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STVDIVM MAX SCHELER: NOVAS RECEPÇÕES

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ROBERTO S. KAHLMEYER-MERTENS KATYANA M. WEYH

EDUARDO HENRIQUE SILVEIRA KISSE MARCELO RIBEIRO DA SILVA

JOSÉ DIAS (Orgs.)

STVDIVM MAX SCHELER: NOVAS RECEPÇÕES

Vol. II

Primeira Edição E-book

Toledo-PR 2019

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Copyright 2019 by Organizadores EDITOR(A):

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. José Aparecido Pereira – PUCPR Dr. José Beluci Caporalini – UEM

Dra. Lorella Congiunti – PUU – Roma REVISÃO FINAL:

Prof. Ademir Menin Prof. Luciana Bovo Andretto

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Junior Cunha

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi

Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores.

Editora Vivens: Conhecer é Poder! Rua Pedro Lodi, nº 566 – Jardim Coopagro

Toledo – PR – CEP: 85903-510; Fone: (45) 3056-5596 http://www.vivens.com.br; e-mail: [email protected]

Stvdivm Max Scheler: novas recepções, vol. II.

S938 / organizadores, Roberto S. Kahlmeyer-Mertens

... [et al.]. – 1. ed. e-book – Toledo, PR:

Vivens, 2019.

412 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-88-7

1. Filosofia alemã. 2. Filosofia e religião.

CDD 22. ed. 193

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"Lembra-te sempre: ‘Não te deixes perturbar, não cedas’; ‘Não te percas na conversação’/ discussão/ debate/ disputa/ exortação/ louvor/ censura”.

(SHAFTESBURY. Na presença dos homens.

In: Exercícios (Askhmata) Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Unesp, 2016, p.25).

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A Libanio Cardoso, em penhor de amizade e gratidão

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Sumário

Prefácio

Max Scheler: novas recepções ...................................................... 11

Primeira Parte

Primeiro Capítulo Max Scheler e a fenomenologia dos valores Carlos Eduardo Meirelles Matheus ................................................ 25

Segundo Capítulo Reflexiones acerca de una relación olvidada: Rudolf Eucken y Max Scheler Marisol Ramírez Patiño ................................................................... 87

Terceiro Capítulo “Omnia habemus nihil possidentes” Percepção afetiva e valores na fenomenologia de Max Scheler Daniel Rodrigues Ramos ................................................................ 133

Quarto Capítulo Max Scheler e a fenomenologia da essência da religião: O ato religioso por uma renovação religiosa Renato Kirchner Maiara Rúbia Miguel ...................................................................... 193

Quinto Capítulo Scheler e o problema do livre arbítrio Nathalie Barbosa de La Cadena ..................................................... 217

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Segunda parte

Primeiro Capítulo Considerações acerca da crítica scheleriana dirigida a ética de Immanuel Kant Rodrigo Lopes Figueiredo .............................................................. 253

Segundo Capítulo Brentano e Scheler em torno do a priori emocional Vinicius Valero Pereira ................................................................... 271

Terceiro Capítulo Apontamentos sobre a crítica fenomenológica de Max Scheler a ética kantiana e a teoria da apreciação Paulo Ricardo da Silva ................................................................... 293

Quarto Capítulo A fenomenologia em conformidade com aspectos da filosofia de Max Scheler: Apriorismo, amor e pessoa Leila Rosibeli Klaus ......................................................................... 315

Quinto Capítulo A noção de pessoa em Max Scheler: Considerações introdutórias Geder Paulo Friedrich Cominetti .................................................. 355

Sexto Capítulo “A vida psicofísica é una”: Contribuições de Max Scheler à psicologia com bases fenomenológicas Giovani Augusto dos Santos ......................................................... 365

Sétimo Capítulo Direitos humanos: Um ensaio entre Scheler e Arendt Ana Claudia Barbosa Nunes ......................................................... 387

Os autores........................................................................................ 401 Os organizadores ........................................................................... 407

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Prefácio

Max Scheler: novas recepções

Dedicado a Max Scheler, este segundo volume da série Studium vem a lume como contributo ao início de ampla retomada, em solo brasileiro, da recepção científica, ordenada e disseminada por centros de pesquisa, da obra do pensador alemão.

Recepcionar e hospedar um pensamento a ponto de este fixar-se e passar a pertencer a uma cultura filosófica não é algo que promova por iniciativa isolada, a partir do esforço de um ou de poucos. São necessárias levas de tentativas, trabalho persistente de apropriação, operado por muitas mãos, até que o pensamento ‘estrangeiro’ passe a habitar entre nós como familiar. Compreendido assim, o livro ora editado se sabe modesto empreendimento de pesquisadores que, empenhados em conhecer mais o pensamento de Scheler, somam-se a esforços já existentes, creditando a estes seus méritos de emuladores.

No Brasil, até onde nos coube mapear, vale o registro de que encontramos trabalhos sobre Scheler a partir dos anos 1940, como o opúsculo de Gláucio Veiga, editado em agosto de 19461, além de monografias de período próximo, como a do cônego Hélio Lessa Souza, do início da década de 19502. Em ambos os

1 VEIGA, G. A sociologia do saber de Max Scheler - Notas. In: Revista Estudantes (separata). Ago. 1946, s.n. p. 9-17. 2 SOUZA, H. L. A axiologia e o personalismo de Max Scheler. Maceió: Ramalho Editores, 1953.

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casos, pode-se apreciar que as obras de Max Scheler, já traduzidas para o castelhano, e os comentários de Morente, Quiles e Derisi, naquele mesmo idioma, serviram de insumos a este primeiro turno de leituras de nosso filósofo.

É bem documentado o destaque que os articulistas de língua espanhola desempenharam na difusão das ideias schelerianas; embora ligeiramente posterior à dos franceses e mais interessada pela tomada sentimental dos valores e pelo fenômeno do ressentimento, a recepção espanhola de Scheler, influenciada por Ortega y Gasset, floresceu não apenas nos meios ibéricos, mas também entre os latino-americanos, de modo mais consistente nos decênios de 1940-1960 (privilegiando a antropologia filosófica e algo dos temas sociológicos do autor)3.

Em nosso país, entre os anos 1970 e os 2000, foram produzidas, em torno da filosofia de Scheler, majoritariamente monografias, dissertações e teses acadêmicas, capítulos de divulgação em coletâneas e poucos e esparsos artigos em periódicos. Embora parca se comparada à dedicada a outros filósofos, essa amostra tem o mérito de constituir incipiente literacia sobre a obra de nosso pensador. Os estudos desenvolvidos a partir dos anos 90 já se beneficiam de traduções das obras de Scheler para nossa língua, como Visão filosófica de mundo e Da reviravolta dos valores, trazidos ao português brasileiro entre o final do decênio de 1980 e a primeira metade do de 1990. Há que

3 FERRAN, Í. V. Schelers anthropologisches Denken und frühe Rezeption in Spanien. In: Phänomenologische Forschungen: Hamburg, 2009. p. 176-201.

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se dizer, entretanto, que grande parte dos referidos estudos, ao recorrer à literatura secundária, ainda são caudatários de textos em sua maioria datados dos anos 1960-1970, denotando, ao menos no Brasil, notória defasagem quando o quesito é a especialização4.

Em nossos dias, novas e idôneas traduções das obras de Scheler estão disponíveis ao leitor brasileiro. Isso, em parte, responde por expansão mais qualificada, ainda que morosa, das ideias do autor, principalmente no campo da filosofia e da ciência da religião (é surpreendente que as ciências sociais ainda não se tenham aberto às potencialidades sociológicas e antropológicas desse pensamento).

Está claro que o interesse na filosofia scheleriana não dá seus passos apenas pelas iniciativas de tradução e pesquisa. Estas apenas dão a saber da relevância desse pensamento que, reconhecido em sua época, parece ter se empanado nos anos subsequentes à morte do filósofo. Mas que valores teria este filósofo? Que forças teriam sido obscurecidas ou não reconhecidas? Respostas a estas perguntas já foram dadas e não precisam ser repetidas. O necrológio de Heidegger a Scheler, reproduzido, quase em sua íntegra na sequência, é eloquente quanto ao status do filósofo de Munique:

Max Scheler era – para além de sua estatura e do tipo de sua produtividade – a maior força filosófica da Alemanha atual, não, da Europa atual e até mesmo

4 Mesmo a tese de doutorado de Karol Wojtyla, subsídio para estudos acerca da problemática ética em Max Scheler, publicada em português no ano de 1993, é originalmente datada de 1953.

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da filosofia contemporânea em geral. Seus inícios filosóficos foram guiados por Eucken; ele partiu de uma ciência positiva, a biologia. De Husserl e das Investigações lógicas recebeu o impulso decisivo. Scheler viu claramente as novas possibilidades da fenomenologia. Ele não tomou a esta superficialmente e só para aplicá-la, mas mesmo significativamente, promovendo-a e colocando-a em contato com os problemas centrais da filosofia. Em particular, sua crítica ao formalismo na ética o indica. Importante para ele também foi o debate com Bergson [...]. Decisivo e característico de sua essência era a totalidade de suas questões. Disposto em meio a todo ente, ele tinha uma excepcional predisposição para qualquer nova possibilidade e forças. Tinha ímpeto indômito e peculiar, sempre voltado a pensar e interpretar as coisas em um todo. E não foi por casualidade que Scheler, de berço católico, em uma época de colapso, retomou o seu caminho filosófico em direção do “católico” como força mundial universal-histórica, não no mero sentido de Igreja. [Com isso,] novo significado adquiriram um Agostinho e um Pascal – novo enquanto resposta para e contra Nietzsche. Mas também esta possibilidade interrompeu-se para Max Scheler. Mais uma vez entrou no centro de seu trabalho a questão acerca do que o homem é – esta questão novamente se colocou no todo da filosofia, no sentido da teologia aristotélica. Com espantosa ousadia vislumbrou a ideia do “Deus fraco”, do Deus que não pode ser sem o homem, então fez que o homem mesmo fosse pensado como “colaborador de Deus”. Tudo isso estava longe de ser teísmo plano ou panteísmo vago. O plano de Scheler se encaminhou para uma antropologia filosófica, o estabelecimento

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da posição específica do Homem. Sua mutabilidade indicaria ausência de substância, vazio interior? Mas nós reconhecemos [...] a verdadeira obsessão pela filosofia que ele mesmo não conseguiu dominar, mas teve de seguir; o que muitas vezes o levou à desordem da atual existência, e frequentemente à impotência e a hesitação. Mas essa obsessão era sua substância. E ao lado de cada mudança ele permaneceu fiel a essa direção interior de sua essência em tentativas e esforços sempre novos. E essa fidelidade deve ter sido a fonte da qual surgiu a bondade de criança que ele às vezes mostrava. Não há quem, entre os sérios filósofos de hoje, não estaria essencialmente em dívida com ele – Não há quem possa substituir a possibilidade vivida da filosofia que com ele falece. Essa insubstituibilidade é sinal de sua grandeza. A grandeza de tal existência só pode ser medida pelos padrões que ela própria pode dar. A grandeza da existência filosófica estava em um encontro irrevogável – encontro com o tempo que apenas vagamente sobrevém e que não permite compensar o que veio até nós – encontro com uma humanidade que não permite nenhuma atenuação e nivelamento através de um humanismo raso que retorna aos antigos. O que Dilthey e Max Weber, cada um à sua maneira, encontraram estava em Scheler de maneira completamente originária e com força filosófica superlativa5.

5 HEIDEGGER, M. In memoriam Max Scheler. In: Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz - Gesamtausgabe. Vol. 26. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1978. p. 62-64. (Trad. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens).

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Os organizadores da presente edição se voltam a Max Scheler mais pontualmente interessados em seu contributo à fenomenologia, por compreender que, com essa contribuição, tal modo de pensar ganhou novos encaminhamentos, pousando seu foco não apenas em terreno ontognoseológico, mas, também, axiológico. A motivação de nos dirigir a Scheler é, portanto, primariamente fenomenológica, e justificada pelo fato de, no curso de filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, bem como nesta região do estado, encontrar-se pujante interesse pela fenomenologia, que só fez crescer desde o ano de 2014, com ênfase em torno aos estudos sobre Heidegger.

Alguns dos principais atores dessa “primavera” observada em torno dos estudos de fenomenologia no oeste do Paraná6 estão presentes nessa edição dedicada a Max Scheler, não como organizadores do livro, mas nos autores de seus capítulos. Conjugando trabalhos de pesquisadores doutores filiados a relevantes centros brasileiros e estrangeiros de pesquisa, bem como – deliberadamente – de pesquisadores discentes de pós-graduação que dão seus primeiros passos na filosofia scheleriana, o presente livro se divide em dois momentos.

6 Um registro sobre o florescimento desse movimento fenomenológico já pode ser conferido em: CARDOSO, L. [et. al.]. ‘Festschrift’ aos 20 anos do Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste. Cascavel: EdUnioeste, 2016. v. 1.

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A Primeira Parte começa com o capítulo do Prof. Carlos Eduardo Meirelles Matheus. Em Max Scheler e a fenomenologia dos valores, este que é o único brasileiro a fazer parte da Max Scheler Gesellschaft apresenta, em termos didáticos, conceitos fundamentais da axiologia de nosso filósofo. Em sua apresentação admiravelmente clara, são introduzidas noções básicas, indispensáveis à compreensão de momentos avançados da filosofia scheleriana, tais como “fenômeno”, “fenomenologia”, “intuição dos valores” e “vida emocional”. O capítulo em apreço acrescenta ainda notas históricas sobre o movimento da fenomenologia e das personalidades daquela cena (Brentano, Husserl, Scheler e Heidegger), o que confere ao escrito o caráter útil como que de introdução aos capítulos seguintes.

A pesquisadora mexicana Marisol Ramírez Patiño assina o segundo capítulo da coletânea. Em Reflexiones acerca de una relación olvidada: Rudolf Eucken y Max Scheler, temos evidenciado o quanto a filosofia de Scheler – por mais que tenha se elevado a altos níveis de radicalidade – retira de seu antigo mestre ideias seminais. Com este escrito (propositalmente conservado no original espanhol, para que tenhamos resguardadas as nuanças de tradução que aquela língua faz da terminologia scheleriana), fica estabelecida indubitavelmente uma contribuição original aos estudos sobre o autor, além de celebrar-se, uma vez mais, a colaboração acadêmica entre a Universidad Veracruzana, do México, e a Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil.

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‘Omnia habemus nihil possidentes’ – percepção afetiva e valores na fenomenologia de Max Scheler é o título de nosso terceiro capítulo. Nele, o Prof. Daniel Rodrigues Ramos destaca tema nuclear da fenomenologia dos valores de Scheler. O especialista deixa patente, de maneira singular, a vinculação de Scheler à fenomenologia husserliana, seu interesse crítico por Kant e o quanto autores como Agostinho e Pascal são matrizes cruciais para o que chamamos “percepção afetiva” ou de “tomada sentimental”.

O quarto capítulo de nosso trabalho é uma coautoria entre o Prof. Renato Kirchner e Maiara Rúbia Miguel. Em Max Scheler e a fenomenologia da essência da religião: o ato religioso por uma renovação religiosa os autores mostram o quanto a filosofia de Scheler permite uma aproximação ao fenômeno religioso. No presente escrito, o leitor poderá conferir um pouco do exercício daquele pensador alemão em estender a reflexão ética ao campo do pensamento cristão, além de entrever algumas das intuições notáveis daquele pensador ao tratar da experiência do divino em face do homem.

A Prof.ª Nathalie Barbosa de La Cadena tem a palavra final em nossa primeira parte, quando, em seu Scheler e o problema do livre arbítrio, problematiza a livre vontade no âmbito da reflexão ética de nosso filósofo. No seio deste quinto capítulo, a pesquisadora reconstrói os termos do debate contemporâneo entre o compatibilismo e o incompatibilismo. Por fim, pretende justificar a hipótese de que a posição scheleriana nesse debate tenderia ao incompatibilismo libertarianista.

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A Segunda Parte de nosso Max Scheler: novas recepções reúne capítulos de autores discentes. Tais trabalhos resultam do esforço de compreensão das ideias filosóficas de Scheler e pertencem a acadêmicos que, durante os semestres de 2017.2 e de 2018.2, assistiram, na UNIOESTE, aos cursos “Tópicos especiais de metafísica II” e “Tópicos especiais de metafísica I”, ministrados pelo Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens, atinentes à filosofia fenomenológica de Scheler.

Presenciamos, assim, no primeiro capítulo dessa segunda seção, o estudo de Rodrigo Lopes Figueiredo, que, sob o título de Considerações acerca da crítica scheleriana dirigida à ética de Immanuel Kant, apresenta o teor das objeções de Scheler a Kant, indicando, inclusive, o caráter mais contundente das mesmas.

O segundo capítulo deste novo segmento se intitula Brentano e Scheler em torno do a priori emocional. Com este, Vinicius Valero Pereira delineia a relação filosófica entre Franz Brentano e Max Scheler, a partir de estudo pontual, baseado na análise conceitual do a priori em geral e do a priori emocional, em específico, conforme aparecem nas respectivas doutrinas éticas dos filósofos. Como examina o autor, Brentano e Scheler acusaram o formalismo da ética kantiana e procuraram estabelecer, contra uma ética puramente racional, o fundamento emocional do conhecimento moral. Desdobramentos do escrito, na forma de uma comparação entre os mencionados pensadores, apontarão para a influência que a

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psicologia descritiva apodítica brentaniana exerceria sobre Scheler.

Apontamentos sobre a crítica fenomenológica de Max Scheler à ética kantiana e à teoria da apreciação é outro capítulo consagrado à crítica de Scheler ao filósofo de Königsberg; no entanto, este se perfaz enfocando a assim chamada “teoria da apreciação”. O pesquisador Paulo Ricardo da Silva busca evidenciar o quanto tal teoria (partilhada por Smith e Herbart) ainda é representacional, dando-se a posteriori. Isso estaria a um mundo de distância daquilo que Scheler, à luz da fenomenologia, chamará de “tomada sentimental”, esta em caráter a priori.

A fenomenologia em conformidade com aspectos da filosofia de Max Scheler: apriorismo, amor e pessoa é o título dado por Leila R. Klaus a seu capítulo. Nesse quarto movimento da segunda parte, vemos, novamente, o tema da tomada a priori do valor, abordado junto a dois conceitos de grande monta na filosofia scheleriana: “amor” e “pessoa”. Tal acréscimo constitui aprofundamento frente aos capítulos anteriores que trataram do tema da “tomada sentimental” em caráter somente preliminar.

O capítulo quinto é de autoria de Geder Friedrich Cominetti, e intitula-se A noção de pessoa em Max Scheler: considerações introdutórias. Nele, o tema da pessoa volta a ser abordado. Reconhecendo o quanto o conceito de “pessoa” é caro ao pensamento scheleriano, o pesquisador o interpreta frente a sua compreensão e abordagens mais recorrentes. Em jogo nesse capítulo está o conceito de “pessoa” como núcleo de vivências, que toma objetos com os quais se

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relaciona – contemplação que permite valorar tais objetos. Como se verá, esses “valores” acabam por transcender o objeto e tornam-se o que Scheler chamará “essência” mesma do objeto. Para entender como o filósofo interpreta essas noções, encaminha-se tais questões por meio da exploração dos conceitos de ato puro, redução fenomenológica e intuição emocional. A articulação destes conceitos se faz necessária, para que a noção do conceito de “pessoa” possa ser minimamente compreendida.

Giovani Augusto dos Santos ensaia uma aproximação entre a antropologia filosófica de Scheler e a psicologia fenomenológica posterior, no capítulo sexto: “A vida psicofísica é una’: contribuições de Max Scheler à psicologia com bases fenomenológicas. Além da aproximação proposta, o comentador oferece tematização bastante adequada de algumas das principais teses de A posição do homem no Cosmos.

Encerrando nosso compêndio, Ana Claudia Barbosa Nunes analisa brevemente o conceito de Direitos Humanos, através das possíveis contribuições do pensamento de Max Scheler e da filósofa Hannah Arendt, no capítulo Direitos humanos: um ensaio entre Scheler e Arendt. Neste sétimo momento, a estudante pretende elucidar os conceitos de “pessoa individual”, “pessoa coletiva” e “solidariedade”, em Max Scheler, relacionando-os aos conceitos de pluralidade, dignidade humana e direitos humanos, em Hannah Arendt. Ao elucidar os conceitos, pretende-se mostrar que é viável pensar os direitos humanos, segundo a concepção arendtiana, em conexão com os temas schelerianos aqui escolhidos.

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Um livro que enfeixa trabalhos acadêmicos tanto de pesquisadores destacados (docentes), quanto de pesquisadores em formação (discentes de doutorado, mestrado e graduados), cedo seria alvo de objeções burocráticas, justamente por esta segunda característica. Ignoramos a todas de antemão (sic.). Os organizadores do presente trabalho estão tão empenhados em uma nova recepção do pensamento de Scheler quanto em definir a identidade de um grupo, fazer recrudescer o movimento de nucleação de uma comunidade que se desenvolve em torno da filosofia fenomenológica (Husserl, Scheler, Heidegger, e autores associados, como o hermeneuta H.-G. Gadamer...) no oeste do Paraná e, por fim, motivar seus membros a qualificar-se para mais bem vivenciar as atividades de pesquisa acadêmica no seio do Grupo “Fenomenologia, hermenêutica e metafísica”, não havendo tempo para dispender em torno de preocupação com cifras, algoritmos e qualificações estranhas ao próprio fazer filosófico.

Os organizadores

Toledo, PR, em 19 de maio de 2019.

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Primeira Parte

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Primeiro Capítulo

Max Scheler e a fenomenologia dos valores

Carlos Eduardo Meirelles Matheus Do fenômeno à fenomenologia

A noção de fenômeno é muito antiga. Procede das origens da filosofia. Foi usada por Platão que teria recebido de Sócrates como herança dos pensadores que o antecederam para expressar seu espanto diante do mistério do universo. Platão comparou os fenômenos a sombras que se movem sobre o fundo de uma caverna para se referir a algo que está oculto e que não aparece, porque as sombras são aparências de realidades fora do campo dos sentidos.

A filosofia nasceu destas perguntas sobre diferenças entre o que aparece, o que não aparece e o que parece ser. Tales via deuses no movimento das águas e Heráclito via o tempo que transita pelos rios. Sócrates estava sempre à escuta de um eu interior de quem recebia mensagens e acolhia lições. Sabiam que nem tudo que existe está disponível para ser visto fisicamente e que é preciso saber ver, indo além do que aparece, para conhecer algo mais do que se pode ver.

Haveria uma linha que separa ou um traço que aproxima o que não se pode ver e o que se pode conhecer? O que se pode ver situa-se entre a luz e as sombras. As sombras, em seu estado puro, são o que não se pode ver, do mesmo modo que é impossível ver de onde procede a luz. Sendo algo que não se pode ver,

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a luz é também algo sem o que não se pode ver. A luz só pode ser vista em seu efeito porque é no seu efeito que a luz se manifesta. Sendo impossível vê-la, em si mesma, a luz pode ser conhecida sem ser vista por estar presente nos corpos do mundo sensível que ilumina.

A luz que os antigos acreditavam ser o poder que move o mundo foi também a origem do espanto que deu início ao conceito de fenômeno diante do qual se indagava se é possível conhecer indo além do que se vê. Os fenômenos se referem a esta dupla face das aparências das coisas, porque traduzem tanto algo que se supõe estar oculto como também o que aparece sob a aparência do que se pode ver. Desde esses tempos mais antigos já se presumia ser a luz uma torrente colossal de energia que move a evolução dos corpos, que gera o contínuo fluxo das águas e que insere a vida em tudo que se cria no universo, sem que se saiba com certeza qual seja sua origem.

As perguntas em torno do limite entre o que se vê e o que se pode conhecer deram origem ao conceito de fenômeno que serve para expressar essa busca a respeito do que se crê estar contido no enigma da luz. A filosofia chegou a Kant tendo sido sempre movida por essa antiquíssima intenção de decifrar o que há para além do que aparece e que também impede a razão de ultrapassar essa barreira dos fenômenos. Diante dos argumentos de que nada se pode conhecer além do que aparece aos sentidos, Kant viu-se diante do desafio de encontrar as vias para tornar possível a metafísica, ultrapassando as tentativas oriundas de Platão, que por Kant são comparadas ao voo de uma

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Primeiro Capítulo

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ave que se ilude supondo estar subindo quando já lhe falta o ar.

Dizendo ter sido despertado de um sono dogmático, durante o qual acreditara cegamente no poder ilimitado da razão, Kant se propôs a retomar essa viagem milenar em que a filosofia circula pelo reino dos fenômenos. Estava tão envolvido com o tema que admitiu ter cogitado em dar o título de Fenomenologia Geral à obra que estava elaborando, antes de decidir denominá-la Crítica da Razão Pura (1784), na qual se propõe a ir além do que se entende por começo para chegar à origem dos fenômenos (KANT, 1994).

Em sua série de novas obras publicadas a partir de 1781, Kant faz da distinção entre nômeno e fenômenos o tema central das respostas que procura. Refere-se aos fenômenos como objetos que se oferecem à percepção sensível e também como limites do que se pode conhecer. Em seguida refere-se ao nômeno como sendo seu reverso porque só pode ser pensado, mas não ser conhecido, por não estar ao alcance dos sentidos. Nisto se resume o entendimento de Kant a respeito da relação entre a mente humana e o nômeno: entende tratar-se um objeto que pode ser pensado, mas que não ser conhecido, porque não está ao alcance dos sentidos.

Deste modo, Kant afirma que fora da percepção sensível, não há conhecimento possível, porque depende destes dois elementos igualmente indispensáveis: intuição e conceito. Isoladamente são insuficientes para produzir algum conhecimento. Para Kant, portanto, intuição é ato pelo qual a razão pode alcançar objetos através dos sentidos (KANT, 1994).

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Essa distinção remete à oposição entre essência e aparência. Para Kant, os sentidos nos representam os objetos no modo como aparecem ("wie sie erscheinen") e o entendimento os representam como são ("wie sie sind"). Sem a contribuição dos sentidos, nas palavras de Kant – através da intuição – não há conhecimento possível. Deste modo, Kant acolhe o argumento dos empiristas que excluem do conhecimento humano tudo que ultrapassa o alcance dos sentidos, isto é, tudo que sempre se entendeu como puro nômeno.

É bem conhecida a alternativa encontrada por Kant para superar o impasse em que se viu diante das objeções dos empiristas. Movido por uma crença inabalável no poder universal da razão, prolongou seu projeto de alcançar o nômeno indo além do reino dos fenômenos, ao atribuir à razão prática o poder de conduzir à vontade para alcançar o que afirmara ser inacessível à razão, enquanto razão pura.

Pretendendo alcançar um princípio universal sobre o qual pudesse apoiar sua concepção da natureza humana, redirecionou sua reflexão para a razão prática, em busca de superação do relativismo e do determinismo inerentes aos pensadores empiristas, Kant só encontrou uma alternativa: vincular a liberdade da vontade aos princípios da razão. Mais ainda: em sua busca dessa conciliação, viu-se colocado diante da necessidade de submeter a vontade à razão. Com estas palavras iniciou sua interpretação metafísica do agir humano: neste mundo, como fora dele, nada pode ser considerado tão ilimitadamente bom do que uma vontade boa, vindo a afirmar, em seguida, que a

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razão – enquanto razão prática, nos foi dada para guiar a vontade (KANT, 2011).

Nesta distinção entre razão pura e razão prática Kant atribui à vontade – enquanto vontade boa - o poder de ingressar no reino do nômeno. Unida à vontade, a razão adquire então o poder de alcançar o conhecimento de um objeto situado além do plano sensível. Assim sendo, a vontade, quando a serviço da razão, atribui à razão um poder de que esta não dispunha, enquanto pura razão: o poder de conhecer algo que ultrapassa o nível dos sentidos. Ao se aliar à vontade ou ser movida por esta, a razão torna-se prática e torna-se assim apta a alcançar o suprassensível que é o reino do nômeno. Atribui, deste modo, à razão enquanto razão prática, o poder de alcançar por si mesma, independentemente da experiência, o conhecimento de algo universal que é a noção de dever – que está presente na vontade, quando esta se apresenta como uma vontade boa.

Ao inserir a razão no âmbito da vontade, Kant crê – e disto se ufana - elevar a razão a uma instância superior e assim lhe atribuir o poder de ultrapassar o limite da experiência. Coloca-se então a questão de saber se – enquanto razão prática– a razão torna-se voluntária ou se a vontade se torna racional. Atribuindo à razão o poder de elevar a vontade a uma instância superior, Kant admite haver nesta vontade racional a aptidão de conhecer, por si mesma, um princípio universal inerente ao nível do nômeno. Unida à vontade, a razão adquire o poder de querer do mesmo modo que a vontade adquire o poder de pensar. Ao fazê-lo, Kant funda sua ética sobre a noção de uma

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vontade que tenha valor por si mesma. Sem explicitar o significado que atribui a este valor, Kant abre o caminho para uma fenomenologia na qual razão e vontade se unificam em um sujeito que é autor de uma lei universal.

Esta fusão entre razão e vontade permitiu a Hegel unificar o nômeno e o fenômeno em um único processo no qual querer e conhecer se movem unidos. A este processo unificante Hegel dá o nome de fenomenologia. O nômeno, para Hegel, torna-se Espírito que é também Sujeito, além de ator, motor, autor e resultado da evolução universal da matéria e da vida. Em sua Fenomenologia do Espírito a razão pura e a razão prática passam a fazer parte desse único processo, no qual pensamento e ação se unem em um sistema fechado no qual nômeno e fenômeno tornam-se um só Todo, cujas partes se movem dialeticamente, ocultando o que aparece e fazendo aparecer o que está oculto.

O antagonismo entre a fenomenologia dialética de Hegel e a crítica da razão de Kant se projetou sobre todo o Século XIX, gerando um intenso debate em torno da possibilidade e dos limites da cognoscibilidade do nômeno. A fenomenologia concebida por Hegel gerou as mais diversas interpretações e versões – como o marxismo, o materialismo, o idealismo e o historicismo. Inversamente, cresceram várias manifestações de oposição à fenomenologia de Hegel, tomando por referência os pressupostos e as consequências da filosofia de Kant. Um destes movimentos de ideias que tomavam por referência a crítica da razão deixada por

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Kant ficou depois conhecido como neokantismo porque tinha o propósito de um retorno a Kant (Zurück zu Kant) – isto é partir de onde a crítica da razão empreendida por Kant havia chegado.

Kant submete vontade à razão. Ou melhor: a vontade torna-se a ponte pela qual a razão alcança o universal, isto é, ao nível do nômeno. Este é o papel atribuído por Kant à razão enquanto razão prática, isto é, enquanto poder de decidir por si mesma como se deve agir. Sobre esta submissão da vontade à razão diz Kant que a razão tanto é apta para dirigir a vontade, no que se refere à satisfação de nossas necessidades relativas aos instintos naturais, quanto é capaz de se tornar uma faculdade prática de produzir uma vontade boa, por ter valor em si mesma (KANT, 2011). Referia-se com frequência a valor sem se dar conta do significado ali contido ou da necessidade de conceituá-lo.

Procurando, portanto, superar o relativismo em ética que estava presente em grande parte dos pensadores dos Séculos XVII e XVIII, Kant recorreu à razão como poder universal para orientar e dirigir à vontade. Mais do que isso: diz que a razão atribui valor aos atos de vontade. Deste modo, a noção de valor se insere na ética de Kant, como simples atributo de algum objeto, mas sem qualquer autonomia ou significado próprio. Refere-se ao valor moral da vontade como um atributo que é concedido ou conquistado pela razão, sem que este valor seja mais do que simples qualificativo semelhante ao valor de uma joia ou o preço de objeto material.

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A razão prática de Kant converge para uma lei moral universal que afirma estar presente em todos os seres humanos, enquanto racionais. Suas célebres palavras – dentro de mim a noção do dever – coroaram o domínio da razão sobre a vontade, por ser a razão apta para deduzir por si o que denomina dever que se constitui em uma lei moral universal. Para Kant, a razão nos foi concedida como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade para produzir aquela vontade boa em si mesma (KANT, 2011).

Como é sabido, Kant e Hegel despertaram aplausos ilimitados e contestações radicais ao construírem seus respectivos sistemas nos quais a razão ocupa um lugar central. Contra esse poder atribuído por Kant à razão sobre a vontade ergueu-se Schopenhauer com sua teoria da autonomia não racional da vontade e, contra a razão histórica de Hegel, surgiram vários contestadores como Marx, Kierkegaard, Nietzsche e também os continuadores de Kant que ficaram conhecidos como neokantianos.

Scheler e Husserl

Foi dentro do ambiente do neokantismo que

germinou o projeto de dar à ideia de fenomenologia um significado diferente do que resultara do embate entre os que reinterpretavam a filosofia crítica por Kant e os que prolongavam idealismo inspirado em Hegel. Mais precisamente: nas últimas décadas do Século XIX, a filosofia chegara a um impasse entre uma concepção oriunda de Kant, segundo a qual a razão está impedida

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de ultrapassar os limites dos fenômenos e a concepção inspirada em Hegel, segundo a qual a fenomenologia é um processo constituído de uma série de etapas através das quais a razão universal age em busca de uma sucessiva superação de si mesma. Tratava-se de encontrar novas alternativas para superar os impasses e os limites deste confronto.

Nos últimos anos do Século XIX, sob o impacto das obras de Schopenhauer e de Nietzsche sobre as relações entre a vontade e os valores, em um cenário no qual cresciam teorias empiristas no campo da psicologia, Franz von Brentano recorreu a fontes anteriores a Kant e Hegel para reabrir a discussão em torno do fenômeno da consciência. Foi neste ambiente cercado de controvérsias aparentemente insolúveis a respeito da capacidade da razão para alcançar algum conhecimento universal e sua presença nos atos humanos que Edmund Husserl nascido em 1859 e Max Scheler nascido em 1874 se conheceram e dialogaram a respeito do esgotamento daquelas duas alternativas oferecidas por Kant e Hegel para novas alternativas para compreender o fenômeno da consciência.

Quando se conheceram, Edmund Husserl era um matemático que caminhava em direção à lógica e Scheler era um estudante que desistira da medicina para ingressar na filosofia. Depois de concluir, em 1894, seus estudos secundários, Scheler decidiu iniciar seus estudos de filosofia na Universidade de München e, depois, na Universidade de Berlim, onde foi aluno de Wilhelm Dilthey, de Georg Simmel entre outros (1894/95), tendo tido como colegas Werner Sombart e Max Weber, entre outros (SPIEGELBERG, 1971).

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A seguir, foi fazer seu mestrado em Iena sob a orientação de Rudolf Euken, tendo apresentado uma dissertação de tese na qual discorre sobre absoluta incompatibilidade entre os princípios lógicos e os princípios éticos (1897). Depois fez seu doutorado apresentando uma nova tese – esta sobre Os fundamentos preliminares do método transcendental e do método psicológico (1899). Nestas suas duas teses já se prenunciava a direção de seu pensamento filosófico: afastava-se da lógica racional e da interpretação transcendental da mente ligada à razão prática de Kant, para caminhar em direção uma ética fundada na relação entre a vontade e o valor.

Depois de concluir seus estudos em Iena, Scheler tornou-se Professor Assistente (Privatdozent) na Universidade de Iena e depois em Halle. Durante este período de Halle - entre 1901 e 1902 - passou a frequentar círculos acadêmicos ligados a neokantismo. Foi também nestas reuniões de neokantianos de Halle que conheceu Edmund Husserl. Este também vinha estudando as relações entre a lógica e a filosofia transcendental de Kant, como também já começava a publicar suas Investigações Lógicas.

Foi também nestas reuniões de neokantianos em Halle que Scheler e Husserl deram início a um diálogo torno da noção de fenômeno e também sobre o conceito de intuição. Ambos se declararam insatisfeitos com os limites do neokantismo dominante nas universidades alemãs porque tinham a expectativa de ir além de Kant, apesar de seus respectivos projetos não serem coincidentes: Husserl era um matemático recém convertido para a lógica e Scheler era um jovem

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acadêmico que acabara de abandonar a medicina e a lógica para ingressar na ética. Husserl caminhava em direção à lógica e Scheler afastava-se da lógica. Apesar destas diferenças em seus respectivos projetos filosóficos, encontraram um terreno comum em que suas ideias pudessem convergir.

Anos mais tarde, Scheler reconstituiu essa ocasião em que conheceu Husserl, dizendo ter sido a busca de um novo conceito de intuição o que os aproximou, porque – para Kant – a intuição está limitada ao conhecimento dos fenômenos. Ainda segundo o conhecimento está limitado a duas operações: a própria intuição sensível e o entendimento como operação racional. Para Kant, portanto, a intuição consiste em um impulso da mente em direção a objetos dos sentidos e o conceito é o que a mente recebe através da intuição. A única função da razão é conceituar o que a intuição lhe fornece. É o que afirma Kant com estas palavras: pensamentos sem conteúdo são vazios e intuições sem conceitos são cegas (KANT, 1994).

Scheler notou que esta limitada noção de intuição tornou Kant incapaz de entender o significado dos valores, aos quais com frequência se refere. Indo mais longe, Scheler aponta em Kant uma total incapacidade de compreensão do modo pelo qual os valores são apreendidos e realizados. Nesta limitada noção de intuição presente em Kant situa-se a pedra fundamental da Ética de Scheler, cujo núcleo central reside em uma nova concepção dos valores, como objetos de um terceiro tipo de percepção alheio à percepção sensível e à dedução racional – à qual dá o

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nome de percepção emocional. Foi assim que Scheler começou a conceber uma nova concepção de valores: como essências em si. Scheler adota assim a mesma recusa à submissão da vontade à razão, que faziam os sucessores de Kant, entre os quais alguns neokantianos e também Schopenhauer e Nietzsche.

Naqueles diálogos em Halle, Scheler teria dito a Husserl que acabara de abandonar um texto seu sobre lógica por falta de aberturas para alcançar o significado de intuição e Husserl teria dito que – apesar de estar redigindo textos sobre lógica – visava semelhante ampliação. Esta ruptura com a interpretação kantiana da noção de intuição viria a ser uma das bases da construção da ética de Scheler. Para Scheler, a intuição situa-se além da percepção sensorial, como também da conceituação racional. Certamente a elasticidade do conceito de fenômeno também pode ter sido um território livre no qual Scheler e Husserl podiam encontrar algo em comum para reelaborarem aquela noção de intuição.

Mais tarde, referindo-se ao encontro que teve com Husserl no período em que se conheceram em Halle, Scheler escreveu o seguinte: "Nas conversações que tive com Husserl (em 1901) eu já adotara a convicção de que os elementos constitutivos de nossa intuição são primitivamente muito mais ricos do que tudo que é proveniente dos dados sensoriais ou de suas derivações de ordem genética ou ainda das formas unificantes de ordem lógica (1922) (SCHELER, 1973, p.26). Já nesta época, Scheler procurava demonstrar a Husserl esta prioridade da intuição sobre os sentidos e sobre a razão – prioridade esta que viria a constituir um

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princípio novo e muito mais fecundo para a construção de sua filosofia.

Mais tarde, também Husserl veio a admitir ter dado uma nova direção para seu pensamento ao adotar um novo significado para a intuição, através da noção de intuição categorial, como antecipação de sua teoria da intuição das essências que está no centro de suas pesquisas fenomenológicas. Foi desta noção de que todo sujeito intui algum objeto tanto sensível como não sensível que nasceu, tanto para Scheler como também para Husserl, a teoria da intencionalidade. Segundo Scheler, a intuição não é sensível nem racional, como entende Kant: é de caráter emocional e instantânea, como para Pascal. Esta percepção emocional tem por objeto algo que não é sensível nem racional: o valor.

As questões em torno da relação entre a matemática e a lógica, como também entre a razão e ética estiveram no centro dos debates entre Scheler e Husserl, assim como a relação entre a psicologia e a matemática, que naquela época geravam novos caminhos para os estudos sobre o papel da consciência na produção das ideias. É o que sugerem as cinco lições proferidas por Husserl em 1907 sob o título de Ideia de Fenomenologia e também os textos que Scheler produziu neste período, como O ressentimento como origem dos julgamentos morais, Modelos e chefes (obras publicadas postumamente), A fenomenologia do sentimento da simpatia e sua relação como amor e o ódio (1913) e Filosofia das visões do mundo.

Foi, portanto, em decorrência dos debates que ocorriam na Alemanha no final do Século XIX em torno da filosofia de Kant que Scheler e Husserl começaram

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a conceber uma nova interpretação das noções de fenômeno e de intuição. Talvez se possa dizer que intuição viria a ter mais importância na obra de Scheler, do que na obra de Husserl como também é certo que a noção de fenômeno assumiu um lugar mais relevante na obra de Husserl do que de Scheler. Na realidade, Scheler tomou sua nova noção de intuição como o ponto de partida da construção de seu sistema de ideias, pouca importância dando à noção de fenômeno, enquanto Husserl fez da noção de fenômeno a âncora de sua filosofia.

Talvez não haja no vocabulário filosófico de todos os tempos um conceito mais elástico e, em certo sentido, mais obscuro do que este. Fenômeno é um conceito que abrange múltiplos sentidos, alguns dos quais antagônicos entre si. Tem algo de evidente e também de nebuloso. Foi usado por Platão para expressar o caráter aparente dos objetos sensíveis, mas também se prende à causa do conhecimento sensível que o próprio Platão identifica com a luz. Devido a esta ambiguidade originária, fenômeno teve – e continua tendo – um curso secular em toda a História da Filosofia e, muito especialmente, na Filosofia Contemporânea.

Também o novo sentido que Scheler apontou para a noção de intuição ganhou enorme amplitude depois dele, para traduzir todo tipo de conhecimento anterior aos sentidos e alheio à razão. Enquanto isso, a noção de fenômeno na qual Husserl instaurou o fundamento de suas ideias permanece obscura e cercada de ambiguidades. Por mais que Husserl tenha se empenhado em conceituá-la, conserva sua

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obscuridade inicial até os dias de hoje, tanto para expressar seu conteúdo inacessível como também para servir de manto para abrigar as mais diferentes e divergentes interpretações ou linhas de pensamento na filosofia posterior que chega até aos dias atuais. Basta dizer que, depois de Husserl, a noção de fenômeno serviu para Heidegger se referir ao Ser e a Sartre, para se referir ao Nada.

O movimento fenomenológico

Durante o período entre 1902 e 1907, enquanto

Husserl elaborava textos aos quais dava o título genérico de fenomenologia, Scheler procurava aprofundar a relação entre intuição e valor nas aulas que conduzia, como Professor Assistente, nas Universidades de Iena, Berlin e München sucessivamente. Entre 1906 e 1912, Scheler começou a elaborar os textos que viriam a se tornar a base de sua teoria ética dos valores, cuja parte inicial seria publicada em 1913, na primeira edição de Anuário de Fenomenologia apresentado por Husserl

Foi, portanto, nesse período posterior aos seus diálogos com Husserl que Scheler começou a construir seu caminho em direção à ética até reencontrá-lo em 1913, em Göttingen, onde iniciaram as reuniões do chamado "Círculo de Göttingen"(Göttingen Kreis), nas quais já transparecia, de modo marcante, a diferença de personalidade entre ambos.

Scheler era expansivo, brilhante e criativo, enquanto Husserl era sistemático, metódico e rigoroso. Scheler estava em München quando ele e seu grupo

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passaram a frequentar os encontros de Göttingen, onde o grupo de Husserl conduzia os estudos "fenomenológicos". Durante as reuniões do Círculo de Göttingen, Scheler expôs e debateu suas ideias a respeito de um novo fundamento para a ética. Estes antecedentes mostram os motivos pelos quais a Ética de Scheler tem seu ponto de partida na oposição que faz à razão prática de Kant, na qual a vontade está submetida à razão. Mesmo reconhecendo o esforço de Kant para restaurar o caminho para uma ética universal e não empirista, toma como ponto de partida sua reprovação a Kant, em sua tentativa de ultrapassar todas concepções empiristas do agir humano, como também as apoiadas nas noções de bens ou de fins – contidas principalmente na ética de Aristóteles.

Foi também nesse período entre 1906 e 1912 – enquanto Scheler se transferia de München para a Universidade de Göttingen – que começaram a se aproximar os dois Círculos dos quais nasceu o Movimento Fenomenológico, tendo como um de seus principais frutos a publicação da primeira edição do Anuário de Pesquisa Fenomenológica, na qual Scheler publicou a primeira parte de sua Ética. A segunda parte viria a público em 1916.

As publicações posteriores geradas pelos companheiros de Husserl e Scheler naquelas primeiras décadas do Século XX, deram início ao que, mais tarde, se tornaria esse colossal volume de obras ao qual Merleau-Ponty veio dar o nome de Movimento Fenomenológico: movimento porque partia-se de um tema inicial para seguir nas mais variadas direções. Nas palavras com que Merleau-Ponty o define, não houve

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em Husserl, Scheler e tantos outros a intenção de criar uma escola ou uma doutrina, mas apenas assumir a tarefa de revelar o mistério do mundo e o mistério da razão (MERLEAU-PONTY, 2006).

O reencontro de Scheler com Husserl que culminou com a publicação do Anuário de Pesquisa Fenomenológica foi marcado por um crescente distanciamento entre ambos. Segundo as palavras de Herbert Spiegelberg (1971), a presença de Scheler despertou em Husserl uma atitude restritiva que foi aumentando, "[...] à medida em que Scheler foi se tornando famoso". Ainda segundo os relatos e depoimentos dos que com ambos conviveram, em Göttingen, Scheler despertava enorme admiração por sua postura ardente e inflamada de abordar os temas filosóficos e isto causava certo incômodo a Husserl. Ainda segundo Spiegelberg, Husserl sentia-se incomodado diante do fato de que seus discípulos mais próximos, como Geiger, Pfänder e até mesmo Heidegger – em diferentes ocasiões - demonstraram enorme admiração pela obra e pela personalidade de Scheler.

De fato, entre Scheler e Husserl, nunca houve uma relação de admiração recíproca. Ao contrário, consta que Husserl teria feito reservadamente alguns comentários de desaprovação direta às ideias de Scheler. Também Scheler nunca teceu grandes elogios a Husserl. No prefácio da edição de 1916 de sua Ética, deixa clara sua independência em relação ao método fenomenológico proposto por Husserl, ainda que reconhecendo, de passagem, a importância de sua contribuição.

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Por seu destaque ao lado de Husserl nos encontros na Universidade de Göttingen, apesar de ser quinze anos mais jovem, Scheler foi por vezes identificado como continuador de Husserl. Edith Stein, que conviveu com ambos, tendo sido aluna de Husserl em Göttingen e sua assistente em Freiburg, relata que Scheler procurava sempre salientar não ser discípulo de Husserl, por ter desenvolvido seu próprio método fenomenológico (STEIN, 1952).

Além de todos estes pontos de distanciamento pessoal, é também importante salientar que Scheler divergia da proximidade de Husserl com o "eu transcendental" de Kant. Entre Descartes e Spinoza, Scheler esteve sempre mais próximo de Spinoza e Husserl, de Descartes. Além disso, a fenomenologia como rótulo de suas ideias não era tão importante para Scheler, como para Husserl.

Em realidade, Scheler e Husserl levaram para o campo filosófico suas diferenças pessoais e de personalidade. Husserl tinha extrema preocupação com o rigor a ponto de buscar várias maneiras de expor as mesmas ideias e Scheler dava mais importância à criatividade do que ao rigor. Como diz Maurice Dupuy (1959): "[...] o pensamento de Scheler é por vezes vulnerável [...] estando seu mérito mais na riqueza intuitiva do que no rigor" (p. 76). Além disso, o pensamento de Husserl esteve sempre voltado para um único ponto central – a explicitação de sua noção de fenômeno, enquanto Scheler tomou a fenomenologia apenas como ponto de partida para dar as mais diversas direções ao seu pensamento.

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A publicação da primeira edição do Anuário de Pesquisa Fenomenológica (1913), cujo texto inicial foi a primeira parte da Ética de Scheler, teve o poder de fazer germinar um colossal volume de textos e publicações nas quais há sempre alguma referência remota a esta ligação entre ambos. Até mesmo Scheler, embora pleiteando para si total autonomia em relação a Husserl, ao publicá-la na íntegra em 1916, sua Ética, fez no Prefácio, uma referência genérica a Husserl com estas palavras: devo agradecer a consciência metodológica de unidade e sentido dos trabalhos de Edmund Husserl própria da atitude fenomenológica.

Tanto Husserl, em sua transição da matemática para a lógica, como também Scheler ao longo da construção de sua Ética, recorreram com frequência ao conceito de fenômeno da consciência como sendo uma âncora ou um fundamento para o desdobramento de suas concepções particulares. Também quase todos os pensadores que a Scheler e Husserl se seguiram, como Heidegger, Sartre e tantos outros – com exceção dos que se declararam seus adversários, como aqueles vinculados à filosofia analítica – procuraram colher, ainda que de passagem, algum benefício ou desdobramento deste conceito.

Scheler iniciou sua trajetória filosófica trocando a lógica pela ética, passando pela elaboração de uma teoria do conhecimento para abordar temas teológicos, metafísicos, sociológicos, econômicos e políticos. O pensamento de Husserl teve sempre uma relação direta apenas com Descartes e Kant, sem dar grande atenção a outros pensadores anteriores ou posteriores a estes. Além disso, Husserl se relacionava com pensadores

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contemporâneos que julgava vir a poder tomá-los como sendo seus discípulos ou continuadores. Já o pensamento de Scheler tem referência com os mais diversos pensadores como Agostinho, Platão, Spinoza, Leibniz, Pascal e Marx com os quais pudesse dialogar em seus textos. Além disso, Scheler nunca se preocupou em agregar discípulos, mas sempre manteve vivo relacionamento com importantes pensadores que foram seus contemporâneos, com os quais procurou realizar um intercâmbio de ideias, como Henri Bergson, Max Weber, Werner Sombart, Ernst Troeltsch, Paul Tillich, Paul-Louis Landsberg, Ernst Bloch e muitos outros.

Além destes pontos de distanciamento, já na primeira edição do primeiro "Anuário de filosofia e pesquisa fenomenológica" coordenado por Husserl, ficavam visíveis suas diferenças de interpretação do significado de fenomenologia: para Husserl, é uma "teoria das essências" e, para Scheler, é "um olhar que vê, nos fatos, algo que permanecia oculto". Scheler, salienta Spiegelberg (1971), não tinha – como Husserl – a intenção de fazer da fenomenologia uma ciência. Para ele, a ciência era, no máximo, um meio para buscar respostas a questões mais perenes. E acrescenta ainda Spiegelberg (1971): "Scheler filosofava com intenso senso de viver em seu tempo e para seu tempo, buscando um diagnóstico para os tempos de crise em que viveu". Um de seus biógrafos escreveu: "Scheler só sabia viver filosoficamente", querendo dizer com isto que dava sempre a impressão de estar refletindo, indagando e interpretando filosoficamente tudo com que se deparava. Um outro disse que Scheler conseguia

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manter um auditório fascinado por suas palavras durante horas, tornando sempre claras as abstrações e "[...] quando ele parava de falar, deixava nos presentes uma sensação de felicidade" (AZEVEDO, 1966, p.13).

A intuição dos valores

Apesar da grande diversidade de seus temas, a

ética foi o eixo central do pensamento de Scheler. Até mesmo em seus textos sobre a guerra, sobre "as causas do ódio aos alemães" e sobre o pacifismo, Scheler buscou sempre alcançar uma filosofia que estivesse baseada em um profundo conceito do ser humano. "Que é o homem? Qual seu lugar no universo?", indaga Scheler em sua última obra.

No “Prefácio” à segunda edição de sua Ética, diz Scheler que o principal propósito de toda a sua obra é "encontrar e comunicar o significado final e o valor final do universo em seu todo, de modo a medi-lo a partir do puro ser". Neste texto, Scheler resumia seu projeto filosófico dizendo ser dirigido fundamentalmente para uma ética de fundo antropológico, na qual a fenomenologia exercia um papel metodológico, por ser o modo pelo qual os valores se manifestam à percepção emocional de todos os seres humanos, passando pelo social para chegar ao ontológico (SCHELER, 2001).

Isto significava, para Scheler, separar a fenomenologia da epistemologia. Epistemológica é a separação entre os conceitos de "forma" e "matéria". Fenomenológico é distinguir "experiência" e "intuição". A experiência diz respeito aos "fatos" e às "coisas" e a

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intuição se refere a um modo especial de ver – ao qual Scheler dava o nome de "Einstellung".

Para Scheler, nossa relação com o mundo e com os valores é uma intuição que nada tem de racional. É intuição pura, no sentido de Pascal, por sua origem emocional. É anterior à razão de que falava Husserl, que se apoia no cogito cartesiano ou então no eu transcendental de Kant. Scheler pensava como Pascal, para quem a intuição chega primeiro e a razão chega depois. Para Scheler, a fenomenologia é uma reflexão sobre a intuição dos valores à qual dava também o nome de intuição fenomenológica. Segundo Scheler, os valores necessitam de depositários para serem percebidos: ao se depositarem em algo ou em alguém se tornam aptos a serem intuídos.

Essa concepção de intuição fenomenológica foi desenvolvida por Scheler a partir de sua "teoria dos três fatos" [Die drei Tatsachen]: os fatos naturais ou sensíveis, os fatos científicos ou racionais e os fatos puramente intuitivos ou emocionais. Estes últimos são fenomenológicos, no sentido dado por Scheler a esta palavra, por estarem baseados em uma experiência imediata e anterior tanto aos sentidos como também à razão. A intuição fenomenológica, diz Scheler, capta instantaneamente algo que os sentidos não captam e que a razão apenas procura, posteriormente, explicar ou justificar. Esta intuição imediata e fenomenológica é o que Scheler denomina efetivamente a priori. É a intuição dos valores: estes são intuídos instantaneamente. Em suma: é pela percepção emocional que os valores são captados – e não pela razão.

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Pascal referia-se à oposição entre a razão e o sentimento. Dizia que a razão é lenta e que o sentimento é instantâneo. Assim é também a intuição de que fala Scheler: tem o caráter de a priori porque capta a essência do objeto, através desta faculdade superior e imediata de perceber. A "percepção emocional" difere da "percepção sensível" porque esta capta apenas o fato em estado natural; é também diferente da explicação racional que dá ao fato um desdobramento científico. Scheler refere-se à intuição das essências, por ser nestas que os valores estão presentes. Nisto reside o que denomina intuição fenomenológica, na qual aponta três características fundamentais.

1. É uma "vivência" (Erlebnis) baseada na capacidade instantânea de captar a essência do objeto;

2. É uma "atenção" voltada para a "essência” que está inserida na "existência" do objeto;

3. É um "a priori" porque tem origem na própria intuição e não na experiência.

O valor é uma essência que é intuída quando se apresenta em algum objeto que se torna seu depositário. Os valores aparecem instantaneamente, mas não são visíveis ou perceptíveis sensorialmente. Os valores necessitam de depositários nos quais possam ser intuídos. A intuição tem, para Scheler, o nome de percepção emocional ou então de intuição de essências.

A teoria da "intuição fenomenológica" de que fala Scheler tem os seguintes desdobramentos:

1. É uma a intuição que é mais do que uma mera aproximação rápida ao objeto porque tem um

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caráter "mais profundo e mais radical" que a percepção sensorial;

2. É uma intuição que não está baseada na teoria da "evidência" do sujeito (de que fala Descartes), que remete à noção de "autoconhecimento", porque a evidência do autoconhecimento envolve as ilusões do inconsciente e os mecanismos de que se ocupa a psicanálise de Freud, na esteira dos "ídolos" de Bacon;

3. É intuição das essências não suprime o caráter independente da realidade, o que significa tomar partido em favor do "realismo" contra a perspectiva "idealista" segundo a qual a existência da realidade depende a presença do sujeito.

Estes três tópicos mostram bem a diferença entre a intuição fenomenológica exposta por Scheler, em relação à intuição fenomenológica de Husserl, que estava mais próximo de uma fenomenologia de tipo dualista. Do ponto de vista do sujeito, segundo Scheler, a intuição precede ou independe tanto da percepção sensível como do conhecimento racional. A razão apenas explica ou justifica o que é captado pela intuição.

Com isto, Scheler se afastava da noção de "redução fenomenológica" de Husserl, distinguindo dois diferentes tipos de fenomenologia:

1. A "fenomenologia descritiva'" que consiste em uma reconstrução da realidade que se presta a qualquer tipo de aplicação, sendo sempre relativista e baseada nas aparências das coisas e;

2. A "fenomenologia das essências" (Wesensphäenomenologie) que capta as essências

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presentes nas coisas existentes, separando-as da "experiência factual" de que se ocupam as ciências.

Esta "fenomenologia das essências", a que Scheler se refere, conduz ao que Spiegelberg denomina uma "metafísica transfenomenológica" e também a todas as formas de "revelação religiosa". Com isto, fica também claro que a fenomenologia de Scheler não visava – como para Husserl – converter a filosofia em "ciência rigorosa". Não se tratava, observa Spiegelberg, de uma postura anticientífica, mas apenas a preocupação em estabelecer uma distinção entre o conhecimento científico e o conhecimento filosófico.

Foi exatamente para entender os limites e as possibilidades do conhecimento científico que Scheler se dedicou ao estudo da sociologia do conhecimento. Para Scheler, os fatores sociais são constituídos de fatores variáveis que alteram o comportamento coletivo. Neste ponto, Scheler admite uma ciência voltada para o conhecimento dos fatos – nos termos do pragmatismo.

No entanto, esta ciência tem um caráter apenas relativo porque aborda os fenômenos apenas em seu aspecto mecânico, visando sempre algum propósito técnico ou utilitário. Este conhecimento mecânico inerente à atividade científica é plenamente justificável, desde que limitado aos objetivos a que a ciência se propõe.

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Brentano O surgimento do Movimento Fenomenológico

teve relação com a influência de um pensador que, tendo sido contemporâneo ao neokantismo, ao positivismo e ao idealismo, no Século XIX, se tornou sua referência tanto para Husserl como também para Scheler: foi Hans Von Brentano (1838-1917) a partir da publicação de sua obra de grande influência no final do Século XIX que teve por título Psicologia do ponto de vista empírico (1874) como também sua célebre conferência sobre A origem do conhecimento moral e ainda seu texto póstumo sobre O amor e o ódio.

Husserl foi aluno de Brentano entre 1884 e 1886 em Viena e este convívio teve direta influência em seu direcionamento filosófico, porque o fez abandonar seus estudos de atemática, como ele próprio relata posteriormente:

[...] nos dois Cursos que fiz com Brentano ele discorreu sobre “filosofia prática” [...] para alunos mais adiantados. [...] foi no verão daquele ano que tive a possibilidade de frequentar sua casa [...] e acompanhá-lo em seus passeios de barco [...] despertando de tal modo meu interesse pela filosofia, a ponto de me fazer hesitar entre continuar minha carreira como matemático [...] e ser um principiante em filosofia [...] (KRAUS, 1919, p. 72).

Além da influência de Brentano em sua opção

pela filosofia, Husserl descreve sua personalidade em termos fortemente emocionais. Diz ele que:

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Brentano era visto entre os jovens estudantes de filosofia como um visionário das verdades eternas, um arauto do mundo celeste. Resisti, por algum tempo, à força de sua personalidade cativante, mas a extrema clareza e a acuidade dialética com que desenvolvia suas teorias [...] me deram à convicção de que a filosofia é um campo de trabalho tão sério a ponto de me animar a segui-la, por poder ser adotada com o espírito da mais rigorosa das ciências. [...] por ter sido, desde o começo, influenciado por Brentano, [...] só mais tarde fui compreender a importância dos que, depois de Descartes, empreenderam a pesquisa filosófica de modo rigorosamente científico (KRAUS, 1919, p. 82).

Entre os anos de 1903 e 1907, enquanto

desenvolvia suas obras que viriam a ser publicadas como Investigações Lógicas, Husserl visitou seu antigo mestre, que já se aposentara e vivia recolhido em Florença. Assim descreveu, em uma linguagem emocional que faz lembrar o estilo de Scheler, esse reencontro:

Fui reencontrá-lo em 1907, em seu apartamento em Florença, magnificamente situado sobre a Via Bello. Penso naqueles dias com a maior emoção. O que me comoveu foi quando ele, quase cego, no terraço, comentou aquela incomparável vista de Florença, mostrando a mim e à sua esposa os belos caminhos que conduziam às duas vilas onde Galileu vivera. [...] Diante de sua estatura e do poder de seu espírito, senti-me novamente na pele de um tímido principiante. Em vez de falar, preferia ouvi-lo. Falava com profundidade, com frases bem organizadas e construídas. Em certo momento, ele quis que o

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informasse sobre o sentido eu dava à pesquisa fenomenológica e sobre seu antigo combate contra o psicologismo. Ele me ouviu atentamente, sem me interromper nem fazer objeções. No entanto, não conseguimos nos entender. Talvez tenha sido falha minha. Fiquei crispado pela íntima convicção de que, devido à sua maneira inflexível de considerar as coisas e à estrutura rígida de seus conceitos e de seus argumentos, Brentano já não tivesse o espírito suficientemente aberto para poder compreender a necessidade que ele me havia transmitido de transformar suas intuições fundamentais. [...] Ele se mostrou agradecido por me ver reconhecer o quanto sua personalidade e seus ensinamentos haviam ficado indeléveis em mim. Com a idade, Brentano se tornara mais afetuoso e doce. Já não era mais aquele ancião amargurado [...] mas continuava a viver no mundo das ideias [...] em uma espécie de transfiguração, como se ele não pertencesse mais a este mundo. Começava a viver neste mundo superior no qual firmemente acreditava, através da interpretação filosófica das teorias teístas com as quais se ocupava, naquela sua idade avançada. Esta última imagem que guardei de Brentano, em Florença, ficou profundamente gravada em minha alma. Assim vive ele agora em mim, como uma imagem do além (KRAUS, 1919, p. 54).

Brentano situava-se à margem do intenso

debate entre os intérpretes de Kant e de Hegel que ocupavam o mundo universitário durante toda a segunda metade do Século XIX. Abordava o que denominava os fenômenos psíquicos como caminho para uma reconstrução da noção de consciência, sob o ponto de vista de Descartes e da filosofia escolástica,

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abrindo caminho para a construção de seu conceito de intencionalidade.

Segundo Brentano, "o que caracteriza qualquer fenômeno psíquico é aquilo que os escolásticos medievais denominaram existência intencional de um objeto". Brentano dava o nome de “relação a um conteúdo” a este elemento intencional, como sendo algo que parte da subjetividade e toma a direção de um objeto que pode não ser necessariamente imanente. Brentano definia os fenômenos psíquicos dizendo serem fenômenos contidos na intencionalidade do objeto (BRENTANO, 1973, p. 75).

Brentano também se tornou referência para o pensamento de Scheler, com sua interpretação objetivista da ética e com sua transformação da psicologia em uma concepção ontológica da vontade. Mesmo sem ter sido aluno de Brentano, Scheler deixa transparecer em sua obra essa influência, a partir de uma célebre conferência realizada em Viena em 1889 na qual Brentano faz uma reflexão sobre “A origem do conhecimento moral" e também de seus textos sobre o amor e o ódio. Nessa conferência indaga Brentano:

Que significa "melhor"? A resposta já está naquilo que foi dito antes: se "bem" é aquilo que merece ser amado por si mesmo, então o "melhor" é aquilo que merece ser amado ainda mais. Que significa "ser mais amado"? Não se trata, certamente de uma grandeza espacial e nem se pode medir pelo prazer que possa causar, como seria o caso do prazer ou desconforto que um calçado pode causar. Também não é o maior ou menor prazer que um amor pode causar. [...] não se trata de medir o amor pela

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intensidade de prazer. Os fenômenos do prazer ou da dor estão relacionados com a preferência. [...] Nos atos que envolvem julgamento – como por exemplo, entre o verdadeiro e o falso – há uma prioridade para o verdadeiro sobre o falso que permite dizer que o verdadeiro é "melhor" e que é preferível ao falso, do mesmo modo um determinado bem é preferível a outro. Ampliando este conceito, pode-se dizer que o bem é preferível ao mal e que o mal é pior, em relação ao bem (BRENTANO, 1973, p. 185).

Brentano recorre assim às raízes antigas da ética

e ao que dizia Epicuro: [...] a diferença está no fato de que preferimos sempre a existência do que é bom e a não existência daquilo que é mau. Do mesmo modo, rejeitamos o mal que está inserido no bem. [...] é o que Epicuro reconhece quando diz que a dor pode não ser pior do que o prazer e nem o prazer ser melhor do que a dor, dependendo do instante em que se sente dor ou prazer (BRENTANO, 1969, p. 39).

Estes textos mostram claramente a influência de

Brentano no pensamento de Scheler. Desde a fase inicial da elaboração de sua Ética, quando Scheler já se dirigia para uma interpretação emocional tanto do processo cognitivo como também para uma concepção objetiva dos valores.

Ao indagar a respeito do que merece ser amado Brentano liga a noção de melhor e pior a uma percepção através da qual os antigos conceitos de bem e mal estão submetidos a uma ordem hierárquica para a qual há uma intuição apta a percebê-la em si mesma. Deste

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modo, Scheler relaciona o sentimento do amor e do ódio ao seu objeto que se mostra no prazer e na dor. Por este motivo, Scheler atribui aos sentimentos de amor e de ódio a aptidão humana para a intuir valores.

Diz Scheler: O amor e o ódio constituem um movimento decorrente do aparecimento de valores novos e superiores, mas ainda desconhecidos por quem os apreende. Através do amor ou do ódio, estes valores se mostram, tornando-se claros e luminosos. Assim sendo, o amor não resulta da mera percepção afetiva do valor. O amor os precede como seu pioneiro e seu guia. Este é o motivo pelo qual a atividade "criadora" do amor não se manifesta com relação aos valores que existem por si mesmos e sim com relação ao círculo ou ao conjunto de todos os valores que um ser pode perceber ou preferir. Do mesmo modo, a própria ética encontra sua consecução na descoberta das leis do amor e do ódio, leis estas que dizem respeito ao caráter primitivo, apriorístico e absoluto dos valores, orientando as leis da preferência que dizem respeito às relações mútuas das qualidades axiológicas correspondentes (SCHELER, 2001, p. 124).

Scheler faz destas suas reflexões sobre o amor e

ódio o patamar para ligar a consciência às essências que são os valores. Neste caso, o amor e o ódio constituem o elemento de ligação entre a consciência e o valor, através da intencionalidade. Scheler atribui ao amor e ao ódio um papel bem diverso do caráter imperativo da consciência ética mencionada por Kant, por estarem

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vinculados ao fundamento emocional da intuição que liga o sujeito aos valores que se apresentam.

Faz parte do ato de fé e do ato de amor serem indetermináveis pelas normas e pelos imperativos morais. No sentido rigoroso do termo, não pode haver obrigação de crer e nem de amar. As noções de "dever amar" e de "dever crer" podem apenas nos colocar numa situação interior que nos prepare para um ato de fé ou um ato de amor. [...] A alguém que desconheça os valores de uma pessoa, é possível indicar quais sejam estes valores e até exigir que ingresse na essência axiológica dessa pessoa, mas jamais podemos obrigar alguém a amar essa pessoa. [...] Kant tem razão quando diz que os atos de amor "não podem ser prescritos" mas engana-se quando tira disto a conclusão de que não têm qualquer valor moral. [...] Dentro de uma ética de tipo imperativo, isto se torna uma conclusão inevitável. De fato, do ponto de vista de uma ética imperativa, o amor - não podendo ser prescrito - vem a ser assim destituído de qualquer valor moral. [...] nisto reside um dos erros fundamentais das éticas imperativas. Ao dizer que só há valor moral naquilo que pode ser prescrito ou proscrito, converte os atos de amor ou de fé em condutas pragmáticas, que consistem em só admitir valores morais na medida em que estes permitam agir no mundo moral ou modificá-los (SCHELER, 2001, p. 266).

