a regra de maioria bobbio

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A REGRA DE MAIORIA: LIMITES E APORIAS* I Nos sistemas políticos definidos como democráticos, ou mais freqüentemente como democracias ocidentais, aplica-se a regra de maioria tanto para eleger os que terão detentores do poder de tomar decisões que afetam a comunidade, como para fIxar as deliberações dos órgãos colegiados supremos. Todavia, isso não implica: (a) que a regra de maioria seja exclusiva dos sistemas democráticos; (b) que nesses sistemas as decisões colegiadas sejam tomadas exclusivamente mediante essa regra. Apesar da difundida opinião segundo a qual um sistema democrático se caracteriza, perante os sistemas autocráticos, pela presença da regra de maioria - de tal maneira que democracia e princípio de maioria quase parecem conceitos de mesma extensão, e portanto passiveis de superposição -, não é certo que (a) apenas os sistemas democráticos utilizem a regra de maioria nem que (b) as decisões colegiadas só sejam tomadas por meio desta mesma regra. Disso decorre que democracia é regra de maioria, longe de serem conceitos de extensão semelhante, só tem uma parte em comum; está pode ser superposta, já que, por um lado, podem existir sistemas políticos não democráticos que aplicam a regra de maioria tanto na eleição do órgão decisório supremo como na tomada de decisões de grande importância; e por outro, nos sistemas democráticos há determinações coletivas que não são tomadas com base no sistema de maio ria, mas nem por isso esses sistemas deixam de ser democráticos. Esta errônea identifIcação - que se tomou muito comum - decorre de uma interpretação equivocada da 1

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A REGRA DE MAIORIA: LIMITES E APORIAS*

I

Nos sistemas políticos definidos como democráticos, ou mais freqüentemente como democracias ocidentais, aplica-se a regra de maioria tanto para eleger os que terão detentores do poder de tomar decisões que afetam a comunidade, como para fIxar as deliberações dos órgãos colegiados supremos. Todavia, isso não implica: (a) que a regra de maioria seja exclusiva dos sistemas democráticos; (b) que nesses sistemas as decisões colegiadas sejam tomadas exclusivamente mediante essa regra. Apesar da difundida opinião segundo a qual um sistema democrático se caracteriza, perante os sistemas autocráticos, pela presença da regra de maioria - de tal maneira que democracia e princípio de maioria quase parecem conceitos de mesma extensão, e portanto passiveis de superposição -, não é certo que (a) apenas os sistemas democráticos utilizem a regra de maioria nem que (b) as decisões colegiadas só sejam tomadas por meio desta mesma regra.Disso decorre que democracia é regra de maioria, longe de serem conceitos de extensão semelhante, só tem uma parte em comum; está pode ser superposta, já que, por um lado, podem existir sistemas políticos não democráticos que aplicam a regra de maioria tanto na eleição do órgão decisório supremo como na tomada de decisões de grande importância; e por outro, nos sistemas democráticos há determinações coletivas que não são tomadas com base no sistema de maio ria, mas nem por isso esses sistemas deixam de ser democráticos.Esta errônea identifIcação - que se tomou muito comum - decorre de uma interpretação equivocada da defInição clássica de democracia como governo da maioria. Na tripartição clássica das formas de governo, a democracia édefinida como o governo da maioria, em contraposição a oligarquia e a anarquia, o que registra que o poder político encontra-se nas mãos dos que“são mais", ou e muitos, em oposição ao poder e um só ou de poucos. Mesmo assim, isto não quer dizer que o poder político seja exercido nesses

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regimes mediante a aplicação da regra de maioria. Para Aristóteles, a democracia é o governo de muitos, já que é o governo dos pobres, que em geral são a maioria da população; a oligarquia, ao contrário, é o governo de poucos, já que é o governo dos ricos, que normalmente são uma minoria. 1 Neste contexto, pode-se falar de governo da maioria como governo democrático sempre e quando fique claro que por "maioria" se entende o sujeito coletivo do poder político, em contraposição com outros sujeitos, tais como o monarca, os ricos, as nobres etc.; não devemos definir tal governo por meio de uma determinada regra processual para o exercício do poder, já que a maioria indica quantos governam, e não como governam. 2

A conotação axiologicamente negativa dada ao governo da maioria ao longo da história da democracia, desde a Antiguidade até os nossos dias, não decorre de algum tipo de reprovação da regra em si, mas sim do desprezo pelas massas, consideradas incapazes de governar: até mesmo os autores antidemocráticos não tem dificuldade em aceitar a regra de maioria quando ela se aplica à tomada de decisões em um órgão aristocrático, como o Senado de Roma, o Conselho Maior da República de Veneza ou o conclave para a eleição de um papa. Por exemplo, Mussolini foi derrotado por um voto de desconfiança expresso dentro da regra de maioria pelo Grande Conselho do Fascismo, que não foi um organismo próprio de um regime democrático: ao contrário, tratava-se do ente constitucional fundamental de um sistema que fez da luta contra a democracia um dos motivos principais de sua existência e de seu êxito. Em todo caso, pode-se dizer que os autores antidemocráticos rechaçam a regra formal de maioria

