vallér. A Crise do Direito liberal na Pós-Modernidade. Porto Alegre: Antonio Sérgio Fabris Editor, 2006, p. 30 apud VALLERZENNI, Alessandro Severino; FÉLIX, Diogo Valério Crítica à teoria clássica dos direitos da Personalidade. apresentação, Prof. Dr. Elimar Szaniawskii. 2. Ed. Maringá, PR: HumanitasVivens, 2015, p.29. 12 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o governo. Tradução Julio Fischer. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. – (Clássicos), p. 384-385. 13 Idem.

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desígnios, são propriedade de Seu artífice, feitos para durar enquanto a ele aprouver, e não a outrem.

Para Hobbes, viver em sociedade é estar em guerra, e

somente o Estado, a geração do grande Leviatã, - o soberano absoluto e ser mortal na terra -, ou somente Deus – ser único e imortal - são capazes de assegurar a paz e a defesa dos povos14.

Na concepção de Hobbes15, temos como exemplo as formas de se exercer o poder:

Uma pela força natural, como quando um homem obriga seus filhos a se submeterem e a submeterem seus próprios filhos a sua autoridade, sendo capaz de destruí-los em caso de recusa; ou ainda, como quando um homem poupa, durante a guerra, a vida de seus inimigos, desde que se sujeitem a sua vontade. A outra forma é quando os homens concordam entre si em se submeterem voluntariamente a um homem, ou a uma assembléia de homens, esperando serem protegidos contra todos os outros (...).

Essa situação reflete na forma como o homem abdica

parte da própria liberdade colocando-a nas mãos do Estado, na busca de obter proteção e o estabelecimento da ordem no meio social vivido, por esta razão originou-se o contrato social.

Desse modo, o Estado civil deve agir com fulcro na legalidade dos atos, isso quer dizer que “a lei é direto para o dominante e dever para o dominado (...)”.16

Em virtude dos pactos, Rousseau17, assevera:

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum à pessoa e os bens de cada associado e pela qual cada um se unindo a todos obedeça, todavia, apenas a si mesmo e permaneça tão livre como antes. Eis o problema fundamental para qual o contrato social oferece a solução. As cláusulas desse contrato são de tal forma determinadas pela natureza do ato que a menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito, de sorte que, mesmo sendo enunciadas de maneira formal, são em todas as partes as mesmas, em todas

14 HOBBES, p.126. 15 Ibidem, p.127. 16 CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 2008, p.87. 17 ROUSSEAU, p.20.

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A crise da democracia... 201

as partes tacitamente admitidas e reconhecidas, de modo que sendo o pacto social violado, cada um retornaria aos seus primeiros direitos e retomaria sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara a favor daquela.

Saliente-se que, ao homem a decisão de alienar sua

liberdade natural, para viver uma liberdade negativa não poderia fazer de qualquer maneira, isto é, deveria haver uma garantia do pactuante o cumprimento do acordo, pois a qualquer deslize o homem poderá entrar em guerra como dispõe Locke18, já que seus instintos naturais falarão mais alto, paralelamente segundo Hobbes, “se não for instituído um poder considerável para garantir a sua segurança, o homem, para protege-se dos outros, confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade”19 logo não aceitará tão sutilmente o rompimento daquele (Estado) ao qual outorgou o poder, gerando um conflito entre a vontade geral e os interesses do líder.

Quanto a Maquiavel20, o contrato social na visão do Príncipe, poderá ser obtido o poder de dominação por duas matrizes de combate: uma, por meio das leis, outra pelo uso da força. A primeira é própria dos homens; a segunda, dos animais. Assim, para o filósofo, o príncipe tem que saber dominar as duas naturezas, para então atingir o objetivo final, o controle da nação, mesmo que para isso tenha que muitas vezes se utilizar da força e da astúcia contra a plebe.

Observe-se que, por este viés o contrato social para Maquiavel, era uma forma política de dominação, acreditava-se que a essência da natureza humana estava na maldade e que os súditos somente obedecem ao seu soberano quando forçados, por isso, a importância do contrato social.

