pena de morte e aborto em bobbio · procurado no pensamento de norberto bobbio (1909-2004)...

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José Francisco de Assis DIAS P P P E E E N N N A A A D D D E E E M M M O O O R R R T T T E E E E E E A A B B O O R R T T O O P P R R O O C C U U R R A A D D O O O Problema da Pena de Morte e do Aborto Procurado no Pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004) Humanitas Vivens LTDA Uma Instituição a serviço da Vida

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  • José Francisco de Assis DIAS

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    O Problema da Pena de Morte e do Aborto Procurado no Pensamento de Norberto Bobbio

    (1909-2004)

    Humanitas Vivens LTDA Uma Instituição a serviço da Vida

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    PENA DE MORTE E ABORTO PROCURADO

    O Problema da Pena de Morte e do Aborto Procurado no Pensamento de

    Norberto Bobbio (1909-2004)

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    José Francisco de Assis DIAS

    PPPEEENNNAAA DDDEEE MMMOOORRRTTTEEE EEE AAABBBOOORRRTTTOOO PPPRRROOOCCCUUURRRAAADDDOOO

    O Problema da Pena de Morte e do Aborto Procurado no Pensamento de

    Norberto Bobbio (1909-2004)

    Humanitas Vivens Ltda

    Uma Instituição a serviço da Vida!

    Sarandi (PR) 2009

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    Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda EDITORES:

    Daniela Valentini André Luis Sena dos SANTOS CONSELHO EDITORIAL:

    Antonio LORENZONI NETO, Elmer da Silva MARQUES Kassiane Menchon Moura ENDLICH

    REVISÃO GERAL: Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS, Paulo Cezar FERREIRA

    CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Agnaldo Jorge MARTINS

    Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331

    O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de

    vista da Editora, seus representantes e editores. Todos os direitos reservados.

    Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou

    banco de dados sem permissão escrita do Autor e da Editora Humanitas Vivens Ltda.

    Praça Ipiranga, 255 B, CEP: 87111-005, Sarandi - PR www.humanitasvivens.com.br – [email protected]

    Fone: (44) 3042-2233

    Dias, José Francisco de Assis D541p Pena de morte e aborto procurado :

    o problema da pena de morte e do aborto

    procurado no pensamento de Norberto Bobbio

    (1909-2004) / José Francisco de Assis Dias. –-

    Sarandi : Humanitas Vivens, 2009.

    176p.

    ISBN 978-85-61837-20-4

    Modo de acesso: www.humanitasvivens.com.br

    1. Pena de morte. 2. Aborto. 3. Pena de morte – História. 4. Bobbio, Norberto, 1909 –

    2009 – Crítica e interpretação.

    CDD 21.ed. 341.541

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    Ao Giovanni, na sua condição de ‘humanitas vivens’,

    dotado de ímpar dignidade humana; na sua condição de ‘imago Dei’ redimida,

    elevado à dignidade de ‘filho de Deus’.

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    Sumário

    Abreviações ......................................................................... Introdução Geral ................................................................ CAPÍTULO I: A PENA DE MORTE ANTES DE CESARE BECCARIA ................................................... 1. A Pena de Morte na Antiguidade Clássica ........................ 2. A Pena de Morte na Europa Cristã ................................... 3. A Pena de Morte e a Concepção Orgânica do Estado .................................... CAPÍTULO II: A PENA DE MORTE EM CESARE BECCARIA ..................................................... 1. As Leis e o Direito de Punir .............................................. 2. A Justiça e as Penas ........................................................... 3. A Finalidade e a Prontidão das Penas .............................. 4. Os Maiores “Freios” dos Delitos ....................................... 5. A Pena de Morte: Inútil e Injusta ...................................... 6. Intensidade e Extensão das Penas ..................................... CAPÍTULO III: A PENA DE MORTE DEPOIS DE CESARE BECCARIA ........................................................... 1. A Pena de Morte na França ............................................... 2. A Pena de Morte na Península Ibérica .............................. 3. A Pena de Morte na Rússia ................................................

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    CAPÍTULO IV: A PENA DE MORTE NA PENÍNSULA ITÁLICA E NA INGLATERRA ....................................... 1. Península Itálica ................................................................. 2. A Pena de Morte na Inglaterra .......................................... CAPÍTULO V: ILUSTRES PENSADORES ANTI-ABOLICIONISTAS ................................................... 1. Jean-Jacques ROUSSEAU (1712-1778) ........................... 2. Immanuel KANT (1724-1804) .......................................... 3. Georg Wilhelm Friedrich HEGEL (1770-1831) ................ CAPÍTULO VI: A PENA DE MORTE NO DEBATE ATUAL .................... 1. A Função Retributiva-Justa da Pena .................................. 2. A Função Preventiva-Utilitarista da Pena ......................... 3. A Pena de Morte a Partir do Indivíduo .............................. 4. Argumentos Abolicionistas e Reversíveis .......................... CAPÍTULO VII: A PENA DE MORTE E O DIREITO À VIDA .................. 1. As Declarações do Direito à Vida ..................................... 2. A Pena de Morte como Direito de Matar .......................... 3. “Não Matar! Única “Razão” Abolicionista ....................... CAPÍTULO VIII: O ABORTO PROCURADO .................................................. 1. A Legge 194/78 ..................................................................

    1.1. “Itinerário” Jurídico da Legge 194/78 ........................ 1.2. Aspectos Críticos da Legge 194/78 ............................

    2. O Aborto Procurado e o Direito à Vida ............................ 2.1. O Nascituro na Relação Abortiva .............................

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    2.2. Três Direitos Incompatíveis ...................................... 2.3. Direito à Procriação

    Consciente e Responsável ......................................... 2.4. Privilégio e Honra de Afirmar: Não matar! .............

    Considerações Finais ............................................................ FONTES E BIBLIOGRAFIA ............................................ 1. Fontes ................................................................................

    1.1. Repertórios Bibliográficos de Norberto Bobbio ........................................................... 1.2. Escritos de Norberto Bobbio ......................................

    1.2.1. Retratos Biográficos .......................................... 1.2.2. Autores de Norberto Bobbio .............................. 1.2.3. Escritos Autobiográficos .................................... 1.2.4. Escritos Morais .................................................. 1.2.5. Escritos Sobre Democracia ................................ 1.2.6. Escritos Sobre Filosofia da Política ................... 1.2.7. Escritos Sobre Direitos Humanos ...................... 1.2.8. Escritos Sobre Fascismo .................................... 1.2.9. Escritos Sobre K. Marx Marxismo .................... 1.2.10. Escritos Sobre Socialismo ............................... 1.2.11. Escritos Sobre Filosofia do Direito .................. 1.2.12. Escritos Sobre Paz e Guerra ............................. 1.2.13. Escritos Sobre Intelectuais e Poder ..................

    1.3. Publicações Coletâneas dos Escritos de Norberto Bobbio em Língua Italiana …......................

    1.4. Publicações Coletâneas dos Escritos de Norberto Bobbio em Língua Portuguesa, no Brasil .....................................................................

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    2. Bibliografia ...................................................................... 2.1. Escritos Sobre Norberto Bobbio................................. 2.2. Escritos Clássicos ....................................................... 2.3. Documentos da Sé Apostólica ................................... 2.4. Outros Escritos ...........................................................

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    Abreviações

    CenTSF BOBBIO, N., - DEL NOCE, A., Centro: tentazione senza fine, Reset, Milano 1995.

    ConDizGi BOBBIO, N., Contributi ad un dizionario giuridico (Analisi e diritto, Serie teorica, 15), G. Giappichelli, Torino 1994.

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    DalFaD BOBBIO, N., Dal fascismo alla democrazia, I regimi, le ideologie, le figure e le culture politiche (Tascabili Baldini & Castoldi, 76), a cura di M. BOVERO, Baldini & Castoldi, Milano 1997.

    DalStrFunz BOBBIO, N., Dalla struttura alla funzione, Nuovi studi di teoria del diritto, Edizioni di Comunità, Milano 19842.

    DeiDP C. BECCARIA, Dei delitti e delle pene, 1764, a cura de F. VENTURI, Einaudi, Torino 19942.

    DeSe BOBBIO, N., De senectute e altri scritti autobiografici (Gli struzzi, 481), Einaudi, Torino 1996.

    DesSin BOBBIO, N., Destra e sinistra, Ragioni e significati di una distinzione politica (Saggine 65), Donzelli, Roma 1994, 20044.

    DialIntRep BOBBIO, N., - VIROLI, M., Dialogo intorno alla repubblica, Laterza, Roma-Bari 2001.

    DizPol BOBBIO, N., - MATTEUCCI, N., - PASQUINO, G., (dir.), Dizionario di Politica, UTET, Milano 1983, 200410.

    DubScel BOBBIO, N., Il Dubbio e la scelta, Intellettuali e potere nella società contemporanea (Qualità Paperbacks, 10), Carocci Editore, Roma 1993, 20012.

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    EdD BOBBIO, N., L’età dei diritti (Einaudi Tascabili, Saggi, 478), Einaudi, Torino 1990, 1997³.

    EdM BOBBIO, N., Elogio della mitezza e altri scritti morali (Net 243), Il Saggiatore, Milano 1998, 2006².

    EgLi BOBBIO, N., Eguaglianza e libertà (Einaudi Contemporanea, 40), Einaudi, Torino 1995.

    FdD BOBBIO, N., Il futuro della democrazia (Einaudi Tascabili, Saggi, 281), Einaudi, Torino 1984, 1995³.

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    ItFed BOBBIO, N., Italia fedele, il mondo di Gobetti (Il filo rosso, 8), Passigli Editori, Firenze 1986.

    KpVernunft KANT, I., Kritik der praktischen Vernunft (1788), trad. ital. Critica della ragion pratica (Bompiani Testi a Fronte, 8), a cura de V. MATHIEU, Milano 2000.

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    LaSiKa BOBBIO, N., - BOSETTI, G., - VATTIMO, G., La sinistra nell’era del karaoke, Reset, Milano 1994.

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    MeCom BOBBIO, N., Maestri e compagni, Passigli Editori, Firenze 1984, 1994².

    NéNé BOBBIO, N., Né con Marx né contro Marx, a cura de Carlo VIOLI, Editori riuniti, Roma 1997.