1 As três formas de governo são definidas por Aristóteles como o governo de um, ou de poucos e o de muitos (Política, 1.279 a). As confusões nascem com freqüência das traduções: "muitoS" e traduzido como "a maio ria dos cidadãos" na versão de Laterza (p. 87), e aparece como "os mais" na tradução de Utet (p. 144). Isso não exclui que, nos governos democráticos, as deliberações sejam tomadas por maioria, como se pode ver na Política 1.317 b: não exclui, mas tampouco implica. o termo 1tAf1çOç (em grego) significa ao mesmo tempo (a) número, grande número e quantidade; (b) povo, massa popular; e (c) regime democrático. Ver R. Roncali e C. Zagaria, "Lessico politico", 1tAf1çOç, Quademi di Storia, n. 12, julho-dezembro de 198o, p.213-221.2 Isso já era perfeitamente claro para Aristóteles, como se vê em um conhecido texto em que, depois de falar da aristocracia, da oligarquia e da democracia, ele acrescenta: "A maioria como regra de governo está em todos os tipos de Constituição, pois na aristocracia, na oligarquia e na democracia, aquilo que é aprovado pela maioria dos que integram o governo é ratificado pela autoridade" (Política, 1.294 a). Para estas referências históricas usei as contribuiÇões fundamentais de E. Ruffini, II principio maggioritario (1927), nova edição, Milão, Adelphi, 197ó, e La Ragione dei piu, antologia de ensaios escritos entre 1925 e 1927, que foram reeditados com uma nova introdução, II Mulino, Bolonha, 1977, assim como a ampla bibliografia citada ali

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quando esta permite a maioria substancial tomar o comando: não se trata, todavia, de uma reprovação da regra de maioria em si.

Para que a regra de maioria se torne o princípio fundamental que permite a maioria substantiva assumir o poder, são necessárias circunstancias históricas específicas, que geralmente não nascem de uma decisão tomada com base no Princípio majoritário. Logo, não é possível atribuir a essa regra os inconvenientes que decorrem do governo da maioria. Este, como vimos, sempre foi entendido como uma má forma de governo, não porque impere nele a regra de maioria, mas sim porque "os muitos" governam também por meio do recurso técnico que é a regra de maioria, o qual é igualmente utilizado - quando convém pelos governos das minorias. II

A história do princípio de maioria não coincide com a história da democraciacomo forma de governo: está historia foi relatada em muitas ocasiões; não é necessário repetir aqui fatos conhecidos ou facilmente cognoscíveis. Mesmo assim, convém recordar algumas noções. Em termos gerais, podemos dizer que a partir do direito romano (durante séculos, e ainda hoje, o direito romano foi considerado pelos juristas continentais como o ponto de partida de toda reflexão sobre o tema) a regra de maioria foi concebida como o procedimento necessário, ou o mais idôneo, para tomar uma deciSão coletiva nas universitates, ou seja, em associações de pessoas onde a união dos indivíduos produz uma entidade diferente de suas partes e superior a elas. Em conseqüência, seus componentes, ao serem chamados a expressar seu consentimento não uti singuli, mas sim uti universi (não como individualidades, mas sim como conjunto), devem fazê-lo collegialiter, e não separatim (como totalidade, e não em separado).

Não aprofundaremos aqui - já que não é relevante para os fins de nossa análise - o fato de a regra de maioria aplicar-se somente as coletividades de direito público, com base no princípio refertur ad universos quod publice fit per maiorem partem [atribuir-se-á a totalidade o que publicamente faça a maioria] (D. 5o, 17, 1ó9, 1). Isso não ocorria nas coletividades

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de direito privado, onde regia o princípio da autonomia do individuo, para dar vigência à máxima quod omnes similiter tangitab ominibus comprobetur [o que concerne a todos de maneira similar seja por todos reconhecido] (c. 5, 59, 5); ou, de outra maneira, que no direito germânico prevalecesse à regra quod maior pars facit totum facere videtur [o que faz a maioria deverá parecer feito pela totalidade] apenas nas Karperschaften (corporações) e não nas Genossenschaften (cooperativas), conforme a famosa interpretação de Gierke; e, mais ainda, que no direito moderno se continue discutindo sobre se a regra de maioria, contraposta a de unanimidade, que atribui a cada individuo o jus prohibendi, deve atribuir-se somente as comunidades reconhecidas como pessoas jurídicas ou também as demais.3

Todas essas discussões demonstram que o debate sobre a natureza, funções e modalidades da regra de maioria se desenvolve independentemente do debate sobre a democracia e as formas de governo, e que seu âmbito de aplicação é única e exclusivamente o da natureza, funções e modalidades de funcionamento dos organismos colegiados, cuja existência não está vinculada com alguma forma do regime político e é, ao contrário, perfeitamente compatível com sistemas não democráticos. Os organismos colegiados da Roma antiga, inclusive o Senado, onde as decisões coletivas eram tomadas por maioria, sobreviveram durante os principados; durante a Idade Media, o desenvolvimento das Korperschaften na Alemanha teve lugar em um contexto histórico geral em que a democracia, concebida como forma de governo diferente da monarquia e da aristocracia, nele sequer é aventada. Do mesmo modo, nas eleições dos imperadores do Sacro Império Romano, paulatinamente verificou-se uma transição da eleição unânime que se baseava no liberum veto à eleição com base no voto da maioria dos príncipes e bispos eleitores, ratificada definitivamente pela Bula de Ouro de 135ó. Isso não evidencia que todo o sistema político do Império tivesse se tomado mais democrático (no sentido em que, a partir de Aristóteles, se entende par democracia o governo de uma maioria, e não só o governo de alguns organismos que são eleitos por maioria e governam por meio desta mesma regra). Outro tanto se deve

3 Para estas anotações, uso também a obra de F. Galgano, II princípio di maggioranza nele societii personali, Padua, Cedam, 1960.

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dizer da passagem da eleição unânime (por aclamação) a eleição indireta do doge na República de Veneza.