Estavam implícitos nas reflexões de Brentano o

conceito valor, como objeto da vontade e também o conceito de hierarquia entre os valores, com o qual Scheler daria início à sua ruptura com o conceito de dever, contido na Crítica da Razão Prática de Kant. Esta

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reflexão sobre o que é, em si, melhor ou pior constitui a base da objetividade hierárquica e objetiva dos valores que Scheler reproduz, de forma sistemática, no Capítulo I de sua Ética:

1. A existência de um valor positivo é, em si, um valor positivo.

2. A não existência de um valor positivo é, em si, um valor negativo.

3. A existência de um valor negativo é, em si, um valor negativo.

4. A não existência de um valor negativo é, em si, um valor positivo (SCHELER, 2001).

Esta colocação do valor como algo que se apresenta "em si" constitui a base sobre a qual Scheler instaura o fundamento de sua tese sobre a objetividade dos valores.

A visão emocional do mundo

Há um texto de Brentano sobre a percepção

emocional que também teve direta influência na construção da concepção emocional dos valores de Scheler. Diz Brentano que é possível distinguir três níveis de orientação para algum objeto: 1. representar; 2. julgar; 3. amar ou odiar. [...] Diz Brentano que é possível amar ou odiar algo sem ter que conhecer ou que opinar sobre o ser ou o não ser desse algo. Scheler acolheu esta referência de Brentano, ligando-a a um terceiro nível de percepção à qual se refere em sua teoria da percepção emocional dos valores, recorrendo à sua recém-descoberta concepção de intuição.

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No que se refere às preferências [...] é importante ressaltar o seguinte: 1. na percepção interna, há um julgamento que acompanha cada ato como algo pensado numa esfera afetiva inteiramente livre; 2. as atividades da esfera afetiva são acompanhadas de uma grande complexidade de julgamentos; 3. assim como os julgamentos contribuem para aumentar a representação, as atividades afetivas parecem aumentar ainda mais, especialmente no que se refere à felicidade (BRENTANO, 1982, p. 181).

Eis algumas distinções de Brentano a respeito do

amor e o ódio que também repercutem em Scheler: 1. o amor e ódio diferem quanto ao seu objeto; 2. diferem tanto quando permanecem no plano geral, como no plano particular; 3. o amor e o ódio já passados podem conduzir ao arrependimento e ao sofrimento no presente ou ainda a um temor quanto ao futuro; 4. as relações afetivas são positivas ou negativas e se exprimem através do amor e do ódio; 5. a relação afetiva pode influir na orientação de uma afeição por um determinado objeto (BRENTANO, 1982, p. 185).

É inegável que Scheler colheu em Brentano essa

referência aos sentimentos de amor e de ódio, para vinculá-los aos valores, aproximando Brentano dos mestres de que estivera mais próximo – que foram Wilhelm Dilthey, Georg Simmel e principalmente Rudolf Eucken, junto a quem desenvolveu sua tese acadêmica em torno da incompatibilidade entre a lógica e a ética. Embora Scheler nunca mais tenha se referido a seu mestre acadêmico, ao longo de sua obra,

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sua fenomenologia parece ter sido elaborada a partir do método "noológico" desenvolvido por Rudolf Eucken, do qual retirou a sua noção de "intuição", em função da qual sempre reivindicou uma diferença em relação à noção de intuição de Husserl. Segundo Scheler, uma destas diferenças residia na origem escolástica do método de Husserl, enquanto ele – Scheler – tinha uma visão predominantemente agostiniana de intuição.

Além da diferença de idade, Scheler e Husserl colheram influências diferentes em decorrência da diferença de trajetória em suas respectivas ligações com o mundo acadêmico, porque fizeram carreiras universitárias bem diferentes. Enquanto Husserl fixou-se em Göttingen para, só mais tarde, transferir-se para Freiburg onde se aposentou, Scheler passou por diversas universidades, ficando por vezes, pouco tempo em cada uma. Começou sua carreira em Iena e passou depois pelas universidades de München, Göttingen, Köhn e Frankfurt. Depois do encontro de 1901 em Halle, cruzaram-se no o Círculo de Göttingen, quando colegas e alunos seus de München passaram a frequentá-lo.

A fenomenologia dos valores

A noção de valor é muito antiga no passado da

filosofia. “Axia” era a palavra que os gregos usavam para expressá-lo. Foi largamente usada na filosofia ocidental por Kant, Marx e Nietzsche principalmente, mas ninguém ingressou nas profundezas de seu conteúdo como Scheler, por fazer do valor o fio condutor de seu pensamento

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Acima do conhecimento científico, Scheler refere-se ao "conhecimento cultural" (Bildungswissen) que decorre das formas pedagógicas de criação e conservação da cultura e também a um "conhecimento essencial" pelo qual o ser humano busca superar o lado frágil e miserável de sua existência, através da intuição de uma realidade suprassensível e também ultrapoderosa (übermächtig) – que é a aquela pela qual se aproxima do sagrado.

A partir desta sua nova noção de "intuição fenomenológica", Scheler atribui à filosofia um conhecimento que difere do conhecimento histórico e do conhecimento científico, por ser "uma visão rigorosa das evidências essenciais inerentes à realidade" e está baseada na sua teoria da relação entre a ação e os valores. Os valores são o atrativo que se converte nas ações humanas dando um fundamento ético a todos os impulsos da vontade. Quanto mais queremos com força e energia, mais nos perdemos no reino dos valores – escreve Scheler em sua Ética. Essa sua teoria dos valores constitui a base de sua teoria da ação ética. Os valores são cognoscíveis por si, através da percepção emocional que os alcança instantaneamente e de imediato, porque constituem "essências a priori".

O ponto de partida da Ética de Scheler é a razão prática de Kant, contra a qual vê a necessidade de estabelecer uma distinção entre "bens", "fins" e "valores". Retomando a oposição feita por Husserl entre fatos e essências, Scheler diz que os fins são fatos e que os valores são essências. Bens são objetos dos desejos e os valores são essências que se depositam nos bens para serem percebidos. Os fins dos atos humanos, quando

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estes são oriundos de desejos naturais, estão relacionados aos bens. Já os valores são intuídos através de um terceiro tipo de percepção – a "intuição das essências" que ele denomina "percepção emocional" (Gefühl).

Trata-se então de distinguir o que é "a priori" do que é "formal". É neste ponto que Scheler se afasta da ética de Kant. Para Kant, tudo que é "a priori" corresponde ao que é "formal" porque formal é tudo quanto está inserido na própria razão, opondo-se ao que é "material" como sendo aquilo que corresponde à experiência. Para Kant, somente um conhecimento a priori e formal pode produzir conceitos “universais e necessários”, como são os juízos sintéticos a priori. Portanto, para Kant, o "a priori” corresponde ao formal por ser independente da experiência e o material corresponde ao "a posteriori", por decorrer da experiência. Kant transferiu para a ética sua teoria dos "juízos sintéticos a priori" como sendo a base para sua teoria do "dever" que se manifesta no princípio do imperativo categórico, ao qual atribui o caráter de um imperativo "sintético e a priori".

Segundo Scheler, a transferência dos juízos sintéticos a priori para a ética levou Kant a estabelecer um paralelismo indevido entre o que é “formal” e o que é “a priori”. Diz Scheler que os juízos de valor também podem ser "materiais", sendo simultaneamente "a priori". Sendo o valor uma “essência” – apesar disto – conserva seu caráter universal e necessário, embora só possa ser apreendido na medida em que venha a ser captado “materialmente”, entendendo por material tudo que se torna real ou não formal. Deste modo, ao

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se referir a uma ética material dos valores pretende demonstrar que os valores podem ser percebidos como objetos presentes no mundo real, conservando-se como essências e sem se tornarem objetos empíricos.

Diz também Scheler que há uma relação “universal e necessária” entre a vontade (como intuição) e os valores (como essências a priori). Os valores são objetivos no sentido de que são objetos da vontade e esta estabelece com os valores uma relação de objetivação, porque todo ato de vontade é também um ato da afirmação ou de negação de algum valor. Para demonstrar esta sua tese, Scheler recorre à demonstração desta hierarquia entre os e valores, na qual os inferiores ligados ao útil e ao agradável são também os mais impositivos e também os mais transitórios. Acima, estão os valores ligados à vida e, acima destes, os valores da beleza, da justiça e da verdade. Acima de todos, Scheler situa os valores ligados ao sagrado, que são os mais frágeis e mais duradouros.

Nesta visão hierárquica, Scheler recorre à noção de "preferência" desenvolvida por Brentano, segundo a qual, os valores "vitais", por exemplo, devem ser preferidos aos valores da utilidade ou do interesse sensorial. Nesta hierarquia, os valores inferiores são mais dependentes dos sentidos, mais efêmeros e também mais impositivos. Já os valores superiores são mais espirituais, mais duradouros e mais frágeis. Os valores mais elevados, por sua vez, são menos divisíveis, embora possam ser compartilhados por maior número de pessoas, enquanto os inferiores são mais divisíveis e mais individualizados.

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O significado ético desta escala de valores está na norma de que é sempre preferível um valor superior em uma situação de confronto com um valor inferior e sempre reprovável realizar atos que invertem essa hierarquia entre os valores, isto é, afirmar um valor inferior ao mesmo tempo em que se nega um superior. Nisto reside o caráter fenomênico e objetivo de sua teoria dos valores: funda-se em algo que pode ser apreendido ou intuído por si mesmo, isto é, sem serem impostos, obrigatórios ou ensinados.

Os valores e sua hierarquia indicam critérios de preferência, mas são destituídos do caráter "imperativo" a que Kant se refere. Lembra Scheler: tudo que tem o caráter de "dever" = ou "imperativo" é também destituído de espontaneidade e sem conteúdo ético. Tudo que é praticado por mera obediência e sem relação com a liberdade é também destituído de significado ético. O que torna ético algum ato é a livre opção por um valor. Para Scheler, portanto, não há relação entre aquilo que é "imperativo" e a “liberdade", como afirmava Kant. O "dever pelo dever" não pode ser, pois, a base de uma conduta eticamente justa.

A fenomenologia dos valores de Scheler conduz a uma teoria ética na qual o dever – no sentido de Kant – assume um caráter inteiramente objetivo e universal – mas sem o caráter “imperativo” e “formal” – como pretendia Kant. Para Scheler, os valores são essências que podem ser – e que efetivamente são – “intuídas” pela percepção emocional inerente a todo ser humano. Estas essências – que são os valores – não devem permanecer apenas como forma porque precisam ser

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“realizadas” em atos ou objetos reais para serem percebidos.

As coisas e tudo que aparece no mundo sensível, quando captadas pela percepção humana, se mostram como "portadoras de valor" ou então que pedem para serem transformadas em "portadoras de valor". O mundo real que circunda ou se oferece à percepção humana é, na visão de Scheler, inteiramente carregado de "suportes de valores" (Wertträgger). Nisto reside a objetividade dos valores: existem, aparecem e se mostram quando presentes no mundo objetivo dos atos, dos fatos e das coisas presentes no mundo real. Não se confundem com aquilo em que se depositam, mas precisam de depositários que os suportem para estarem no mundo.

Nesta sua interpretação da manifestação dos valores, Scheler rompe a separação rígida entre razão e emoção, entre cognitivismo e emotivismo, nos quais os valores ficam relegados a um plano meramente subjetivo e material. A tradição racionalista colocava o sentimento como manifestação da subjetividade, em oposição ao que é racional e objetivo. Como para Pascal, também para Scheler o sentimento é capaz detectar "razões" que ultrapassam o que está ao alcance da própria razão e dos sentidos.

Assim sendo, a percepção dos valores nada tem de racional: é prévia, instantânea e anterior à razão. Esta apenas segue ou confirma o que foi alcançado pela preferência emocional. Tem a ver com a intuição. Para Scheler, os sentimentos são intuições que conduzem a "atos intencionais" que convergem para estes "objetos ideais ou essenciais" que são os valores. É por meio do

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"sentimento do valor" (Wertfühlen) de que fala Scheler, que os valores aparecem, porque são "essências objetivas" que constituem objeto da intuição emocional que os apreende.

O processo cognitivo dos valores tem, portanto, um caráter intencional – no sentido em que são objetos para cada sujeito, estabelecendo assim um vínculo imanente, através de atos preferenciais. Deste modo, para Scheler, o valor ocupa o lugar que Kant atribui ao "dever". O que "se deve fazer", do ponto de vista ético, é realizar algum valor positivo – porque este ato se identifica assim com um ideal ético. O dever ético se identifica, portanto, com a realização de valores positivos e com a não realização de valores negativos.

Torna-se também eticamente negativo afirmar ou realizar um valor inferior no mesmo ato em que se, nega ou rejeita um valor superior. Isto é algo cognoscível por si mesmo, porque está de acordo com uma hierarquia universal e objetiva que todo ser humano intui porque tem acesso imediato a essa hierarquia, no interior de si mesmo.

Nesta manifestação dos valores ou nesta fenomenologia dos valores, já não há mais o caráter obrigatório contido, segundo Kant, no princípio imperativo do dever e sim no aperfeiçoamento da consciência ética, de modo a dirigir a vontade na direção em que se efetive tudo em que os valores sejam ou possam ser realizados dentro desta sua ordem hierárquica. Scheler insiste em mostrar que a vontade humana sempre se inclina para os atos preferenciais relacionados à realização de valores positivos. Se valores negativos são realizados – isto se dá por miopia

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ou engano no ato de julgamento dos valores. Não se trata, portanto, de submissão a uma norma racionalmente deduzida, como pensava Kant. Rompe-se assim – na visão ética de Scheler – a oposição entre o "dever ser" e a subjetividade na medida em que esta é entendida como impulso emocional.

Deste modo, Scheler cria uma "fenomenologia dos sentimentos" na qual o ato de vontade visa realizar o valor e não apenas por temor de desobedecer à norma. A vontade aspira, através deste "sentimento do valor" (Wertfühlen), que se dê, isto é, que o agir busque a realização do valor em lugar de submeter-se a uma norma. Todo ato de obediência a uma norma, ainda que esta seja elaborada pelo próprio sujeito, tem sempre um caráter imperativo. A liberdade do criador da norma, como interpreta Kant, não permite a liberdade da escolha, por ser apenas dedução racional. É no ato de preferência – cujo conteúdo é inteiramente emocional - que se situa a plena liberdade da vontade, pela qual o sujeito da ação capta valores por meio de um ato de exercício de sua livre escolha. Este é o motivo – lembra Scheler – pelo qual o amor não pode ser obrigatório e nem prescrito, como lembra Kant. De fato, "não é possível obrigar alguém a amar" porque o amor decorre inteiramente de uma opção por valores.

Apesar de haver uma escala na qual os valores são absolutos, no sentido de que são eternos, imutáveis e fixos, nem por isso Scheler deixa de admitir sua "relatividade histórica". Esta relatividade é mais aparente do que real. Diz Scheler que – assim como não se pode ver um grande painel muito de perto, as variações da subjetividade só adquirem sentido quando

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vistas de longe. O que torna relativa à percepção dos valores é o que decorre principalmente de algum estágio de miopia ética semelhante àquela que toma conta de quem vê uma obra de arte – uma pintura, por exemplo, – tão de perto que só consiga captar uma incompreensível mistura de cores.

Seguindo ainda os passos de Scheler, é importante assinalar que sua Ética admite as variações dos valores. Toda variação dos valores decorre dos estados em que se encontra a percepção da subjetividade humana. A beleza, por exemplo, não deixa de ser beleza quando se perde ou é esquecida sua presença em um objeto belo. A percepção dos valores, entretanto, é sempre instantânea, mas também se esgota na duração limitada do ato de percepção de algum valor. Este ato de captação ou de realização de um valor tem sua duração limitada, o que não implica na transitoriedade do valor.

Os valores não mudam. O que muda – lembra Scheler – é a ocasião em que se manifestam e o momento em que os valores são percebidos. Neste sentido, não permanecem fixos diante da percepção humana. Variam de acordo com a ocasião, com o ethos, com a adesão a ética, com os tipos de ações, com a moralidade prática e com os costumes. No caso do ethos, Scheler dá, como exemplo, as variações decorrentes do "ressentimento" – que é o sentimento negativo de vingança oriundo do sentimento negativo de impotência diante de algo que não pode ser materialmente realizado. No caso da ética, cita a influência das crenças e das opiniões sobre as normas éticas. No caso dos tipos de ações, cita os exemplos de

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mudanças de valores de acordo com as instituições, como no caso dos motivos sociais que causam mudança no julgamento do roubo e do adultério. No que se refere à moralidade prática e aos costumes, Scheler cita os casos de aumento da criminalidade – não como decadência e sim com aumento ou o amadurecimento da consciência dos valores. É com o aumento da percepção dos valores que os atos de valor negativo se tornam percebidos e, por decorrência, também reprovados.

Uma das teorias mais originais de Scheler é sua reinterpretação do fenômeno da simpatia, a partir de textos de Adam Smith e de Schopenhauer. Mostra Scheler que simpatia é um sentimento que difere de outros tais como compreensão e imitação, como também os sentimentos que unem emocionalmente certos grupos de pessoas – seja para momentos de êxtase místico, seja para psicoses de massa. A simpatia, segundo Scheler, difere de todos estes sentimentos e também da simples compaixão com a dor alheia. Para ele, a simpatia tem a ver com o amor, do mesmo modo que a antipatia tem a ver com o ódio. Para Scheler, o amor tem relação direta com valores: o amor se move de um valor para outro, podendo elevar-se, passando de valores inferiores para valores superiores. O amor – como seu oposto, o ódio – são atos intencionais porque são atos em o que sujeito visa instantaneamente seu objeto.

Segundo Scheler, o amor muda mais quem ama do que aquele é amado porque a base do amor é a simpatia que, literalmente, significa sofrer junto ou sentir junto. Como o amor, a simpatia é espontânea:

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não se pode obrigar alguém a amar ou a simpatizar com alguma outra pessoa. A simpatia é o ponto de partida do amor, no qual há o empenho em obter ou alcançar valores, como ocorre na noção de ágape ou de eros, em Platão.

Scheler diz haver na mente humana uma forma própria de conhecimento, que é o fenômeno da empatia, que é um sentimento que está ´presente até mesmo nos animais. A empatia é uma forma de ler emoções alheias em seu olhar, em seus gestos, na sua voz ou na sua postura física. Sua teoria da empatia estava fundada na tese de que cada um vive mais nos outros do que em si mesmo. Por isso, cada um se descobre a si mesmo mais pela diferenciação com os outros do que por mera identificação consigo mesmo.

Scheler também se refere a uma fenomenologia da religião dentro de uma interpretação nada racional - e muito menos tomista - relacionada a provas ou demonstrações. Sua visão da religião está mais próxima da intuição agostiniana relacionada com a intencionalidade do sujeito em relação ao sagrado, a partir da experiência da própria fragilidade contida na frase "eu nada sou e tu és tudo", pela qual o ser humano pode se ver como um reflexo de seu criador.

Scheler parte do pressuposto de que o "nada" não existe, mas a experiência interior do nada leva a uma "intuição" de que "algo existe" além do que possa ser percebido. Neste sentido, o ser humano tem diante de si a visão do valor do sagrado como foco direcional desta sua intuição. Por isso, Scheler vê no sagrado uma intuição emocional, por ser algo em que todo ser

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humano pressente ou intui como uma possibilidade de ultrapassar o nada de sua existência pessoal.

Nesta direção, o divino se revela ao ser humano pois, como diz Scheler, "só um ser com características de divindade pode ser a causa da religiosidade humana". Scheler não usava este argumento como "prova" (Beweis) e sim como "indicação" (Aufweis) para algo que cada um tem que descobrir individualmente. A fenomenologia da religião de Scheler convergiu para uma ontologia da Deidade como uma objetivação da fragilidade humana que se converte em uma "visão essencial" (Wesenseinsicht) do próprio ser humano.

A personalidade de Scheler

As pessoas que conheceram Scheler a ele se

referem como tendo sido uma personalidade extremamente complexa. Era um homem passional e instável. Consta que fumava sessenta a oitenta cigarros por dia e que descuidava bastante de sua saúde – motivo inclusive de ter tido uma existência tão curta. Sua carreira universitária passou por frequentes mudanças de cidades e de universidades devido, em parte, à instabilidade de seu temperamento e também aos conflitos que provocava ou que o perseguiam.

Sua inteligência penetrante se manifestava através de uma indagação constante e uma intensa abertura para todos os novos campos científicos e filosóficos com que se deparava. Teve tempo de conhecer em vida as primeiras obras de Freud, de Einstein e da física quântica. Alguns dizem mesmo que vivia filosoficamente, no sentido de estar sempre

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indagando, refletindo e interpretando todos os fatos da vida diária, como também lendo e se informando de tudo que se publicava ou que surgia no cenário intelectual de seu tempo.

Sendo intensamente emotivo, suas exposições orais comoviam seus ouvintes, mas seus textos nem sempre revelam tudo aquilo que pensava. Parecia haver sempre alguma distância entre o que falava e o que escrevia. Causava uma impressão fascinante quando expunha oralmente seu pensamento e até hoje causa uma impressão de dispersão a quem lê, pela primeira vez, seus textos. Tendo deixado uma volumosa obra filosófica em seus pouco mais de cinquenta anos de vida, sofreu o efeito dessa diferença entre o que pensava, o que falava e o que escrevia – em grande parte devido à intensidade de sua vida emocional.

Durante o período em que Scheler frequentava o Círculo de Gottingen, do qual nasceu o Movimento Fenomenológico, Scheler impressionava a todos com sua participação, com suas interpretações e com seus textos. Sobre seu convívio como Scheler no Círculo de Göttingen, Edith Stein o descreveu com palavras eloquentes de profunda admiração. Disse textualmente ela que ao ouvi-lo, "[...] a primeira impressão que Scheler causava era fascinante: nunca mais conheci em um outro homem aquele mesmo 'fenômeno da genialidade' em estado puro" (STEIN, 1952, p.50).

Sua eloquência, sua inquietação filosófica e sua permanente indagação a respeito de tudo mostravam estar ele vivendo em constante estado de reflexão filosófica. Nas palavras de Maurice Dupuy, Scheler nunca separou o ato de filosofar do ato de viver. E

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acrescenta: Scheler tinha a filosofia na alma. Não filosofava apenas em sua mesa de trabalho ou na sala de aula, mas em todas as circunstancias, em tudo e em todos os lugares (DUPUY, 1959, p. 729).

Há quem reprove a maneira desordenada como expressava por escrito seu pensamento, devido a certas incoerências aparentes e à eventual imprecisão de seus conceitos. A fecundidade de suas ideias, por vezes, o levava a escrever frases excessivamente longas nas quais se ocultam passagens brilhantes e noções nem sempre suficientemente claras e precisas. Scheler admitia as insuficiências de seu estilo. Consta que certa vez teria dito: "eu tenho a palavra, não a frase" (DUPUY, 1959, p.733-734).

Sua rebeldia contra a lógica o levava a ter uma vida inconstante, na qual o tumultuado movimento de suas ideias se misturava a uma vida a um só tempo sensual e contemplativa. Envolveu-se em conflitos que poderiam ter sido evitados e buscou alcançar metas muito mais numerosas do que seu poder de as atingir. Consta que várias vezes teria dito a seu grande amigo Dietrich von Hildebrand: "Eu gostaria de começar cada manhã uma vida nova e livre de todos os empecilhos anteriormente vividos" (HELDEBRAND apud DUPUY, 1959, p.735).

Sua vida foi marcada por pulsões irresistíveis e constantes que o levaram a passar por experiências excêntricas ou até mesmo desagradáveis. Colegas e amigos com os quais conviveu descreveram sua personalidade como contendo traços de certa natureza primitiva que revelava certas condutas que oscilavam entre a impulsão e a ascese – tal como ele próprio

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descreve a natureza humana: "[...] uma permanente tensão entre o espírito e os impulsos" (SCHELER, 1986, p. 36). Este conteúdo passional de sua personalidade não só se reflete em seus textos como também foi a causa da incompreensão de alguns de seus contemporâneos, como foi o caso de Husserl com seus comentários depreciativos e injustos que contribuíram em parte para o esquecimento que desceu sobre a obra de Scheler.

A personalidade tumultuada e passional de Scheler se revela nas insuficiências de sua linguagem e nas aparentes contradições ou ambiguidades de seus textos, por vezes difíceis de serem interpretados. Segundo Troeltsch, há em Scheler uma mistura de "Leichtsinn, Tiefsinn, Scharfsinn" (sentido leve, profundo e obscuro) – o que atribui à sua filosofia um caráter assistemático, no qual a coerência cede espaço à criatividade e a ordem cede espaço à originalidade.

Ortega y Gasset fez dele um retrato semelhante, mas cheio de admiração e respeito. Por ocasião de seu prematuro desaparecimento, escreveu um longo memorial, no qual retrata estes paradoxos inerentes à genialidade de Scheler e o qualifica com estas belas palavras: ¨um embriagado de essências¨:

A busca permanente das essências na filosofia estava sendo alcançada pela fenomenologia e o primeiro gênio – depois do paraíso de Adão – que das essências se embriagou foi o hebreu Max Scheler. Foi, por este motivo, o pensador por excelência de nossa época. Agora, com sua morte, esta época se encerra – a época de descoberta das essências. Sua obra reúne qualidades com estranho paralelo entre a

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clareza e a desordem. Em cada um de seus livros fala-se de tudo, como se o autor não conseguisse conter a avalanche de significados que o dominavam. [...] vivia mentalmente atropelado pelas mais puras riquezas que chegavam às suas mãos – como as joias que brotam das mãos de um prestidigitador. Nunca escreveu uma frase na forma direta ou de forma lacônica, clara ou evidente, como produto da serenidade. Tinha tantas serenidades que se sentia atropelado [...] como se fosse um embriagado de serenidades, um ébrio de claridades. [...] A morte de Scheler deixa a Europa sem a sua melhor mente, na qual nosso tempo se refletia com espantosa precisão. Agora, é preciso contemplar seu esforço, acrescentando-lhe o que lhe faltou: arquitetura, ordem, sistema (ORTEGA Y GASSET, 1983, p.147-148).

Viver e pensar

A vida de Scheler corresponde muito à sua

filosofia. Não só dizia que as emoções constituem o centro motor das vidas humanas como também expressou suas emoções com tal intensidade que causaram a redução de seu tempo de vida. Tinha especial preocupação em aproximar suas ideias do cenário social e político de seu tempo. Foi por este motivo que, durante seu período em Köhn, manteve amizade com Conrad Adenauer, então prefeito daquela cidade e que viria a ter extraordinário papel na reconstrução da Alemanha, depois da tragédia nazista.

Sempre enfatizou que o conhecimento científico dos fenômenos em suas manifestações mecânicas ou em sua transformação em tecnologia,

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além de ser inevitável é insubstituível pelas crenças religiosas, porque não tem capacidade de satisfazer às necessidades espirituais do ser humano ("humanitas", nas palavras de Scheler) como também pode servir a novas formas de barbárie.

Depois que os Grupos de estudos fenomenológicos de Gottingen e München se dissolveram em 1914, devido ao início da Primeira Guerra Mundial, Scheler sentiu-se comprometido com os fenômenos sociais que tomavam conta do momento histórico em que vivia. Elaborou textos sobre a guerra e sobre o ódio aos alemães para procurar entender aquele tempo de fortes impactos vividos nas primeiras décadas do Século XX. A partir do início da primeira guerra mundial, Scheler e Husserl seguiram caminhos diferentes. Husserl transferiu-se para Freiburg, onde veio a ter Edith Stein e, posteriormente, Martin Heidegger como assistentes. Scheler transferiu-se para a Universidade de Colônia e ingressou em uma fase de grande proximidade com as comunidades católicas do mosteiro de Beuren, próximo a München. São deste período suas obras mais próximas do pensamento religioso, como Do eterno no homem e Morte e sobrevivência.

Ao afastar-se do núcleo de pensadores que deram início à filosofia fenomenológica, Scheler passou também a se interessar por questões sociais e políticas. Por ocasião da Primeira Guerra assumiu inteiramente a causa alemã, tendo publicado obras em torno do conflito de seus conterrâneos com outros povos. Uma destas obras foi "O gênio da guerra e a guerra alemã" (Der Genius der Krieg und der Deutsche Krieg) que foi

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publicada em 1915. Outra obra foi "Guerra e construção" (Krieg um Aufbau) publicada em 1916 e outra ainda foi "A origem do ódio aos alemães" (Der Ursachen des Deutchenhasses) publicada em 1917. Sua preocupação com o socialismo implantado na Rússia em 1917 o levou a publicar um livro sobre um socialismo cristão (Zusätze: Christliche Sozialismus als Antikaptalismus und Christliche Demokratie) que – se vivesse mais tempo - viria a ser um ponto de proximidade como Konrad Adenauer, quando este assumisse a liderança de sua concepção de democracia cristã. Por todos estes motivos, seria impensável que Scheler viesse a ter qualquer postura de aprovação ao nazismo (que não chegou a conhecer), como ocorreu com Martin Heidegger.

No final da Primeira Guerra Mundial, Scheler aceitou tomar parte na representação diplomática de seu País nas negociações de paz ocorridas na Bélgica em 1918. Sua preocupação com o confronto crescente entre o socialismo inspirado na Revolução Russa de 1917 e a expansão do capitalismo industrial o levou a uma indagação a respeito das novas formas de organização da sociedade. Suas reflexões sobre o papel do trabalho nas sociedades industriais e sobre o papel político do capitalismo ocidental face à experiência marxista do bolchevismo russo lhe deram a o pressentimento ou talvez mesmo a indicação de que nenhuma destas duas alternativas seria admissível ou aceitável.

A partir de suas observações sobre o cenário político de seu tempo, Scheler direcionou seu pensamento para uma vertente social, por ocasião de

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sua passagem pela Universidade de Colônia, em 1923, publicando obras relacionadas a uma concepção equidistante do capitalismo e do bolchevismo, que poderia vir a ser algo próximo a um socialismo cristão ou a uma democracia cristã. Foi nesta fase de sua trajetória filosófica que se aproximou de Konrad Adenauer que era, naquele momento, Prefeito da Cidade de Colônia.

Também é desta fase a publicação de suas obras relacionadas à Sociologia do Conhecimento nas quais procura aproximar sua teoria dos valores voltadas à antropologia de caráter metafísico e para uma concepção da vida social na qual o processo de formação das ideias de organização política leve em consideração, acima de tudo, a pessoa humana.

A partir de 1919, Scheler passou a trabalhar no Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Colônia. Durante seu período como Professor na Universidade de Colônia, passou a trabalhar com estudos sociais e com a noção de sociologia do conhecimento, como produção do saber. Suas obras deste período se aproximam de uma antropologia: As formas do saber e da cultura, O homem e a história, Conhecimento e trabalho e Política e ética: a ideia de uma paz perpetua.

Depois de sua permanência na Universidade de Colônia, teve início a última fase de sua carreira acadêmica e filosófica. Em 1927, transferiu-se da Universidade de Colônia para a Universidade de Frankfurt para desenvolver trabalhos ligados à antropologia e à pesquisa social, que viriam a

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caracterizar futuramente aquela Universidade sob o nome de Escola de Frankfurt.

É desta fase a convergência de Scheler para seu projeto mais ambicioso - que seria elaboração de uma concepção não só antropológica, mas também ontológica do mundo. Scheler estava iniciando sua interpretação sobre o lugar do homem no universo quando se tornou também um dos primeiros leitores de uma obra recém-publicada: Ser e tempo. Tendo recebido um exemplar desta obra, em 1927, quando ainda era quase desconhecida, convidou Heidegger para um diálogo, hospedando-o em sua casa durante três dias, durante os quais discutiram vários aspectos dessa obra, vindo inclusive a redigir de próprio punho um largo comentário no exemplar que recebera.

Naquele período estava iniciando seu projeto mais ambicioso: unir o mundo dos valores com uma visão do universo no qual a presença do humano, como pessoa, é o ponto de contato entre as forças cegas da natureza (Drang) e à atração exercida pelo Espírito (Geist). Atropelado pela pressa em levá-lo adiante, elaborou um texto condensado que viria ser um resumo ou um preâmbulo da futura obra que viria ser sua ontologia. Este texto introdutório – que teve o nome de O lugar do homem no cosmos foi concluído pouco tempo antes de um fulminante infarto cardíaco, no dia 19 de maio de 1928, que o retirou no mundo. Em um dos textos que deixou sobre o enigma da morte - Tod und Fortleben – Morte e sobrevivência – afirmara que alguma continuidade da vida pode ser pensada. É inegável que Platão e Agostinho deixaram ecos em sua mente.

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Scheler, Husserl e Heidegger

Scheler e Husserl – apesar de a afinidade

intelectual que os uniu na origem do Movimento Fenomenológico – tinham personalidades bastante diferentes e talvez opostas. Embora tivessem ambos ascendência judaica tomaram direções filosóficas tão diferentes quanto aos seus respectivos projetos filosóficos e também seus modos de viver. Husserl era metódico, rigoroso, sistemático. Scheler era brilhante, instável e fecundo. Scheler buscava compreender a existência humana e o mundo em todas as suas direções e Husserl seguiu sempre uma trajetória única. Tendo iniciado juntos o Movimento Fenomenológico, logo se distanciaram, após à publicação, em 1913, da primeira edição do Anuário.

A Guerra de 1914 também os separou não apenas fisicamente como também filosoficamente. Scheler, como já foi dito, ingressou em sua fase mais próxima do catolicismo e à defesa da causa alemã, passando por várias universidades e adotando a seguir uma vertente antropológica, para terminar sua vida com um projeto de caráter ontológico, em nítido distanciamento não só com relação a Husserl como também com relação a Heidegger.

Husserl – depois de afastar-se de do Círculo de Göttingen– concentrou toda sua carreira universitária em Freiburg, onde se aposentou e onde teve Heidegger como discípulo e continuador. Afastou-se de Scheler e passou a atribuir a si mesmo a autoria da Fenomenologia, como conceituação filosófica,

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excluindo propositalmente a memória e principalmente a participação de Scheler na fundação desse movimento de ideias. Husserl, além dos comentários depreciativos a respeito da obra de Scheler e, já tendo convertido Heidegger em seu sucessor não apenas na cátedra de metafísica em Freiburg como também de seu pensamento, rompeu seu relacionamento com seu ex-discípulo, na década de 30, devido à perseguição nazista que o ameaçava e à omissão de Heidegger em protegê-lo perante o poder político que se instaurara na Alemanha.

Silêncio e retorno

A morte prematura em 1928 impediu Scheler de

viver no outro período de grandes mudanças no cenário político em que ingressaram a Alemanha e o mundo. Se vivesse nas décadas de 30 e 40 – seria impensável supor que Scheler tivesse a mesma opção política de Heidegger. Tendo ascendência judaica como Husserl, sua viúva evitou a reedição de suas obras, com receio de eventual perseguição ao filho que Scheler não chegou a conhecer. Com o novo cenário das duas décadas seguintes, um longo silêncio desceu sobre sua filosofia e sua memória, na Alemanha e no mundo.

O esquecimento em que mergulhou a obra e a personalidade de Scheler foi mais tarde retratado por Hans-George Gadamer, que o conhecera quando estudante, na década de 20, antes mesmo de iniciar seus estudos junto a Heidegger. Sobre o silêncio em

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que mergulhou a memória de Scheler escreveu ele o seguinte:

Pode parecer incrível. No entanto, se hoje se perguntar a um jovem ou até a uma pessoa de idade que se interesse por filosofia, descobre-se que não sabem quem foi Max Scheler. Poderá alguém talvez dizer que foi um pensador católico ou até mesmo o autor de importante 'ética material dos valores' e que, de certa forma, pertencia ao movimento fenomenológico como um continuador de Husserl e de Heidegger. De qualquer forma, a consciência filosófica contemporânea não reconhece a Scheler presença comparável à de Husserl ou à de Heidegger. Como isso é possível? Quem foi realmente Max Scheler? (GADAMER, 2012, p. 556).

Apesar de ter ficado muito esquecido, durante

grande parte do Século XX, em decorrência de sua morte prematura, Scheler, teve seu pensamento restaurado na publicação póstuma dos quinze largos volumes dos textos que deixou, graças ao incansável trabalho de Manfred Frings, seu editor, tradutor e intérprete. A vida e a obra de Scheler de algum modo refletem sua visão emocional da existência humana e foi através dessa visão emocional da vida e do mundo que comoveu os que leram seus textos ou que com ele conviveram. Vários foram seus contemporâneos que se referiram à importância de sua obra, sua contribuição para a Filosofia Alemã e para a Filosofia em geral. Uma destas manifestações surgiu de Heidegger, com quem Scheler se encontrara pouco de deixar o mundo. O autor de Ser e Tempo, lembrou-se das conversações que tiveram, nas quais ouviu de Scheler demonstrações de

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admiração pela obra que lera, ainda que, em nada alterasse sua ontologia que estava em fase de construção. Heidegger também não ocultou s admiração que guardou daquele seu encontro. Ao receber a notícia da súbita morte de Scheler, Heidegger pediu aos alunos que fizessem um momento de reverência à sua memória, vindo em seguida a escrever e publicar o seguinte:

Max Scheler foi - até onde o conjunto de sua obra alcançou - a mais importante manifestação da filosofia alemã atual. Não, da Europa ou, talvez, de toda a filosofia contemporânea. Teve por característica o estranho fato e a enorme capacidade de abordar com toda intensidade todas as interpretações possíveis. [...] Ninguém na filosofia contemporânea ousou ir mais longe do que ele, sendo isto o sinal de sua grandeza (HEIDEGGER, 1982, p. 136).

Também a respeito do desaparecimento de

Scheler, Nicolai Hartmann, seu admirador e continuador escreveu e publicou o seguinte:

A suprema arte de ingressar no desconhecido ainda não foi ultrapassada. No entanto, em toda a História algo de novo ocorreu. Lá está Scheler situado no mesmo nível de pensamento de Fichte, de Schelling, de Nietzsche ou talvez de Platão. [...] Ele foi um pensador dos fundamentos de todos os problemas, como alguém que se lança destemidamente em direção às origens. E, frequentemente, indo em busca de novas questões, chegou próximo aos antigos problemas (HARTMANN, 1928).

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Embora Scheler jamais tenha reivindicado para

si a coautoria do impulso inicial deste gigantesco estuário de ideias em que se tornou o Movimento Fenomenológico, imensa foi sua contribuição para que a filosofia se renovasse ao longo do Século em que viveu, ao conceber uma nova noção de deste fenômeno universal chamado valor. Antes de Scheler, muito se falara e se escrevera sobre valores, mas sem atribuir-lhe o papel fundamental de elemento de ligação entre o individual e o universal. A partir de Scheler e depois dele, os valores passaram a significar o elo que liga o impulso da matéria à atração do espírito, tal como viria a ser desenvolvido em sua obra inacabada na qual pretendia refletir sobre o lugar do homem no universo.

A filosofia é intemporal. Embora seja produzida por quem está inserido em seu tempo, tem o poder de perdurar e renascer continuamente em todos os tempos e épocas que sucedem à sua produção. Neste sentido, Platão é tão atual quanto Descartes e sempre se pode colocar lado a lado os textos de Agostinho e de Hegel. Spinoza só foi compreendido cem anos depois de sua morte. Será em decorrência deste caráter intemporal da filosofia que a obra de Scheler poderá também renascer muitas vezes, à medida que seus textos forem retirados das obscuridades que guardam para serem melhor interpretados no futuro.

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Segundo Capítulo

Reflexiones acerca de una relación olvidada: Rudolf Eucken y Max Scheler

Marisol Ramírez Patiño

Introducción

Es conocido el primer encuentro que sostuvo

Max Scheler (1874-1928) con Edmund Husserl (1859-1938) en Halle, durante una recepción organizada por Hans Vahinger, fundador de los Kant-Studien, en 1902. Scheler era entonces tan sólo un Privatdozent procedente de Baviera que, tras haber realizado estudios de filosofía, medicina, psicología y sociología en las universidades de Múnich, Berlín y Jena, se había doctorado y habilitado al profesorado en esta última. En su relato de esa primera reunión, Scheler da a conocer que, habiendo llegado a la convicción de que el campo del dato intuitivo se extiende mucho más allá del marco restringido de la intuición sensible, hecho que le llevó a alejarse de la filosofía kantiana, a la que había estado próximo hasta ese momento y retirar de las prensas un trabajo de lógica escrito bajo ese presupuesto, descubrió, de hecho, una asombrosa convergencia de puntos de vista con Husserl:

Cuando expresó esa opinión ante Husserl y dijo que veía en esa evidencia un nuevo principio fructífero para la construcción de la filosofía teorética, Husserl repuso al punto que él también había propuesto, en su nueva obra sobre lógica de inmediata aparición,

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una ampliación análoga del concepto de intuición a la llamada ‘intuición categorial (SCHELER, 1973, p.308).

A pesar de las diferencias que más tarde

terminaron por distanciar a estos dos pensadores1, no hay duda de que ese momento marcó el inicio de una relación que no sólo fue fructífera para el desarrollo filosófico del joven Scheler, sino también para el emergente movimiento fenomenológico. Tal como expresa Ortega y Gasset, Scheler fue “el primer hombre de genio, el Adán en el nuevo paraíso” (ORTEGA Y GASSET, 2010, p.510) de la intuición eidética que la fenomenología de Husserl había hecho accesible, el primero para quien todas las cosas, incluso las más familiares, revelaban su esencia y su significado. Partiendo de esta concepción de la fenomenología, Scheler, en un desarrollo altamente creativo, decidió darle un nuevo giro para aplicarla en el campo de la ética, aspecto que no había sido contemplado cabalmente por su fundador; esto le permitió devolverle un terreno a la vida emocional al que libera del prejuicio de lo desordenado, de lo caótico, de lo meramente empírico-psíquico, poniendo al descubierto las regularidades de sentido de los estratos de las vivencias y actos emocionales, pero también, el

1 De acuerdo con Spiegelberg, Husserl habría nombrado a la fenomenología de Scheler como "oro de los tontos" (Talmi), en comparación con el oro genuino de la fenomenología sólida. También, en una de sus cartas a R. Ingarden fechada el 19 de abril de 1931 (tres años después de la muerte de Scheler) Husserl lo llamó, junto con Heidegger, una de sus dos “antipodas”. Cf. Spiegelberg (1971, p. 230).

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acceso a una peculiar clase de esencias y relaciones de esencia que viene a constituir, frente a las demás, un nuevo continente ontológico: el reino de los valores. Este hallazgo, le aseguró un lugar central en la historia de éste, al punto de ser considerado a los ojos del público alemán de principios del siglo XX, como “el fenomenólogo número dos” entre el propio Husserl y Heidegger (SPIEGELBERG, 1971, p. 228).

Como efecto colateral de este hecho, algunas exegesis simplificadoras suelen referirse a Scheler únicamente como el alumno y colaborador más destacado de Husserl. No obstante, es equivocado ver a Scheler de este modo, dado que él tenía formadas ya muchas de sus convicciones filosóficas a las que no estaba dispuesto a renunciar, razón por la cual siempre interpretó su toma de contacto con Husserl como un encuentro entre dos pensadores que compartían las mismas metas e inquietudes, y no como el punto de partida de una relación en la que él ocupara el lugar del discípulo. De ahí que, “la influencia efectiva de la fenomenología no se puede retrotraer en Scheler más allá de 1906, año en que es trasladado a Múnich y el primer testimonio escrito de esta influencia no se encuentra hasta 1911” (PINTOR-RAMOS, 1979, p. 48).

Max Scheler comenzó su carrera filosófica al lado y bajo la influencia de Rudolf Eucken (1846-1926), prolífico escritor laureado en 1908 con el Premio Nobel de Literatura y hoy prácticamente olvidado. Bajo su dirección e inspiración elaboró, entre otros escritos, sus dos primeros trabajos importantes: su tesis doctoral Beiträge zur Feststellung Der Beziehungen Zwischen den logischen und ethischen Prinzipien (Contribuciones

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a la determinación de las relaciones entre los principios lógicos y éticos) de 1899 y el trabajo de habilitación, Die transzendentale und die psychologische Methode (El método trascendental y el psicológico) de 1900. Con todo, tal como expresa Sellés: “Sus biógrafos suelen considerar que el influjo de Eucken fue escaso en Scheler; es más que la filosofía realista scheleriana se entiende como una reacción contra el idealismo de aquel” (SELLÉS DAUDER, 2009, p. 15). Sin embargo, hemos de rechazar desde ahora tal afirmación, pues es claro que esa formación inicial dejó una impronta en Scheler. La intención de estás líneas es, por consiguiente, presentar algunas características y alcances de esta desentendida relación. Creemos que Eucken no sólo le proporcionó un círculo de ideas y autores que determinaron su horizonte en aquella época, sino que, algunas de las tesis claves que vertebran el pensamiento de Eucken serán asumidas también por el joven Scheler, tanto en el aspecto de la actitud filosófica global, como así también desde el punto de vista del contenido y la metodología.

Los inicios académicos de Scheler y el encuentro con Rudolf Eucken

En el otoño de 1894 Scheler se matriculó para

iniciar sus estudios universitarios en la Universidad de Múnich. El primer semestre como estudiante de filosofía y de ciencias naturales; el segundo, sin embargo, como estudiante de medicina. La razón de este viraje en sus estudios se debió, por un lado, al conflicto interno derivado del proceso de clarificación

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de sus intereses intelectuales, por el otro, al temprano apego que el autor desarrolló hacía la mujer que más adelante se convertiría en su primera esposa, Amélie von Dewitz-Krebs2. Empero, al mismo tiempo que asistía a sus lecciones en la Facultad de medicina, Scheler continuó frecuentando algunas cátedras filosóficas:

Con Theodor Lipps, representante de una filosofía de la conciencia basada en la psicología, escuchó una introducción a la filosofía, incluida su historia, así como una conferencia sobre la psicología como base de todas las humanidades, con Carl Güttler (1848-1924), un Privatdozent en conflicto con el catolicismo que en Múnich promovía sin éxito la filosofía de Kant, escuchó una conferencia sobre la Enciclopedia de la Filosofía, y con el viejo filósofo de la cosmovisión especulativa hegeliana, Moritz Carrière, escucho una conferencia sobre el Fausto de Goethe (HENCKMANN, 1998, p 17).

2 Luego de graduarse del Ludwigsgymnasium en 1894, Scheler recibió de su padre un viaje a Italia: “[…] en este viaje, Scheler conoció en Bruneck/Tyrol a una mujer siete años mayor que él, Amélie von Dewitz-Krebs. “Debió haber habido una fascinación recíproca entre Max Scheler y Amélie von Dewitz-Krebs similar a la de un rayo. Ella, que había vivido en buenas condiciones y tenía una hija de siete años de su primer matrimonio, había estado distanciada durante algún tiempo de su marido adicto a la morfina” (MADER, 1980, p.20). Ya en sus días de estudiante Scheler estuvo comprometido, aunque sin casarse, a Amélie von Dewitz-Krebs y ella ejercía en ese momento una profunda influencia sobre él.

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Al año siguiente Scheler se trasladó a Berlín, lugar de residencia de Amélie, y estudio dos semestres en la universidad, aún matriculado como estudiante de medicina. Pero, a pesar de estas inscripciones en la profesión médica, Scheler no dejó de manifestar su interés por la filosofía, tal como lo atestigua su asistencia un curso sobre la historia de la filosofía con Wilhelm Dilthey y una más sobre psicología social con Georg Simmel, de quienes obtuviera las características esenciales de su filosofar posterior3. Finalmente, en 1896, a la edad de 22 años, Scheler terminó de una vez por todas con el proyecto de emprender una carrera exótica como médico a bordo de un barco (LESSING, 1969, p.342) y se dirige a la Universidad de Jena, en donde se inscribe, ya no como estudiante de medicina, sino de filosofía y ciencias naturales. Sin embargo, de acuerdo con la investigación realizada al respecto por W. Henckmann, poco se sabe acerca de los motivos que llevaron a Scheler a tomar esa decisión. El asunto se vuelve aún más enigmático si consultamos lo que el propio Scheler escribió en el informe autobiográfico incluido en su tesis doctoral sobre el significado de este paso por Berlín: “Fue aquí donde el autor tomó la idea del presente trabajo. La cuestión acerca de la unidad y la relación de la cultura teorética y práctica se presentó casi al mismo tiempo desde el inicio de sus estudios, así como de sus experiencias vitales y personales más

3 “Dilthey le dio un sentido de la historia de la filosofía y lo introdujo a la filosofía del vitalismo. Stumpf contribuyó con el interés y la técnica de la psicología descriptiva. Simmel fue una combinación de historiador, sociólogo y filósofo e introdujo a Scheler en el estudio de las formas culturales” (RANLY, 1967, p.1).

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persistentes” (HENCKMANN, 1998, p. 18). Henckmann cuestiona, con razón, lo siguiente: “¿Por qué Scheler no envió su disertación al lugar donde se le había presentado tal idea innovadora? ¿Por qué no elaboró sus ideas sobre la unidad entre la cultura teórica y la práctica bajo la guía del famoso filósofo Dilthey o del igualmente famoso K. Stumpf?” (HENCKMANN, 1998, p. 18-19). Otro estudioso de la obra de Scheler, John Raphael Staude, ha teorizado a este respecto. De acuerdo con el investigador estadounidense, algunos factores como la fuerte tendencia positivista y antimetafisica de la universidad, el sombrío panorama económico y social, resultado de la febril industrialización (situación que despertó en el muniqués su preocupación por los males de la sociedad moderna y que derivó en años posteriores en una crítica hacia la burguesía) (STAUDE, 1967, p. 9-10), e incluso un deseo personal por poner orden a su vida (STAUDE, 1967, p. 10), pudieron influir en su decisión de marcharse de Berlín para continuar sus estudios en un ambiente más tranquilo. Sin embargo, lo que finalmente llevaría a Scheler a decantarse por la Universidad de Jena, a juicio de Staude, fue su intención de estudiar con el reputado filósofo, Rudolf Eucken, quien enseñaba ahí. Tal aseveración se antoja defendible si observamos las otras opciones académicas que albergaba el “pequeño nido” de Goethe y Schiller. Por un lado, estaba Ernst Haeckel, considerado por muchos como el representante del materialismo del siglo XIX; por el otro, Otto Liebmann, el neokantiano, conocido por el slogan “¡Vuelta a Kant!” (“Zurück zu Kant!”). Scheler, definitivamente no se

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sintió atraído en la dirección del materialismo y aunque Otto Liebmann tuvo un papel importante en su formación académica temprana, finalmente sus preferencias se volcaron hacia Eucken: “Teniendo en cuenta los intereses religiosos y éticos de Scheler —sugiere Staude— no debería sorprender que éste eligiera trabajar con el idealista. Aunque Eucken había tenido poco impacto en el mundo académico en general, parece haber sido el maestro adecuado para Scheler en este momento” (STAUDE, 1967, p. 11-12).

Breve esbozo de la filosofía de Rudolf Eucken

Rudolf Christoph Eucken nació el 5 de enero de

1846 en Aurich (Frisia oriental, Alemania). Desde muy temprana edad mostró un particular interés hacia los problemas de la religión, sin embargo, fue gracias a Wilhelm Reuter, uno de sus primeros profesores en su ciudad natal y discípulo del filósofo idealista Karl Christian Friedrich Krauze, que este interés cobró su verdadera fuerza y dedicación, situándolo en estrechas relaciones con la filosofía. En 1864 ingresó a la Universidad de Gotinga y asistió a las conferencias filosóficas de Hermann Lotze y de Gustav Teichmüller. Pese a que el primero contribuyó a su desarrollo intelectual, no logró atraer ni influenciar al joven Eucken. El segundo, por otra parte, fue el primero en introducirlo en el estudio de Aristóteles y, además, lo puso en contacto con Adolf Trendelenburg, quien enseñaba en la Universidad de Berlín. En aquel momento, Trendelenburg ocupaba un lugar especial entre los filósofos académicos en Alemania. Había

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elaborado una aguda crítica a Hegel, Kant y hacia casi todos los movimientos filosóficos contemporáneos, especialmente contra el neokantismo, y trató de revivir el pensamiento filosófico mediante un sistema neoaristotélico. Antes de graduarse, Eucken se trasladó a Berlín para estudiar con el famoso pensador y aun cuando éste no logró asegurar la adhesión total de aquél a su sistema, sí dejaría una huella imborrable, tanto por el carácter ético de su pensamiento como por su intento de acercar la filosofía y la historia entre sí. Hasta 1871 Eucken compartió las opiniones neoaristotélicas de Trendelenburg y escribió en su momento algunos valiosos trabajos filológico-filosóficos sobre el lenguaje de Aristóteles4. En 1874 Eucken recibió un “llamado” para suceder al difunto Kuno Fischer como profesor de Filosofía en la Universidad de Jena, y allí, a pesar de varias invitaciones, permaneció hasta su muerte en 1926. Antes de su nombramiento, Eucken ya se había distanciado de las ideas de Trendelenburg y comenzaba a dirigir su atención hacía los problemas culturales y espirituales de su tiempo. En 1878, apareció una de las obras centrales de Eucken: Geschichte und Kritik der Grundbegriffe der Gegenwart (Historia y crítica de los conceptos fundamentales de la actualidad). Originalmente este libro fue concebido como una

4 Las obras escritas por Eucken durante este periodo fueron: De Aristotelis dicendi ratione, Pars Prima: Observations de particuliarum Usu (1866); Die Methode und die Grundlagen der Aristotelischen Ethik (1870); Über die Bedeutung der Aristotelischen Philosophie für die Gegenwart (1871) y Die Methode der Aristotelischen Forschung in ihrem Zusammenhang mit den philosophischen Grundprinzipien des Aristoteles dargestellt (1872).

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revisión histórica de las principales categorías del pensamiento moderno: teoría y práctica; pensamiento y experiencia; civilización y cultura; y la sociedad y el individuo. Sin embargo, debido a las duras críticas recibidas, Eucken realizó modificaciones importantes al texto, marcando así un período de transición en su propio pensamiento: “[…] los datos históricos fueron reducidos a aquellos límites que parecían necesarios para la comprensión de la realidad del momento, el espíritu de la época fue expuesto con mayor agudeza y claridad y, finalmente, mis propias convicciones fueron más vigorosamente definidas” (EUCKEN, 1957, p. 1178).

Ya para la segunda edición (1893), Eucken adaptó los conceptos que había formulado inicialmente para encajar con el "activismo", un concepto que había introducido en 1890, en lo que muchos creen que es su obra clásica: Die Lebensanschauungen der grossen Denker: Eine Entwicklungsgeschichte des Lebensprobleme der Menschheit von Plato bis zur Gegenwart (El problema de la vida humana como lo ven los Grandes Pensadores desde Platón hasta nuestros días). Esta obra revela la estrecha relación que Eucken establece entre la filosofía y la vida, y aunque no directamente constructiva, nos permite comprender las influencias que han contribuido a moldear la mente de nuestro filósofo. Esto marcaría el final de su periodo histórico. En los años siguientes, Eucken comenzó a trabajar en una serie de obras enfocadas en el tratamiento sistemático de la vida humana. En 1888 apareció Die Einheit des Geisteslebens in Bewußtsein und Tat der Menschheit (La unidad de la vida del espíritu en la

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conciencia y la acción de la humanidad). En este ensayo, Eucken criticó los movimientos espirituales (“sintagmas” en sus palabras)5 que dominaban en ese momento: el naturalismo y el intelectualismo. De acuerdo con nuestro autor, ninguno de los dos ayudó a resolver el problema de la vida humana porque separaban la vida espiritual del individuo, mientras que Eucken trató de mediar a ambos. Por lo tanto, dedujo de la crítica detallada de ambos sintagmas su propio sistema de un mundo personal. En 1896, tenemos la expresión más central y completa de la posición filosófica de Eucken: Der Kampf um einen geistigen Lebensinhalt (La lucha por un contenido espiritual de la vida). Este opúsculo inspiró a Scheler a redactar en 1899 su primer ensayo: Arbeit und Ethik (Trabajo y Ética). Durante los años en que Scheler se formaba en Jena, Eucken se dedicó al gran tema de la esencia de la religión, su fundamento, su contenido de verdad y su función para la vida humana en sus obras Das Wesen der Religion (La esencia de la religión, 1901) y Die Wahrheitsgehalt der Religion (El contenido de verdad de

5 “Por sintagmas entendemos sistemas de vida, consolidaciones de la realidad histórica que comprenden la multiplicidad de la existencia dentro de un marco especifico, y desde este punto de vista imparten una forma característica a todos los fenómenos separados. Un sintagma es esencialmente diferente de una ‘tendencia’ o ‘movimiento’, pues se propone explicar al contenido total de la vida hasta el último detalle y no queda satisfecho con indicar ciertos caminos o suministrar un impulso de esta o aquella dirección; como un sistema completo que se esfuerza por ser autosuficiente y exclusivo. Por lo tanto, no deja a nadie neutral, sino que le obliga a tomar partido ‘a favor’ o ‘en contra’” (EUCKEN, 1888, p. 5).

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la religión, 1905) a la que Scheler dedicó dos revisiones en 1903.

Como se ha adelantado, el pensamiento de Eucken se inserta en el gran y antiguo problema entre la naturaleza y el espíritu: “¿Es la naturaleza (es decir, el mundo de la materia visto a la luz de la ciencia) la verdadera base de la realidad, de la cual el espíritu, si se permite que exista, es un producto derivado? ¿O es el espíritu la fuente y el fundamento de toda la realidad, y la naturaleza depende en última instancia de un mundo invisible? Esta es la gran alternativa” (MEYRICK, 1913, p. xi-xii). Al colocar esta cuestión decisiva en el centro de toda su obra, Eucken se pone de inmediato en contacto directo, no sólo con todas las grandes filosofías del pasado, sino también con los problemas filosóficos y científicos del presente. Durante el último tercio del siglo XIX varias voces se alzaron en defensa de la espiritualidad personal que parecía disolverse en el descreimiento filosófico, la anulación de la metafísica y la exaltación cientificista del positivismo y el naturalismo.

De modo que, así como lo hiciese Boutroux y Bergson en Francia, Eucken propuso en Alemania un retorno a la metafísica y a las doctrinas idealistas y espiritualistas. Este retorno, que Eucken designa como activismo y la nomenclatura de las historias de la filosofía como neoidealismo, no es una mera arbitrariedad o capricho de algunos discípulos tardíos del hegelianismo; se trata de una profunda exigencia teórica y vital, nada menos que el ajuste de cuentas y pendientes que, a juicio de Eucken y los espíritus afines a su pensamiento, el intelectualismo, tanto en su forma

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idealista como en sus aspectos naturalistas, positivistas y materialistas, habían sido incapaces de resolver:

Nos hemos vuelto inseguros con respecto a todos nuestros ideales, más aún, con respecto a nuestro propio ser; ya no recurrimos a una base común de convicciones, de unir, dirigir y elevar fuerzas. A pesar de toda actividad subjetiva, un declive interno de la vida es inevitable si esta incertidumbre continúa extendiéndose (EUCKEN, 1912, p. 306).

Esta breve cita será suficiente para indicar la

actitud de Eucken hacia la vida presente. Él está profundamente convencido de que los pueblos de hoy, absortos en la búsqueda de cosas materiales, procurando mejorar su entorno e intoxicados por los sorprendentes triunfos de la ciencia técnica, han perdido cada vez más contacto con esas realidades espirituales centrales sin las cuales la vida no puede tener ningún significado o valor. En una sola frase, los intereses del mundo moderno están en la periferia principal en lugar de central: “Esto es serio y produce una grave crisis; un pueblo que destruye la sustancia espiritual de su vida destruye también su porvenir” (EUCKEN, 1957, p. 601).

Eucken se coloca, entonces, como un precursor y arúspice de las grandes reflexiones de crítica cultural que aparecerían en el primer tercio del siglo XX, y que, pese a la fama que posee Nietzsche como el gran antecedente de éstas, lo cierto es que Eucken también fue un aliciente decisivo al igual que su colega, con

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quien convivió en las cátedras de Basilea6. Su objetivo es llevar a la humanidad de vuelta a las realidades centrales, a actuar como una fuerza centrípeta en un mundo de tendencias centrífugas. Busca llamar la atención sobre la gran verdad de que todo el tejido de la civilización humana descansa, en última instancia, sobre una base espiritual. Él cree que la necesidad suprema de la era es una filosofía de vida integral y positiva que sirva como punto de reunión para las fuerzas dispersas y divididas de la humanidad. Las viejas síntesis de la vida, que fueron satisfactorias en su día y generación, ahora se están rompiendo y existe la necesidad de una síntesis nueva y más amplia. Esta necesidad se impone con solo tener presente que:

Están gastados ya todos los valores. Habrá discusión en la forma de transmutarlos, pero hay necesidad de sustituir la moneda falsa por el oro de ley; y, sobre todo, hay que acabar con esos mercaderes que arrebatan pepitas de oro a cambio de cuentas de oro. Hay necesidad de renacer, hay necesidad de una nueva vida (EUCKEN, 1957, p. 423).

6 Eucken se graduó en Gotinga como Doctor en Filosofía en 1866. Cinco años después, en 1871, fue nombrado profesor de filosofía en la Universidad de Basilea, en donde tuvo contacto con Friedrich Nietzsche y aunque los registros autobiográficos Eucken no detallan una amistad, sí dejan ver un respeto y admiración intelectual por el joven filólogo. En su obra sobre los Grandes pensadores, el subjetivismo nietzscheano es un momento necesario en la reacción contra las tendencias realistas y positivistas de la filosofía de su tiempo (Cf. EUCKEN, 1957, p. 594-597).

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Pero, ¿qué es, pues, o qué significa para Eucken la vida? Desde un sentido amplísimo, la vida es para Eucken el “fenómeno originario, del cual parte todo lo que nosotros llamamos realidad” (EUCKEN, 1957, p. 819). En este concepto Eucken distingue un grado inferior y un grado superior, un grado biológico y un grado espiritual (noológico): “En el primer grado la vida está ligada a la Naturaleza; en el segundo, alcanza independencia y posesión de sí misma; allí se forma un tejido biológico que se resuelve en el intercambio de elementos aislados; aquí se forma un poder de cohesión que es capaz de dar a vida un rico contenido” (EUCKEN, 1957, p. 1181-1182). El hombre, situado en el punto en donde naturaleza y espíritu se encuentran, ocupa una posición en la que debe efectuarse una transición del grado inferior al superior. Sin embargo, lograr esto no es una empresa sencilla, porque la vida espiritual no es inmanente en el hombre de tal manera que pueda poseerla sin esfuerzo; está presente como una posibilidad que descansa en él para asirlo, por lo que deberá luchar contra todas aquellas coacciones que el mundo material es capaz de ejercer para elevarse él mediante una vida espiritual más amplia y elevada. Este proceso, cósmico y dialectico es a la vez un movimiento ascensional de formación de esencia o mejor, de formación del ser por la actividad (EUCKEN, 1925, p. 119-124); de ahí el nombre de activismo que Eucken ha designado a su propio tipo de pensamiento: “La vida, en el verdadero sentido de la palabra sólo puede nacer cuando la actividad se convierte en autoactividad, cuando engendra un yo vivo, cuando crea un mundo interior que significa más que la sombría interioridad

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del sujeto encerrado en sí mismo” (EUCKEN, 1925, p. x).

Para indagar en la vida espiritual, en sus realizaciones, y objetivaciones es necesario, igualmente, un método apropiado y especifico, diametralmente opuesto a todo análisis psicológico tradicional, y a toda explicación naturalista, que acaso puedan resultar efectivas en la vida psíquica y anímica, pero no en la propiamente espiritual. De acuerdo con el frisón, la vida espiritual no puede ser captada en su plenitud sólo por la introspección, ni tampoco por los resultados de las ciencias físico-matemáticas, puesto que éstas son solamente una de las posibles expresiones de la vida del espíritu. Este debe ser considerado en la perspectiva del mundo cultural tomado en toda su extensión y riqueza, tal como se nos presenta en el arte, en las ciencias, en la religión, en la metafísica, en los hechos personales heroicos de las grandes personalidades de la historia. El modo de acercamiento debe ver a priori esa íntima unidad, captarla como un todo que se puede analizar, pero que originariamente es inseparable. Se trata de un acercamiento intuitivo, al que Eucken nombra con el término ya en desuso de noología7. Considerado por

7 Es complicado entender la noología como un método. Lehmann y Klimke-Colomer lo designan como tal, el primero apuntando que fue extraído de las ciencias del espíritu. Friedrich Ueberwegs afirma que esto aparece desde el primer libro de Eucken, los Prolegomena, esbozado como suposición y referiría a "entender el contenido y la estructura (del mundo de la vida) desde contextos internos". Lo cierto es que a lo largo de sus obras es rara vez mencionado. A lo largo de la obra de madurez Hombre y mundo, que es una suerte de resumen de su pensamiento, es predicado de

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Scheler como una “peculiar ampliación del método de Kant” (SCHELER, 1973, p.274), el método noológico consiste en “ordenar una actividad espiritual especial al todo de la vida espiritual y descubrir en él su posición y tarea, iluminándola por medio de una tal inserción en el todo y también, fortificarla en la propia capacidad (Vermoegen)” (BAPTISTA QUIANI, 1974, p. 19). Su punto de partida será un “phaenomenon bene fundatum”, el mundo del trabajo (Arbeitswelt); es decir, conjunto de las obras comúnmente reconocidas de la cultura humana: las ciencias físico-matemáticas, la historia, la jurisprudencia, la economía, la teología, la metafísica, el arte, la religión, la ética, los hechos personales, etc. En cada una de estas obras encontramos la forma de vida espiritual, la unidad original e inseparable de realidad y exigencia; cada una

los términos “procedimiento”, “positivismo” y “conducta”, en ocasiones contrapuesto a “procedimiento psicológico” “conducta psicológica” y mayormente citado en el apartado dedicado al problema del conocimiento (que contrario a lo que normalmente se establece, es el último apartado del tratado, no el inicial). Lo cierto es que es de las cuestiones más oscuras que desarrolla en su doctrina y que forma parte sin duda de su disolución en el canon filosófico occidental; en realidad hay una relación entre todas las formas de concebirlo, ya que el procedimiento generaría la conducta. Probablemente tiene su origen en la intuición intelectual tal como la entiende Fichte, al cual le dedica un favorable apartado en Los Grandes pensadores, p. 535-539, y en la que parafrasea la cuestión de modo agudo. Véase para “procedimiento noológico” Hombre y mundo, p. 891 y 1094; para “conducta noológica” (EUCKEN, 1925, p. 913, 1049 y 1092); para “positivismo noológico” (EUCKEN, 1925, p. 937). Cf. Ueberwegs (1920); Lehmann (s.d.), p. 14; para la caracterización divulgativa que hace el propio Fichte de la intuición intelectual, véase Fichte (1994), p. 144.

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de ellas, además de su valor, señala algo que trasciende la dimensión de la realidad y de la vida. Este mundo cultural humano nos lleva a una potencia fundamental que lo posibilita y lo determina, el espíritu, el cual no es algo simple, sino una unidad estructurada y articulada de funciones cognoscitivas morales, religiosas y estéticas.

Es claro que una tal concepción del espíritu no tiene nada de estático. El espíritu es una fuerza que se desarrolla irresistiblemente en la historia a través de los hombres y en sus obras podemos nosotros captar su respectivo contenido. El mundo cultural es testimonio de la vida del espíritu en la historia; el espíritu no es – sugiere Eucken – un "yo" trascendental, sino una unidad real, activa, que tiende a afirmarse en la plenitud de las tendencias de la vida espiritual. El método noológico permite, entonces, una captura directa de las creaciones del espíritu: es una comprensión de la vida humana en su desarrollo creador.

La huella de Eucken en el pensamiento de Scheler

En los años que pasó Scheler en Jena como

estudiante, su asistencia a los seminarios y conferencias impartidos por Eucken se mantuvo constante en cada uno de los tres semestres (cuatro en total) de los cuales se tiene documentación. A través de Eucken, Scheler comenzó a articular su actitud particular hacia la filosofía, lo reconoció como maestro siguiéndolo lo más posible y, en cierto momento, también continuó su propio camino de manera

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independiente. Como ya se señaló, el encuentro con Husserl en 1902 marcó el comienzo de un distanciamiento intelectual entre Scheler y Eucken, el cual culminaría en 1906, cuando éste interrumpe el intercambio personal con aquél debido a un penoso problema personal que redundó en su renuncia a la recién obtenida catedra en Jena y a la consiguiente determinación de trasladar su ejercicio docente a Múnich. Allí, de regreso a su ciudad natal, Scheler se incorporó al círculo filosófico congregado en torno a la figura de Theodor Lipps, a propósito de lo cual se había visto beneficiado por el respaldo de Husserl, quien lo recomendó ante aquel por escrito (cf. SPIEGELBERG, 1971, p. 269). Entre 1910 y 1911, privado de su posición académica, Scheler salió al paso impartiendo una serie de lecciones en Gotinga, gracias a la invitación que para ello le extendieran desde el círculo fenomenológico congregado en torno a Husserl en aquella ciudad.