    PoGiu BOBBIO, N., Il positivismo giuridico, Lezioni di Filosofia del diritto (Recta Ratio, Terza serie, 2), a cura de N. MORRA, G. Giappichelli, Torino 1996.

    PolCul BOBBIO, N., Politica e cultura (Biblioteca Einaudi 200), Einaudi, Torino 1955, 20053.

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    QSoc BOBBIO, N., Quale socialismo? Discussione di un’alternativa (Nuovo Politecnico, 84), Einaudi, Torino 1976, 19775.

    SagScPol BOBBIO, N., Saggi sulla scienza politica in Italia (Economici Laterza 221), Laterza, Roma-Bari 1969, 20053.

    SocStHaM BOBBIO, N., Società e Stato da Hobbes a Marx: corso di filosofia della politica, 1972-1973, CLUT, Torino 1973.

    StGovSoc BOBBIO, N., Stato, governo, società, Frammenti di un dizionario politico (Einaudi tascabili. Saggi 318), Einaudi, Torino 1985, 19952.

    StudiCatt BOBBIO, N., Una filosofia militante, Studi su Carlo Cattaneo (Einaudi Paperbacks, 24), Einaudi, Torino 1971.

    StudiHeg BOBBIO, N., Studi hegeliani, Diritto, società civile, stato (Einaudi Paperbacks e Readers, 121), Einaudi, Torino 1981.

    TdR BOBBIO, N., Tra due repubbliche, Alle origini della democrazia italiana (Saggine, 19), Donzelli, Roma 1996.

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    TeGePo BOBBIO, N., Teoria generale della politica (Biblioteca Einaudi, 73), a cura di M. BOVERO, Einaudi, Torino 1999.

    TeoGeDi BOBBIO, N. Teoria generale del diritto (Recta Ratio, Seconda serie, 1), G. Giappichelli, Torino 1993.

    TerAs BOBBIO, N., Il Terzo assente, Saggi e discorsi sulla pace e sulla guerra, a cura di P. POLITO, Edizioni Sonda, Milano 1989.

    ThH BOBBIO, N., Thomas Hobbes (Piccola biblioteca Einaudi 267), Einaudi, Torino 1989, 20042.

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    Introdução Geral A presente pesquisa, que é parte de uma outra

    pesquisa mais ampla com título NÃO MATAR, tem como objetivo geral conchecer as duas primeiras conseqüências da afirmação bobbiana do princípio ético Não matar como um imperativo categórico: a sua “repugnância” à pena de morte e ao aborto procurado1.

    A primeira agressão ao direito humano fundamental à vida a ser trabalhada neste estudo é a a pena de morte. Por causa da importância epocal da obra Dei delitti e delle pene, 1764, de Cesare Beccaria2, achamos conveniente dividir o debate filosófico sobre a pena de morte em três momentos: “antes” de Cesare Beccaria, “em” Cesare Beccaria e “depois” de Cesare Beccaria.

    Trabalhando a pena de morte antes de Cesare Beccaria, mesmo que sumariamente, conheceremos o problema da pena de morte na antiguidade clássica, a pena de morte na Europa cristã e, por fim, conheceremos a pena de morte e a concepção orgânica do Estado.

    1 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 198-199. 2 Cesare BECCARIA, nasceu a Milano, no dia 15 de Maio de 1738, filho do marquês Giovanni SAVERIO e de Maria VISCONTI DI SALICETO, primogênito de uma nobre família, quase rica, e larga de parentesco clerical e leigo. Entre os anos 1763 e 1764 nasceu sua obra prima, Dei delitti e delle pene, publicado a Livorno pelo Coltellini, em Julho de 1764. Morreu no dia 28 de Novembro de 1794.

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    Trabalhando a pena de morte em Cesare Beccaria, conheceremos o problema das leis e o direito de punir e o problema da justiça e as penas; a finalidade e a prontidão das penas, os maiores “freios” dos delitos; bem como a pena de morte como inútil e injusta e, por fim, o problema da intensidade e extensão das penas.

    Devemos esperar o advento do Iluminismo, no “coração” do séc. XVIII, para encontrar, pela primeira vez, um sério e amplo debate sobre a liceidade ou oportunidade da pena capital. A importância histórica do famoso livro de C. Beccaria, Dei delitti e delle pene, 1764, está exatamente nisto: é a primeira obra que enfrenta seriamente o problema da pena de morte e oferece-nos alguns argumentos racionais para dar-lhe uma solução que contrasta com uma tradição secular.3 Segundo C. Beccaria o escopo da sua obra não era diminuir a legítima autoridade, mas aumentá-la.4

    O princípio abolicionista fundamental de C. Beccaria é o seguinte: um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade, e, consequentemente, a vigilância dos magistrados e aquela severidade de um juíz inexorável que, para ser uma virtude útil, deve ser acompanhada por uma doce legislação.5

    3 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 179-180; IDEM, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 203. 4 Cfr. C. BECCARIA, Dei delitti e delle pene, 1764, a cura de F. VENTURI, Einaudi, Torino 19942, A chi legge, p. 4. 5 Cfr. Ibidem, p. 59.

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    Trabalhando a pena de morte depois de Cesare Beccaria, mesmo que sumariamente, conheceremos o problema da pena de morte na França, na Península Ibérica, na Rússia de Catarina II, na Península Itálica e na Inglaterra.

    Depois do Dei delitti e delle pene, 1764, aquilo que foi posto em discussão não foi somente se a pena de morte fosse eticamente lícita, mas também se fosse, verdadeiramente, a maior das penas.6

    Segundo Bobbio, grande parte da fama do livro de Beccaria foi devida, sobretudo, ao facto de ter sido acolhido com grande favor por A. F. M. Voltaire. Beccaria era um “ilustre desconhecido”, enquanto Voltaire era já “Voltaire”.7

    Trabalhando a pena de morte no debate atual, conheceremos a função retributiva-justa da pena em geral, bem como sua função preventiva-utilitarista; depois conheceremos a pena de morte a partir do indivíduo e os principais argumentos abolicionistas e reversíveis.

    Levando o problema da pena de morte ao campo estritamente penalístico da natureza e função das várias sanções, mediante as quais o Estado cumpre a função punitiva e preventiva; ou seja, considerando a pena de morte como sanção e como uma sanção entre tantas outras; como meio para punir o culpado – quia peccatur – e para impedir que, em futuro, outros homens cometam delitos

    6 Cfr. N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 206. 7 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 181-182. Cfr. F. VENTURI, “Introduzione”, in DeiDP, p. XXV-XXVI.

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    semelhantes – ne peccatur – segundo Bobbio as teorias principais que se combateram a golpes de boas razões foram sobretuto duas: retributiva e preventiva.

    Diante da pena de morte, especificamente, podemos pôr duas perguntas: A pena de morte é eticamente lícita? A pena de morte é politicamente oportuna? 8

    Trabalhando a posição bobbiana quanto ao problema do aborto procurado, segunda consequência da sua afirmação do princípio ético Não Matar! como imperativo categórico, conheceremos a Legge 194/78, procurando delinear o contesto “jurídico-cultural” no qual se inseriu a posição bobbiana, preparando o seu discurso sobre o aborto e o direito à vida.

    Um dos argumentos mais frágeis adotados pelos defensores do aborto procurado, segundo Bobbio, foi aquele fundado na observação que o aborto sempre foi praticado: mesmo se se conseguisse demonstrar que a grande maioria das mulheres sempre o praticara, esta constatação de facto não seria uma “boa” razão para considerá-lo moralmente lícito.9

    Como última contribuição, apresentaremos um elenco de fontes e de bibliografia.

    8 Cfr. N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 216. 9 Cfr. IDEM, “Pro e contro un’etica laica” (1983), in EdM, p. 171.

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    CAPÍTULO I:

    A PENA DE MORTE ANTES DE

    CESARE BECCARIA

    Trabalhando a pena de morte antes de Cesare Beccaria, mesmo que sumariamente, conheceremos o problema da pena de morte na antiguidade clássica, a pena de morte na Europa cristã e, por fim, conheceremos a pena de morte e a concepção orgânica do Estado.

    1. A Pena de Morte na Antiguidade Clássica.

    O problema se fosse ou não lícito condenar à morte um homem culpado, por séculos, não foi nem mesmo posto. Observou Bobbio, que entre as penas a serem infligidas a quem havia transgredido as leis da Tribo, ou da Cidade, ou do Povo, ou do Estado, existisse também a pena de morte, e que a pena de morte fosse a rainha das penas, aquela que satisfazia simultaneamente a necessidade de vingança,

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    justiça e segurança do corpo colectivo em relação a um dos seus membros “infectados”, nunca foi posto em dúvidas.10

    A propósito dos homicídios voluntários, Platão falava da pena de morte como de uma pena natural. De Platão, Bobbio citou sua obra Leis; primeira grande obra sobre as leis e sobre a justiça da nossa civilização ocidental.

    No libro IX das Leis, Platão dedicou algumas páginas ao problema das leis penais. Reconheceu que a pena deve haver o escopo de render melhor o delinquente, mas acrescentou ainda que, se se demonstra que o delinquente é incurável, a morte será para ele o menor dos males:

    Se o responsável destes terríveis e gravíssimos crimes contra os deuses, os genitores e o Estado resulta ser um cidadão, o juiz deverá considerar este homem à maneira de um sujeito irrecuperável. De fato, não pode não considerar a circunstância que ele, não obstante a educação e a formação que recebeu desde pequeno, manchou-se dos mais graves delitos. A pena para ele será a morte, que é ainda o menor dos males; quanto aos outros, o fato que ele seja justiciado com ignomínia e feito expirar ao de fora dos confins do Estado será exemplo útil.11

    Como se nota, Platão fala da pena de morte em relação a uma série muito ampla de delitos, dos delitos contra as divindades e contra o culto, aos delitos contra os genitores ou, em geral, aos homicídios voluntários. Falando dos homicídios voluntários, Platão afirma que os

    10 Cfr. N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 178. 11 Cfr. PLATÃO, As Leis, IX, 854e-855a.

  • 23

    delinquentes devem necessariamente pagar a pena natural, isto é, aquela de sofrer aquilo que fizeram:

    Para crimes de tal dimensão nos espera um juízo no Ades e, depois, quando se retorna sobre esta Terra se deve descontar a pena segundo a lei de natureza que impõe a cada um de sofrer aquilo que fez, de modo que pelo mesmo destino tocar-lhe-á de morrer à vida de então, por mãos dos outros.12

    Bobbio sublinhou o adjetivo “natural”, e o princípio de sofrer aquilo que fez. Este princípio, que nasce da doutrina da retribuição, ainda mais antiga do que a doutrina platônica, dos pitagóricos, e será re-formulada pelos juristas medievais e repetida por séculos com a famosa expressão segundo a qual o malum passionis deve corresponder ao malum actionis; percorre toda a história do Direito penal e chega, absolutamente intacta, até os nossos dias. Segundo Bobbio, é uma das mais comuns justificações da pena de morte.13

    Bobbio citou Platão para dar um testemunho – o mais autorizado possível – de como a pena de morte fora considerada não somente como perfeitamente legítima, mas até mesmo “natural” desde as origens da nossa Civilização ocidental. Os textos acima são provas de que aceitar a morte como pena nunca constituíu um problema.14

    12 Cfr. Ibidem, IX, 870e. 13 Cfr. N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 178-179. 14 Cfr. Ibidem, p. 179.