III

Como prova dessas afirmações, consideremos os argumentos usados para justificar racionalmente uma regra como a de maioria. Ela é aparentemente irracional, pois confia a um critério quantitativo uma decisão que é eminentemente qualitativa. Aqueles argumentos podem ser classificados em axiológicos e técnicos. Ou seja, adotando-se uma conhecida definição weberiana, com alguns deles se busca demonstrar que a regra é racional segundo os valores; e com outros, que ela é racional segundo os objetivos. 4 4 Entre os primeiros contam-se os argumentos para os quais a regra se justifica porque, melhor que qualquer outra, garante alguns valores fundamentais, como a liberdade e a igualdade. Entre os segundos estão os argumentos que destacam a fim que se deseja alcançar por meio dessa regra: trata-se sobretudo de permitir alcançar uma decisão conjunta entre pessoas de opiniões diferentes. Para os que apóiam a primeira forma, a validade da regra decorre do valor ou valores aos quais se sujeita, enquanto para aqueles que apóiam a segunda, ela tem validade como um expediente técnico vinculado à utilidade.Diante da natureza diversa das bases de justificação, observa-se em primeiro lugar que ambas tem validade em contextos distintos, já que também tem objetivos polêmicos diferentes. Aqueles que defendem a regra de maioria apelando aos valores de liberdade e igualdade defendem-na sobretudo como um remédio contra decisões de um autocrata, alguém que não respeita a liberdade de escolha dos indivíduos nem os reconhece como iguais. Aqueles que argumentam a favor dessa regra por considerá-la um expediente técnico útil (até imprescindível) para to do corpo colegiado defendem-na principalmente como um remédio contra a unanimidade. Podemos demonstrar que os âmbitos de aplicação dos dois tipos de argumentos são distintos. Basta fazer a seguinte observação, que não nos afasta muito da verdade: embora a regra de maioria pareça ser mais racional que o princípio

4 Para uma análise e uma critica das argumentações a favor da regra de maioria em alguns autores contemporâneos, ver W. Fach, "Demokratie und Mehrheitsprinzip", Archiv fur Rechts und Sozialphilosophie, XVI, 1975, p. 2o1-222. Ver também B. Leoni, "Decisioni politiche e regola di maggioranza", II Politico, n. 4,1960, p. 7II-722.

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autocrático se levarmos em conta os valores, o segundo parece mais racional que o primeiro se levarmos em conta o objetivo; por outro lado embora a regra de maioria pareça ser mais racional que a de unanimidade; se levarmos em conta os objetivos, a segunda parece ser mais racional que a primeira se levarmos em conta os valores.

Se visualizarmos o problema apenas do ponto de vista do objetivo, da relação entre meios e fins, ou seja, tentando estabelecer a maneira mais rápida para chegar a uma decisão coletiva, não há dúvida que o princípio autocrático e mais funcional que o majoritário; mas, a partir da óptica dos valores (da liberdade e da igualdade), não há dúvida que a regra de unanimidade garante estes últimos de modo muito melhor que a de maioria.

IV

A segunda observação é que os argumentos axiológicos são adotados preferencialmente pelos autores democráticos, ou seja, aqueles que estabelecem uma vinculação mais estreita entre o sistema político democrático e a regra de maioria, considerando esta última como uma característica essencial, ou até mesmo exclusiva, da democracia como forma de governo. Bem observadas, estas são as argumentações mais fracas. Vistas como um todo, são menos convincentes que os argumentos técnicos ou de técnica organizativa; estes servem para justificar a regra de maioria não tanto como regra fundamental da democracia, mas sim como a melhor regra para formar uma vontade coletiva em qualquer grupo organizado.

As teses de Kelsen são exemplares nesse sentido, tanto pela autoridade de seu autor como porque retomam os valores democráticos por excelência. Como conclusão de sua reflexão, Kelsen afirma que "o princípio de maioria, e portanto a idéia de democracia [podemos ver que aqui esta idéia depende do princípio de maioria], é uma síntese das idéias de liberdade e igualdade”.5 Enfoquemos agora o segundo tema, a saber, a relação entre o princípio de maioria e o valor democrático da igualdade: não há uma relação de necessidade entre o princípio segundo o qual todos os indivíduos tem "igual valor político", como disse

5 H. Kelsen, Teoria generale del diritto e del/o stato, Milao, Comunita, p. 292

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Kelsen, e o princípio de maioria. Há um vinculo, é claro, mas este só ocorre nos Estados democráticos onde se exerce o sufrágio universal de homens e mulheres (todavia, mesmo onde ha sufrágio universal há exceções); em um Estado onde houvesse sufrágio universal só para os homens, o princípio de maioria bem poderia ser um princípio fundamental para as eleições políticas e as principais decisões coletivas, sem que por isso se realizasse o princípio de igual valor político para todos os indivíduos. Podemos mostrar outros infinitos exemplos em que os princípios de maioria e de igualdade não coincidem: são todos os casos em que se tem em conta à maioria dos votos, mas em que nem todos os votos são iguais. Na assembléia de uma grande empresa, bem como em uma modesta assembléia de condôminos, cada um tem direito a um voto proporcional a sua cota ou percentagem: assim, a maioria é formada a partir de votos desiguais. Do mesmo modo, uma hipotética votação política por meio de votos plurais ou ponderados (é freqüente a regra segundo a qual, em caso de empate, o voto do presidente vale por dois) não contradiz o princípio de maioria, mesmo que não respeite o princípio democrático de igual valor para os indivíduos. Isso não quer dizer que não exista relação entre a idéia democrática de igualdade e o princípio de maioria; esta relação existe porque, uma vez adotadaa idéia, o princípio de maioria é necessário. Mas isso não é válido no sentido oposto, quando se quer que o princípio de maioria implique a idéia de igualdade. Eis o que se queria demonstrar: não é possível considerar que a idéia de igualdade justifica o princípio majoritário.