A pesar de las muestras de gratitud que Scheler le dedicó siempre a su maestro (todavía en 1922 se refirió a él como “una de las alarmas espirituales más fuertes que ha tenido Alemania”) (SCHELER, 1973, p. 274-275), lo cierto es que éste apenas es mencionado en los escritos ulteriores del muniqués. De hecho, llama la atención que, en la presentación autobiográfica incluida en su tesis doctoral (Vita), no refiere en ningún momento el nombre de Eucken y, yendo contra una costumbre académica, hizo caso omiso a la recomendación de su Doktorvater, de afirmar con mayor claridad en su ensayo la primacía de la voluntad en la lógica, argumentando injustificadamente que no tuvo el tiempo suficiente para llevarlo a cabo

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(HENCKMANN, 1998, p.18). Algo similar se observa en su trabajo de habilitación, cuyas referencias de Scheler a los escritos de Eucken – a juicio de Henkmann – se reducen “sólo a la parte histórica, mas no a la sistemática” (HENCKMANN, 1998, p.21). Eucken, quien inicialmente depositó grandes esperanzas en su joven pupilo, también hizo lo propio: calló acerca de la vinculación de ambos en Jena; así lo muestra en su autobiografía fechada en 19258. Lo anterior ha provocado que algunos intérpretes de su obra, como Henckmann y Mancuso, atribuyan a Scheler una gran mala fe al describirlo como un hombre que, movido por el oportunismo académico, habría renunciado a la sinceridad y la honestidad intelectual para iniciarse en una línea de investigación de estudios que pudiese facilitarle la obtención de una plaza permanente en la universidad. Henckmann sugiere, por ejemplo, que ésta es la verdadera razón detrás del interés del muniqués en la obra de Eucken:

Tras el término de sus estudios [en Jena] Scheler fue a Heidelberg para proseguir, esto es, para prepararse

8 “La última mención de Scheler en la correspondencia de Eucken se produce en una carta del 6 de mayo de 1909, en la que Eucken le dijo al Barón Friedrich von Hügel que él y Scheler ahora se habían ido por caminos completamente distintos. Eucken, el burgués cosmopolita cuya atractiva filosofía de vida incluso le había valido el Premio Nobel de literatura el año anterior, encontró la combinación de Scheler de ‘religiosidad ocasionalmente acentuada y laxitud moral’ especialmente desagradable. Con la compasión y la condescendencia mezcladas en una, Eucken cierra el libro sobre Scheler con las palabras: ‘Lástima, una terrible lastima por este hombre tan dotado’” (ROLLMAN, 1983, p. 38).

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para una carrera académica en filosofía. Apenas cuando Eucken le planteó la idea de recibir tras la habilitación una plaza como docente en Jena, parece ocuparse con profundidad en los escritos de éste (HENCKMANN, 1998, p. 21).

Mancuso, por su parte, sostiene que Scheler

habría falseado también algunos datos sobre su plan de estudios, tal como parece afirmarse en una carta escrita por el joven filósofo al barón Georg von Hertling (1843-1919), uno de los máximos exponentes del catolicismo alemán a principios del siglo XX, que enseñó filosofía en la Universidad de Múnich, y en la cual expone las líneas fundamentales de su compromiso teórico-especulativo9. Según Mancuso, esta carta estaba

9 Se traduce a continuación el resumen ofrecido por Mader (1990): “Permítame agregar, aunque brevemente sea posible, algunas declaraciones sobre las líneas más generales de mi esfuerzo de investigación: Subordinar los problemas individuales a las preguntas de Weltanschauung. Empiezo con Kant, ya que sostengo que los objetos de conocimiento, como Kant ha demostrado, se basan en las leyes del pensamiento y la intuición, que no se basan en la experiencia, sino que lo hacen posible; Intento abrir un camino desde aquí, a partir de una inversión radical del idealismo subjetivo (Berkeley, Schopenhauer, Windelband, filosofía inmanente, etc.), en particular del elemento subjetivista en la filosofía de Kant, mientras trato de demostrar que Las leyes del espíritu, de las cuales estamos tratando aquí, son independientes de todas las condiciones particulares de la especie humana y su organización. En mi opinión, el mundo corporal existe independientemente del hombre, a partir de sus formas específicas de representación y pensamiento, y no se puede conocer a través del razonamiento causal ni a través de una hipótesis. Pero tan inmediatamente como el mundo interior. La materia nos es dada, como trato de mostrar, en su existencia a

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través de un acto de intuición pura, que se entrelaza con nuestra percepción sensible, pero es lógicamente completamente independiente de los órganos sensoriales y el cerebro (aunque no de sus funciones concretas). El sensualismo todavía presente en Kant debería superarse completamente aquí solo a través de esta teoría. En estas preguntas aprendí de la filosofía francesa actual, en particular de la de Bergson. pero es lógicamente completamente independiente de los órganos sensoriales y del cerebro (incluso si no es por sus funciones concretas). El sensualismo todavía presente en Kant debería superarse completamente aquí solo a través de esta teoría. En estas preguntas aprendí de la filosofía francesa actual, en particular de la de Bergson. pero es lógicamente completamente independiente de los órganos sensoriales y del cerebro (incluso si no es por sus funciones concretas). El sensualismo todavía presente en Kant debería superarse completamente aquí solo a través de esta teoría. En estas preguntas aprendí de la filosofía francesa actual, en particular de la de Bergson. Por lo tanto, creo que el propósito de las ciencias exactas de la naturaleza debe ser entender la naturaleza [...]. Para la ciencia es simplemente una cuestión de hacer que la naturaleza sea controlable y predecible, pero sin saberlo [...] al hombre se le da una pequeña sección de cualidades objetivas debido a Limitación de su intuición. En ética y en la filosofía de la religión, estoy tan lejos de Kant como en la filosofía teórica (vea mi artículo sobre Kant y mi disertación), ya que presento la totalidad de la persona racional y considero la función del amor puro. del espíritu independiente de las percepciones y sentimientos sensoriales, con el que Kant lo confunde, que es superior al principio racional de legitimidad; Estoy particularmente interesado en este concepto de amor, que sostengo firmemente en el concepto cristiano de amor, separándolo de los conceptos modernos de simpatía, compasión (Schopenhauer), altruismo (Comte, etc.) y destacando su contenido totalmente diferente. Garantizo con mi maestra Eucken una síntesis orgánica de las verdades éticas y religiosas fundamentales y considero un posible espíritu sin religiosidad, pero no ética (objetiva) sin religión. Para mí, la religión no es de ninguna manera simple "valor de la vida", "valor cultural", sino que

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"adaptada al destinatario" para que contara con su apoyo para su traslado a la Facultad de Múnich. El juicio de la investigadora es implacable ya que, entre otras cosas, afirma que Scheler habría recurrido a la fenomenología husserliana y habría tratado de reajustar su pensamiento por las razones oportunistas del tipo indicado.

¿Hasta qué punto son justificables las interpretaciones de Henckmann y Mancuso? Si nos dejáramos guiar completamente por las referidas acusaciones, entonces no tendríamos inconveniente en afirmar que los primeros escritos de Max Scheler no tienen, de hecho, una continuidad doctrinal con su trabajo posterior y que la presencia de Eucken en el pensamiento del muniqués sería mínima, por no decir inexistente. Pero, esto no es así. Sobre esto, Gibu afirma que:

Aun reconociendo la plausibilidad de estas interpretaciones, se debe también considerar el riesgo de perder de vista el sentido al que apuntan las expresiones de Scheler y la base objetiva sobre la que se fundan, esto es, la originalidad y el sentido de

se basa en una serie de verdades metafísicas, que reciben valor religioso solo en relación con la tradición de la vida cristiana y los actos personales de la aceptación de la fe. Rechazo una religión natural o una religión racional, que, sin todas las presuposiciones de la tradición cristiana viva y la gracia personal, cuyos gérmenes ya están en actividades espirituales, se fundaría sobre bases puramente racionales. En estas preguntas mis maestros son sobre todo el agustinismo, Pascal, otra vez Eucken; También valoro el francés Laberthoniere. Con la esperanza de que estas líneas la alcancen en Mónaco, tengo esperanzas de su respuesta, M. Scheler” (MADER, 1990, p. 33-34).

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independencia del filósofo bávaro que de alguna u otra forma van condicionando sus decisiones (GIBU SHIMABUKORO, 2005, p. 35).

Si atendemos a los principales rasgos de su

personalidad descubriremos que, en lugar de un maquiavélico oportunista, Scheler fue durante toda su vida un interrogador inquieto, una sensible antena del espíritu de su tiempo y también un fabricante de problemas más que un seguidor (e incluso generador) de sistemas. De ello puede dar cuenta el itinerario intelectual de Scheler que en sus inicios se caracterizó por una gran apertura a las principales líneas filosóficas de investigación, estableciendo vínculos y conexiones que formaron un camino, una vía: su vía. Conque la evolución de su pensamiento “[…] en ningún caso puede entenderse a partir de su adscripción a alguna de ellas, sino a partir de una línea zigzagueante que buscaba seleccionar los elementos idóneos de tales propuestas para la configuración de su propia obra” (GIBU SHIMABUKORO, 2005, p. 35). No obstante, podemos afirmar que las ideas de Eucken son, de hecho, el telón de fondo del pensamiento de Scheler en este primer periodo. Estas le servirán de guía en su lucha contra las estrecheces del idealismo kantiano y neokantiano, así como el psicologismo empirista positivista. Y, aunque Scheler pronto se sintió insatisfecho con el método noológico (situación que propiciaría más adelante su acercamiento a la fenomenología), lo cierto es que perdurará una afinidad de éste con su maestro Eucken en el modo de comprender y hacer filosofía.

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Tomando en consideración el esquema propuesto por Staude, la influencia de Eucken sobre Scheler fue duradera en al menos tres áreas: Metafísica, Antropología filosófica y Ética:

La insistencia de Eucken en la autonomía del espíritu (Geist) sobre la vida se convirtió en una doctrina fundamental de la metafísica de Scheler. Además, la cuestión de ‘el lugar del hombre en la naturaleza’, planteada por Eucken en varias de sus obras, ocupó a Scheler de manera intermitente a lo largo de su vida. Finalmente, la convicción de Eucken de que la responsabilidad principal de un filósofo era actuar como un crítico moral y religioso de la ética y la sociedad de su tiempo fue adoptada por Scheler como parte de su propia imagen (STAUDE, 1967, p. 12)

A continuación, se detallarán cada uno de estos

aspectos.

a. Metafísica El concepto del espíritu constituye en Scheler,

ya desde sus años de estudiante, un lugar relevante, originario: “Comprendido desde una perspectiva formal como un acto trascendente, apriórico unitario y personal, y desde el material, no como un principio, sino como un contenido, como una fuerza que opera y se realiza en la historia a través de todas las realizaciones espirituales humanas” (MICHELINI, 1983, p. 276-277), el espíritu se erige como el punto de partida, el fundamento, el camino y el destino del filosofar. Empero, cabe aclarar que, en ninguna de las

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dos obras más representativas de este periodo, es decir, ni en su disertación doctoral ni en su escrito de Habilitación, Scheler trata este tema – el del espíritu – como un tema específico y, por tanto, no puede encontrarse en ellos una exposición sistemática del mismo. Sin embargo, hay ciertos pasajes tanto en Beiträge como en Methode que no sólo dejan entrever el interés y la preocupación del autor por la temática, sino que permite interpretar el concepto de espíritu como la medula y guía vertebradora de todas sus investigaciones iniciales” (MICHELINI, 1983, p. 247).

En relación a la primera obra, la tesis que presentó en Jena en 1897 y que le valió el título de doctor en esta Universidad, se plantea la cuestión acerca de las relaciones entre los principios lógicos y éticos desde el marco de una axiología general. Se trata de una contribución a lo que él llama una “critica axiológica de la conciencia” (Wertkritik des Bewusstseins). El objeto de esta crítica son los valores, resumidos en un sistema trivalente, a saber: bello-verdadero-bueno, considerados no en sí mismos, sino en sus relaciones a nivel de las ciencias normativas respectivas: estética, lógica y ética. Éstas, de acuerdo con Scheler, “llevan en la práctica actual de la ciencia filosófica a una vida separada, y parecen faltar investigaciones que consideren más de cerca las relaciones mutuas de estas ciencias” (SCHELER, 2001, p. 4). El riesgo que se presenta aquí – a juicio del muniqués – es la aparición de tres cosmovisiones separadas una de otra; tres sistemas axiológicos que no sabrían reconocer la relación existente entre uno y otro: "Entre el pensar y el querer, el saber y el obrar, lo

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bueno y lo verdadero, existe en nuestros ojos una brecha intransitable" (SCHELER, 2001, p. 11). Es necesario, entonces, el surgimiento de un “cuarto principio” capaz de valorar las pretensiones de tales cosmovisiones. De esta manera, Scheler cree necesario salvar la objetividad de los valores a los que aquellas normas hacen referencia. Lo intenta estableciendo el principio de la inconvertibilidad del valor con el ser, según la conocida tesis de Lotze: “los valores no son, sino que valen”. “Ser” (sein) y “valer” (gelten) representan, pues, dos categorías irreductibles en entre sí. En palabras de Albisu: “El valor no se puede definir en términos de ser, puesto que, así como el valor no hace a una cosa existente, tampoco la existencia torna a una existencia más valiosa. ‘Ser’ y ‘valor’ son conceptos coordinados, que no se pueden deducir uno del otro” (ALBISU, 1978-79, p.122). Lo anterior no impide que el valor sea objetivo, entendiendo por “objetivo” simplemente: no subjetivo, independiente de toda voluntad y pensar humanos. Así, los principios éticos (valores) se erigen, según Scheler, como un dominio autónomo que tiene una legalidad propia e irreductible a la de los principios lógicos y son dados en lo que nuestro autor llama un “sentimiento del valor” (Wertgefühl). Aquí se anticipa una de las tesis más difundidas de la axiología scheleriana, a saber, su emocionalismo.

Ahora bien, siguiendo a Eucken, Scheler señala en esta obra el cisma existente entre la naturaleza y el espíritu. Confundir estas dos realidades no puede conducir sino a graves consecuencias en el ámbito práctico y a una desvirtuación en el ámbito teórico,

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“Pues, así como el ámbito del querer y de las decisiones no puede influir en la ciencia más que perniciosamente, del mismo modo es nocivo y contraproducente querer dar una visión científico-natural del mundo desde el ámbito de las ciencias, ya que todo sentido puede provenir sólo y exclusivamente del interior del hombre” (MICHELINI, 1983, p. 250). Como lo hace notar el muniqués:

La historia de la filosofía ha dado cuenta que: “siempre que la Naturaleza dio una respuesta que haga feliz, que consuele y que de seguridad a los hombres en el curso de su vida, sólo ha sido cuando las fuerzas que consuelan y hacen feliz hubieron desplazado de la vida rica interior del hombre supuestamente hacia la Naturaleza, y de que siempre que el hombre abrazó a ésta con brazos amantes y en esa entrega buscó el fin de su vida, sólo se abrazó a sí mismo en la Naturaleza y sólo se le entregó a cambio cuanto de riqueza él había puesto del reino de su corazón (SCHELER, 2001, p. 89-90).

Esta comprensión del espíritu como una

realidad esencialmente distinta de la material y natural se mantendrá y profundizará en su obra capital, der Formalismus, extendiéndose así hacía el resto de sus obras de madurez:

Si la vida fuera (como se concibe de ordinario) la raíz de nuestro espíritu, de nuestro intuir, amar, odiar, aprehender valores, y de sus formas y leyes, esta ‘vida’ habría de constituir o bien algo enteramente distinto de aquella otra vida que nos sale al paso en la concepción natural del mundo y en la Biología

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científica y filosófica – y, por consiguiente, habría de ser un equívoco designar ambas con un mismo nombre –, o bien sería una incógnita totalmente indeterminable y trascendente, pues precisamente la ‘vida’ que nos está ‘dada’ en nuestra experiencia ha pasado ya a través de las leyes y formas de aquel espíritu que, en este caso, se supone debe hacerse comprensible por la vida (SCHELER, 2001, p. 383).

Por otra parte, en el tratado de habilitación de

Scheler sobre el problema del método como una cuestión fundamental de toda la filosofía (publicado en 1900, con el cual Scheler fue nombrado profesor en la Universidad de Jena), encontramos ya consideraciones más explicitas y precisas en torno al concepto de espíritu y de su propia realidad, de sus connotaciones esenciales y de su despliegue en la cultura y la historia, aunque – como ya se dijo – tampoco en esta obra se elabora de forma sistemática una “doctrina del espíritu”, el tema es fundamental en la referida obra en el sentido de que subyace como supuesto en el análisis. En este trabajo, el filósofo alemán analiza el método crítico-trascendental (con su comprensión formalista del espíritu) y el método genético-psicológico (que tiende a reducir lo espiritual al ámbito de lo meramente psíquico), destacando sus respectivas características unilaterales, para tratar de mediarlos dentro de un tercer enfoque metodológico que, sobre la base de su maestro de orientación espiritualista Eucken, define noológico. Conviene aquí señalar las palabras de Albisu acerca de los supuestos implícitos en el planteamiento del problema pues, “[…] es evidente que si Scheler busca el método adecuado de la Filosofía, es porque

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tiene una idea, y no cualquiera, acerca de la Filosofía, o mejor, acerca de su objeto” (ALBISU, 1978-79, p.124).

Naturalmente, como un fiel discípulo de Eucken, Scheler se aparta del concepto y significado tradicional de “metafísica critica” y entenderá por filosofía una “Teoría del espíritu” (Lehre vom Geiste). Consecuentemente, Scheler ejecuta una deducción de las cualidades específicas de toda entidad espiritual con el objetivo de delimitar positivamente el ámbito propio del espíritu frente al de todo lo natural, biológico o psíquico, a saber: trascendencia, aprioridad, unidad-complejidad, vinculación histórica, carácter personal, relación a lo absoluto (cf. MICHELINI, 1983, p. 257-265).

Scheler se percata de qué estás cualidades estando separadas bien podrían corresponder a otras realidades diversas a las que él apunta, empero, la unidad de las mismas no puede hacerse sino en calidad de considerarlas notas esenciales que sólo corresponderían con una esencialidad superveniente a lo meramente físico. Lo que lo lleva a formular una definición qué le haga justicia a dichas propiedades en su íntima coexistencia:

Por vida espiritual entendemos aquí toda realidad que en su forma de ser al mismo tiempo apunta a algo más allá de sí misma que ella misma no es, y en este apuntar-más-allá conjuga un derecho, una validez en una unidad inseparable (SCHELER, 2001, p. 321).

De esta definición se pueden desprender

características más puntuales que responden, por un lado, a la caracterización scheleriana de espíritu y, por

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otro lado, dejan ver al lector atento la profunda influencia de su maestro. En primer lugar, es patente la discontinuidad que hay entre la noción de vida, entre su versión espiritual por un lado y su versión biológica y psicológica. Por el otro, que el espíritu se entiende como una actividad forzosamente trascendente y esto no sólo en un modo lógico o epistemológico, y aún tampoco de modo meramente ontológico, sino que se trata de un trascender configurador de sentido, previo y posibilitante de todo acercamiento desde el punto de vista del ser y el conocer. A esta actividad configuradora Eucken le había asignado el nombre de “mundo del trabajo”. Scheler, aunque no conserve el nombre, conserva la misma doctrina cuando en su definición reduce la esencia de la realidad espiritual a su trascendencia como establecimiento de validez. Llama la atención que está doctrina converge también con la de quién fuera un maestro del propio Eucken, Lotze, el cual postuló por primera vez la irreductibilidad del ámbito axiológico al ontológico, es decir, del valer al ser.

b. Antropología

“Las cuestiones: ¿qué es el hombre, y cuál es su puesto en el ser? me han ocupado más profundamente que cualquier otra cuestión filosófica desde el primer despertar de mi conciencia filosófica” (SCHELER, 2000, p. 29). Esta fue la declaración hecha por Scheler, poco antes de su inesperado y temprano fallecimiento, en un breve opúsculo de corte antropológico titulado: El puesto del hombre en el cosmos (Die Stellung des Menschen im Kosmos). Aunque dicha confesión no ha

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eludido a la crítica10, basta con revisar las principales tesis de la filosofía de Eucken para admitir que es, justamente, en su persistente preocupación por lo que Scheler llama el “problema del hombre”, donde se encuentra el hilo unificador de su vida y su pensamiento.

10 Destacamos aquí la crítica de W. Henckmann: “Esto habrá sorprendido bastante a los lectores familiarizados con sus escritos tempranos, pues en ellos pueden encontrarse ciertamente continuas reflexiones y aforismos, e incluso consideraciones más extensas, sobre temas relacionados con la antropología, pero en ningún momento adquieren un lugar central, a diferencia de lo que Scheler afirma en el prólogo. […] Dado que en el prólogo de 1928 no hace mención ninguna a sus dos primeros escritos, la tesis doctoral Contribuciones a la determinación de las relaciones entre los principios lógicos y éticos (1899) y su escrito de ‘habilitación’ El método trascendental y el método psicológico (1900) se plantean la pregunta de en qué momento data Scheler concretamente el ‘primer despertar’ de su conciencia filosófica”. Cfr. su estudio introductorio a la edición española de El puesto del hombre en el cosmos (loc. cit.), pp. 13-14. Al respecto, la investigación emprendida por Wilwert parece hacer frente a lo sostenido por Henckmann: “Aunque la mayoría de estos escritos no tratan explícitamente las cuestiones antropológicas, hay numerosos momentos en ellos, así como en todo el pensamiento de Scheler, los cuales juegan un papel importante en el surgimiento de la antropología filosófica posterior” (WILWERT, 2009, p.39). Sobre esto, resulta esclarecedor un curso de verano dado por el muniqués en 1901 en la Universidad de Jena. El primer punto a desarrollar en este curso introductorio a la Filosofía fue, precisamente, el problema sobre “la posición del hombre en el mundo”. En cierto sentido, desde el punto de vista de Wilwert, “se trata de una anticipación del título de su principal texto antropológico, El puesto del hombre en el cosmos” (WILWERT, 2009, p.40).

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En efecto, dentro del proyecto filosófico de Eucken, el hombre se erige como una pieza fundamental. Situado, como hemos visto, en el punto donde el espíritu y la naturaleza se encuentran, y siempre extendiéndose hacia la realidad espiritual que está en el centro de su ser y que él nunca puede captar por completo, su posición está llena de dudas y complicaciones. El desarrollo de la historia muestra el surgimiento progresivo en la humanidad de un "más que humano" y un conflicto entre esto y lo meramente humano.

El quid de la cuestión radica en la gran pregunta: ¿Qué es el hombre? Si él no es más que un mero fragmento de la naturaleza, un eslabón en una cadena de procesos mecánicos; si él está completamente absorto en la tarea utilitaria de la autopreservación; entonces su existencia es totalmente sin sentido. Si, por otro lado, el hombre lleva dentro de sí la posibilidad de participar en una vida espiritual universal, independientemente del mecanismo del nivel natural, nuestra concepción de su ser, su trabajo y su destino debe estar completamente revolucionada (BOOTH, 1914, p. 19).

El hecho de que el hombre sea capaz de elevarse

por encima de sí mismo, de compararse con los demás y de juzgar su propio carácter, demuestra que comparte una vida que no es finita e individual, sino infinita y universal. Por lo tanto, los hombres se sienten obligados a buscar y realizar la verdad en el pensamiento, la fuente de toda la ciencia y la filosofía; se sienten obligados a darse cuenta de la bondad en el

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carácter y la conducta social, y buscar y deleitarse con la belleza en la naturaleza y en la vida humana. Es un hecho, el hombre pertenece a la naturaleza; quererle arrancar de ella y referirle a él mismo no es engrandecerle, es simplemente desconocer el orden natural. Pero no es desligarle de la naturaleza el concebir a esta como un grado de la realidad. Lo nuevo que caracteriza a la formación de esencia, nos dice Eucken:

No consiste en un ‘plus’ de dotes anímicos, por ejemplo, en una inteligencia más viva, en un sentimiento más fino o en una fuerza más poderosa. El que ve en esto la superioridad del hombre, no le distingue esencialmente de los demás animales. Todo este ‘plus’ no tiene valor sino como manifestación y demostración de una nueva vida esencial, de una nueva realidad en el mundo. El hecho importante es que en el hombre se produce una entrada de la vida, una posesión de sí misma, que aparece en él una vida original creadora, nueva dimensiones y valores, una nueva realidad, en suma (EUCKEN, 1957, p. 618).

Llama la atención que lo propuesto por Eucken

ya se presenta en Scheler, no en su famosa antropología de 1928, sino en un trabajo anterior, fechado en 1914 y titulado Zur Idee des Menschen (Sobre la idea del hombre). Allí, confirma el muniqués en forma definitoria la supranaturalidad del ser espiritual del hombre, de su esencial inobjetividad e indefinibilidad, pues él “no es más que un ‘entre’ un ‘límite’, un ‘tránsito’, una ‘aparición divina’ en el torrente de la vida

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y una perpetua exaltación de la vida sobre sí misma” (SCHELER, 1970, p. 57). Lo nuevo en el hombre, desde el punto de vista antropológico, no es pues su estructura biológica como ser viviente, sino su ser espiritual superior a toda vida:

Si en realidad se quisiera – como Herbert Spencer – relacionar el espíritu con el valor de la ‘promoción’ de la vida, entonces no se debería calificar al ‘animal de razón y herramienta’ como la coronación del desarrollo vital como lo hiciera él, sino como el animal en el cual la vida ha dado un faux pas – y del callejon sin salida – sería en tal caso la ‘civilizacion’ […] El animal enfermo, el animal racional y de herramienta —indudablemente un ente muy feo—, se vuelve inmediatamente hermoso, grande y lleno de nobleza, si se llega a reconocer que es el mismo ente que es o que puede llegar a ser también el ser que trasciende toda vida, y en la vida, a sí mismo, precisamente gracias a esa actividad. ‘Hombre’ es, en este sentido totalmente nuevo, la intención y el gesto de la trascendencia misma, es el ser que reza y busca a Dios […] ¡Él es la X viviente que busca a Dios! (SCHELER, 1970, p. 56-57).

Del mismo modo, Scheler afirma en su Ética que

el hombre es el ser supremo desde del ámbito biológico:

[…] en tanto y sólo en tanto que es depositario de actos independientes de su organización biológica […]. Lo nuevo que en él o en un determinado punto de desarrollo irrumpe, consiste justamente en un reboso de actividad espiritual —medido

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biológicamente—, de tal modo que es como si hubiera producido una escisión en él y en su historia, en la que se manifiesta un orden de actos y contenidos (valores) superior a toda vida (SCHELER, 2001, p. 398).

c. Ética y compromiso moral

Uno de los rasgos más atrayentes —aunque también más problemáticos— del proyecto filosófico de Max Scheler consiste en su enorme compromiso e interés por los problemas inmediatos de su tiempo. Sobre esto Schmidinger sostiene que:

Sus escritos no sólo recogen temas que conciernen a toda persona que de algún modo de interese por su existencia, sino que además tocan una y otra vez las heridas sangrantes de la época. La Guerra Mundial, la desorientación general, la perdida de lo religioso, la ‘subversión de los valores’ y el ‘sentido del sufrimiento’, son sólo algunos de estos problemas con los que tratan los seres humanos hoy como ayer (SCHMIDINGER, 1997, p. 86).

Es aquí donde Scheler tomó el trabajo de Eucken

como modelo a seguir. Como ya se mencionó líneas atrás, cuando el joven filósofo arribó a la universidad de Jena, Eucken ya se perfilaba como un pensador de primera línea en la escena intelectual de Alemania. Habiéndose alejado a fines de la década de 1880, según él, de una “concepción intelectual de la filosofía”, su pensamiento se dirigió cada vez más hacia la vida del espíritu y sus demandas, en oposición a lo que él llamaba “el vacío espiritual” de nuestra era. Su estilo filosófico se mostraba ahora más práctico y personal.

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Esto permitió que las ideas de Eucken llegaran más allá de los límites de la filosofía, ejerciendo una amplia influencia internacional que culminó con el Premio Nobel de literatura en 1908. En palabras de Alban Widgery, quien proporcionó un prefacio elogioso a la traducción al inglés del discurso realizado por Eucken al recibir el galardón:

Eucken trata los grandes problemas centrales de saber y estar con un sentido vívido de su inmensurable importancia y urgencia, y con una evidente convicción de la importancia vital de lo que tiene que decir con respecto a ellos. En otras palabras, habla con el temperamento y el tono de un profeta cargado con un mensaje divino de excitación, inspiración y ayuda para la perplejidad actual. Incluso en sus especulaciones más elevadas, Eucken tiene un ojo en los problemas del hombre en la calle (EUCKEN apud HÜBINGER, BRUCH, GRAF, 1997, p. 81).

Así, las obras de Eucken no llevan sólo el sello

del pensador que fundamenta sus conceptos de un modo frío, prudente y escrupuloso, sino también el entusiasmo del profeta y del predicador. No es de sorprender que este aspecto resultara tan atractivo y seductor para un espíritu inquieto, tempestivo y ávido por la verdad por como lo fue Scheler11. Eucken le

11 Así lo expresó Scheler a Eucken en una carta (presumiblemente escrita en 1906): "Es un hecho: queremos una filosofía crítica positiva y no fríamente negativa. Queremos una filosofía que culmine en una actitud religiosa hacia la vida y que libere a los hombres de sus pasiones filisteas por intereses superficiales. [...].

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proporcionó a su joven pupilo la inspiración y el ejemplo para romper los muros del espacio de aislamiento academicista para penetrar en las preguntas y problemas de su tiempo desde un punto de vista filosófico, siendo el advenimiento de la Primera Guerra Mundial probablemente el más significativo para ambos autores. Naturalmente, Eucken estaba convencido de su obligación moral de alentar a los alemanes y defender la política alemana (EUCKEN, 1957, p. 1212). Por lo tanto, viajó por todo el país para dar charlas en universidades, escuelas, clases nocturnas para adultos, ayuntamientos, teatros y clubes. Escribió folletos y artículos, firmó cartas abiertas, comunicados y llamamientos, y se unió a varios comités patrióticos, clubes y organizaciones. Scheler también respondió al ineludible deber de servir a la nación con la pluma e

Con respecto a este ideal, ¿no es la filosofía académica demasiado cruel y pedante? No queremos una filosofía concebida como una sala de estudio estrecha para los académicos. [...]. El filósofo es, según me parecen las cosas a medida que pasa el tiempo, un ser vivo que es incluso menos capaz de encajar en el cuerpo de la universidad de hoy en día, cuanto más filósofo es. Debe tener todo contra sí mismo, siempre encontrándose en medio del conflicto de deberes, en la alternativa de convertirse en un trabajador de aprendizaje o de vivir en desacuerdo con su entorno. ¡A qué odiosa desconfianza, a qué odiosas miradas de reojo en cada dirección a la que uno debe acostumbrarse! Y cómo la vida espontánea e inmediata sufre allí en medio. Creo que no podemos poner en tela de juicio a nuestro Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Herbart. Sus tiempos eran completamente diferentes: el alejandrismo de la cultura erudita aún no estaba tan extendido, la eliminación de la universidad de las fuerzas motrices de la vida aún no era tan grande, la ambición desenfrenada del éxito efímero todavía no había crecido fuera de proporción como hoy” (Cf. Mancuso, 2007, p. 153-154. La traducción es nuestra).

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imbuido por el júbilo y el fervor patriótico compartido por la energía heroica de las masas, tal y como él mismo admite desde las primeras páginas de su obra más representativa al respecto, El genio de la guerra y la guerra alemana (Der Genius des Krieges und der Deustche Krieg)12,esbozó algunas de las típicas y peores expresiones de la ideología nacionalista para justificar a Alemania en su agresión, a la vez que desestimaba la paz y daba la bienvenida a la guerra como una forma de renovación espiritual, creando así la impresión comprensible de que el fenomenólogo glorificaba la guerra como tal y que era un imperialista alemán de la peor especie. Algo similar ocurrió con Eucken, quien, si bien nunca compartió opiniones antisemitas o chovinistas, vio en la guerra la oportunidad idónea para una autentica renovación espiritual en Europa (EUCKEN, 1914).

Pero, a medida que el conflicto se prolongaba y mostraba su verdadero rostro de muerte y destrucción, apagando las brasas de aquellos discursos nacionalistas ya lejanos y sumiendo a toda Europa en el más oscuro pesimismo, ambos autores comenzaron a enemistarse con la guerra. Al respecto, Scheler sostuvo que sólo podía haber un futuro tras las grandes batallas entre los pueblos mediante un profundo acto de arrepentimiento colectivo que fuese capaz de provocar

12 “Me temo que el movimiento apasionante del espíritu del cual nació este libro –cuántas veces he tenido que dejar de lado la pluma al verme cautivo entre sus páginas– me ha llevado a juzgar a personas y pueblos más allá de los límites de lo permitido. Si es el caso, les pido a los afectados perdonen mi estrechez de miras” (SCHELER, 1990, p. 14).

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una autentica renovación cultural y social fundada bajo los ideales del amor, la compresión y la paz, lo cual sólo le parecía posible en la personificación de la idea cristiana de la comunidad tal como viene dada por la iglesia católica. Doce años después, con la amenaza cada vez mayor de una segunda, y mucho más violenta, guerra mundial, Scheler se dirige ante el Ministerio de Guerra alemán, en Berlín para exponer su ensayo titulado: La idea de la paz perpetua y el pacifismo (SCHELER, 1990, p.77-82; SCHELER, 2000), en donde contempla la consecución de la paz perpetua como real y posible, siendo éste el desafío profético para nuestra época. Eucken, por su parte, también intensificó sus esfuerzos para prevenir el colapso amenazador de la moral y la religión en Alemania. Su acción de mayor alcance fue la fundación de la Sociedad Luterana (Luther-Gesellschaft) en 1918, a través de la cual esperaba reunir al pueblo alemán dividido y crear una nueva base moral para la era de la posguerra. Cuando Rudolf Eucken murió el 15 de septiembre de 1926, pasó a la historia como uno de los líderes espirituales en la Alemania de Weimar.

Consideraciones finales

A lo largo del texto hemos podido constatar, a

través de una exegesis comparada, las relaciones existentes entre Scheler y Eucken. No cabe duda que éstas no se pueden reducir ni a mera repetición o mera contraposición, sino que atraviesan un marco amplio de influencias, discusiones, divergencias y

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continuidades. Para finalizar dejaremos mención de algunas de ellas a partir de lo que se ha podido mostrar:

Primero, Scheler no fue un mero repetidor de las ideas de Eucken. No cabe duda, sin embargo, que sobre todo en su etapa temprana, la huella de las continuidades doctrinales y conceptuales de su maestro es patente, pero sería injusto obviar el hecho de que Scheler ya matizaba esa influencia con sus propias posturas y con una clara redefinición conceptual. Segundo, a pesar de la total divergencia metodológica con Eucken, ésta se contrasta fácilmente con la continuidad temática. Contrario a lo que comúnmente se piensa Scheler no se acercó a la fenomenología por una mera cuestión pragmática, antes bien, creía hallar en este un método que aunaba a su fecundidad ofrecía el rigor que no pudo encontrar en Eucken. Está tensión provocó que Scheler, posteriormente, no abordara los temas clásicos de la fenomenología establecidos por Husserl, ya que para él simplemente se trataba de un mejor modo de acercarse a un dominio de objetos y problemas que eran una constante desde su juventud. Finalmente, ha servido también está lectura para comprobar que es posible acotar la prejuiciosa postura de ciertos intérpretes respecto a la asistematicidad del pensamiento scheleriano. Pues en este permean diversos temas a lo largo de toda su producción intelectual, independientemente del periodo al que pertenezca y si bien este punto de vista está sostenido en los diversos cambios de método filosófico, es patente que estos cambios no corresponden a movimientos ni arbitrarios por una falta de claridad sino con la pretensión de

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ahondar cada vez más en la incesante búsqueda que era su propio itinerario intelectual. Referencias ALBISU, D. M. Los escritos juveniles de Max Scheler. In: Ethos, 118 (1978-79).

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Terceiro Capítulo

“Omnia habemus nihil possidentes” Percepção afetiva e valores na fenomenologia de

Max Scheler

Daniel Rodrigues Ramos

“Concentra-se-nos tudo no espiritual, ficamos pobres para chegar a ser ricos”

(Hölderlin)

Introdução

O presente capítulo quer ser uma introdução à

fenomenologia de Max Scheler, porém, contente com a pretensão de tematizar apenas a questão do perceber afetivo ou do sentir dos valores. Na verdade, é uma pretensão desavergonhada de tentar colocar esta específica questão. Confessa-se que foi escrito, talvez até demasiadamente, com a preocupação de trazer à tona, didaticamente, algumas ressonâncias deste pensamento fenomenológico em problemas de nossa atualidade. Em filosofia, porém, não se introduz comprovando a atualidade ou inatualidade de questões. Esta é uma preocupação justa das ciências, das historiografias e, muito mais, uma obsessão das degenerações científicas que se fazem passar por ciência futurosa, cheias de palavras de ordem, prédicas e proclamações proféticas acerca de homens e sociedades porvindouras. Mas não são mais que novos sociologismos, historicismos, psicologismos,

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pedagogismos e todas outras formas de -ismos – neuras e psiconeurologias do conhecer.

Filosofar é apenas possível com questões, para as quais a pergunta pela atualidade e inatualidade é um ato de retrocesso, antiquado. Questões são o que são, porém, enquanto não são tomadas como coisas que estão simplesmente aí; elas não se dão como sapatos, já o disse Heidegger, mas tão somente enquanto são questionadas (Cf. HEIDEGGER, 1999). E isto quer dizer: elas implicam a integralidade do ser humano, a realização de toda a sua (auto)constituição. Deste modo, compreendidas desde a experiência de quem foi afetado pelas questões – quase nunca ao gosto das doces veleidades, mas na maioria das vezes na forma do impacto que chega de chofre, sem hora marcada, sem data e a classificação cronológica dos historiadores -, elas se apresentam muito mais como exigentes, prementes, urgentes e, por vezes, até dolorosas. É que questões são convites para saltar, alegre e jocosamente, como em roda de jogo de criança, naquilo que insiste em manter-se no obscuro. Com o salto nesta roda, no entanto, lampeja-se a luz do pensar, que a origem mesma doa, ilumina com claridade divinal. Então, dá-se pensamento, descobrem-se os sentidos que, em cada época, regem a construção de nossa pobre humanidade, de nossa (im)política convivialidade, do surgimento do inaudito por meio de nossa incansável criatividade, das razões de nossa credulidade nas coisas que se recusam a ser naturalmente mundanas – e também de nossa humana recusa em crer que há qualquer retraimento do mistério. Fiat lux, fiat intelligentia!

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Quem, portanto, impôs a eficácia das questões em tempos atuais como a condição do salto, já barrou para si desde o princípio a experiência do pensar. Por isto, caro leitor, advirta-se para a seriedade deste texto, para não perder a cordialidade e jovialidade do pensamento. Contra tal preocupação em demonstrar a atualidade da reeducação de nosso sentir, dos afetos para os mais altos valores, é necessário precaver-se, para que a presente reflexão não sirva de álibi para aquele espírito pesado, tão execrado por Nietzsche, aquele tão ocupado em ser seriamente profundo. Que ele não venha a lhe contaminar com o mais carrancudo ressentimento do conhecimento com as suas monstruosas deformações (todos os seus -ismos possíveis). Elas são uma legião que tem sempre o nome de saber atual e hodiernamente atuante, didático.

Nossa riqueza, nossa pobreza

O mote latino, presente no título, exprime uma

compreensão da tradição místico-espiritual franciscana e um traço fundamental da experiência religiosa que remonta a Francisco de Assis. Não é, pois, tarefa difícil encontrar nos escritos de Scheler explícitas referências e comentários às fontes da espiritualidade franciscana. Ao longo da defesa do ethos cristão contra as marteladas da crítica nietzschiana, desenvolvida em Das Ressentiment im Aufbau der Moralen (1912)1, aparece, por exemplo, a

1 Primeiramente, publicado nesta data sob o título Über Ressentiment und moralisches Wertuteil. Ampliado em 1915, o escrito passa a figurar com título supracitado. Como tal, compõe

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atitude humilíssima do Poverello, narrada nas preciosas historietas e anedotas dos Fioretti2, purificada da tendência de ver nela o veneno do ressentimento. Contrariamente a esta tendência, Scheler indica com a atitude de Francisco, justamente quando o santo amante da pobreza se declara o mais vil entre todas as criaturas, o reconhecimento de valores positivos, hierarquizados desde um reino superior de valores espirituais, mas que também se manifesta em comunhão com o sensível e toda esfera vital, melhor, com todas as esferas do ser (SCHELER, 2007, p. 77-78; 89-90). Em razão desta valoração essencialmente positiva, em Francisco se configura a autêntica disposição do amor cristão para o sacrifício, de transbordar-se solicitamente em favor do outro, porém, a partir e por causa de valores positivos que o viver cristão descobre em si. Então, o viver animado pelo amor tende ao sacrifício ao próximo, particularmente àqueles em que a vida se desfigura na pobreza, doença e em desfeito aspecto humano e até horrendo, em síntese, pequeno e vil, não por razão de uma perversão dos instintos (um gosto pelo que é inferior e degenerado ou, como diria Nietzsche, uma

o conjunto de escritos reunidos o terceiro volume das obras completas (de ora em diante, GW). 2 São relatos dos feitos e gestos heroicos de Francisco e seus primeiros companheiros, que primam pelo humor e alegria. I Fioretti é o título italiano, cujo significado literal é florezinhas, denotando algo pequeno, delicado, porém, primoroso e de valor precioso. São um conjunto de relatos a respeito da saga do movimento franciscano primitivo, transmitidos como singelas preciosidades. Em foco, Scheler coloca o capítulo 10 (Cf. TEIXEIRA, 2004, p. 1505-1506).

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fraqueza vital caracterizada pela deficiência do querer o que é nobre, enfim, por causa de um instinto de rebanho) ou por uma postura doentia de autodepreciação do viver que o faz ver a si como privado de valores, débil e feio.

No entanto, as ressonâncias da mística franciscana na fenomenologia de Scheler não se fazem notar unicamente mediante as explícitas referências; ela também se apresenta silenciosamente nas entrelinhas da elaboração de importantes temas, inspirando a descrição de fenômenos, como no caso do amor cósmico à pessoa e a Deus. Neste aspecto central do amor cristão, Scheler reconhece a real amplitude “universalista” da simpatia enquanto amor ao ser-pessoa individualizado de todo e qualquer homem e, no seu grau mais elevado, às pessoas espirituais em Deus (SCHELER, 2009, p. 108-111). Mas se o amor a Deus é repetir e realizar nele e com ele seu amor ao mundo (SCHELER, 2005, p. 111, 166), tal amor se expande a uma ilimitada união vital como as criaturas finitas, sem exceção, incluindo em si todos os níveis da natureza infra-humana. O amor ao próximo em Deus possui, portanto, estrutura e envergadura cósmica, esquecidas por séculos pela mística e pensamento cristão, as quais somente pelo movimento franciscano teriam sido despertadas, admite Scheler (2005), na medida em que este cultiva, enquanto a sua intuição fundamental, uma irmandade do homem com a planta, o animal, o vento e a nuvem, sol e lua, fogo e água e a mãe terra, enfim, com a totalidade do universo. Então, simpatizar também possui uma função específica, pela qual se manifesta com o caráter de participação

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solidária e afetiva no viver de todo vivente e na presença de qualquer não vivente, na linguagem da mística franciscana, numa irmanação ou confraternização universal. Nisto tudo parece ressoar a poesia e o canto de Francisco ao entoar o seu Cântico do irmão sol ou louvores das criaturas, inclusive quando moribundo, saúda até morte como irmã (TEIXEIRA, 2004, p. 104-105).

Todavia, não são as origens cristãs do pensamento fenomenológico de Scheler que aqui se encontram em questão, muito menos ainda a reconhecida influência do pensamento e teologia agostiniana em suas obras, em cuja tradição, certamente, a mística franciscana também atinge esta fenomenologia que se preocupa com o papel dos afetos e dos valores no conhecer e agir humanos. Aqui, o mote franciscano apenas funciona como uma baliza, que delimita uma nítida diferença e, assim, aponta apara uma específica problemática do sentir-de-valores e do amar do homem moderno e contemporâneo. A remissão à intuição da mística franciscana, por confronto, revela uma destinação epocal e, talvez, uma grande pobreza material e espiritual da época moderna, cujo avio ainda nos atinge como uma convocação que anima o hodierno sentir e os afetos, pelos quais nos atentamos e somos atingidos pelo ser em suas infindáveis concreções. Neste sentido, devemos fazer atenção ao mote, também para ver sua intrínseca relação com o subtítulo, no qual se explicita a causa da presente discussão: a noção de percepção afetiva (Fühlen) de valores. O mote, portanto, fornece

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o eixo hermenêutico para o desenvolvimento desta questão.

Livremente, este poderia ser traduzido do seguinte modo: tudo temos, porém, nada possuímos. O mote franciscano estabelece, pois, uma dessemelhança entre ter e possuir. Estabelecendo tal diferença, indica um modo de ter que, para os tempos atuais, é no mínimo estranho, senão incompreensível. Trata-se do ter que é, ao mesmo tempo e essencialmente, recusa de possuir. Este aparente contrassenso, porém, não é uma deficiência, uma falta, mas sim um dado bastante positivo: temos quando não cobiçamos por posse. Há este ter, como diria Agostinho, quando nosso amor pelo que temos não vive atormentado pelo temor de perder tanto aquilo que já foi obtido, bem como aquilo que ainda não fora obtido, mas se deseja ardentemente ter (AUGUSTINUS, 2019). Deste modo, temos todas as coisas justamente na atitude de recusar de apoderar-se delas. A recusa, neste caso, é a renúncia em favor de viver sine proprio, como está na regra e compreensão franciscana acerca do viver cristão como sendo um de seus traços fundamentais (TEIXEIRA, 2004, p. 158)3. Neste sentido, a renúncia anuncia positivamente outro modo mais originário de ter e ater-se a tudo que é, a saber, deixando cada ente ser o bem que é, também quando passa, perece e, no caso do ser humano, morre. Portanto, o ter aquilo que é transitório implica um amor que suporta o perder pelo perecer e também o ausentar-se advindo a cada instante pelo morrer. Pois,

3 Possível tradução de sine proprio é sem propriedade (de toda e qualquer forma de bens, não só os materiais) (Cf. TEIXEIRA, 2004, p. 158, 165).

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na vontade de assenhorar, nada é percebido em seu verdadeiro valor, isto é, não amamos aquilo que temos segundo o seu próprio bem. De maneira mais positiva, por ter percebido e estimado o bem particular segundo o seu próprio valor e natureza, quanto mais retamente amamos o que temos ou aspiramos a ter, menos temos o desejo ávido de possuir, evitando a angústia da dor absurda oriunda do temor de perder; que teme até o medo de perder o que necessariamente passa.

Bem se aplica, pois, à tradição agostiniana-franciscana, aquilo que Scheler reconhece como sendo essencial para definir o ser humano: “o homem, antes de ser um ens cogitans ou um ens volens, é um ens amans” (SCHELER, 2000, p. 356). A natureza humana é, pois, de um viator, de um viajante movido pelo amor, de afeto em afeto, por meio e para além das coisas, em busca do gozo de um bem pleno ou da vita beata. Por razão desta natureza e condição de viandante, o homem está sempre atraído por tudo que lhe rodeia, certo, na medida em que percebe o bem que cada existente representa. De outro modo, é o homem que, cada vez e de modo distintos, quem é tido por tudo que lhe rodeia; ele apenas concede em ser atraído, “possuído” e, assim, pôr-se a caminho de sua meta última e nobilíssima: descansar seu coração na fruição do abissalmente inesgotável, aquietar-se em um gozo e felicidade que jamais cessa. Não é, pois, acaso algum que o primeiro a traduzir a mística de Francisco de Assis em pensamento filosófico, Boaventura de Bagnoregio, começa o seu Itinerarium mentis in Deum, ao longo do qual é descrita a viagem do ser humano rumo àquela beatitude, afirmando-a como impossível,

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se o ser humano não for possuído, de antemão, por um enlevo e deslanche do coração para um movimento ascensional, isto é, se não for primeiramente atraído e tomado pelos bens e, em especial, por aquele que é mais elevado, o Summum Bonum (BOAVENTURA, 1986, p. 59). No princípio, mas também no meio e no fim da viagem, está não a tomada de posse, mas ser tomado pelos bens e, sobretudo, pelo bem infinitamente bom. É porque que algo de valor já se deu ao olhar do coração e à vidência do amor, que o ser humano pode se empenhar por busca-lo. O homem busca aquilo que previamente o encontrou, possuiu-o no amor.

Mas por que razão o homem é sempre possuído nesta busca? A resposta depende do princípio mesmo da viagem, que a guia até o fim e a remete para si mesmo. De outro modo, pelo simples fato que, na compreensão franciscana, temos tudo, porque tudo nos é dado; é fruto de uma doação que permite ser acolhido no amor a esta dádiva. E, ademais, é-nos como um bem inigualável, então, como algo digno e valoroso, ora como sombra, ora como vestígio, ora ainda como imagem, enfim, em diferentes especulações, das mais cerradas, obscuras às mais diáfanas, do amor e ser divino. E como tal doação se dá em toda parte e em cada ente, é ela a abertura gratuita, generosa, abundante de um mundo de bens, de valores. De outro modo, o ter humano só é possível ao modo de remeter-se a cada coisa e ater-se grato pela bondade divina presente em cada criatura, por ínfima que seja. Então, omne ens est bonum, sobretudo, porque Deus, sendo o Summum Bonum e segundo esta sua intimíssima

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natureza, ama difundir-se sumamente e fazer-se sondável na criação4. Porque o mistério insondável se re-vela na bondade e beleza do prosaico, numa ordem e em graus que ascendem do vilíssimo para o nobilíssimo, ele atrai e tudo remete de volta para si. Assim, é em razão de um reino superior de valores, pela limitada experiência humana do revelar-se do Bem (sumamente) altíssimo, do divino dar-se ilimitadamente por toda parte em uma plenitude de bens nobilíssimos, de modo totalmente independente do agir ou do conhecer humanos, que se recusa a possuir e se reafirma somente a atinência pobre e humilde de somente ter enquanto acolhida de dons. O mote, portanto, remete para a estrutura vivencial e essencial da experiência franciscana do mundo, revelando que não se centra no sentir e valorar dos homens a fonte dos bens e dos valores, mas que mediante a realização de tais atos o homem medieval tão somente se vê agraciado por uma multiplicidade infinda de dons. Sua pobreza, concretizada de modo paradigmático no ideal e na história do Poverello de Assis, então, é a sua riqueza.

Perdemo-nos aqui ao tentar desentranhar o cerne de uma mística, que nos devia do objeto da discussão? Não. Pelo contrário, por vias errantes, fomos remetidos diretamente para a direção e um dos

4 Este princípio do pensamento e mística franciscana é formulado do seguinte modo por Boaventura de Bagnoregio: “Na verdade, «o bem é definido como difusivo de si mesmo». Portanto, o sumo bem é sumamente difusivo de si mesmo” (BOAVENTURA, 1986 p. 171). O princípio bonum diffusivum sui, porém, provém do Pseudo-Dionísio Aeropagita.

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problemas centrais da discussão do perceber afetivo na fenomenologia de Scheler:

Quanto mais a pessoa é em si dotada de valor e comporta-se [nobilmente], tanto mais abre-se para ela a olhos vistos, a cada passo, o mundo dos valores. A alma de um homem piedoso sempre agradece silenciosamente pelo espaço, luz, ar, pelo dom recebido da existência de seus braços, membros, sua respiração; e tudo se povoa com valores e desvalores, enquanto para outro é “axiologicamente indiferente”. O mote franciscano: “omnia habemus nil possidentes” expressa a direção de tal liberação do perceber afetivo dos limites subjetivos indicados (SCHELER, 1996, p. 334).

O homem moderno pretendeu enriquecer o

mundo dos valores, porém, reconduzindo-o para a multiplicidade de perspectivas subjetivas, à custa de uma redução do perceber e sentir(-de-valores) humanos ao reflexo distorcido das emoções, às reações do corpo orgânico e representações psíquicas. E deve-se lembrar que, nesta compreensão do perceber, as últimas podem ser subjugadas às primeiras, na medida em que se admite, em teorias psíquicas ou mesmo em afirmações absurdas, que todo o psíquico pode ser reduzido à sensação e complexos sensitivos ou ser nestes transformado e traduzido (SCHELER, 2003, p.108). Neste movimento de fundar as qualidades de valor das coisas no subjetivo-sensitivo, o mundo não mais reflete, como em época medieval, como se fosse um espelho capaz de múltiplas especulações, um reino de valores subsistentes em si. Antropocentricamente,

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ele tem a cor e o brilho que as emoções e representações humanas lhe emprestam, como se os fatos psíquicos pudessem servir de símbolos para os objetos físicos e sua ordenação espaço-temporal sem perceber que a espacialidade e temporalidade da vida anímica, por certo alojada no corpo vivido, são muito diferentes do tempo e espaços medidos dos corpos físicos (SCHELER, 2007b, p. 269-270); ou as cores e tons do mundo possuem apenas função simbólica para a percepção natural, pois são transformados em signos psíquicos por intermédio de uma mecânica sensitiva (SCHELER, 2007b, p. 272). Enfim, os valores das coisas, das pessoas, do mundo são apenas símbolos da atividade do organismo psicofísico do homem. Portanto, a percepção e o sentir deles são regidos por leis fisio- e psicológicas. Deste modo, a riqueza de valores é pura ilusão, pois não reenvia a nada de valor, a coisa alguma valorosa em si mesma, mas exclusivamente a representações subjetivas. Ela tão somente revela que, na compreensão moderna, se permanece na tendência de valoração mundanal-hedonística (irdisch-hedonische Wertung), a qual, para Scheler, é um tipo bastante específico de orientação das experiências vividas e a roda propulsora do intricado de significações constituintes da civilização e cultura modernas (SCHELER, 2000, p. 258).

Se, por um lado, o formalismo kantiano na ética expulsou o prazer e, juntamente com ele, a busca da felicidade do reino da liberdade, dos fins em si mesmo e da autonomia, por outro, confinou os afetos e o prazer nos limites da sensação, responsabilizando-os pela sujeição da ação humana aos fenômenos da

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natureza. Para esta doutrina, os sentimentos, sobretudo, de prazer e desprazer, conduzem somente à felicidade enquanto busca do amor próprio, isto é, um egoísmo do sujeito preocupado em ser benevolente prioritariamente consigo mesmo ao querer satisfazer as próprias tendências e impulsos sensíveis; busca que é corrigida exclusivamente por uma lei abstraída de todas as condições empíricas materiais5.

5 Cf. Em especial, os teoremas II e III de Kant (s.d., p. 32-33, 38). E, posteriormente, esclarece Kant (s.d., p. 88-89): “Todas as inclinações em conjunto (que podem igualmente integrar-se num sistema tolerável e cuja satisfação se chama felicidade pessoal) constituem o egoísmo (Selbstsucht) (solipsismus). Este é ou o amor de si (Selbstliebe), a benevolência acima de tudo para consigo mesmo (philautia), ou a complacência (Wohlgefallen) em si próprio (arrogantia). Aquele chama-se especialmente amor próprio (Eigenliebe), a presunção (Eigendünkel). A razão prática pura causa dano só ao amor próprio, ao restringir este, que é natural e desperta em nós antes da lei moral, à única condição de se harmonizar com esta lei; chama-se então amor de si racional”. Digno de nota nesta definição do amor próprio é o fato dos sentimentos estarem restringidos ao âmbito das tendências e impulsos sensíveis, portanto, reduzidos aos sentimentos sensoriais, característicos do corpo físico, excluindo-os da esfera do corpo próprio (sentimentos vitais), bem como das esferas psíquica e espiritual. Rompe estas estreitas barreiras apenas o sentimento do respeito (Achtung) pela lei moral, mas ele é uma disposição racional e de natureza representacional (Cf. KANT, 2007, p. 31). Além disto, os sentimentos, enquanto fonte da presunção, são responsáveis por uma cegueira, uma escuridão do homem acerca de si mesmo à medida em que o tornam incapaz de formar uma imagem precisa de si, já que baseada nas (vãs) aparências (Eigen-dünkel), que somente é corrigida pela luz da razão, representada pela lei moral. Tal fato aponta para o predomínio da impostação teorética não só no interesse do

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Paradoxalmente, considerando a moral moderna desde sua genealogia a partir da experiência vivida e remontando-a às condições concretas e históricas de surgimento, é possível afirmar que este formalismo ético é apenas um pseudoascetismo, pois a típica tendência vital do homem moderno é conferir às coisas e ações (e também pessoas) valores segundo o significado do preço, do lucro, do luxo. E o faz, como se verá, com a força do seu trabalho e do seu empenho, seu sangue e suor, enfim, pela ação do sujeito (típico da esfera econômico, usualmente consagrado como empreendedor). Deste modo, ele se sacrifica por um gozo do prazer que, entende-se, só é possível com a intensificação sem fim na produção e aquisição de bem materiais tidos como mercadorias. O homem moderno se priva em função de valores mais altos, porém, estabelecidos desde a ótica da soma em dinheiro e do preço econômico. Nisto, o subjetivismo dos valores tem sua real expressão em uma civilização em que “as formas artificiais da economia monetária e a visão mecânica da natureza [...] minoram a plenitude fática de qualidades de valores do mundo para nossa consciência; e, com isto, tem que romper principalmente em uma atitude puramente cognoscitiva a respeito ao mundo” (SCHELER, 2007b, p. 274). Sua riqueza, pois, é também a sua pobreza. Sem contar, que do ponto de vista ético, desemboca inevitavelmente no relativismo ético, em certa anarquia dos valores e desencanto cético com a possibilidade de perceber os valores das coisas mesmas;

conhecimento da natureza, mas também prático, isto é, na determinação do fundamento da liberdade humana.

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encaminha-se para um pragmatismo e relativismos ingênuo a respeito de um absolutismo oculto na própria postura (SCHELER, 2007b, p.69), barrando a estrada para uma compreensão vigorosa e radical de que modo a história é ela mesma o horizonte de surgimento de novos valores e da valoração axiológica. Contudo, tais mudanças axiológicas geradas historicamente não se dão como reflexos dos estados emotivos, mas sim como fruto de profundas transformações do ethos humano e, com elas, da hierarquia objetiva de valores, por certo, mediante a ação da percepção efetiva de um mundo de valores independentes da natureza e estrutura deste ato (SCHELER, 2000, p. 300-301)6.

Por consequência de tudo que foi acenado, o fio condutor dado pelo mote franciscano indica que a percepção afetiva não pode ser confundida, de antemão, com a defesa de uma presuntiva subjetividade dos valores e, com isto, a negação da objetividade dos valores como fenômenos últimos, dotados de leis próprias, cuja apreensão seria o momento sublime do espírito. O subjetivismo parece ser bem mais o erro da atitude predominante diante dos bens, melhor dizendo, sintoma de uma doença espiritual, que acomete os homens modernos e atuais, a qual poderia ser designada como uma désordre du coeur (SCHELER, 2000, p. 267) ou, dizendo com Pascal,

6 Para uma análise mais aprofundada do “relativismo” histórico das morais e das avaliações éticas dos valores, suas origens, substratos fundamentais com suas variações fenomênicas, o leitor deve se ater a todo parágrafo 6 (segunda parte, capítulo V) da obra citada.

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de uma perversão da logique du coeur. Sendo correlata à pobreza de bens do mundo na época moderna, esta perversão fala de uma decadência na intuição e sentir dos valores, isto é, do perceber afetivo, bem como da conceituação e interpretação deste ato pela qual o homem se coloca numa postura receptiva dos bens. Em relação a este último aspecto, ela revela uma cegueira, situada na base do formalismo (pseudoascético) da moral moderna, para o fato que, no sentido intencional de tender e esforçar por alcançar algo, o “homem aspira, antes de tudo, aos bens e não ao prazer [que prova] junto a estes” (SCHELER, 2007a, p.251). Tal cegueira, porém, é a interposição de uma ilusão constituidora de um ver distorcido do que se dá, prejudicando a apreensão imediata da efetividade dos bens conforme os valores a eles inerentes, na medida em que o perceber é desviado em geral para estados emotivos em sua correlação com estímulos sensíveis capazes de provocar sensações de prazer. Deste modo, a tematização do perceber afetivo deve começar pelas ilusões arraigadas na experiência vivencial do homem moderno, que intercorrem entre a intuição imediata e o dar-se dos fenômenos axiológicos, as raízes da désordre du coeur.

Antes, porém, alerta-se o leitor desadvertido, o qual pode, a este ponto, ter facilmente se deixado levar a conclusões errôneas em virtude do método de confrontação, acima utilizado, entre duas experiências epocais radicalmente diversas do perceber afetivo. Em síntese, não se trata de opor ao subjetivismo dos valores uma concepção do sentir humano fundando-a em um ontologismo axiológico pertencente já aos tempos de

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Agostinho, numa defesa e reprodução, ambas cegas, de um modelo precedente ao atual (SCHELER, 2007a, p.363). Em verdade, a contraposição operada só possui mérito qualquer se ela faz ver que o posicionamento, exigido para descrever fenomenologicamente o perceber afetivo, se tiver sentido algo como tomar partido, ele não será a favor nem dos diversos ontologismos, nem do formalismo puro (de tipo kantino) e de suas derivações; mas antes, em defesa de certa estrutura essencialmente correlativa e vivencial, que (co)implica em cada tipo de objeto determinada experiência em que este objeto se manifesta (SCHELER, 1996, p. 270). Se se deve explicitar a tomada de posição da fenomenologia de Scheler, então, ela terá que ser em benefício do medium originário que se impõe anteriormente a qualquer destes dois extremos – o que, na verdade, é tomada de posição da atitude fenomenológica rigorosa a serviço do pensamento. Neste espaço medial ou intermediário entre o puro formalismo e ontologismo absoluto, com efeito, pode-se abrir a compreensão de que os valores são fenômenos fundamentais, tão independentes no seu dar-se (material), que os limites de bens em dada época são definidos pelos limites da datidade axiológica (SCHELER, 1996, p. 251). Contudo, ao mesmo tempo, não há o que se doa senão na ativa acolhida do que se dá, de tal modo o dar-se dos valores também doa ao homem a capacidade de apreendê-los. Toda datidade de valores possui, como correlato inalienável, o sentir-de, como forma específica e intencional de consciência de valores: a percepção afetiva. Então, na base de todos os estados emotivos, por exemplo, de prazer e

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desprazer, está um perceber afetivamente as qualidades objetiva e materialmente dadas, pertencentes às coisas, aos atos, em geral, aos bens que se apresentam como aprazíveis e desprazíveis. Esta capacidade de ser e sentir, porém, precisa ser exercida ativamente, desenvolvida, educada, de tal modo que também se apresenta concretamente condicionada em cada época. Então, simultaneamente, é permitido dizer que os limites axiológicos de determinado mundo de bens é também os limites da atitude perceptiva-afetiva que os homens conquistam em cada tempo de sua história.

Para este desenvolvimento rumo à plenitude do ser humano em sua disposição afetiva, impedem tanto o puro formalismo quanto o ontologismo. Em caminhos divergentes, porém, esta história ensina uma só coisa: quando somos plenamente o que somos, empobrecemo-nos e concentramos tudo no espírito, justamente para sermos mais nobres e ricos de bens mundanos. Concentrarmo-nos no espírito, porém, não é nenhum mandamento de um falso ascetismo qualquer. Paradoxalmente, se o homem não se dispersa e se concentra no que há de mais nobre de sua estrutura, ele o faz por meio e ao mesmo que experimenta relações e vinculação sublimes com tudo o que o rodeia. Tal como nos ensina Heidegger a partir do dito poético de Hölderlin:

O homem mantém uma relação com aquilo que o rodeia, relação que é sublime, elevando-se para acima do “sujeito” e do “objeto”. “Sublime” aqui, não significa apenas “estar suspenso por”, mas alcançar o cume, acerca do qual Hölderlin disse uma vez que o

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Homem [...] poderia “cair” nele. A altura deste cume do sublime é, por isto, em si mesma e simultaneamente, a profundidade. A relação sublime dá aquilo que excede todos os homens e objetos e que, ao mesmo tempo, suporta tudo isto (HEIDEGGER, 1994, p. 7).

O que seria este sublime na fenomenologia de

Scheler? Eis o que se deve pensar. Entrementes, não é o nosso propósito de pensamento. Deveras, dele depende o sentido de nossa pobreza, de nossa riqueza. Decerto, ele terá a ver com uma esfera do absoluto, “a esfera da essência de todo ser possível”, que se se contrapõe “[...] a sua esfera existencial casual” (SCHELER, 2007, p. 98). Por ora, contenta-se em apontar que sublime é, antes de tudo, a esfera do ser-pleno; tão essencial que independe da ideia de sua existência e de tudo que lhe é ontologicamente relativo. É a evidência do mistério de um modo de ser ab-soluto, que tudo suporta, mas nada é, o “abismo do nada absoluto” (SCHELER, 2007c, p. 152). Para a intelecção deste abismo positivamente imensurável, fonte de todos os bens, o homem está destinado, porém, desde que o absoluta e positivamente valoroso seja colhido e apreendido tal como se doa antecipadamente em si e por si. O caminho para esta nulidade absoluta, por certo, começa com o ímpeto do sentir-dela enquanto nulidade relativa, presente em cada existente, mas apenas como promessa de uma luz e valor incomensurável. Inclui, portanto, os afetos. O propósito, portanto, é pensar apenas o que, de nossa parte, pode nos encaminhar para a relação sublime com tudo que nos rodeia: o perceber afetivo.

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As raízes de nossa pobreza: ilusões e os sintomas da “désordre du coeur”

A pobreza axiológica do mundo do homem

moderno não é pensada na direção de contestar o fato que, atualmente, ele vive no mundo das coisas indiferenciadas, planificado e planetariamente uniformizado pela técnica moderna – se é que se pode dizer que, de fato, é possível habitar um mundo de objetos (enquanto representações do ser de todo o existente mediante uma postura teorética e intelectualista) –, culpando as ciências por esta profunda transmutação da realidade humana-mundana em vista do domínio ilimitado de todas as esferas do ser. É certo que, como precocemente diagnosticou Nietzsche, a consumação dos tempos modernos se encaminha a confirmar cada vez mais a imagem por ele utilizada de uma desertificação do mundo, sem par na história do Ocidente. Porém, para o diagnóstico das razões da désordre du coeur não é o caso partir das ciências e da técnica, menos ainda se trata de culpa-las, não obstante não sejam desconsiderados a participação e o efeito delas na geração de um mundo axiologicamente indiferenciado e tecnicamente racionalizado. E, com isto, elas fazem-no um deserto da ausência de sentido, tonalizam-no com a monotonia de poucos significados ao impregná-lo com um valor único para as coisas, por exemplo, da utilidade ou da eficácia, tão exaltados em tempos de domínio técnico-científico. Parte-se, ao contrário, da perturbação da “condição de possibilidade”, demasiado humana, que nos levam a apreender e compreender

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afetivamente os valores, a descobrir a omnipresença deles e a permitir, na disposição existencial de querer que tudo cresça sempre mais na possiblidade de ser o que é, que eles se elevem até sua mais alta valoração.