Portanto, com a queda do absolutismo, e início da era moderna formaram-se às instituições, assim o homem deixou seu “estado natural” para se tornar um ser político-social, utilizando dos mecanismos do contrato social ao qual lhe

18 LOCKE, p. 395. 19 HOBBES, p.123. 20 MAQUIAVEL, Nicolau.O príncipe; tradução de Maurício Santana

Dias; prefácio de Fernando Henrique Cardoso. São Paulo: PenguinClassics Companhia de Letras, 2010, p.105.

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conferiu a possibilidade de discutir a proteção da propriedade privada e dos demais conflitos21.

Enfim, diante dessa mudança será possível analisar o desenvolvimento do homem e do Estado, quais os interesses serão colocados em jogo quando a discussão se direciona para a convivência do homem em uma sociedade quando se verifica a substituição do modelo de produção, possibilitado e fomentado pelo próprio direito como consequência do contrato social, cujo aspecto fundamental está no interesse de obter e defender a propriedade privada como fonte de riqueza, e no bem estar social.

7.2.2 Revolução industrial: do estado liberal ao estado do bem-estar-social

O final do século XVIII trouxe uma mudança geral no

cenário geopolítico, pois com a forte ascensão do capitalismo impulsionado pela Revolução Industrial, os regimes até então monárquicos não conseguiram se adaptar ao novo sistema liberal político e mercantil, assim a queda dos Reis foi inevitável, razão pela qual no novo sistema econômico não era mais necessário o trabalho manual, uma vez que as máquinas vieram pra substituir e garantir uma mão de obra mais barata e vantajosa para a nova classe de comerciantes e consumidores22.

Com a substituição do modelo de produção os Estados saíram de uma Monarquia (Estado Absolutista) no qual o poder se concentra nas mãos de um só governante perante o povo de acordo com leis fixas e estabelecidas23, para se tornar um Estado liberal, com funções e poderes limitados as classes possuidoras24. Esse período foi fortemente influenciado pelo individualismo filosófico e político vivido à época (Revolução

21 HOBBES, op. cit., p.124. 22 BRAVO, Maria Inês Souza. In: PEREIRA, Potyara A. P. (Orgs). Política social e democracia. 2.ed. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro:

UERJ, 2002. 254p. 23 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. Do espírito das leis: introdução e notas de GonzagueTruc; tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. 2ª. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p.31. 24 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução Marco

Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.07.

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A crise da democracia... 203 Americana de 1776 e Francesa de 1789) e pelo liberalismo econômico, no qual firmava-se a livre concorrência, a não intervenção estatal e clerical e a institucionalização do direito de liberdade, igualdade e fraternidade25. Dessa forma,

O grande desenvolvimento do pensamento democrático se processou, no entanto, no seio das revoluções burguesas que eclodiram nos séculos XVII e XVIII na Europa. Essas revoluções engendraram e, ao mesmo tempo, se fundamentaram no ideário liberal que, ao lado da democracia moderna, se constitui em produto do capitalismo26.

Conforme Giddens27 “o iluminismo chamou a si a tarefa

de destruir a autoridade da tradição”, pois para os racionalistas a tradição nada mais é que uma criação dos soberanos para se legitimarem no poder28.

Nesse contexto histórico e ideológico, o pensamento democrático liberal trouxe o alvedrio almejado, abrigado no ideário da liberdade de expressão, religião, política, locomoção, crença e liberdade de decidir quem serão os governantes da nação29. Todavia, o aparecimento dos grandes aglomerados urbanos, também representou mudanças nas relações sociais, passando a ser exigido do Estado, maior número de atribuições e intervenções na estrutura política, econômica e social, de modo a compor os conflitos e satisfazer as necessidades de interesses de grupos e de indivíduos30. Nesse contexto, a conformação da ordem social, política e econômica pelo Estado enseja o surgimento do Estado de Direito do Bem Estar Social, que longe da função passiva e não intervencionista, fundamenta-se no prestacional e efetivador das necessidades coletivas essenciais tais como a saúde, educação, trabalho, assistência social, transportes, entre outros.

25 CABRAL, p.289. 26 CABRAL, p. 291 27 GIDDENS, Anthony. O mundo na era da globalização. Lisboa: Ed. Presença, 2000, p.49. 28 Idem. 29 DONALD, Stewart Júnior. O que é liberalismo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990, p.73-74. 30 CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 3. ed.