v

No que diz respeito à relação entre a regra de maioria e a idéia de liberdade, nossa análise é de natureza bem diversa, embora conduza a resultados semelhantes. De forma breve, o argumento de Kelsen é formulado da seguinte forma: entende-se liberdade como autodeterminação; ora, nenhuma ordem social poderia subsistir quando atingisse o mais alto grau de autodeterminação, ou seja, quando todos e cada um dos indivíduos se autodeterminassem sem levar em conta a autodeterminação dos demais; logo, para tomar possível qualquer forma de sociedade, é necessário limitar a

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autodeterminação. o princípio de maioria e o que permite esta limitação, assegurando o mais alto grau possível de liberdade, já que a liberdade política é entendida como "o acordo entre a vontade individual e a vontade coletiva, expressa na ordem social". 6 Lançando mão de uma expressão usada na linguagem da economia (que Kelsen não adota), hoje podemos dizer que o princípio de maioria e um critério cuja aplicação permite a "maximização do consentimento" (com efeito, se entendemos a liberdade como autodeterminação, então "ser livre" significa obedecer a leis que obtiveram o nosso próprio consentimento).Pode-se aceitar que o princípio de maio ria maximiza a liberdade (enquanto autodeterminação) ou o consentimento, e que, como tal, pode ser usado contra o princípio autocrático; e possível aceitá-lo como argumento axiológico, o que, como mencionamos, fundamenta a principia como racional do ponto de vista dos valores. Apesar disso, não se consegue perceber de que forma este argumento se relaciona com a democracia como sistema político. Pelo menos, ele mostra porque um sistema democrático não pode prescindir do principia de maioria enquanto um sistema político autocrático tende a fazê-lo. Mas não ha relação imediata, pais a que caracteriza a democracia e a autodeterminação ou o consentimento do maior número: mais uma vez, deve ser a governo da maioria, antes de ser a governo par meio do princípio de maioria. Dito de outra maneira: para poder definir um sistema como democrático não e suficiente saber que o princípio de maioria maximiza a autodeterminação, e por essa via o consentimento; também é necessário saber quantos se beneficiam das vantagens (admitindo que efetivamente se trate de vantagens) desse principia e quantos têm a possibilidade de autodeterminar-se ou expressar seu consentimento por meio dele. Em poucas palavras, o que caracteriza um sistema político democrático não é o principio de maio ria, mas sim o sufrágio universal, ou, no melhor dos casos, o principio de maioria aplicado a votações com sufrágio universal.7

Evidentemente, sabre a base do sufrágio universal e inevitável

6 H. Kelsen, op. cit., p. 292.

7 o que, pelo menos formalmente, toma a República italiana um Estado democrático e o artigo 48 da Constituição: "São eleitores todos os cidadãos, homens e mulheres, que tenham alcançado a maioridade."

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que os votos sejam contados, e é oportuno que se aplique a regra de maioria para lhes conferir sentido. A regra de maioria revela assim sua qualidade de expediente técnico ao qual se recorre habitualmente na contagem dos votos, sejam muitos ou poucos, dezenas de milhões, como nas eleições políticas de um grande Estado, ou apenas sete, como os eleitores do imperador do Sacro Império Romano.

Mas, será certo que a regra de maioria assegura a liberdade enquanto autodeterminação, entendida como "o acordo entre a vontade individual e a vontade coletiva, expressa na ordem social"? A resposta seria afirmativa desde que a vontade individual que se expressa com o voto e que concorre com outras mais para formar a maioria pudesse ser livremente determinada. Mas a livre determinação da vontade individual (entende-se por "livre determinação" aquela que se escolhe, tendo diante de si diversas alternativas, através da ponderação dos argumentos a favor e contra, e não em situações sem alternativa ou por medo de conseqüências graves para a pessoa ou seus bens) requer uma serie de condições preliminares favoráveis (reconhecimento e garantia dos direitos de liberdade, pluralidade de tendências políticas, livre competição entre elas, liberdade de propaganda, voto secreta etc.) que antecedem a emissão do voto e também, em conseqüência, o funcionamento da regra de maioria, que é pura e simplesmente uma regra para a contagem de votos. Em sua condição de expediente técnico,.a regra de maioria e indiferente diante do fato de que os votos tenham sido emitidos mais ou menos livremente, por convicção ou por medo. Que uma decisão colegiada seja tomada por maioria, e que essa decisão conjunta seja efetivamente a decisão da maio ria, nada disso fornece provas da liberdade relativa com que esta decisão foi tomada. Logo, atribuir a regra de maioria à capacidade de maximizar a liberdade ou o consentimento e outorgar-lhe uma virtude que não lhe pertence: a regra de maioria só maximiza o número daqueles que votam em uma direção, preferindo-a a outra diferente. Desafortunadamente, com demasiada freqüência as maiorias não se formam com os mais livres, mas sim com os mais conformistas. Mais ainda: em geral, quanto mais amplas São as maiorias e quanto mais elas se aproximam da unanimidade, tanto maior e a suspeita de que a expressão do voto não foi livre: neste caso, a regra de maioria prestou todos os serviços que podem ser demandados

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dela, mas a sociedade que ela reflete não e uma sociedade livre.