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    2. A Pena de Morte na Europa Cristã.

    Tanto na antiguidade clássica quanto na Europa cristã foi “indiscutível” o princípio da retribuição: quem matou deve morrer. Bobbio afirmou que a pena de morte foi, portanto, sempre e por toda parte considerada a pena por excelência.15 Se olharmos ao longo curso da História humana, devemos reconhecer, nos agrade ou não, que o debate pela abolição da pena de morte pode-se dizer apenas iniciado.16

    Bobbio deixa de considerar a influência “ambivalente” do Cristianismo sobre a solução do problema da pena de morte: “ambivalente”, observou ele, porque da mesma visão religiosa do Mundo e, portanto, das relações de convivência, foram tirados, segundo os tempos e as circunstâncias, argumentos favoráveis e contrários à pena de morte.17 Bobbio tomou em consideração exclusivamente as grandes concepções filosóficas da Sociedade e do Estado sobre o problema da pena de morte.

    A aplicação da pena de morte, segundo Bobbio, constituíu um problema tão pequeno que mesmo o Cristianismo, enquanto Religião da não violência, do noli resistere malo, uma Religião que também levantou – sobretudo nos seus primeiros séculos – o problema da

    15 Cfr. IDEM, “Sulla pena di morte” (1999), in Nuova Antologia, 583, 2212 (Outubro-Dezembro de 1999), pp. 32. 16 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 178. 17 Cfr. IDEM, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, pp. 203-204.

  • 25

    objeção de consciência ao serviço militar e à obrigação de empunhar armas; uma Religião que há por Divino “inspirador” um condenado à morte, nunca contrastou substancialmente a prática da pena capital.18

    3. A Pena de Morte e a Concepção Orgânica do Estado.

    A concepção orgânica do Estado, segundo a qual o todo é antes das partes, dominante no Mundo Antigo19 e na Idade Média20 ofereceu um dos argumentos mais comuns para justificar a pena de morte.21

    Se o homem, enquanto animal político, não pode viver fora de um Corpo social, do qual é, logicamente, um membro; a vida ou a sobrevivência deste Corpo social, na sua totalidade, é um bem superior à vida e à sobrevivência de uma das suas partes. Assim sendo, a vida do Indivíduo-cidadão – parte – deve ser sacrificada à vida do “todo” quando, sendo infectado, arrisca de contagiar e de pôr em perigo a vida do inteiro corpo. Por séculos, foi indiscutível o texto de Tomás de Aquino, onde se lê que cada parte é ordenada ao todo como o imperfeito é ordenado ao perfeito.

    18 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 179. 19 Cfr. ARISTÓTELES, Politica, 1253a. 20 TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiae, I-II, 72, a 4. 21 Cfr. N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, pp. 203-204.

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    Portanto, a exportação de um membro infectado ajuda à saúde do inteiro corpo humano; é louvável e salutar suprimi-lo. Assim sendo, cada pessoa considerada a parte, põe-se em relação à Comunidade como a parte em relação ao todo; consequentemente, se um homem constitui um perigo para a Comunidade é louvável e salutar matá-lo para salvar o bem comum.22

    É significativo que as primeiras teorias abolicionistas da pena de morte, a começar daquela de Cesare Beccaria, com o seu Dei delitti e delle pene, 1764, desenvolveram-se no âmbito da concepção individualista da Sociedade e do Estado; que inverteu completamente a relação entre o todo e as partes; e tornou possível, depois de T. Hobbes, o fundamento contratualista do Estado. C. Beccaria não só é um contratualista mas utiliza, como um dos argumentos em

    22 Cfr. TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, IIa IIae, q. 64, a. 2: Respondeo dicendum quod, sicut dictum est, licitum est occidere animalia bruta inquantum ordinantur naturaliter ad hominum naturaliter ad hominum usum, sicut imperfectum ordinatur ad perfectum. Omnis autem pars ordinatur ad totum ut imperfectum ad perfectum. Et ideo omnis pars naturaliter est propter totum. Et propter hoc videmus quod si saluti totius corporis humani expediat praecisio alicuius membri, puta cum est putridum et corruptivum aliorum, laudabiliter et salubriter abscinditur. Quaelibet autem persona singularis comparatur ad totam communitatem sicut pars ad totum. Et ideo si aliquis homo sit periculosuscommunitati et corruptivus ipsius propter aliquod peccatum, laudabiliter et salubriter occiditur, ut bonum commune conservatur: modicum enim fermentum totam massam corrumpit, ut dicitur I ad Cor. 5. Cfr. Ainda L. TAPARELLI, Saggio teoretico di diritto naturale (1848), § 840, citado por N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 204.

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    favor da abolição da pena de morte, exatamente a origem contratual do Estado23.

    23 Cfr. N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 205.

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    CAPÍTULO II:

    A PENA DE MORTE EM

    CESARE BECCARIA

    Trabalhando a pena de morte em Cesare Beccaria, conheceremos o problema das leis e o direito de punir e o problema da justiça e as penas; a finalidade e a prontidão das penas, os maiores “freios” dos delitos; bem como a pena de morte como inútil e injusta e, por fim, o problema da intensidade e extensão das penas.

    Devemos esperar o advento do Iluminismo, no “coração” do séc. XVIII, para encontrar, pela primeira vez, um sério e amplo debate sobre a liceidade ou oportunidade da pena capital. A importância histórica do famoso livro de C. Beccaria, Dei delitti e delle pene, 1764, está exatamente nisto: é a primeira obra que enfrenta seriamente o problema da pena de morte e oferece-nos alguns argumentos racionais para dar-lhe uma solução que contrasta com uma tradição secular.24 Segundo C. Beccaria 24 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 179-180; IDEM, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 203.

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    o escopo da sua obra não era diminuir a legítima autoridade, mas aumentá-la.25

    O princípio abolicionista fundamental de C. Beccaria é o seguinte:

    um dos maiores freios dos delitos não é a crueldade das penas, mas a sua infalibilidade, e, consequentemente, a vigilância dos magistrados e aquela severidade de um juiz inexorável que, para ser uma virtude útil, deve ser acompanhada por uma doce legislação.26

    1. As Leis e o Direito de Punir.

    Segundo Beccaria as leis são as “condições” com que homens independentes e isolados se uniram em Sociedade, cansados de viver num contínuo estado de guerra e de gozar uma liberdade “inútil” pela incerteza de conservá-la. Sacrificaram uma parte desta liberdade para gozar do restante dela com segurança e tranqüilidade. A soma de todas as liberdades sacrificadas ao bem de cada um forma a Soberania de uma Nação, a soberania de todos juntos. O Soberano, portanto, é o legítimo depositário e administrador desse depósito de liberdade.

    25 Cfr. C. BECCARIA, Dei delitti e delle pene, 1764, a cura de F. VENTURI, Einaudi, Torino 19942, A chi legge, p. 4. 26 Cfr. Ibidem, p. 59.

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    Não bastava, porém, formar esse depósito, precisava defendê-lo das privadas usurpações de cada homem em particular; que buscava sempre tirar do depósito não só a própria porção ali posta, mas ainda usurpar-se aquela porção de liberdade alheia. Precisavam de certos motivos sensíveis capazes de dissuadir os seus ânimos, impedindo-lhes de “afundar” no antigo caos, as leis da Sociedade civil.27

    Esses motivos sensíveis são as penas estabelecidas contra os infratores das leis. Segundo Beccaria, a experiência mostrou que os homens não adotam estáveis princípios de conduta, nem se afastam daquele princípio universal de dissolução senão por motivos que tocam imediatamente os sentidos e que, continuamente, apresentam-se à mente para contrabalancear as fortes impressões das paixões parciais que se opõem ao bem universal.28

    Cada pena, porém, que não derive da absoluta necessidade, é tirânica: todo ato de autoridade do homem sobre o homem que não derive da absoluta necessidade é tirânico. O direito do Soberano de punir os delitos funda-se na necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares. As penas são tanto mais justas, quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e a liberdade que o Soberano garante aos súditos.29

    Beccaria observou que nenhum homem fez o dom gratuito de parte da própria liberdade em vista do bem

    27 Cfr. Ibidem, § I. 28 Cfr. Ibidem. 29 Cfr. Ibidem, § II.

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    público; se fosse possível, cada um de nós desejaria que os pactos que obrigam os outros, não nos obrigassem: cada homem considera-se o centro do Globo.30

    Segundo Beccaria, foi a necessidade que obrigou os homens a ceder parte da própria liberdade. Cada homem não quer pôr no público depósito de liberdade, mais que o mínimo necessário; somente aquilo que baste a induzir os outros homens a defendê-lo. O agregado destas mínimas porções possíveis forma o direito de punir; tudo aquilo que vai além, é abuso e não justiça é “fato”, mas não Direito.31

    2. A Justiça e as Penas.

    Por justiça Beccaria entendeu o vínculo necessário para manter unidos os interesses particulares, sem o qual se dissolveriam no antigo estado de insociabilidade. Todas as penas que ultrapassam a necessidade de conservar este vínculo são injustas pela sua própria natureza. Não devemos atribuir à palavra justiça uma idéia de alguma coisa de real, como de uma força física, ou de um ser existente. Por justiça Beccaria não entende aquela emanada de Deus e que há a sua imediata relação com as penas e recompensas da vida futura.32

    30 Cfr. Ibidem. 31 Cfr. Ibidem. 32 Cfr. Ibidem.

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    A primeira conseqüência de quanto exposto é que somente as leis podem decretar as penas aos delitos. Esta autoridade, segundo Beccaria, reside somente junto ao Legislador que representa a Sociedade toda, unida por um contrato social.