Salvador: Juspodivm, 2009.

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204 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Nessa conjuntura, o Estado Liberal acabou de

configurando como contemporâneo ao Estado de Direito, surgindo da passagem do Estado Absolutista para as idéias liberais de defesa da liberdade, quer no plano político quer no econômico, social, cultural, filosófico, entre outros31.

O Estado liberal, segundo Bobbio32 “é justificado como o resultado de um acordo entre indivíduos inicialmente livres que convencionam estabelecer os vínculos estritamente necessários a uma convivência pacífica e duradoura.” Isso significa, que o liberalismo relacionava-se com o bem estar físico e metafísico do ser humano, na melhoria da condição de vida, sem a figura do Estado como agente intervencionista nas relações sociais. Nas palavras de Cabral Neto33:

O grande mérito histórico do liberalismo é, no entanto, o reconhecimento da igualdade individual, ainda que essa igualdade seja a igualdade formal. O fato do ideário liberal reconhecer formalmente que todos os homens são iguais perante a lei, representou um significativo avanço para a história da humanidade. Porém, não significou que, na prática, esse direito fosse viabilizado.

Assim, no ideário da igualdade nas relações sociais,

base do pensamento liberal, encontrava-se o desejo pela igualdade de oportunidade e eliminação de privilégios hereditários. Ou seja, por meio da representação política, atender aos interesses da nação e não aos interesses particulares dos representados. Nesse ensejo, acontecimentos históricos, políticos, econômicos e sociais acabaram influenciando as ideias liberais, de modo que muitos autores passaram a questionar seus princípios, possibilitando o surgimento da divisão entre o liberalismo clássico e liberalismo moderno:

Enquanto os primeiros liberais queriam que o governo interferisse o mínimo possível na vida dos cidadãos, o liberalismo moderno passou a acreditar que o governo deveria ser responsável por proporcionar serviços de bem-estar social,

31 Idem. 32 BOBBIO, p.15. 33 CABRAL, p.289 - 294.

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A crise da democracia... 205

como saúde, habitação, aposentadoria e educação, além de gerir a economia ou ao menos regulá-la34.

Dessa forma, se inicialmente os liberais deram ênfase à

liberdade individual, social e fraterno, posteriormente passaram a defender o princípio na esfera econômica, criando a ideia de uma economia de mercado “livre” da influência do governo.

Contudo, visto que o sistema capitalista tem como fulcro a produção de riquezas e, neste viés, somente uma parte dos indivíduos (os empresários) tende a se beneficiar com os lucros, ficando os operários com o papel de realizar a mão de obra. Observa-se, assim, que o sistema liberal passa a ditar os caminhos políticos e econômicos do Estado, embora muitas vezes seja necessário se sobrepor as leis.

Desse modo, um Estado que não cumpre com as leis estará rompendo o compromisso assumido com o povo, pois estará governando contra o texto constitucional e está ação se compara aos governos tiranos, onde a lei é a vontade do ditador. Por esta razão, afirma Locke que “onde não há lei, não há liberdade”35. Sendo assim, a classe menos favorecida será obrigada a cumprir ordens que vão contra suas vontades, pois nesta condição se retira definitivamente a liberdade facultada pelo contrato social.

Para Locke36

sendo todo homem, tal como foi demonstrado, naturalmente livre, sem que nada possa colocá-lo em sujeição a qualquer poder terreno a não ser o seu próprio consentimento, deve-se considerar agora o que entenderemos por uma declaração suficiente do consentimento de um homem, para sujeita-lo às leis de qualquer governo. [...] até que ponto alguém deve ser considerado como tendo consentido, e com isso tendo-se submetido a algum governo, nos casos em que não o tenha expressado de modo algum. [...]

Rousseau, considerado um dos pais da democracia

moderna, em sua obra O Contrato Social, direciona-se a

34 HEYWOOD, Andrew. Ideologias Políticas: do liberalismo ao fascismo. São Paulo: Ática, 2010, p.39. 35 LOCKE, p. 433. 36 LOCKE, p. 491.