VINeste momento poderia ser supérfluo assegurar que,

entre os argumentos que justificam o princípio da democracia, os de natureza técnica são mais probatórios que os axiológicos. Mesmo assim, podemos fazer algumas considerações adicionais. A regra de maioria nasceu para permitir a formação de uma vontade coletiva dentro de uma assembléia, tendo como base a máxima, decorrente da experiência, universi facile consentire non possunt [as totalidades não podem chegar facilmente a um acordo]; ou também com base na experiência oposta, segundo a qual a única regra que fica como opção, a de unanimidade, coloca obstáculos e ate mesmo chega a impedir a formação de uma vontade coletiva, ou só a permite em casos excepcionais, como quando se vota por aclamação ou por consentimento tácito ("Se ninguém se opõe, considera-se que a proposta foi aprovada por unanimidade"); nesses casos, porem, como muitas vezes se observa, não há possibilidade de exercer plenamente a liberdade de divergir (tanto no caso da aclamação como no do consentimento tácito, os que consentem e os que divergem não tem condições isonômicas para expressar suas opiniões).Já que o ideal do consentimento unânime não pode ser realizado na prática (insisto nisso) ou só p de realizar-se em casos excepcionais, em que a objeção é quase sempre sufocada, adota-se a regra de maioria como regra técnica ou instrumental; a saber, uma regra do tipo "se queremos X, então y", cuja validade depende exclusivamente do fato de ser um meio idôneo - o único - para atingir um fim desejado ou, mais ainda, um fim objetivamente necessário. Quando não é possível o consentimento total, mas apenas parcial, a regra de maioria exige considerar como total o consentimento da maior parte, com base na constatação simples e evidente de que uma decisão colegiada nunca seria tomada se ela requeresse um consentimento total. Isso inviabilizaria a existência de qualquer corpo comunitário. Por outro lado, caso se requeira um consentimento parcial inferior ao demandado pela regra de maioria, a decisão não pode ser considerada como emanada da coletividade na mesma medida de quando e aprovada por

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maioria. Como prova, consideremos que a passagem da regra de unanimidade a regra de maioria sempre tem lugar quando se constitui um órgão coletivo: no caso da unanimidade baseada no liberum veto, trata-se da renuncia, por parte dos que tem direito de voto, do direito de votar uti singuli (o que ainda se conserva entre as cinco grandes potencias do Conselho de Segurança das Nações Unidas), reconhecendo-se a necessidade de votar uti universi, como parte de uma totalidade; no caso da unanimidade por aclamação, trata-se da transformação de um grupo informal em um grupo institucionalizado, cujo poder de decisão pertence à assembléia quando esta é, como diziam os antigos juristas, legitime congregata et convocata [convocada e reunida legitimamente]. Em ambos os casos pode-se ver em que medida a regra de maioria está estreitamente vinculada ao funcionamento de um organismo colegiado.Pode-se objetar que as observações anteriores não levam em Conta as duas faces da regra de maioria, uma que se volta contra a regra de unanimidade e a outra contra o poder monocrático, É que considerar a regra de maioria como expediente técnico e válido sobretudo no primeiro caso, não o sendo no segundo, no qual o argumento axiológico segue tendo peso. Esta objeção só é correta se recordamos o seguinte: considerar preferível o poder ascendente em relação ao descendente e, de fato, o ideal fundamental de um sistema democrático, mas, para que este ideal possa realizar-se, é necessário que o poder ascendente se estenda ao maior número possível; ou, em outras palavras, que, também de parte daqueles que consideram um valor a maximização do consentimento, o que distingue e caracteriza um sistema democrático diante de um oligárquico é o número de pessoas chamadas a expressar o seu consentimento (ou a sua oposição).VII

O segundo ponto a tratar e a não-coincidência entre a regra de maioria e a democracia. Agora, deixaremos de considerar o tema tendo como referência a validade da regra em sistemas diferentes do democrático. Vamos pensar a partir de outro ponto de vista: a existência de outras modalidades de formação da vontade coletiva, diferentes da regra de maioria, no interior de sistemas democráticos.

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Faço referência especialmente à solução dos conflitos sociais mediante acordos (ou negociações), que são fechados (quando se consegue isso, e claro) com um compromisso. 8 A regra de maioria age no interior de um corpo colegiado, no qual a vontade coletiva é o resultado da soma das partes que integram um todo orgânico. Como tais, elas dependem da totalidade. o tipo de acordo mencionado acima, ao contrário, ocorre entre elementos (sejam eles indivíduos ou grupos) relativamente independentes, que chegam a formular uma vontade coletiva por meio de concessões mutuas com base no princípio do ut des [te dou para que me dês]; trata-se de um modo de solução de conflitos externos entre grupos. No Estado democrático contemporâneo, dentro de uma sociedade industrial avançada que se caracteriza pela presença de grandes grupos organizados em conflito entre si, o contrato, no sentido estrito de acordo bilateral entre sócios formalmente iguais, em nada perdeu sua eficácia como instrumento para solucionar conflitos. Isso se contrapõe à idéia da supremacia da lei, que foi dominante entre os autores políticos cujas teorias acompanharam a formação do Estado moderno, de Hobbes a Locke, de Rousseau a Hegel, e posteriormente entre os pensadores do direito público do tempo do positivismo jurídico, de Jellinek a Kelsen; ou seja, a vontade coletiva expressa por meio da aplicação da regra de maioria (quando a assembléia parlamentar toma-se órgão supremo de decisão) detém a supremacia. A contraposição tradicional entre o contrato como uma instituição do direito privado (e como tal, fonte de regras inter partes [entre as partes]) e a lei como uma instituição do direito público (e como tal, fonte de normas com validade super partes [acima das partes]) e esquemática e tende a confundir. Em uma sociedade plural, os grandes grupos organizados se comportam como entes quase-soberanos, e para resolver seus conflitos eles só reconhecem a negociarão mutua, diante da qual o governo se limita a realizar uma função de mediador ou de arbitro e, quando a negociação foi concluída, de garantidor (às vezes impotente) de seu cumprimento.