    A segunda consequência é que se cada membro particular é ligado à Sociedade, por sua vez, esta é igualmente ligada a cada membro particular por um contrato que, pela sua mesma natureza, obriga ambas as partes.33

    A terceira conseqüência é que quando se provasse que a atrocidade das penas fosse somente inútil, ainda neste caso ela seria contrária às virtudes benéficas e também à justiça e à natureza do contrato social mesmo.34

    A quarta conseqüência, é que a autoridade de interpretar as leis penais não pode residir junto aos juízes criminais porque eles não são legisladores.35

    Segundo Beccaria é interesse comum que não se cometam delitos porque prejudicam a Sociedade. Os obstáculos – as penas – que visam dissuadir os homens dos delitos devem ser proporcionais ao “dano” que tais delitos procurariam ao bem público; e também proporcionais aos impulsos que lhes conduzem a tais delitos. Em uma palavra, deve existir uma proporção entre os delitos e as penas.36

    33 Cfr. Ibidem, § III. 34 Cfr. Ibidem. 35 Cfr. Ibidem, § IV. 36 Cfr. Ibidem, § VI.

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    A verdadeira medida dos delitos é o dano à Sociedade. Para Beccaria erram aqueles que acreditam ser verdadeira medida dos delitos a intenção de quem os comete; erram também os que medem os delitos pela dignidade da pessoa ofendida; bem como os que pensam que a gravidade do pecado entrasse na medida dos delitos. A falácia destas opiniões saltará aos olhos de um imparcial examinador das verdadeiras relações entre homens e homens, e das relações entre homens e Deus: a utilidade comum é a base da justiça humana.37

    Segundo Beccaria, as primeiras leis e os primeiros magistrados nasceram da necessidade de reparar as desordens do despotismo físico de cada Homem: este foi o fim instituidor da Sociedade civil.38

    Os grandes interrogativos de Beccaria foram: a morte como pena é verdadeiramente útil e necessária para a segurança e para a boa ordem da Sociedade? E a tortura e os tormentos são justos, e obtém o fim ao qual as leis se propõem? Qual é a melhor maneira de prevenir os delitos? As penas mesmas são, igualmente, úteis em todos os tempos? Quê influência elas tem sobre os costumes?39

    37 Cfr. Ibidem, § VII. 38 Cfr. Ibidem, § IX. 39 Cfr. Ibidem, § XI.

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    3. A Finalidade e a Prontidão das Penas.

    Beccaria afirmou que o fim das penas não é de atormentar e afligir um ser sensível, nem mesmo de desfazer um delito já cometido. Com duras palavras ele perguntou: Num corpo político, que não age por paixão, mas é o tranqüilo moderador das paixões individuais, pode existir esta inútil crueldade, instrumento do furor e do fanatismo ou dos fracos tiranos? Os gritos de um infeliz evocam do passado as ações já consumadas?

    A finalidade da pena, portanto, não é outra que impedir o réu de prejudicar de novo os seus concidadãos e de remover os outros da intenção de imitá-lo. Devem-se escolher as penas e o método de infligi-las, salva a proporcionalidade entre pena e delito, que exercerá uma impressão mais eficaz e mais durável sobre os ânimos dos homens e será a menos tormentosa sobre o corpo do réu.40 Isto porque o fim político das penas é o terror dos outros homens.41

    40 Cfr. Ibidem, § XII: Può egli in un corpo politico, che, ben lungi di agire per passione, è il tranquillo moderatore delle passioni particolari, può egli albergare questa inutile crudeltà stromento del furore e del fanatismo o dei deboli tiranni? Le strida di un infelice richiamano forse dal tempo che non ritorna le azioni già consumate? Il fine dunque non è altro che d’impedire il reo dal far nuovi danni ai suoi cittadini e di rimuovere gli altri dal farne uguali. Quelle pene dunque e quel metodo d’infliggerle deve essere prescelto che, serbata la proporzione, farà una impressione più efficace e più durevole sugli animi degli uomini, e la meno tormentosa sul corpo del reo. 41 Cfr. Ibidem, § XVI.

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    Segundo Beccaria, a pena proporcionada será tanto mais justa e útil, quanto mais rápida e próxima ao delito será a sua execução. Mais justa porque poupa ao réu os inúteis e ferozes tormentos da incerteza, que crescem com o vigor da imaginação e com o sentimento da própria fraqueza; também porque a privação da liberdade sendo uma pena, ela não pode preceder a sentença se não quando a necessidade o exige: a prisão deve durar o menor tempo possível e deve ser menos dura possível.42

    A prontidão da pena é mais útil porque quanto menor é o tempo que passa entre o delito e a pena, tanto mais forte e mais durável é, no ânimo humano, a associação das duas idéias delito-pena: o delito como causa e a pena como efeito necessário e sem escapatória.43

    4. Os Maiores “Freios” dos Delitos.

    Segundo Beccaria um dos maiores freios dos delitos não é a “crueldade” das penas, mas a sua infalibilidade unida à vigilância dos magistrados e a severidade de um

    42 Cfr. Ibidem, § XIX: Quanto la pena sarà più pronta e più vicina al delitto commesso ella sarà tanto più giusta e tanto più utile. 43 Cfr. Ibidem: Ho detto che la prontezza delle pene è più utile, perché quanto è minore la distanza del tempo che passa tra la pena ed il misfatto, tanto è più forte e più durevole nell’animo umano l’associazione di queste due idee, delitto e pena, talché insensibilmente si considerano uno come cagione e l’altra come effetto necessario immancabile.

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    juíz inexorável que, para ser uma útil virtude, deve ser acompanhada por uma doce legislação.

    A certeza de um castigo, mesmo se moderado, fará sempre uma impressão maior do que faria o temor do mais terrível castigo, unido à esperança de impunidade. Os males, mesmo mínimos, quando são certos, sempre assustam os ânimos humanos. A esperança sempre afasta a idéia dos males maiores, ainda mais quando a impunidade aumenta a sua força.44

    A atrocidade da pena faz com que se deseje esquivá-la tanto quanto é grande o mal ao qual se vai encontro; fazendo com que, para fugir da pena de um só delito, o delinqüente cometa muitos outros. Segundo Beccaria os países e os tempos dos mais atrozes suplícios foram sempre aqueles dos mais sanguinários e desumanos delitos, porque o mesmo espírito de ferocidade que guiava a mão do Legislador, guiava também a mão do assassino.

    Para que uma pena obtenha o seu efeito, segundo Beccaria basta que o seu mal exceda o bem que o delito procuraria; e neste excesso de mal deve ser calculada a

    44 Cfr. Ibidem, § XXVII: Uno dei più gran freni dei delitti non è la crudeltà delle pene, ma l’infallibilità di esse, e per conseguenza la vigilanza dei magistrati, e quella severità di un giudice inesorabile, che, per essere un’utile virtù, dev’essere accompagnata da una dolce legislazione. La certezza di un castigo, benché moderato, farà sempre una maggiore impressione che non il timore di un altro più terribile, unito colla speranza dell’impunità; perché i mali, anche minimi, quando son certi, spaventano sempre gli animi umani, e la speranza, dono celeste, che sovente ci tien luogo di tutto, ne allontana sempre l’idea dei maggiori, massimamente quando l’impunità, che l’avarizia e la debolezza spesso accordano, ne aumenti la forza.

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    infalibilidade da pena e a perda do bem que conseguiria com o delito. Tudo aquilo que vai além disto, é supérfluo e, portanto, tirânico.

    Ainda segundo Beccaria outras duas funestas conseqüências derivam da crueldade das penas, contrárias ao fim próprio de prevenir os delitos. Primeira, não é assim tão fácil observar a proporção essencial entre o delito e a pena, no caso de delitos mais graves, se já foram utilizadas as penas mais cruéis com os delitos menores.45 Segunda, a impunidade nasce da atrocidade dos suplícios.46

    5. A Pena de Morte: Inútil e Injusta.

    Beccaria pergunta-se: Qual pode ser o direito que se atribuem os homens de trucidar os seus semelhantes? Não certamente aquele do qual resulta a Soberania e as leis. Estas não são outras coisas que a soma de mínimas porções da liberdade privada de cada um; elas representam a vontade geral, que é o agregado das particulares.

    Qual homem quereria dar a outros homens o arbítrio de matá-lo? Por que no mínimo sacrifício da liberdade de cada um pode estar aquele do máximo entre todos os bens, a vida? E se o fez como concordaria essa renúncia ao direito à vida com o princípio de que o Homem não é padrão de

    45 Cfr. Ibidem. 46 Cfr. Ibidem.

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    matar-se? Mas deveria sê-lo para poder dar tal direito aos outros ou à Sociedade inteira.47

    A pena de morte, concluiu Beccaria, não è um direito, mas é uma guerra da Nação contra um cidadão, porque julga necessária ou útil a destruição do seu ser. Ele disse que, se demonstrasse que a morte do delinqüente não é nem útil nem necessária, teria vencido a causa da Humanidade.48

    Segundo Beccaria a morte de um cidadão é necessária somente por dois motivos. Primeiro, quando mesmo privado de liberdade ele tenha ainda tais relações e tal potência que interesse a segurança da Nação, ou seja, quando a sua existência possa produzir uma revolução perigosa na forma de governo estabelecida; portanto, a morte de qualquer cidadão torna-se necessária quando a Nação recupera ou perde a sua liberdade, ou no tempo da anarquia, quando as desordens mesmas tenham lugar de leis. Segundo, quando a

    47 Cfr. Ibidem, § XXVIII: Qual può essere il diritto che si attribuiscono gli uomini di trucidare i loro simili? Non certamente quello da cui risulta la sovranità e le leggi. Esse non sono che una somma di minime porzioni della privata libertà di ciascuno; esse rappresentano la volontà generale, che è l’aggregato delle particolari. Chi è mai colui che abbia voluto lasciare ad altri uomini l’arbitrio di ucciderlo? Come mai nel minimo sacrificio della libertà di ciascuno vi può essere quello del massimo tra tutti i beni, la vita? E se ciò fu fatto, come si accorda un tal principio coll’altro, che l’uomo non è padrone di uccidersi, e doveva esserlo se ha potuto dare altrui questo diritto o alla società intera? 48 Cfr. Ibidem: Non è dunque la pena di morte un diritto, mentre ho dimostrato che tale essere non può, ma è una guerra della nazione con un cittadino, perché giudica necessaria o utile la distruzione del suo essere. Ma se dimostrerò non essere la morte né utile né necessaria, avrò vinto la causa dell’umanità.