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formular as primeiras críticas à democracia representativa, sustentando que:

É nula toda lei que o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei. O povo inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade o uso, que dela faz, mostra que merece perdê-la37.

Para Rousseau o simples ato de votar em eleições não

traduz a expressão da vontade popular. Assim, ao apontar os limites da democracia representativa, o autor acaba propondo a participação popular como eixo das exigências democráticas contemporâneas38.

Locke expõe na obra “Segundo Tratado Sobre o Governo Civil”, que os homens vivem, antes do pacto social, em um estado de natureza no qual todos são livres e iguais, portanto detentores do direito natural à liberdade, à autopreservação e à propriedade (fundada na apropriação da natureza através do trabalho)39. Nesse estado o autor defende que todos os homens têm direito a julgarem aqueles que infringirem os direitos naturais, ou seja, a igualdade natural entre os homens, compreendendo que cada um deve julgar os meios necessários à sua conservação, pois a utilidade dos “meios necessários” é relativa ao indivíduo que julga40, com isso cria-se uma situação conflituosa, onde a forma de garantir tais direitos acaba mesclando-se ao dever de promover um contrato civil em favor do poder político do governo civil, responsável pela manutenção da ordem política41.

O governo civil seria o agente público responsável pela manutenção da soberania do povo (oriunda da vontade dos homens), devendo julgar por meio das leis, consentimento e imparcialidade, os conflitos estabelecidos entre os indivíduos e

37 ROUSSEAU, p.108. 38 Idem. 39LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo - ensaio relativo à verdadeira origem, extensão e objetivo do governo civil. Trad. de E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 35-39. 40 Ibidem, p. 40. 41 Ibidem, p. 64.

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A crise da democracia... 207 sociedades, justamente de modo à evitar os julgamentos individuais do estado de natureza, que tantos conflitos causavam (sendo os magistrados escolhidos pelo parlamento, na Inglaterra desse período).

A partir de tais condições estão articuladas as bases teóricas do Estado Moderno, a partir da centralização política do poder de estabelecer o direito, e a delimitação da esfera estatal com a filosofia política do Liberalismo, que deu origem ao Constitucionalismo moderno42. Opera-se, assim, uma mudança no perfil de atuação do Estado, na medida em que deixa de atuar somente nas atividades clássicas, limitadas pelos direitos individuais de liberdade e propriedade e passa a desempenhar um papel de indutor do desenvolvimento econômico por via direta e articulados de políticas públicas com o objetivo de atender demandas sociais (educação, saúde, previdência, seguro-desemprego). Ou seja, a noção moderna de que a democracia seria o governo por representantes escolhidos pelo povo, com a definição da tripartição do poder e a sua separação43.

Neste contexto surgem as Constituições (que acaba por assumir o status de marco jurídico), a normatização e a positivação dos direitos individuais.

O Estado Liberal nasce sob o signo de liberdade do cidadão. Limitando o poder absoluto do Estado, afirma os direitos individuais e políticos. A ordem econômica se fundamenta no princípio da liberdade de iniciativa e de comércio, assegurando o florescimento da burguesia e a disseminação do regime capitalista. A ação do Estado visa a facilitar e garantir o livre jogo dos negócios, tendo como base jurídica a autonomia da vontade, em que se apóia a liberdade de contrato e de associação44.

Na síntese do Estado Liberal os indivíduos possuem

autonomia para a tomada de decisão sobre o aspecto

42 CAPELLARI, Eduardo. A crise do poder judiciário no contexto da modernidade - a necessidade de uma definição conceitual. Revista Seqüência, n.39, Curso de Pós Graduação em Direito, UFSC, dez/99, p. 09-31. 43 Idem. 44 TÁCITO, Caio. Do Estado Liberal ao Estado do Bem-estar Social, in Temas de Direito Público. V. 1 Rio

de Janeiro: Renovar, 1997, p. 377.

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econômico de suas relações, aprimorando sua experiência social como indivíduo livre que este modelo promove.

Segundo as perspectivas do Estado Liberal, cabe ao ente estatal a garantia dos direitos fundamentais, sobre a letra da segurança da garantia de propriedade, a liberdade contratual e a livre iniciativa. Vale lembrar que, neste modelo de Estado, o poder de decisão de agentes privados não descaracteriza a possibilidade de atuação da autoridade para limitar direitos e, eventualmente conceder benefícios.