A idéia da supremacia da lei foi à conclusão necessária de uma concepção unicentrica do Estado, que encontrou sua formulação mais acabada no Leviatã de Hobbes. Esta 8 Tratei mais extensamente deste tema no artigo "Le Contrat social aujour-d'hui", em Le Public et Ie prive, Roma, Istituto di Studi Filosofici, 1979, p. ó2-68.

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concepção, por sua vez, decorria da convicção de que o Estado estava destinado a dominar, e ate mesmo suprimir, os sistemas inferiores (Hobbes), as sociedades parciais (Rousseau) e os órgãos intermediários. Todavia, o desenvolvimento político seguiu um caminho oposto: as sociedades parciais não só não foram assimiladas, mas cresceram em número e em potencia; quanto mais desenvolvidos econômica e socialmente são os Estados contemporâneos, tanto mais se tomam policêntrico (poderíamos dizer policráticos). Forçando um pouco a análise, é possível dizer que em um Estado monocrático a vontade coletiva se expressa na lei, não importando se esta é declarada e promulgada pelo príncipe ou pelo povo (ambos, por certo, ficções jurídicas); em um Estado policêntrico, ao contrário, ela se expressa no contrato.

VIIIDepois de expor sua teoria da maioria, Kelsen introduz o

tema do compromisso como modus vivendi essencial na vida da democracia: "A livre confrontação entre maioria e minoria e essencial para a democracia, pois é o modo de criar uma atmosfera favorável ao compromisso entre ambas. o compromisso e parte da própria natureza da democracia." 9

Devemos acrescentar que, se deve haver um compromisso, este se verifica em primeiro lugar não entre maioria e minoria, mas sim no interior da própria maioria, quando a formação desta última não ocorre espontaneamente (e é muito difícil que se forme assim), ou quando ocorre por imposição, por exemplo através da disciplina partida ria (o que é contrário a "essência" da democracia).Não ha objeção a fazer contra esta justaposição entre o princípio majoritário e o compromisso entre as partes, sempre e quando se reconheça que se trata de dois procedimentos distintos para formar uma vontade coletiva. Quando Kelsen assegura que o compromisso representa a solução de um conflito mediante o apelo a uma norma que "não está totalmente de acordo com os interesses de uma parte, nem e de todo contraria aos interesses da outra", ele sugere, sem especificar, a resposta para os que se perguntam pela diferença entre a vontade coletiva formada a partir da regra de 9 Tratei mais extensamente deste tema no artigo "Le Contrat social aujour-d'hui", em Le Public et Ie prive, Roma, Istituto di Studi Filosofici, 1979, p. ó2-68.

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maioria e aquela formada a partir de um compromisso. Uma resposta decorre também da teoria dos jogos, que distingue entre os jogos cujo resultado e de soma zero e aqueles cujo resultado chega a uma soma diferente de zero, que pode ser positiva ou negativa. A deciSão por maioria e uma típica decisão de soma zero: ha quem ganha e quem perde (como nos dados). Ganha a maioria, perde a minoria; esta última perde o que a maioria ganha. Se, como em um referendo, a aposta e a Monarquia ou a República, a conclusão que se confia à regra de maioria e esta mesma - Monarquia ou República -, mas não pode ser nem uma República monárquica nem uma monarquia Republicana. Ao contrário, o resultado de um compromisso, cuja forma jurídica típica e o contrato, geralmente e de soma positiva, a saber, um resultado no qual ambos os sócios ganham algo, como ocorre em todo contrato de intercambio, que e assinado precisamente porque ambos os contratantes vêem nele algo de conveniente (dizemos "geralmente" porque também poderia ter resultado negativo, quando os dois contratantes se enganam mutuamente). 10

Para dar um exemplo histórico banal: no caso em que a eleição da forma de governo não seja confiada ao funcionamento do princípio de maioria, mas sim a um compromisso entre as partes, como entre um monarca absoluto e as classes emergentes que demandam participar do governo, nada impede que o resultado seja uma monarquia republicana (a monarquia constitucional) ou uma República monárquica (a República presidencialista).Retomando a Kelsen, para quem "o compromisso e parte da própria natureza da democracia", podemos perguntar se é mais "democrático" o princípio da livre negociação ou o princípio majoritário. Já foram expostas as razões pelas quais acreditamos que o princípio de maioria é necessário, mas não suficiente, para a democracia. o mesmo podemos dizer sobre o princípio de livre negociação: assim como o princípio de maioria e democrático com a condição de que se aplique ao maior número, do mesmo modo o princípio de negociação e democrático com a condição (trata-se de uma condição-limite, portanto dificilmente realizável) de que os dois sócios tenham igual poder (entendido como a quantidade de meios adequados para influenciar a outra parte). Isso não toma menos importante esta modalidade de formação da vontade

10 A este respeito ver Sartori.

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coletiva, que não pode circunscrever-se ao princípio de maioria, e que ao mesmo tempo e compatível com o conjunto de valores que habitualmente se associam ao conceito de democracia. Mais ainda: o ideal da democracia não pode dissociar-se do princípio do contrato social, ou seja, da idéia do acordo de cada um com todos os demais sobre alguma das regras fundamentais da convivência, embora se trate de uma só regra, a de maioria.Em ocasiões anteriores destacamos como e importante à persistência do ideal contratualista no pensamento político contemporâneo (não e por acaso que hoje se fazem referências ao neocontratualismo), apesar das criticas que recebeu no século XIX, quando o ataque levado adiante conjuntamente por autores conservadores e revolucionários fez com que ele chegasse a desaparecer. As razões dessa persistência se explicam pela dificuldade, ou ate mesmo impossibilidade, de dissociar o ideal de uma sociedade livre e a prática - para alem do princípio de maioria estendido ao maior número - da negociação entre indivíduos ou grupos formalmente livres e iguais.