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    sua morte fosse o verdadeiro e único freio para dissuadir os outros homens de cometer delitos.49

    6. Intensidade e Extensão das Penas.

    Segundo Beccaria não é a intensidade da pena que faz o efeito maior sobre o ânimo humano, mas a sua extensão. A nossa sensibilidade é mais fácil e estavelmente movida pelas mínimas, mas repetidas impressões; do que por um forte, mas passageiro movimento. O império do hábito é universal sobre todo ser “sensível”, e como o Homem fala e caminha e procura satisfazer suas necessidades com a ajuda deste hábito, assim as idéias morais não se imprimem na mente senão por duráveis e repetidos “golpes”.

    49 Cfr. Ibidem: La morte di un cittadino non può credersi necessaria che per due motivi. Il primo, quando anche privo di libertà egli abbia ancora tali relazioni e tal potenza che interessi la sicurezza della nazione; quando la sua esistenza possa produrre una rivoluzione pericolosa nella forma di governo stabilita. La morte di qualche cittadino divien dunque necessaria quando la nazione ricupera o perde la sua libertà, o nel tempo dell’anarchia, quando i disordini stessi tengon luogo di leggi; ma durante il tranquillo regno delle leggi, in una forma di governo per la quale i voti della nazione siano riuniti, ben munita al di fuori e al di dentro dalla forza e dalla opinione, forse più efficace della forza medesima, dove il comando non è che presso il vero sovrano, dove le ricchezze comprano piaceri e non autorità, io non veggo necessità alcuna di distruggere un cittadino, se non quando la di lui morte fosse il vero ed unico freno per distogliere gli altri dal commettere delitti, secondo motivo per cui può credersi giusta e necessaria la pena di morte.

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    O freio mais forte contra os delitos não é o “terrível” mas passageiro espetáculo da morte de um “louco”, mas sim o longo e continuado exemplo de um homem privado de liberdade que, transformado em animal servil, recompensa com as suas fadigas aquela Sociedade que ele mesmo ofendeu.

    É freio eficaz contra os delitos porque provoca um pensamento repetido sobre nós mesmos: Eu mesmo serei reduzido a tal longa e mísera condição se cometer semelhantes delitos. É muito mais potente que a idéia da morte, porque os homens sempre a vêem numa “obscura” distância.50

    Segundo Beccaria, para que uma pena seja justa deve haver somente aquele grau de intensidade que baste a remover os homens da vontade de cometer delitos. Não existe ninguém que, refletindo, possa escolher a total e perpétua perda da própria liberdade por quanto vantajoso possa ser um delito: a intenção da pena de escravidão perpétua, que substitui a pena de morte, há aquilo que basta para remover qualquer ânimo determinado em cometer delitos.51

    50 Cfr. Ibidem: Non è l’intensione della pena che fa il maggior effetto sull’animo umano, ma l’estensione di essa; perché la nostra sensibilità è più facilmente e stabilmente mossa da minime ma replicate impressioni che da un forte ma passeggiero movimento. 51 Cfr. Ibidem: Perché una pena sia giusta non deve avere che quei soli gradi d’intensione che bastano a rimuovere gli uomini dai delitti; ora non vi è alcuno che, riflettendovi, scieglier possa la totale e perpetua perdita della propria libertà per quanto avvantaggioso possa essere un delitto: dunque l’intensione della pena di schiavitù

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    Segundo Beccaria nosso ânimo resiste mais à violência e às dores extremas, mas passageiras, que ao tempo e à incessante repetição. O ânimo humano pode condensar-se por um momento para rejeitar dores extremas e passageiras, mas a sua vigorosa elasticidade não basta para resistir à longa e repetida ação do tempo.

    Beccaria denunciou uma contradição na pena de morte: com tal pena todo exemplo que se dá à Nação supõe um delito; pois bem, se é importante que os homens vejam frequentemente o poder das leis, essas penas de morte não devem ser aplicadas muito distantes entre elas; portanto, pressupõem também a freqüência dos delitos.

    Concluíu Beccaria: para que este suplício seja útil precisa que não faça sobre os homens toda a impressão que deveria fazer, isto é, que seja útil e in-útil ao mesmo tempo.

    A quem dissesse que a escravidão perpétua é tanto dolorosa quanto a morte, portanto, igualmente cruel, Beccaria responderia que somando todos os momentos infelizes da escravidão perpétua, ela será até mais dolorosa do que a pena capital. A diferença, porém, é que na escravidão perpétua estes momentos infelizes são extensos durante toda a vida do delinqüente: é muito extensa; já a pena de morte exercita toda a sua força num só momento: é muito intensa. A vantagem da pena de escravidão perpétua sobre a pena de morte é que sua “extensão” assusta mais a quem a vê do que a quem a sofre.

    perpetua sostituita alla pena di morte ha ciò che basta per rimuovere qualunque animo determinato.

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    Quem vê a extensão da pena de escravidão perpétua considera a soma de todos os seus momentos infelizes, mas quem a sofre, por causa da infelicidade do momento presente, é distraído daquela infelicidade futura. Todos os males são aumentados pela imaginação, e quem sofre encontra recursos e consolações não conhecidas e não acreditadas pelos espectadores que substituem a própria sensibilidade ao ânimo inveterado do infeliz.

    Em conclusão, Beccaria afirmou que a pena de morte não é útil pelo exemplo de atrocidade que dá aos homens. Se as paixões ou a necessidade da guerra ensinaram a derramar o sangue humano, as leis moderadoras da conduta dos homens não deveriam aumentar o feroz exemplo, tanto mais funesto quanto a morte legal é dada com estudo e formalidade.

    Pareceu a Beccaria um absurdo que as leis, expressão da pública vontade, que detestam e punem o homicídio, elas mesmas cometam um homicídio, e, para afastar os cidadãos do assassínio, ordenem um assassínio público.52

    52 Cfr. Ibidem: Non è utile la pena di morte per l’esempio di atrocità che dà agli uomini. Se le passioni o la necessità della guerra hanno insegnato a spargere il sangue umano, le leggi moderatrici della condotta degli uomini non dovrebbono aumentare il fiero esempio, tanto più funesto quanto la morte legale è data con istudio e con formalità. Parmi un assurdo che le leggi che sono l’espressione della pubblica volontà, che detestano e puniscono l’omicidio, ne commettono uno esse medesime, e, per allontanare i cittadini dall’assassinio, ordinino un pubblico assassinio.

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    CAPÍTULO III:

    A PENA DE MORTE DEPOIS DE CESARE BECCARIA

    Trabalhando a pena de morte depois de Cesare Beccaria, mesmo que sumariamente, conheceremos o problema da pena de morte na França, na Península Ibérica, na Rússia de Catarina II.

    Depois do Dei delitti e delle pene, 1764, aquilo que foi posto em discussão não foi somente se a pena de morte fosse eticamente lícita, mas também se fosse, verdadeiramente, a maior das penas.53

    Segundo Bobbio, grande parte da fama do livro de Beccaria foi devida, sobretudo, ao fato de ter sido acolhido com grande favor por A. F. M. Voltaire. Beccaria era um “ilustre desconhecido”, enquanto Voltaire era já “Voltaire”.54

    53 Cfr. N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 206. 54 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 181-182. Cfr. F. VENTURI, “Introduzione”, in DeiDP, p. XXV-XXVI.

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    1. A Pena de Morte na França.

    Na França, as idéias de Beccaria foram acolhidas com estupor e interesse. Poderiam significar o iníco de uma nova política e de uma longa e difícil batalha.55 Os parlamentares franceses resistiram às tentativas de modificar as leis e os procedimentos penais, compreendidos aqueles referentes à pena de morte e às torturas. A monarquia francesa se demonstrava sempre mais incapaz de tomar a estrada do despotismo iluminado e os corpos constituídos demonstravam, cada dia mais, quais e quantos fossem os obstáculos à modernização da justiça na França de J.-J. Rousseau e do seu Contrat social, 1762.56

    Enquanto os maiores filósofos do tempo continuavam a sustentar a legitimidade da pena de morte, M. Robespierre, num famoso discurso à Assembléia Constituinte, Maio de 1791, sutentou a sua abolição:57 o nome de Cesare Beccaria e suas idéias acompanharam a “nova” codificação francesa.58

    Esse discurso de M. Robespierre contém, segundo Bobbio, uma das condenações mais persuasivas da pena de morte, do ponto de vista da argumentação. Ele refutou, principalmente o argumento da intimidação, sustentando que não é verdade que a pena de morte seja mais intimidante das outras penas e citou o exemplo do Japão, já

    55 Cfr. F. VENTURI, “Introduzione”, in DeiDP, p. XXI. 56 Cfr. Ibidem, p. XXV. 57 Cfr. N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 185. 58 Cfr. F. VENTURI, “Introduzione”, in DeiDP, p. XXIX-XXX.

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    utilizado por Ch-L. de Secondat Montesquieu. Sustentava-se que em Japão as penas fossem atrozes e que, todavia, fosse um país de criminais.

    Além deste argumento, refutou ainda o argumento fundado sobre o consensus omnium gentium e, naturalmente, aquele fundado sobre a justiça. Enfim, utilizou o argumento abolicionista, esquecido por Beccaria, da irreversibilidade dos erros judiciários.