Na fenomenologia de Scheler, então, o diagnóstico da aridez do mundo atual, que também é de nosso espírito, tem em conta por princípio a nossa consciência axiológica. Esta, porém, enquanto concreção da consciência, nada tem a ver com o âmbito egoico e interno, onde a razão arguta e representadora toma sede, mas sim com a concreta existência da pessoa, essencialmente referenciada ao mundo, pensada como fundamento unificador responsável por dar suporte e base a todos os atos intencionais e dotados de sentido (SCHELER, 1996, p. 391-392). Considerada, no entanto, enquanto consciência axiológica, é tida não como uma manifestação de consciência nem supra-, nem subconsciente, mas que se caracteriza por ser in-consciente7, isto é,

7 A pessoa, em sua orientação intencional para o mundo, não é uma concepção de consciência-de dependente das interpretações racionalistas do ser consciente, por isto não representa uma estrutura supraconsciente (Überbewuβte) ou subconsciente (Unterbewuβte). São estas determinações da consciência, pelo contrário, que são fundadas na correlação pessoa-mundo. Assim, tanto o supraconsciente quanto o subconsciente ainda são, cada qual a seu modo, conscientes, distinguindo-se apenas pelo fato de os dados da intuição terem sido, respectivamente, selecionados ou não pelas funções da percepção interna. Para aquém da concepção cartesiana da consciência e suas derivações históricas, a consciência-de enquanto unidade originária dos atos pessoais, dirigidos para a unidade do mundo, é muito mais uma esfera inconsciente (Unbewuβte). O inconsciente, por sua vez, é aquilo que “em sentido algum deve estar para a consciência, mas sim o

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caracateriza por um saber(-se) senciente que se forma a partir dos mais atos mais primários responsáveis por conformar o mundo na dimensão pré-teorética, na relação mais imediata possível do viver humano com o mundo circundante. Deste modo, tal consciência é uma ciência (de si e de tudo mais) primordial, precedente e inerente a qualquer forma posterior de consciência-de.

Segundo o fluxo intencional desta consciência, quanto mais a pessoa se abre de modo nobre para o mundo, tanto mais o valor de tudo o que o rodeia é percebido numa pluralidade incomensurável de valências, então, tanto mais será rico o mundo de valores. No sentido do dinamismo e caráter originário desta abertura, a consciência axiológica do homem moderno se encontra adoentada. E, pelo que se antecipou acima, encontra-se, em síntese, por duas razões. Em parte, a pobreza axiológica se deve à visão natural e mecanicista do mundo (SCHELER, 1996, p. 272). De outra parte, ao modo comum de ver que rege todos os atos dos homens da presente civilização, cuja imagem paradigmática ainda é o tipo “homem moderno europeu e ocidental” (SCHELER, 2000b, p. 28). Na primeira razão, está atuante a tendência,

que primeiramente está aberto” (SCHELER, 2007c p. 249). Por isto, o inconsciente não é aquilo que não foi notado, observado, refletido etc – o que ainda pertence à esfera do subconsciente. Antes, é a totalidade complexante da consciência, sempre acessível à percepção interna, porém, na maioria das vezes, por ela apenas inferida, vislumbrada, mesmo que tenha tido sido objeto da mais intensa auto-observação e, mais originariamente, tenha sido colhida precisamente como um “transfundo”, isto é, fundo que perpassa, entrelaça e sustém todos os dados da consciência.

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ressaltada pelas ciências positivas, de crer que o primordial da vida humana se define no horizonte do corpo psicofísico e compreender a vivência originária da corporalidade dentro do esquema associativo de estímulo e resposta. Nesta direção, a consciência de valores se reduz à satisfação dos impulsos psicofisológicos e, quando muito, às necessidades vitais. Por conseguinte, os valores minoram em grande número e, ao mesmo tempo, os sentimentos são limitados na esfera do corporal, reduzindo-os à classe dos sentimentos sensoriais (privados de qualquer objeto intencional) e à consciência intencional-perceptiva da unidade do corpo vivido ou próprio. Neste caso, valoroso é aquilo que provoca prazer e gozo (em casos patológicos, prazer com a dor e com o sofrer) ou bem-estar ou bom estado de ânimo; é tudo aquilo que foi marcado com o sinal do que é vantajoso do ponto de vista da sensibilidade e o acréscimo da vida. Portanto, valores são apenas símbolos dos bens importantes somente nesta perspectiva do agrado e da comodidade aos sentidos orgânicos e do fortalecimento da vida. Tudo mais é desprezível e de pouca monta.

De grande e pouca monta possui, entre outros, o significado monetário e econômico, o qual, graças uma subversão de valores, tornou-se o prioritário para o homem moderno. Se outrora de grande monta poderia ter sido o que era extraordinário, supremo, denso e consistente e imponente como um alto monte ou uma gigantesca montanha, para hoje é aquilo que é alto em número e cifras. Se antes era aquilo que era importante enquanto digno de apreço e, portanto,

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meritório de com ele se implicar, dedicar-se, sacrificar-se, agora é aquilo com que se calcula a importância em termos de preço segundo as compreensões de um modelo standard of live (SCHELER, 1996, p. 273). Ora, tudo aquilo, que se avalia em números e valores financeiros, é medido em termos relativos: algo mais valoroso e de maior monta é sempre em comparação a algo de menor preço ou menos apreciado socialmente, previamente definido pelo sistema de concorrência capitalista. Deste modo, a segunda razão da pobreza de nossa consciência axiológica não é somente tudo ter sob o sentido da posse, mas sim sobre o signo do poder da posse, pois, no mundo moderno, o poder nasce, cada vez mais, da riqueza material. Não se trata, então, apenas de apoderar dos bens materiais e de consumo, adquirindo-os e amontoando-os em grande número, mas sim de ter sempre mais em relação ao outro, em especial aqueles bens (materiais, honoríficos etc.) que simbolizam, dentro de sociedades paritárias, posição mais elevada nos degraus do standard of live. Neste caso, os valores já não são apenas símbolos, mas diferenças simbólicas que expressam posição social e honra, mas sempre em referência ao poder econômico e a um estilo padronizado de vida.

Nisto, imiscuem-se a primeira e a segunda razão. Pode-se pensar, porém, que isto seria apenas um entrecruzamento casual ou uma reciprocidade dialética, tal como: a limitação da percepção de valor unicamente efetivo para o prazer e o bem-estar implica na projeção do mundo interno e, com isto, a subjetivação do mundo externo apenas com um conjunto de coisas privadas e mercantilizáveis, pois

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nele a vida se externa, segundo sua natureza egoísta, e vê no mundo só os meios da vida e o valor da utilidade para o corpo. Mas esta externalização também cria formas sociais de conivências, padrões de comportamento e consumo, que refletem retroativamente na avaliação axiológicas dos homens. Em contrapartida, a sensação e o sentir de bem-estar são objetivados pelo social, pelos valores econômicos estabelecidos segundo as metas do sistema capitalista concorrencial, de tal modo que o homem somente teria consciência axiológica do que foi economicamente estabelecido como valoroso. Contudo, não se trata de uma relação de dentro-para-fora que retroage dialeticamente de fora-para-dentro, mas sim de uma ilusão proporcionada por duas fontes que correm na mesma direção. Assim elas se interpenetram e constituem um único solo, por certo, idolátrico, isto é, o chão da idolatria egoica, no qual se arraigam as raízes de nossa atual pobreza axiológica.

A primeira fonte de ilusão, correspondente à primeira razão, consiste justamente em transportar formas e relações que pertencem ao mundo externo ao mundo anímico, é um movimento de fora-para-dentro. Nesta direção, os valores não estão aderidos às coisas, mas na esfera dos sentimentos sensíveis e nos estados emotivos que são percebidos por um eu como pertencentes à sua própria subjetividade. Na verdade, cegado por esta ilusão, o homem passa ao largo de sua “reação” afetiva aos valores das coisas, passa por alto do dado axiológico, visível somente pelo fato que os valores são doações efetivas dos bens que afetam o sentir e querer humano. “Os valores são, ‘em primeiro

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lugar’, somente efeito das coisas sobre nosso estado sentimental (Gefühszustand), respectivamente, apenas reproduções ressonantes de sentimentos, para os quais as ‘disposições constantes’ se encontram nas coisas e seriam primeiramente nelas ‘empaticamente sentidas’ (eingefühlten würden), os fatos [vão] diretamente para a cabeça” (SCHELER, 2007c, p. 263). Por isto, não se concentra a atenção inerente aos atos do perceber afetivo nas coisas com seus valores, que amamos ou odiamos (SCHELER, 2008, p. 96), mas sim na interioridade subjetiva/subjetivista do eu. O homem moderno, por exemplo, julga-se sentir feliz porque lhe oferecem um manjar caro ou um presente luxuoso. Sua estrutura sentimental é como a do autoeurótico, que, mesmo estando do com o outro numa relação sexual, busca bem mais o próprio prazer, dirige a atenção para a própria pessoa e, diante dos valores eróticos, usa o próximo para exaltar, por exemplo, a própria beleza e força vital. Ao contrário do amor (e do ódio), que, em evidente vislumbre do valor do outro, olha para este como pertencente ao outro e aspira com toda força e querer que seu valor cresça e apareça em total vigência (ou minore até o ponto de se aniquilar, no caso do ódio), até chegar à plena valoração, tal como fora vislumbrado8.

8 Na verdade, o amor e o ódio nem criam, nem inventam, muito menos ainda destroem os valores. Eles apenas os descortinam ou os encobrem, promovendo um movimento de ascendência ou descendência axiológica (SCHELER, 1996, p. 266-267; SCHELER, 2000, p. 155-156). Analisamos esta questão em Ramos (2017, p. 144-179).

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Na mesma direção do movimento de fora-para-dentro, a segunda fonte de ilusão dinamiza as experiências vitais. Agora, porém, a ilusão consiste em trasladar as leis dos fenômenos da natureza e relações causais especificamente válidas para a temporalidade e espacialidade do mundo externo para o interior da vida anímica. Com isto, estabelecendo uma exata analogia entre as qualidades de valores e fenômenos sensíveis, que os valores aparecem como subjetivos, não tanto demasiadamente humanos no que toca a sua intuição, mas na afirmação de sua existência e na determinação de suas qualidades. Então, que os valores sejam fatos humanos-subjetivos se confirma em razão que são gerados do mesmo modo que as representações advindas por causalidade sensível, uma causação por espécie de uma criptomecânica. E, em seguida, o caráter subjetivo dos valores significa que são interpretados com sinais elementares do mundo circundante para os passos de nosso agir (SCHELER, 2007c, p. 273), para as regras de nosso conviver e interferir na natureza. Ora, é neste ponto que a economia monetária, baseando sua visão numa concepção mecânica da natureza, estabelece que a substância das coisas é ser-mercadoria (propriedade privada, diria Marx), a qual se poderiam cair outros acidentes, no caso, outros valores, tais como os estéticos, o valor financeiro e outros, mas todos, sublinhe-se, em ressonância com o alardeado standard of live com suas típicas vivências de honra e poder. Mas isto revela que o moderno subjetivismo axiológico, em vez de uma propagada individualidade no sentir, é, na verdade, uma simbólica dependência do ser-pessoa-

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social, sempre tradicionalmente construída, porém, bastante particularizada pelo sentido dado pela economia burguesa e capitalista. Isto é, por um eu social e econômico, um outro genérico que, parafraseando Heidegger, seriam todos e ninguém seria si mesmo originariamente (HEIDEGGER, 2005, p.180). Em Scheler, porém, esta decadência tem muito mais a ver como nos percebemos, somos interior e imediatamente afetados por nós mesmos ou por nosso eu individualizado na percepção interna, a qual é, na maior parte das vezes, intermediada pelas interpretações, papéis, imagens, juízos e opiniões da comunidade que nos rodeia, enfim, toda sorte de vivências de um eu-social enquanto um objeto totalmente independente que nos faz ilusoriamente crer que somos nós mesmos (SCHELER, 2007c, p. 287-288). Estando este eu na base de todas as experiências vividas de cada membro da comunidade, quase nunca sabemos de nosso eu vivo e individualizado e, muito menos, da singularidade de nosso ser-pessoa com seus valores únicos – problemas que não podem ser aqui abordados. Em todo caso, a história atual, mas que nunca, nos encaminhou drasticamente para a seguinte verdade inalienável à condição humana: cada qual é sempre o mais distante de si mesmo.

Como chegamos a esta situação? Certamente, por meio do conjunto de vivências que nos chegam pela tradição e mantém viva a história. Como se caracteriza este conjunto de vivências do homem moderno? Que traço poderia funcionar com elemento unificador de todas as experiências vividas? A última parte de Das Ressentiment im Aufbau der Moralen é

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uma tentativa de dar uma resposta a estas questões. Ela discute os sintomas da désordre du coeur, reconhecendo no ressentimento da moral burguesa o elemento unificador. Eis, então, o traço fundamental da estrutura vivencial do pequeno burguês, o qual foi capaz de provocar, no diagnóstico de Scheler, diversas modificações valorativas correlatas e uma profunda transformação na essência do amor cristão (transmutação deste em amor humanitarista, ao homem em geral, analisada na secção anterior). Entre as modificações valorativas, são discutidas apenas três: o valor do trabalho pessoal e da aquisição própria; o subjetivismo dos valores; a subordinação dos valores da vida aos valores da utilidade. No seu conjunto, elas dizem que o homem moderno é aquele que regurgita, rumina e engole o seu ódio, sem digeri-lo ou esquecê-lo definitivamente, porém, escamoteando-o em diversos princípios, teóricos e práticos, e preceitos universalmente aceitos. A estrutura azeda de seus vividos, hostil ao reconhecimento que uma riqueza lhe é transmitida pela tradição, adversa a qualquer grata recepção aos dons e uma participação solidária no mundo dos bens materiais, vitais, simbólicos, mostra-se em querer possuí-los privativamente (mesmo quando indivisíveis). Evidencia-se na concepção do homem moderno, segundo a qual “[...] um valor ético só avém às propriedades, ações etc., que o homem enquanto indivíduo adquire, se estas aquisições forem feitas por meio de suas forças e do seu trabalho” (SCHELER, 2007a, p. 115). Contra a anarquia dos valores, a exigência de um preceito racional do juízo ético, purificada de todo o mal e perversão da

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afetividade (já que reduzida às tendências egoísticas de satisfazer as sensações), em síntese, “[...] a assunção de uma ‘consciência genérica’ universalmente válida, que torne vigente um certo imperativo aos indivíduos, na forma de uma de uma voz que pura e simplesmente ordena: tu deves” (SCHELER, 2007, p. 122), bem exemplifica para Scheler o papel do ressentimento na estrutura vivencial do homem moderno. Assim, aquela voz é incapaz de dizer “ame e faça aquilo que quiseres” (AUGUSTINUS, 2019, p. 8), porque o amor seria sensualista, sentimento cego à universalidade que só a razão percebe, portanto é fonte de todo subjetivismo. Por fim, a ordem incontestável de que tudo deve ser distribuído igualmente, porém, não em vista do valor mais nobre e para o favorecimento do mesmo, mas às custas de um nivelamento por baixo (SCHELER, 2007a, p.121); o preceito que a “vida ‘deve’ produzir algo útil” (SCHELER, 2007a, p.128), que este útil deve ser igualmente distribuído para a democratização do gozo e livre domínio público dos bens; por outro lado, “[...] a regra preferencial da moral moderna: o trabalho útil é melhor que o desfrute do agradável” (SCHELER, 2007a, p.129), que caracteriza o ascetismo do homem moderno e o conduz ao extremo de transformar as atividades do ócio criativo em entretenimento e indústria e o protende a viver o lazer em função do descanso que revigora das forças produtivas que movem o sistema econômico, tudo isto e muito mais compõe um conjunto de sintomas que descrevem o perfil da estrutura vivencial, em cujas veias, corre o sangue do ódio ressentido. Portanto, a “désordre du coeur” se manifesta porque, no seio daqueles mais

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belos e dignos ideais, como a autonomia, a democracia e outros afins, paradigmaticamente exemplificados pela tríade da revolução francesa, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, oculta-se um ódio despercebido. E, no entanto, permanece atuante, justamente porque no dinamismo intencional da percepção afetiva estão instaladas ilusões que distorcem o nítido dar-se dos valores mais nobres.

Haveria o caminho de uma cura? Em questão estaria a possibilidade de refundar o modo de ser do homem, de reenviar a concretização deste modo sem perder de vista a unidade de sua ideia. Trata-se da possibilidade, ainda incerta, de saber e nos reinstalarmos na posição peculiar, que compete unicamente a nós, incomparável a qualquer espécie de vivente. Se já não mais temos tal ideia, como se explicita na introdução de Die Stellung des Menschen im Kosmos; se já decaímos desta original posição, tudo isto indica quão longe de somos nós mesmos: “[...] em tempo algum da história o homem se tornou tão problemático quanto no presente” (SCHELER, 2008, p. 11). Em todo caso, é preciso salvar o homem. E salvar quer dizer sanar, curar, isto é, devolver-nos a mais originária possibilidade de ser nós mesmos e, com isto, ocupar nossa genuína posição no universo, no ser. Para tanto, não se despreza a história e a tradição, como se fizera de modo ressentido, mas se atém a elas enquanto o horizonte que ainda temos para recolocar a questão de quem é o homem, não por gosto de reproduzir ingenuamente o passado e restaurar romanticamente antigas ideias. Antes, para dela experimentar sua fonte mediante vívido querer-saber e, a partir dela e para

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além dela, projetar a essência humana desde sua mais originária origem9. Por isto, nenhuma teoria da evolução, como também nenhuma pretensão de retirar das ciências fundamentos últimos para um discurso definitivo sobre nós. Mas também, por parte da filosofia e da religião e de tudo mais pelo qual transborda a consciência espiritual do homem nos tempos da história, nem ontologismos, nem puros formalismos.

Nem puro formalismo, nem ontologismo

Retomemos o seguinte: para a destinação do ser

humano em sua disposição afetiva mais originária (sentir-de-valores) rumo à plenitude e para a

9 Para tanto, é necessário ter em mente o que nos ensina Gadamer (1999, p. 445) como um princípio fundamental da hermenêutica: “O tempo já não é mais, primariamente, um abismo a ser superado porque divide e distancia, mas é, na verdade, o fundamento que sustenta o acontecer, onde a atualidade finca suas raízes. A distância do tempo não é, por conseguinte, algo que tenha de ser superado. Esta era, antes, a pressuposição ingênua do historicismo, ou seja, era preciso descolar ao espírito da época, pensar segundo seus conceitos e representações em vez de pensar segundo os próprios, e somente assim alcançar a objetividade histórica. Na verdade, trata-se de reconhecer a distância de tempo como uma possibilidade produtiva do compreender. Não é um abismo devorador, mas está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição, a cuja luz nos é mostrado todo o transmitido”. Pensados historicamente e a partir da pertinência do viver humano à tradição, tanto a nossa essência atual e como o destino presente de nosso mundo se revelam no entremeio de uma distância e de uma proximidade, de uma estranheza e de uma familiaridade como a fonte. Contudo, este “entre” é o lugar verdadeiro da hermenêutica histórica (GADAMER, 1999, p. 442).

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restauração da riqueza do mundo de valores, obstam tanto o puro formalismo quanto o ontologismo. Contra o formalismo puro pesa a compreensão de que os valores devem dar-se, em princípio, na esfera interna do ego, isto é, que o eu deve ser colocado como ponto de partida, na medida em que o “eu penso”, o “veículo de todos os conceitos em geral” (KANT, 2001, p. 353), é a unidade das representações e, assim, o fundamento da determinação dos objetos (KANT, 2001, p.157-158). Nesta direção, algo seria um bem porque os representamos valorosos, ou seja, as leis de um objeto concebido como valoroso são, por sua vez, as leis da concepção subjetiva e da determinação a priori do objeto de valor. Segundo esta compreensão, os valores pertenceriam ao “autointuição” do eu, isto é, a um eu que se (a)percebe, porém, sem nenhuma determinação empírica, sem concreção alguma; fariam parte, portanto, de uma autoconsciência enquanto pura forma. Nesta doutrina, não só se confunde o perceber afetivo com outra forma de consciência, a percepção interna, pela qual o eu se doa a si mesmo de forma concretamente indivualizada ao conhecimento (SCHELER, 1996, p. 375), portanto, também ele como portador destes e não outros valores. Ao mesmo tempo, desconsidera-se que os valores pertencem também à psique alheia, os quais, por meio de expressões do outro, podem se dar ao conhecimento na intuição simpática que, mais originariamente, funda-se uma participação compreensiva no realizar dos atos da pessoa alheia (SCHELER, 2005, p. p.168-169, 220, 224-225, 246; 1996, p. 374, 387) e, consequentemente, a princípio não depende do quanto penetramos na

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psique dos outros para ali descobrir os seus valores mais particulares. Igualmente, ignora-se que valores, historicamente, doam-se nas interrelações humanas sem jamais terem se presentado na egoidade, seja enquanto autoconsciência ou como a consciência de outrem, inclusive permanecendo desconhecidos e inadvertidos por longo tempo.

Deste modo, “[...] o ser do valor não pressupõe, de fato, um eu, assim como a existência de objetos (por exemplo, os números) ou a inteira natureza [também] não o pressupõe. Também neste sentido, portanto, a teoria da subjetividade dos valores deve ser rejeitada”. Por conseguinte, o formalismo é caminho que parte de um ponto refutável e, assim, permanece sempre no risco de desviar para o subjetivismo axiológico. Mas há outras teorias ainda mais desviantes, as quais pressupõe o eu como princípio do ser dos valores, tal como acrescenta Scheler: “Em maior proporção e rigorosa medida esta rejeição vale, naturalmente, para as doutrinas, segundo as quais os valores em sua essência deveriam ser restritos ao homem, à sua organização, seja ela apenas ‘psiquíca’ (antropologismo e psicologismo) ou psicofísica (antropologismo), isto é, o ser deles [dos valores] deve ser colocado relativamente a tal estrutura”(SCHELER, 1996, p.271).

Por sua vez, contra o ontologismo de matriz agostiniana e similares (não o tipo absoluto, doutrina segundo a qual o ser dos objetos não é cognoscível à consciência alguma) pesa o fato de admitirem os valores como predicados de uma ideia de Deus já como previamente dada, de uma realidade divina primeiramente compreendida como realidade

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substancial. Desde modo, os ontologismos possuem em comum a pretensão de colher a existência de Deus como uma autêntica realidade substancial, em termos de absolutamente necessária, o que é possível apenas dentro do horizonte de compreensão próprio da fé, instituído no interior da revelação. Em segundo lugar, tal como se manifesta historicamente, eles individuam esta ideia do divino com a ser infinito enquanto o único existente a se, recorrendo à representação de um ser perfeitíssimo. Certo que esta inferência, de um ponto de vista ontológico, situa o divino e o sacro no altíssimo cume da ordem das esferas do ser, daí decorrendo as qualidades de valores como puríssimo, atualíssimo, veríssimo, simplíssimo e assim outros, tradicionalmente chamados, atributos da existência divina. Em suma, perfeitíssimo.

Contudo, adverte Scheler, é impossível que o momento axiológico possa ser uma inferência de caráter secundário, pois ela é núcleo ultimo da ideia de Deus (SCHELER, 1996, p. 298)10. Aliás, como tal, a ideia

10 A afirmação acima se esclarece com a seguinte posicionamento de Scheler (1996, p. 224), ao afirmar que formalismos éticos da modernidade apenas invertem a antiga identificação do “bem” com a ideia de existência enquanto um subsistir aqui e agora (Da-seinde), compreensão que se expressa na ideia que omne ens est bonum: “Nisto, eu vejo que, na ordem ôntica, embora a existência (Dasein) da pessoa precede necessariamente o seu valor, porém, é igualmente originária com o seu ser-assim (So-sein) (essência enquanto individuum) nesta mesma ordem; na ordem para nós

(ὸς ήᾶς), de fato, é a datidade do valor da pessoa, mais precisamente, não a datidade-do-ser-aqui (Da-seinsgegebenheit) que precede na ordem [...], mais bem a datidade-do-ser-assim (So-seinsgegebenheit). Que a datidade do valor da pessoa antecipe a datidade da existência como tal (não apenas sua datidade-do-ser-

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de ser infinito somente é dada unicamente de modo imediato e intuitivo, não pela concepção doutrinal de uma mística nebulosa ao ser transformada em sistema filosófico-teológico, que tende sempre para a fixação em imagens e conceitos daquele núcleo. Se os formalismos desviam muito facilmente para o subjetivismo axiológico, os ontologismos seguem a direção de se cristalizarem em dogmatismos religiosos. Ademais, a qualidade de valor mais nobre, o sacralíssimo ou o divino, e com eles os valores espirituais (os valores independentes da estrutura psicofísica do ser humano) seriam concebidos somente de forma secundária. Em relação à ideia de Deus, tendência que, talvez, tenha já sido contestada pelo pensamento boaventurano, o qual afirma ser a existência divina in se certissimum, quod non potest cogitari non esse (BOAVENTURA, 1986, p. 155), porém ressalta, preservando a intuição imediata da mística franciscana, que a cogitação da ideia de uma existência

assim), é impossível segundo regras essenciais, porque o que o ser do valor não pode se dar livre de ser – nem na esfera da datidade, nem na esfera do ser”. Deste modo, percebe-se que no dar-se da existência da pessoa já se colhe sua essência concreta e individual, aliada com seu valor. Contudo, a precedência daquela essência individual, por ser ontologicamente independente de sua realidade psicofísica, somente é colhida e ideada na existência mesma na medida em que é captada por nós (anterioridade para

nós: ὸϛ ήᾶϛ) como um bem singularíssimo e jamais repetível. O valor da pessoa é necessariamente pressuposto, pois mediante o dado axiológico a existência do outro é um fenômeno concedido ao espírito na forma de uma evidência última e indissolúvel de um ser-assim e não de outro modo. Isto quer dizer que o sentir-de, em especial, os atos de amar e odiar possuem especial modalidade de evidência da existência da pessoa alheia, humana ou divina.

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certíssima e, por consequência, a inferências dos atributos não passa de uma cogitatio ad extra do mistério divino, isto é, que somente contemplationis emanationum ipsum bonum est principalissimum fundamentum (BOAVENTURA, 1986, p. 168)11 do conhecimento ou especulação da essência divina. A ideia do ipsum esse, de um ser essencialíssimo, portanto, pressupõe a experiência e a visão do Summum Bonum e, deste modo, é amor mesmo o único “sentir” a preceder, guiar e a superar o conhecer.

Importante, porém, é notar que o deslocamento da avaliação axiológica para um plano secundário e a posteriori, operada pelos ontologismos, faz-se ao custo de desprezar o caráter intencional do perceber afetivo, em especial de um ato que o concretiza, o amor a Deus, no qual se manifestam ao homem os valores do divino e suas qualidades antes de qualquer formação de ideias e conceitos de Deus. No interior do dinamismo intencional perceptivo-afetivo em que se conforma a correlação entre ato e objeto, mais precisamente, nos entremeios do perceber de valor e a constituição do bem-amado, opera uma logique du coeur, preliminar a toda representação em conceito e imagem. Mas esta lógica cordial não é algo que se acrescenta à razão, algo a mais que a supera mediante a inclusão de sentimentos e emoções ao conhecer. As raisons du coeur e suas evidências não são um sentimentalista adendo às operações da lógica com as suas específicas intuições categoriais, nem uma autonomia teimosa e

11 “[...] o bem mesmo é o fundamento principalíssimo da contemplação da contemplação das processões” (BOAVENTURA, 1986, p. 169).

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cega do coração frente as verdades iluminadoras da razão. Ao contrário, é uma modalidade primária de experiência que acede intuitiva e diretamente a dados inacessíveis à razão (puramente formal e/ou calculadora, bem como a pragmaticamente calculista); um modo bastante específico de experimentar e fonte de rica apreensão que conduz a “[...] autênticos dados objetivos e a uma ordem eterna entre estes, justamente, os valores e a respectiva hierarquia” (SCHELER, 1996, p. 261). É no âmago desta experiência, portanto, que se faz necessária, de modo originário, a ideia de Deus, porém não como a pressupõe as religiões positivas, nem as tradicionais metafísicas e filosofias da religião; muito mais, enquanto a mais elevada qualidade de valor na hierarquia, que tem um papel fundante para todas representações e conceitos de divino. Então, a ideia de Deus, da qual os ontologismos são incapazes, é aquela de uma intuição de um valor nobílissimo, anterior e livre de qualquer dogmatismo, assim como despido de todo conteúdo peculiar a uma experiência religiosa, histórica e concretamente determinada em consonância com certa tradição espiritual-religiosa (SCHELER, 1996, p. 296-297). Desta intuição, dada sua fundamental condição, está em dependência a reta compressão de todos os bens, das interrelações existentes entre eles, antes mesmo que sejam logicamente ordenados pela razão nos discursos dos múltiplos saberes humanos. Nisto se revela uma tendência fundamental desta fenomenologia, formulada pelo seu próprio autor:

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Em referência ao divino, apenas uma lei de fundamentação dos atos satisfaz plenamente, a qual não possui uma validade separada unicamente para o divino, mas corresponde aos princípios por nós anteriormente demonstrados: os valores das coisas nos são dados previa e independentemente da representação deles em ideias. Com isto, também naquela [ideia] de substância, naquele núcleo da ideia de Deus, pode haver entre indivíduos e grupos uma unidade, que amplamente se separam em suas concepções conceituais (SCHELER, 1996, p. 299).

É neste sentido que se torna compreensível a

resposta afirmativa à pergunta, feita por Scheler em Zur Idee des Menschen, se ainda hoje a ideia de Deus é necessária para conceber uma unidade da ideia de homem. Ele pergunta: “Nós precisamos da ideia de Deus para construir sua unidade [do homem] e distingui-lo de todo e qualquer ser diverso?” (SCHELER, 2007, p. 172). E reponde: “[...] o ‘homem’ é a intenção e o gesto da própria ‘transcendência’, ele é o ser que reza e que busca a Deus” (SCHELER, 2007, p. 186). E esclarece logo a seguir: “Ele é apenas um ‘entre’, um ‘limite’, uma ‘travessia’, uma ‘manifestação de Deus’, na corrente da vida e um eterno ‘para além’ de si mesmo intrínseco à vida” (SCHELER, 2007, p. 186). Com efeito, em base daquela ideia não se colhe somente a qualidade do divino e do sacro, mas também a essência do homem. Em que sentido? Por certo, no sentido que devolve o homem para a sua possibilidade unitária e essencial, anterior às divisões entre corpo e alma, afeto e razão, espírito e matéria, em síntese, um vivente cuja vida é um transcender num movimento

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intencional, para além de si. Por isto, ele é travessia, é ponte, é corda que se lança sobre o abismo do ser em direção ao valor mais sublime – é busca orientada para o divino. Deste modo, se a vida humana, no seu dinamismo intrínseco, é uma passagem para a ideia mais sublime do ser, que se previamente se manifesta como uma consciência afetiva-perceptiva dos valores do sacro e do divino, ele não pode ser compreendido com um ser cujo término deste movimento está em si mesmo, nem ainda como terminus a quo, a algo como uma existência teoricamente compreendida. Antes, a ideia unitária de homem diz que o fim último de seu viver é um quem, amado e procurado incessantemente desde a própria estrutura ontológica e intencional. Ser aquele que busca a Deus é o mesmo que dizer que sua ideia é colhida a partir de um terminus ad quem, o que significa ser “ponto de irrupção de uma forma de sentido, de valor, de atuação superior a todo o resto que existe na natureza, a ‘pessoa’” (SCHELER, 2007, p. 189). E com isto se diz, ao mesmo tempo, que centro e raiz de toda cultura espiritual não se decide a partir de relações econômico-monetárias, como no mundo burguês, mas para uma meta, enquanto aquela intuição de um valor nobilíssimo livre de qualquer dogmatismo ou determinação religiosa e positiva, para a qual todos os homens de todas as culturas se direcionam. Contudo, esta meta é um fim em si mesmo; jamais, portanto, é teoreticamente objetivável, não é passível de ser transformada em objetivo por uma tendência orgânica ou pelo querer, pois, é pessoa. Para ela, em relação interpessoal, dirigem-se todos os homens. Deste modo, a cultura do espírito, em todas as suas

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concreções regionais e manifestações particulares, é senão a busca do (re)encontro entre pessoas mediante o dirigir-se no amor do homem para sua fonte: Deus (SCHELER, 2007, p. 186). Daí que, antes de tudo, a ideia do divino é não só o fundamento da ideia unidade ideal do homem, mas também é uma ideia integradora dos homens, das sociedades, das culturas.

As culturas são obras do homem, mas a raiz comum a todas elas é o homem que busca o mais sublime no amor e na transcendência de seu ser. Assim, do mesmo modo em relação à ideia do divino, pode-se compreender a ideia de homem: porque é unitária, também é integradora. Assim, a devolução do homem à sua unidade significa reencontrar aquela ideia que colhe o núcleo mais íntimo do viver humano, a raiz mais profunda de seu movimento intencional, que estaria inclusa em todas as definições de homem, de diferentes tradições, por exemplo, a judaico-cristã e a do pensamento da antiguidade clássica, gerando uma unidade entre concepções de todas as épocas. Porém, em relação à esfera de pensamento das ciências modernas e das psicologias genéticas, o caráter unificador da ideia de homem se explicita muito mais sob o signo da anterioridade prévia a qualquer objetividade representacional ou postura teorético-objetivante, se bem que o caráter apriorístico seja igualmente decisivo para determina-la como uma ideia originária humanidade frente às concepções antropológicas historicamente produzidas pelas tradições supracitadas.

A ideia de homem é, sobremaneira, anterior às ciências naturais e psicologias, porque todas elas ainda

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se baseiam na divisão entre homem e animal. Para estabelecê-la, as ciências em geral precisaram objetivar não só a animalidade segundo as leis naturais e da evolução natural, mas também a humanidade, submetendo às mesmas leis o que a tradição distinguiu por separação como o especificamente humano: o

ός, a ratio, a mens. Em relação à razão, esta anterioridade possui o papel de superação da razão que se tornou uma inteligência artificial, muito antes do surgimento das máquinas e da cibernética, muito antes que as atuais teorias das múltiplas inteligências e do pensamento complexo pressentissem a necessidade de salvar o espírito da redução e do predomínio da inteligência lógico-científica. Uma mutação que pressupõe a compreensão do ser humano como homo faber, a qual, ainda vigorando naquela divisão natural, pensa-o muito mais desde a animalidade, porém, acrescentada de inteligência operativa, artificial. Pois, o homo faber não é senão uma das últimas figuras do animal intelectivo e instrumental. Sua inteligência, o que antes era sinônimo de faculdade intuitiva do espírito, passa a ser o que entra em cena quando os instintos faltam e, assim, transforma-se em entendimento. Como tal, inteligência é a habilidade de compreender regras gerais a partir de fatos particulares, de organizá-las por combinação e, depois, delas retirar as consequências; e, aplicando-as estas últimas sobre a vida, torna-se a esperteza na antecipação de resultados - enfim, atividade calculativa em vista de fins práticos, instrumentais. Deste modo, a inteligência adquire o significado de prudência astuta, isto é, capacidade de prever e calcular resultados; de

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sagacidade na resolução de problemas; de engenho, que é a genialidade dirigida para a construção de instrumentos, para criar os meios e técnicas que aliviam o fardo cotidiano da vida. Em síntese, o espírito se torna inteligência ordenadora e esta, por sua vez, engenho inventivo. O homem do entendimento, então, é “o animal profundamente doentio” (SCHELER, 2007, p. 184).

Mas a divisão não é menos redutora em relação aos afetos, não é menos patológica para os sentimentos. Retidos no lado da animalidade, restringidos aos estados emotivo-sensoriais, eles se converteram em paixões cegas, as quais estão constantemente em conflito com a racionalidade - saber indistinto, confuso, obscuro. Assim, foram ora empobrecidos de natureza intencional e espiritual (século XVIII), ora despojados inteiramente de qualquer função cognitiva (início do século XIX) (SCHELER, 1996, p.269). Nosso tempo é herdeiro de ambas as desfigurações: “privar a inteira vida emocional de todo ‘sentido’ e de todo ‘conteúdo’ intencional, isto pôde ser possível na época em que a confusão do coração – a “désordre du coeur” – alcançou aquele grau como em nossos dias” (SCHELER, 1996, p.267). Deste modo, eles passaram a vigorar em completa indigência e em total dependência do organismo psicofísico do animal intelectivo e instrumental chamado homem (SCHELER, 1996, p.259). E, assim, não há nada mais dos sentimentos que não possa ser explicado, nem guardam segredo algum que não seja revelado pelas leis da causalidade dos fenômenos naturais. Desde então, os afetos são

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somente os reflexos dos estímulos externos e incapazes de elevarem a pessoa humana com o seu mundo em direção para o divino, o bem supremo. Não podendo atuar no reino da liberdade, foram expulsos do horizonte da ética. Em síntese, os afetos não são mais o supremo momento do espírito, a ele não pertence como algo de último e de originário.

Diante destes desdobramentos da história do homem, é possível afirmar que se encontra atuante, na fenomenologia de Scheler, a seguinte orientação: nem ontologismo, nem formalismo. Antes, para pensar a unidade unificante do homem consigo mesmo e integradora dele com os outros e com o mundo, nela se encontra uma atitude de pensamento fenomenológico que desce ao fundamento pré-consciente de sua vida, ao fenômeno originário do viver humano, pelo qual o homem se expressa como sendo um vivente todo particular em relação aos demais. Em questão, portanto, está o fenômeno pelo qual o viver humano é demasiadamente singular e o ser é simplicissimamente humano e, por esta razão, anterior a qualquer divisão que configura o homo naturalis em todas as suas figuras, em especial, prévia àquela divisória metafísica e antropologicamente estabelecida entre o homem e o animal, não obstante, seja mantida uma continuidade sob o vínculo da animalidade.

No entremeio que margeia tanto o homem como o animal, porém, vigora um abismo de ser, uma fratura insuplantável. Para esta fratura ontológica, Scheler dá o nome de ser-pessoa e defende que “[...] a ‘pessoa’ no homem precisa ser pensada como o centro que é superior à oposição entre organismo e meio

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ambiente” (SCHELER, 2008, p. 36). Contudo a superioridade da pessoa não significa que ela vigore nos ares ou seja um mero constructo teórico designador da permanência estática e atemporal (SCHELER, 1996, p. 384-385), como o puro eu transcendental ou a obscurecida noção de substância. Pelo contrário, na pessoalidade ele reconhece o centro de atos livres que, porém, não se aparta do esquema vital pertencente ao homem, pois a pessoa é espírito concreto e individualizado (SCHELER, 1996, p. 388-389), portanto, afeiçoado no corpo e na história individual do singular. Como tal, a pessoa se “infiltra” e se expressa no corpo, rege o orgânico, orienta o pulsional, anima o psíquico, mas na essência dela não entra a divisão eu e mundo externo. Imiscuindo-se na corporalidade e na vida anímica, faz delas uma experiência sui generis de um corpo-próprio, sempre meu e singularmente inserido no mundo, isto é, sempre intencionalmente remetido de modo particular para um mundo de objetos; mas também, por ser independente da estrutura psicofísica e existencialmente desprendida do orgânico, inibe as pulsões com seus ditames e implode a tendência egocêntrica do eu de tender somente para si. E o faz com o fim de remeter os objetos da pulsão e o próprio eu para os bens que o rodeiam e, em especial, para os mais nobres; em suma, ela submete a unidade psicofísica ao serviço de um amor mais elevado. Por conseguinte, é por força do espírito pessoal que o homem é a abertura de um mundo em uma medida ilimitada, mas também é a elevação desta abertura (SCHELER, 2008, p. 29). Ora, como humana, a vida é

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unitariamente espiritual. Por isto, ela é transcendental, conformadora de mundo e, nas suas expressões e dimensões mais elementares, ela é a mais primitiva consciência-de. Tal é a problemática em torno do sentir de valores ou perceber afetivo, a qual se encontra em contraposição àquilo que a modernidade e o senso comum, numa espantosa simplificação, chamam de sentimentos, emoção, inteligência afetiva ou emocional.

Perceber afetivo, sentimentos e estados sentimentais12

No início, afirmou-se que o motivo da presente

discussão é a noção de percepção afetiva (Fühlen) de valores. À feição de conclusão, portanto, é necessária uma breve indicação fenomenológica do significado desta noção. Façamo-lo em contraposição aos específicos estados sensoriais-sensuais do corpo orgânico e às condições afetivas da vida psíquica, situações que, de modo genérico, podem ser chamadas de estados sentimentais (Gefühlezuständen). Quando possível, dentre os fenômenos pertencentes aos estados, destaquemos os sentimentos sensíveis, pois com eles se ressalta a contraposição e, assim, evidencia-se o sentido da noção em mira. Porém, para que tal tentativa não recaia na postura teorética diante da vida afetiva, na conceituação que se serve ora da abstração por generalização, ora da vazia formalização, é imprescindível não deve perder de vista a discussão

12 Para esta seção, como plano de fundo e aprofundamento de nosso fio condutor, Cf Harada (2009), p. 189-197.

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precedente. Com efeito, evidenciou-se tantas vezes ao longo do itinerário já cumprido que tal posicionamento não salva o homem para a sua condição mais excelente e originária possibilidade de ser ele mesmo, senão que agudiza a sua désordre du coeur. No momento, o importante é recolher os acenos já dados ao longo do curso precedente acerca do significado do sentir de valores em Scheler.

Recorde-se que, na perspectiva desta desordem, o que é reforçado é a divisão entre razão e sentir, numa polarização irremediável entre uma dimensão lógica e outra alógica do ser humano. Mesmo quando se supõe uma ponte entre as duas dimensões por meio de enriquecimento de uma pela outra, por uma integração entre o intelectual e o emocional, a postura teorética e a patológica fragmentação do ser humano são conservadas. É que com a noção do perceber afetivo não se encontra em questão a tentativa de pensar a razão junto ao sentir ou vice-versa; não é o caso de uma reintegração por justaposição, pelo estabelecimento de inter-relações ou intrarrelações ou qualquer outra forma de concepção científica para sanar a desintegração da unidade simples do ser do homem operada pela metafísica, mas que continuam sendo também elas medidas metafísicas. Pelo contrário, desde esta unidade, trata-se de perceber que o sentir e a razão são o mesmo, num jogo ontológico entre identidade e diferença. Deste modo, o perceber afetivo é uma noção fenomenológica que faz um apelo a pensar o sentir da razão. É o indicativo de um anelo que mora “no” interior, no centro, no coração da razão, tantas vezes desconhecido por ela mesma, mas que a

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precede, a conduz rumo ao interior das coisas, permite que ela se sinta em casa em contextos de compreensão e de sentido e, assim, consuma-a no conhecimento de um mundo pleno e rico de singularidades, da distinção de objetos, porém, antes da chegada e da instalação dos atos objetivantes nestes contextos plurissignificativos.

Se conseguíssemos, pois, pensar o homem, na esteira da(s) fenomenologia(s), previamente a qualquer determinação formal-objetivante das ciências e de qualquer histórica substancialização do ser dos entes, seríamos provocados a ver no dinamismo do seu próprio ser um originário e vigoroso ímpeto para abrir e elevar seu mundo, um elã que o faz dirigir-se constantemente para as coisas e se colocar junto a elas, para compreendê-las desde a sua mais oculta disposição de se darem como este ou aquele bem singular. O homem, no segredo do seu coração, jamais deseja ser o ente que se defina por meramente estar situado dentro de um plano uniforme constituído por relações métricas, no qual do nada pode esperar senão a igual ocorrência das coisas no tempo. Ao contrário desta morte, a percepção afetiva em Scheler, então, fala-nos de uma paixão vital insaciável, inerente ao ser do homem e operante em cada saber, mais precisamente, um anelo edificado no amor e “incrustado” no cerne da pessoa, que se experimenta na forma de “[...] uma crescente agitação, inquietude, precipitação e dor, isto é, como um modo de esforço, em cada ímpeto para a fonte” (SCHELER, 2000, p. 359) de cada coisa ou da pessoa amada; isto é, para o vigor nascível que há no ser de cada ente em particular, que o diferencia e o conserva intimamente ligado à mesma

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fonte. É a busca da verdade, porém, caracterizada por um movimento ascendente, de valor em valor, cujos ímpetos é a vontade inquieta de alcançar um valor sempre novo e cada vez mais elevado nos objetos ou caracteres amados e, ao mesmo tempo, a satisfação feliz e serena de ter visto em cada etapa do esforço o acréscimo deste mesmo valor. Sendo este movimento um processo infinito, “Deus, e só Deus, pode ser o vértice da construção gradativa e piramidal do reino dos caracteres amáveis – ao mesmo tempo fonte e meta do todo” (SCHELER, 2000, p. 19). Se um bem infinito deixou de ocupar este lugar, é porque o coração inquieto do homem se deixou enfeitiçar absolutamente pelos bens finitos com os quais se ocupa e lida. Ontologicamente, porém, isto é um delírio que transforma o bem finito num ídolo, isto é, em algo absoluto do amor e do conhecimento.

Fenomenologicamente bem entendidas, as paixões são disposições ontológicas para a recepção da doação do ser. Deste modo, o sentir da razão se torna a razão de todo e qualquer sentimento, é conexo a eles. Porém, se a receptividade é o solo intuitivo dos atos objetivantes, no qual brotam em modo vívido, em “carne e osso”, os dados do conhecimento quando compreendidos nos seus significados. Por isto, o sentir-de é um evento pleno de sentido e, como tal, também é a razão de ser da própria razão (SCHELER, 1996, p. 236). Tal relação de origem dos sentimentos e do conhecer na seiva da mesma raiz, o perceber afetivo, explicita-se no contraponto da natureza deste último ato com os estados sentimentais.

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Em relação a um tipo de específico destes estados, o sentimento sensível, Scheler afirma: “[por meio dele] nada se acolhe, nada se ‘movimenta’ vindo ao encontro e, nisto, nada chega ‘sobre mim’” (SCHELER, 1996, p. 262). A mera sensação nos faz ver que somente por meio dos estados emotivos não somos afetados por nada. Os sentimentos puramente sensoriais, com efeito, por serem privados de intencionalidade, isto é, pelo fato de sua natureza ser destituída da forma mais primitiva de intenção (“ter desejo de algo”, “querer ter gozo com algo”, “ter ânimo por algo”), não se dão como atos e funções de atos, mas somente como estados ou condições (SCHELER, 1996, p. 335). Por consequência, são pontuais (por mais que uma sensação, por exemplo, a dor seja localizada ou extensa, mas ela é sempre a sensação de uma parte do corpo) e não possuem duração (SCHELER, 1996, p. 337) (no sentido de demora, pois não se aguarda, nem se teme e ainda não se recorda feliz uma pura sensação, como exemplo, uma dor – aguardo esperançoso, temor e recordação de uma dor são sentimentos que surgem de uma referência intencional a esta dor, oriundos da recordação ou de diferentes modalidades e graus de atenção para com ela: notar, reparar, tê-la em consideração de cuidado, observar, concebê-la) (SCHELER, 1996, p. 317). Tais estados emotivos sensíveis “chegam” do nada, independentes do tempo vivido como um “antes”, um “agora”, um “porvir”. Na verdade, só aparentemente vem do nada; nem mesmo eles chegam, apenas se processam, ocorrem, desencadeiam-se: são exteriormente condicionados. Por quê? Justamente pelo fato de não possuírem

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nenhuma continuidade de sentido, pois para tê-lo seria necessário um termo de referimento, situado em um contexto de compreensão e nele preliminarmente definido segundo determinado significado axiológico, em relação ao qual se poderia antecipar a sensação e de interagir de modo vivido com ela, na esperança ou no temor. É por esta razão que, na experiência de uma dor, é sempre necessário perguntar posteriormente: o que a causou? Qual a razão desta ou daquela sensação? Deste modo, a causa e o objeto desencadeador do estado de ânimo são obtidos de modo mediato, por meio de uma representação. Estados emotivos puramente sensíveis, portanto, são quase sempre sucessivos aos objetos, a eles correlatos somente por uma associação ou por graça de uma representação. São sentimentos que surgem, em síntese, em modo mecânico e casual ou por via de uma correlação meramente cognoscitiva a posteriori. Por isto, eles nada recebem, são apenas eflúvios incapazes de acolher as doações do ser. São pobres por serem capazes de “sentir” somente o conteúdo dos fenômenos, aliás, já reduzidos mecanicamente a efeitos; não se afetam pelo dar-se dos fenômenos.

Contudo, até as mais passageiras e pontuais sensações são acompanhadas do sentir que as concebem agradáveis, prazerosas ou dolorosas. Isto quer dizer que, preliminar e durante a sensação, é preciso “compreender”, independentemente da causalidade tanto empírica como psíquica, o que para nós seja cômodo ou desagradável. Para tanto, é preciso, de um lado, uma abertura do sentir para morar junto às coisas que nos rodeiam e percebê-las, cada qual no

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seu ser-assim. Ao mesmo tempo e de outro lado, é mister a doação de valores e das qualidades de valor, pertencentes às coisas, que as determinam agradáveis, prazerosas, dolorosas, irascíveis, serenas e outras inumeráveis nuanças axiológicas. De outro modo, é igualmente necessário que haja datidades intuíveis que prenunciam e constituem âmbitos específicos de objetos, experienciados como um mundo ordenado e hierarquizado de bens (SCHELER, 1996, p. 37). Juntos, a abertura de mundo pelo sentir e o dar-se dos valores enquanto fenômenos claramente perceptíveis, formam contextos de compreensão e de sentido. Assim, a dor intencionalmente sentida, intuída em diversas nuanças, é muito diferente da dor enquanto sensação mecanicamente ou fisiologicamente produzida13. E, no entanto, o sofrimento intencional e o desconforto sensível são uma única e mesma dor. Esta unidade, porém, não nega aquela diferença.

A disposição humana de tender para o sofrer e para o gozo, portanto, nada possui em comum com a capacidade de padecer sensivelmente a comodidade e o desagrado. O primeiro, o sentir intencional, também quando ele mesmo é percebido ou sentido, é o que se nomeia de percepção afetiva de valores. Caracteriza essencialmente este ato perceptivo o fato de ser “um originário correlacionar-se, orientar-se do sentir em

13 Por exemplo, alguém, em condições patológicas, pode sentir como prazerosa uma dor, compreendendo-a partir de uma qualidade axiológica altamente positiva. Também o mesmo grau objetivo de dor pode ser sofrido em diferentes intensidades pelo mesmo indivíduo a depender da atenção a ela dispensada ao longo do dia, bem como por indivíduos distintos.

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direção a algo que preliminarmente se impõe ao entorno (ein Gegenständliches), os valores”, então, “um movimento determinado por um fim” (SCHELER, 1996, p. 262-163)14. A percepção afetiva, portanto, se dá como e dentro do contexto de íntima correlação entre o movimento intencional e o específico objeto intencional, a saber, os valores. Um contexto que se constitui dinamicamente, por assim dizer, no jogo entre o intuir e o que se dá a intuir. Porém, o dinamismo não se encontra apenas do lado “subjetivo”. Na relação, pois, do eu com seus objetos, dirige-se a intuição para os objetos, num movimento de favorecimento da manifestação dos seus valores; mas há principalmente o vir ao encontro dos valores, o manifestar-se deles e o fazer-se evidente de seus aspectos (as qualidades de valores), pelos quais eles prenunciam coisas bastante específicas, seja por revelá-

14 Inclui as duas citações precedentes. Literalmente, Gegenständliches deveria ser traduzido como algo de objetivo. Refere-se à Gegenstand, objeto, porém não na direção da determinação teorética da objetividade, isto é, objeto enquanto aquilo que é posto diante do homem pela representação segundo as leis a priori da razão e conforme à exigência de exatidão do conhecimento científico – significado que a língua alemã denota com o termo Objekt. Antes, como indica as raízes etimológicas do termo, Gegenstand significa aquilo que surge e se eleva, pondo-se por si mesmo diante do homem e ao seu redor. É a coisa mesma, enquanto se dá numa intuição imediata e previamente à impostação teorética e objetivante do ser dos entes. Seguindo estas indicações e não havendo palavras distintas na língua portuguesa, optou-se, optou-se pela expressão “o preliminarmente se impõe ao entorno”, já que se o “objeto” em questão são os valores. A argumentação do parágrafo explicita as razões desta opção.

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las no seu bem fundamental (a unidade da coisa), seja a partir das tonalidades deste bem (a qualidade e estrutura axiológica da coisa) (SCHELER, 1996, p. 42-43). Com efeito, os valores são aquilo que chega, antes de tudo mais, na frente dos objetos, até das coisas mesmas e da totalidade em que elas estão familiarmente assentadas, anunciando tudo isto como bens de caráter único e particular (SCHELER, 1996, p. 39). Valores, então, são datidades correlatas à intuição dos sentimentos, elementos que nos golpeiam com tamanha clareza e distinção, mesmo que de início as coisas estejam indefinidas e a intuição delas não esteja plenamente preenchidas de sua natureza específica, atraindo o sentir humano para percebê-las como tais e quais. São dons que solicitam a receptividade, o medium de um autêntico encontro com as coisas (no seu ser), imediatamente, sem os entremeios e artifícios das representações. Valores, porém, são dons para nós somente na receptividade da percepção afetiva.

Receptividade provém de atos de autêntica acolhida, não é uma mera passividade. Ela, porém, é originária, na medida em que os sentimentos, perpassando o corpo vivido e a vida anímica em um movimento de aprofundamento, despojam-se de todo conteúdo (objetivável) dos fenômenos e se conformam como a pura realização de atos. Eles se tornam espirituais. Receptividade, então, é um ato espiritual. Por sua vez, os sentimentos, cuja essência é receptiva de modo excelente, são os espirituais. São ricos, por serem pobres em conteúdo, mas sumamente capazes de acolhida: são atos puros; concretizam-se unicamente na realização e consumação de atos e

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somente como tais podem ser experimentados. Constituem, portanto, o mais puro grau da percepção afetiva e o mais nobre estrato da inteira vida emotiva dos homens. Sendo assim de tamanho quilate, de sublime valor e abissal profundidade, nada melhor os caracteriza que a impossibilidade de se concretizarem como estados sentimentais (SCHELER, 1996, p. 344-345), de se apresentarem como circunstâncias emotivas voláteis do eu ou efeitos do mundo externo sobre nós, empiricamente explicáveis. São, portanto, absolutos: não são condicionados por nenhuma estrutura axiológica externa à pessoa. Todo o circunstante, pois, é insignificativo para a pessoa, quando ela experimenta uma autêntica e profunda felicidade, vive-se este sentimento como uma experiência sem motivos, melhor, sem causa alguma; do mesmo modo, nenhum motivo externo é suficiente para explicar o radical desespero, não se desespera por causa de uma coisa qualquer, mas consigo mesmo, isto é, quando não há outra saída senão afrontar a nossa própria condição existencial e o nosso posicionamento ético em relação às coisas e demais pessoas; angustia-se como a o próprio poder-ser, como ensina Heidegger (2005, p. 250-251). Daí que os sentimentos espirituais são aqueles que chegam oportunamente, surpreendem-nos com a sua presença que toma a totalidade de nosso ser-pessoa. Verdadeiramente, eles chegam do nada. Porém, “do nada” significa a profundidade abissal da pessoa, desconhecida por ela mesma, em relação a qual o eu flutua com as suas representações acerca de si mesmo e de sua vida interior. Perdeu-se a estrutura intencional? Pelo contrário, tudo isto significa que os

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sentimentos espirituais acontecem quando deixamos ser afetados, desde o centro de nossa pessoa, pelos valores mais nobres, os da pessoa mesma. Assim, os sentimentos espirituais não conhecem a si, pela imaginação ou representação, como resultados de qualquer mérito e qualquer busca neste sentido resulta em decair numa ilusão sobre da pessoa e numa idolatria do ego; busca por identificar méritos é descaminho no autêntico conhecimento de si e das razões das tonalidades afetivas que colorem a totalidade de nosso ser e, ao mesmo tempo, inunda com sua luz ou com sua sombra tanto o mundo interno como mundo externo da pessoa. Neles, o homem é solicitado, na inteireza de sua estrutura, nos seus estratos subordinados ao espírito (corporal-sensível, o corporal-próprio, o psíquico) e nas respectivas e diversas modalidades de experiências vividas, pelo exercício da receptividade, pelo querer que só quer a si, isto é, abrir e elevar seu mundo numa acolhida sempre mais elevada do que valorosamente se presenteia. Em sua sublime receptividade, experimentada por graça da espiritualidade afetiva do perceber, os sentimentos espirituais são o lugar de tudo ter, mas nada possuir.

O espiritual dos sentimentos, então, significa que o mais excelente ou divino no homem – já o

identificado pelos gregos no espírito (ῦς) e cujo esforço de tematização a tradição chamou de ética – é sua capacidade de uma compreensão essencialmente receptiva, de deixar ser encontrado pelos bens e, sobretudo, pelo mistério abissal da própria pessoa e de outrem, também daquela pessoa que é o non alliud, a divina. Por esta razão, quanto mais nobre o perceber da

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pessoa, mais afetado pelos valores mais altos, tanto menos ela vive em um mundo indiferenciado. Por conseguinte, tanto mais ela estará em casa com o todo e uma fonte insondável da qual surgem, em miríades formas e feições, a particularidade de cada coisa e a singularidade das pessoas. Seu mundo, enfim, será pleno dos dons dos valores. Seríamos ainda capazes de ter nos sentimentos espirituais, em nossa inteira vida emotiva, o medium da aprendizagem daquela verdade transmitida pela tradição mediante uma anedota em torno de Heráclito de Éfeso: em toda a parte mora o extraordinário, o maravilhoso, o divino? E perceber que há algo de extraordinário também na ordinária e extrema indigência do homem atual e, quiçá, algo de divino? Referências AUGUSTINUS, A. De diversis quaestionibus octoginta tribos (on line), tr. it. Ottantre questioni diversi (on line). Disponível em: www.augustinus.it. Acesso em: 15 jan. 2019.

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Quarto Capítulo

Max Scheler e a fenomenologia da essência da religião:

O ato religioso por uma renovação religiosa

Renato Kirchner Maiara Rúbia Miguel

Introdução

A partir do método fenomenólogo idealizado

pelo filósofo alemão Edmund Husserl, outro pensador alemão, Max Scheler, desenvolveu um estudo filosófico sobre a fenomenologia da essência da religião, exposta no texto “Fenomenologia da essência da religião: por uma renovação religiosa”, publicado na obra Do eterno no homem, de 1921, com a intenção de sublinhar a possibilidade de uma renovação religiosa após os desastres da Primeira Guerra Mundial. Este trabalho, numa perspectiva fenomenológica, almeja compreender como Scheler explicita a liberdade do homem em viver seu centro espiritual de atos na busca de uma evidência de fé, por intermédio do ato religioso. Nesse sentido, como percurso a ser desenvolvido, será abordado o sistema fenomenológico nos trabalhos acerca da ética e sua relação para com a experiência religiosa através do ato religioso. Assim, a questão que esse estudo visa refletir é: como Scheler idealiza o ato religioso dentro de um sistema fenomenológico e como descreve ele a experiência religiosa humana?

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Carlos Drummond de Andrade um dia poetizou (ou denunciou) dessa maneira:

Em verdade temos medo. Nascemos escuro. As existências são poucas: Carteiro, ditador, soldado. Nosso destino, incompleto. E fomos educados para o medo Cheiramos flores de medo Vestimos panos de medo. De medo, vermelhos rios vadeamos (DRUMMOND, 2008, p. 35).

Sim, o medo é constante em todo tempo e

espaço. Em cada lugar o medo possui uma face. Em cada tempo ele assume uma forma, mas medo é medo e o temos. A educação para/no medo é uma constante na linha de nossa história humana. Só no período contemporâneo passamos por duas guerras mundiais, genocídios, xenofobia, ditadores, fascismos. Ora, mas diante de tantos “ismos” e grandes batalhas violentas, como é possível superar o medo? Como é possível viver? Para impulsionar o espírito humano sempre existem pessoas, homens e mulheres, munidos de seu espírito transformador e sonhador. Como sismógrafos de seu tempo situam os problemas, tangenciam possíveis soluções e inspiram almas e grupos para que, apesar do medo, seja possível viver. Max Scheler foi uma dessas pessoas que, inspirada pelo medo, objetivou o renascer das cinzas de uma nação tão abalada pelas causas e consequências da Primeira Guerra Mundial.

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Quando se pensa nas consequências de uma guerra mundial, o que vem em mente são os números de pessoas mortas, mulheres viúvas, crianças órfãs, fome, desemprego, miséria, destruição. Nesse contexto, é mais do que normal existirem pessoas de espírito valente que buscam, com os instrumentos que possuem, alcançar uma renovação do espírito de um povo destruído. Max Scheler sabia que, pela força do impulso filosófico, era possível a renovação do espírito alemão depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Por isso, a partir das leituras que fez da obra O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional (Das Heilige: Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen), publicada por Rudolf Otto (2007) no ano de 1917, bem como de seus conhecimentos e admiração por Santo Agostinho, Scheler empreende uma fenomenologia da essência da religião. Isso tudo possibilitado pelo problematizar de direções mentais como o positivismo e panteísmo, almejando buscar a essência da religião para que fosse possível uma renovação religiosa.

Em sua fenomenologia da essência da religião, a renovação religiosa é possível ao se admitir que a realidade é dada pelo divino, assim como notar que, por intermédio do ato religioso – conceito scheleriano que aqui será melhor pormenorizado mais adiante – é possível o homem alcançar uma evidência de fé. Tudo isso foi apresentado no texto “Fenomenologia da essência da religião: por uma renovação religiosa”, publicada pela primeira vez em 1921 como um texto constituinte de uma obra maior, intitulada Do eterno

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no homem. A primeira edição dessa obra foi publicada em 1921, uma segunda edição em 1923, e dez anos mais tarde já existia uma terceira edição conhecida como edição popular. Alguns anos depois, sua esposa, Maria Scheler, editou e revisou e, pela quarta vez, então, foi publicada na coleção de trabalhos do filósofo como volume V das Obras completas (Gesamelte Werke), no ano de 1954.

Com esse panorama em mente, importa-nos perscrutar o modo como Max Scheler compreende a fenomenologia filosófica apreendida a partir de Edmund Husserl, bem como entender o modo como Scheler aplica esse método, a seu modo próprio e particular, a fim de compreender o mundo e seus sentidos estendido aos aspectos da relação do homem com o divino. Em suma, nesse capítulo objetiva-se tratar da fenomenologia filosófica aplicada a temas da religião à luz do filósofo alemão Max Scheler.

Sendo assim, devemos nos perguntar: como a fenomenologia filosófica da religião é empreendida por Max Scheler? Além disso, como a fenomenologia em seu trabalho possibilitou compreender os aspectos sobre a vida ética e religiosa. Para tanto, o presente estudo responder três perguntas, mas complementares, sendo elas: 1) O que é fenomenologia para Max Scheler? 2) Como a fenomenologia filosófica se aplica às compreensões sobre a vida ética? 3) Como entender a fenomenologia da religião de Scheler?

Ora, mas por que Max Scheler? Por que nos importa esse filósofo? Martin Heidegger, importante fenomenólogo alemão e crítico do trabalho de Scheler, em seu livro Kant e o problema da metafísica (1993, p.

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177), rememora a importância de Scheler para a ideia de uma antropologia filosófica ao ressaltar dois trabalhos muito importantes, a saber: A posição do homem no cosmos (SCHELER, 2003) e o texto “A ideia de homem”, publicado no livro Visão filosófica do mundo (SCHELER, 1986). Embora esses dois trabalhos sejam resultados tardios da jornada do pensamento filosófico de Scheler, vale considerar que ilustram adequadamente o objeto de toda a operação fenomenológica do autor, assim como considera a força motora de todo seu impulso do pensar e repensar. Na quarta parte do livro citado (§§ 36 e 37), Heidegger (1993, p. 173-180) rememora que Scheler foi o responsável por considerar que, em certo sentido, muitas das questões filosóficas podem ser resumidas a partir de uma questão: o que é o homem e qual a sua posição metafísica ocupada dentro da totalidade de seu ser, do mundo e em Deus?

Isto posto, vale destacar que essa questão central do caminho filosófico de Scheler, de certa forma, responde a nossa indagação primeira do parágrafo anterior – ou, então, a deixa mais complexa – afinal, por que Scheler? Justamente porque sua jornada do pensamento centralizada no que é o homem, seu lugar no mundo e em Deus é o centro de seu trabalho filosófico desde seus primeiros escritos fenomenológicos. É impossível compreender Scheler e sua opção na aplicação do método fenomenológico sem considerar a questão inquietante de seu espírito reflexivo. Por que nos ocupamos em compreender Scheler? Porque nos preocupamos com a antropologia filosófica, com a fenomenologia filosófica, bem como

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com a filosofia da religião. Se essas disciplinas nos importam, logo Scheler nos importa por trazer contribuições profundas e inquietantes. Passar por essas disciplinas e não considerar Max Scheler é o mesmo que passar café no fim de tarde e não sentir o seu aroma no cômodo ao lado. É ignorar uma força penetrante em nosso ser e, em nosso caso, do filosofar (ou admirar). Portanto, para não incorrermos nesse caminho, vamos nos debruçar sobre o trabalho dessa alma inquietante.

A fenomenologia filosófica em Max Scheler

Assim como Clarice Lispector (1998) que

afirmou que “[...] enquanto tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”, um filósofo e/ou uma filósofa se motiva pelo instante do ainda haver questões e, diferentemente de Lispector, quando houver respostas, o filósofo ou a filósofa continuará a perguntar. Essa realidade traduz claramente a relação de Scheler e Husserl. Embora Edmund Husserl tenha sido um proeminente pensador e influenciador de uma metodologia de investigação filosófica, replicada por alunos e alunas, discípulos e discipulas que atentamente testemunhavam sua atividade filosófica, Scheler nunca foi seu aluno. Porém, compreendia a complexidade da atitude de “pôr em parênteses”, “reduzir” “epoché”. Ao invés de tomar suas lições como respostas sem haver a necessidade de continuar escrevendo, ele continuou indagando e problematizando. Por essa razão, embora Scheler tenha recebido a influência de Husserl, ele não replicou

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seu método ao mesmo modo que seu mestre. Ao contrário, partindo de questões centrais, como: Qual a constituição essencial do ser humano? Como o ser humano ocupa o mundo metafisico? Como o homem se relaciona com o divino?, a forma do fazer fenomenologia em Scheler difere.

Mesmo compreendendo que Scheler não imita Husserl, no sentido de copiar todos os seus passos, ele não deixa de considerar algumas das intuições centrais de Husserl presentes em seu método, a saber:

A atitude natural aceita que o mundo existe como evidente, que nele há coisas determinadas, cuja existência ou ser é independente de nós, de nossa consciência, de nossos atos intencionais. Para Husserl, essa independência não deve ser pura e simplesmente negada; o que é exigido é que o fenomenólogo efetue uma redução frente a essa atitude que o conduz à investigação dos atos intencionais que constituem os objetos do mundo, o que significa fazer da validade ingenuamente pressuposta objeto de investigação na busca de seu fundamento e de sua fonte (OLIVEIRA, 2012, p. 13).

Se no mundo há conteúdos evidentes que

existem sem depender do apreender da consciência humana, para Husserl, a independência entre esse conteúdo e a consciência humana não é pura e não elimina a possibilidade de compreender esse conteúdo a partir dos chamados atos intencionais que constituem os objetos no mundo. A intencionalidade é um assunto presente na fenomenologia de Scheler, bem como a possibilidade de apreender fenômenos (os

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conteúdos) tidos como evidentes e que, mesmo existindo independente da consciência humana, a consciência humana os apreende de modo a existir a necessidade de suspensão dos juízos e preconcepções para o acesso ao fenômeno em sua essência.

Mais precisamente, se todo o conhecimento científico e toda ciência baseia-se na experiência, por isso, segundo Max Scheler, a ética também deve se basear na experiência. No entanto, aqui não se trata da experiência empírica em que se compara dois resultados e chega-se a um resultado. Ora, como é possível comparar o bem e o mau? A experiência da qual Scheler trata faz menção ao experienciar da vida humana. O experienciar humano que confronta conteúdos, tais como o bem e o mau. Mas, muito diferente de qualquer proposição subjetiva derivada desse confronto, Scheler sublinha que aqui trata-se de um conteúdo material, ou seja, objetivo, uma vez que as questões éticas e seus pressupostos não podem ser assumidos tão somente por compreensões subjetivas. Muito além disso, Scheler insere a objetividade no que tange aos pressupostos éticos. Por essa razão, os valores são conteúdos evidentes no mundo em que são experienciados. Esses conteúdos, a saber, os valores, tornam-se objetos da experiência fenomenológica. Se os valores se manifestam no conteúdo da vida emocional humana, deve haver atos intencionais cognitivos no apreender dos conteúdos, os valores. Em suma, os valores são dados originários das experiências humanas e são apreendidos pelo perceber intencional, uma vez que “[...] nós é que buscamos o significado, o

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sentido daquilo que se mostra a nós” (ALES BELLO, 2006, p. 18)

Ora, mas o que é intencionalidade? Como esse conceito se insere no sistema fenomenológico de Scheler? No sistema fenomenológico de Scheler há de constar o perceber intencional que é, justamente, a capacidade da consciência de um sujeito ao apreender um fenômeno que se manifesta no mundo. Imagine a seguinte situação: uma mulher voltando de seu trabalho à noite, em um bairro bastante perigoso, avista uma sombra refletida numa parede pela iluminação da rua junto a um barulho muito alto. Num primeiro momento, essa mulher sente medo e começa a andar mais devagar, imaginando que uma casa pode estar sendo invadida. Quando ela se aproxima, porém, percebe que na verdade aquela sombra era o reflexo de um cachorro mexendo no lixo da rua. Quando essa mulher apreende o fenômeno e, nesse caso, a sombra, sua consciência apreende-o de modo a proporcionar uma conclusão: é uma invasão! Essa conclusão gera um sentimento nessa mulher, o medo, o que faz com que ela caminhe mais devagar. Isso é o perceber intencional, é a capacidade da consciência de um sujeito afetar um fenômeno e o mesmo afetar a consciência do sujeito.