IX

As observações feitas até aqui não pretendem questionar a relevância do princípio de maioria para o bom funcionamento de um sistema político democrático. Desejam apenas chamar atenção para o fato de que o princípio de maioria e apenas um dos elementos que permitem o bom funcionamento do sistema; ou seja, desejamos enfatizar o que podemos denominar limites de relevância do princípio. Agora e necessário dar mais um passo, analisando outros tipos de limites com os quais esse princípio esbarra, alem dos que se relacionam com sua relevância. E possível distinguir três tipos, que chamaremos respectivamente de validade, aplicação e eficácia.

Por limite de validade se entende aquele que decorre de uma resposta negativa a pergunta: podem ser admitidos a participar em um processo decisório coletivo, baseado no princípio de maioria, também aqueles que o rejeitam, Ou seja, aqueles que, se chegassem a conquistar a maioria, se serviriam dela para abolir o princípio? Chamaremos de limite de validade a este limite porque o problema se coloca, de

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modo geral, mediante a seguinte pergunta: será que o princípio de maioria tem validade absoluta? – e, por validade absoluta, entende-se que o princípio de maioria é válido em qualquer caso, ou seja, ate mesmo quando a decisão coletiva, tomada por maioria, é abolir o princípio de maioria - ou, ao contrário, será que a própria regra de maioria está sujeita a outra que lhe é superior, que impede que se tome (por maioria) a decisão de abolir o princípio de maioria, e portanto sua validade não é absoluta? Esse tipo de pergunta recebeu respostas diferentes e, como sói acontecer, também a diferença nas respostas depende do ponto de vista. Pode-se colocar o problema como sendo de oportunidade política; mas é muito diferente se o colocamos como um problema de princípio, embora seja certo que freqüentemente argumentos do tipo prático são usados para reforçar o posicionamento de quem o assume a partir dos princípios e vice-versa. Assim, sustenta-se que é oportuno que a regra de maioria seja valida também para os antimajoritários, pois só dessa forma se respeita o princípio de liberdade que está na base da adoção dessa mesma regra; mas também se sustenta que, em princípio, a regra deve valer somente para os defensores do princípio, pois se admitíssemos que ela é valida para os seus antagonistas, as conseqüências práticas poderiam ser desastrosas.

Na realidade, os dois posicionamentos opostos são defendidos tanto por meio de argumentos práticos como teóricos, o que demonstra mais uma vez que o âmbito das argumentações sobre os princípios e os valores sempre está sujeito à opinião. No que diz respeito aos argumentos práticos, devemos refletir sobre a diversidade de soluções adotadas por um regime de democracia liberal e por outro de democracia protegida: em uma Constituição liberal, como a da Itália, o exercício dos direitos políticos dos cidadãos não é limitado por seu posicionamento diante da regra de maioria; já a Constituição da República Federal da Alemanha [então Alemanha Ocidental, N. do T.], no artigo 18, prevê a perda de direitos fundamentais para os que abusam deles a fim de "combater os princípios da livre ordem democrática", entre os quais está o princípio de maioria.

A diversidade de soluções decorre de avaliações diferentes sobre as condições históricas, o perigo subversivo, as forças existentes, etc.: trata-se de pesar, de um lado, os

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inconvenientes que decorrem da deciSão de excluir dos benefícios do princípio de maioria os cidadãos suspeitos de desejarem aboli-lo, caso ganhem o poder político; e, de outro lado, os inconvenientes, para a preservação da liberdade, que possam decorrer de uma liberdade sem limites. No que se refere às argumentações teóricas, alguns sustentam que as regras de maioria não podem ter validade absoluta, já que "a verdadeira natureza de um princípio e proibir sua própria negação"; outros sustentam que, quando a regra e adotada, a maioria se tom a autoridade absoluta e não pode ser limitada sem incorrer-se em contradição. 11

Diante da diversidade e do caráter contraditório das opiniões, creio que o único posicionamento que conta com certa força persuasiva e aquele que não se baseia no conteúdo da própria regra, mas sim em seu status de regra do jogo (ou meta-regra). As regras do jogo, diferentemente de todas as demais, devem ser aceitas por unanimidade pela simples razão de que sua recusa, mesmo que venha de um só participante, impossibilita jogar. Isso significa que aceitar participar em uma deciSão ou em uma eleição que se realiza com base na regra de maioria implica aceitar essa mesma regra como formal de chegar à decisão ou a eleição. Em outras palavras: aquele que aceita decidir ou escolher segundo a regra de maio ria não esta aceitando uma deciSão especifica sobre um determinado problema (que ele pode ate mesmo rechaçar), nem tampouco a representação de certa pessoa, da qual pode ser inimigo; esta apenas aceitando um determinado procedimento para o processo de deciSão ou a eleição. Podemos acrescentar que a força vinculante e maior nas regras do jogo que em todas as demais, já que se baseia na consideração, por parte de cada um dos jogadores, de que o interesse geral ten de a manter as regras do jogo acima do interesse particular (que seria procurar a vitória da própria facção em uma decisão específica).

X

11 Refiro-me especialmente aos artigos de H. McClosky, "Lhe Fallacy of Absolute Majority Rule", Lhe Joumal of Politics, XI, 1949, p. ó37-ó54, e de W. Kendall, "Prolegomena to any Future Work on Majority Rule", Lhe Joumal of Politics, XII, 1951, p. 694-713. o primeiro autor sustenta a primeira tese e o segundo defende a tese contrária.