    O discurso inteiro foi inspirado ao princípio que a brandura das penas – evidente derivação beccariana – é prova de civilização; a crueldade das penas caracteriza os povos bárbaros. Segundo M. A. Cattaneo, no seu Libertà e virtù nel pensiero politico di Robespierre, 1968, este fora o mais célebre e inteligente herdeiro intelectual de Beccaria.59

    2. A Pena de Morte na Península Ibérica.

    Na Península Ibérica, entre os anos 1764 e 1777, Pablo Olavides, Pedro Rodriguez De Campomanes, Pedro Paulo De Aranda – os maiores representantes do reformismo da idade de Carlos III – conseguiram fazer com que a Inquisição se retraísse; obtiveram autorização para a

    59 Cfr. M. A. CATTANEO, Libertà e virtù nel pensiero politico di Robespierre, Istituto editoriale cisalpino, Milano 1968, citado por N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 185-186.

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    publicação de uma versão “castellana” do Dei delitti e delle pene.60

    Em 1777, o Dei delitti e delle pene fora condenado pela Inquisição madrilena. As idéias de Beccaria, porém, continuaram a penetrar na capital e nas províncias espanholas.61

    3. A Pena de Morte na Rússia.

    Na Rússia de Catarina II, na célebre Instrução, 14 de Dezembro de 1766, portanto imediatamente depois da publicação do livro Dei delitti e delle pene, na Questão VI, no n. 209, à pergunta A pena de morte é útil e necessária para a segurança e a boa ordem da sociedade?; respondeu-se que a experiência de todos os séculos prova que a pena de morte jamais tornou melhor uma Nação. Copiando as palavras de Beccaria62, acima citadas, Catarina II escreveu que, se demonstrasse que, no estado ordinário da Sociedade, a morte de um cidadão não é nem útil, nem necessária, ela teria vencido a causa da Humanidade.

    Ainda na Instrução de Catarina II, com evidente e total dependência de C. Beccaria, lê-se que a morte de um cidadão pode ser em alguma circunstância necessária, e esta circunstância é quando um cidadão, privado da sua

    60 Cfr. F. VENTURI, “Introduzione”, in DeiDP, p. XXXII. 61 Cfr. Ibidem. 62 Cfr. C. BECCARIA, Dei delitti e delle pene, 1764, § XXVIII.

  • 49

    liberdade, nele restam certas relações e certo poder que poderia turbar a tranqüilidade da Nação.

    Observou ainda que esse “caso” não pode haver lugar senão quando uma Nação perde ou recupera a própria liberdade ou no tempo da anarquia; sendo tranqüilo o reino da legislação e num Estado onde a Autoridade é toda inteira nas mãos do Soberano não existe nenhuma necessidade de tirar a vida a um cidadão.63

    Catarina II, no n. 212 da sua Instrução, ainda com evidente dependência de Beccaria, escreveu que a morte de um delinqüente nunca será um freio tão potente do delito, quanto o longo e durável exemplo de um homem privado da sua liberdade e transformado em animal de servidão, para reparar com os trabalhos de toda a sua vida ao dano que provocou à Sociedade. O terror que provoca a idéia da morte, por quanto seja forte – intenso – não resiste ao tão natural esquecimento humano.

    Copiando o Dei delitti e delle pene, Catarina II ainda afirmou que afim que uma pena seja justa, não deve haver senão aquele grau de intensidade que baste para manter os homens longes do delito. Não existe nenhum homem que, por pouco que reflita, prefira alguma vantagem que possa obter com o seu delito, ao preço de perder inteira e perpetuamente a liberdade.64

    63 Cfr. Ibidem. 64 Cfr. “Dall’Istruzione di Caterina II”, 14 de Dezembro de 1766, in DeiDP, pp. 634-647. Cfr. ainda C. BECCARIA, Dei delitti e delle pene, 1764, § XXVIII.

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    CAPÍTULO IV:

    A PENA DE MORTE NA PENÍNSULA ITÁLICA E NA

    INGLATERRA

    Neste capítulo conheceremos a pena de morte na Toscana de Pietro Leopoldo e na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX.

    1. Península Itálica.

    Na Península Itálica, poucos anos depois da publicação do Dei delitti e delle pene, um ilustre escritor político, Gaetano Filangieri,65 defensor da pena de morte, no seu Scienza della legislazione, 1780, obra que atacou os privilégios feudais dos barões a partir dos seus fundamentos,66 taxou de sofisma o argumento abolicionista “contratualista” de Beccaria.

    65 Nasceu a Cercola, em 1752 e morreu a Vico Equense, em 1788. 66 Dos sete livros projetados para a Scienza della legislazione, saíram em 1780 as normas gerais, em 1783, o direito e a procedura penal, em 1785 o livro sobre educação. A obra foi posta ao Index em 1784. Hoje a edição italiana é assim dividida: Vol. I, 8°, p. XXIV-176, (1780); Vol. II, 8°, p. XII-274, (1780); Vol. III, 8°, p. VIII-240, (1783); Vol.

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    G. Filangieri sustentou que no status naturae o Homem há o direito à vida, e é outro tanto verdadeiro que não pode renunciar a esse direito, mas pode perdê-lo com os seus delitos. Se pode perdê-lo no status naturae, não se vê porque não se possa perdê-lo também no Estado Civil, instituído não ao fim de criar um novo direito, mas de render seguro o exercício do antigo direito, do direito do ofendido de reagir com a força à força: com a ofensa à vida alheia “repelir” a ofensa à vida própria.67

    Na Toscana de Pietro Leopoldo, em 1786, foi promulgada uma nova legislação que aboliu inteiramente a pena de morte. Trata-se da Legge toscana del 1786, 30 de Novembro de 1786, onde em cada formulação jurídica encontraremos o eco das idéias de Beccaria.68

    No prólogo dessa Legge toscana del 1786, lê-se que a mitigação das penas, unida à mais exata vigilância para prevenir as ações delituosas e mediante a rapidez dos processos e a prontidão e segurança da pena dos verdadeiros delinqüentes, ao invés de aumentar o número dos delitos diminuiu consideravelmente aqueles mais comuns.

    Tal mitigação das penas rendeu quase inauditos os delitos atrozes. Essa Legge reformou a legislação criminal e aboliu a pena de morte, como não necessária para o fim que

    IV, 8°, p. X-344, (1783); Vol. V, 8°, p. XII-386, (1785); Vol. VI, 8°, p. XII-210, (1791). Segundo Bobbio esta é a maior obra italiana de Filosofia Política, na segunda metade do séc. XVIII. Cfr. N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 183. 67 Cfr. N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 183. 68 Cfr. F. VENTURI, “Introduzione”, in DeiDP, p. XVII.

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    a Sociedade se propõe na punição dos réus.69 Eliminou também totalmente o uso da tortura,70 a confiscação dos bens dos delinqüentes; e baniu da legislação a multiplicação dos delitos de lesa majestade, e fixou as penas proporcionadas aos delitos, mas inevitáveis nos respectivos casos.71

    No art. LIII, dessa Legge Toscana, P. Leopoldo determina uma pena substitutiva à pena de morte, afirmando que os réus dos capitais e graves delitos devendo permanecer em vida para “compensar” suas obras más contra a Sociedade com obras “úteis”; ordenou a abolição da pena de morte e a substituiu com a pena dos públicos trabalhos perpétuos para os homens; para as mulheres, somente a prisão perpétua.72

    2. A Pena de Morte na Inglaterra.

    Quando o primeiro tradutor do Dei delitti e delle pene, completou a sua versão e a publicou a Londres, 1767, não lhe foi difícil perceber que aquelas páginas incidiam direta e imediatamente sobre a realidade da Inglaterra, e que em vão se pretenderia afastá-las utilizando o pretexto que se

    69 Cfr. Legge toscana del 1786, 30 de Novembro de 1786, art. LI. 70 Cfr. Ibidem, art. XXXIII. 71 Cfr. Ibidem, in DeiDP, pp. 258-259. 72 Cfr. Ibidem, art. LIII.

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    tratava de coisa proveniente de um mundo muito diferente e longe daquele da Grã-Bretanha.73

    O Dei delitti e delle pene esteve à origem da meditação de Samuel Romilly que conseguiu, ao início do novo século, a provocar alguma efetiva e substancial modificação às leis penais inglesas. Também, de Jeremy Bentham, criador do radicalismo filosófico; segundo F. Venturi, o mais importante dos reformadores ingleses entre os séculos XVIII e XIX.74

    Bobbio, citando um autor inglês do séc. XVIII, disse que morte-suplício é a arte de manter a vida no sofrimento, subdividindo-a em “mil” mortes e obtendo, antes que a existência cesse as mais requintadas agonias. O suplício é a multiplicação da pena de morte: como se a “pena” não bastasse, o suplício requintado mata uma pessoa mais vezes.75

    Trabalhando a posição de alguns ilustres pensadores anti-abolicionistas, conheceremos mesmo que sumariamente, o problema da pena de morte em Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant e Georg Wilhelm Friedrich Hegel.

    Observou Bobbio que, não obstante o sucesso literário das idéias de Beccaria junto ao público culto, não só a pena de morte não foi abolida nos países civis, mas a causa da abolição não prevaleceu na filosofia penal do seu tempo. Bobbio citou, como exemplo, três dentre os mais

    73 Cfr. F. VENTURI, “Introduzione”, in DeiDP, p. XXX-XXXI. 74 Cfr. Ibidem, p. XXXI. 75 Cfr. N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 187.

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    ilustres pensadores do tempo, todos anti-abolicionistas: J.-J. Rousseau, I. Kant e G. W. F. Hegel.

    I. Kant e G. W. F. Hegel sustentavam uma rigorosa teoria retributiva da pena; e chegavam à conclusão que a pena de morte é até mesmo “obrigatória”.

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    CAPÍTULO V:

    ILUSTRES PENSADORES

    ANTI-ABOLICIONISTAS

    Neste capítulo conheceremos as posições anti-abolicionistas de Jean-Jacques ROUSSEAU (1712-1778); Immanuel KANT (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich HEGEL (1770-1831).