Desse modo, os valores são apreendidos por intermédio do perceber intencional da consciência humana. Porém, vale advertir que quando afirmamos que um determinado fenômeno é apreendido, nós não só o apreendemos, mas o experienciamos também. Por esta razão, se os valores são esses conteúdos, logo, se o apreendemos, nós o experienciamos também. A

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experiência ética é uma experiência fenomenológica em que a apreensão e experienciação dos conteúdos que existem. Mas, além disso, deve ser salientado que, segundo Scheler, na obra O formalismo na ética e a ética material dos valores, afirma:

Há uma espécie de experiência cujos objetos são inteiramente inacessíveis à “razão”; para esses objetos a razão é tão cega como pode ser o ouvido para as cores; porém esse tipo de experiência apresenta autênticos objetos “objetivos” e a ordem eterna que existe entre eles, a saber: os valores e sua ordem hierárquica (SCHELER, 1948, p. 26, tradução nossa).

Isso ressalta o fato de que existe um conteúdo

objetivo no fenômeno apreendido pelo perceber intencional que, em Scheler, é emocional. Se os valores são esses fenômenos, sendo assim, há um conteúdo objetivo que pode ser acessado pelo perceber intencional. A razão tão puramente não é capaz de acessar esse conteúdo e, parafraseando Scheler, a razão é tão cega para os conteúdos objetivos dos valores como o ouvido é cego no que tange à apreensão das cores. Importa ainda diferenciar o perceber intencional de estados emocionais. Por exemplo, eu sinto fome, sinto sede e sinto cansaço depois de caminhar três quilômetros sem pausas num dia ensolarado. Esses sentimentos são estados emocionais. Porém, existem conteúdos da vida emocional que são muito mais profundos do que o “sentir fome”, por exemplo: amar e odiar. O amor e o ódio são atos emocionais que integram o perceber intencional e permitem o acesso

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aos conteúdos objetivos dos valores. Quando se ama um valor, se acesso o mais profundo de sua essência, é apreendido e experienciado no mundo por meio do ato do preferir. Ao passo que quando se odeia um valor, ele passa pelo processo de contrição, é o processo de preterir. A diferença entre a experiência vivida pelo ato cognoscitivo do amor e do ódio se dá na referência do valor, pois, quando se ama, é possível viver uma dilatação do conteúdo do valor, enquanto que, por meio do ódio, vive-se a contrição. O amor é uma atitude que nos permite penetrar mais profundamente o valor de um determinado objeto, enquanto que o ódio ofusca-nos o valor.

No entanto, por que estamos falando do sistema ético de Scheler se temos a intenção de compreender a fenomenologia da religião? Bem, precisamente porque o problema central de todo o seu sistema nos conduz aos conceitos necessários para a compreensão da experiência religiosa. O problema central no sistema ético de Scheler se chama Ethos e faz menção à disposição hierárquica dos valores que existem num contexto histórico e social. Ou seja, os valores são objetivos. Possuem conteúdos objetivos, o que muda, ou melhor, o que é relativo é a disposição desses valores nesse quadro hierárquico. Sendo assim, o que é relativo é o Ethos e não o valor.

Por exemplo, o valor do bem no ambiente urbano da cidade de São Paulo é muito diferente do que é o bem numa cidade do interior de Bangladesh. Para alguns povos, existem palavras que traduzem “saudade”, ao passo que em outros não há que expresse a mesma ideia. As diferenças culturais e sociais

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influenciam necessariamente a disposição desses valores e o modo como são preferidos e preteridos, ou amados e odiados. Porém, tudo isso depende de um centro. Porque os seres humanos não vivem isolados, mas sim em comunidades e nos centros de suas comunidades existem modelos e líderes. O modo como esses modelos e líderes são apreendidos pela comunidade influencia o modo como cada membro dessa comunidade irá preferir e amar, preterir e odiar. Por essa razão, o ideal de seguimento é um princípio importante e o meio pelo qual é possível compreender os conteúdos produzidos uma comunidade.

Se uma comunidade habita um contexto de destruição e se a produção de conteúdo dessa comunidade está levando a mesma para uma derrocada maior, então, precisamos rever a posição de nossos líderes e nossos modelos. Tendo em mente toda a crise que a Primeira Guerra Mundial causou, as consequências, do ponto de vista de Scheler, vieram acompanhadas e foram causadas por causa de duas direções mentais muito difundidas, a saber: o positivismo e o panteísmo.

O positivismo na filosofia devotava-se a uma veneração total do homem à humanidade e o que tecnicamente por ela é produzido. Segundo Scheler, “[...] Deus foi o primeiro pensamento, a razão o segundo e o homem, o último” (SCHELER, 2007, p. 37). Isto é, os estágios do espírito defendido por Comte que objetiva conduzir o homem na aplicação de leis da natureza para ordenar a sociedade. Porém, para Scheler não são as leis da natureza que irão ordenar a natureza, ao contrário, a aplicação dessas leis na produção

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técnica possibilitou a produção de armar. Contudo: Para quê? Para quem?

A segunda orientação mental preocupante para Scheler é o panteísmo, pois essa linha de pensamento funda-se numa equação Deus = mundo, o que para o filósofo é um erro, uma vez que o mundo é mundo tão somente porque o mundo é de Deus. Sendo assim, o primeiro passo é reconhecer que essas direções mentais influenciaram um povo de tal modo que é preciso repensar a disposição hierárquica dos valores e o modo como esses valores são apreendidos pela percepção intencional que, por sua vez, é emocional.

Mas, então, como Scheler concebe uma renovação religiosa? Isso em seu pensamento é possível reconhecendo as direções mentais prejudiciais ao homem e às mulheres e reconhecendo a importância dos objetos da fé religiosa, existência, a essência de Deus, imortalidade, alma, fé, etc. Assuntos totalmente esquecidos pela técnica e pelas reduções panteístas devem ser esquecidas para dar lugar a uma construção filosófica de conceitos que possam ir além da metafísica. Para ele, a área que permite o homem pensar para além da caixa da metafisica é a religião, portanto, apreender os conceitos e valores da religião pode conduzir o povo para um além da metafísica. Para uma realidade muito além de descrições técnicas e reduções, mas que, para muitos homens, concentra-se como uma revelação natural intraduzível.

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A fenomenologia da essência da religião O que significa essência da religião? O que

Scheler intentou ao dar esse título ao seu tratado de renovação dos espíritos dos alemães?

[...] Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, – únicas dignas da preocupação de um sábio, – D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte (ASSIS, 1994, p. 9). [...] Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe todo o céu, / Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar, / E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver (PESSOA, 2006, p. 16).

O que esses trechos têm em comum e como

possibilitam compreender o que Scheler compreende por essência da religião? Bem, no primeiro trecho é reproduzido um excerto do livro O Alienista, de Machado de Assis. Dr. Bacamarte é um dos melhores médicos no Brasil e em Portugal. É banhado no positivismo e elege sua esposa por meio de caracteres estritamente científicos. Ao passo que, no segundo excerto citado, é reproduzido um trecho dos Poemas completos de Alberto Caeiro, um pastor que busca viver para além da filosofia e da metafísica, que acredita no

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contemplar da natureza e nas coisas como elas se mostram. A pedra é pedra. A copa da arvore é a copa da arvore. No primeiro caso, vemos a ausência de amor de Bacamarte por sua esposa, no segundo, vemos a ausência do horizonte que a metafísica lega e condena o enrijecimento dos olhares.

De certo modo, essas ausências e condenações são problemas que Scheler identificou no coração do povo. A ciência moderna, ao ser protagonista, legou o obscurecer de questões essenciais, como o amar, ao passo que a metafísica legou o ir além de descrições que respondem o que e qual e conduzem o pensamento ao como das coisas. Sendo assim, a essência da religião passa a ser urgente, porque, aos olhos de Scheler, a ciência obscureceu as espiritualidades e a metafísica enrijeceu e busca, segundo alguns, o fim da religião. Parece que o homem ficou diante de um ou, ou. Ou a ciência, ou a fé. Ou a metafísica filosófica, ou a fé. Ou a ciência, ou a metafisica filosófica. Este ou, ou constante é um problema para Scheler e impede de conciliar esses dois polos distintos, os quais são importantes ao ato religioso.

Sabemos que as discussões sobre fé e razão, filosofia e religião dividiu posturas e pensadores na Europa por muito tempo. O século XIX foi responsável por produzir certa quantidade de pontos de vista a respeito da relação entre filosofia e religião, que, para muitos, não passou de círculos escolares que debateram entre si confusamente e chegaram a nenhum resultado ou questão. Isso não se deu tão somente por cauda da revolução que a ciência moderna trouxe ao contexto europeu. Um contexto em que

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possível compreender a religião a partir da economia como disciplina isolada. A primeira teoria debatida sobre a relação entre filosofia e religião consiste no que Scheler intitula de sistema de identidade parcial entre religião e filosofia. Esse sistema consiste no poder alcançar um conhecimento seguro sobre Deus tendo como base a razão filosofante e a estrutura do pensamento filosófico, mas, ao mesmo tempo, deve considerar a fé. É necessário considerar uma identidade parcial entre essas duas disciplinas que se relacionam. Ao passo que é importante constar, ainda, os sistemas de identidade total, sendo um gnóstico e o outro tradicionalista. No primeiro caso, o gnóstico, a religião é considerada como uma possibilidade de conhecer, mas que nunca se relacionará com a ciência ou poderá ser descrita pela mesma. Ao passo que o último, o tradicionalista, quer que a filosofia desapareça da religião. Ou fé, ou filosofia; ou a religião ou a ciência.

Para muito além de qualquer jogo de ou, ou, Scheler intenta considerar que existe um Deus que é produto de predicações metafísicas e existe o Deus que é o Deus que vive a tua por meio do ato religioso, aquele que salva. Existem modos distintos de obter um saber sobre diferentes questões que não se excluem, mas se complementam. É certo que a metafísica parte sempre de uma determinação do absolutamente real, ao passo que a religião parte do absolutamente santo. Existe o Deus da consciência religiosa assim como existe o Deus da metafísica. Sendo assim, considerando que a metafísica parte do absolutamente real e o ato religioso/religião parte do absolutamente santo, há de constar um elemento em comum. A metafísica

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caminha até a afirmação, por meio de proposições filosóficas à possível existência de um Deus, ao passo que o caminho da religiosa parte desse ponto e deriva do totalmente santo, o divino. Portanto, existe um elemento em comum entre o caminho da metafísica e o caminho da religião, o ens a se. O ens a se é, pois, sempre também o último sujeito lógico de todas as predicações metafísicas e religiosas (SCHELER, 2007, p. 73).

Diante desse cenário de debates, Scheler debruça-se na missão de empreender um sistema que possa contrapor este ou, ou. A proposta de Scheler é um sistema de conformidade entre a metafísica e a religião. A estrutura desse sistema considera que religião é em todo religião e não metafísica e que a religião flui objetivamente de Deus e subjetivamente da fé. No caminho para a compreensão do ato religioso e em busca de uma renovação religiosa ainda precisa ser salientada a importância dos fundamentos da essência da religião, que conjuntamente auxiliam na compreensão do que vem a ser absolutamente santo e divino. Nesse sentido, a fenomenologia da essência da religião toma o papel de estudar as formas de manifestar-se do divino e dos distintos tipos essenciais de homens religiosos.

O ato religioso

Para o melhor compreender o ato religioso é

preciso, antes de tudo, junto com Max Scheler (2007, p. 102-105), entender o que vem a ser o divino dentro da teoria scheleriana. O divino possui algumas

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determinações essenciais, dentre elas, ele existe antes mesmo da consciência humana apreender sua realidade. Ele existe independente do homem, porém, pode ser apreendido pelos atos intencionais, propiciado pelo ato religioso. O divino também pode ser entendido como um ente absoluto e santo; sempre está absolutamente acima do todo e, em capacidade de ser, é absolutamente dependente do homem para sua existência ser efetivamente total. Ou seja, o divino existe, porém, o seu ser é efetivado no instante da apreensão do homem pelo ato religioso.

Sendo assim, não existe uma relação de dependência do divino para com o homem, mas sim de superioridade e, por assim dizer, sua superioridade só existe quando reconhecida pelo humano. Além disso, há de se rememorar aqui a realidade do ens a se, pois a realidade desse ser é totalmente distinta do divino, pois o ens a se (pelo caminho da metafisica) é o resultado de predicações lógicas, ao passo que o divino é apreendido por meio do ato religioso no momento em que um ente que manifesta a si mesmo em outro.

O homem mostra-se capaz de estabelecer uma relação essencial com o divino. No entanto, existe uma condição para que isso ocorra. O homem precisa abrir seu ser para essa realidade. Essa relação de ser entre o homem e o divino não precisa ser necessariamente lógica, não precisa ser uma relação de igualdade e nem mesmo causal, senão somente uma relação simbólica e intuitiva caso a caso, pois essa relação é mediada pelo ato religioso.

É somente pelo ato religioso que se apreende o ente contingente e finito como dependente do divino.

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Porém, essa relação não se estabelece no pensar, mas sim na vivência. Portanto, percebe-se a criaturalidade da criatura como uma nota fenomenal, já que são vividas e não isoladas em nuvens de conteúdos que não se manifestam no mundo. O que é percebido por nós é percebido no mundo. O ato religioso permite a apreensão perceptiva do divino e, nesse sentido, trata-se de acessar o conteúdo objetivo dessa vivência pela fenomenologia.

Além disso, o ato religioso é o intermediador entre o mundo e Deus. Entre o mundo e Deus não existe uma relação direta, senão somente uma relação mediada na medida em que o homem aprende o divino e entende a realidade como criatura de Deus. Sendo assim, o homem, por meio de seu ato intencional religioso, é o intermediador do mundo e Deus. Portanto, se o divino se faz presente no mundo, ele se faz presente na medida em que é apreendido pelo homem.

Porém, como já vimos, o homem que apreende o divino não vive isolado em quarto fechado, ao contrário, ele vive em comunidade e em relação com outras pessoas confrontando significados e re-significando outros. Assim, apreender o divino, embora dependa de uma postura subjetiva, depende do contexto de toda uma comunidade. Portanto, a fenomenologia da essência da religião não se restringe ao estudo do ato religioso, mas ainda sobre os tipos de homens religiosos que lideram comunidades e animam seu povo para que cada um, pela sua subjetividade, possa, mediante o ato religioso, apreender o divino.

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Os modelos e líderes religiosos Max Scheler, em seu texto Modelos e líderes,

afirma: “[...] cada um estima por seu modelo, e é seu modelo e o imita, porque é a expressão do bem, da perfeição do dever-ser” (SCHELER, 1998, p. 25). Ora, mas o que isso significa? Como esse modelo nos ajuda a compreender a experiência fenomenológica da essência da religião? Em primeiro lugar, devemos ressaltar que nos livros Formalismo na ética e a ética material dos valores e Modelos e líderes, bem como no texto “Fenomenologia da essência da religião: por uma renovação religiosa”, consta um denominador comum: todos estes textos, cada um a seu modo, tratam do assunto da mediação entre o divino e o mundo e a importância de apreender o valor de pessoa que esse modelo constitui.

Sendo assim, a afirmação que cada um estima por seu modelo e o imita significa que se realiza o princípio de seguimento, princípio este, apresentado pela primeira vez no livro Formalismo na ética e a ética material dos valores. O princípio de seguimento faz menção à forma de influência e ao modo como esse homem santo é apreendido, pois o que se apreende, antes de tudo, é o valor de pessoa encarnada em pessoa. Na medida em que se ama e prefere esse valor, todo o Ethos é desvelado e as hierarquias podem mudar. Portanto, o dever-ser é consequência desse princípio de seguimento, em que não se isola esse ser divino em nuvens de conteúdos desconexos com a realidade. Muito ao contrário, esse valor se materializa no mundo na forma de pessoa, fazendo com que o valor de pessoa

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Quarto Capítulo

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seja materializado em pessoa santa e, na medida em que é apreendido, o modo de realizar todos os outros valores manifestos no mundo. O dever-ser é a concretização da experiência no mundo mediado pelo valor de pessoa encarnado em pessoa.

A experiência religiosa, nesse sentido, é sempre mediada por um homem santo, por um modelo religioso. E esse modelo materializa-se na experiência de uma comunidade. Não existem líderes religiosos que falam consigo mesmos trancafiados em quartos fechados. Muito pelo contrário. Essas pessoas ocupam os espaços públicos. Em nosso caso, as redes sociais, os ambientes políticos, as universidades, escolas, trabalho, ou seja, estão na vida comum e cotidiana. No entanto, por quê? Porque há a necessidade de essa experiência acontecer em comunidade. Noutras palavras: o homem santo é o coração de uma comunidade que levanta, inspira e empurra para frente, seguindo sempre as ideias que espelham o universo divino. Sendo assim, o ato religioso é intencional e efetivo na medida em que é possível apreender o valor de pessoa em pessoa encarnado como um homem santo para seguir os valores que possam reanimar os espíritos. Dessa maneira, se deve existir uma essência na religião, ela é acessada por intermédio dos homens santos e pela atuação do ato religioso no ser das pessoas inseridas em comunidade.

Considerações finais

Qual a classificação da fenomenologia da

essência da religião de Max Scheler?

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A fenomenologia da essência da religião tem três metas: (1) o estudo ôntico da essência do “divino”; (2) a doutrina das formas de revelação, nas quais o divino se apresenta e se mostra ao homem; (3) a doutrina do ato religioso, por meio do qual o homem se prepara para o acolhimento do conteúdo da revelação e por meio do qual ele apreende na fé (SCHELER, 2015, p. 209).

Compreender a essência do divino, as formas de

revelação, os tipos essenciais de homens religiosos e a doutrina do ato religioso, então, passa a ser objeto de análise da fenomenologia da essência da religião. Operação fenomenológica que busca não só alcançar a essência num mundo isolado do divino, mas que pretende e se manifesta na vida humana concreta. Portanto, ao estudo fenomenológico scheleriano é incorporado ainda o necessário perscrutar da doutrina da essência das formas estruturais sociológicas das comunidades. Porém, todo esse estudo, todas essas classificações só são possíveis se partirmos do centro e do coração de tudo: a relação do homem com o divino! O homem encontra-se no mundo e confronta os significados que se manifestam. Se ele apreende os aspectos divinos e as evidências de fé é porque este alcança uma conexão essencial com o divino. Porém, essa conexão só é possível por intermédio da palavra, ou seja, o divino se revela na palavra que, no caso, é testemunhada por um homem santo e divino. Não é possível compreender a essência da religião em Max Scheler sem considerar os aspectos essenciais e materiais da vida vivida num contexto histórico, espacial e sociológico.

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Quinto Capítulo

Scheler e o problema do livre arbítrio1

Nathalie Barbosa de La Cadena Introdução

Max Scheler apresentou sua formulação sobre o

problema do livre arbítrio no opúsculo Phänomenologie und Metaphysik der Freiheit, de 1912-1914, publicado em Gesammelte Werke, Band X. No presente capítulo, esta compreensão é apresentada de maneira resumida e, em seguida, apreciada à luz do debate contemporâneo entre o compatibilismo e o incompatibilismo. Ao fim, se pretende justificar a hipótese de que a posição scheleriana neste debate seria em favor do incompatibilismo libertarianista.

Scheler

No texto citado acima, Scheler (1960) enfrenta o

problema do livre arbítrio de maneira direta. A pergunta que se coloca é: a que corresponde o significado de um ‘ato livre’, ou de ‘ser livre’?

O problema da liberdade é posto como o problema do livre arbítrio, o poder de agir por reflexão e por eleição. Neste sentido, o primeiro significado de liberdade seria a consciência do poder. Poder com

1 O presente capítulo é resultado do projeto de pesquisa financiado pelos programas de bolsa de iniciação científica: XXVI PIBIC/CNPq/UFJF – 2017/2017, XXX BIC/UFJF- 2017/2018.

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duplo sentido: primeiro, como consciência do poder da vontade de decidir-se por uma ou outra coisa, tomar uma resolução; segundo, como capacidade de decidir-se a eleger. O primeiro se refere à consciência do poder de volição, poder-querer, ou se tem consciência deste poder ou não. O segundo é o poder como faculdade, possessão de força, como ‘liberdade para’, o poder de eleger entre várias possibilidades, e este pode aumentar ou diminuir conforme aumentam ou diminuem as possibilidades dentre as quais se tem que eleger, é dizer, quanto mais opções de eleição houver, maior é a liberdade.

A liberdade no primeiro sentido, como consciência do poder de volição, o poder-querer, tem como condição a espontaneidade, isto é, a ausência de toda e qualquer coação. Posto que ou sou consciente de ter o poder, a faculdade, a força de realizar a ação, ou sou consciente de estar sob alguma força de coação. Neste primeiro sentido, a liberdade é a consciência de poder produzir o efeito que emana originalmente do sujeito livre. Trata-se de uma ação vivenciada pelo agente e consumada por ele mesmo. Este poder não se confunde com o poder de eleição, uma vez que pode não haver a possibilidade de escolher, mas ainda assim existir a consciência de ter o poder de consumar um ato ‘por mim’ e ‘através de mim’.

O poder de eleição, o poder-eleger, depende do poder no primeiro sentido. Primeiro sou consciente do poder-querer, depois o exerço de alguma maneira. O poder de eleição pode ser exercido ou não, pode haver várias opções de eleição ou somente uma. Assim, não se confunde o poder de volição com o poder de eleição,

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Quinto Capítulo

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não se confunde o poder-querer com o poder-eleger. O poder-querer não varia em graus, já o poder-eleger cresce e decresce de acordo com a quantidade de opções disponíveis. Poranto, se o agente tem apenas uma opção, ele pode estar consciente de seu poder-querer, mas não pode exercer plenamente seu poder-eleger.

Não determinismo

Estabelecida esta diferença, Scheler passa ao

combate ao determinismo. A primeira crítica é direcionada a atitude assumida diante do fenômeno que se quer analisar, o exercício da liberdade, a tomada de decisão e o ato que lhe corresponde. Se realmente se quer compreender tal fenômeno, o primeiro passo é assumir uma atitude fenomenológica. Observar o sujeito no exercício de sua liberdade, as etapas que se dão, todo o processo do devir da decisão, observar sem expectativas, sem encobrir o fenômeno. Isto por que a atitude cientificista, empirista e determinista encobre o fenômeno, o observa a posteriori como um todo dentro de um tempo objetivo. Não percebe o processo, a agitação anímica interna, o surgimento inicial dos pensamentos, a luta interna para chegar a uma solução, a angústia que precede a hora de escolher, a ansiedade anterior à realização do ato propriamente dito e a apreensão enquanto se espera os resultados. Simplesmente observa o feito como realizado e acabado, depois de ser realizado, hermético. Isto leva a uma interpretação equivocada do feito, como se fora uma relação causal simples. Portanto, a diferença entre

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a compreensão fenomenológica e a determinista se inicia com a atitude assumida ante o fenômeno. A atitude determinista ante o fenômeno impede examinar suas variáveis e dilatação no tempo, e jamais levará à compreensão da toda a complexidade do que é ‘ser livre’ (SCHELER, 1960, p.9).

Tal crítica realizada por Scheler no início do século XX segue atual tendo em vista que pesquisas recentes permanecem repetindo o mesmo tipo de abordagem. Turri (2016) em Compatibilism and Incompatibilism in Social Cognition descreve cinco experimentos realizados sobre o tema, são observações a posteriori nas quais é possível identificar o resultado da ação, ou a atribuição de responsabilidade ou de culpa, mas não o processo anímico e a ponderação de valores que perpassam todo o processo de decisão e escolha.

A segunda crítica ao determinismo diferencia o não determinismo da indeterminação. Para tanto, Scheler (1960, p.10) propõe um exercício mental: se um indivíduo tivesse decidido atuar sempre de acordo com a lei, realizar sempre o mesmo sob condições idênticas e, se esta decisão fosse sempre renovada por consentimento interno, tendo ademais o poder de realizá-la, então suas ações não teriam nada de causalidade, ainda que fossem absolutamente previsíveis. Imagino que Scheler devesse estar pensando em alguém como Kant com uma rotina diária extremamente previsível, mas definida por convicção (KUEHN, 2001). As ações desta pessoa são absolutamente livres e previsíveis.

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O que Scheler quer mostrar é que o homem livre determina por si seu comportamento, o faz por convicção e, quanto maior for a duração da motivação, quanto maior for a certeza, mais estável e previsível é seu comportamento. Por outro lado, o homem determinado por fatores externos (determinismo) tem um comportamento imprevisível, já que ninguém sabe como tais fatores serão encarados por cada pessoa, ou a mesma pessoa sob coação pode reagir de uma maneira diferente dependo do momento ou das circunstâncias. Assim, determinismo não implica previsibilidade, e a falta de liberdade não é garantia de estabilidade dos comportamentos, ao contrário, a liberdade e a motivação da decisão levam a um comportamento mais estável e mais previsível (SCHELER, 1960, p.12).

Por isso, os deterministas tendem a confundir os conceitos de não determinismo e indeterminismo. A não determinação é negativa, é dizer, é a ausência de coação, a não determinação de um feito por outra pessoa ou fator externo. Em outras palavras, a não determinação é a ausência de coação, a presença de espontaneidade, quando um sujeito tem plena consciência de seu poder volitivo e é livre para exercer seu poder de escolha. A liberdade é o lado positivo do mesmo fenômeno, está enraizada na vivência do poder, no atuar autônomo.

A liberdade não se confunde com a indeterminação. A indeterminação é a vivência caprichosa, imotivada. A ação que satisfaz os impulsos mais instintivos e imediatos, totalmente sem pensar. Em outras palavras, na forma de atuar indeterminista,

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a ação é causada por fatores internos. É o caso, por exemplo, do demente cujo comportamento é totalmente imprevisível, embora seu comportamento esteja sendo determinado pela enfermidade. Uma vez mais, o comportamento está determinado por um fator interno, mas é totalmente imprevisível. Sua demência é imprevisível, não se sabe quando irá surgir, com que intensidade, se é possível controlá-la por convicção, com auxílio de medicação ou de terapia. É justamente o oposto da ideia de necessidade causal quando há uma dependência teleológica entre meio e fim, entre as fases do processo e a meta (SCHELER, 1960, p.10).

Somos seres não determinados, não somos determinados nem indeterminados. Se fôssemos determinados, nosso comportamento seria derivado de fatores externos. Se fôssemos indeterminados, nosso comportamento seria provocado por fatores internos. Tanto num caso como no outro, nosso comportamento seria imprevisível, já que só a não determinação (negativa) e a liberdade (positiva) permitem a estabilidade e a previsibilidade dos comportamentos.

Scheler reforça seu argumento com mais um exemplo: isto explica por que o homem, como parte integrante das massas, quanto mais integrado, quanto mais coagido, mais imprevisível, posto que a massa é imprevisível, caprichosa e histérica. Nas palavras de Scheler (1960, p. 12): “[...] um homem é mais incompreensível quanto mais explicável sejam ele e sua vida”.

Talvez a terminologia usada por Scheler não facilite muito a compreensão, por isto insisto em torná-la mais clara. Determinismo é quando o

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comportamento é causado por fatores externos sendo imprevisível. Não determinismo (ou espontaneidade) é condição da liberdade e um ser é livre quando a decisão é motivada e pensada, sendo um comportamento mais estável e previsível. Indeterminismo é quando o comportamento é causado por fatores internos, um arbítrio caprichoso e uma volição imotivada, neste caso, o comportamento será também imprevisível.

Como consequência temos que: “É, pois, uma ficção, que a crença no fenômeno da liberdade signifique uma destruição de toda segurança e confiança, e que conduza ao caos” (SCHELER, 1960, p. 13). É justamente o exercício da liberdade o que permite uma maior estabilidade e previsibilidade dos comportamentos. Há aqui uma crítica mais, de ordem política, aos deterministas que, devido a sua raiz empirista, mais precisamente hobbesiana (HOBBES, 1994), creem que o livre exercício do arbítrio leva a instabilidade e ao caos.

Depois de rejeitar o determinismo, Scheler enfrenta mais um tema, a metafísica da liberdade, ou os graus de liberdade no universo. Para o fenomenólogo, existem graus de liberdade de acordo com a essência e as relações entre elas. A liberdade não é algo que simplesmente existe ou não, preto ou branco. A liberdade se exerce em graus distintos. O fato de que os seres humanos sejam não determinados não implica que sejam livres de toda e qualquer determinação, ou toda e qualquer causalidade. Há um grau de liberdade combinado com um grau de determinação. Afinal, devemos reconhecer que não somos seres totalmente livres. Isto é um equívoco de

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quem superestima a determinação, de quem unicamente consegue ver a determinação ou a arbitrariedade. Não obstante, a arbitrariedade é a combinação entre liberdade e causalidade.

Pensemos no Ser Originário, quando da criação, este ser não estava sujeito a nenhuma causalidade, determinação, condição ou relação. Sua liberdade era absoluta (SCHELER, 1960, p. 17). O ser que cria ex nihil não sofre nenhuma limitação, o ser que dá origem não está sujeito a nenhuma relação. Não obstante, isto não ocorre com nenhum outro ser. Todos os demais sujeitos sofrem algum grau de limitação, influência ou determinação. Todos os seres humanos estão sujeitos às relações de causalidade que governam a natureza. Posso caminhar sobre brasas ardentes, mas vou queimar a sola dos pés; posso submergir em alta profundidade, mas estarei sujeita aos efeitos da pressão; posso decidir fazer greve de fome, mas terei fome.

Estes graus de liberdade podem variar de pessoa para pessoa e, inclusive, a mesma pessoa pode ter em diferentes momentos da vida diferentes graus de liberdade, basta recordar que ninguém está livre de uma enfermidade ou de ser alvo de alguma espécie de coação, legítima ou não. Portanto, podemos ter momentos em que somos mais livres e momentos em que somos menos livres. Há pessoas mais livres e outras menos livres, as pessoas sob coação são pessoas essencialmente livres, mas que estão impossibilitadas de exercer sua liberdade. É dizer, podem querer, mas não podem eleger e não podem fazer. Estas pessoas podem ter consciência de seu poder de volição e

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também consciência de que estão sob algum tipo de coação que as impossibilita de exercer seu poder de eleição e seu poder de realização. Nas palavras de Scheler (1960, p.18): “Liberdade é a denominação para uma relação vivenciada da causalidade superior e mais amecânica com a inferior e mecânica”.

Para explicar como funciona, Scheler (1960, p. 30) apresenta a ideia de ‘formas causais’. Estas ‘formas causais’ são como cadeias de eventos independentes e irredutíveis entre si, mas que, não obstante, entre estas ‘formas causais’ há uma espécie de interdependência, que não é causal. Trata-se de um ‘surtir efeito’ de tal maneira que o ‘surtir efeito’ em uma das formas de causalidade só é possível se toma por base o ‘surtir feito’ de outra forma de causalidade. Um exemplo: estudos revelam que jovens com menos de 21anos predispostos à esquizofrenia se fumarem maconha com frequência da adolescência até a idade adulta têm um risco mais alto de desenvolver a enfermidade (SOARES-WEISER, 2003). O fato de a pessoa ter predisposição à esquizofrenia é parte da cadeia de eventos biológicos, e não passa pelo exercício da liberdade. Já o fato de o jovem decidir fumar maconha regularmente é parte de outra cadeia de eventos, dependente do exercício da liberdade. Todavia, o uso da maconha só servirá como disparador para a esquizofrenia se o jovem tiver predisposição para a enfermidade. Em outras palavras, ter a predisposição para a esquizofrenia é condição necessária, mas não é condição suficiente para desenvolvê-la. Pode ocorrer que uma pessoa nunca se depare com uma situação que dê início ao evento. São cadeias de eventos independentes, uma biológica,

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totalmente involuntária, e outra espiritual, que depende do arbítrio, da vontade, da liberdade. Não são justapostas, nem interdependentes, mas o ‘surtir efeito’ de uma está fundado no ‘surtir efeito’ de outra.

Assim, apesar de sermos parte de uma cadeia de causalidades também somos causa, e por isso somos livres. Temos uma esfera de liberdade na qual podemos exercer nossa vontade, podemos iniciar uma nova cadeia de eventos, uma causalidade baseada na liberdade.

Não obstante, esta decisão, e a nova cadeia de eventos provocada por ela, está vinculada a outras cadeias de eventos, de ordem física, biológica, psíquica, familiar, social, econômica e histórica. Cada uma destas cadeias de eventos, ou ‘formas causais’, exerce diferentes graus de determinação, de modo que nossa esfera de liberdade está limitada, influenciada e, também, determinada por estas cadeias de eventos ou pela relação entre elas.

Em verdade, é a regularidade das relações entre as distintas cadeias de eventos e especialmente a regularidade da forma causal natural, física e biológica, que permite alguma previsibilidade dos acontecimentos garantindo que as decisões não sejam tomadas no escuro, mas com base em alguma expectativa sobre as consequências e resultados, alguma previsibilidade.

Portanto, a lei da causalidade natural não é um obstáculo à liberdade, mas uma condição. Sem a regularidade do mundo, da natureza, proporcionada pelas leis da física e da biologia, seria impossível estimar os resultados de nossas ações.

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Neste sentido, afirmam Mumford & Anjum (2015): “Nós argumentamos, ao contrário, que um pode admitir causas primárias de decisões e ações sem, no entanto, admitir necessidade. O que provavelmente leva alguns a pensar de outro modo é a ideia de que a necessidade de uma afetação por uma causa é a única maneira que a produção causal pode operar, mas não é” (p. 4).

Ao lado das leis da causalidade natural, o conhecimento também tem um papel importante no exercício da liberdade. Para que seja possível tomar uma decisão, no âmbito da liberdade que temos, é fundamental que tenhamos o conhecimento necessário para isto. Para exercer a liberdade da forma mais plena possível, é necessário conhecer todas as condições, limitações, circunstâncias e possibilidades de resultado da decisão. Evidentemente isto é impossível, mas um exercício mental pode ajudar. Imaginemos que, no exemplo anterior, o jovem tenha pleno conhecimento de tudo o que supõe sua decisão, incluindo que tem uma predisposição à esquizofrenia, que a maconha quando fumada entre o início da adolescência e o início da vida adulta pode servir de disparo para a esquizofrenia e também o que é a esquizofrenia e todas as suas implicações. Em outras palavras, tendo o conhecimento dos valores que estão em conflito, para Scheler, o jovem necessariamente optaria por um Bem Maior. Sua decisão teria fundamento e, portanto, seria livre.

Para Scheler (1960), admitir que, tendo o conhecimento absoluto do Bem, seja possível optar pelo mal, implicaria uma total ausência de liberdade, já

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que significaria que, em verdade, a pessoa estaria sendo determinada por um fator interno ou externo que provocaria o mal. Nenhuma ética teria significado, então. As ações seriam indeterminadas, por que estariam determinadas por ‘motivos mais fortes’ que levariam a pessoa a determinar se de acordo com eles.

A posição de Scheler requer um esclarecimento. O conhecimento, incluindo o conhecimento absoluto do Bem, não determina a eleição. O conhecimento é condição necessária para o exercício pleno da liberdade, mas não é condição suficiente, já que, ademais de conhecer, é necessário escolher e depois realizar. Cada ato de consciência realizado num momento diferente e específico.

Até este ponto é possível identificar duas condições da liberdade, uma, as leis da causalidade da natureza que por um lado proporcionam a regularidade e previsibilidade necessárias e por outro determinam em algum grau o comportamento; outra, o conhecimento que permite aos seres humanos que se movam por valores, de maneira pensada, conduzam sempre sua vontade de maneira motivada, fundamentada e, portanto, tenham um comportamento estável e previsível.

Assim, tanto o determinismo (determinação por fatores externos) como o indeterminismo (determinação por fatores internos) não pode servir de base para a responsabilidade uma vez que minimizam o ato de decisão, descartam o momento de reflexão, e a ponderação de valores. Só o não determinismo pode cumprir este papel.

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Volição motivada Depois de esclarecer sua posição em relação ao

determinismo, Scheler passa a definir o que é a liberdade a partir dessas premissas. Ressalta que a liberdade sempre inclui um conjunto de conexões (SCHELER, 1960, p. 20). Neste sentido, se refere à liberdade na conexão de sentido dos atos e à liberdade na conexão causal das vivências psíquicas. Para isto, o filósofo define o que são motivos. Dentro dos ‘motivos para algo’ há que se diferenciar: (i) o pressentimento do valor positivo que está por realizar, (ii) a ‘vontade de’, o estímulo para a realização da ação, (iii) o valor que se dará a partir da realização da ação como motivação propriamente dita da volição.

O motivo imediato é sempre um pressentimento e não se confunde com o estado emotivo que deriva da ação. A busca pela emoção é o que ocorre numa ação que não é pensada, se tem a emoção, o afeto, mas não se tem o pressentimento do valor a ser realizado. Neste caso, a ação não passa de uma arbitrariedade caprichosa, como foi explicado anteriormente, uma ação indeterminada por que não foi pensada, imotivada.

Com isso, é necessário precisar o que se chama causação da volição (SCHELER, 1960, p. 21). ‘Causação da volição’ é a motivação da ação, então, em realidade, esta ação não é causada, mas livre, já que dita causação não é uma causa mecânica, física ou biológica, mas a pura reflexão, um ato de consciência espiritual. Portanto, ‘causação de volição’ não se confunde com o impulso afetivo. Este, sim, uma relação causal

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objetivamente real que resulta em uma ação não livre por que é sem pensar, a mera sujeição ao impulso, é puro indeterminismo, pura arbitrariedade, já que se retirou toda compreensão que daria sentido aos atos. Portanto, Scheler torna ainda mais precisa sua definição de liberdade ao afirmar que “[...] ser libre es actuar solo debido a una volición motivada” (SCHELER, 1960, p. 24).

Aqui, mais uma crítica aos deterministas, já que eles consideram só a segunda definição de motivação, aquela que toma as paixões, os afetos, os impulsos e os instintos como causa da volição. Assim, toda a ação seria resultado do motivo mais forte, em realidade, uma ação imotivada, irrefletida, indeterminada e imprevisível.

Por outro lado, tomando a volição como motivada, a explicação racional acerca dos nexos entre fim-meio passa a ser totalmente diferente. É necessário, então, refletir sobre a fundamentação da volição e a compreensão da volição (SCHELER, 1960, p. 24). A fundamentação da volição está no valor que a orienta de acordo com uma ordem hierárquica de valores. Fundamentar uma volição não significa estabelecer uma conexão causal, mas compreender as razões, os motivos daquela determinada ação, o valor pressentido pelo agente. Diante disso, a expressão das conexões dos meios com o fim de seu projeto (SCHELER, 1960, p. 20) só há de se realizar mediante a adequação de seus conteúdos de ação e seu querer-fazer, e o que foi possível apreender com sua inteligência (SCHELER, 2001, p. 642). A compreensão da volição está no sentir dos valores por parte da pessoa

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que quer e o que esta sentia na ocasião. Nos atos de preferir e postergar evidenciar quais valores a guiavam e de que forma se subordina a volição desse conteúdo à conexão de sentidos de sua volição. Sendo assim, a compreensão da volição tem como ponto de partida o sentir dos valores transmitido por seu sentimento axiológico. A evidência sobre as conexões de meio e fim se dão mediante a adequação entre a ação e o querer-fazer e deste com os projetos.

Uma volição é motivada quando compatível com a hierarquia de valores conforme proposta no segundo capítulo da segunda seção de Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik – Neuer Versuch der Grundlegung eines ethischen Personalismus. Nesta obra, Scheler (2001, p. 173-179) propõe quatro níveis na hierarquia de valores: do perceber afetivo, da sensibilidade vital, do sentimento axiológico e do sagrado. Estes valores se manifestam em todas as coisas, mas são a priori. Ademais, há critérios objetivos para estabelecer esta hierarquia, são eles: a duração, a divisibilidade, a fundamentação, a satisfação e a relatividade. Infelizmente, não é possível desenvolver o tema aqui.

O que se quer fixar é que uma vontade motivada tem origem em uma decisão fundamentada sendo derivada da reflexão.

Liberdade do poder-querer, do poder-fazer e do fazer mesmo

Considerando a volição motivada, cabe ainda as

seguintes perguntas: ‘é o ato da decisão eletiva livre?’,

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‘a esfera de eleição (os motivos possíveis) é livre ou necessária?’, e ‘em que sentido a existência de uma esfera de eleição permite um juízo acerca da liberdade?’, e ainda, ‘qual a dimensão desta esfera, estreita ou ampla?’ (SCHELER, 1960, p. 26-27).

Com o objetivo de responder a estas perguntas, Scheler diferencia a liberdade do poder-querer, a liberdade do poder-fazer e a liberdade do fazer mesmo. Tanto a liberdade do poder-fazer como a liberdade do fazer mesmo podem sofrer limitações, podem ser impedidas pela força, pela coerção ou pela compulsão, algo que não se aplica à liberdade do poder-querer. Ademais, é importante notar que a liberdade do fazer mesmo depende da liberdade do poder-fazer.

A liberdade do poder-querer, o poder de volição, já foi descrita no princípio do tópico anterior. O poder-fazer consiste em dispor da capacidade de executar uma ação, ter o conhecimento e a habilidade para executar a ação, por exemplo, se sou músico violinista, posso tocar um violino. Entretanto, se por alguma enfermidade sofro uma paralisia no braço, já não posso tocá-lo. O fazer mesmo é a execução propriamente dita. No exemplo anterior, tocar o violino.

As perguntas propostas são de especial interesse para a Política, o Direito e a vida social. A partir da última pergunta, como já foi mencionado, quanto maior for a esfera de eleição, maior será a esfera de liberdade. Em outras palavras, quanto mais opções existirem à disposição para a eleição, maior será a sensação de liberdade, se viverá mais intensamente e em sua expressão mais elevada. Neste sentido, a amplitude da esfera de eleição permite realizar um

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juízo sobre a liberdade. Sem embargo, a pergunta anterior permanece: ‘esta esfera de eleição é livre ou necessária?’ Surge aqui uma questão de interesse político: uma esfera de eleição muito estreita tem impacto no poder-fazer. Por exemplo, se temos disponível um único meio de comunicação e não temos conhecimento de mais nenhum, então a falta de liberdade de imprensa não será notada, não existirá o sentimento de que se está sendo vítima de coerção ou manipulação. Não obstante, se temos conhecimento de que existem vários meios de comunicação, várias fontes de notícia, vários modos de comunicar um mesmo fato, então passamos a sentir essa limitação, essa coerção à liberdade do poder-fazer. A restrição do número de opções não só limita a liberdade do fazer mesmo, mas também pode limitar a liberdade do poder-fazer. Portanto, onde as esferas de eleição são muito amplas, ou ao menos se sabe que são amplas, não ter acesso a elas implica uma restrição à liberdade do poder-fazer e à liberdade do fazer mesmo, e consequentemente, pode provocar uma reação e uma forte sensação de cerceamento.

Assim, uma maneira de coagir uma comunidade é não deixar que tenha acesso e não saiba que está tendo o acesso a algo restringido, de modo que terá sua liberdade de poder-fazer limitada (e consequentemente, a liberdade do fazer mesmo também limitada) e não saberá disso. Daí é possível explicar por que, nos regimes fechados, os detentores do poder se esforçam ao máximo para que as pessoas jamais tenham acesso a outras fontes de informação, não conheçam outras opiniões, interpretações ou

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opções. Deste modo é mais fácil disseminar a crença de que estão vivendo da melhor maneira possível, pois a população segue sem saber o que está perdendo, incapaz de imaginar como seria viver numa sociedade diferente. Tem a sensação de que é livre, já que o natural é ter poucas opções a eleger. Isto é absolutamente relevante quando falamos de restrição ao acesso à informação, isto é, quando falamos da democratização dos meios de comunicação, direito fundamental numa democracia. Se tivermos uma única fonte de notícias, o que for publicado será considerado verdade, já que ao menos se sabe que algo aconteceu em algum lugar sem maiores questionamentos sobre os interesses envolvidos. Por outro lado, se há conhecimento sobre a existência de outras fontes de notícia, mesmo que não se tenha acesso a elas, o simples fato de impedir o acesso, já implica numa sensação de cerceamento da liberdade de poder-fazer, e claro, da liberdade do fazer mesmo, e isto também pode gerar reações adversas.

Por outro lado, quando há demasiadas opções disponíveis para o exercício da liberdade de poder-fazer, se tem a sensação de uma enorme liberdade, já que a todo o momento estamos exercendo nosso poder de eleição. A questão é que isto também pode estar a serviço de uma coerção, uma coerção velada, uma limitação à liberdade, uma verdadeira obnubilação de nosso poder de eleição através do oferecimento de uma quantidade imensa de informação e produtos em sua maioria irrelevantes e inúteis. Assim, se decide sobre coisas irrelevantes o tempo todo, se compra o que não se necessita, o tempo passa a ser dedicado a futilidades,

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discussões irrelevantes e rasas. É a sociedade de consumo ávida de informação e produtos, uma sociedade na qual todos escolhemos entre o que não necessitamos a todo o momento e isto nos mantém ocupados além de nos dar a sensação de que estamos exercendo nosso poder de eleição, nossa liberdade. Deste modo seguimos acreditando que somos livres pelo simples fato de estar realizando escolhas a todo o momento.

Há basicamente duas maneiras eficazes de restringir a liberdade, uma através da limitação da esfera de eleição, impedindo que a pessoa coagida tenha acesso a uma variedade de opções. Só que neste caso, quando o coagido se dá conta das outras opções, sente o peso da coação e sente, então, um incômodo que pode inspirar uma reação, reação imprevisível. Outra forma de restringir a liberdade é afogando o coagido numa esfera de eleição absolutamente gigantesca, embriagadora. É uma maneira mais sutil de limitação da liberdade. Deste modo, o coagido não sente tanto o peso da coação sobre ele, ao contrário, tem a sensação de que exerce plenamente seu poder-fazer, que é livre para fazer.

Assim se pode sintetizar este tópico fixando que, para Scheler, a liberdade é não determinação, isto não implica total ausência de determinação visto que estamos sujeitos às leis de causalidade da natureza, mas que, em conhecendo o bem, podemos optar por ele de maneira fundamentada, uma volição motivada. Ademais, o poder-fazer depende da ausência de coerção e de haver opções a eleger.

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Compatibilismo e incompatibilismo O debate entre livre arbítrio e determinismo

remonta a Homero tanto na Ilíada como na Odisséia, aos filósofos da antiguidade clássica como em Platão no Mito de Er, a filosofia medieval como em Agostinho de Hipona em O livre-arbítrio, a reforma protestante como em Lutero em De servo arbítrio, a filosofia moderna como em Kant em O que é esclarecimento?, ao idealismo alemão como em Hegel em Princípios da Filosofia do Direito, e fenomenologia como em Husserl na Introdução à ética, palestras de verão em 1920 e 1924. Isto apenas para mencionar alguns filósofos mais conhecidos, todavia a lista está longe de ser exaustiva. É evidente, portanto, que não é possível apresentar todo o debate, para isto indico o livro de Ilham Dilman, Free will, an historical and philosophical introduction.

Numa linguagem contemporânea, este debate aparece com duas posições destacadas: o compatibilismo e o incompatibilismo. O compatibilismo afirma somente que o determinismo é compatível com o livre arbítrio. O incompatibilismo afirma que o determinismo é incompatível com o livre arbítrio, isto é, se o determinismo é verdadeiro, então não há nem nunca houve livre arbítrio. Assim é necessária uma definição de determinismo. Determinismo é a crença de que tudo o que acontece é causalmente necessário devido à combinação entre as condições antecedentes e as leis naturais.

Historicamente os argumentos em defesa do compatibilismo evoluíram, os primeiros foram os compatibilistas clássicos como Hobbes, Hume y Stuart

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Mill. Estes foram superados por teorias desenvolvidas nos anos 60, são elas: o argumento de consequência de Carl Ginet (1966), a crítica ao princípio de possibilidade alternativas de Harry Frankfurt (1969), e a nova perspectiva sobre as atitudes reativas de Peter F. Strawson (1962). Os compatibilistas contemporâneos seguem influenciados pelos argumentos de Ginet, Frankfurt e Strawson, mas com algumas adaptações. Por esta razão, os tomaremos como referência.

Os incompatibilistas defendem, por razões opostas, que o determinismo é incompatível com o livre arbítrio. De um lado, há aqueles que consideram que tudo está determinado e, portanto, não há livre arbítrio. São os fatalistas como o estóico Crísipo de Solis e os deterministas rígidos como Spinoza. De outro lado, há aqueles que creem que o determinismo se aplica somente às coisas e não à consciência humana como Sartre, ou que os atos são em princípio logicamente distintos de acontecimentos ou eventos como na teoria da ação de Mac Intyre, ou que alguns eventos não são causados, mas resultam de escolhas livres como Agostinho e Kant.

Estes são representantes do libertarianismo, além de considerar que o determinismo é incompatível com o livre arbítrio, creem que os seres humanos têm livre arbítrio, que as pessoas são livres. Reconhecem que o determinismo sim existe, mas somente no âmbito da natureza. De maneira mais sistematizada, afirmam que o determinismo impede a existência de possibilidades alternativas de decisão e/ou ação e que as possibilidades alternativas são necessárias para decidir e/ou agir livremente.

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Dadas estas definições, tomaremos como linha condutora as premissas sistematizadas por Carlos J. Moya em Moral Responsability, The ways of scepticism, a partir das quais se posicionaram as correntes do pensamento contemporâneo: (a) o determinismo impede a existência de possibilidades alternativas de decisão e/ou ação; (b) as possibilidades alternativas são necessárias para decidir e/ou atuar livremente; (c) o determinismo impede o controle último sobre nossas decisões e/ou ações; (d) o controle último é necessário para decidir e/ou atuar livremente (Moya, 2006, p.6)

Antes uma breve observação, o compatibilismo em lugar de estar em uma posição oposta ao incompatibilismo é mais bem compreendido como intermediário entre as duas posições extremas do incompatibilismo. De um lado temos os defensores do determinismo, no extremo oposto os defensores do livre arbítrio, y os compatibilistas que creem ser possível a coexistência do determinismo e do livre arbítrio. Dito de outro modo, no espectro do debate os incompatibilistas ocupam as posições extremas, de um lado, o fatalismo e o determinismo rígido, de outro, o libertarianismo, a teoria da ação e o existencialismo; os compatibilistas ocupam a posição intermediária defendendo que não há impedimento entre o determinismo e o livre arbítrio.

Scheler e o compatibilismo

De acordo com a ordem antes mencionada, apresentaremos as posições compatibilistas seguidas das refutações baseadas na teoria scheleriana do livre

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arbítrio. O primeiro argumento em favor do compatibilismo é o chamado argumento de consequência que nega a premissa (a), é dizer, para Ginet (1966), o determinismo não impede a existência de possibilidades alternativas de decisão e/ou ação. O núcleo do argumento está na definição do verbo ‘poder’. Se ‘ser livre’ é poder fazer algo no sentido de gozar da faculdade ou habilidade para fazê-lo, então ainda que nossa vontade esteja determinada, nada impede a existência de alternativas que permitiriam haver feito algo distinto. Visto de outro modo, poderia haver realizado outra coisa se houvesse querido, mas como minha vontade está determinada, não o quis.

A razão é que as pessoas não têm poder sobre certos fatos e tão pouco tem poder sobre os fatos que derivam destes, é uma ausência de poder que se transfere dos fatos às consequências. Devido aos fatos passados as leis da natureza, as pessoas não têm poder para alterar o futuro, em verdade, seu futuro se realizará de só uma maneira.

Portanto, o determinismo é verdadeiro uma vez que os fatos do passado e as leis da natureza são fixos, consequentemente, os fatos presentes que determinam a vontade também, assim como os fatos futuros.

As possibilidades alternativas existem sucede que o agente não arbitra sobre elas já que sua vontade está determinada na direção de uma única alternativa. Em verdade, não faz diferença se as possibilidades alternativas existem ou não, pois a determinação está sobre a vontade e não sobre a existência de possibilidades alternativas. Estas podem existir diante

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do agente que ele seguirá elegendo somente aquela para a qual está determinado.

Para Scheler (1960): “[...] ser livre é atuar somente devido a uma volição motivada” (p.22). Volição motivada é uma volição reflexiva que pressente o valor positivo da ação. Por exemplo. O motivo para viajar é a contemplação das paisagens, dos sítios históricos, o valor positivo que se realiza quando se dá a vivência da viagem. Scheler admite um duplo sentido de ‘motivação’. Numa linguagem vulgar se diz que as ações são motivadas ainda que a ‘motivação’ seja meramente imediata, objetiva ou instintiva. No entanto, o que pretende é chamar atenção para outro tipo de motivação, a motivação refletida, a motivação compatível com o projeto. Uma motivação que não se deixa reduzir a alguma forma de causalidade real, nem sequer psíquica, como na ação puramente impulsiva.

Neste sentido, o que deve fundamentar uma volição são os valores que a guiam de acordo com uma ordem hierárquica nos atos de preferir e postergar (SCHELER, 2001, p. 152). O ‘eu’ é como um campo de batalha onde o motivo mais forte para atuar é definido. O guia desta decisão é o sentimento axiológico que subordina a volição e adequa o querer-fazer aos conteúdos da ação. Visto de outro modo, a volição é livre quando motivada, de maneira mais genérica, a volição pode ser livre quando no exercício do poder-querer a motivação não é mecânica ou objetiva, mais amecânica, refletida de acordo com valores.

O segundo argumento em favor do compatibilismo é a crítica ao princípio das possibilidades alternativas que nega a premissa (b), isto

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é, para Frankfurt, Daniel C. Dennet (1984) e James W. Lamb (1977), as possibilidades alternativas não são necessárias para decidir e/ou atuar livremente. O argumento de baseia em exemplos em que o agente é moralmente responsável, mas não poderia atuar de outro modo. Talvez o exemplo mais conhecido seja de Lamb (1993) sobre o socorrista. Vejamos, um socorrista mentiu sobre sua qualificação dizendo que sabia nadar. Se, diante dele, um menino se afoga, é sua obrigação salvá-lo, no entendo, por não saber nadar, ele não poderá salvar a vida do menino. Mesmo assim, seguirá sendo responsável pelo ocorrido.

Neste caso, os atos do agente lhe colocam numa situação de responsabilidade por sua ação ou inação ainda que não haja possibilidade alternativa. De outra maneira, o agente é responsável por suas ações ainda que não haja podido atuar de modo distinto. Os defensores desta posição concluem que as possibilidades alternativas não são necessárias para a responsabilidade moral, é dizer, a liberdade definida como a necessidade de possibilidades alternativas (premissa B) não é necessária para a responsabilidade moral.

Os críticos do princípio das possibilidades alternativas (PAP) em grande medida apresentam seus argumentos baseados em exemplos semelhantes, como Dennet (1984, p. 131-8) que cita o caso de Matinho Lutero. Lutero afirmava que não poderia ter agido de outro modo, pois sua consciência não permitiria, e ainda assim é considerado responsável por sua ação.

Tomando como referência o exemplo de Lamb, há que se considerar que o momento da eleição não se

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deu quando do afogamento do menino, mas quando o socorrista mentiu sobre sua qualificação. Até porque não cabia ao socorrista decidir se o menino iria entrar na água ou não. Por outro lado, cabia sim ao socorrista decidir se iria mentir ou não sobre sua qualificação. Neste momento, ele tinha duas opções a considerar: mentir ou não mentir. E, já neste momento era perfeitamente previsível que, durante sua carreira, poderia estar diante de uma situação como esta. Portanto, quando mentiu, assumiu o risco de no futuro enfrentar tal dilema e por esta razão é considerado responsável.

Neste exemplo, o socorrista é sim responsável e, reconhecendo a situação em que se colocou, poderia tentar salvar o menino, lançando lhe uma bóia ou saltando ao mar. O fato é que dificilmente não há alternativas a eleger, principalmente quando a coerção é externa, o necessário é ter coragem para enfrentar a pressão social e inclusive a ameaça a própria vida. O mais difícil, todavia, é quando não se tem consciência da coação como no caso das enfermidades psíquicas.

Scheler, como mencionado anteriormente, chama atenção sobre esta maneira de analisar os fenômenos. O fenômeno da liberdade não é simples, não se pode fazer um recorte no tempo e analisá-lo fora do contexto, das situações pretéritas, da vivência anímica do agente, da especulação sobre as consequências do comportamento.

Ademais, para o fenomenólogo, as possibilidades alternativas são necessárias para decidir e/ou atuar livremente. São necessárias em diversos níveis do exercício da liberdade: para o poder-eleger,

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para o poder-fazer e para o fazer mesmo. O mesmo raciocínio se aplica ao poder-fazer e ao fazer mesmo. Recordando que as limitações à liberdade podem ser internas, o que define como indeterminação, ou externas, o que define como determinação. Os seres humanos são livres justamente por que são não determinados.

O terceiro argumento em favor do compatibilismo é de Strawson (1962) apresentado em seu artigo Freedom and Ressentment. O autor muda totalmente o enfoque, pois em lugar de analisar as possibilidades alternativas, algo mais objetivamente dado, propõe uma análise de ordem mais subjetiva sobre as atitudes reativas. Considera que as premissas (a), (b), (c) e (d) não são suficientes para solucionar o problema do livre arbítrio. Seu argumento é que, diante da uma atitude que se percebe como derivada de boa ou má intenção, surgem atitudes reativas que podem ser de ressentimento quando somos objeto da ação, de indignação quando presenciamos a ação, ou de culpa quando somos autores da ação. Portanto, mais que analisar as possibilidades alternativas, há que se admitir algo mais envolvido no debate sobre a liberdade e, mais precisamente, sobre a responsabilidade moral. A atribuição de responsabilidade moral deriva em grande medida das respostas emocionais às atitudes que por sua vez dependem da percepção das relações interpessoais.

O argumento de Strawson traz uma nova perspectiva sobre o debate do livre arbítrio. No entanto, não responde a perguntas centrais que definem a liberdade, isto é, não assume uma posição

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clara em relação à necessidade de possibilidades alternativas e controle último. Sua preocupação parece estar mais centrada na atribuição de responsabilidade moral que propriamente na definição do que seja livre arbítrio e suas condições.

Scheler também valoriza as emoções para compreensão dos valores e como guias das respostas às ações. Para conhecer um pouco mais sobre este tema indico a leitura de Scheler, os valores, o sentimento e a simpatia de Cadena (2013). Sem embargo, o enfoque é totalmente distinto, para Scheler os sentimentos são instrumentos para a intuição emocional dos valores, valores materiais organizados hierarquicamente. Isto não se confunde com as emoções despertadas diante de uma ação própria ou alheia. Ademais, tomá-las como critério de reação e imputação de responsabilidade moral torna o resultado absolutamente relativo algo incompatível com a proposta scheleriana.

Scheler e o incompatibilismo

Como já mencionado, o incompatibilismo

afirma somente que o determinismo é incompatível com o livre arbítrio. Assim, entre os incompatibilistas há dois extremos, de um lado, os deterministas duros e, de outro, os libertaristas. Consideraremos somente os incompatibilistas que negam o determinismo uma que, conforme exposto no tópico anterior sobre Scheler, esta também é sua posição.

Os libertaristas aceitam todas as premissas apresentadas no princípio deste capítulo. Portanto é possível dividir os argumentos do incompatibilismo em

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dois grupos: os argumentos a favor das possibilidades alternativas, e os argumentos a favor do controle último. Os argumentos do primeiro tipo estão centrados na possibilidade de atuar de maneira distinta, não só a existência das possibilidades alternativas, mas também a possibilidade de efetivamente poder eleger entre elas. A necessidade das possibilidades alternativas é defendida pelos problemas que se colocam, a um, se somente há uma opção, então fazemos a única coisa que se pode fazer, a dois, se há diferentes opções, mas sempre optarei por aquela determinada devido a eventos anteriores e as leis da natureza, então de fato não a elegi. Em ambos os casos é evidente o impacto negativo sobre a responsabilidade moral. É a posição defendida por van Inwagen (1983) em An Essay on Free Will.

Os argumentos do segundo tipo atribuem às pessoas suas ações e as assumem como moralmente responsáveis por elas. O livre arbítrio neste sentido implica na autonomia ou autodeterminação, isto é, o agente é a causa e tem o controle último sobre suas ações, ações que serão julgadas moralmente. É a posição defendida por Kane (1996) em The Significance of Free Will.

Considerando as premissas (a), (b), (c) y (d), se pode afirmar que o pensamento de Scheler está de acordo com todas. A premissa (a) é ‘o determinismo impede a existência de possibilidades alternativas de decisão e/ou ação’. Scheler define o determinismo como o atuar causado por fatores externos, leis naturais e/ou relações espaço-temporais e, ao lado do determinismo, há o indeterminismo que é definido

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como o atuar caprichoso, sem fundamento, ou causado por uma enfermidade psíquica ou anímica. Ambos são formas de determinação em que o atuar é causado por algo alheio ao arbítrio. Entretanto, os seres humanos são de fato não determinados, isto é, livres. Scheler (1960, p. 11) “[...] compartilha a crença na liberdade do homem em questão; a crença em sua capacidade de poder opor algo aos estímulos e impulsos instintivos que o assombram, algo que anule os efeitos de outro modo determinantes para suas ações”. Deste modo, caminham juntas duas dimensões da liberdade, uma negativa, a não determinação mesmo ainda sob as leis da natureza, e uma positiva, a capacidade de opor se aos estímulos externos e também internos, de atuar de maneira autônoma.

A premissa (b) é ‘as possibilidades alternativas são necessárias para decidir e/ou atuar livremente’. Scheler, como já mencionado, a considera verdadeira quando define a liberdade como poder de eleger, poder-fazer e fazer mesmo. Neste sentido, acrescenta que “[a capacidade de se decidir a eleger] parece poder crescer e decrescer com o número de possibilidade: somos tanto mais livres quanto maior for a quantidade de possibilidades entre as quais podemos eleger” (SCHELER, 1960, pág. 7).

A premissa (c) é ‘o determinismo impede o controle último sobre nossas decisões e/ou ações’. Scheler (1960, p. 18) considera que a liberdade “é apenas a direção no sentido da independência da determinação de um ato ou processo pelo lugar espacial e temporal de conteúdo determinanate”. Em outras palavras, a liberdade é justamente a independência do

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determinismo, da causalidade necessária condicionada por fatos pretéritos e regida por leis naturais. Deixar se determinar pela conjunção entre eventos anteriores e leis naturais não é ser livre. Deste modo, os seres humanos só são livres quando atuam devido a uma volição motivada, isto é, somos capazes de atuar com base em uma volição cujos projetos possuam uma conexão de sentido de acordo com suas motivações. Em outras palavras, as pessoas são livres quando são a última ratio do atuar. Motivar a volição é dar-lhe um fundamento. A fundamentação de uma volição tem lugar por meio da indicação dos calores que a guiam de acordo com uma ordem hierárquica de valores.

A premissa (d) é ‘o controle último é necessário para decidir e/ou atuar livremente’. Scheler não nega que haja níveis de liberdade e que até uma mesma pessoa ao longo de sua vida possa ter momentos mais ou menos livres. Tão pouco nega o determinismo na dimensão da natureza, biológica e, até mesmo, psíquica. Ocorre que estas são cadeias de eventos sobre as quais se sobrepõe a cadeia da liberdade, do atuar por deliberação, de maneira amecânica. Em verdade, esta última só pode surtir efeito por que conta com a regularidade das cadeias inferiores, mais mecânicas. De outro modo, uma pessoa só pode avaliar seus atos por que conta com a regularidade das leis físicas e biológicas. É devido à regularidade das leis naturais que sei que se empurro uma pessoa do alto de um edifício, ela se machucará e pode morrer; sei que todas as pessoas necessitam de ar, água, comida e sono e que, se as privo disto, as causas dano. Assim que é pela regularidade das leis naturais que se pode estimar as

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consequências das ações e pressentir os valores que estão por se realizar. Como diz Scheler (1960, p. 18), liberdade é sempre relação, em suas palavras: “Liberdade é a denomenoção para uma relação vivenciada da causalidade superior e mais amecânica com a inferior e mecânica”. A relação entre liberdade e causalidade não é um problema, mas uma condição de possibilidade da liberdade. É o que os partidários do determinismo não compreendem, a ideia de que todo o universo seja determinado e que só lhe corresponda liberdade a vontade humana.

Considerações finais

Por todo exposto, se conclui que Scheler está

mais próximo dos incompatibilistas libertaristas, por negar que o atuar humano seja determinado por acontecimentos anteriores combinados com as leis naturais. Ainda que compreenda que o determinismo cumpre um papel no exercício da liberdade, está longe de significar que os seres humanos são determinados (ou indeterminados), ou que o determinismo seja compatível com a liberdade. Somos livres e isto significa que podemos atuar segundo valores nos atos de preferir e postergar, amar e odiar.

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Segunda parte

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Primeiro Capítulo

Considerações acerca da crítica scheleriana dirigida a ética de Immanuel Kant

Rodrigo Lopes Figueiredo

O presente capítulo é resultado de um estudo

relativo à fenomenologia axiológica desenvolvida pelo filósofo Max Ferdinand Scheler (1874-1928) durante a sua trajetória intelectual. Centralizamos nossas reflexões na crítica scheleriana ao formalismo presente na ética de Immanuel Kant, na qual confrontamos as posições teóricas de ambos os pensadores, considerando as distinções relativas à sua formação intelectual, aos seus objetivos, ao contexto histórico vivenciado, mas também às possíveis semelhanças como abordaram os fenômenos da experiência.

Antes de abordar mais diretamente a questão relativa a crítica de Max Scheler a proposta ética kantiana, é importante atentarmos a algumas considerações preliminares: 1º ambos os filósofos tem formação filosófica distinta: enquanto o pensamento de Immanuel Kant tem suas bases derivadas do racionalismo cartesiano moderno a obra de Scheler parte da perspectiva fenomenológica originada de Edmund Husserl; 2º o objetivo principal de Kant quando desenvolve os seus estudos relativos ao comportamento humano é a demonstração de um critério racional denominado princípio supremo da moralidade1, o qual independe de todo e qualquer

1 O “imperativo categórico” é presente em Kant (2008), p.189.

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fenômeno empírico, já os estudos schelerianos abordam o comportamento partindo das condições objetivas destinadas a atingir os conteúdos vivenciados de modo ideal e afetivo pela pessoa; 3º devido ao referencial ético “emanado” do Imperativo categórico Kant não prioriza as situações subjetivas (manifestas na interação vivencial) enquanto alicerce constituinte de suporte para a constituição de valores morais, já Max Scheler concebe a necessidade de algum suporte objetivo concreto para que seja oportunizada a manifestação das vivências de percepção valorativa2, muito embora a experiência corporal empírica não seja por si só a condição de possibilidade para a ocorrência das vivências e 4º Ambos os filósofos transitam sua reflexão num nível a priori, ou seja, concebendo os fenômenos independente da necessidade de experimentação, prevenindo-se o relativismo absoluto. Cito:

A questão dos valores em Max Scheler está diretamente relacionada com a preocupação de fundamentar a ética. Com esse objetivo, sua abordagem parte do confronto direto com a ética kantiana. Apesar de considerá-la a melhor expressão filosófica das éticas propostas até então, não a considera suficientemente fundada, por depender de falsos pressupostos que comprometem suas conclusões. O equívoco fundamental da ética kantiana está configurado no que Scheler denomina formalismo, ao qual opõe a ética material fundada na objetividade dos valores” [...] “O termo “material”

2 Cf. A descrição do estado de vivência do pintor durante o exercício de criação, presente em Scheler (2004), p. 18-19.

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equivale a “objetivo”, isto é, que tem uma validade independente do sujeito, constituindo um mundo em si (COSTA, 1996, 42).