A lei, como atuação do Estado, deve garantir a liberdade da pessoa humana e deve limitar a atuação do próprio Estado, de tal sorte a garantir o desenvolvimento natural do homem em todas as suas atividades. donde os três grandes princípios da liberdade, o princípio da legalidade e o princípio da igualdade45.

A principal característica do Estado Social, com relação

ao trato dos sujeitos, é sua marcante propensão ao planejamento de políticas compensatórias que visem amenizar as exclusões sociais que foram firmadas pela distinção das classes sociais e pelo favorecimento de condutas individualistas (pensamento individual) potencializadas pelo liberalismo econômico.

Enquanto no Estado de Direito Liberal os direitos de liberdade eram exercidos e oponíveis contra o Estado, no Estado de Direito do Bem Estar Social os direitos de liberdade e igualdade materiais passam a ser usufruídos perante e por meio do Estado, por conta da assunção, por aquele, do dever de satisfação das necessidades sociais.

7.3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: SOBERANIA POPULAR E REPRESENTATIVIDADE AO EXERCÍCIO DO PODER

No estado democrático de direito, o sufrágio é o voto,

empregado para eleger quem deverá decidir pelo povo. Assim, a democracia vincula-se a um método político que se caracteriza, fundamentalmente, pela competição pelos votos do povo nas eleições periódicas de escolha daqueles que tomam

45 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 1995

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A crise da democracia... 209 as decisões46. Na configuração da representação política entrelaça-se o legislativo como lócus da representação, as eleições, eleitores, políticos eleitos e partidos políticos e a relação entre representantes e representados. Assim, a expressão representatividade significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, devem ser tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade47.

Morais48 enfatiza que o Estado para ser Democrático de Direito deve atender os princípios da constitucionalidade, democracia, sistema de direitos fundamentais, justiça social, igualdade, divisão de poderes, legalidade, segurança e certeza jurídica.

Locke em sua obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil, escrita em 1689, defende que a formação do Estado não assinala a transferência dos direitos de todos os súditos a ele, mas somente os direitos de criar leis (poder legislativo) e impô-las (poder executivo). Para esse autor, o poder soberano deve permanecer nas mãos dos cidadãos competindo ao Estado, garantir o máximo de liberdade possível a cada cidadão49. Montesquieu em O Espírito das Leis, datado de 1748, defende o governo constitucional como o melhor mecanismo para garantia dos direitos dos cidadãos. Para esse autor, a divisão dos três poderes: executivo, legislativo e judiciário no governo representativo, deve estar atrelado à soberania popular por meio da participação eleitoral dos cidadãos, ou seja, processo de autorização política50.

46 LAISNER, Regina 1A participação em questão: ponto ou contraponto da representação na teoria democrática? Estudos de Sociologia, Araraquara, v.14, n.26, 2009, p.17-35. 47 BOBBIO, Norberto. O futuro da Democracia.Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. 48 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 2 ed., São

Paulo: Atlas, 1998. 49 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Tradução: Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. São Paulo: Editora Vozes, 2002. 50 MONTESQUIEU, Charles Louis de. O Espírito Das Leis. In Coleção

Os Pensadores - Montesquieu. São Paulo, Abril Cultural, 1973.

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210 Temas jurídicos atuais: Volume VI

O conceito de soberania popular deve-se à apropriação republicana e à revalorização da noção de soberania surgida no início da Era Moderna e inicialmente associada aos déspotas que governavam de modo absolutista. O Estado, que monopoliza os meios da aplicação legítima da força, é concebido como um concentrado de poder, capaz de prevalecer sobre todos os demais poderes do mundo51

Nesse contexto, o Estado Democrático de Direito não

representaria apenas o somatório dos direitos individualista, apregoados no Estado Liberal, e dos direitos sociais, do Estado de Bem-Estar Social. Habermas explica o Estado Democrático de Direito visa buscar uma nova forma de legitimação:

É que o Direito não somente exige aceitação; não apenas solicita dos seus endereçados reconhecimento de fato, mas também pleiteia merecer reconhecimento. Para a legitimação de um ordenamento estatal, constituído na forma da lei, requerem-se, por isso, todas as fundamentações e construções públicas que resgatarão esse pleito como digno de ser reconhecido52.