    1. Jean-Jacques ROUSSEAU (1712-1778).

    J.-J. Rousseau, no Contrat social, 1762, dois anos antes do Dei delitti e delle pene, 1764, de C. Beccaria; no capítulo intitulado O Direito de Vida e de Morte, confutou antecipadamente o argumento abolicionista “contratualista”.

    Rousseau perguntou-se por que os indivíduos, não havendo nenhum direito de dispor da própria vida, possam transmitir ao corpo soberano tal direito que eles não têm?

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    Respondeu que esse problema parece difícil de resolver somente porque é mal impostado.

    Explicou que cada homem há direito de arriscar a vida para conservá-la. Ninguém diz que seja culpado de suicídio quem se joga de uma janela para fugir a um incêndio. Nem se acusa de suicídio quem seja morto numa tempestade da qual, ao momento no qual se embarcava, não ignorava o perigo?

    Rousseau afirmou que o Contrato Social há como escopo a conservação dos contraentes. Quem quer o escopo, quer também os meios e estes meios são inseparáveis de algum risco e perda. Quem quer conservar a própria vida com a contribuição dos outros, deve ser pronto também a oferecê-la pelos outros quando é necessário. O cidadão não é mais juiz do perigo ao qual a Lei quer que ele se exponha.

    Quando o Príncipe lhe diz: “É necessário para o Estado que tu morras!”, segundo Rousseau ele deve morrer, porque é somente assim que pode viver em plena segurança até aquele momento; a sua vida não é mais somente um benefício da Natureza, mas um dom condicionado do Estado.

    Segundo Rousseau é para não serem vítimas de um assassino que nós consentimos de morrer se nos tornamos tais. Neste “contrato”, longe de dispor da própria vida, não se pensa a outra coisa que a garanti-la, dado que não se pode presumir que um dos contraentes pense “já” de fazer-se, por exemplo, enforcar. Cada malfeitor, atacando o direito social, por causa dos seus delitos, torna-se rebelde e traidor da

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    Pátria; cessa de ser seu membro violando suas leis e faz guerra à Pátria mesma.

    A este ponto, observou Rousseau, a conservação do Estado é incompatível com a sua individual conservação pessoal; precisa que um dos dois pereça, e quando se faz morrer o culpado, este não morre tanto enquanto cidadão, mas enquanto “inimigo” da Pátria.

    O processo penal e o juízo, segundo Rousseau, são as provas e a manifestação que o delinqüente rompeu o Contrato Social e, consequentemente, que ele não é mais um membro do Estado. Porque, ao menos em base à sua residência, ele é reconhecido como membro do Estado, deve ser separado ou com o exílio como violador do pacto, ou com a morte como inimiga público; tal inimigo não é, de fato, pessoa moral; é “somente” um Homem, e é neste caso que o direito de guerra “autoriza” a matar o vencido.

    Respondendo às possíveis objeções de que a condenação de um crime é um ato particular, Rousseau disse que por este motivo a condenação em si não compete ao Poder soberano, é um direito que ele pode conferir sem poder exercitá-lo diretamente.

    Rousseau ainda observou que, num Estado bem governado, existem poucas punições não porque se concedem muitas graças, mas porque existem poucos

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    criminais: quando o Estado é em decadência o grande número dos criminais assegura a impunidade.76

    Portanto, concluiu ele, atribuir ao Estado também o direito sobre a própria vida não serve a destruí-la mas a garanti-la contra os ataques alheios.77

    2. Immanuel KANT (1724-1804).

    Segundo Kant, a justificação utilitarista beccariana da pena faria do punido um simples meio, antes que um fim. Esta concepção foi por ele refutada radicalmente; combatendo-a, utilizou um conceito demasiado “mecânico” e “aritmético” de correspondência entre culpa e pena.78

    Partindo da concepção retributiva da pena, segundo a qual a função da pena não é de prevenir os delitos, mas puramente de render justiça, isto é, de fazer em modo que exista uma correspondência perfeita entre o delito e o castigo – trata-se da justiça como igualdade, daquela espécie

    76 Cfr. J.-J. ROUSSEAU, Du Contrat Social ou Principes du Droit Politique, 1762, trad. it. Il contratto sociale, Libro II, Il diritto di vita e di morte, cap. V. 77 Cfr. N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 182-183; IDEM, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 205. 78 Cfr. V. MATHIEU, “Introduzione”, in I. KANT, Kritik der praktischen Vernunft, trad. ital. Critica della ragion pratica (Bompiani Testi a Fronte, 8), a cura de V. MATHIEU, Milano 2000, p. 25.

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    de igualdade que os antigos chamavam igualdade corretiva – I. Kant sustentou que o “dever” da pena de morte compete ao Estado e é um imperativo categórico, não um imperativo hipotético, fundado sobre a relação “meio-fim”: se o delinqüente matou, deve morrer. Não existe nenhum sub-rogado; nenhuma comutação de pena que possa satisfazer à justiça. Não existe nenhuma comparação possível entre uma vida, por quanto penosa, e a morte; e consequentemente nenhuma outra compensação entre o delito e a punição, fora que na morte juridicamente infligida ao criminal, despindo-a, porém de toda malícia que poderia, na pessoa do paciente, revoltar a Humanidade.79

    I. Kant considerou como certo que a morte fosse o pior dos males. Mas, perguntou Bobbio: Se não o fosse? Certamente quando Kant diz que não existe comparação possível entre uma vida e a morte, entende refutar a tese de Beccaria e de todos aqueles que o seguiram. Mas, observou ainda Bobbio, a sua afirmação é peremptória e desprovida de toda comprovação.80

    79 Cfr. I. KANT, “Dottrina del diritto”, in IDEM, Scritti politici e di filosofia della storia e del diritto, UTET, Torino 1956, p. 522; N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 184; M. A. CATTANEO, Dignità e pena nella filosofia di Kant, Giuffrè, Milano 1981. 80 Cfr. N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 219.

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    3. Georg Wilhelm Friedrich HEGEL (1770-1831).

    G. W. F. Hegel ainda foi mais além de Kant. Na sua obra Lineamentos de filosofia do direito, Berlim 1820, que representa a súmula do seu pensamento ético-político, refutou o argumento contratualista de Beccaria, negando que o Estado possa nascer de um contrato.

    Segundo Hegel, Beccaria negou ao Estado o direito à pena de morte porque não se pode presumir que no Contrato Social seja contido o consentimento dos indivíduos a deixar-se matar, antes, deve-se presumir o contrário. O Estado em geral, observou Hegel, não é um Contrato, nem a sua essência substancial é a proteção e a asseguração da vida e da propriedade dos Indivíduos enquanto “Indivíduos”, em modo tão incondicionado; antes, o Estado é a “entidade superior”, a qual também apresenta pretensões sobre essa vida e a propriedade do Indivíduo e exige o sacrifício da mesma.

    Hegel ainda sustentou que o delinqüente não só deve ser punido com uma pena correspondente ao delito cometido, mas há o “direito” de ser punido com a morte porque somente a morte o resgatará: o delinqüente vem honrado como ser racional. Esta honra não lhe vem concedida, se o conceito e a medida da sua pena não são proporcionais ao seu ato mesmo; ou seja, se ele vem considerado somente como animal nocivo, que se deva

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    render inócuo, ou entre as finalidades da intimidação e da emenda.81

    Segundo Hegel, a lesão que recai sobre o delinqüente, não é somente justa em si, é também um direito posto no delinqüente mesmo, isto é, dentro da sua vontade “essente”, dentro da sua ação. Em base a esse raciocínio a pena de morte, como pena em caso de homicídio voluntário, foi defendida por I. Kant, e sucessivamente também por Hegel. A retribuição é “lesão” da “lesão”. Segundo o “ser” do delito, há uma extensão determinada, qualitativa e quantitativa; portanto, também a negação dele, ou seja, a pena deve ser “proporcionada”.82

    E ainda afirmou que o sentimento geral dos Povos e indivíduos referente ao delito é e foi que ele mereça pena e que ao delinqüente deva ser feito aquilo que ele fez.83

    81 Cfr. G. W. F. HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 100. 82 Cfr. Ibidem, § 101. 83 Cfr. Ibidem, § 101 e também o § 102.

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    CAPÍTULO VI:

    A PENA DE MORTE NO DEBATE ATUAL

    Trabalhando a pena de morte no debate atual, conheceremos a função retributiva-justa da pena em geral, bem como sua função preventiva-utilitarista; depois conheceremos a pena de morte a partir do indivíduo e os principais argumentos abolicionistas e reversíveis.

    Levando o problema da pena de morte ao campo estritamente penal da natureza e função das várias sanções, mediante as quais o Estado cumpre a função punitiva e preventiva; ou seja, considerando a pena de morte como sanção e como uma sanção entre tantas outras; como meio para punir o culpado – quia peccatur – e para impedir que, em futuro, outros homens cometam delitos semelhantes – ne peccatur – segundo Bobbio as teorias principais que se combateram a golpes de boas razões foram sobretudo duas: retributiva e preventiva.

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    Diante da pena de morte, especificamente, podemos pôr duas perguntas: A pena de morte é eticamente lícita? A pena de morte é politicamente oportuna? 84

    1. A Função Retributiva-Justa da Pena.

    A teoria retributivista diz que a função da pena é de retribuir o malum actionis com o malum passionis. Os defensores da pena de morte – anti-abolicionistas – são aqueles que sustentam a pena como “retribuição” ao delito cometido.85

    O retributivista põe-se o problema da liceidade moral da pena de morte. Assim fazendo, põe-se a partir do ponto de vista da Ética que julga as ações em base a princípios pré-estabelecidos: conclui que a pena de morte é uma pena justa.