Como vemos a ética kantiana é questionada em

sua fundamentação, incorrendo num formalismo apartado da preocupação com os valores presentes na realidade objetiva. Na segunda seção da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant afirma o seguinte: “[...] quando se trata do valor moral, o que importa não é a ação, que a gente vê, mas aqueles princípios íntimos da mesma, que a gente não vê” (KANT, 2009, p.163). Este trecho nos mostra que a preocupação do filósofo não é com a realidade objetiva (constituída fora do agente moral) mas com os princípios presentes no interior do sujeito racional, os quais se configuram ao modo de intenções da vontade denominadas máximas. Diante de tais afirmações Max Scheler diria que os valores morais têm uma configuração independente da intenção dos sujeitos envolvidos na ação, caso contrário se incorreria numa espécie de subjetivismo, onde o sujeito é entendido enquanto “condição necessária” de ‘produção’ dos valores.

O próximo passo da crítica dirigida ao formalismo analisado tem em vista a conformação entre a máxima e a lei moral, tendo o Imperativo categórico como referencial que dirige a vontade no sentido de distinguir-se o que é ou não é de acordo com a moralidade. Surge (segundo Scheler) uma espécie de adequação formal, onde negligencia-se a materialidade dos valores, recaindo assim num vazio referencial.

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A configuração universal do Imperativo categórico é vista como um “combustível” que alimenta a discordância scheleriana em relação a fundamentação ética kantiana; cumpre-se a função de garantir a validade universal da ação realizada por dever, porém sem reconhecer concretamente a importância das virtudes morais; ao contrário, Kant lança uma espécie de desconfiança sobre toda e qualquer ação virtuosa, remetendo o valor moral ao cumprimento do dever pelo dever.

Na obra ‘Da reviravolta dos Valores’ Scheler destaca algumas virtudes3 que considera importantes, atacando o desvio operado pela burguesia moderna ao se referir a virtude em geral. Vejamos:

Quando os gregos acharam a virtude tão encantadora, a ponto de a estenderem em unidade para com a irresponsável beleza, com palavras como: ℰῡ ζην, ℰῡγενης, Καλλογαθια etc; o que estava implícito nesta atitude era que eles não degradaram a virtude como os filósofos da burguesia moderna, como por exemplo Kant. Nestes, a virtude se torna um mero efeito de uma vontade em consonância para com o dever, como se esta vontade jamais pudesse enobrecer os homens com virtude (SCHELER, 1994, p.21).

Contestando o utilitarismo ético, Kant

desqualifica a ação virtuosa ao dissocia-la da honra, do louvor e de qualquer outra compensação que denote merecimento decorrente; veja-se o trecho (KANT,

3 A humildade e a veneração são destacadas como virtudes cristãs (Cf. SCHELER, 1994, p.23-41).

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2009, p.119) em que o pensador se refere a alguém caridoso e desinteressado no sentido de vanglória ou proveito pessoal, mas que ainda assim à sua máxima falta o teor moral da conformação do dever. Já numa outra obra o pensador alemão define o que seja virtude: “O intento firme, feito prontidão, no seguimento do dever” (KANT, 1992, p. 52) e depois aplica ao homem dizendo: [...] “O homem acha-se virtuoso quando se sente consolidado em máximas de observância do seu dever” (KANT, 1992, p. 53); em resumo: a virtude é definida a partir da sua subordinação à noção de dever.

O problema indicado por Scheler quando se refere a Kant como aquele (incluído entre os ‘filósofos da burguesia moderna’) que contribuiu com a degradação da virtude, é que, ao desqualificar a ação virtuosa também se desqualifica a presença de virtudes presentes na vontade, esvaziando-se todo seu significado valorativo; é como se todo e qualquer valor virtuoso fosse “fabricado” em nome da subordinação ao princípio supremo da moralidade.

A configuração deontológica, alicerçada exclusivamente na noção do que é necessário e devido caracteriza uma visão normativa com forte tendência padronizante quando nos referimos a fundamentação moral; neste sentido merece destaque o papel fundamental atribuído a faculdade racional no sistema ético kantiano, a razão é a fonte que nos permite realizar avaliações, neste sentido toda consideração ou predicação valorativa provêm exclusivamente da sua constituição universal e necessária. Scheler discorda da fundamentação unívoca originada na faculdade racional, mostrando a necessidade do auxílio afetivo

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dos sentimentos e das emoções no sentido de ‘colocarmo-nos no lugar dos outros’ vivenciando as suas dores e alegrias, penetrando de modo mais acertado em sua história, independente dos “ditames formais” advindos de representações ou esquemas mentais que determinam o nosso comportamento no mundo.

De acordo com Scheler os valores são sentidos, independente da compreensão intelectual e dos “conteúdos cognitivos” representados na mente, tais parâmetros racionais nos levariam a julgar algo ou alguém (exclusivamente) a partir de parâmetros lógico racionais e os valores ultrapassam tal realidade. A qualidade valorativa de alguém é reconhecida a partir do auxílio da percepção emotiva e do sentimento ativado sob a forma de “simpatia”.

A fenomenologia scheleriana entende os sentimentos distintamente da compreensão kantiana: enquanto Kant considera o sentimento “[...] a capacidade de experimentar prazer ou desprazer numa representação subjetiva” (KANT, 2008, p.61; p.242), Max Scheler concebe os sentimentos enquanto atos intencionais puros, ou seja, configurados a priori, independentemente da ocorrência de eventos empíricos. Como exemplo temos a vergonha (associada ao pudor), sentimento considerado fundamental na constituição da moralidade, cuja função é proteger o indivíduo conduzindo-o a valores positivos acerca de si mesmo; segundo o pensador a vergonha é uma espécie de “agente regulador” e “distinguidor sexual”, cuja outra função é manter a individualidade resguardada da dissipação (Cf. SCHELER, 2004, p.12 -13; p. 23-33).

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Há uma espécie de intencionalidade valorativa vivenciada a priori, ou seja, independentemente da vivência empírica de uma situação; deste modo, não é preciso experimentar uma situação de violência urbana para saber que é condenável, perigosa, repugnante, neste sentido o estado emocional é precursor da representação racional, estando ligado ao direcionamento afetivo.

Diferentemente da fenomenologia scheleriana, Kant compreende os valores vinculados (primordialmente) ao sujeito dotado de autonomia em suas decisões, estando estas numa espécie de ‘reino de fins’ ordenados pelo Imperativo categórico, cuja referência ordena incondicionalmente a vontade de modo a não oportunizar que esteja centrada nela mesma por amor de si própria, pois aí constituiria uma ausência de autonomia moral.

Vejamos o que nos diz o próprio Kant: “Pois os seres racionais estão todos sob a lei <dizendo> que cada um deles jamais deve tratar a si mesmo e a todos os outros como meros meios, mas sempre ao mesmo tempo como fim em si mesmo” (KANT, 2009, p.259-261).

[...] No reino dos fins tudo tem ou bem um preço ou bem uma dignidade. O que tem preço, em seu lugar também se pode pôr outra coisa, enquanto equivalente; mas o que se eleva acima de todo preço, não permitindo, por conseguinte, qualquer equivalente, tem uma dignidade (KANT, 2009, p. 265).

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O que significa a expressão “reino dos fins” e porque se refere aos termos “preço” e “dignidade”? A expressão quer mostrar a necessidade e a importância do respeito dirigido a todo ser humano, reconhecendo o seu valor enquanto alguém dotado da mesma natureza racional, sendo, portanto, digno de ser distinguido de todo objeto cuja função é estar disponível ao uso como mera coisa; somente as coisas tem o destino de servir como instrumento de troca numa relação de negociação e interesse, derivando-se daí uma compreensão relativa e condicionada de valores. A pessoa capaz de reconhecer a dignidade em si e nos outros está acima de todo preço, constituindo-se a partir de valores absolutos e incondicionais, daí a autonomia da vontade kantiana constituída na obediência a lei moral e na impossibilidade da pessoa tornar-se um “meio para satisfação de um fim alheio”, instrumento de uso, perdendo assim o seu valor e dignidade de fim em si mesmo (a).

Como vemos, a consideração valorativa é bem distinta quando comparamos a filosofia dos pensadores em questão: vemos em Kant que a derivação do valor moral a partir da autonomia do sujeito ocorre mediante o cumprimento das exigências prescritas no Imperativo categórico; enquanto princípio formal “a priori” ele serviria também como um parâmetro regulador da vontade a fim de que, saindo de si mesma, não permaneça no ‘amor de si’ subjetivista, já que daí poderia resultar uma espécie de solipsismo onde o sujeito racional realizaria uma espécie de autonomia inautêntica ou melhor uma pseudo-autonomia da vontade, considerando-se “dono (a)” de um reino

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imoral, caracterizando uma inversão de valores deliberada.

Já com Scheler os valores têm um caráter qualitativo independente de toda e qualquer atribuição intelectual vinda do sujeito, sendo este considerado uma espécie de ‘nucleo sintetizador dos atos afetivos’, produzindo-se os valores na interação com os outros; como exemplo destas colocações vejamos o que nos diz em sua obra Da reviravolta dos valores:

[...] Uma amizade vivenciada por mim, um amor, uma ofensa, uma atitude geral de uma fase de minha infância em contraposição à minha intimidade tornam evidente o máximo de causalidade da ligação realizada entre os conteúdos das partes retiradas do visto, tal como se perfaz a posição da segunda forma de visualizar (sensações, representações, conclusões, juízos, atos de amor e ódio, humores, etc.) (SCHELER, 1994, p.44).

Os valores já estão dados, são produzidos ou

reconhecidos independentemente de um princípio ou regra racional que determine o que deve acontecer, ocorrem atos afetivos (que não dependem de uma reflexão prévia para virem à tona) conectados a valores correspondentes como correlatos, nesse sentido a consciência intencional não prevalece na determinação da vontade. A grande contribuição presente na obra scheleriana reside justamente na constatação de que os valores fogem ao horizonte intelectualista ora traçado por Edmund Husserl, embora conserve algumas noções cunhadas pela fenomenologia husserliana. Noções como ato e correlato, ato intencional, vivências

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puras, campo de vivências entre outras, estando inseridas na obra de Scheler porém sob a abordagem de uma intencionalidade valorativa vivenciada a priori como feeling, percepção emotiva sentida antes mesmo da compreensão racional.

Retornando à pauta crítica em questão, temos que: o conjunto da obra kantiana não reconheceu a importância dos valores, desprendendo-os da perspectiva intelectualista moderna devido ao desconhecimento da fenomenologia, surgida no fim do século XIX. Vejamos o que nos diz Costa acerca disso: [...] “Scheler atribuí o equívoco fundamental da filosofia kantiana em geral, e de sua ética em particular, a dois fatores, a saber: 1 – Sua atitude de conjunto em relação ao mundo” [...] “2 - “O desconhecimento por parte de Kant, da experiência fenomenológica, a única que lhe daria acesso ao a priori material constituído pelos valores” (COSTA, 1996, p.43).

A expressão “atitude de conjunto em relação ao mundo” refere-se ao modo como Kant propõe que se faça a apreensão dos fenômenos através do a priori” entendido enquanto uma espécie de ‘mecanismo de representação’ conformado racional e logicamente de forma idêntica em todos os homens. Neste sentido inclui-se também a dimensão ética, permeada por valores que fogem da configuração apriorística demonstrada na filosofia kantiana, segundo Max Scheler.

Quanto a segunda parte da referida citação, Kant é considerado um fruto do seu tempo, não avançando na reflexão sobre os valores devido ao desconhecimento da reflexão fenomenológica, cujo

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objetivo é o estudo das essências puras denominadas vivências intencionais; muito embora o pensador alemão tenha delimitado preliminarmente a possibilidade de acesso ao estudo dos fenômenos, ainda que no horizonte dicotômico permeado pela razão e a sensibilidade.

O formalismo presente no conjunto da obra kantiana e em particular na ética alicerçada no Imperativo categórico obscurece a compreensão do que seja ético devido a dois equívocos: 1º a equiparação entre bens e valores e 2º a compreensão dos valores derivados dos fins; de acordo com a presente crítica Kant desprezou a qualidade objetiva dos valores, centralizando o foco atribuidor de valor no sujeito racional, desconsiderando assim os elementos presentes na vida emocional. Os entes emotivos foram abordados em seus conteúdos ideais (“a priori”) como vivências significativas cujo funcionamento independe dos conteúdos logicamente organizados no processo cognitivo, deste modo a filosofia scheleriana nos mostra a possibilidade de uma ética material não subordinada aos eventos empíricos.

Mas o que seria esta materialidade valorativa estudada por Max Scheler?

Através do método fenomenológico herdado de Husserl o pensador alemão nos apresenta um estudo significativo em torno dos valores (considerados essenciais à compreensão da ética) denominados intuições afetivas, atos espirituais interligados a dois ‘sentidos dirigentes básicos’ – o amor e o ódio. A fim de melhor esclarecer o filósofo divide em cinco categorias valorativas ordenadas em função da

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intensidade e da durabilidade sentimental correspondente aos respectivos valores: 1º) O ponto de partida da escala valorativa refere-se aos valores sensíveis tais como o agradável/desagradável, gostoso/desgostoso, colorido/sem cor, etc. tais valores estão ligados ao corpo e as suas necessidades, estando presentes também nos animais. 2º) O segundo grau diz respeito aos valores de utilidade e inutilidade estando associados os estados sentimentais do sucesso e do fracasso. 3º) A terceira esfera de valores é a dos valores vitais, estando associados aos sentimentos de vitalidade, vivacidade e inaptidão ou desânimo; embora relativos à vida, não dependem do corpo e das condições físicas para manifestarem-se. 4º) Os valores do espírito ou da mente, são subdivididos em: a) valores estéticos – relativos a beleza e a feiura; b) valores jurídicos – relativos as noções de justo e injusto e c) os valores filosóficos – referentes as noções de verdade e falsidade. 5º) À última escala valorativa pertence os valores do sagrado e do profano, pertencentes exclusivamente ao ser humano e associados aos sentimentos religiosos tais como o arrependimento, a humildade, a veneração ou a oração, ligados a algum suporte material (líder religioso, objeto de devoção, animal considerado sagrado, etc.) ou imaterial.

E quanto aos valores do bem ou do mal, ou do bom e do mau presentes no contexto de reflexão da ética? Tais valores perpassam todos os demais valores citados, manifestando-se de acordo com dois sentidos intencionais gerais: a realização valorativa superior (que sinaliza para o amor, contendo consequências vivenciais benéficas, aglutinadoras e associativas) e a

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realização valorativa inferior, associada ao ódio e a todas as suas consequências valorativas negativas, maléficas e desagregadoras.

Como exemplo do sentido valorativo inferior temos a reflexão acerca do ressentimento presente na obra Da reviravolta dos Valores. Cito:

Tomemos sobre nós em seguida a tarefa de investigar o ressentimento enquanto uma tal unidade de vivência e resultado” [...] “O ressentimento é um revivenciar da emoção mesma – um sentir após um sentir de novo. Destarte, a palavra traz em si o fato da qualidade desta emoção ser um negativo, o que significa dizer, um movimento da hostilidade” [...] “Ressentimento é um envenenamento pessoal da alma, com causas e consequências bem determinadas. Ele é uma introjeção psíquica contínua, que através do exercício sistemático de recalcamento de descargas desperta certos movimentos internos e afecções” [...] “bem como uma série de introjeções contínuas sob a forma de ilusões de valor, que trazem como consequência os juízos de valor. Os movimentos internos e afecções que, em primeiro lugar tomaremos para análise, são: sentimento e impulso de vingança, ódio, maldade, inveja, cobiça, malícia” (SCHELER, 1994, p. 45; p.48).

Diante dos valores intuídos a que temos acesso

tomamos as nossas decisões; independente dos fins visados pela determinação de imperativos (tal como afirma Kant), realizamos um ato de preferência, priorizando o (s) valor (es) que se nos manifesta mais urgente no momento em que vivenciamos.

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Scheler adverte, contudo, que é possível que ocorram erros ou ilusões presentes em nossos estados emocionais, produzindo-se uma espécie de inversão de valores onde se preferem atos de cunho nocivo tais como o ressentimento e o rancor associados a vingança dirigida a alguém que pretendemos punir por motivação de interesse na “justiça”, realizando assim, a ‘justiça’ com a próprias mãos. Neste caso o valor da justiça é confundido com a ira e a vingança, produzindo-se a injustiça por consequência.

Quando acontecem as comparações entre as pessoas ou sociedades pode ocorrer a competição oportunizando-se a manifestação de vivências emocionais negativas para si e para os outros, isto ocorre devido a tentativa de provar que se tem mais valor do que realmente nos é necessário ao bom convívio social. Surgem assim ambições, ressentimentos, a aversão e tantos outros sentimentos nocivos.

Diferentemente da proposta ética kantiana, em Scheler não há critério racional dirigente das vivências emocionais, presente na consciência de modo a regular as manifestações de valor negativos. O dever não tem força suficiente para determinar o que a vontade necessita ou não sentir ou reconhecer como valoroso.

Considerações finais

Como vemos, a fenomenologia scheleriana

parece haver destituído toda autoridade racional quando se refere ao modo como conduzimos as nossas escolhas; seu objetivo principal é demonstrar a

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materialidade das vivências afetivas interligadas aos valores correspondentes, sem, no entanto, considerar as condições empíricas como determinantes indispensáveis.

Diferentemente de Max Scheler, a proposta ética de Immanuel Kant exalta a estrutura “lógico – universal” da razão, mostrando a necessidade de um critério de moralidade denominado Imperativo categórico, cuja função é demonstrar a priori se a vontade é boa irrestritamente ou se está inclinada a satisfação de inclinações de cunho pessoal em vista da felicidade. Neste sentido verifica-se também se as máximas (intenções subjetivas da vontade) tem moralidade ou não.

O contraponto entre os dois posicionamentos filosóficos foi possível devido à discondância scheleriana dirigida ao formalismo presente na ética de Kant, atitude que manifestou uma nova abordagem acerca dos valores, até então subordinados a noção de fim e a obrigação prescrita pelo Imperativo categórico.

Tendo em vista o único propósito de semelhança de abordagem entre o posicionamento de ambos os filósofos: a manutenção da abordagem “apriorística” seria possível conciliar tais perspectivas? A conciliação parece impossível; porém, a complementaridade é um caminho interessante a se pensar. Referências COSTA, J. S. da. Max Scheler: o personalismo ético. São Paulo: Moderna, 1996.

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Brentano e Scheler em torno do a priori emocional

Vinicius Valero Pereira

Introdução

Franz Brentano, filósofo alemão nascido em

16.01.1838, em Marienberg, próximo de Boppard, às margens do Reno, publicou seu trabalho mais conhecido e estudado aos 36 anos, em meio a uma crise espiritual e profissional, que culminou com a sua renúncia à cátedra recém conquistada na universidade de Würzburg. Brentano assinou o prefácio do hoje clássico Psychologie vom empirischen Standpunkt [Psicologia do ponto de vista empírico]1, em Aschaffenburg, dia 7 de março de 1874. Em Munique, poucos meses depois, nascia Max Scheler, em 22 de agosto daquele ano. Quando Scheler completou seu doutorado na universidade de Iena, em 1899, e começa a lecionar na mesma universidade (1900 - 1906), Brentano já tinha se aposentado das atividades acadêmicas - não da filosofia - e se transferido para Florença. Werner Stark, editor da tradução inglesa de Wesen und Formen der Sympathie (SCHELER, 2017), apresentou a filosofia de Brentano como uma terceira via entre duas escolas antagônicas dominantes no tempo de formação de Scheler. Segundo Stark, a cena

1 A não ser que seja indicado o contrário, todas as traduções para o português foram realizadas pelo autor.

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intelectual da época estava repartida, por um lado, entre os neokantianos de Marburg, liderados por Hermann Cohen e, por outro, entre o utilitarismo britânico do muito “lido e apreciado”, John Stuart Mill (SCHELER, 2017, p. x).

Scheler conheceu a filosofia brentaniana diretamente e também mediado por Husserl e Stumpf. Para o que nos interessa, estudaremos um texto publicado por Brentano em 1889, Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis [Da origem do conhecimento moral], que teve um impacto significativo na teoria moral logo depois de sua publicação. Em suas aulas de ética (1908 - 1914), Husserl se refere ao livro como “Brentanos geniale Schrift” (HUSSERL, 1988, p.90). É idêntica a opinião de Ortega y Gasset, um “folleto genial” (PALACIOS apud BRENTANO, 2002). Segundo G. E. Moore (MOORE, 1976, p.176),2 tratava-se da melhor discussão sobre os fundamentos da ética até então. Roderick Chisholm (CHISHOLM, 1976, p.160)3 apontou sua pertinência sugestiva para a filosofia e a psicologia, e o discípulo e editor, Oskar Kraus, chegou

2 “This is a far better discussion of the most fundamental principles of ethics than any others with which I am acquainted. [...] In almost all points of in which he differs from any of the great historical systems, he is in the right; and he differs with regard to the most fundamentais points of moral philosophy”. 3 “Brentano’s theory of correct and incorrect emotion is based upon the analogy he believes to hold between what he calls the sphere of the intellect and the sphere of the emotions. What he has to say about this presumed analogy seems to me to be very important indeed. Even where his views are controversial, they are extraordinarily suggestive, not only for ethics, but also for the theory of preference and for philosophical psychology”.

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a dizer que o opúsculo representava o passo mais firme da ética desde a filosofia clássica grega (KRAUS, 1969, p. VII-VIII). Scheler estudou e citou este texto em sua obra mais importante, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik [O formalismo na ética e a ética material dos valores]. Nela é possível coletar diversas referências explícitas e implícitas à ética brentaniana. Como entendimento prévio, parece prudente a interpretação de Sergio Sánchez-Migallón (2010), tradutor espanhol do Formalismo na Ética, que reforçou o caráter ambíguo dessa relação filosófica: Scheler e Brentano possuem pontos em comum e pontos divergentes que devem ser exploradas sistematicamente, no âmbito de uma compreensão mais abrangente de suas respectivas ambiências filosóficas. No que se segue, exploraremos essa ambiguidade para ressaltar o que há de comum e diferente na noção de a priori e seu papel na ética dos dois filósofos.

O mérito de Brentano, segundo Scheler

Em Der Formalismus in der Ethik und die

materiale Wertethik [O formalismo na ética e a ética material dos valores], Scheler reconhece o mérito de Brentano ter sido o precursor de uma ética fundada no apriorismo emocional, uma característica crucial de sua própria teoria dos valores. Segundo Scheler, Kant estava certo em sustentar que as proposições éticas deve ser a priori, mas falhou em determinar o sentido correto desse a priori (SCHELER, 2000). No segundo capítulo da primeira parte do livro, intitulado

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“Formalismus und Apriorismus”, Brentano é mencionado em uma nota de rodapé, que está ligada à seguinte passagem:

Apenas uma anulação definitiva do velho preconceito de que a mente humana se esgota, de alguma forma, na oposição entre “razão” e sensibilidade” [Vernunft und Sinnlichkeit] ou que tudo deve se deixar colocar em uma ou outra, torna possível a construção de uma ética material a priori. Este dualismo absolutamente falso, que compele a negligenciar ou a interpretar equivocadamente toda uma região peculiar de atos, deve desaparecer, em todo caso, do limiar da filosofia. Fenomenologia do valor e fenomenologia da vida emocional devem ser vistos como um domínio de objetos e investigações autônomos, completamente independentes da lógica (SCHELER, 2000, p.83, grifo do autor).

A partir de uma crítica ao formalismo kantiano,

Scheler procura desconectar a noção de a priori da noção de “forma”, donatária da oposição básica entre razão e sensibilidade, responsável por ocultar a verdadeira natureza do conhecimento moral. A distinção entre razão e sensibilidade implica na consideração de que o a priori participa tão somente do primeiro domínio, separando-se de os sentimentos, vontades e emoções que pertencem à segunda esfera. O resultado é a formulação de uma “mitologia da atividade racional produtiva” [Mythologie der erzeugenden Verstandestätigkeiten], que não tem nada a ver com o verdadeiro apriorismo. Segundo Scheler, o apriorismo kantiano sofre, por influência de Hume, de um “erro básico do sensualismo” [gemeinsame

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Segundo Capítulo

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Grundirrtum des Sensualismus], a saber, pressupor que tudo o que é dado na intuição não é nada mais que um caos desordenado. Se, de um lado, existem os dados brutos fornecidos pelos sentidos, por outro, na reflexão dos conteúdos da experiência, percebemos que há unidade, organização e forma neles. Como essa forma não pode ser explicada segundo conexões internas nas próprias impressões, a proposição de uma função sintética ou formal do entendimento seria uma hipótese óbvia. Por isso, Scheler disse que a noção de natureza em Hume exige a noção kantiana de entendimento. No entanto, sem esse pressuposto do sensualismo, o a priori não precisaria ser interpretado como uma espécie de lei funcional de atividades sintéticas. Para Scheler, essa noção de a priori envolve, na verdade, uma atitude negativa contra o mundo [Haltung gegen die Welt], um “ódio do mundo” [Welthass], que é característico de toda a filosofia moderna, mas encontra em Kant sua expressão culminante. A interpretação da natureza como um “caos” a ser organizado, segundo Scheler, denota esse medo e o horror [Angst und Furcht] do mundo, cuja consequência é ver com hostilidade e desconfiança tudo o que é dado na intuição (SCHELER, 2000, p. 86).

A nota de rodapé que comenta a passagem citada acima, diz o seguinte:

No final, algo que não pode ser demonstrado aqui, o apriorismo do amor e do ódio é o último fundamento de todos os outros apriorismos, e com isso, o fundamento comum tanto do conhecimento a priori do ser, quanto da vontade a priori dos conteúdos. Nele, não em um “‘primado”, seja da

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“razão teórica”, seja da “prática”, as esferas da teoria e da prática encontram sua última conexão e unidade fenomenológicas. Franz Brentano já havia insinuado um pensamento semelhante (SCHELER, 2000, p. 83, n. 2, grifo do autor)4.

Se nestas linhas, o filósofo muniquense parece

reticente em atribuir à Brentano uma teoria do a priori emocional como à que ele mesmo advogou, essa interpretação volta a aparecer com clareza em A natureza da simpatia (SCHELER, 2017, p. 148)5. A semelhança estaria na tese comum de que o a priori emocional – que abre a possibilidade de uma fenomenologia dos valores -, é fundamento do a priori racional, algo impossível de ser pensado no contexto do formalismo kantiano. Na próxima seção, procuraremos

4 “Ja in letzter Linie ist - was hier nicht bewiesen werden kann - der Apriorismus des Liebens und Hassens sogar das letzte Fundament alles anderen Apriorismus, und damit das gemeinsame Fundament sowohl des apriorischen Seinserkennens, als des apriorischen Wollens von Inhalten. In ihm, nicht aber in einem ‘Primat’, sei es der ‘theoretischen’, sei es der ‘praktischen Vernunft’, finden die Sphären der Theorie und Praxis ihre letzte phänomenologische Verknüpfung und Einheit. Schon Franz Brentano hat einen ähnlichen Gedanken angedeutet”. 5 “It is the merit of Franz Brentano to have recognized that love and hatred are by nature acts, and acts of an elementary kind. He actually regards them as prior even to judgement itself. We are the more ready to stress this here because it is our conviction that this one small observation shows how vastly Brentano's insight into these matters transcends the misconceptions now prevailing in psychology, whereby love and hatred are successively assigned to the spheres of feeling, conation and affect, or construed as a medley of ingredients from all three”.

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entender como Brentano entende o domínio emocional e em que sentido ele é importante para determinar os princípios da ética [Erkenntnisprinzipien der Ethik]. Com isso, poderemos condições de avaliar até que ponto Brentano pode ser considerado um precursor de Scheler em relação à noção de a priori emocional.

Elementos de psicologia descritiva

No Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis,

Brentano pretendeu fundar a ética a partir de uma análise da origem de seus conceitos nucleares, levando em conta o papel essencial das emoções nesse processo e a validade universal de seus princípios, independentemente de qualquer autoridade extrínseca, como a família, a Igreja ou o Estado (BRENTANO, 1969, p. 9)6. O resultado deste projeto está em larga medida baseado na exploração de em um fato psíquico básico, a saber, a analogia que as emoções exibem com os juízos. É nela que Brentano encontra os meios para definir o bem, o mal e o melhor. Para ser devidamente compreendida, essa analogia deve ser explicada a partir da classificação tripartite dos

6 “[...] gibt es eine unabhängig von aller kirchlichen und politischen und überhaupt von aller sozialen Autorität durch die Natur selbst gelehrte sittliche Wahrheit? gibt es ein natürliches Sittengesetz in dem Sinne, daß es, seiner Natur nach allgemeingültig und unumstößlich, für die Menschen aller Orte und aller Zeiten, ja für alle Arten denkender und fühlender Wesen Geltung hat, und fällt seine Erkenntnis in das Bereich unserer psychischen Fähigkeiten?”

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fenômenos psíquicos, uma ideia central da psicologia de Brentano.

Classificação dos fenômenos psíquicos

A ideia de uma taxonomia dos fenômenos

psíquicos não pode prescindir de um critério objetivo, segundo o qual é possível reunir o que é igual e separar o que é diferente. (BRENTANO, 1971). Para que a classificação seja natural, ela deve corresponder ao que é dado na experiência dos próprios fenômenos estudados. Por isso, o critério de classificação utilizado por Brentano é a própria característica distintiva da consciência. No Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis, Brentano resume dessa maneira sua famosa tese da inexistência intencional:

O traço comum de tudo que é psíquico consiste nisso que frequentemente é nomeado consciência, uma expressão infelizmente muito ambígua; i.e., num comportamento subjetivo, numa relação intencional, como a designam, para algo que, talvez não seja real, mas ainda é dado internamente como objeto. Não há audição sem aquilo que é escutado, crença sem o crido, esperança sem o esperado, alegria sem algo com que se possa alegrar e assim por diante (BRENTANO, 1969, p. 16)7.

7 “Der gemeinsame Charakterzug alles Psychischen besteht in dem, was man häufig mit einem leider sehr mißverständlichen Ausdruck Bewußtsein genannt hat, d. h. in einem Subjektischen Verhalten, in einer, wie man sie bezeichnete, intentionalen Beziehung zu etwas, was vielleicht nicht wirklich, aber doch innerlich gegenständlich gegeben ist. Kein Hören ohne Gehörtes,

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Todo ato psíquico, portanto, exibe uma relação intencional que toma um objeto - real ou irreal8 - como conteúdo. Isso pode acontecer de diferentes modos, que correspondem às diferentes relações intencionais com que nos tornamos conscientes de um objeto. Organizando as diferenças intencionais básicas, Brentano distinguiu três classes psíquicas fundamentais [drei Grundklassen], a que podem ser reduzidos todos os fenômenos internos. A primeira classe é a representação [Vorstellung], a segunda o juízo [Urteil] e a terceira a emoção [Ge­müts­be­we­gung].

a. Representação: segundo Brentano, corresponde à ideia no sentido cartesiano. Se penso um homem, um animal ou um fantasma; o céu, o número três ou deus, em todos os casos, tenho uma representação de cada um desses objetos. Tudo o que meramente aparece à consciência é representação (BRENTANO, 1973, p.114)9, sejam intuições concretas de fenômenos sensíveis ou conceitos abstratos de fenômenos psíquicos

kein Glauben ohne Geglaubtes, kein Hoffen ohne Gehofftes, kein Streben ohne Erstrebtes, keine Freude ohne etwas, worüber man sich freut, und so im übrigen”. 8 Mais tarde, como é sabido, Brentano iria rejeitar a ideia de que irreais podem ser objetos do pensamento. Essa doutrina foi chamada de reísmo, ou seja, a admissão apenas de coisas reais como objetos do pensamento. 9 “[...] ich kann mich nicht besser ausdrücken als -, vorgestellt werden. Wie wir das Wort ‘vorstellen’ gebrauchen, ist ‘vorgestellt werden’ so viel wie ‘erscheinen’”.

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(BRENTANO, 1973, p.17)10. Na verdade, os próprios atos psíquicos se baseiam em representações. Por isso, representações são os atos psíquicos fundamentais, todos os demais as pressupõem, elas constituem os juízos, os desejos, aflições e alegrias; nada pode ser esperado nem temido, se não tiver sido representado (BRENTANO, 1973, p.112)11. “Servir de fundamento”, então, significa dizer que no âmbito psíquico, ou lidamos com representações ou com fenômenos construídos sobre elas (BRENTANO, 1973, p.120)12.

b. Juízos: segundo a teoria tradicional, um juízo é a junção de dois conceitos. Segundo Brentano, tal concepção não faz mais que distorcer a verdadeira natureza dessa classe de fenômenos, porque ideias podem ser combinadas e separadas conforme a conveniência, sem com isso resultar em um juízo. (BRENTANO, 1969, p.17). Por outro lado, existem juízos que prescindem totalmente de dois conceitos relacionados como sujeito e

10 “Sie [die Vorstellungen] umfaßt die konkret anschaulichen Vorstellungen, wie sie uns z. B. die Sinne bieten, ebenso wie die unanschaulichsten Begriffe”. 11 “Dieses Vorstellen bildet die Grundlage des Urteilens nicht bloss, sondern ebenso des Begehrens, sowie jedes anderen psychischen Aktes, nichts kann gehofft oder gefürchtet werden, wenn es nicht vorgestellt wird. So umfasst die gegebene Bestimmung alle eben angeführten Beispiele psychischer Phänomene und überhaupt alle zu diesem Gebiete gehörigen Erscheinungen”. 12 “Wir dürfen es demnach als eine unzweifelhaft richtige Bestimmung der psychischen Phänomene betrachten, daß sie entweder Vorstellungen sind, oder (in dem erläuterten Sinne) auf Vorstellungen als ihrer Grundlage beruhen”.

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predicado. O juízo “deus é justo” (Gott ist gerecht) combina o conceito de deus e o conceito de justo, mas a afirmação “há deus” (es gibt einen Gott), é um juízo que afirma apenas a existência de um conceito: deus. O que é essencial para a natureza dos juízos, na verdade, é a relação intencional adicional que está em jogo e que sustenta a diferença entre os juízos e as meras representações. Segundo Brentano, nos juízos se manifesta uma relação intencional adicional à mera representação, pois todo juízo consiste em um reconhecimento ou a rejeição (Anerkennung oder Verwerfen) do objeto julgado. Essa é, portanto, a natureza intencional típica da segunda classe de fenômenos internos (BRENTANO, 1973, p.17-18).

c. Emoções: a terceira classe de atos psíquicos compreende não apenas fenômenos como o prazer, a alegria ou o sofrimento, mas também os fenômenos da vontade, como, p.ex., o ato de escolher entre os fins e os meios (BRENTANO, 1973, p.18)13. Nesta classe de fenômenos, a atitude subjetiva básica exibida é uma relação de amor ou ódio, no sentido mais abrangente, com o objeto emotivo. Essa relação intencional é encontrada em todos os fenômenos emocionais e constitui o critério por meio do qual toda a classe pode ser distinguida.

Como se vê, o filósofo não aceitou a divisão clássica, segundo ele, retomado e estabelecido por

13 “den verwickeltsten Phänomenen der Wahl von Zweck und Mitteln”.

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Kant, entre pensamento, sentimento e vontade. No Psicologia do ponto de vista empírico, Brentano se concentrou, por um lado, em atacar as classificações tradicionais, através de uma crítica dos respectivos critérios de classificação, por outro, em defender sua posição, que afirma retomar a Descartes, contra as demais alternativas. Aqui, nos importa mais saber como o filósofo entendeu a relação analógica entre as classes psíquicas básicas, porque ela abre caminho para uma conceituação do bem e a apreensão de seu conhecimento.

Analogia entre juízos e emoções

A comparação entre as classes dos juízos e das

emoções abriu caminho para Brentano explorar a analogia exibida entre estes fenômenos, que se manifesta nas relações intencionais positivas e negativas básicas de cada uma. Nada parecido ocorre com as representações. Embora eu possa representar objetos opostos, como o preto e o branco, esse mesmo preto não pode ser representado como branco: “[...] ich kann aber nicht dasselbe Schwarz in entgegengesetzter Weise vorstellen” (BRENTANO, 1969, p.19). Posso formular um juízo verdadeiro e outro falso a respeito da cor preta; da mesma forma, posso amar ou odiar o branco, mas a cada vez, só tenho um único modo de representar cada uma destas cores. Os objetos da representação não aparecem segundo uma modulação positiva ou negativa, elas são neutras, são os modos básicos com que os objetos dados aparecem à consciência. Já no juízo e no amor: “Wir haben einen

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Gegensatz der intentionalen Beziehung” (BRENTANO, 1969, p.18).

Aqui estamos agora, no ponto onde os conceitos do bem e do mal, assim como do verdadeiro e do falso têm sua origem. Chamamos algo verdadeiro, quando a afirmação relacionada com ele está correta. Chamamos algo bom, quando o amor relacionado com ele está correto. O que é amado com amor correto, o que é digno de ser amado, é o bem no sentido mais amplo da palavra (BRENTANO, 1969, p.19)14.

A partir do esclarecimento das relações íntimas

entre as classes psíquicas básicas, Brentano construiu uma teoria do valor intrínseco, ou seja, do bem em si. Assim como dizemos que uma proposição é verdadeira, podemos falar em um amor verdadeiro, correto ou justo. O bem é definido, então, como o amor caracterizado como correto, o amor que é digno de ser amado15. De acordo com Brentano, é um preconceito característico do século XVIII admitir a existência de apenas um único e imperioso bem em si, para o qual toda ação deve se dirigir e todos os outros bens são

14 “Hier sind wir nun an der Stelle, wo die gesuchten Begriffe des Guten und Schlechten, ebenso wie die des Wahren und Falschen, ihren Ursprung nehmen. Wir nennen etwas wahr, wenn die darauf bezügliche Anerkennung richtig ist. Wir nennen etwas gut, wenn die darauf bezügliche Liebe richtig ist. Das mit richtiger Liebe zu Liebende, das Liebwerte, ist das Gute im weitesten Sinne des Wortes”. 15 Em Brentano, estamos sempre falando do ato psíquico, amar, que compreende necessariamente uma relação intencional com o objeto amado.

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meros meios ou bens secundários. Seria um absurdo, segundo ele, admitir que o mártir de suas convicções [der Märtyrer für seine Überzeugung], capaz de conscientemente se entregar aos suplícios da tortura, estaria motivado pelo alcance do maior prazer possível (BRENTANO, 1969, p.15). Podemos distinguir um juízo evidente de outro que é cego, para constatar que existe um modo superior e outro inferior de julgar, dos quais os juízos evidentes, como os da percepção interna, dão exemplos dos primeiros e os juízos cegos, como os da percepção externa, dão exemplo dos segundos. Nas emoções, essa distinção aparece na forma da admissão de uma esfera de valores inferiores e superiores. Assim, Brentano admite a existência de uma variedade de fins, tal como existem variadas condutas, artes e ciências (ARISTOTLE, 1995, p. 1729). O amor ao conhecimento, o amor à alegria e as próprias emoções corretas são exemplos de experiências empíricas do amor correto, que fornecem a origem do conceito de amor verdadeiro ou bem em si.

A partir disso, coloca-se o problema de escolher qual é o fim mais importante e último de todos. A qual fim devo aspirar? [Was soll ich erstreben?] Qual é o fim correto, qual o incorreto? [Welcher Zweck ist richtig, welcher unrichtig?] Segundo Brentano, estas são perguntas que desde Aristóteles (ARISTOTLE, 1995, p. 1729), delimitam o tema mais básico e importante da ética (BRENTANO, 1969, p.15). Para resolver esse problema, a definição e conhecido do que é melhor, Brentano utiliza mais uma vez a analogia entre juízos e emoções, mas agora de uma maneira que além de ressaltar a proporção de suas igualdades, aponta uma

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diferença essencial. Não dizemos um juízo é mais ou menos verdadeiro, dizemos, segundo o princípio de contradição, que ele é ou não é verdadeiro. Na classe das emoções não se passa da mesma maneira, porque constatamos pela experiência que amamos mais uma coisa e menos outra. Isso significa que o melhor precisa ser reconhecido por um ato emocional específico, que Brentano chamou preferência, e consiste na comparação e eleição do melhor entre dois bens.

Em linha com sua definição do bem, o melhor envolve a concepção de que algo é preferível quando é correto amá-lo com um amor maior, “[...] was mit Recht mehr geliebt werde” (BRENTANO, 1969, p.25-26). Melhor é o que é digno de ser preferido, digno de ser amado, por assim dizer, com mais “intensidade”. As aspas se justificam, porque, apesar dessa formulação em termos quantitativos, o filósofo se esforça para afastar a ideia de que a preferência seja a expressão de uma diferença numérica (BRENTANO, 1969, p.24). O fenômeno da preferência correta, segundo Brentano, pode ser analisado e com tal procedimento, casos de preferência caracterizada como correta podem ser extraídos na forma de juízos analíticos, ou seja, leis a priori da preferência, evidentes a partir dos conceitos. São estes casos de preferência que Scheler admitiu explicitamente, apesar de modificá-los, no contexto de sua axiologia, conforme se lê no Der Formalismus.

Scheler e Brentano contra o relativismo ético

A história da ética, segundo Scheler, presa à

oposição entre razão e sensibilidade, preconceito

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herdado dos gregos e intensificado na identificação do a priori e o formal, incluiu as emoções, volições e os fenômenos de amor e ódio na categoria da sensibilidade e, por isso, todos estes fenômenos foram excluídos de qualquer consideração a priori. As morais que procuraram uma alternativa na fundamentação empírica, reduziram-na a um subjetivismo emocional e relativismo éticos. Raramente a proposta de uma ética ao mesmo tempo a priori e emocional apareceu no limiar histórico (SCHELER, 2000, p. 260, grifo do autor)16 da filosofia. Estes dois elementos são justamente os que Brentano chamou atenção, no prefácio de Vom Ursprung, como diferenciais de sua doutrina, que leva em conta o papel essencial das emoções, sem se deixar cair no relativismo, pois pretende descobrir verdades morais de validade universal.

Por certo, nossa discussão não considerou uma série de detalhes importantes das filosofias de Max Scheler e Franz Brentano. No entanto, para cumprir o objetivo circunscrito, aproximar e comparar a noção de a priori nos dois filósofos, dos elementos levantados até aqui podemos extrair alguns resultados.

Brentano não fala em uma Ordo Amoris, como a que Scheler descreve, estabelecendo uma ordem de valores que torna possível toda lei ou decisão moral. No Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis, ele afirma que a

16 Für die Ethik hat dies zur Folge gehabt, dass sie sich in ihrer Geschichte entweder als absolute apriorische und dann rationale Ethik gestaltete, oder als relative empirische und emotionale Ethik. Ob es nicht eine absolute und emotionale Ethik geben könne und müsse, wurde kaum in Frage gezogen.

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esfera das emoções superiores foi completamente esquecida pelos filósofos, que admitiram para o homem apenas os prazeres alcançáveis pelos animais, um argumento já formulado por John Stuart Mill, no Utilitarianism, contra os filósofos morais de seu tempo. Na perspectiva brentaniana, sem a admissão de experiências emocionais superiores, não é possível desvelar a origem empírica do conceito do bem como valor intrínseco. Portanto, apesar de não ter realizado uma ordenação dos valores, Brentano admitiu a existência de uma graduação entre valores inferiores e superiores, algo que não encontra paralelo no âmbito dos juízos.

Scheler afirma, comentando a “logique du coeur” de Pascal, que há uma “intencionalidade emocional original” (SCHELER, 2000, p. 261, grifo do autor)17, que se dirige a um tipo peculiar de objetos, os valores. Na perspectiva de Brentano, de acordo com sua classificação tripartite, as emoções constituem o verdadeiro fundamento do conhecimento moral e não podem ser reduzidas nem às representações nem aos juízos. As emoções possuem um modo intencional próprio, capaz de ser reconhecido e diferenciado dos demais modos intencionais envolvidos na experiência psíquica total. Dessa forma, cumpre à psicologia descritiva fazer a análise dos elementos psíquicos emocionais e estabelecer a partir apenas de sua própria natureza intencional, as leis a priori do seu funcionamento. Assim como Scheler, Brentano rejeita completamente o imperativo categórico e a ética kantiana. No entanto, não há em Brentano, tal como há

17 “Es gibt ursprüngliches intentionales Fühlen”.

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em Scheler, uma crítica da noção kantiana de a priori em geral e do a priori emocional em específico. Por isso, se de um lado podemos falar que Brentano foi precursor em desenvolver uma teoria ética a partir de um domínio emocional próprio e independente da lógica, de outro, não podemos concordar que Brentano também tenha postulado uma relação de anterioridade e, portanto, fundamentação, do emocional sobre o judicativo e o representacional. Sem a admissão dessa prioridade, para Scheler, o âmbito próprio do emocional corre o risco de ser racionalizado e a verdadeira natureza da ética perdido. Scheler faz exatamente essa crítica à teoria brentaniana das representações, modo intencional básico incluído em todo e qualquer ato psíquico (SCHELER, 2000, p. 29)18.

Considerações finais

Enquanto Scheler reformulou a noção de a

priori, desvencilhando-o dos aspectos formais com que Kant a configurou, Brentano parece se manter inteiramente dentro do sentido kantiano. Por isso, embora ambos filósofos concordem em relação à necessidade de uma ética apriorística capaz de, ao mesmo tempo, superar o relativismo e apontar a natureza emocional dos valores, existe uma diferença de fundo aparentemente insuperável entre os dois.

18 “Wer dies verkennt, wie z. B. Franz Brentano, der jeden Akt des Begehrens auf einen Akt des Vorstellens fundiert sein lässt, intellektualisiert das Strebensleben, indem er es fälschlich nach Analogie des zweckhaften Wollens konstruiert”.

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Especialmente para a filosofia de Brentano, a comparação com a crítica ao apriorismo formal, traz à tona uma tensão intrínseca à psicologia descritiva. Para o filósofo, os juízos apodíticos da psicologia descritiva são verdadeiros a priori (BRENTANO, 1982). Ao mesmo tempo, ele sustenta o ponto de vista empírico e admite a experiência e apenas a experiência como sua guia e mestre. De fato, diferente de Scheler, Brentano não admite a existência de essências e a percepção de essências. Isso levanta a questão: como é possível tomar como base de um juízo absolutamente válido uma experiência que é sempre limitada em seu escopo? (DE BOER, 1977, p. 109). Para De Boer, a filosofia de Brentano encontra aqui um beco sem saída, que a filosofia de Husserl e Scheler resolveram com a doutrina da intuição de essências. São escassas as menções do próprio Brentano a essa tensão, mas é certo que ela não lhe passou despercebida (BRENTANO, 1969, p. 109). Já nas primeiras linhas do prefácio de sua obra clássica, ele avisa de forma enigmática, que seu ponto de vista empírico não é incompatível com uma “certa intuição ideal” [eine gewisse ideale Anschauung]. O sentido dessa intuição e como ela poderia ser concebida ao lado de uma recusa de uma percepção de essências é uma questão que ainda precisa ser devidamente explorada. Referências ARISTOTLE. The complete works of Aristotle: the revised Oxford translation. Edited by Jonathan Barnes. Princeton: Princeton University Press, 1995.

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Terceiro Capítulo

Apontamentos sobre a crítica fenomenológica de Max Scheler a ética kantiana e a

teoria da apreciação

Paulo Ricardo da Silva

Introdução O capítulo tem como intuito apontar, de

maneira resumida, à constituição do modelo ético na concepção fenomenológica de Max Scheler (1874-1928). O escrito se pautará em discutir as teorias que são consideradas insuficientes para explicar a origem do conceito de valor moral, focalizando, assim, a ética kantiana e a “teoria da apreciação” (Beurteilung), presentes na obra Ética: Nuevo ensayo de fundamentación de un personalismo ético (1913), mais especificamente na “seção quarta”, denominada La ética de los valores y la ética imperativa.

Scheler mostra, em seu trabalho como fenomenólogo, uma influente discussão e estudo sobre a ética, trabalho este que teve como motivação, a crítica das abordagens científicas ou formalistas introduzidas por Immanuel Kant (1724-1804) e depois desenvolvidas pelos neokantianos no final do século XIX e início do século XX. Scheler objetiva, como princípio de seu pensamento, uma formulação de um sistema que defenda a objetividade dos valores, divergindo de uma ética imperativa.

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Nosso filósofo vai assim discordar de Herbart (1776-1841), Adam Smith (1723-1790) e de Brentano (1838-1917), no tocante as fundamentações da natureza dos valores, afirmando a impossibilidade da explicação de uma axiológica pura baseada na teoria da apreciação, a qual intimamente ligada com um nominalismo nega a independência dos fenômenos éticos, sendo que os valores morais são dados em ou mediante uma apreciação, confundindo o valor como seu reconhecimento do valor. Apresenta ainda, que os valores são decorrentes do contingente obtidos por meio de um juízo, desinente de caráter relativo, sem valor universal e de intuições puras, decorrentes de leis psicológicas e de sentimentos associados à apreensão de valores, baseando-se em formalização a qual espera objetivar e submeter a leis o ato puro.

A fenomenologia na crítica a ética do dever

Scheler interessou-se pela fenomenologia e

apropriou-se das ideias nucleares das Investigações Lógicas (1901) de Husserl. Para Scheler, a fenomenologia era uma busca por essências, perscrutação baseada na "intuição eidética". Destarte, o conhecimento de qualquer categoria que fosse, residiria na experiência, sendo que também a ética deveria fundamentar-se na experiência; devendo resolver o problema sobre o que constitui a essência desta experiência que nos proporciona o saber moral e quais são seus elementos essenciais que contêm tal experiência. Scheler pergunta-se sobre qual classe de experiência proporciona material para o juízo quando

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julgamos uma ação como bom ou má, ou até mesmo antes da execução de um agir, ou quando julgo a conduta do próximo (Cf. SUANCES MARCOS, 1986).

Desde esta visada, Scheler se aproxima da eidética husserliana ao empreender uma investigação da essência do objeto que não se confunde com as dimensões empíricas e fatuais dadas pelas ciências. Suas teses fazem referência a um método estritamente fenomenológico na explicação dos fenômenos morais, uma vez que o “bem” e o “mal” são dados e considerados como fenômeno, isto é, que se manifestam na tomada afetiva intencional de um sujeito pessoal concreto (Cf. SÁNCHEZ-MIGALLÓN, 2006).

A compreensão que a fenomenologia trouxe para Scheler foi a possibilidade de um afastamento do idealismo transcendental de Kant em pelo menos dois aspectos significativos. No primeiro, o conhecimento do reino fenomenal não está mais limitado às aparências no espaço e no tempo, aparências das coisas incognoscíveis em si mesmas. Remove-se, considerando os termos kantianos, a variedade espaço-temporal e com ele todo o campo das aparências, deixando-nos, por assim dizer, em companhia das essências. A fenomenologia procura, assim, minar a dicotomia kantiana entre fenômenos e coisa em si (Cf. PERRIN, 1991).

Em segundo lugar, o alcance daquilo que é legitimamente a experiência se amplia consideravelmente. A experiência não é mais limitada ao conhecimento empírico das aparências, uma vez que o pensamento não está mais restrito ao implícito

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em tal experiência. Assim, em sua relação com a filosofia crítica de Kant, a fenomenologia oferece uma visão livre da cognição meramente empírica. Podemos facilmente ver que Scheler leu os primeiros trabalhos de Husserl e, mais especificamente, podemos ver como a fenomenologia é aplicada e ajudou a tentativa de fornecer uma base filosófica para a possibilidade de conhecimento material a priori.

Husserl afirma que através das experiências puras ou fenômenos e, com uma descrição cuidadosa e metódica desses fenômenos, pode-se legitimamente aspirar a um conhecimento de suas naturezas essenciais (HUSSERL, 2005). Pelo contrário, não faz diferença aqui se a coisa pretendida pela consciência é fictícia, ilusória, ou uma entidade real no espaço e no tempo. Todos são sujeitos igualmente legítimos para a investigação fenomenológica e todos, quando submetidos à intuição eidética, são capazes de serem conhecidos tal como realmente são (LANDGREBE, 1968).

O método que Edmund Husserl (1859-1938) ofereceu para a filosofia serviu como influência para Max Scheler. Este, por sua vez, dirige seus estudos a uma fenomenologia para o âmbito prático. Deste modo, passa realizar uma vasta investigação sobre o fenômeno no âmbito do valor moral e não no sentido da idealidade voltada para o conhecimento, como propunha Husserl. Realizando assim uma fenomenologia dos valores, voltando-se para uma explicação de uma intencionalidade dos sentimentos.

Assim como Husserl, Scheler via o estado da filosofia e da ciência no alvorecer do século XX com um

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viés crítico, apontando suas divergências e confusões metodológicas. No entanto, sua atenção voltava-se para o âmbito da condição humana, a qual o levou a interpretar os conflitos e incertezas que afligiam essas disciplinas contribuindo para uma crise mais primordial, que estava centrada em um na axiologia, a qual distorcia a visão do homem antes da formulação de qualquer teoria dada de conhecimento ou de qualquer ciência (PERRIN, 1991).

Sob influência de Husserl, Scheler escreveu sua habilitação à docência Die transzendentale und die psychologische Methode (1900), a qual foi publicada logo após a obra Prolegômenos a lógica pura (1900) de Husserl. Neste estudo, Scheler se opôs ao psicologismo, que para ele significava a alegação de que as disciplinas especificamente filosóficas são parte da psicologia, rejeitando assim a naturalização da lógica realizada pelos defensores psicologistas (Cf. KUSH, 1995).

O psicologismo foi uma intenção filosófica de estabelecer uma fundamentação de todo conhecimento baseada na experiência mental, isto é, nos estados subjetivos individuais. Postura que reduzia o conhecimento a um processo excepcionalmente empírico, natural e mental, não possibilitando o aspecto universal ao ato do conhecimento.

Na crítica ao psicologismo presente nas Investigações lógicas, Husserl insere uma análise da lógica que ele vai tornar evidente a independência da psicologia e de natureza a priori. Resultado esse que adentrou na polêmica com o psicologismo de sua época, que fazia derivar a da psicologia as normas logicas para o pensamento, como leis psíquicas causais.

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Desta forma, a redução da lógica aos critérios psicológicos, denota uma falta de conhecimento da idealidade, da apodicidade e da validade a priori, que caracterizam as leis lógicas, questões estas que não possuem fundamentação e explicação em uma vinculação com a natureza empírica e fática do psíquico. Mesmo que os princípios lógicos sejam apreendidos e conhecidos na consciência, aquilo que possuímos como consciente permanece no plano da idealidade, não podendo ser reduzido a atos psíquicos reais (Cf. ZAHAVI, 2015).

Observa-se pontos de convergência entre os dois pensadores, por exemplo, a busca pelas formas e essências dos objetos (não os reduzindo em seus aspectos naturais, empíricos e psicológicos, que não se mostravam suficientes para responder as questões filosóficas). Outro ponto que coincide com seus objetivos, foi a vivência (Erlebniss), visto que a fenomenologia só pode ser ciência descritiva daquilo que é dado na vivência. Scheler diverge de Husserl, uma vez o segundo era um lógico, influenciado pela meditação matemática, e preocupado nos desenvolvimentos de uma intencionalidade baseada em uma esfera lógica objetiva, e Scheler preocupava-se com os problemas acerca do homem, principalmente ligados aos valores, baseando-se em uma ética material e não formalista para os fundamentos da ética. Ainda mostrando a importância dos conhecimentos dos valores objetivos e não somente os valores formais.

A atitude hostil de Scheler em relação a uma visão naturalista levou-o a considerar a fenomenologia como uma aliada. Em suma, a tese de Scheler contém

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atos intencionais de sentimento, incluindo o sentimento de qualidades-valor, bem como atos de amar e odiar, que não são apropriadamente compreendidos como estados mentais subjetivos porque são governados por regras que não dependem mais do psicofísico.

Scheler argumenta que os atos de valor exibem uma legalidade tão válida em si mesma quanto a legalidade das relações lógicas. Esta legalidade não se baseia em generalizações extraídas da observação de fatos psicológicos. É uma legalidade a priori; e é essa estrutura a priori que faz dos sentimentos atos adequados à investigação fenomenológica (PERRIN, 1991). Mas, Scheler vai além para afirmar que a essência dada na experiência fenomenológica é, como tal, nem universal, nem particular. Apenas a relação com o objeto, em que a essencialidade faz a sua aparição, revela o seu significado como universal ou particular.

Para Scheler, uma ética fundada no conceito de dever, apoia-se nesse como sendo o principal fenômeno ético, impossibilitando-o de fazer uma justificativa do mundo efetivo do valor moral. Em vista disso, seu conteúdo deixa de ser um fato moral uma vez que se torna real como o conteúdo simples do dever por obrigação, ou seja, na medida em que um imperativo, um mandato, uma norma é cumprida por meio do comportamento.

Para Kant, o a priori seria expresso pela forma de um imperativo categórico, que poderia ser universalizável. No entanto, para Scheler essa concepção de a priori é abstrata e falha ao explicar a obrigação única que uma pessoa. O erro de Kant,

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segundo o nosso filósofo, é acreditar em um a priori pertencente exclusivamente no âmbito formal da razão (SCHELER, 2001). Pois, para Kant, a ética parte de critérios meramente formais, caracterizados pelo respeito à lei, impondo no agir humano a primazia de um atuar de acordo com um imperativo, o qual dependente da forma a priori da razão prática.

Por a priori, Scheler entende todas as unidades ideais de significação e todos os enunciados, que ao eliminar toda a posição de um sujeito que os pense ou de um objeto a qual poderiam ser aplicáveis, se dá como conteúdo de uma intuição imediata. Tal conteúdo desta intuição é um fenômeno e a intuição é uma de essências, ou seja, uma intuição fenomenológica.

Deste modo, Scheler propõe um apriorismo do sentimento ao lado do apriorismo do pensamento, ou seja, um a priori emotivo, o qual é um sentimento primário dos valores, essa concepção rompe com a falsa unidade entre o apriorismo e o racionalismo kantiano. Pois é em um domínio emocional, como nos atos de sentir, amar, odiar, etc., que se apresentam um conteúdo apriorístico que não advém do pensamento e que é independente da lógica e é próprio da ética.

Segundo sua filosofia, os valores não são aprendidos pela razão, como supõe Kant, a fenomenologia dos valores ou fenomenologia da vida emocional é um domínio de objetos e investigações inteiramente independente da lógica. Uma essência torna-se geral quando há sua manifestação idêntica através da diversidade de objetos. Os valores, segundo Scheler são essenciais desta classe e sua hierarquia

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apresenta uma conexão de essências. No entanto, as essências e suas conexões são dadas antes de todas as experiências, admitindo assim, uma ordem material apriorística que corresponde a “ordre du coeur” ou a “logique du coeur”, de Pascal. No entanto esta lógica do coração não consiste em uma flexibilidade da certeza do pensar para com as necessidades do coração e da alma, nem admite um olhar sentimental e postulado como situação na qual o entendimento não pode oferecer resposta alguma, mas sim considera que existe uma espécie de experiência cujos objetos são inteiramente inacessíveis a razão, para estes a razão é cega, no entanto esse tipo de experiência nos demonstra os objetos efetivos e a ordem eterna que existe entre eles, a saber, os valores e a ordem hierárquica entre eles (Cf. SUANCES MARCOS, 1986).

Pela oposição a Kant do primado do dever a respeito dos valores, Scheler chega uma objetividade axiológica. Para ele toda norma, todo imperativo, todo postulado, repousa em um ser independente, isto é, o ser dos valores. Estes são qualidades materiais, essenciais, alógicos, irredutíveis e irracionais, são fenômenos independentes da existência dos seres psíquicos. Os valores são qualidades e não relações, objetos independentes claramente distintos de todo processo de sua apreensão real.

Sendo assim, os valores podem ser identificados com a base de uma relação, no entanto não é relação, mas sim fatos objetivos. Scheler se opõe a opinião de que os valores são significação apreendidos pela razão. Pois é próprio da essência das qualidades de valor que sejam estados de sentimentos. Os sentimentos

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variáveis passam perante nossas apreciações e de seu material qualitativo, mas sem alterá-los. Com isso nosso filósofo tenta conciliar o fato da subjetividade e a variabilidade de nossas apreciações, com a objetividade e imutabilidade dos valores. Assim, por exemplo, na captação da beleza de um objeto, dirá Scheler, não apreendemos um sentimento, mas a matéria de valor que se encontra no objeto (Cf. SUANCES MARCOS, 1986).

Desse modo, pudemos perceber a oposição de Scheler a Kant, ao que competem as teorias dos valores. A visão do segundo estaria presa em um formalismo moral a qual não realizaria uma autêntica teoria moral. Para o primeiro, os valores precisam ser aprendidos por meio de uma intuição que seja a priori ligada ao sentimento considerando os atos experienciais do homem.

Para a filosofia de Kant, o dever, ou seja, a consciência de uma lei formal precede ao valor, enquanto para ele o valor que precede o dever. No entanto, na tese scheleriana o sentimento primordial do valor não está na consciência de uma lei, ou de um dever formal, mas sim no ato de aprovar, afirmar ou de preferir um conteúdo. Por esta razão considera a consciência do valor como sendo uma consciência material e objetiva. O que significa que os valores em si mesmo não possuem um caráter de lei e de imperativo, mas que são produtos matérias e objetivos que se encontram além do sentimento do valor (Cf. SUANCES MARCOS, 1986).

Podemos notar que Scheler se opõe à perspectiva moral kantiana, a qual realiza uma

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associação do formalismo da lei moral como sendo o verdadeiro valor. Scheler contesta isso monstrando que a lei moral, em um âmbito metodológico fenomenológico, existe como objetividade do valor apreendida por uma intuição imediata possibilitada por viés imediatamente emotivo. Nesta concepção, vê-se uma oposição ao formalismo moral de Kant e lógico de Husserl.

Kant toma a coisa em si quando fala sobre a materialidade da ética sendo uma ética baseada em bens e fins. Para Scheler, os valores são independentes dos bens; para que possa se realizar assim os valores dão-se de forma independentes de seus suportes, sendo possível o acesso aos valores sem relacioná-los a algo. Deste modo, valor como bem, mal, belo, etc., são materiais, objetivos e autônomos, sendo apreendidos por meio de uma percepção emocional pura, através desta sensibilidade, podemos acessar a um a priori axiológico.

A crítica de Scheler a teoria da apreciação

Scheler nos mostra, na obra Ética: Nuevo ensayo

de fundamentación de un personalismo ético (1913), a redução de todas as teorias dos valores em três categorias, sendo: 1) a teoria platônica do valor, a qual considera que o valor é independente das coisas, sendo uma entidade ideal; 2) Nominalismo ético, na qual o valor é vinculado a um âmbito relativo ao homem e fundado na subjetividade humana, a qual o bem e o mal são conceitos decorrentes de criação humana e por mais que estas se voltem a esfera dos valores, não

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podem ser considerados em sua essência. Scheler refuta esta noção, argumentando que o valor é preenchimento objetivo de uma intuição, e 3) a Teoria da apreciação a qual nega a independência dos valores éticos sendo que os valores devem se dar através de uma apreciação. Scheler rejeita esta teoria, afirmando sua insuficiência para realizar o desenvolvimento de uma teoria pura dos valores1.

Segundo Scheler, o conhecimento de qualquer classe tem como base a experiência; assim, também a ética deve ser fundada na experiência. Cabe, então, o questionamento sobre o problema acerca da definição do que constitui a essência desta experiência que proporciona o conhecimento moral e qual são os elementos essenciais que contêm tal experiência (bem como, a pergunta sobre qual é a classe de experiência que me proporciona o material para meu juízo, por exemplo, quando julgo uma ação como boa ou má, ou também quando julgo a conduta de um próximo).

Considerando a análise da proposição que forma o juízo, formulada verbalmente, Scheler adentra no objeto deste estudo pelas chamadas apreciações que não são distintas dos juízos na forma lógica, reduzindo a questão ao seguinte problema: Que classe de matéria seria constituída por fatos correspondentes a nossa apreciação? Como esta chega a nós? Quais seus fatores? Os fatos dados imediatamente que cumprem os predicados nas proposições tais como: “[...] esta ação é

1 Focaremos na crítica a essa teoria, uma vez que objetivamos considerar uma discussão sobre o valor como ato puro de caráter objetivo e essencial, não se enquadrando em leis de caráter psicológico e imperativo.

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seleta, vulgar, nobre, etc.” E de que modo estes fatos chegam até nós. No entanto, Scheler questiona sobre a dificuldade que existe na delimitação do conceito de fato, a saber, se por ventura não será todo fato uma construção de nosso espírito.

Mesmo deixando de lado a dificuldade que existe nesse conceito - isto é, se por acaso é ou não uma construção de nosso espírito – encontraremos dificuldades para quando nos referimos a essência dos fatos morais. Seja como for, o problema levantado em relação aos "fatos morais", não são os mesmos a respeito dos outros "fatos".

Para Scheler não importa quantas perguntas façamos para o mundo inteiro, parece que não devemos encontrar em nenhum lugar "fatos morais" de nenhum tipo. No entanto, "fatos morais" têm sido procurados em todos os lugares ao longo da história da filosofia. Scheler irá argumentar que um a priori material ou não formal surge na experiência, especificamente na experiência do valor. Desta forma, toda a experiência que tenho perante o mundo já é latente de valor. Um objeto quando percebido não traz apenas a sua cor, forma ou qualidade, carrega também em si, atributos como o de prazeroso, de belo, de mau ou de bom. Objetos da experiência são portadores de seus valores, por exemplo, quando deparamos diante de nós artefatos históricos, notamos que eles carregam valores culturais, ícones religiosos trazem consigo o seu valor do sacro. No entanto, o valor trazido pelo objeto não implica uma inerência deste ao objeto, assim como a cor não é inerente ao objeto, mas sim e dada no ato de percepção, a cor de uma pintura só é dada em ato de

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valorizar. O valor de um objeto é dado intuitivamente através de sua percepção, a apreensão do valor é a nossa relação mais original e primordial como mundo, um objeto tem valor para nós antes de ser percebido ou conhecido (Cf. SUANCES MARCOS, 1986).

Considerando isso, Scheler realiza uma crítica a Brentano impingindo a ele um erro em sua teoria do conhecimento moral, qualificando-a como teoria da apreciação. Esta teoria, também sustentada por Adam Smith e J. F. Herbart apresenta um parentesco com o nominalismo ao demonstrar que os valores morais são obtidos por meio de um juízo e que são incapazes de desenvolver uma teoria dos valores ou axiologia pura com valores independentes. Dessa forma:

Tiene su expresión en la afirmación de que la apreciación de un querer, de un obrar, etc., no encuentra en los actos un valor que esté puesto por sí mismo en ellos, ni tampoco tiene que regirse aquella apreciación por ese valor, sino que el valor moral está dado tan sólo en o mediante aquella apreciación, cuando no es producido por ella (SCHELER, 2001, p. 265-266).

Tal como daqui se deriva, ser valioso é algo dado

em um ato de juízo, ou seja, em um ato posterior e exterior à vivência emocional. É com base nesses atos judicativos de apreciação que obtemos os conceitos de "bom" e "mau". Scheler acredita ilustrar e apoiar sua descrição assinalando o paralelismo brentaniano, com a origem dos conceitos de “verdadeiro” e “falso”, apontando que estes conceitos são obtidos unicamente pela reflexão sobre o juízo afirmativo e negativo, e

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sendo assim, o bem e o mal são abstraídos pela reflexão sobre os atos da apreciação moral (Cf. SÁNCHEZ-MIGALLÓN, 2010).

Estes atos não acontecem arbitrariamente, nem por algo como uma “mecânica do apetecer”, mas sim se regem por leis as quais residem neles originariamente. E conforme certo apreciar é considerado correto e outro incorreto, a função da ética desde esta visão é mostrar as leis e os tipos de apreciação, bem como, investigar o “critério” ou “ideias” de acordo com as quais leis aquela apreciação se origina.