Para Habermas o direito moderno fornece igual

tratamento aos cidadãos, quando essa igualdade é firmada em leis gerais e abstratas.

Frente ao aumento contingencial da população, diversidade e pluralismo de assuntos a serem discutidos e inviabilidade de organizar milhões de cidadãos em um mesmo local para deliberações, a democracia exercida de maneira direta tornou-se inviável para os dias atuais. Nesse contexto, a democracia representativa surgiu e instaurou-se como alternativa à democracia direta. Assim, por meio da delegação de representantes (vereadores, prefeitos, deputados e senadores), por tempo determinado, o povo soberano deve ter sua vontade respeitada por meio de representantes eleitos. Neste modelo democrático, cabe ao Estado “[...] representar a

51 HABERMAS, Jurgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. São Paulo: Loy, 2004, p. 282. 52 HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003c.

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A crise da democracia... 211 vontade do povo, ou melhor, a vontade da maioria que o elegeu.”53

Tem-se defendido que o Brasil enfrenta uma crise de legitimidade do Poder Legislativo, causada pelo distanciamento entre representantes e representados e pela incompatibilidade entre a vontade popular e a vontade expressada pela maioria parlamentar54

A Constituição Federal de 1988 prescreve, dentre seus princípios e diretrizes, “a participação da população mediante organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”55 instituindo a participação social enquanto princípio constitucional por meio da democracia direta e representativa, por meio da opinião e fiscalização. O que implicitamente exige-se que a população tenha direito à informação, com possibilidade de ingeri-la:

O direito às informações de que o Estado dispõe fundamenta-se no princípio da publicidade dos atos administrativos e na eliminação dos segredos públicos. Neste sentido, o direito à informação constitui um indicador significativo dos avanços em direção a uma democracia participativa: oponível ao Estado, comprova a adoção do princípio da publicidade dos atos administrativos; sob o ponto de vista do cidadão, é instrumento de controle social do poder e pressuposto da participação popular, na medida em que o habita para interferir efetivamente nas decisões governamentais e se analisado em conjunto com a liberdade de imprensa e banimento da censura, também funciona como instrumento de controle social e poder56.

53 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4.ed. São Paulo: Martins fontes, 2000, p. 33. 54BITTENCOURT, Caroline Müller; DORNELLES, Tiago. A Insuficiência do modelo representativo: a necessária construção de uma democracia efetiva à luz de “novas formas” de participação popular. In: GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Humanos e Participação Política. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2013. v. IV. 55 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000, art. 204. 56 GRAF, Ana Cláudia Bento. O direito à informação ambiental. Curutuba: Jyruá, 1998, p.91

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212 Temas jurídicos atuais: Volume VI

O processo de democratização ocorrido no contexto

político brasileiro, na década de 1990, favoreceu a institucionalização de movimentos sociais, principalmente no âmbito dos conselhos do poder público municipal (Estatuto da Cidade, Plano Diretor, Orçamento Participativo e Conselhos Municipais de Saúde, Educação, Assistência Social, etc.)

Nesse contexto o controle social na sociedade brasileira contemporânea pode ser compreendido sob duas perspectivas: relacionada ao controle do Estado sobre os cidadãos, e o controle dos cidadãos sobre o Estado. Na perspectiva que situa o Estado como instrumento de controle sobre a sociedade, onde o Estado constitui-se em um agente que garante que os homens não se autodestruam, visto que a natureza humana, segundo Thomas Hobbes57 é potencialmente competitiva, desconfiada e egoísta.

Nessa direção, Bobbio58 salienta duas formas de controle social, sendo a primeira relacionada ao controle externo, relativo aos mecanismos de repressão utilizados para a manutenção da ordem, tais como legislações, tribunais, políticas, etc. Já no segundo, relativo a um controle interno que utiliza os valores e crenças a favor de uma “socialização que naturaliza as desigualdades sociais e individuais, que justifica privilégios e que consente discriminações”59

A outra tendência concebe o controle social como um controle exercido pela sociedade civil sobre o Estado, pode ser exercido na dimensão da natureza técnica que fortalece as estruturas estatais, visto que, acentua a fiscalização administrativa na aplicação de recursos, e outras de natureza sócio-política que pressupõe o envolvimento da sociedade civil nos assuntos públicos, aliado a um ideal radicalmente democrático, com ênfase no cotidiano.