    I. Kant, retributivista, portanto anti-abolicionista, como vimos acima, rejeitou o argumento da intimidação utilizado pelos abolicionistas preventivistas-utilitaristas, como imoral porque viola a máxima que proíbe de tratar a Pessoa humana – que há um valor absoluto – como meio: considerar cada prêmio e castigo somente como um artifício nas mãos de uma potência superior, destinado unicamente a fazer agir os seres racionais em vista do seu

    84 Cfr. N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 216. 85 Cfr. Ibidem, pp. 215-216.

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    escopo final – a felicidade – significa evidentemente admitir um mecanismo que tira toda liberdade ao seu querer.86

    Para aqueles que põem o problema da pena de morte como problema de justiça, afirmou Bobbio, trata-se de demonstrar que a pena de morte é justa em base aos princípios da justiça retributiva – que é uma subespécie da justiça geral, equiparada à justiça comutativa ou aritmética – independentemente de qualquer referência a motivos de utilidade social: fiat justitia, pereat mundus.87

    A teoria retributivista tem, segundo Bobbio, o seu ponto fraco na afirmação que a única possível correspondência ao matar seja o morrer.88 Essa teoria deve descer do “céu” dos princípios à “terra” dos dados empíricos; ela resiste, ou não, segundo que consiga a demonstrar qual seja a justa pena para cada reato.89

    86 Cfr. IDEM, “Benedetto Croce e il liberalismo” (1955), in PolCul, p. 227; I. KANT, Kritik der praktischen Vernunft, trad. ital. Critica della ragion pratica (Bompiani Testi a Fronte, 8), a cura de V. MATHIEU, Milano 2000, § 8, nota II, p. 101. 87 Cfr. IDEM, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 218. 88 Cfr. Ibidem, pp. 218-219. 89 Cfr. Ibidem, pp. 219; IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 194.

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    2. A Função Preventiva-Utilitarista da Pena.

    A teoria preventiva diz que a função da pena é prevenir os delitos. Os defensores da abolição da pena de morte são os sustentadores da pena como “prevenção”, tais como o foi Beccaria.90

    O preventivista-utilitarista, portanto abolicionista, ao contrário do retributivista, põe-se o problema da oportunidade política da pena de morte. Assim fazendo, põe-se a partir do ponto de vista de uma Ética que julga as ações em base aos resultados:91 conclui que a pena de morte não é útil nem necessária. Convencido que a pena de morte é “inútil” porque menos dissuasiva de outras penas, o abolicionista rejeita o argumento da retribuição como efeito de obtuso e desumano rigorismo moral.92

    Para o preventivista-utilitarista essa pena deve ser rejeitada porque não serve aos fins que o Estado “deve” propor-se, Organismo não-ético, de desencorajar o delito, independentemente de qualquer razão de abstracta justiça:93 a função essencial da pena consiste no desencorajar as ações que o ordenamento considera nocivas e é, portanto, intimidante ou dissuasiva.

    O ponto fraco desta teoria preventivista-utilitarista, já que tradicionalmente a liceidade da pena de morte foi

    90 Cfr. Ibidem, pp. 215-216. 91 Cfr. Ibidem, pp. 216-217. 92 Cfr. Ibidem, p. 217. 93 Cfr. Ibidem, p. 218.

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    sustentada pelos retributivistas, segundo Bobbio, está em conduzir o seu “jogo” fundando quase tudo sobre a única “carta” da intimidação. Como vimos acima com C. Beccaria, o argumento principal desta teoria preventivista-utilitarista é que a pena de morte não há a força intimidante que lhe foi atribuída arbitrariamente; e que, portanto, cai a partir do ponto de vista utilitarista, a sua única razão de ser.94

    A fraqueza desse argumento, segundo Bobbio, está no fato que nenhuma prova certa foi conseguida sobre o grau da força dissuasiva das diferentes penas, em particular da pena de morte em relação àquela da longa prisão. Neste campo as ciências sociais permaneceram paradas no universo da probabilidade, por causa das muitas variáveis de que se deveria considerar: no caso específico, a extraordinária variedade dos delitos e das suas motivações; e a maior ou menor certeza de ser descobertos e condenados.95

    Tanto a teoria retributivista quanto a teoria preventivista consideram a pena de morte a partir do ponto de vista das tarefas e dos interesses do Estado. Segundo Bobbio, é importante partir de uma concepção individualista da Sociedade se pretendemos repugnar a pena de morte, geralmente, sustentada por concepções orgânicas da Sociedade.96

    94 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 196. 95 Cfr. IDEM, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, pp. 220-221. 96 Cfr. IDEM, “Diritti dell’uomo e filosofia della storia” (1987), republicado com o título “L’età dei diritti”, in TerAs, p. 121.

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    Se tivermos uma idéia do corpo social e político pelo qual o todo é mais importante do que as partes chegamos facilmente à conclusão que, para a salvação do “organismo” social, deva-se eliminar o “membro” infectado97, como afirmou Tomás de Aquino: a exportação de um membro ajuda a saúde do inteiro corpo humano; é louvável e salutar suprimi-lo.98

    3. A Pena de Morte a Partir do Indivíduo.

    Considerando a pena a partir do indivíduo condenado, as concepções mais comuns dela são aquelas da expiação, emenda e defesa social.

    A concepção da pena como expiação parece mais favorável à abolição da pena de morte que não à sua conservação: para expiar um delito, o delinqüente precisa continuar a viver. Poder-se-ia, porém, sustentar que a verdadeira expiação do delito seria a morte do delinqüente,

    97 Cfr. IDEM, “Contro il potere di dare la morte” (1982), in Rinascita, 38, 42 (5 de Novembro de 1982), p. 41; IDEM, “Sulla pena di morte” (1999), in Nuova Antologia, 583, 2212 (Outubro-Dezembro de 1999), pp. 33. 98 Cfr. TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, IIa IIae, q. 64, a. 2. Cfr. ainda L. TAPARELLI, Saggio teoretico di diritto naturale (1848), § 840, citado por N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 204; IDEM, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, pp. 223-224; IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 193.

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    a morte entendida como purificação da culpa, a anulação da mancha; poder-se-ia dizer: sangue se lava com sangue.99

    A rigor, essa concepção da pena é compatível tanto com a tese anti-abolicionista quanto com a tese abolicionista.100

    A concepção da pena como emenda é a única que exclui totalmente a pena de morte. Mesmo o mais perverso dos criminais pode redimir-se; observou Bobbio: se for executado, fecha-lhe a via do aperfeiçoamento moral que não pode ser negado a ninguém.

    Quando os iluministas do séc. XVIII consideraram de dever substituir a pena de morte com os trabalhos forçados, como vimos acima lendo o Dei delitti e delle pene de Beccaria, justificaram esta tese sustentando que o trabalho redime. A. F. M., Voltaire escreveu, no Commentaire sur le Traité de délits et des peines, 1766, a propósito da política penal de Catarina II,101 acima citada, que os delitos não se multiplicaram por causa desta “humanidade” e acontece quase sempre que os culpados, relegados em Sibéria, retornam pessoas de bem. E ainda acrescentou que se deve obrigar os homens ao trabalho, para torná-los pessoas honestas.102

    99 Cfr. N. BOBBIO, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, p. 224. 100 Cfr. IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 191-192. 101 Cfr. CATARINA II, “Istruzione”, 14 de Dezembro de 1766, in DeiDP, pp. 634-647. 102 Cfr. A. F. M., VOLTAIRE, Commentaire sur le Traité de délits et des peines, 1766, in DeiDP, pp. 371-379.

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    Bobbio observou que a extrema, abominável, macabra e demoníaca conseqüência dessa “ideologia” do trabalho, revelou-se na frase escrita pelos nazistas, ao ingresso dos Lager: O trabalho rende livres.103

    A concepção da pena como defesa social também é ambígua: geralmente os sustentadores da pena como defesa social foram e são abolicionistas, mas o são por razões humanitárias – mesmo porque rejeitam o conceito de culpa que está à base da concepção retributivista, a qual encontra a própria justificação somente admitindo a liberdade do querer. Todavia, observou Bobbio, a defesa social não exclui a pena de morte: poder-se-ia sustentar que o melhor modo para defender-se dos criminais mais perigosos é aquele de eliminá-los.104

    4. Argumentos Abolicionistas e Reversíveis.

    Em campo jurídico, segundo Bobbio, o argumento abolicionista mais forte é aquele do erro judiciário: com a execução da pena de morte torna irremediável o erro judiciário. Não existe tratado sobre a pena de morte que não cite casos exemplares da prova de inocência, descoberta depois da morte do suposto culpado.

    103 Cfr. N. BOBBIO, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, p. 192. 104 Cfr. Ibidem, pp. 192-193.

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    Segundo Bobbio não é aceitável o argumento segundo o qual o custo social da morte de um inocente é inferior ao benefício que a Sociedade recebe pela eliminação física de tantos “atrozes” criminais: é argumento diante ao qual a consciência humana retrai-se horrorizada.105

    Segundo os anti-abolicionistas a pena de morte deve ser infligida com as maiores cautelas e somente quando se tenha atingida a “certeza total” do delito em base à sapiente máxima melhor que se salve um criminal, antes que pereça um inocente. Ainda segundo eles, já que a pena de morte é justa e eficaz como intimidação, não importa se seja “pouco” aplicada, importa que exista.106 Perguntamos: É possível, humanamente falando, atingir tal “certeza total”?

    Um argumento anti-abolicionista, tanto forte quanto o argumento abolicionista do “erro” judiciário, são os casos de assassinos re-incidentes.107 Não existem dúvidas que os casos de reincidência levantam essa “inquietante” pergunta: Se o re-incidente tivesse sido condenado à morte e executado, não teria sido poupada a vida de um inocente?

    Se for aceitável a máxima Melhor que um criminal se salve antes que um inocente pereça, o quê dizer então desta outra máxima Não importa que um inocente pereça desde que um criminal se salve? A pergunta é embaraçosa, observou Bobbio, mesmo quando a vítima do assassino

    105 Cfr. IDEM, “Il dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), in EdD, pp. 224-225. 106 Cfr. Ibidem, p. 225; IDEM, “Contro la pena di morte” (1981), in EdD, pp. 196-197. 107 Cfr. Ibidem.

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    reincidente não seja juridicamente “inocente” como acontece frequentemente, em casos de vingança.108

    Junto a este jogo de argumentos prós e contra a pena de morte, o debate atual conhece também argumentos “reversíveis”, ou seja, argumentos que se prestam tanto aos abolicionistas, quanto aos anti-abolicionistas. Um destes argumentos observou Bobbio, refere-se à dureza da pena de morte: para os abolicionistas a pena capital deve ser abolida por razões humanitárias, exatamente por causa de sua dureza.

    Ao contrário, um filósofo que não se pode acusar de ser um conservador, John Stuart Mill, fez ao Parlamento inglês um discurso favorável à manutenção da pena capit