Scheler afirma que as ideias de Herbart, as quais reforçaria a teoria da apreciação, afirma que os processos psíquicos, como a emoção, precisam de um valor moral, segundo Herbart os valores morais devem ser rigorosamente buscados em sua gênese de acordo com as suas leis causais. Sendo assim, um sentimento determinado se converteria em sentimento de culpa quando eu me considerar culpado em uma apreciação, sem este juízo, o sentimento será um objeto completamente desprovido de valor.

Segundo Sánchez-Migallón (2010), Scheler aponta uma dupla confusão na Teoria da apreciação, a primeira referente à mediação dos dados, ou melhor, o modo de doação dos fenômenos, a qual consiste em confundir, os atos de vivência da vida psíquica com a vida psíquica vivida (SCHELER, 2001). Desta forma uma reflexividade é introduzida que implicará em um elemento judicativo, entendendo o conhecimento como um julgamento sobre o dado, negligenciando a doação original daquilo que é conhecido.

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Outra confusão, faz uma redução do âmbito da doação dos fenômenos, ao se referir-se a "la vida enterra vivida” (SCHELER, 2001, p. 288), na qual se encontram os valores em si mesmo, com os elementos residuais que sobram desta vida como objeto de percepção interior (ou - respectivamente - da memória imediata) a qual, após uma expressa abstenção dos atos emocionais das vivências.

Por meio dessas ambiguidades, pretende-se reduzir as vivências originais de valor para a atribuição de valores a certas vivências. Scheler indica a impossibilidade de encontramos o valor através desta investigação, pois no lugar de haver a redução dos valores da vivência a modos primitivos do estar dado, os quais se revelam na vivência de valor e que podem manifestar-se unicamente nelas pela essência, tentava-se fazer a recusa aos meros valores das vivências de valor, as quais se referem ao extrapsíquico, por exemplo, ao físico.

Desta forma, a vivência de doação do fenômeno nunca é o mesmo que o conjunto de fatores que a originam e Herbart acaba reconhecendo que apenas uma norma externa e agregada pode determinar uma vivência como valiosa (SCHELER, 2001).

O ato volitivo moral não é bom e nem mal, somente porque recai ou pode recair sobre ele uma apreciação correta ou incorreta. Mas sim ao contrário, ou seja, toda a apreciação deve cumprir-se nos ser dado da qualidade de valor a qual reside na relação desse ato volitivo (SCHELER, 2001). Por conseguinte, se o bem e o mal residissem apenas na esfera do julgamento e não houvesse fatos independentes da vida moral, ela

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poderia, em última instância, ser construída sobre qualquer tipo de vida moral fatual, uma "ideia" que nos agradasse.

Scheler afirma que no final a teoria da apreciação acaba negando a existência de fenômenos de valor independentes assemelhando-se ao nominalismo no que concerne o domínio axiológico, fazendo com que denominemos os valores morais como sendo resultados de comportamentos de acordo com o juízo.

Para Scheler, as leis de apreciação não podem ser admissíveis, pela razão de que não existem atos peculiares de apreciação. Pois atos desta categoria, tais como foram expostos por seus defensores, são julgamentos e, como tais não diferem de outros julgamentos. Portanto, por exemplo, no juízo “A é bom”, “A é belo”, a conexão entre sujeito e o predicado são os mesmos que a crença e a descrença na posição do julgamento, são os mesmos elementos quando julgamos “A é vermelho” ou “A é fácil”, a diferença reside no predicado (SCHELER, 2001).

A posição de Scheler difere, além disso, da doutrina supracitada, principalmente sob dois aspectos fundamentais. Primeiro, que a doação das qualidades de valor ocorre em experiências emocionais ou sentimentais; e segundo, que naquelas experiências algo é autenticamente dado. É a esse segundo aspecto que a teoria da apreciação é inconsistente mesmo como nominalismo autêntico. No entanto, mesmo por meio da existência de uma classe de atos de apreciação completamente diferentes daquele que julga, é necessário indicar quais são esses atos, para onde são

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direcionados e, acima de tudo, qual é a situação objetiva em que essa menção é cumprida (Cf. SÁNCHEZ-MIGALLÓN, 2010).

O caráter valioso de algo não se nos apresenta mediado por representações ou julgamentos, mas é em certos sentimentos que se dá um cumprimento prévio. A apreensão de valores precede todos os atos meramente representativos, por lei de essência e origem, e a evidência dessa apreensão é independente em toda a sua amplitude da evidência desses atos (Cf. SÁNCHEZ-MIGALLÓN, 2010).

Toda a teoria da apreciação baseia-se no pressuposto de que qualidades de valor não aparecem no campo das experiências emocionais; e como vimos esta é a tese basilar do pensamento de Scheler. Portanto, de acordo com este filósofo, os representantes desta teoria querem evitar a arbitrariedade axiológica e moral recorrendo a certas leis as quais determinam a correção ou incorreção das avaliações. Essas leis originaram-se nos próprios atos de apreciação, mas na verdade, elas acabam sendo normas externas ás próprias experiências psíquicas, de modo que continuam a ser concebidas como não referentes a qualquer valor.

Considerações finais

Pudemos ver que há uma discordância quanto à

concepção de valor moral na formulação kantiana do dever e na formulação da apreciação do valor. Depreendemos que, para Scheler, os valores estão em um âmbito a priori, o que é considerado a maior

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importância para a sua concepção de ética, uma vez que faz com que se distinga da moral kantiana. O lugar próprio de todo o a priori valioso e também da moral é a intuição do valor que está na “tomada” sentimental (isto é, no preferir, no apetecer e no odiar), assim como o conhecimento das conexões existentes entre os valores é o conhecimento moral.

Este conhecimento se efetua, mediante funções e atos específicos que são totalmente distintos do perceber e do pensar e que constituem o único acesso possível do mundo dos valores. Os valores e a hierarquia que lhes é própria não se manifestam através da percepção íntima ou da observação nas quais são dados psíquicos, mas sim em um intercâmbio vivo e sentimental em na execução da trajetória dos atos intencionais. Portanto, limitar-se ao horizonte da representação é cegar-se perante os valores.

Segundo Scheler, a vida moral é independente da esfera do juízo. Se o bem ou o mal residirem somente na esfera judicativa não haveria fatos independentes da vida moral, possibilitando que cada um faça uma ideia da vida moral que lhe fosse agradável e que não houvesse coincidência com os demais. No entanto, pode-se realizar um ato moral sem que recaia sobre ele nenhum juízo. Desta forma, para nosso filósofo, o juízo não faz e nem constitui nada, mas sim deteriora a vida moral. Segundo as palavras de Scheler os melhores são os que não sabem que são os melhores e não se atrevem a jugar.

Scheler sustentou que os valores podem mostrar-se em uma ordem objetiva a priori de relacionamentos que possua todo o necessário para

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uma ética rigorosamente fundamentada. Enquanto a teoria da apreciação levava em consideração a formal propriedades e relações entre os valores do tipo mencionado por Brentano, por exemplo, (a existência de um valor positivo é em si mesmo um valor positivo) sua análise de materiais de valores (não formais) e suas interligações a priori, é de muito maior originalidade e significado. Para Scheler, o mero saber não alcança o valor, o saber que acontece simplesmente segundo às leis do juízo acerca do bem e do mal não encontra seu cumprimento no valor sentimentalmente percebido.

Scheler realiza uma análise qualitativa fenomenológica que objetiva trazer as essências para a clareza e assim constatar suas características estruturais. Em vista disso, constrói uma análise fecunda da experiência moral, considerando toda a sua riqueza particular. Assim como Husserl, argumenta que as essências são diretamente intuídas através da "experiência fenomenológica" como uma verdade a priori é ainda influenciado pelo argumento de Husserl o qual demonstra que não apenas os universais existem e um sentido ideal, mas que eles se tornam objetos de conhecimento, uma vez que os atos mentais intencionais em relação a eles são cumpridos na intuição.

Referências HUSSERL, E. Investigações lógicas: Prolegômenos à lógica pura. Trad. Diogo Ferrer. Lisboa: CFUL. Coleção Phainomenon; Clássicos de Fenomenologia, 2005.

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Terceiro Capítulo

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Quarto Capítulo

A fenomenologia em conformidade com aspectos da filosofia de Max Scheler:

Apriorismo, amor e pessoa

Leila Rosibeli Klaus Introdução

A fenomenologia busca um fundamento seguro

para o conhecimento das coisas do mundo e para a própria filosofia. Iniciada por Husserl (1859-1938), ela baseia-se na investigação da resposta à questão: “Como é possível o ser humano conhecer objetos1?”. Na obra

1 A noção de objeto requer, desde já, uma explanação. De modo geral, o seu significado equivale ao de coisa. Ele é tudo aquilo pelo qual se deseja, o que se percebe ou no que se pensa. Entretanto, na filosofia, o objeto apresenta outra definição. Para Kant, o objeto é tido como fenômeno, isto é, é uma representação. Dessa forma, o conhecimento é o exercício de dar sentido ou representar o objeto perfeitamente pelo pensamento. Como se o sentido do objeto, que forneceria o conhecimento, é agora assegurado apenas pelo sujeito. Já na fenomenologia há uma pequena alteração na definição de objeto. O objeto empírico, fora da consciência do sujeito, possui sentido; contudo, o seu sentido só é acessível por meio do sujeito. Assim, os objetos existem na mente; eles são apreendidos intuitivamente fornecendo sentido ao mundo. Husserl difere o objeto empírico do noema. Este é o objeto intencional enquanto correlato da consciência; o objeto empírico passa a usufruir significância apenas na condição de noema (existente exclusivamente na consciência). Para Scheler, o objeto (Gegenstand) apresenta significância desde sempre, independentemente de um sujeito. Para que o sentido do objeto se faça compreensível, basta o ser humano intuí-lo. Esse objeto

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Investigações Lógicas (1900), o filósofo tentou pela primeira vez enfrentar essa indagação filosófica. Para isso, ele refutou as concepções empíricas e psicológicas da lógica, afirmando que a fenomenologia não poderia estar subordinada a nenhum tipo de saber proveniente da experiência concreta. Essa característica demarcou a virada transcendental na filosofia do autor introduzindo a fenomenologia enquanto uma disciplina pura. O resultado disso foi uma tomada de posição antinaturalista por parte da filosofia husserliana. A estrutura essencial da experiência fenomenológica2, na qual os objetos aparecem ao sujeito, não obedece às propriedades psicológicas empíricas. A resposta para a questão acima levantada apoiou-se na elaboração desta estrutura essencial que, por sua vez, não pode ser solucionada pelas ciências naturais, pois estas são responsáveis somente pelas estruturas causais da experiência. Dessa forma, não cabe às ciências naturais fornecer uma interpretação metafísica das coisas concretas, mas sim ao transcendentalismo. Este, na qualidade de um conceito

não é aquele objeto que é encontrado na esfera da vida possuindo uma utilidade ou um fim, mas sim o objeto que possui em si mesmo um sentido independente da relação que ele venha a ter com o ser humano. 2 Uma das estruturas essenciais da experiência fenomenológica é o noema, que consiste no significado que a experiência traz à consciência. Outra estrutura essencial é a noesis, que é encarregada de sintetizar os vários momentos e significados da experiência. Ela é flexível e conforme se altera, modificam-se as possibilidades de realidades. Se antes o ser humano tinha uma visão do que seria um avião ou o sabor do que parecia ser uma amora, agora ele experiencia a visão de um helicóptero e o sabor de uma framboesa.

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oposto ao naturalismo, refere-se a uma área da filosofia que diz respeito à consciência3.

A ideia que Husserl sustentou acerca da fenomenologia define a consciência enquanto o todo do ser humano responsável pela compreensão do sentido das coisas em geral. A virada transcendental, dessa maneira, reduziu o ser humano à consciência de algo. Independentemente do tipo de experiência fenomenológica que se vem a ter, o conhecimento dela obtido só pode ser processado pela consciência transcendental. Jamais o sistema nervoso sensorial, composto por neurônios e partes do cérebro envolvidas na percepção sensorial, poderia atingir o significado de uma experiência fenomenológica.

A fim de desprender todo o naturalismo dos princípios da fenomenologia, esta foi estabelecida como transcendente em relação à experiência ordinária. Uma caneta, por exemplo, existe fora da consciência na qualidade de objeto físico empírico; já na consciência, o que se experiencia da caneta é o fenômeno dela, quer dizer, se depreende da caneta o conteúdo material, formal e contextual. Uma pedra, como objeto da experiência fenomenológica, é imanente à consciência do ser humano; todo fenômeno é, sem redundância, intrínseco à consciência, ou seja, existe apenas na consciência.

Se o objetivo é obter uma experiência consciente com êxito, então é imprescindível a eliminação de todos os elementos que não pertencem a essa experiência. Esse processo de afastamento foi

3 Vale destacar que na análise da consciência o objeto é oposto à ideia de objeto como é tido na psicologia empírica.

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denominado, por Husserl, epoché. Ela é a tão mencionada redução fenomenológica transcendental, na qual se anulam todos os aspectos circunstanciais da experiência a fim de que permanecessem unicamente fenômenos conscientes que sejam aptos a responder a questões transcendentais, por exemplo, “como é possível conhecer algo?”. Fenômenos são, por princípio, conscientes e opostos ao objeto real e físico. Eles carregam consigo o significado de uma experiência fenomenológica. O ser humano ou o sujeito da experiência, que é exclusivamente ego, assimila o fenômeno reduzido na sua consciência. Por mais que a experiência dos nossos sentidos possa alterar a realidade, tão somente a consciência é qualificada para trazer sentido e significado ao ser humano. A experiência reduzida, que suprimiu o material acidental da realidade, ocorre no ser humano na medida em que este é ego puro4. Com outras palavras, o ser humano está distanciado de todas as partes que formam a sua existência natural e empírica. Nesse contexto fenomenológico, o ser humano é um espectador da própria experiência que realiza e, como ego, ele limpa as características contingentes da experiência efetuando a redução eidética, que abriga apenas categorias essenciais: a percepção, a memória, o desejo, etc. Estas são experiências completamente independentes da constituição empírica dos entes que as preenchem. Assim, a fenomenologia retira o que há de contingente nas coisas do mundo para alcançar somente o seu sentido mais autêntico. Ela trouxe um

4 O sentido de “puro” anula qualquer relação entre a experiência, o mundo circundante e o ser humano corpóreo.

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novo olhar para o mundo e para todos os seus constituintes, pois quando o ser humano experiencia algo, esta experiência é captada em todo o seu contexto. Dessa maneira, a experiência fenomenológica não divide ou separa partes, mas sim engloba toda a esfera do ser humano e do mundo. Entendimentos com aspectos puramente racionais e lógicos são deixados de lado a fim de possibilitar uma compreensão subjetiva de vivência.

A fenomenologia propõe uma visão na qual o mundo e o próprio ser humano aparecem em si mesmos totalmente compreensíveis. É como se a experiência fenomenológica fosse capaz de elucidar o que até então estava escondido pelas contingências e perturbações da vida. O ver fenomenológico clareia o sentido das coisas do mesmo modo que uma pedra preciosa, ao ser trabalhada, obtém uma aparência purificada e cristalina; e isso ocorre porque a fenomenologia traz compreensões diferentes das significações dadas pelas ciências e pelo senso comum. O núcleo da interpretação fenomenológica não é apenas o fenômeno, mas também a própria experiência tida. O ser humano, ao ter uma experiência visual, é capaz de descrever não só o objeto visto, mas também a própria experiência que está tendo. A fenomenologia concentra-se na compreensão do sentido da vida à medida que o ser humano experiencia o mundo. Isso significa que a orientação fenomenológica incide na experiência em si e não em objetos. Ao se ter uma experiência como escutar uma música, direciona-se a atenção para o que está sendo sentido e ouvido. Na condição de sujeito que experiencia algo, o ser humano

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faz com que a experiência (sempre consciente) revele fenômenos que apresentam um significado distinto da acepção encontrada na existência concreta. Na experiência da redução fenomenológica, é depurado o fenômeno a fim de alcançar a sua essência, retirando ou limpando o significado das contingências inerentes à materialidade.

Com a inauguração da fenomenologia determinou-se novas interpretações para as coisas físicas e para o ser humano. As materialidades físicas converteram-se em fenômenos conscientes e o ser humano transformou-se em ego puro ou sujeito transcendental. Essas novas concepções surgiram quando Husserl viu a necessidade de alterar o modo pelo qual os seres humanos enxergavam as coisas nos seus respectivos contextos da vida concreta e, portanto, a nova maneira removeu a postura natural do ser humano que não questionava a validade do conhecimento obtido da existência. A exigência de um novo método produziu um questionamento e uma dúvida da existência, culminando no rompimento da atitude natural. Com essa conduta inovadora, o ser humano passou a ser criador, ou seja, deixou de existir como mero espectador da vida empírica. Ao se questionar sobre os significados dados naturalmente, o ser humano possibilitou para si mesmo a experiência fenomenológica e, com essa nova forma de se relacionar com a realidade, passou a existir na qualidade de sujeito transcendental enquanto consciência pura. Atrelado a isso, emergiu na fenomenologia um outro conceito: a intencionalidade.

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A intencionalidade é responsável pelos significados das coisas que nos aparecem. Como um componente da consciência, ela é capaz de ler o sentido de algo no mundo. O conteúdo apreendido da existência não está no objeto, mas sim na consciência, pois a intencionalidade já traz consigo significações. O eidos ou a essência imutável das coisas é fornecido pela consciência através da intencionalidade, que se alicerça na experiência fenomenológica independentemente das unidades contingentes e empíricas: “a intencionalidade é caracterizada por sua independência da existência” (ZAHAVI, 2015, p. 32). Para a fenomenologia, é importante a vivência intencional5 e não a existência de algo fora da consciência. Com o intuito de conhecer as coisas no mundo e estabelecer um conhecimento seguro acerca delas, a consciência e os objetos intencionais formam o arcabouço indispensável na busca do saber de essência.

Husserl viu na fundamentação da fenomenologia o acesso ao conhecimento de essência, que exige uma relação entre sujeito transcendental e objeto percebido na consciência. Se na filosofia husserliana se evidencia o objeto enquanto correlato da consciência, então é admissível negar a existência dele? Não é imperativo que os objetos precisem existir fora da consciência do sujeito a fim de que se possa conhecê-los. Porém, essa independência para com a

5 Para Brentano, todos os fenômenos psíquicos possuem uma referência a um conteúdo ou uma direção a um objeto. Husserl inova esse conceito de referência a objetos situando-o fora da esfera psíquica. O significado de um objeto não está dirigido à esfera do biopsíquico, mas sim à consciência intencional.

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existência real dos objetos não significa negar as suas realidades empíricas. O que se pretendeu justificar com a fenomenologia é a independência da subjetividade transcendental no propósito de alcançar um saber indubitável. Por meio da consciência intencional é viabilizado o modo pelo qual as coisas e o mundo (como o entorno de referências das coisas) podem ser conhecidos independentemente da res extensa6.

O desenvolvimento de uma base irrefutável para a filosofia culminou com o estabelecimento da fenomenologia. No âmbito fenomenológico separou-se o campo do dado intencional e do domínio da transcendência. O domínio da transcendência diz respeito às coisas reais, isto é, se refere aos objetos fora da consciência transcendental. A consciência transcendental, por sua vez, possui uma acepção que é oposta à ideia de consciência do senso comum ou das ciências naturais. A transcendência dos objetos foi bem delimitada quando Husserl afirmou que “[...] só mediante uma redução, que também já queremos chamar redução fenomenológica, obtenho eu um dado (Gegebenheit) absoluto, que já nada oferece de transcendência” (HUSSERL, 2000, p. 70). Todo os aspectos transcendentes, como as proposições acerca de algo, carregam consigo conteúdos duvidosos e contingentes. O ser humano que não executa o método fenomenológico e que, por conseguinte, existe em conformidade com transcendências externas à consciência, nada possui de orientação que se enquadre na competência da gnosiologia (área da

6 Res extensa possui o sentido de coisa que não pensa, finita, dependente e material.

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filosofia preocupada com os princípios do conhecimento a partir do sujeito que adquire conhecimento). Por isso, se fez necessário colocar em questão o ser humano, as coisas e a realidade a fim de obter fenômenos puros ou puros conhecimentos com caráter do eu puro7. Como fator chave na aquisição de saber de essência, a intencionalidade, abstraindo todo e qualquer conteúdo transcendental, alcança o fenômeno próprio da fenomenologia que se baseia no dado absoluto e não nos dados transcendentes. O dado absoluto se refere à realidade objetiva e é captado não por meio do sujeito empírico, mas sim a partir do ver puro do ego transcendental. A inovação da fenomenologia na alçada filosófica caracterizou-se pelo princípio segundo o qual “o dado de um fenômeno reduzido é, em geral, um dado absoluto e indubitável”. (HUSSERL, 2000, p. 78). Foi considerado o objeto intencional em geral e não apenas sua singularidade, pois não só se visa isto ou aquilo de uma coisa, mas também seu aspecto geral no qual essa coisa está envolvida. Intuir o fenômeno na sua situação absoluta exige da redução fenomenológica a separação dele de todo o conteúdo transcendental. A intencionalidade se dirige a fenômenos em geral sempre visando às suas totalidades, com o objetivo de obter um conhecimento de essência que se opõe a um saber da ciência natural.

Na obra Investigações Lógicas, precisamente na quinta investigação, Husserl introduz

7 O eu puro, na qualidade de sujeito cognoscente, é destoante do eu que possui corpo e que é empírico. Ao passo que o eu puro é reduzido à unidade da consciência, ele é preenchido por vivências que são a junção de um ato intencional e de um objeto intencional.

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substancialmente a fenomenologia com a ideia de experiência intencional e experiência não intencional. A intencionalidade, como já se indicou acima, simboliza um critério basilar da consciência transcendental e marca um conceito predominante na fenomenologia. Os objetos que constituem o conhecimento absoluto são obrigatoriamente provenientes de atos intencionais. Incompatíveis com a intencionalidade e, consequentemente, com o conhecimento, encontram-se os atos emocionais e atos sentimentais. Estes atos não detém um objeto específico que poderia ser intuído pelo sujeito, pelo contrário, eles apenas representam estados psicológicos momentâneos. Husserl viu a experiência intencional como aquela determinada por atos objetivantes, os quais constituem objetos e estados de coisas. Os atos intencionais objetivantes dividem-se em representações e em juízos. As representações são objetivações de algo e os juízos são julgamentos sobre o estado de algo; ambos integram a objetivação da intencionalidade. Todavia, a objetivação torna-se complicada na experiência não intencional ou para atos emocionais e sentimentais, pois os sentimentos e as emoções são disposições subjetivas em relação a sensações físicas e psíquicas. Como seria possível encontrar o objeto de tais sentimentos e emoções? Husserl respondeu a essa questão dizendo que os atos emocionais não existem em modo independente; pelo contrário, estão ligados a atos representacionais e objetivantes. Logo, as sensações e os sentimentos não são atos em si mesmos e não realizam experiências

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intencionais por si só; eles pertencem aos atos intencionais.

Em face do que ficou dito, a fenomenologia, que teve sua estreia na filosofia husserliana, abriu horizontes para outros filósofos discutirem os fundamentos do conhecimento das coisas que são percebidas. A redução fenomenológica dentro da fenomenologia foi reinterpretada por pensadores subsequentes, como também foi a relação entre sujeito e objeto. A partir da perspectiva fenomenológica, autores contemporâneos ora se aproximam ora se distanciam da orientação iniciada por Husserl. Independentemente de discrepâncias filosóficas, algo é incontestável: no início do século XX a filosofia deixou de caracterizar-se exclusivamente pelo idealismo racional, no qual o ser humano era uma substância pensante. Simultaneamente, foi rompida a ideia empirista, que era dominada pelo raciocínio ou pela dedução lógica, e a noção do psicologismo, caracterizado filosoficamente como ciência dos atos psíquicos e com regras para o correto pensar. Sem se preocupar se o mundo que existe é verdadeiro ou falso, a investigação fenomenológica concentrou-se no modo como seria possível construir um conhecimento inatacável que servisse de base para a filosofia. Devido à fenomenologia, o conhecimento filosófico abandonou pressupostos teóricos para dar lugar à vivência da consciência do sujeito, que conhece e que está em relação com o mundo por meio da intencionalidade. A preocupação inicial de Husserl, ao desenvolver o método fenomenológico, baseava-se na procura de um sistema inquestionável que resultasse

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em conhecimento infalível para as coisas do mundo (ciências naturais). Essa nova maneira de fundamentar o conhecimento teve repercussão e outros filósofos investiram na fenomenologia como meio para compreender o sentido das coisas no mundo, da vida e do ser humano.

As mutações no interior da fenomenologia

A fenomenologia de Husserl, que instigou

filósofos subsequentes, sofreu reinterpretações no delineado traçado fenomenológico entre sujeito, experiência e objeto. Também foi alterado o sentido em si de sujeito e de objeto na estrutura fenomenológica. Dentre algumas das inovações fenomenológicas encontra-se a fundamentação de sujeito como possuidor de corpo na filosofia de Maurice Merleau-Ponty; e a caracterização hermenêutica de sujeito envolvido com o mundo na analítica existencial de Heidegger. Para Merleau-Ponty, o ser humano não é ego puro, mas sim corporal, em contato e atuando em um mundo. Na filosofia heideggeriana, o ser humano possui um mundo de significado no qual tem participação, não sendo somente um ente que pressupõe ou supõe uma realidade a partir de uma experiência transcendental e consciente. Com isso, deu-se a inauguração de uma fenomenologia da percepção e uma fenomenologia ontológica.

De um lado, a filosofia husserliana conquistou as terras francesas com o filósofo Merleau-Ponty (1908-1961). Ele reexaminou a fenomenologia primeira e com essa atitude elaborou a Fenomenologia da percepção,

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publicada em 1945. Foi a partir de Ideias II de Husserl que Merleau-Ponty defendeu a sua filosofia da percepção, que possui como pensamento central o corpo (Leib). Ao afirmar que o corpo não é material nem experiencial, Husserl transmitiu para a posterioridade o conceito de corpo como aquele imanente à consciência. Por isso, precisamente, o filósofo francês enunciou que o conhecimento das coisas é fundamentado no corpo; este é caracterizado como uma presença permanente e absoluta. No horizonte da Fenomenologia da percepção, o corpo não é somente um objeto externo ao sujeito, como também não é uma ferramenta apresentando alguma utilidade; ele é a estrutura pela qual todo o conhecimento do mundo é compreensível. Apesar da fenomenologia da percepção apresentar forte influência da fenomenologia transcendental, Merleau-Ponty construiu uma ideia de filosofia completamente diferente.

[...] Merleau-Ponty continua nessa via, aprofundando e desenvolvendo os insights de Husserl. Consequentemente, “o retorno aos fenômenos”, de Merleau-Ponty, que começa como uma descrição da integridade da percepção, rapidamente se transforma em uma fenomenologia do corpo e da autoexperiência corporal (CERBONE, 2012, p. 178-179).

A divergência entre a fenomenologia da

percepção e a experiência consciente baseia-se na concepção de que o ego puro não é o requisito no qual

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a experiência consciente é possível8. A objetivação do mundo deriva dessa experiência que já está situada em um mundo e não em um ego transcendental. O sujeito não está dissociado do mundo e o próprio mundo não é visto como o encontro das ciências naturais. Se para Husserl a epoché bastava para alcançar o conhecimento dos objetos no mundo, para Merleau-Ponty a redução fenomenológica é incapaz de excluir todos os aspectos existenciais da experiência. O ser humano existe em um mundo e, como tal, a sua percepção de uma experiência intencional está junto da condição de ser humano mundano. Não há um sujeito que se delimita em uma atividade de pensar, mas sim um ser existente que pode escolher agir e sentir. Diante disso, a intencionalidade não é consciente, é motora. O significado das coisas vem até o sujeito não por meios fisiológicos ou através de representações e juízos; contrariamente, o sentido das coisas de um mundo se relaciona com a consciência por intermédio do corpo.

8 O fato de a experiência perceptual vir antes de qualquer tipo de objetivação ou conhecimento não significa que ela pertence a uma espécie de ego transcendental; como também não quer dizer que ela dependa de uma descrição empirista. Reduzir a fenomenologia da percepção ao empirismo é o mesmo que submetê-la a padrões mecânicos e de causa e efeito. O empirismo negaria um ser humano por trás da percepção e assumiria somente que há sensações a partir de estímulos, liquidando a hipótese de haver um “quem” ou um “eu” corporal na base de toda percepção. Quando Merleau-Ponty nega o empirismo, ele também rebate contra o intelectualismo, porque este subtrai a percepção privilegiando o juízo. Assim, somente a fenomenologia da percepção respeita a experiência corporal enquanto premissa para obter o conhecimento das coisas em um mundo no qual o ser humano faz parte.

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A intencionalidade motora (pré-reflexiva) entra em contato com o mundo pelo corpo. O mundo se faz presente na experiência corporal, por isso o ser humano habita o mundo de maneira corporal. Devido à fenomenologia da percepção, a existência humana é o aglomerado de consciência, corpo e mundo.

De outro lado, a filosofia husserliana permaneceu na Alemanha e foi analisada pelo filósofo Heidegger (1889-1976), que escreveu uma das obras mais exploradas dentro e fora do ambiente filosófico. Ser e Tempo, de 1927, teve essa magnitude em virtude do convívio direto de Heidegger com Husserl durante o período de 1919 e 1923 na Universidade de Friburgo (Alemanha). Husserl viu na pessoa de Heidegger um potencial para que a sua própria filosofia do ego puro fosse adiante mesmo depois da sua morte. Desse modo, Husserl ofereceu o seu lugar de professor de filosofia a Heidegger. Porém, na visão de Husserl, Ser e Tempo passou longe de conter em si uma continuação da fenomenologia transcendental; além disso, para ele, a obra tratava apenas de uma filosofia da vida9. Assim, após a publicação de Ser e Tempo, Husserl se distanciou de Heidegger. Este, por sua vez, se limitou a escrever sobre o sentido do ser que, apesar de não seguir a fenomenologia husserliana, apresentou pelo menos um vestígio dela. Na tentativa de argumentar a respeito do que é ser qualquer coisa, Heidegger cria um vocabulário próprio com o objetivo de não carregar

9 A Lebensphilosophie (filosofia da vida) se detém no sentido da vida, da existência humana e no saber das coisas. Os primeiros filósofos que se destacaram nesse tipo de pensamento foram Nietzsche e Bergson.

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para a sua filosofia pressupostos já estabelecidos. É o mesmo que ocorre na fenomenologia husserliana, pois ao colocar a fenomenologia na posição de base para qualquer conhecimento, ela veta todo o tipo de saber já determinado.

No restante da filosofia de Heidegger encontram-se divergências em relação à fenomenologia do ego puro. A fenomenologia heideggeriana é marcadamente revelada na perspectiva da ação do ser humano e, como tal, qualificada de ontologia fundamental. Enquanto fenomenologia ontológica, ela se regula pelo aparecimento das coisas ao ser humano10. Ao se mostrarem, as coisas revelam o seu ser conforme se lida na vida prática com elas. Sem entrar nas minúcias da interpretação heideggeriana, já se percebe que “Heidegger enfaticamente rejeita a redução fenomenológica como o ponto de partida para a fenomenologia” (CERBONE, 2012, p. 72). Em Ser e Tempo, a compreensão do ser das coisas não é algo que se encontra no pensamento da experiência consciente, mas sim no dinamismo da ocupação humana. Por isso, a fenomenologia é marcada pela cotidianidade do ser humano, isto é, ela carrega um mundo que envolve o ser humano com significados. A intencionalidade acha-se, portanto, em um mundo no qual o sujeito existe. Ao contrário do significado intencional que se situa na consciência, o sentido dado pela intencionalidade é obtido na existência. Por consequência, a redução fenomenológica de Husserl não é compatível para

10 Na filosofia de Heidegger, o ser humano é intitulado de Dasein a fim de eliminar qualquer ideia antropológica ou biológica já conhecida.

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compreender o ser das coisas e do ser humano em um domínio existencial, porque ela separa o significado da existência do próprio meio existencial. Junto a isso, o ego puro obtém autoconsciência do tipo reflexiva exclusivamente na experiência consciente, formando juízos e crenças. Já o ser humano, que existe em um mundo de decisões práticas, atinge a consciência de si por meio da sua ação no mundo. Logo, a interpretação de Heidegger da fenomenologia husserliana transformou esta em uma fenomenologia existencial de cunho ontológico.

O legado fenomenológico de Husserl na fenomenologia de Scheler

Max Scheler (1874-1928) foi um filósofo que

percorreu diversas áreas da filosofia, entre elas, a ética e a antropologia filosófica. Seu interesse pela fenomenologia, que resultou na fundamentação de ambas as áreas da filosofia, foi propiciado no ano de 1901, momento em que ocorreu seu primeiro contato com Husserl. O assunto em comum foi a insatisfação de Scheler para com a filosofia kantiana, em especial com o conceito de intuição. Ele era a favor de estender os horizontes epistemológicos desse conceito, apelando não somente a processos sensíveis e formas lógicas, mas também a sentimentos e à existência do mundo em si. Dessa maneira, ele afirmou que “não se deseja ser anti-kantiano ou retroceder mais atrás de Kant, mas avançar além de onde foi deixado Kant” (SCHELER, 2001, p. 37, tradução nossa). Esse desconforto conceitual para com a filosofia kantiana

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causou uma curiosidade pelos princípios fenomenológicos de Husserl. A influência da filosofia husserliana foi notável no desenrolar do pensamento de Scheler; tanto foi que é visível, no prólogo da primeira edição alemã da Ética, o agradecimento que Scheler fez pelos importantes trabalhos de Husserl (SCHELER, 2001, p. 25).

Todavia, a fenomenologia husserliana não foi totalmente aceita no interior dos padrões da filosofia de Scheler. Da mesma maneira que Merleau-Ponty e Heidegger beberam da fonte husserliana e depois dela se afastaram, assim também fez Scheler. Existem divergências entre as abordagens fenomenológicas husserliana e scheleriana, que mostram como Husserl e Scheler apresentam posições totalmente diferentes para a análise intencional. Uma das divergências baseia-se no sentido do objeto. Husserl classificou o sentido do objeto como essencialmente noema, ou seja, o objeto possui sentido apenas por meio de uma consciência intencional; ao passo que, para Scheler, o objeto exterior a uma consciência dispõe de sentido por si mesmo, independente dessa consciência dos moldes husserlianos. Na concepção de Scheler, os objetos não fundam seus sentidos a partir de um processo mental (noema husserliano), mas já apresentam de antemão sentido e valor em si mesmos sem a doação de sentido por meio de uma entidade transcendental. O ser humano está envolto por esses objetos que possuem sentido próprio e que se referem a coisas exteriores, mas não é a consciência transcendental que doa sentido a essas coisas. Quando as coisas afetam o ser humano, elas estão totalmente dependentes da

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consciência de um sujeito para que usufruam sentido. Scheler sustentou, em contrapartida, a ideia de que as essências dos objetos em geral existem independentes do sujeito, mesmo que tais essências somente possam ser conhecidas quando há sujeitos.

Outra divergência entre os pensamentos dos filósofos é acerca da redução fenomenológica. Para Husserl, é suficiente para idear o mundo um ato de suspensão do julgamento da existência; julgamento esse que diz respeito ao conhecimento das ciências naturais. É necessário, de acordo com Husserl, suspender todo o juízo existencial até que o método fenomenológico garanta a validade das coisas e das próprias ciências naturais. No entanto, Scheler discordou dessa posição de suspender apenas o juízo existencial, porque para ele é fundamental tirar todo o aspecto de realidade. A realidade refere-se à vida biológica e psíquica, regida por estímulos, instintos e inteligência, nela as coisas não são apresentadas conforme suas essências, mas apenas como construtos mundanos de ordem vital. Nos moldes schelerianos, é preciso eliminar não só o julgamento, como também a realidade em si. De acordo com Scheler, a suspensão de Husserl não atinge as essências, de modo que as coisas percebidas na atitude natural permanecem as mesmas; o fator contingente das coisas perdura e o mundo das essências dessas coisas não é dado à consciência.

Mesmo a redução fenomenológica exprimindo significados distintos para cada pensador, ela apresentou-se como um método seguro de investigação. Para Husserl, a fenomenologia e sua epoché serviram para resolver o problema teórico das

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ciências naturais; Scheler, que se apoiou na fenomenologia husserliana, pretendeu esclarecer a questão antropológica1112. É notório a diferença de interpretação entre os autores acerca da redução fenomenológica na elaboração das ideias filosóficas; todavia, Husserl viabilizou um método seguro para todos os aqueles que escreveram no âmbito da Lebensphilosophie. Scheler reconhece o valor da redução fenomenológica quando diz: “Certamente não posso concordar no detalhe com a teoria desta redução em Husserl. No entanto, posso muito bem admitir que nela é pensado o ato que define própria e corretamente o espírito humano” (SCHELER, 2003, p. 50). Ainda que afirmem que desde o início Scheler foi infiel a Husserl (ARLT, 2008, p. 93), permanece incontestável que a fenomenologia instituída por este foi crucial a fim de que aquele pensasse uma ética e uma antropologia filosófica.

O apriorismo na filosofia de Scheler

Ficou dito que o objeto (Gegenstand) tem uma

natureza essencial que é autônoma em relação à consciência do sujeito transcendental. A essência ou o sentido do objeto é cognoscível somente através dos atos intuitivos. Isso implica dizer que o conhecimento

11 Husserl tentou encaminhar a fenomenologia no sentido de uma Lebenswelt em Ideias II, com o tema sobre o corpo, entretanto, esse fato torna-se irrelevante dado que Scheler nunca chegou a conhecer essa obra. 12 Se refere à questão elaborada em A Posição do Homem no Cosmos sobre o que é o ser humano e o que o tornaria único.

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das coisas não depende nem do processo cognitivo realizado na esfera vital (da realidade), nem de proposições e conceitos. A particularidade da fenomenologia scheleriana encontra-se nessa essencialidade independente que os objetos apresentam. Tal caracterização é vinculada pelo status a priori do conteúdo dos objetos. Eles contêm essência a priori desconectada das leis do entendimento, quer dizer, os objetos têm significados insubordinados às leis do conhecimento. Não se trata de um a priori transcendental kantiano; Scheler defendeu o conteúdo a priori dos objetos que obedece exclusivamente à experiência fenomenológica de atos intencionais. Longe de uma dependência, na qual o entendimento é que confere conteúdo a priori aos objetos, a intuição apriorística está dada em uma visão imediata e não por meio de juízos a um sujeito transcendental. A ideia kantiana de que a captação de essências a priori depende de um sujeito não continua na acepção scheleriana, pois a essência não é dada a partir de uma representação ou de uma sensação de um eu.

A filosofia de Scheler distingue-se da ideia de ego puro de Husserl e da concepção do a priori transcendental de Kant. Poderia admitir-se, a partir dessa distinção, que a explicação do apriorismo no pensamento filosófico de Scheler delimita um realismo? Não se pode responder prontamente a essa questão, pois teríamos que depurar o que é realismo em si e o que seria um realismo na perspectiva scheleriana. Uma investigação hermenêutica sobre o realismo tiraria o foco do apriorismo, que é um aspecto inovador da filosofia de Scheler. O que fica explícito é que a

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realidade (enquanto esfera vital biopsíquica) possui uma essência apriorística cognoscível. Submete-se ao ser humano a tarefa de conquistar o conhecimento dessa realidade, que já apresenta em si todo o saber que se pode querer obter. Na compreensão apriorística, Scheler estabeleceu os objetos como possuidores de conteúdo essencial por si mesmos; em contrapartida, Kant defendeu que o ser humano é responsável por colocar o conteúdo a priori nas coisas da realidade empírica. Para Scheler, não há uma razão que imprime o conteúdo dos objetos e não há um sujeito transcendental concedendo conhecimento. Apenas uma intuição dada em uma experiência fenomenológica é capaz de alcançar o conteúdo mesmo das coisas.

A posição filosófica de Scheler retirou o fundamento dos objetos e do ser humano do âmbito da consciência. Ao fazer isso, ele ultrapassou a relação entre sujeito e objeto da fenomenologia husserliana e dispensou a teoria do a priori transcendental de Kant. Ao situar a fenomenologia na estrutura entre ser humano e mundo, Scheler configura uma ordem a priori na qual ser humano e mundo são desprendidos da constituição de consciência pura. O mundo não é mais posse do sujeito como entendera Husserl, mas existe por si só e possui conteúdo a priori apartado de um sujeito transcendental. Uma grande diferença entre a fenomenologia husserliana e a fenomenologia scheleriana refere-se ao apriorismo. Quando Husserl definiu a fenomenologia, ele estabeleceu que o objeto, que é percebido fenomenologicamente, apenas é portador de sentido porque se apresenta à consciência

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transcendental. Todavia, Scheler viu o significado do ser humano e dos objetos à parte; e uma fenomenologia assim fundamentada possibilitou o acesso direto ao conteúdo a priori sem prescindir de um ego puro.

A aprioridade da essência dos objetos, do ser humano e do mundo se deve ao fato de ser uma estrutura do ser e não uma estrutura da mente (como era tida para Kant). Na obra O formalismo da ética e a ética material dos valores, Scheler expôs o desenvolvimento da experiência fenomenológica. Esta, por sua vez, sendo a priori, contém unidades de significado ideais e proposições que são dadas por si mesmas no conteúdo de uma intuição imediata. O conteúdo do objeto de uma intuição imediata é o fenômeno, diferentemente da aparência ou da aparição do objeto. A intuição imediata é necessariamente intuição de essência, ou seja, intuição fenomenológica na qual o intuído não é mediante imagens, tampouco através de símbolos. O intuído não é algo geral nem individual: “a essência do ‘vermelho’ está dada, por exemplo, tanto no conceito geral de ‘vermelho’ como em cada nuance perceptível desta cor” (SCHELER, Ética, p. 104, tradução nossa). Só a referência aos objetos, que manifesta uma essência, é que pode ser geral ou individual. Então, a essência do intuído pode ser geral quando aparece idêntica em múltiplos objetos e o intuído pode também ser a essência de um indivíduo.

Já a verdade das proposições a priori são independentes “de tudo o que pode ser observado, descrito e provado por experiência indutiva e, evidentemente, de tudo aquilo que pode ser explicado

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mediante causalidade” (SCHELER, Ética, p. 104, tradução nossa). Para Scheler, as essências e as experiências fenomenológicas são dadas antes de toda experiência empírica. No entanto, o a priori não está unido à proposição, mas encontra-se ao dado dos atos. Uma proposição só é verdadeira (ou falsa) quando encontrada junta aos atos de intuição fenomenológica. A essência de uma intuição não pode ser anulada por indução ou observação. As concepções naturais de mundo e de ciência podem, somente e unicamente, melhorar ou aperfeiçoar o conteúdo de uma experiência, mas quando isso ocorre essa experiência já não é mais fenomenológica. A experiência fenomenológica é oposta à experiência de concepção natural de mundo e oposta à concepção da ciência. A partir das propriedades que envolvem o apriorismo e, consequentemente, uma experiência fenomenológica, foi exigido uma estrutura diferente do sujeito transcendental, pois as essências não pertencem mais à consciência, mas aos objetos em si. Essa nova estrutura é a pessoa que, diferentemente de tudo que já se viu, sustenta uma essência baseada na realização de atos intencionais em um mundo de objetos com dados a priori.

O conceito de pessoa sob o âmbito da experiência fenomenológica

Tanto o apriorismo se destacou na filosofia de

Scheler, por representar uma compreensão original no campo fenomenológico, quanto o conceito de pessoa

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(Person)13. A experiência fenomenológica obteve outros caminhos e um deles foi na elaboração da ética, na qual a ideia de pessoa possuiu uma função fundamental. O primeiro desenvolvimento dessa ideia se deu na obra Ética (1913). Nela Scheler escreveu que “a existência da pessoa não é comparável à existência de alguma coisa” (SCHELER, 2002, p.273). Com isso se evidencia um dos predicados mais básicos acerca da pessoa: ela não é objeto empírico que apresentaria algum tipo de utilidade ou função prática. Ela também não é dividida em tipos ou categorias, mas sim representa o coletivo ou o ser humano em um todo. Frings14 assim a descreveu: “a pessoa é indiferente da raça, da cultura ou do status social (FRINGS, 1973, p. 273)”. A pessoa é o movimento do ser humano que age e atua no mundo e é responsável pela execução de atos mentais, volitivos e emocionais, por exemplo, amar, sentir, pensar, desejar, recordar, esperar, etc. Se ela é executadora de atos, então jamais pode ser tida como uma substância estática. Assim, a pessoa é o centro realizador, unitário e estruturador de atos intencionais, que se dirige a uma relação essencial com um objeto (Gegenstand) valioso por meio do amor.

13 Pretendeu-se expor o conceito de pessoa individual e não o de pessoa em sociedade. Desse modo, deixou-se de lado certas abordagens contidas em Ética, por exemplo, de pessoa coletiva, unidade social ou solidariedade. Entretanto, a exposição da pessoa individual não determina um etnocentrismo ou um individualismo, pois pessoa abarca a noção de ser humano em geral. Em suma, a ideia de pessoa tem como apoio a humanidade em sua totalidade. 14 Manfred Frings (1925-2008) foi um estudioso de filosofia, ele editou as Gesamtausgabe de Heidegger e trabalhos de Scheler.

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O amor como princípio ético da pessoa Scheler disse mais ou menos assim no início do

seu trabalho intitulado Ordo Amoris (1914-1916): a pessoa age de acordo com seus atos de amar e odiar (SCHELER, 2016, p.3). Esse pequeno ensaio foi escrito na mesma época em que ele redigiu a volumosa obra sobre a ética. Ambos os escritos trazem aspectos marcantes da filosofia scheleriana. Tais aspectos marcaram um pensamento filosófico diferente, que traduzem a pessoa como o ser humano que executa atos não por meio da razão, mas sim através de atos fundados a partir da ordem do coração. A fim de compreender o amor15 é necessário diferenciá-lo da simpatia. Para o filósofo, a simpatia segue tendências e impulsos e é um comportamento social; já o amor são atos executados pela pessoa e não implica um meio social. Toda forma de simpatia é um querer bem ou um querer mal que varia de acordo com o que se visualiza e isso ocorre, porque se está em posse de algo e se reage perante isto. Em contrapartida, o amor é um movimento16 que coloca o indivíduo numa dinâmica na qual ele pode escolher como vai agir, não se restringindo a uma coisa específica. Enquanto

15 O amor e o ódio são o ponto de partida para qualquer ato ou ação; e tudo que vale para o amor também vale inversamente para o ódio. 16 A definição de amor enquanto movimento remonta o eros platônico, que foi caracterizado pela mobilidade do indivíduo em direção das coisas belas e boas do mundo das ideias. Para Scheler, o amor é justamente essa flexibilidade rumo a valores mais altos da essência axiológica. Ao se tratar do ódio, o movimento é no sentido de valores mais baixos e negativos da ordem axiológica.

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princípio para toda e qualquer ação, o amor é responsável pelo agir moralmente; desse modo, ele volta-se a objetos (não coisas) valiosos tirando o que está por de trás da aparência e focando-se no valor essencial do objeto. Por isto, o amor é espontâneo, ele faz a pessoa agir de forma livre e não em virtude de uma coisa estática; ele vem antes da simpatia e fundamenta esta; ele é capaz de ver o que há de mais puro à medida que discerne o sentido a priori dos objetos.

O amor não se dirige a um puro valor, mas sim a objetos portadores de valores. Esses objetos individuais são concretos e, portanto, pertencem a todos os campos da realidade empírica. Dado que o valor faz parte da essência do objeto, então a ideia do apriorismo assegura sentido e valor intrínsecos aos objetos. Com outras palavras, o amor apenas descobre os valores que já são desde sempre partes a priori do objeto. Com isso, Scheler vê o amor como criador, pois ele desvenda (no sentido de tirar o que encobria) os valores que sempre já se encontravam nos objetos, mas que estavam inacessíveis. A partir do ato de preferência (ato cognoscível) o amor exibe os valores e a pessoa tem acesso ao conhecimento e, consequentemente, ao bem moral. Todos os objetos valiosos pertencem à alçada do amor e os objetos sem valor algum não são aptos a fundamentar uma ética regularizada mediante o amor. Logo, o que legitima a ética e o conhecimento dos objetos são, exclusivamente, os seus respectivos valores: “não são as coisas cognoscíveis e as suas propriedades que determinam e delimitam o seu mundo de valores, mas o seu mundo essencial de

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valores é que circunscreve e determina para ele17 o ser cognoscível e, do mar do ser, faz sobressair como que uma ilha” (SCHELER, 2016, p. 15). Ainda vale frisar, que o amor por ser ideal (no sentido de perfeito e não contingente) não deseja transformar nem os sentidos dos objetos nem os outros seres humanos. Uma vez que o amor não almeja uma utilidade do objeto ou dos seres humanos, o que importa nesses é o seu ser e não a mera capacidade prática.

Como Scheler fundamentou o amor ou como o amor se originou na pessoa? Essa questão conduz, mais uma vez, à ideia de apriorismo, pois o amor sempre existiu na pessoa, ele é originário e não originado por alguma outra coisa. Entretanto, mesmo o amor sendo a priori, ele ainda respeita à lei divina. Percebe-se nesse momento a influência do catolicismo na filosofia de Scheler18; as primeiras obras (que vão até mais ou menos o ano de 1922) são assinaladas pelo seu teísmo, porque concordam com um ordenamento divino. Segundo Scheler, “[...] o ordo amoris é o cerne da ordem mundana enquanto ordem divina. Nesta ordem do mundo encontra-se igualmente o homem. Encontra-se nela como o mais venerável e o mais livre servidor de Deus” (SCHELER, 2016, p. 15). A partir dessa lei divina o amor apresenta-se materializado no ser humano, mas ele não é definível, pelo contrário, o amor faz parte da categoria do que é intuitivo. Porém, para ele alcançar o

17 Lê-se “ele” com referência ao ser humano. 18 O pai de Scheler era protestante e a sua mãe judia, contudo, Scheler converte-se ao catolicismo e nele permanece até seus 47 anos. Após 1921ele se afasta do catolicismo e apresenta na sua filosofia não mais a ideia de uma divindade cristã.

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plano ontológico e se afastar da esfera fática é necessária a redução fenomenológica. Durante a sua permanência no plano real, o amor não precisa de um objeto o qual possa se dirigir, porque ele é apenas sentimento. Após a redução fenomenológica, no entanto, ele modifica-se do status de sentimentos para a condição de atos; voltado não mais às coisas sensíveis, mas sim à pessoa individual. De acordo com Scheler, o amor é:

[...] o ato primigénio, pelo qual um ente – sem deixar de ser este ente limitado – se abandona a si mesmo para, enquanto es intencionale, participar e ter parte noutro ente, mas de modo que eles não se tornem quaisquer partes reais um do outro. Por isso, o que chamamos “conhecer” – esta relação de ser – pressupõe sempre este ato originário: um abandonar-se a si e aos seus estados, os seus peculiares “conteúdos de consciência”, ou um transcende-los para, segundo a possibilidade, chegar e um contato vivencial com o mundo (SCHELER, 2016, p. 14).

De modo a entender a estrutura ontológica do

amor, Scheler a dividiu da seguinte maneira: 1) primeiramente e mais primitivamente há o plano vital do corpo orgânico do ser humano, que apresenta valores vitais (nobres, vulgares ou vis) e, por conseguinte, atos vitais (como o impulso sexual); 2) posteriormente encontra-se o plano psíquico que se caracteriza pelo “eu” e pelos valores espirituais, que dizem respeito aos atos psíquicos (valores de belo e de conhecimento natural); 3) finalmente, tem-se o plano

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espiritual, no qual se situa a pessoa com seus atos religiosos em direção a valores santos e sagrados. O ser humano pode movimentar-se entre esses graus ontológicos, mas ele apenas é denominado “pessoa” quando executa a redução fenomenológica e acessa o mundo das essências. Pode-se concluir que ontologicamente o amor é vital, psíquico ou espiritual e no sentido antropológico o amor pode possuir corpo, eu ou pessoa. Por fim, o ser humano nem sempre é somente pessoa, já que se move nessa sua constituição antropológica e ontológica. O amor faz parte do sistema fenomenológica de Scheler e, com isso, é a porta de entrada a atos intencionais que acessam os valores dos objetos. Na qualidade de puro ato ele transforma o ser humano em pessoa que somente pode ser caracterizada como executadora de atos intencionais e jamais ser concebida como substância, coisa ou razão.

A essência da pessoa não é nem racional nem um eu individual

Scheler é um filósofo que, como quase todos os

outros, bebeu de fontes passadas para construir sua própria fortaleza filosófica. Por isso, a edificação do seu pensamento, um tanto inovador, teve que considerar pressupostos anteriores a fim de respaldar princípios originais que fossem sólidos e consistentes. Foram abertos outros horizontes com a filosofia scheleriana a partir dos quais o ser humano “antes de ser um ens cogitans ou um em volens, é um ens amans” (SCHELER, 2016, p. 15). Essa passagem de Ordo Amoris não poderia

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explicitar melhor a ideia central de Scheler acerca da pessoa que habita todo humano. Porém, essa nova maneira romantizada der ver a essência do ser humano, enquanto ser que ama, foi de encontro com todos os conceitos filosóficos precedentes. Não obstante, essa oposição entre inovação e tradição não enfraqueceu a tese filosófica de Scheler, porque para contradizer noções passadas que são tão bem fundamentadas é imprescindível traçar argumentos não tanto plausíveis quanto coerentes. A experiência fenomenológica foi o método que trouxe credibilidade às inéditas compreensões de pessoa como ens amans, porque exclusivamente a partir da perspectiva fenomenológica é que pessoa foi resguardada por formar-se de atos intencionais e não de razão.

Negar a índole racional da pessoa permitiu, simultaneamente, acabar com a incerteza dos aspectos sentimentais e emocionais que pertencem a mesma ordem da razão. O amor e o ódio, contudo, correspondem a outro ordenamento: eles são fenômenos originários da pessoa e, como tal, movimentam ela em direção a valores de essência, sem que para isso a razão se faça presente. Scheler recorreu à Pascal a fim de demonstrar que o amor fundamenta a pessoa de modo tão procedente quanto os elementos de cunho racional:

A frase de Pascal expressa uma evidência da mais profunda significação – uma evidência que só na actualidade começa a surgir lentamente do entulho de equívocos: existe uma ordre du coeur, uma logique de coeur, uma mathématique du coeur tão rigorosa, tão objectiva, tão absoluta e inquebrantável como as

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proposições e as consequências da lógica dedutiva (SCHELER, 2016, p. 22).

Apesar do amor em si não ser conhecimento, ele

conduz os atos que levam ao conhecimento, por exemplo, o ato de preferir algo. Contudo, vale destacar nesse sentido, que o ato de respeitar algo tem uma natureza oposta à da preferência. Respeitar algo ou alguém demanda um juízo ou uma base racional que apreende previamente e mediante um critério racional o valor de algo; e como já se indicou anteriormente, Scheler rejeitou qualquer interpretação racionalista do amor. Este por ser originário não precisa um mediador lógico-racional prévio ao valor em si. Na visão de Pintor Ramos19 o amor na abordagem scheleriana é aquele que

[...] pertence a uma ordem distinta do racional e não tem nenhum sentido querer medi-lo com as leis da lógica racional. O amor vê as coisas, vê todo um compartimento da realidade para a qual a razão é completamente cega. Nos atos do amor existe uma evidência própria que não de pode levar ao plano da lógica racional (PINTOR RAMOS, 1978, p. 244-245).

A pessoa é agir e atuar por meio do amor e de

maneira alguma a razão ganha espaço nessa caracterização. À medida que o ser humano carrega em si o aspecto antropológico de pessoa, ele possui um valor por si mesmo e é portador de valores. O ser humano é o ápice de todos os valores na hierarquia de

19 Antonio Pintor Ramos é professor de história da filosofia moderna e contemporânea na faculdade de filosofia da Universidade de Salamanca (Espanha).

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quatro categorias tomadas da inferior à superior: valores sensíveis (agradável, desagradável; correspondem aos sentidos de prazer e dor); valores vitais (antítese de nobre e vulgar); valores espirituais (estéticos do belo e do feio, jurídicos do justo e do injusto e lógicos do verdadeiro e do falso); a última categoria e a mais superior é dos valores religiosos (antítese de sagrado e profano). Dizer que o ser humano é um valor único em si, significa que ele é o topo da hierarquia na axiologia dos valores, porque sem ele os outros valores permaneceriam na escuridão e no anonimato. A partir do momento em que o ser humano é preenchido pelo ser valioso da pessoa, ele passa a ser descobridor do mundo ideal dos valores20. A pessoa proporciona isso ao ser humano, porque a sua essência intuitiva age impulsionada pelo amor até os atos mais superiores e, consequentemente, até os valores mais elevados. Sob esse horizonte fenomenológico, a ética scheleriana não abriu espaço para predicados racionais ao delimitar a essência da pessoa. Uma determinação racional causaria a submissão da essência da pessoa a certas leis lógicas e construtos ônticos. Além disso, uma ética com bases racionais apresenta uma ausência de autonomia da pessoa em virtude da pura autonomia da razão. Uma vez que Scheler expôs em seu pensamento filosófico uma aversão a fundamentos racionais, é plausível afirmar que uma ética do tipo

20 Os valores possuem objetividade imutável e são independentes do ser humano. Isto lembra outra vez o caráter a priori presente na filosofia de Scheler.

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kantiana foi insuficiente ao retratar a pessoa e a sua dignidade a partir da razão21.

Ligada a crítica do fundamento racional da pessoa, encontra-se a objeção de Scheler para com o conceito de pessoa como um eu individual. Um eu individual se determina pelo seu caráter psicofísico, que não possui um mundo de essências (Welt), mas sim uma realidade composta por estímulos vitais (Umwelt). O eu individual difere da pessoa, pois está imerso em um mundo exterior, da mesma forma que está um “tu” ou um “nós” ou qualquer organismo vivo. Arlt22 definiu exemplarmente o eu em oposição à pessoa quando sinalizou que a estrutura da pessoa se distancia “[...] por um hiato o Eu, o qual apenas tem o fundamento de sua existência em uma materialidade corporal, vinculado ao ambiente e em relação com o Tu” (ARLT, 2008, p.104). A tese de Scheler é que a pessoa executa atos, por exemplo, sentir, amar, odiar, etc; ao passo que o eu é a forma concreta nos quais se dão os atos. Como essencialmente ação ou realizadora de atos,

[...] a pessoa não é um vazio “ponto de partida” de atos, mas é o ser concreto sem o qual, quando se fala em atos, não se alcança nunca o modo de ser pleno e adequado de um ato, mas somente uma essência abstrata para passar a ser essência concreta, graças unicamente a sua associação com a essência desta ou

21 Ao criticar o utilitarismo, Kant (1724-1804) definiu em A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) a pessoa como ser racional que visa um fim em si na sua ação. 22 Gerhard Arlt é filósofo, psicólogo e teólogo. Estuda relações entre filosofia, psicologia e a antropologia filosófica.

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daquela pessoa. Nunca pode-se captar plena e adequadamente um ato concreto sem a intenção precedente da essência da pessoa mesma (SCHELER, 2001, p.514).

No entanto, a pessoa não é o ponto de partida

dos atos, ela é os atos em si mesma, pois “[...] certamente a pessoa existe e vive unicamente como ser realizador de atos e de nenhum modo se encontra ‘depois destes’ ou ‘sobre eles’, tampouco é algo que, como um ponto em repouso, estivera ‘por cima’ da realização e do curso de seus atos” (SCHELER, 2001, p. 515). Enquanto o eu individual pode ser igualado a um objeto de percepção interna, a pessoa e o ato nunca podem ser tidos como objetos. Mesmo que haja reflexão de um ato ou um saber obtido da execução de atos, o ato em si jamais é causa de objetivação. Se o ato não é objeto e a pessoa é essencialmente execução de atos, então, resulta daí que a pessoa jamais é objeto em si mesma e jamais pode ser produto de objetivação23. Dado que o ato não é delimitado pela percepção interna (mente), não se segue que ele deva ser enquadrado no âmbito físico. Não há a cisão entre o mental e o físico à Descartes, já que o ato e a pessoa estão alheios a essa perplexidade metafísica que tudo deve ser ou físico ou mental. A ideia de consciência compreendida no pensamento cartesiano foi, simultaneamente, criticada por Scheler, pois um

23 Scheler crítica a psicologia de Stumpf, pois para Scheler os atos não são objetos de estudo da psicologia. As funções estudas na psicologia pertencem ao eu individual e jamais referem-se à pessoa. Cf. Scheler (2001), p. 517, 518 e 519.

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representar que anteceda os atos de julgar, de amar, de sentir, etc, causa na mente de um sujeito a objetivação dos atos e a objetivação da própria pessoa. A consciência da pessoa, por conseguinte, difere da concepção de cogitare e rejeita a pressuposição de uma representação que anteceda os atos intencionais.

Na filosofia scheleriana a pessoa nada de semelhante possui com as características de um eu individual que remontam ao pensamento cartesiano ou a fundamentos psicológicos. Toda a distinção elaborada por Scheler buscou embasar a pessoa a partir de estruturas nas quais ela não seja passível de objetivação nem por ela mesma nem pelos outros; pelo contrário, a pessoa, desde sempre, apresenta uma essência que se encontra “na realização de atos intencionais” (SCHELER, 2001, p. 515). Ela não poderia ser estabelecida nos parâmetros da psicologia, porque a consciência, no modo como a psicologia a determina, pertence à percepção interna do sujeito; a pessoa jamais é caracterizada por fenômenos psíquicos, sejam eles internos ou externos. Qualquer função que possa ser objetivada, como eu individual e a corporeidade, mediante uma percepção interna afasta a ideia de pessoa realizadora de atos. A diferenciação que Scheler desenvolveu entre pessoa e eu individual teve como foco a sinalização de que “existe no homem um nível de fenômenos que estão por cima de qualquer tratamento próprio de uma ciência objetiva, e que a psicologia, como ciência empírica, tem uma série de limites que a impedem de oferecer uma imagem integral e adequada do ser íntimo do homem” (PINTOR RAMOS, 1978, p. 287). Além disso, ao

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Quarto Capítulo

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mostrar que a essência da pessoa é ato e não alguma coisa se aboliu a possibilidade de caracterizá-la como algo imóvel, visto que em sua origem amorosa a essência é desde sempre movimento.

Se antes a fenomenologia era marcadamente intenção de objetos, porque “cada ato de consciência, cada experiência é correlata com um objeto” (SOKOLOWSKI, 2004, p. 17); com Scheler, entretanto, a conceitualização de pessoa situa a fenomenologia para além da mera objetividade e mera temporalidade. A fenomenologia da pessoa encontra-se em “relação com” ou em convívio com o mundo, como membro individual de uma correlação que é instituída através de atos intencionais (amar, odiar, valorar, perceber, etc.). A relação da pessoa com o mundo, portanto, não é determinada através de constituição (transcendental), mas, antes, através de participação e interação (ARLT, 2008, p. 103). Acrescenta-se a isso uma efetividade material em um mundo de relações essenciais, na qual a pessoa apresenta identidade temporal. Porém, não é um tempo mundano, no qual os objetos sofrem mudanças percebendo a passagem temporal; tampouco é o tempo da física, que apresenta somente o presente sem passado e sem futuro, marcado por instrumentos. Portanto, Scheler estabeleceu com a pessoa uma forma de dar concretude aos atos e esta “[...] forma supratemporal se manifesta empiricamente, se atualiza fenomenicamente através dos atos” (PINTOR RAMOS, 1978, p. 294). A essência da pessoa, sob a ótica fenomenológica, está no próprio existir e viver de cada ato concreto e

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Studium

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[...] não devemos confundir pessoa e ato com qualquer coisa semelhante a um ego transcendental, substância da alma ou mônada. Além disso, a pessoa não pode ser reduzida a uma entidade ôntica em particular e, sobretudo, não pode ser reduzida a nenhum estado, função, disposição ou qualquer natureza psicológica ou biológica (HACKETT, 2014, p. 35).

Assim, no âmbito da fenomenologia, Scheler

caracterizou o ser humano a partir de princípios tais como a intencionalidade e a pessoa. Essa caracterização e esses princípios conduziram a ideia de ser humano a fundamentos puramente filosóficos no interior da Antropologia filosófica. Desse modo, questões do tipo: qual área de estudo seria capaz de caracterizar o ser humano sem os pressupostos do cientificismo; como determinar o ser humano dada toda a sua diversidade cultural, social e política; ganham respaldo filosófico através da fenomenologia e da Antropologia filosófica. O conceito de pessoa torna-se crucial para a elaboração da ideia de ser humano concreto e, ao mesmo tempo, apresentando constituições metafísicas e fenomenológicas. Contudo, a filosofia de Scheler apenas se edificou dessa maneira a partir da apropriação de fundamentos husserlianos; a epoché fenomenológica foi determinante para consolidar o conceito de ser humano afastando-o de bases empíricas e científicas.

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Quinto Capítulo

A noção de pessoa em Max Scheler: Considerações introdutórias

Geder Paulo Friedrich Cominetti

Introdução

A fenomenologia é uma corrente de

pensamento contemporânea, cujo fundador – se assim pode-se chamar – é Edmund Husserl (1859-1938). A partir das noções fundamentais lançadas pelo projeto de Husserl, essa corrente de pensamento ganha novos adeptos que exploram diferentes linhas de pesquisa, todas elas com o fio condutor de reinterpretar a noção de homem esboçada pela história do pensamento ocidental. Max Scheler é um desses pensadores que, apoiando-se na fenomenologia de Husserl, originalmente traz à história da filosofia uma nova caracterização do homem, do humano. Como é de costume, ao ingressar no pensamento de um autor da filosofia, é preciso se familiarizar com os conceitos de sua filosofia, compreender o tema e o objeto de sua pesquisa, e perceber quais problemas o pensador almeja solucionar. Deste modo, para alcançar algumas noções básicas do conceito de “pessoa”, em Scheler, antes far-se-á um breve esforço em articular alguns dos conceitos indispensáveis àquela noção, esforço esse seguido de seu tracejo. Espera-se, com isso, trazer à tona uma primeira aproximação à sua filosofia.

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A filosofia de Max Scheler Na contramão da filosofia substancialista de

Aristóteles (384 a.c.-322 a.c.), Max Ferdinand Scheler (1874-1928) foi influenciado pelo pensamento de Dilthey (1833-1911) e de Nietzsche (1844-1900), muito embora funde mesmo suas noções filosóficas nas raízes da fenomenologia de Husserl (1859-1938). É no pensamento do “pai da fenomenologia” – Husserl – que Scheler encontra o conceito de ato puro, que suscita o aparecimento do “fenômeno”: o “encaixe” entre o consciente e o objeto da consciência. O ato puro, como ato humano que abraça ambos extremos (consciente e objeto da consciência), é o polo determinante do saber. O alcance deste momento de ligação entre ambos só é captado pela fenomenologia, mediante a “redução fenomenológica”, por isso, Scheler encontra, na fenomenologia, o método para “ir às coisas mesmas”, ou seja, para filosofar.

Em Scheler, a redução fenomenológica parte de um dado real, a percepção natural. Esta, oferece resistência aos impulsos do homem e fornece, portanto, informações de objetos cuja realidade não deve ser negada. A redução trabalha em cima desses dados, despindo-os daqueles impulsos ou apetites que tendem a dominar a realidade para encontrar sua “essência”, seu “valor”. O que é processado pela redução fenomenológica resulta como sendo estruturas eidéticas ou axiológicas dos objetos, dando ao reducionista a essência daqueles mesmos objetos. Com isso, ganha a filosofia de Scheler um ar contemplativo, já que a essência dos objetos é o valor

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Quinto Capítulo

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que eles possuem, valores agora despidos dos impulsos e apetites do ato de consciência.

Vale esclarecer que os impulsos e apetites do ato consciente levam o homem a produzir ciência, diferentemente da contemplação, que leva o homem a produzir filosofia1. A ciência visa técnica, domínio da natureza. Ela trabalha com imagens objetivas, expressas por meio de símbolos. A contemplação é um fim em si mesma e quer observar desinteressadamente os fenômenos produzidos no homem. O saber das essências fica alocado neste setor da contemplação, cujo objeto é o reino de unidades e proposições ideais a que Scheler, diferentemente de Kant (1724-1804), chama a priori.