57 HOBBES, p.123. 58 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997. 59 CAMPOS, Edval. Assistência Social: do descontrole ao controle social. Revista Serviço Social e Sociedade. n°88, ano XXVI, nov. 2006,

p. 101-121

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A crise da democracia... 213 7.4 DEMOCRACIA NO ESTADO BRASILEIRO: CRISE DEMOCRÁTICA E A PARTICIPAÇÃO POPULAR

A primeira forma de governo adotada pelo Brasil foi a

monarquia, visto que em 1822, com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, foi assinado na cidade do Rio de Janeiro, a Ata de Aclamação de D. Pedro como Imperador Constitucional, adotando-se no país, a monarquia hereditária. Assim, em 1891 foi promulgada a primeira Constituição Republicana dos Estados Unidos do Brasil, na qual estabeleceu-se como forma de governo a República Federativa, constituída pela união perpétua e indissolúvel dos seus Estados via regime representativo60.

Todavia, com a Revolução de 1930 e instauração do Governo Provisório, Constituição de 1891 foi substituída pelo Decreto n.º 19.398 e, posteriormente, pela Constituição Provisória de 1934. Com a decretação do Estado Novo e a permanência de Getúlio Vargas no poder, foi revogada a Constituição de 1934 e "promulgada" a Constituição de 1937 que, frente ao Golpe Militar de 1964, foi substituída pela Constituição de 1967. Assim, como a constituição de 1937, a de 1967, tenteou ao autoritarismo apesar de afirmar a existência dos três poderes. Em 1985, iniciou um período de transição denominado "A Nova República", sendo eleita a Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, que em 1988 promulga a Constituição democrática e social.

Essa constituição passa a estabelecer em seu primeiro artigo que a República Federativa do Brasil caracteriza-se como Estado Democrático de Direito, baseada na participação livre e igualitária dos cidadãos no processo de tomada de decisões políticas. Desse modo, prevaleceu no texto constitucional brasileiro a chamada legitimação substancial dos objetivos fundamentais (artigos. 1° e 3°), na fixação das regras que controlam as formas de acesso e exercício do poder (artigos. 14 a 17, que versam sobre os direitos e os partidos políticos) e no estabelecimento do controle de constitucionalidade (artigos. 52, X; 97; 102, I, a, III, a, b, c; 125, § 2°).

60 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. O princípio democrático no ordenamento jurídico brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 43,

jul. 2000.

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214 Temas jurídicos atuais: Volume VI

Todavia, apesar da promulgação dessas normativas, a

sociedade ainda convive nos dias atuais com as desigualdades sociais, econômicas e educacionais, favorecendo, principalmente entre os indivíduos das classes mais inferiores, o sentimento de abandono e desilusão, pois o Estado não está cumprindo com o dever de manter a ordem e o progresso ao qual lhe foi delegado pelo sufrágio universal, ora, “aquele que ordena e estabelece um regime, como primeiro fundador de um Estado (seja ele uma monarquia, uma aristocracia ou uma democracia), precisa ter poder soberano sobre o povo, durante todo o tempo em que permanecer no cargo” 61, tendo em vista que todo o poder do soberano foi dado pelo povo devendo ser utilizado em benefício do povo a fim de atender os interesses coletivos e não uma pequena classe abastada.

Essa crise cultural, educacional econômica e, mais amplamente, social acaba por determinar rachaduras nas paredes institucionais e rompimento no verniz das ideologias62.

As formações ideológicas estariam, assim, relacionadas com a divisão de classes, favorecendo uma (privilegiada) e se impondo à outra (espoliada na própria base da sua existência material). Tal dominação, evidentemente, não será eterna, pois as contradições da estrutura acabam rompendo a pirâmide do poder e, conscientizados, nisto, os que carregam o peso da opressão, abre-se espaço à contestação da ideologia “oficial”.

A falsa consciência introduz-se nas análises da ideologia, sobretudo a partir das contribuições marxistas. Não se trata de má fé, assinalam Marx e Engels, de vez que a má fé pressupõe uma distorção consciente e voluntária; a ideologia é cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a forjaram. O “discurso competente”, em que a ciência se corrompe a fim de servir à dominação, mantém ligação inextrincável com o discurso conveniente, mediante o qual as classes privilegiadas substituem a realidade pela imagem que lhes é mais favorável, e tratam de impô-la aos demais, com todos os recursos de que dispõem (órgãos de comunicação de massas, ensino, instrumentos especiais de controle social de que participam e, é claro, com forma destacada, as próprias leis).

61 HOBBES, p. 325. 62 HOBBES, p.13.

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A crise da democracia... 215 A ideologia, portanto, é uma crença falsa, uma “evidência” não refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade.

Lyra Filho63 explica que

A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou acima das leis. Entretanto, a legislação deve ser examinada criticamente, mesmo num país socialista, pois, como nota a brilhante colega Marilena Chauí, seria utópico/ilusão) imaginar que, socializada a propriedade, estivesse feita a transformação social completa.

Assim, apesar da constituição dirigente encontrar-se

intencionalmente direcionada a garantir os direitos sociais à efetiva educação, saúde, moradia, trabalho digno, lazer, segurança e previdência social, as finalidades instituídas nos programas não são atingidas, e em alguns casos, sequer buscadas, ocasionando, no Estado Brasileiro, um distanciamento entre a prática estatal e as promessas/aplicabilidade contratual.

Compreende-se então que, o desprezo aos direitos sociais humanos, via implementação das políticas públicas leva o Estado ao descrédito, bem como ao formalismo monopolista tendencioso (projeção para satisfação de interesses de determinados grupos sociais) contribui, direciona, favorece e incentiva a inoperância, a ingerência e a insuficiência do Estado na aplicabilidade dos fundamentos essenciais de sobrevivência e dignidade.

7.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil elegeu-se o regime democrático de direito,

mediante a democracia representativa, pela qual, deliberações coletivas devem ser tomadas não de modo direto pelos integrantes da sociedade, mas por meio de seus representantes, eleitos por voto. Todavia, a Constituição Brasileira de 1988

63 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 03-04.

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216 Temas jurídicos atuais: Volume VI

instituiu formas de Democracia Participativa, de modo a possibilitar uma participação democrática mais descentralizada e o controle social das políticas públicas.

Nesse contexto, o controle social acaba sendo permeado pela dimensão ética mas, direcionado pela visão ideológica da democracia participativa e possibilidade de monitoramento, fiscalização e avaliação da efetividade.

Dessa forma, a crise da democracia brasileira vincula-se a inoperância das instituições e ausência de garantias aos direitos fundamentais do cidadão, evidenciando que o Estado brasileiro foi construído para não funcionar. O Soberano não quer que o povo se manifeste e participe ativamente das decisões tomadas, pois se quer suprimir o debate, já que uma discussão entre o ente público e o povo seria uma forma de contrato, pois se estaria negociando o que é melhor para cada lado, sem que ajam conflitos de interesse, mas sim concessão entre ambos os lados, e não apenas o interesse do soberano se sobressair.

Em outras palavras, o Brasil apresenta políticas públicas de incentivo social dentre outros, todavia, não estão funcionando corretamente (inoperância estrutural, funcional e representacional) possibilitando corrupção e uma população apática, sem interesse em questionar, participar dos atos do governo e reivindicar por melhoras.

Como alternativas à superação desta crise, faz-se necessário um resgate à cidadania política, à cultura cívica e uma nova consciência a respeito do sufrágio, pois a democracia representativa expressa um importante mecanismo de efetivação dos direitos individuais e coletivos, não devendo ser utilizada pelo soberano como instrumento de manutenção do poder.

7.6 REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Caroline Müller; DORNELLES, Tiago. A

Insuficiência do modelo representativo: a necessária construção de uma democracia efetiva à luz de “novas formas” de participação popular. In: GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Humanos e Participação Política. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2013. v. IV.

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