O a priori, em Scheler, serve aos atos intelectuais e aos sentimentos, pois é objetivo, no sentido de que

1 A contraposição entre Scheler e Aristóteles que trazemos no início do capítulo não é gratuita. Quando Aristóteles registra sua compreensão do que vem a ser sua “Filosofia Primeira”, afirma que ela é a mais importante de todas as ciências porque é a que não se submete a nenhum fim específico. Ela vale em si e para si porque tem seu τελος em si própria. Assim, é uma ciência livre por excelência. “A metafísica [...] não nasce senão da admiração e do estupor que o homem experimenta diante das coisas: nasce, por isso, de um puro amor ao saber, da necessidade, radicada na natureza humana, de conhecer o porquê último; de fato, prescindindo de qualquer vantagem prática que tal saber possa trazer, o homem ama-o só por ele mesmo. A metafísica é, pois, ciência que tende exclusivamente a apaziguar essa exigência humana do puro conhecimento. Essa é a mais verdadeira e autêntica defesa e justificação da metafísica e, com ela, da filosofia em geral, pelo menos da filosofia classicamente entendida, que [...] é filosofia puramente especulativa, ou seja, contemplativa” (REALE, 2015, p. 31).

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pertence ao objeto dado à consciência. O a priori abre a estrutura essencial do todo ao mostrar sua dupla-face: o essencial e o valor. A filosofia, deste modo, é um saber a priori, porque é o saber das essências e dos valores. Quanto às essências, elas são os valores. Para entender-se como as essências são os valores, basta um exemplo ilustrativo: em uma bela estátua, a beleza é sua essência, já que é isso que a diferencia das demais. Portanto, o valor de determinada estátua está em sua essência, aquilo que faz ela ser o que ela é. A estátua é um fato cujo valor reside na sua beleza.

Os valores são qualidades ideais a priori que constituem um mundo à parte daquele mundo dos fatos. Mas, diferente de Platão (428/427 a.c. a 347 a.c.), este mundo de essências não está separado do homem, pois os valores, como essências, são a priori, isto é, tudo está no homem porque tudo se desenvolve no homem. Por outro lado, a aproximação com Platão também pode ser feita, uma vez que os valores acabam transcendendo os próprios objetos nos quais os reconhecemos2. Assim, os valores surgem nos atos intencionais; são fenômenos.

2 Em Platão, sabe-se que a ιδέα (Forma) é parte inerente do “sensível” ao mesmo tempo em que o transcende. Enquanto Forma, deve ser entendido como “essência” de algum objeto sensível de modo que um objeto qualquer só se faz como tal objeto por causa da essência da qual ele participa. Uma árvore não é a reunião de pequeninas partes da matéria nem dos elementos que a compõem, mas sim uma reunião de pequeninas partes da matéria sob a Forma de árvore, que é o que a caracteriza como tal. Ademais, essa Forma não se encontra “na” árvore, ou em uma árvore determinada, mas sim está presente e caracteriza toda e qualquer árvore que possa surgir. Portanto, a Forma de árvore é

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Quinto Capítulo

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Vê-se que Scheler se serve daquela concepção de “mundo” própria da fenomenologia: não o cosmos, ou a res extensa, mas um conjunto de sentido(s). Não obstante, não são valores objetivos, já que a intuição apreende uma realidade dada, e não uma realidade construída pelo homem. Os valores são eternos, não mudam ao longo da história, embora possam mudar as atitudes dos homens com relação a um mesmo valor.

Para Scheler, os valores são identificados pela intuição emocional. Não se tratam de valores racionais, como se percebe, mas sim valores emocionais. A inteligência, neste caso, é cega. Valor e sentimento constituem um mundo distinto daquele mundo do pensamento. Os sentimentos são modos de ser do homem, mas, mais que isso, são modos de abertura do homem para o outro. A despeito de pensadores modernos como Descartes (1596-1650) e Locke (1632-1704), o sentimento não é uma modificação subjetiva da razão, relacionada a uma causa, mas uma intencionalidade que surge ao homem de assalto e como valor distinto. Isso não equivale a dizer que o sentimental não é racional, ambos são espirituais, mas o segundo não é teorizado.

Como o homem é o único ser capaz de intuir os valores, por meio da intuição emocional, ele se destaca

algo que, embora inerente a ela para caracterizá-la como tal, a transcende. Em Platão, a Forma de árvore faz parte do plano suprassensível, constituindo uma realidade à parte de toda árvore do plano sensível, mas que, ainda assim, está no âmago de cada uma das árvores existentes. É que as árvores do plano sensível participam daquela Árvore do plano suprassensível. É a transcendência da ιδέα que a justificará como “causa” do plano sensível (Cf. PLATÃO, 2011, p. 136 [Timeu, 51 b-52a]).

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dos demais animais por conta desta capacidade. Reforça-se que a capacidade espiritual do homem de intuir valores se deve à sua natureza contemplativa, o que significa a capacidade de desvincular-se de impulsos racionais ou instintivos3, interessados em manter a vida, para abrir-se ao mundo, isto é, desligando-se de impulsos e mesmo desligando-se do ambiente. Este sujeito espiritual será chamado e caracterizado como “pessoa”.

Com isso, tem-se que os valores são objetos específicos de contemplação por meio de uma intuição muito particular, a emocional, e que por isso mesmo independem do contato com o bem para serem contemplados, o que possibilita um estudo a priori destes mesmos valores. Os bens são portadores de valores e os valores não se confundem com os bens ou podem ser reduzidos a outros bens. Os valores também só podem ser acessados pelo homem, este sujeito que detém intuição emocional. Esta especificidade caracteriza o homem – este sujeito intuitivo-emocional – como “pessoa”, noção que, sequentemente, esforçar-se-á para aclarar.

A noção de “pessoa” em Scheler

Em Scheler, a técnica – ou ciência – fruto da

razão, não é aquilo que distingue o homem dos animais, mas o é seu caráter contemplativo. Este caráter contemplativo é alcançado pela intuição emocional

3 Em Scheler, pode-se afirmar que os animais também possuem uma “técnica”, embora muito menos apurada que a teorizada do homem, para sobreviver.

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que ele detém. Não obstante, a intuição não é uma qualidade do homem, no sentido de ser algo que a ele é agregado, como sendo uma “propriedade” que o homem detém a mais que os outros animais. A intuição se caracteriza por uma atuação. Uma atuação, um ato, é sempre tido em uma relação.

Cabe então perguntar-se como a noção de “pessoa” se coaduna à noção de ato, em Scheler. A noção de “pessoa” pode ser concebida como uma atualidade sempre continuada, vivente e corpórea, dotada de valor, que é seu próprio modo de ser. A “pessoa” se realiza por uma multiplicidade de vivências atuais, às quais não a afetam – por não ser ela um objeto que possa ser afetado – mas, às quais ocorrem nesse próprio campo vivencial a que Scheler está chamando de “pessoa”.

Um ato vive apenas no exato momento de sua execução. Assim, um “beijo no rosto” não pode ser um objeto. Um “beijo no rosto” só existe enquanto atuante. Um “beijo no rosto” não são os lábios e não é o rosto, mas é a atuação que envolve esses dois objetos. A “pessoa”, em Scheler, é atuante porque é vista a partir de sua relação com o mundo, e não como um “eu” a parte do mundo – embora nesta concepção de um “eu” à parte do mundo o “eu” apareça “dentro” de um mundo como res extensa.

Por ter esse caráter de atualidade constante, jamais a “pessoa” pode ser reduzida a um objeto. Quando se pensa a “pessoa” como objeto, se tira dela sua principal característica, a saber, suas vivencias emocionais, suas intuições emotivas. Deste modo, a única definição de “pessoa” que pode ser aceita é a de

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uma articulação constantemente ordenada de atos. Assim como o “beijo no rosto” tem que ser “no rosto”, os atos da “pessoa” devem ser “no mundo”. O mundo tem uma relação originária com os atos da “pessoa”, por isso, ela conserva um caráter de um complexo de atos constantes em um mundo.

“Pessoa” ainda pode ser destrinchada como sendo aquele campo de atos em que o valor se manifesta. Não se pode dizer que o valor é uma propriedade de um núcleo opaco que o sustenta, mas que o valor se manifesta apenas neste campo contínuo e ordenado de atos, e isso é o que significa dizer que “a pessoa porta valores”.

A “pessoa” não se esgota em seus atos, os transcende; ela não “é” o ato que realiza atualmente, mas sim uma esfera espiritual enquanto conceito absoluto, diferentemente do conceito de “eu”. Este é um conceito relativo, que uma vez concebido, implica uma outra face distinta que é o mundo apartado dele. O conceito de “pessoa”, enquanto esfera espiritual, pressupõe a transcendência de si para um mundo que lhe é próprio. Por isso, cada pessoa é um próprio mundo.

A “pessoa”, em Scheler, também difere do eu transcendental, de Husserl, já que é um sujeito individual e concreto, e não um eu objetivo, universal. Como sujeito de atos intencionais, a “pessoa” não pode ser tornar objeto de conhecimento, pois, assim como um “beijo no rosto” será diferente a cada vez, assim uma pessoa será diferente de outra a cada vez. E, embora ambos possam ser reduzidos a uma imagem para serem tratados na ciência, essa mesma imagem

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Quinto Capítulo

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universal que é comum a uma ou outra pessoa não estará abordando-as, mas às imagens objetivas, esquecendo aquele conjunto de intuições emocionais que a caracterizam.

Considerações finais

A noção de “pessoa”, em Scheler, se mostra

como um conceito inédito em filosofia. Por ser sujeito concreto, pode-se perceber como daí derivam aspectos das relações deste sujeito concreto com outros sujeitos, também concretos, também pessoas.

Scheler ficou conhecido por proceder uma ética fenomenológica, que analisa e aprofunda, fenomenologicamente, valores importantes para que o homem compreenda a si próprio, e assim consiga lidar melhor com aqueles com quem convive. É uma espécie de fenomenologia prática, já que ela reflete no homem concreto.

As reflexões feitas acima, sobre o conceito de pessoa, servem como introdução ao pensamento scheleriano, e embora pressuponham algumas noções básicas da história da filosofia, apenas querem refletir o tímido ingresso de um estudante nos caminhos traçados por Scheler. Seu pensamento, talvez ainda pouco estudado no Brasil, tem ganho destaque entre os leitores da fenomenologia e pesquisadores a ela afins.

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KAHLMEYER-MERTENS, R. Segunda lição - Fenomenologia: heranças e heresias. PR: CCHS - UNIOESTE 2017. [Protocolos de aula].

KLIMKE, F.; COLOMER, E. Historia de la filosofia. Madrid: Labor, 1953.

PLATÃO. Timeu. Trad. Rodolfo Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011.

REALE, G. História da filosofia grega e romana. vol. IV. Trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz; Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

ROVIGHI, S. V. História da filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 2014.

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Sexto Capítulo

“A vida psicofísica é una”: Contribuições de Max Scheler à psicologia

com bases fenomenológicas

Giovani Augusto dos Santos

Introdução A ciência contemporânea cada vez mais

subdivide o homem em categorias, temos como principal exemplo desse movimento de desintegração a psicopatologia: existem hoje, especialidades múltiplas para as múltiplas doenças que se apresentam. Carregando uma grande herança do pensamento moderno, o qual via todo o universo como um grande relógio, a psicopatologia vê o homem como um mecanismo que por vezes falha, e quando isso ocorre é “só” encontrar o “defeito” e consertá-lo.

Alguém que sofre de ansiedade, depressão, estresse, etc., deve ser encaminhado a um psiquiatra ou, a um neurologista, uma vez que cada transtorno atinge uma área específica do cérebro e, assim, existem neurologistas especialistas para cada área. Assumindo essa atitude, o homem é reduzido a diversos sistemas independentes entre si, porém correlacionados, por isso, se um sistema falha, as consequências podem ser no todo. Sendo assim, um depressivo deve receber o neurotransmissor correto na dosagem correta para que deixe de sofrer.

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Esse cenário torna-se perverso por reduzir toda a complexidade do ser do ser humano a um conjunto de reações químicas, mais ou menos complexas. É evidente que muitas pessoas se beneficiam desse modelo vigente e não queremos aqui negar os avanços obtidos pela ciência médica e pela ciência em geral, entretanto, nosso problema é uma questão muito antiga, presente já na aurora do pensamento: o que é o homem?

A resposta para tal pergunta torna-se essencial a psicologia, uma vez que o “objeto” de estudo desta “ciência” é o homem bio-psico-espiritual-social, ou seja, o homem em todos seus âmbitos existenciais. Utilizamos aqui a palavra objeto entre aspas, pois, como veremos, não podemos reduzir o homem a apenas um “objeto”. Mas será que a psicologia consegue dar conta de responder a nossa pergunta? A resposta é não, uma vez que tomamos o modelo da psicologia moderna, que compreende o sujeito possuído de corpo e psique, e a psique subdivida, tendo em seu centro um eu essencial. Por esse motivo é necessário um retorno ao solo de onde a própria psicologia nasceu: a filosofia. Acreditamos que uma resposta adequada a pergunta “o que é o homem?” só seja possível em solo filosófico, mais especificamente por meio de um método que veja o homem como ele se mostra a si mesmo, em sua totalidade. Mas qual seria tal filosofia? Utilizaremos aqui a antropologia filosófica de Max Scheler, uma vez que o filósofo se utiliza do método fenomenológico, não recaindo em uma disciplina que seja especificamente biológica, psicológica, teológica ou cultural, mas tem a pretensão de descrever a totalidade do ser do homem (Cf. KLAUS, 2014, p. 1), mantendo-se em diálogo constante com as áreas do

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Sexte Capítulo

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saber supracitadas, pois um dos objetivos da antropologia filosófica de Scheler é preparar fundamentos fenomenológico para as ciências humanas (Cf. AQUINO, 2015, p. 64).

Da fenomenologia à antropologia filosófica

Max Scheler conhece o método fenomenológico

de Husserl e logo se apropria do método modificando o objetivo inicial de seu fundador: Scheler critica o intelectualismo ainda vigente em Husserl e não se ocupa de uma epistemologia ou teoria do conhecimento (Cf. KLAUS, 2014, p. 2), para Scheler o que está em jogo nos atos de consciência vai muito além da intencionalidade intelectiva e tem por base uma apreensão sentimental do mundo. A partir dessa mudança do objetivo filosófico, Scheler pode fundamentar uma fenomenologia dos valores, e mesmo buscar uma ética que não fosse meramente formal, mas que tivesse um estatuto ontológico, ou seja, que visasse as essências dos valores.

Vemos uma significativa mudança em seu projeto filosófico a partir do ano de 1922, como o próprio Scheler diz no prefácio da primeira edição do livro A posição do homem no cosmos, ele passa a buscar uma compreensão antropológica do homem, tendo vistas a uma obra muito maior que não rompia com seus textos passados, mas que, como uma continuidade da fenomenologia dos valores, encontra nas perguntas “o que é o homem?” e “qual sua posição no interior do ser?”, o início para uma descrição total do homem que é no mundo (Cf. SCHELER, 2003, p. 1-2). Essa antropologia é

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centrada no homem como ser orgânico-espiritual, que abre mundo não por uma faculdade intelectiva ou racional, mas, justamente, pelos atos intuitivos, emocionais e intencionais da consciência (Cf. GOMES, 2016, p. 2).

Apesar da mudança da “disciplina” de Scheler – anteriormente a filosofia e agora a antropologia filosófica – percebemos que o autor continua a se utilizar do método fenomenológico para fazer sua antropologia, uma vez que coloca a antropologia como metafísica, pois acredita na coparticipação do absoluto com a existência humana. Desse modo, pensar a antropologia filosófica como disciplina separada da filosofia não é mais possível (KLAUS, 2014, p. 19). Scheler se utiliza do método fenomenológico em seu projeto pois, pensar o homem fenomenologicamente permite “[...] resgatar a ideia uma e essencial de homem” (KLAUS, 2014, p. 9).

Embora a antropologia filosófica seja um projeto interrompido pela morte precoce de Scheler, é no livro A posição do homem no Cosmos que podemos ter uma visão mais geral de sua compreensão de homem. Em busca de descrever a totalidade do homem, o autor parte da análise do conjunto do mundo biopsíquico originário da vida, até o traço essencial que diferencia o homem do animal, uma vez que, para Scheler, todos os seres que vivem, de modo geral, se estruturam em uma construção do mundo psíquico ou individual (GOMES, 2016, p. 4). Essa construção se desenvolve em quatro dimensões evolutivas interligadas, que o homem e o animal compartilham, mas, como veremos, ao homem existe uma diferença. Façamos então o mesmo caminho

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Sexte Capítulo

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do filósofo, até chegarmos a essa diferença ontológica do homem.

Impulso afetivo (Planta):

O primeiro fenômeno psíquico descrito por

Scheler é “O nível mais ínfimo do psíquico [...] formado pelo ‘impulso afetivo’ sem consciência, sem sensação e sem representação” (SCHELER, 2003, p. 8-9), ao dizer isso o autor quer ressaltar que o impulso afetivo vem antes mesmo de qualquer tipo de sensação e instinto. O que há de vida nesse fenômeno é apenas um simples direcionamento para coisas prazerosas e um afastamento do desprazer, não obstante, prazer e desprazer, nesse estágio, não são compreendidos dessa forma.

Embora seja o nível mais baixo da vida psíquica, o impulso afetivo já marca uma enorme diferença com os chamados corpos inorgânicos, como por exemplo as pedras, ou seja, há vida nos seres que manifestam apenas esse fenômeno, entretanto, não se pode atribuir nada muito complexo a esses seres, como representação, consciência e instinto.

Os representantes desse estado anímico são, segundo Scheler (2003, p. 9), as plantas que apresentam um impulso afetivo, mas não possuem consciência ou sensação. E a maior manifestação de tal fenômeno é o fato de que as plantas crescem, movimentam-se em busca daquilo que necessitam para viver, normalmente as raízes buscam a água e sais minerais do solo e as folhas crescem em direção à luz solar. Esse movimento pode ser confundido com algum tipo de vida pulsional,

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uma vez que está presente nas plantas uma motivação para crescer e reproduzir. Entretanto, esses movimentos não são manifestações próprias das plantas como são nos animais; as plantas crescem e se reproduzem passivamente, seguem a luz solar, são fecundadas involuntariamente, seja pela ação do vento ou dos animais, e é nesse ponto que, para Scheler, Nietzsche está errado ao dizer que tudo é vontade de poder, pois se assim fosse, as plantas viveriam regidas sob esse princípio também (Cf. SCHELER, 2003, p. 9-10).

Scheler denomina esse movimento das plantas por impulso afetivo ekstático, justamente por ser um movimento dirigido totalmente para fora, haja vista que não há nas plantas um centro interno regulador da vida, e se existe algum tipo de sistema nervoso central nas plantas, esse é muito rudimentar se comparado com o dos animais, e funcionam a base, unicamente, de reações químicas.

Instinto (Animal):

A segunda forma anímica essencial é

denominada por Scheler como instinto, definido como: “[...] comportamento do ser vivo” (SCHELER, 2003, p. 15). Ao fazer essa definição o objetivo de Scheler é escapar do obscurantismo e mesmo da dificuldade presente ao se definir os instintos, principalmente pelos vários usos dessa palavra pela psicologia. Mas afinal, o que é comportamento do ser vivo? Scheler nos diz mais adiante no texto que: “O ‘comportamento’ de um ser vivo é sempre objeto de uma observação exterior e de uma descrição possível” (SCHELER, 2003, p. 15).

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Entretanto, definir o instinto como comportamento e o comportamento como algo empírico, não é recair em um behaviorismo, uma vez que para este a gênese do comportamento se encerra em si mesmo, e para Scheler todo comportamento é a manifestação e expressão de um estado anímico interno, embora interno e externo não sejam dicotômicos, uma vez que não há subjetividade como a tradição compreende, nas palavras do próprio autor “[...] não há nada intra-anímico que não se ‘expresse’ imediata ou mediatamente em um comportamento” (SCHELER, 2003, p. 15).

A partir dessa refinação do conceito, Scheler denomina de instinto

[...] um comportamento que possui as seguintes características: em primeiro lugar, ele precisa ser condizente com o sentido, isto é, ser de tal modo que ele seja teleoklino para o todo do próprio vivente, para a sua alimentação assim como para a sua reprodução, ou para o todo de outros viventes (ou bem servindo a si próprio ou bem servindo aos outros). Em segundo lugar, ele precisa transcorrer segundo um ritmo fixo, invariável. Ele depende do ritmo fixo e não, por exemplo, dos órgãos que são utilizados para este comportamento e que podem mudar em meio à retirada deste ou daquele órgão [...] (SCHELER, 2003, p. 15-16, grifos do autor).

A partir da citação feita acima fica claro o que o

autor quer dizer ao falar sobre instintos; não podemos confundir instintos com as várias definições psicológicas dadas a este, não é um mero

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comportamento fisiológico nem mesmo um mero ato psíquico, consciente ou inconsciente, não é também uma memória genética, ou, como no caso do impulso afetivo, apenas reações químicas; os instintos são manifestações anímicas psicofísicas, nesse sentido não apresenta uma natureza mecânica, ou seja, não é determinista, embora o animal se comporte “como-se” fosse pré-determinado (SCHELER, 2003, p. 16), é por isso que o instinto também não pode ser confundido com adestramento ou auto adestramento, pois diz respeito sempre a um comportamento da espécie e não do indivíduo, não é adquirido pelas experiências e, em geral, não pode ser extinguido.

Diferentemente do primeiro fenômeno psíquico, o instinto apresenta grande relação com as sensações, com a atividade das funções e órgãos sensoriais e com a memória (SCHELER, 2003, p. 18), ou seja, os instintos já estão de alguma maneira direcionados a componentes do ambiente que, em geral, retornam algo ao animal, entretanto os instintos não são causados por estímulos sensoriais, mas, justamente, ao contrário “[...] o que um animal pode representar e sentir é a priori dominado e determinado pela ligação de seus instintos inatos com a estrutura do meio ambiente.” (SECHELER, 2003, p. 18), ou seja, os comportamentos instintivos não são condicionados por estímulos ambientais, mas só recebem os estímulos e respondem de acordo com aquilo que seus instintos lhe permitem, o mesmo, Scheler, diz sobre as reproduções da memória. Nesse sentido, podemos dizer que “O animal que pode ver e ouvir só vê e ouve o que é significativo para o seu comportamento instintivo [...]” (SCHELER, 2003, p. 18).

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A partir do dito acimo, Scheler também diferencia o comportamento instintivo do comportamento pulsional. As pulsões não se conectam aos instintos, pois, como visto, os instintos têm sempre sentido, já as pulsões podem ser sem sentido, como por exemplo a avidez por estupefacientes (SCHELER, 2003, p. 18), assim as pulsões são exatamente o oposto dos instintos. É por isso que o autor nos diz que quanto mais inferior for a organização do animal, mais perfeita é sua disposição instintiva, já em animais mais evoluídos, como o homem, por exemplo, os instintos são involuídos e se predomina a vida pulsional (SCHELER, 2003, p. 21), uma vez que instinto não parte de uma ação arbitrária e intelectiva, e no homem o que predomina é a racionalização dos instintos.

Memória associativa

A terceira forma psíquica que Scheler descreve

provêm originariamente do comportamento instintivo e é denominado de memória associativa. Essa forma não está presente em qualquer tipo de ser vivo, mas somente naqueles cujo os comportamentos podem ser modificados constantemente de maneira lenta, por consequência do comportamento instintivo, que lhe é anterior, sempre de uma maneira útil a vida, ou seja cheia de sentido (Cf. SCHELER, 2003, p. 22). Essas mudanças ocorrem por estímulos do meio e são registradas na memória do organismo, como exemplo régio desse conceito, Scheler apresenta-nos o experimento feito por Pavlov na aurora da psicologia comportamental, a saber, Pavlov descobriu o reflexo

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condicionado, ou seja, apresentando um estímulo, o organismo apresenta um comportamento psicofísico condicionado ao estímulo recebido e passa a repeti-lo sempre que recebe o mesmo estímulo (Cf. SCHELER, 2003, p. 23).

Apesar de estar presente em todos os organismos capazes de se modificar, em alguns animais, por exemplo os mais primitivos e, consequentemente, os mais instintivos, a memória associativa parece atuar em menor proporção, o comportamento muda de forma ainda mais lenta, já em animais que apresentam maior plasticidade, como alguns mamíferos e de modo destacado o próprio homem, os hábitos passam a ser mais atuantes, ou seja, com o passar do tempo, com o envelhecimento, os organismos mais evoluídos modificam seus comportamentos mais e de maneira mais rápida (Cf. SCHELER, 2003, p. 25-26).

Assim, no homem e em outros animais superiores, o habito pode vir não somente pela estimulação ambiental, mas também pela imitação do comportamento alheio (Cf. SCHELER, 2003, p. 26), que é a especialização da pulsão à repetição, por isso que a tradição é tão importante para o progresso, uma vez que “[...] anexa à herança biológica toda uma dimensão de determinação do comportamento animal através do passado da vida dos membros da espécie” (SCHELER, 2003, p. 26). Entretanto, todo o progresso autenticamente humano, destaca Scheler, depende de uma crescente desconstrução da tradição, haja vista que o homem se descola do comportamento instintivo para uma vida pusional e se descola da memória afetiva para

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uma inteligência prática, próxima forma psíquica descrita por Scheler.

Inteligência prática

O comportamento inteligente prático, está

intimamente ligado a memória associativa, embora seja também originário do comportamento instintivo. A inteligência prática funciona como um corretivo aos riscos da memória associativa, ou seja, a inteligência prática permite ao organismo uma ação seletiva capaz de preferir uma coisa em detrimento de outra e estabelecer preferências do objeto pulsional – por exemplo a escolha de um membro da espécie para a procriação ou o que irá comer para saciar a fome –, superando qualquer pulsão genética (Cf. SCHELER, 2003, p. 29).

Ao contrário de muitos, Scheler defende que a inteligência prática não está presente apenas no homem, uma vez que por ser “prática” ela está direcionada ao agir, a uma adaptação da situação que se apresenta, e muitas espécies apresentam esse tipo de comportamento, como por exemplo, macacos que utilizam galhos de árvores para alcançar frutos que estão fora do alcance de seus braços, “Trata-se de uma primeira manifestação da razão ainda vinculada aos limites da esfera vital, ou seja, atuando como instrumento para sobrevivência da espécie animal” (AQUINO, 2015, p. 72).

A partir do exemplo acima, também podemos ver a diferença da memória associativa e da inteligência prática: a situação que se apresenta e clama por um agir

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é nova ao indivíduo da espécie, não foi apreendida por condicionamento, por tentativa e erro, por modelagem, ou pelo mero acaso. Houve de fato um movimento do centro da vida psíquica para o exterior, para o objeto que se apresenta onticamente ao animal, embora esse objeto não aparece da maneira como aparece ao homem, ou seja, um galho utilizado para alcançar um fruto não é, de modo algum, compreendido como um galho, ou mesmo como um bastão, mas somente como um “objeto para alcançar”, assim como um animal que pega um pano para se cobrir, não compreende esse pano como cobertor, mas somente como “objeto para se abrigar”, enfim, não existe ainda um movimento do que Scheler denominará de vida espiritual – como veremos adiante, movimento exclusivamente humano (Cf. SCHELER, 2003, p. 31-32).

O espírito como diferença entre o homem e o animal

As quatro formas psíquicas descritas até aqui

estão presentes no homem, mas também nos animais, como vimos alguns animais demonstram possuir até mesmo uma forma de inteligência prática, não obstante, Scheler diz que o homem, em sua vida psicofísica, não é igual ao animal, mas então, qual é a diferença essencial entre o homem e o animal? Essa diferença não é algo simplesmente de grau, mas de essência (Cf. AQUINO, 2015, p. 71).

Para Scheler o que determina a “posição peculiar” do homem no Cosmos é o que os gregos denominavam por razão, mas para o autor o termo razão

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acumulou ao passar do tempo inúmeros preceitos que não significam realmente o que os gregos diziam com esse termo, por isso prefere uma palavra

[...] mais abrangente para aquele X, uma palavra que certamente abarca concomitantemente o conceito de “razão”, mas que, ao lado do “pensamento das idéias”, também abarca concomitantemente um determinado tipo de “intuição”, a intuição dos fenômenos originários ou dos conteúdos essenciais, e, mais além, uma determinada classe de atos volitivos e emocionais tais como a bondade, o amor, o remorso, a veneração, a ferida espiritual, a bem-aventurança e o desespero, a decisão livre: a palavra “espírito” (SCHELER, 2003, p. 35).

Mas o que Scheler quer dizer, de fato com

“espírito”? “O espírito [...] não abarca apenas a dimensão racional da existência humana, como tradicionalmente entendeu-se, mas também toda a forma de atos volitivos e emocionais [...]” (REIS; LOPES, 2016, p. 22). Para Scheler o ser espiritual é aquele capaz de se desprender existencialmente do orgânico (Cf. SCHELER, 2003, p. 36). Se desprender do orgânico quer dizer que o espírito comporta as quatro formas anímicas essenciais, mas não se submete a elas, ou seja, não é um ser movido por impulso afetivo, instinto, memória associativa ou inteligência prática, pelo contrário, o ser espiritual é aquele capaz de resistir a natureza, de dizer não aos seus impulsos, de ir contra a organicidade do meio, é o ente livre de qualquer determinação, e, justamente por isso, é um ente “aberto” ao mundo, nas palavras do próprio autor “[...]

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um tal ser espiritual tem ‘mundo’” (SCHELER, 2003, p. 36).

Como vimos o animal responde aos seus instintos fisiologicamente, mesmo os mais elevados, no qual se constata algum tipo de inteligência e de escolha, suas escolhas estão determinadas pelos seus instintos, pelo seu corpo, pelo seu meio. Já o ser espiritual inverte essa relação, seus comportamentos não se submetem ao seu fisiológico nem ao meio ambiente, pelo contrário, seu instinto, antes de tudo, passa por um projeto existencial, pela liberdade, o ambiente se converte em mundo, somente o homem, como o único ser espiritual, “possui” objetos, ou seja, objetifica seu meio, por isso, parafraseando Heidegger na preleção Os conceitos fundamentais da metafísica, podemos dizer que somente o homem é possuidor de mundo.

Outra característica própria do espírito é a autoconsciência (Cf. SCHELER, 2003, p. 39), como já dito, o animal não vivencia seu meio como mundo, não possui compreensão das coisas, nem mesmo de sua própria existência psicofísica, não experiencia seus instintos como tais, mas como atração e repulsão, por mais elevado que esse animal possa ser. Já o homem possui autoconsciência. Compreende a si mesmo e aos outros, além de ser possuidor de mundo. Pode, dessa maneira, até mesmo objetificar sua vida, mas, de maneira alguma, pode objetificar o próprio espírito, uma vez que “[...] ele é pura atualidade, só tem seu ser na livre realização de seus atos” (SCHELER, 2003, p. 45, grifos do autor), podemos dizer, em outras palavras, que o espírito é pura intencionalidade, só é a medida

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em que transcende o próprio homem, se lançando no mundo em seus atos intencionais. Essa intencionalidade só é possível por um centro anímico do espírito, que Scheler denomina como pessoa (Cf. SCHELER 2003, p. 36; 45).

O conceito de pessoa já se faz presente no pensamento inicial de Scheler e se estabelece diretamente em um debate com a ética formal kantiana, que compreende a pessoa simplesmente como “pessoa racional”, o que limita o ser do homem, uma vez que se atribui a esse ente uma determinação positiva essencial, por isso, pessoa em Scheler não pode ser pensado como algo substantivo, nas palavras do autor:

O centro do espírito, a pessoa, não é, portanto, nem um ser objetivo, nem um ser coisificado, mas apenas uma estrutura ordenada de atos (essencialmente determinada) que leva a termo constantemente a si mesma. A pessoa só é em seus atos e através deles (SCHELER, 2003, p. 45).

Dito isso, fica claro como a antropologia

filosófica de Scheler vai de encontro com as determinações psicologizantes e biologizantes de homem que predominam no pensamento da psicologia moderna e contemporânea, pois, apesar de pensar o ser do homem como pessoa, e compreender as várias formas anímicas, todas presentes no homem, Scheler destaca que, antes de tudo, o homem não se submete a naturalização de seu corpo ou de seu ego, não se resume a reações físicas, tampouco a síntese de atos psíquicos.

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Para Scheler corpo e alma são indivisíveis, dois fenômenos co-originários da vida psíquica: “A vida psicofísica é una” (SCHELER, 2003, p. 75), dizer isso é o mesmo que dizer que não há separação entre corpo e alma como Descartes propunha em sua filosofia – doutrina essa que Scheler vai confrontar e tecer severas críticas (Cf. SCHELER, 2003, p. 69-71). Esse processo uno está presente nos animais e no homem, é por isso que, como já vimos, o que diferencia um do outro não é um sistema nervoso mais desenvolvido, uma capacidade psíquica ou mesmo intelectiva, o que está em jogo na diferenciação ôntica-ontológica entre o homem e animal é, justamente, o espírito, que tudo objetifica, mas que ele mesmo não pode ser objetificado (Cf. SCHELER, 2003, p. 78).

Podemos considerar então que para Scheler o homem é:

[...] uma síntese de várias dimensões, desde as esferas naturais até a espiritual; é espírito que se move entre as esferas do ser; é um microcosmo que compartilha as diversas camadas da realidade do mundo; é o único ser que pode chegar a ser pessoa, por isso é microtheos. Desde a esfera do mundo material inanimado, a esfera atômica, passando pela estruturação orgânica da matéria que perfaz a vida, as dimensões vitais vegetativas e anímicas, a vida psíquica emocional, a dimensão afetiva valorativa, culminando na ligação de todos os elementos vitais à esfera espiritual e no vínculo entre o espírito humano singular com o espírito absoluto supra singular, fundamento de todo ser, tudo isso constitui as diversas esferas microcósmicas da pessoa humana. O ser humano é espírito livre que transita pelas esferas

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da vida como centro de vontades, intenções, valorações e atos (GOMES, 2016, p. 3).

Nesse sentido, não pode uma alma autônoma

habitar um corpo celular também autônomo. Não há uma cisão ou separação. O corpo não se sustenta pelas atividades da alma, ou vice-versa. Mas são processos fenomenais que ocorrem co-originariamente, melhor dizendo, são um e único processo. O conceito de espirito e pessoa proposto por Scheler impossibilita pensar qualquer dicotomia, qualquer relação dual como eu-tu, psíquico-físico, eu-mundo etc. Se existe atividade fisiológica existe atividade psíquica e se existe atividade psíquica existe atividade fisiológica. Não obstante, pela capacidade de objetificar própria do espírito, é possível fazer essa separação e objetificar corpo e psiquismo em busca de uma “investigação científica rigorosa”.

Scheler, entretanto, critica as teorias científicas, psicológicas e filosóficas que faziam essa divisão, correntes essas hegemônicas em sua época, mas nos parece que hoje o que impera não é mais uma hegemonia da divisão cartesiana, hoje nem mesmo se considera mais a existência de uma alma em contraposição a um corpo, o que impera é um total niilismo, no qual o que está em jogo são somente os processos psicoquímicos e fisioquímicos dos organismos. Tudo se reduz a reações químicas produzidas pelo cérebro, ou outro órgão do sistema nervoso central. O tecnicismo reduz o homem a uma simples máquina, a um sistema que “serve para...”, destituído de qualquer espírito, mas possuidor de um complexo sistema nervosos central que possibilita sua

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racionalidade, marca distintiva da posição privilegiada do homem no Cosmos.

Considerações finais

Talvez a pergunta “o que é o homem?” jamais foi

e nem será totalmente respondida, também aqui não tivemos essa pretensão, mas pensar o ser do homem é tarefa e dever de quem se propõe a trabalhar diretamente com ele, trabalho esse também do psicólogo. As várias correntes contemporâneas da psicologia buscam cada vez mais apoio em bases empíricas para se sustentar, esse movimento remonta já no início da psicologia científica, que buscou apoio no positivismo para se afirmar como campo autônomo do conhecimento, ou seja, como ciência.

Mas se nunca antes houve tanto progresso técnico-científico na psicologia, também nunca se teve tantas pessoas psicologicamente afetadas. Cotidianamente nos deparamos com pesquisas que tratam sobre os impactos de diversas psicopatologias como depressão, ansiedade e estresse, na vida das pessoas e na sociedade. Para além de uma simples patologia psicológica esses transtornos, assim como diversos outros apresentam sintomas também no corpo, o que se justifica, de acordo com a neurociências, pelo fato de serem causadas por reações químicas deficitárias no sistema nervoso central.

Pensar isso é reduzir o ser do homem a uma máquina, a um sistema causal fechado em si. Este trabalho teve a intensão de seguir um caminho contrário a esse, ao pensar o homem fenomenologicamente, pela

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antropologia filosófica de Scheler. Como vimos, o autor apresenta quatro formas essenciais da vida psíquica que inicia nas plantas e ascende com organismos mais complexos que vão reunindo em si as quatro formas progressivamente, até chegar nos mais elevados organismos existentes, a saber, os animais e o homem.

A partir daí o autor busca diferenciar o homem do animal e aponta que a distinção do homem está no fato desse possuir espírito e o animal não. Espírito é a capacidade do homem de estar aberto ao mundo, de poder ir contra a natureza, de dizer não aos seus instintos, de criar uma civilização, de ser livre, de ser a-mecânico, ou seja, o autor não reduz o ser do homem a uma essência física ou metafísica, portanto, espírito não é a essência do homem, justamente porque o espírito é pura intencionalidade, se dirige as coisas mesmas e assim abre mundo, não há uma essência potencial do ser do homem e a pessoa como centro do espírito “[...] não possui uma posição estática no cosmos, é centro de atos, é movimento, é peregrinação” (GOMES, 2016, p. 8). O espírito permite ao homem se descolar do orgânico, mas se descolar do orgânico não quer dizer, de forma alguma que o espírito subsiste fora do corpo “[...] pois, o espírito não é uma substância capaz de subsistir fora da corporeidade, da materialidade, dos limites de um organismo qualquer” (AQUINO, 2015, p. 73). Parafraseando Sartre na introdução d’O Ser e o nada, podemos dizer que no espírito tudo está em ato.

Ao dizer isso, dizemos que o homem é um todo indivisível não essencialmente definido. Sua totalidade é ontológica, mas também é ôntica. Assim o fenômeno somático aparece como um modo peculiar de ser, dado

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para a intuição fenomenológica, haja vista que corpo e corporeidade formam toda a percepção fática do corpo. Separar o homem em partes para compreender o seu todo é recair no fracasso. Não há qualquer divisão originária no homem. Mesmo corpo e alma, como vimos, já é uma compreensão derivada nesse ente. Separar o psíquico do físico ou subdividir o psíquico em partes é um erro. Sendo assim, acreditamos que a antropologia filosófica de Max Scheler pode apontar subsídios para um arcabouço psicológico mais sólido, que considere o homem fenomenologicamente em todas as suas dimensões existenciais.

Referências AQUINO, T. A fenomenologia da distinção humana: Scheler e o projeto da antropologia filosófica. In: Síntese – Revista de filosofia, v. 42, n. 132. 2015. p. 61-80. Disponível em: https://doi.org/10.20911/21769389v42n132p61-80/2015 Acesso em: 05 dez. 2018.

GOMES, T. F. O conceito de pessoa em Max Scheler. In: Seminário Internacional de Antropologia Teológica: pessoa e comunidade em Edth Stein. 2016, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: EDIPUCPR, 2016. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/seminario-internacional-de-antropologia-teologica/assets/2016/14.pdf Acesso em: 04 dez. 2018.

KAHLMEYER-MERTENS, R. S. Nona Lição – Um enérgico não contra a efetividade ou do “asceta da vida”. PR: CCHS - UNIOESTE 2018. [Protocolos de aula].

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KLAUS, L. R. A abordagem fenomenológica da antropologia filosófica: pessoa e espírito em Max Scheler. 2014. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Centro de Ciências Sociais e Humanas, Santa Maria, RS. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/9135. Acesso em: 13 dez. 2018.

SCHELER, M. A posição do homem no Cosmos. Tradução de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

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Sétimo Capítulo

Direitos humanos: Um ensaio entre Scheler e Arendt

Ana Claudia Barbosa Nunes

No presente capítulo, pretende-se compreender

os direitos humanos a partir dessas duas filosofias. Para abordarmos o pensamento de Max Scheler

(1874-1928), nos serviremos de sua obra Ética (Cf. SCHELER, 2001), âmbito de conceitos como o de “pessoa individual”, “pessoa coletiva” e “solidariedade”; para um aporte secundário, utilizaremos a obra: Situação do homem no cosmos (Cf. SCHELER, 2008), na qual o autor manifesta sua preocupação antropológica. Como ainda veremos, em Scheler, o conceito de pessoa individual é a pessoa é no sentido que atua, portanto, o ser humano é no sentido que vive; o conceito de pessoa coletiva, por sua vez, é aquele no qual as pessoas individuais são membros da pessoa coletiva (comunidade). Assim, cada indivíduo é um viver múltiplo, responsável por si e pelos demais membros presentes na pessoa coletiva.

Para tratarmos do pensamento de Hannah Arendt (1906-1975), a obra primária utilizada será Origens do totalitarismo (Cf. ARENDT, 2009), que apresenta os conceitos: dignidade humana e direitos humanos; como obra secundária, A condição humana (Cf. ARENDT, 2007), na qual trataremos do conceito de pluralidade. Nesse contexto, pluralidade refere-se à comunidade formada por homens; por sua vez, a

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dignidade humana consiste em tratar de relacionamento humano, de direitos humanos, de direito a ter direitos, de direitos a participar de uma comunidade, podendo agir e falar, relacionando-se com os demais homens.

O conceito de pessoa individual e de pessoa coletiva em Max Scheler

O primeiro a ser tratado é o filósofo Max Scheler

que, no decorrer da sua obra Situação do homem no cosmos (1928), apresenta o conceito de pessoa. Para ele, torna-se necessário retomar a seguinte pergunta: ‘O que é o homem?’. Uma resposta a esta aponta para o homem como um ente de espírito, nas palavras de Scheler (2008): “[...] o homem, como ser espiritual” (p.17). Para o filósofo, é o espírito que permite que o homem tenha consciência de si e do mundo, podendo transformar sua realidade, por meio da linguagem (KLAUS, 2014).

Anos antes, em sua Ética (1913), Scheler afirma que cada pessoa atua em sua vida e na vida das outras pessoas, a pessoa é no sentido que atua. Ao longo do viver (atuar) de cada pessoa é que ela toma consciência do que é por si mesma, podendo dialogar com as demais, tendo assim a consciência da pessoa coletiva a qual integra, nessa inserção acontece as conexões de pessoas. Tais conexões são depósitos de valores, experienciados do modo que acontecem sendo através da razão ou sentimentos (Cf. SCHELER, 2001).

A pessoa, assim, experiencia individualmente os valores em seu modo de viver ou na relação com a

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Sétimo Capítulo

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pessoa coletiva, em que cada pessoa humana ao relacionar-se com as demais e a forma que se unem para ser a pessoa coletiva, além da relação que acontece ao viver dessa forma. Desse modo, comenta Scheler (2001, p. 169):

La persona existe exclusivamente en la realización de sus actos En toda conexión de personas son depositarios de valores: primero, las personas mismas; luego, la forma en que se hallan unidas; y, en tercer lugar, la relación que les es dada como vivida dentro de esta forma.

Para o filósofo, a pessoa individual atua em sua

vida e na vida das pessoas as quais relacionam-se na comunidade, a pessoa individual participa da pessoa coletiva. A participação na pessoa coletiva dá-se por meio do trabalho, estudos, envolvimento com os problemas morais da comunidade. Para Scheler, a moral possui um órgão que é o sentir, sendo nesse órgão que esta os valores. Assim: “A moral tem autonomia, fundamento e método próprios, e principalmente um ‘órgão’ próprio, o sentimento” (CADENA, 2013, p.79), o sentimento é próprio ao espírito, portanto os valores são universais e imutáveis, presentes em todas as pessoas.

É na vivência que a pessoa individual utilizará seu sentimento para tomar o valor das coisas. A vivência individual da pessoa é também uma vivência da pessoa coletiva, será ao integrar a pessoa coletiva que surgirá o problema ‘solidariedade moral’ de cada pessoa individual no que diz respeito a pessoa coletiva. Destarte, nos diz o pensador:

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[…] aparte del concepto de la persona particular, se reconozca también al concepto de la persona colectiva (por ejemplo, la personalidad nacional, la personalidad estatal) una realidad independiente de nuestra posición conceptual, y según la especie en que se comprenda la relación categorial de la persona particular a la persona colectiva (todo-parte, participación, membración, etc.). En el círculo de estas preguntas queda incluido el importante problema de la solidaridad moral de las personas particulares dentro de la persona colectiva (SCHELER, 2001, p.649).

Depreende-se daqui que qualquer pessoa

individual pode ser sujeito de valores e, por sua vez, sujeito de atos morais, referindo-se à responsabilidade por si, corresponsável pelos demais membros. A moral em que se tem a apreensão dos valores. Após os valores serem experienciados que a pessoa individual deverá responsabilizar-se por si e pela comunidade que atua, o problema de solidariedade moral resolve exatamente no sentido de reconhecimento do outro, percebendo que o outro é também portador de valor.

Temos, logo, que a pessoa individual é um sujeito moral e que: “[...] cada indivíduo personal no es sólo responsable de sus propios actos individuales, sino que es también originariamente ‘corresponsable’ de todos los de los demás” (SCHELER, 2001, p.643), assim, cada ação da pessoa individual influencia a pessoa coletiva, por isso cada pessoa deverá buscar ser solidário na sua comunidade. Scheler, indica que:

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Sétimo Capítulo

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Así, cada uno, no sólo se percibe sobre un fondo, y a la vez como “miembro” de una totalidad de conexiones vivenciales que tienen algún centro y que en su dimensión temporal llamamos “historia” y, en su dimensión de simultaneidad, unidad social; mas también cada uno, como sujeto moral, se es dado a sí mismo en esa totalidad siempre como “coactor”, “prójimo” y “corresponsable” de todo lo que tiene importancia moral. Lo que vamos a llamar persona colectiva son los múltiples centros del vivir en esa inacabable totalidad del vivir unos con otros o “convivir” (en la medida en que basten plenamente a una persona los centros respectivos de la definición precedente) (SCHELER,2001, p.669).

Vê-se que a pessoa ao mesmo tempo que é

tomada como pessoa individual, é também tomada como integrante da comunidade. Na comunidade, essa se torna parte da história da pessoa coletiva, assumindo a responsabilidade que tem por si e por todos os demais membros. A pessoa individual vive sua comunidade e são múltiplos os centros do viver. Viver um com outro, com solidariedade, em que cada indivíduo possui responsabilidade pelas coisas da vida (COSTA, 1996). Qual é o significado filosófico de solidariedade e sua ligação com a pessoa individual e pessoa coletiva? Diz-nos Scheler (2001, p.676):

Esta “solidaridad” significa que toda responsabilidad de sí mismo sí es que tal cosa es vivida se monta y arma únicamente sobre la vivencia. De la corresponsabilidad en el querer, obrar y actuar del todo de la comunidad.

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O significado de solidariedade em Scheler, assim interpretamos, está na responsabilidade de si, ou seja, na responsabilidade da pessoa individual por sua vida, e na responsabilidade que cada indivíduo tem pela vida de todos na pessoa coletiva. A ligação de solidariedade é que ao assumir, a responsabilidade por si, assume a responsabilidade pelo outro (SCHELER, 1935).

O conceito de pessoa coletiva nos leva a pensar que cada individual possui seus direitos, que são garantidos na coletividade por meio da solidariedade em que cada pessoa individual assume a responsabilidade de si mesmo enquanto ser espiritual, garantindo em sua convivência com as demais pessoas individuais. A pessoa individual tem responsabilidade pelos membros da comunidade e participando ativamente da pessoa coletiva. Nessa participação que a pessoa declara que ‘é’, que existe no sentido que atua no núcleo da comunidade.

Ao fim dessa breve exposição, podemos conjeturar como essas ideias poderiam constituir correlato na obra de Arendt. Isso é o que ensaiamos mostrar a partir do próximo tópico.

O conceito de pluralidade e o conceito de direitos humanos em Hannah Arendt

Aqui apresentaremos, em linhas gerais, traços

do pensamento da filósofa Hannah Arendt sobre os conceitos de “pluralidade”, “dignidade humana” e “direitos humanos”. Em Arendt, o homem é no sentido político; o homem é ser político, aquele que vive na

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estrutura da comunidade, assim: “[...] pluralidade é viver e estar entre os homens [...]” (LAFER, 1998, p.153). Os homens se utilizam da linguagem para participar da pluralidade; na comunidade o homem pode falar o que pensa e relacionar-se com a comunidade na qual faz parte. Assim,

Haverá talvez verdades que ficam além da linguagem e que podem ser de grande relevância para o homem o singular, isto é, para o homem que seja o que for, não é um ser político. Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos (ARENDT, 2007, p.12).

Conforme o dito, a linguagem utilizada pelo

homem singular tem relevância, porém esse homem singular não é um ser político. Os homens, no plural, são seres políticos, pois experimentam o que o mundo oferece porque podem falar com os demais seres políticos, podendo dialogar sobre a comunidade na qual integram.

Todo homem, portanto, pode integrar uma comunidade. A comunidade é o espaço público em que será tomado decisões para melhor convivência de todos. A comunidade é uma estrutura política. Todo local em que os homens constroem seu lar e unem-se entre si considera-se uma comunidade. O homem apenas analisa e questiona sobre seus direitos em viver em uma comunidade e o ‘direito a ter direitos’ no momento que tentam retirar seu direito a ser homens plurais acerca disso a pensadora afirma:

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Só conseguimos perceber a existência de um direito de ter direitos (e isto significa viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões) e de um direito de pertencer a algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam recuperá-los devido à nova situação política global (ARENDT, 2009, p.257).

Com a declaração de Arendt, pode-se

depreender que só consegue-se perceber a existência do direito que o homem tem, no momento que alguém superior retira o direito de outras pessoas e que com a situação política que a comunidade está vivendo, acaba não podendo recuperar esse direito. Comunidade é a estrutura que permite que aconteça um julgamento de acordo com a ação ou opinião dos homens. O problema apresentado é: que direito é esse que a filosofa afirma? Como ele acontece na vida dos homens e da comunidade?

O direito que a pensadora diz são os direitos humanos, a privação fundamental descrita é privar o indivíduo ou indivíduos de um lugar no mundo, isso é privar o homem de ter direitos humanos, quando isso é realizado retira do homem seu pertencimento a comunidade. “Uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos: eram o refugo da terra” (ARENDT, 2007, 236), retirando esses direitos o homem torna-se o refugo (escória) da terra, alguém sem pátria (apátrida), sem lar e sem poder

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formar uma nova comunidade para possuir um lar. Nas palavras da pensadora:

A primeira perda que sofreram essas pessoas privadas de direito não foi a da proteção legal, mas a perda dos seus lares, o que significava a perda de toda a textura social na qual haviam nascido e na qual haviam criado para si um lugar peculiar no mundo. Essa calamidade tem precedentes, pois na história são corriqueiras as migrações forçadas, por motivos políticos ou econômicos de indivíduos ou de povos inteiros. O que era sem precedentes não era a perda do lar, mas a impossibilidade de encontrar um novo lar (ARENDT, 2009, p.255).

Historicamente é possível observar que diversas

vezes o homem foi expulso de seu lar, porém o que se tornou novo durante a Segunda Guerra Mundial foi o fato dos homens não terem o direito de formar uma nova comunidade. Com a perda de seus lares, retirada o direito de pertencer ou formar uma comunidade em que o homem pode falar e agir. Segundo Felício “com a perda do que define e diferencia os seres humanos dos animais: a fala (FELÍCIO, 2000, p.39). O homem perde o direito do que o define enquanto homem que é a fala. A filósofa definirá a privação fundamental dos direitos humanos:

A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião significativa e a ação eficaz. [...], está em jogo quando deixa de ser natural que um homem pertença à comunidade em que nasceu, e quando o não

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pertencer a ela não é um ato da sua livre escolha [...]. Esse extremo, e nada mais, é a situação dos que são privados dos seus direitos humanos. São privados não do seu direito à liberdade, mas do direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do direito de opinarem (ARENDT, 2009, p.257).

O homem é privado de viver na comunidade que

nasceu ou na comunidade que escolheu para si. Ao retirar os direitos humanos, faz com que o homem deixe de pertencer a comunidade, perdendo seu direito a agir e opinar sobre vida e sobre a comunidade que fazem parte ou comunidade que escolheu fazer parte. “O problema identificado por Arendt é que a perda dos direitos humanos toca na perda de duas das características mais essenciais da vida humana: a relevância da fala e a perda de todo relacionamento humano” (FELÍCIO, 2000, p.41), ou seja, retira-se a definição do homem que é a fala e seu relacionamento com os demais homens.

Exatamente no momento que é retirado o direito a fala e o relacionamento humano ocorre a violação da dignidade humana, “O homem pode perder todos os chamados Direitos do Homem sem perder a sua qualidade essencial de homem, sua dignidade humana. Só a perda da própria comunidade é que o expulsa da humanidade” (ARENDT, 2009, p.259). A qualidade essencial do homem é a fala quando se retira do homem esse direito de falar e agir em sua comunidade, retirando-o da estrutura em que nasceu/ou escolheu para viver acontece a expulsão da humanidade.

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O homem tem sua qualidade essencial que é a linguagem (fala), nasceu em uma comunidade que no decorrer de sua vivência pode continuar ou escolher outra comunidade para viver. O homem vivendo com outros homens é a pluralidade. Na pluralidade o homem tem o direito de agir e falar. Em alguns momentos da história humana, o homem foi retirado da sua vida em comunidade, retirado o direito de formar outra comunidade. Com a retirada de direitos, o homem perdeu sua dignidade humana, perdeu seus direitos humanos, seu ‘direito a ter direitos’. Os direitos humanos que são os direitos a fala e a pluralidade, retirou-se o direito de o homem ser político e ter um relacionamento humano (FELÍCIO, 2000).

Considerações finais

Com essa elucidação dos conceitos indica-se

que é viável pensar os direitos humanos, segundo a concepção arendtiana, com os conceitos de pluralidade, dignidade humana e direitos humanos, em conexão com os temas schelerianos aqui escolhidos.

Como se viu, o ser humano nasce no mundo, integrando uma comunidade. Essa comunidade possui uma estrutura, a comunidade é formada por homens. Esse viver entre vários homens é a pluralidade. Os seres políticos dotados de fala e portadores de espírito. O homem, que é um ser espiritual, também poderá ser definido como uma pessoa individual que terá seu direito de falar e agir em sua comunidade. A comunidade pode ser representada pelo conceito de

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“pessoa coletiva”, que é o centro de viver de várias pessoas individuais.

Buscamos evidenciar que, nas comunidades políticas (ou pessoas coletivas, tal como vislumbra Scheler), cada indivíduo possui seu direito à fala e à ação. Como a pessoa individual possui seus direitos e responsabilidades, responsabilidades por si e corresponsabilidade pela vida dos demais membros. Essa corresponsabilidade também pode-se definir como a defesa e garantia dos direitos humanos, através da solidariedade tem-se a dignidade humana. A dignidade humana está em o homem falar, agir e poder relacionar-se com os demais membros da comunidade. Com os direitos humanos, os ‘direitos a ter direitos’, o homem pode falar e agir, além de poder ter seu lar na comunidade na qual nasceu, ou em outra comunidade que escolheu para si.

Independente da comunidade, existe os direitos humanos; os direitos humanos são direitos que existem em qualquer comunidade, pois ao viver em comunidade o homem já vive em uma estrutura política, então é um ser político e podendo relacionar-se com os homens por meio da ação e fala. Os direitos humanos e a dignidade humana são fundamentais para a existência da comunidade e ambos os conceitos acontecem ao mesmo tempo, são interligados.

Enquanto comunidade estruturada, todos os homens podem participar da vida comunitária. Independente se tenham nascido ou não nessa comunidade, tendo o direito de sair e escolher outra comunidade, pois todos possuem a livre escolha. Por ser uma comunidade política, tem-se a dignidade

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humana e a defesa dos direitos humanos, garantindo que todo ser político possa escolher seu lar e seu modo de viver, esse modo de viver sempre tendo como base a solidariedade. E essa defesa acontece com a solidariedade no momento que cada pessoa individual entende seu papel na comunidade, entende o papel da pessoa coletiva em sua vida.

Sabe-se que historicamente embora as comunidades sejam estruturadas, alguns ‘seres políticos’ não respeitaram a dignidade humana e direitos humanos. Esses ‘seres políticos’ definiram quem eles viam como humanos e logo os que ‘mereciam’ segundo suas leis serem respeitados. Para resolução dessas atrocidades que a pessoa individual deverá entender exatamente o que é viver em comunidade e ser um sujeito moral. Por isso, foi necessário entender os conceitos de dignidade humana e direitos humanos. Direitos humanos e dignidade humana são próprios da convivência entre os que formam a comunidade e fazem parte da humanidade: agir, opinar, falar e constituir uma comunidade.

Referências

ARENDT, H. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

ARENDT, H. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CADENA, N. B. de la. Scheler, os valores, o sentimento e a simpatia. Revista Ética e Filosofia Política da UFJF. Minas Gerais, 2013, v.2, n. 16, p. 76-88.

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COSTA, J. S. da. Max Scheler: o personalismo ético. São Paulo: Moderna, 1996.

FELÍCIO, C. B. de F. Direitos humanos ou o direito a ter direitos? Um diálogo com o pensamento político de Hannah Arendt. Tese (Mestrado em Filosofia Política) – Faculdade de Filosofia, Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás. Goiás, p. 112, 2000.

LAFER, C. A Reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

KLAUS, L. R. A abordagem fenomenológica da antropologia filosófica: pessoa e espírito em Max Scheler. 2014. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Centro de Ciências Sociais e Humanas, Santa Maria, RS. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/9135. Acesso em: 20 fev. 2019.

SCHELER, M. Ética: nuevo ensayo de fundamentación de un personalismo ético. Trad. Hilário Rodríguez Sanz. Madrid: Caparrós. 2001.

SCHELER, M. Situação do homem no cosmos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Texto & grafia, 2008.

SCHELER, M. Sociología del saber. Trad. José Gaos. Madrid: Revista de Occidente, 1935.

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OS AUTORES1 Carlos Eduardo Meirelles Matheus Membro da Max Scheler Gesellschaft. Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (1974), graduado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP (1959), graduação em sociologia pelo Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1969), graduado em direito pela Universidade de São Paulo – USP (1958), graduado em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas - FGV (1970), é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética. Marisol Ramírez Patiño Doutoranda em filosofia na Universidad Veracruzana, México; Mestre em filosofia da cultura pela Universalidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo (2013), e Licenciada em filosofia pela Universidad Veracruzana (2010). É membro da Max Scheler Gesellschaft, com sede em Munique, e da Sociedad Mexicana de Personalismo. Publicou capítulos de livros e artigos em revistas especializadas mexicanas e estrangeiras a respeito do pensamento de Max Scheler. Realizou também estágio de pesquisa na Universidad de Navarra (Espanha).

1 Súmulas biográficas apoiadas no currículo Lattes, exceto quando indicada opcionalmente pelo próprio autor.

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Daniel Rodrigues Ramos Doutor em Filosofia pela Pontificia Università Antonianum (2013), mestre em filosofia pela Universidade Federal de Goiás – UFG (2009), graduado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – UFG (2000), graduado em Odontologia pela Universidade Federal de Uberlândia (1994). Atualmente, é professor efetivo no curso de Filosofia da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e desenvolve pesquisas na área de fenomenologia, em especial, em Husserl, Scheler e Heidegger. Publicou A questão do Ereignis em Heidegger, obra que divulga os resultados da pesquisa doutoral no pensamento tardio de Heiddeger, um dos primeiros estudos publicados no Brasil em torno dos Beiträge zur Philosophie e de outras obras correlatas pertencentes ao ciclo de obras heideggerianas em que se expõe o pensamento da história do ser. Membro do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq. Renato Kirchner Doutor e mestre formado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, graduado em filosofia pela Universidade São Francisco – USF, SP. Professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, coordenador do Programa de mestrado stricto sensu em ciências da religião na PUC-Campinas. Membro do corpo docente permanente da Faculdade de filosofia (2010-atual), da Faculdade de biblioteconomia (2011-atual) e do Programa de Pós-Graduação em ciências da religião (2014-atual). Membro do conselho da Faculdade de filosofia e do Núcleo Docente Estruturante (NDE) da Faculdade de Biblioteconomia. Atualmente, coordena projeto de pesquisa vinculado ao programa de mestrado em ciências da religião e ao programa de iniciação científica pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Leciona diversas

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Os autores

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disciplinas na pós-graduação (ciências da religião) e graduação (filosofia e biblioteconomia) e orienta alunos de mestrado em nível de pós-graduação em ciências da religião. Membro do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq. Maiara Rúbia Miguel Doutoranda em ciência da religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF (2017), onde é bolsista CAPES e desenvolve tese sob orientação do Prof. Dr. Frederico Pieper Pires, intitulado: O ressentimento e o sagrado a partir de René Girard: um olhar sobre a ambiguidade do religioso. Mestre em ciências da religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC (2016), onde foi bolsista Taxa-Santander e desenvolveu o trabalho de dissertação, sob orientação do Prof. Dr. Newton Aquiles von Zuben, intitulado: O modelo religioso e a experiência religiosa da comunidade mateana: uma análise à luz de Max Scheler. Possui graduação em filosofia, com ênfase em Ética (2014) pela mesma universidade. Nathalie Barbosa de La Cadena Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, Departamento de filosofia. Doutora em filosofia pela UFRJ (2010). Suficiência Investigadora pela Universidade de Valladolid - España (2008); Doutora em direito pela Universidad de Valladolid - Espanha (2016); Pós-doutorado em filosofia na Durham University - Inglaterra (2014-2015); Mestre em filosofia pela UFRJ (2005); Bacharel em filosofia pela UFRJ (2006). Bacharel em direito pela Universidade Cândido Mendes – UCAM (2002). Membro da Associação Portuguesa de Filosofia fenomenológica – AFFEN. Membro do Conselho editorial da Revista Ética e Filosofia Política. Presidente da Comissão Permanente de Pessoal Docente da UFJF desde 2016.

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Studium

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Rodrigo Lopes Figueiredo Mestrando em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE (2004); Especialista em docência no ensino superior pelo Centro Universitário Assis Gurgacz – FAG; Bacharel e Licenciado em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Atualmente é professor na rede pública (SEED - PR). Tem experiência na área de filosofia, com ênfase em ética, atuando principalmente nos seguintes temas: “sentimento moral”, “vivência” e “convivência”, “associação”, “dissociação humana” e “fundamentação da moralidade”. Vinicius Valero Pereira Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Mestre em filosofia pela mesma instituição (2012) com uma dissertação sobre as relações teóricas entre Psicologia e Ontologia, tendo como norte a obra do filósofo Franz Brentano. Estuda as questões pertinentes à tradição fenomenológica husserliana, com especial atenção à psicologia descritiva, teoria das partes e dos todos, unidade da consciência e a interface entre esta tradição filosófica e a psicologia científica contemporânea. É Bacharel em Psicologia (2009). Paulo Ricardo da Silva Mestrando em filosofia pela Universidade Estadual de Maringá – UEM; Pós-graduação em Saúde Mental pelas Faculdades Integradas AVM (2015); graduado em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE (2018); graduado em Psicologia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (2011). Tem experiência profissional na área de Psicologia. Membro do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq.

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Os autores

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Leila Rosibeli Klaus Doutoranda do Programa de Pós-graduação em filosofia da Universidade Federal do Paraná – UFPR; Mestre em filosofia (2014) pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, na área de fenomenologia e compreensão; Licenciada em filosofia (2012) pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, com um semestre de experiência na Universität Trier (2011-2012), Alemana. Pesquisa principalmente na área de fenomenologia, com interesse na metafísica presente na antropologia filosófica de Max Scheler. Membra do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq. Geder Paulo Friedrich Cominetti Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE; Mestre em filosofia pela mesma instituição (2013); professor efetivo de filosofia no Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná – IFPR); Bacharel (2009) e Licenciado (2010) em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Bacharel em Direito pela Universidade Paranaense – UNIPAR (2010). Membro do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq. Giovani Augusto dos Santos Mestrando em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, na linha de pesquisa de Metafísica e Conhecimento. Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário FAAT. Participou de Iniciação Científica com ênfase em Psicologia Escolar Educacional. Atualmente desenvolve pesquisas em psicologia fenomenológica-existencial, especificamente em Daseinsanálise. Membro do grupo de pesquisa

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Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq.

Ana Claudia Barbosa Nunes Aluna especial do curso de mestrado em filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE (2018); Licenciada em filosofia pela mesma instituição (2017); acadêmica do curso de Pedagogia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, Campus de Cascavel; acadêmica da Pós-graduação lato sensu de Educação Inclusiva e Atendimento Educacional Especializado da Universidade Paranaense – UNIPAR.

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OS ORGANIZADORES Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Doutor em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ; atualmente é Professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, na qual leciona e orienta dissertações e teses para o Programa de Pós-graduação em filosofia (mestrado e doutorado). Professor colaborador do mestrado em filosofia da Universidade Estadual de Maringá – UEM. Membro associado da Sociedad Iberoamericana de Estudios Heideggerianos – SIEH, sócio efetivo da Associação Portuguesa de Filosofia Fenomenológica – AFFEN, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Fenomenologia – SBF, dedica-se aos estudos de Heidegger desde o ano de 1995, assinando capítulos em coletâneas, além de inúmeros artigos publicados em revistas periódicas nacionais e internacionais. Entre seus principais livros estão: Linguagem e método (FGV, 2007); Heidegger & a educação (Autêntica, 2008); 10 Lições sobre Heidegger (Vozes, 2015) e 10 Lições sobre Gadamer (Vozes, 2017). É Editor-Chefe e Fundador da AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics. Líder do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq. Katyana Martins Weyh Mestre em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE (2019), área de concentração: filosofia contemporânea. Linha de pesquisa: metafísica e conhecimento. Ênfase de pesquisa: fenomenologia. Formada em filosofia (Licenciatura Plena) pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE (2016), campus de Toledo; formada em Psicologia pela Universidade Norte do Paraná – UNOPAR (2016), campus Cascavel. É membro da comissão

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executiva da Revista AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics. Membra do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq. Eduardo Henrique Silveira Kisse Doutorando em filosofia pela Ruhr-Universität Bochum - RUB (2018) Alemana; mestre pela mesma instituição (2017). Área de concentração: homem e cultura. Possui graduação (Bacharelado e Licenciatura Plena) em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ (2012). Tem experiência no ensino de Filosofia (Colégio Pedro II, RJ). Seu foco de pesquisa em filosofia tem uma dedicação especial à filosofia da vida, à hermenêutica e à metodologia das ciências humanas, com ênfase na obra de W. Dilthey. É membro da comissão executiva da Revista AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics. Membro do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq. Marcelo Ribeiro da Silva Mestrando em filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE; Licenciado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR; Bacharel em teologia pela Faculdade Missioneira do Paraná - FAMIPAR. Especialista em Formação de Presbíteros pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA). É membro da comissão executiva da Revista AORISTO - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics. Membro do grupo de pesquisa Fenomenologia, hermenêutica e metafísica, credenciado ao CNPq.

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Os organizadores

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José Dias Licenciado em filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em teologia pela UNICESUMAR (2014); Especialista em docência no ensino superior pela UNICESUMAR (2015); Mestre em direito canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em filosofia pela mesma (2006); Doutor em direito canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, (2005); Doutor em filosofia pela mesma instituição italiana (2008). Atualmente é professor adjunto da UNIOESTE, no campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura em Filosofia; professor Titular da UNICESUMAR, Maringá, PR, atuando no Mestrado em gestão do conhecimento nas organizações; pesquisador do Grupo de pesquisa educação e gestão e do Grupo de pesquisa ética e política, da UNIOESTE, CCHS, campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.

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Imagem da capa: SADER, August. Filósofo [Max Scheler], c. 1925, impresso 1990. Fotografia, impressão de gelatina prateada em papel. Imagem: moldura de 258 x 188 mm : 482 x 382 x 32 mm. Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/artworks/sander-philosopher-max-scheler-al00060. Acesso em: 01 set. 2019.

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