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Quando nos referimos aos limites de aplicação das regras de maio ria, estamos tratando dos limites que decorrem da existência de matérias as quais, em geral, esta regra não se aplica. Também neste caso, isso ocorre por razões de oportunidade ou de princípio: são estas as matérias nas quais a tomada de decisões por meio da regra do maior número apareceria como inoportuna (não adequada ao seu fim) ou ate mesmo injusta. Como o âmbito de aplicação desses limites e amplo, só é possível indicar aqui os mais relevantes.Todas as Constituições liberais se caracterizam pela afirmação dos direitos do homem e do cidadão, qualificados de "invioláveis". A inviolabilidade reside precisamente no fato de que esses direitos não podem ser limitados, e muito menos suprimidos, por meio de uma deciSão coletiva, mesmo que esta seja majoritária. Por serem inalienáveis diante de qualquer decisão, mesmo majoritária, estes direitos foram chamados de direitos contra a maioria. 12

Em algumas Constituições são juridicamente garantidos por meio do controle constitucional sobre as leis (ou seja, sobre decisões tomadas por maioria), declarando-se ilegítimas as leis que não respeitem esses direitos.A ampla esfera dos direitos de liberdade pode ser interpretada como uma espécie de território de fronteira, diante do qual se detém a força do princípio de maioria. Assim, buscando construir um princípio geral a partir dessa realidade, podemos sustentar que um dos critérios para distinguir entre o que pode e o que não pode ser submetido à regra de maioria e a distinção entre o que está sujeito à opinião e o que não esta. Isso, por sua vez, implica mais uma distinção, a saber, entre o que é negociável e o que não e: os valores, os princípios, os postulados éticos e, naturalmente, também os direitos fundamentais não estão sujeitos a opinião, e portanto tampouco são negociáveis. Assim, a regra de maior número, que só se relaciona com o que esta sujeito à opinião, não e competente para julgá-los.

Ao lado dos postulados éticos, que por defini«;:ao não estão sujeitos a opinião (caso contrário, não seriam postulados), e dos direitos fundamentais, aos quais 12 "A Constituição e mais especialmente a Carta de Direitos foram concebidas para proteger os cidadãos como indivíduos e grupos contra algumas decisões que uma maio ria de cidadãos tente tomar, mesmo quando a maioria atue de acordo com o que parece ser o interesse comum ou geral." São palavras de R. Dworkin em Taking Rights Seriously, Londres, Duckworth, 1977, p. 133.

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costumeiramente se atribui o status de postulados éticos, ha outras matérias sobre as quais não e possível tomar decisões adotando o critério da maioria, tanto por razões objetivas como subjetivas: por razões objetivas, não se podem tomar decisões sobre os temas que cientistas e técnicos debatem, já que - embora também estejam sujeitos a opinião - a decisão a favor de uma ou outra hipótese é tomada por meio de procedimentos diferentes e muito mais complexos do que a contagem das pessoas que compartilham a mesma opinião. Nenhum congresso de cientistas estaria disposto a resolver uma controvérsia cientifica por aferição de maioria; mas todos aceitam submeter-se a regra de maioria para decidir a eleição do presidente da entidade e a forma de organizar o congresso seguinte. o mesmo se aplica às decisões técnicas, tais como, em um Estado contemporâneo, as que se relacionam com a política econômica e financeira, que os especialistas na matéria reclamam para si. o crescente contraste entre poder tecnocrático e poder democrático decorre precisamente de reconhecer-se que muitas decisões importantes para a regulação dos conflitos políticos são de natureza técnica e, como tais, se adaptam pouco a determina«;:ao por maioria; assim, o triunfo da tecnocracia poderia chegar a ser a derrota total da democracia. Em geral, justifica-se o governo de uma minoria iluminada pela afirmação de que a matéria das decisões políticas nunca e objeto de opinião, já que existem leis naturais para o governo de uma sociedade: descobri-Ias permitiria soluções muito mais validas e certeiras do que as que se tomam por meio da contagem devotos. Ha dois exemplos históricos desta ideologia: a doutrina fisiocrática, segundo a qual a melhor forma de governo e o despotismo esclarecido, pois a tarefa do governante e conhecer a ordem natural e segui-Ia, e o comunismo popular, em cuja defesa chegou-se a afirmar: "Como o socialismo cientifico e a própria verdade, a minoria que possui esta verdade tem o dever de impô-la as massas" para não mencionar o rêve mathematique (sonho matemático de Bukárin) 13

Em segundo lugar, não estão sujeitas à decisão por maioria as questões de consciência, em que por "consciência" se entende o que antigamente se chamava de "foro interno", o tribunal interior, no qual o único juiz é o próprio sujeito como porta-voz de uma lei superior, seja ela de Deus ou a lei moral 13 As palavras são de Charles Naine, citadas por J. Martovem Bolscevismo mondiale, Turim, Einaudi, 198o, p. 37

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kantiana, que não podem ser abolidas por nenhuma outra lei. Um exemplo simples mas significativo: podemos submeter a referendo a escolha entre monarquia e República, mas não entre cristianismo e ateísmo, entre a obrigação de crer em um ou em outro Deus, ou não crer em nenhum; talvez se possa - pois, em certas circunstancias históricas, o poder tudo pode - impor uma religião ou uma doutrina, mas não se pode pretender que as pessoas creiam que não foram impostas, mas sim que elas mesmas decidiram, fazendo com que uma religião ou uma doutrina fossem aprovadas por decisão majoritária.

O principal motivo pelo qual o princípio de maioria se detém diante de uma questão de consciência não difere do motivo pelo qual ele também se detém diante da verdade cientifica: em ambos os casos, trata-se de uma decisão que não pertence ao âmbito do que está sujeito a opinião; conseqüentemente, não é negociável. Não obstante, as razões da ausência do critério de opinião são distintas: no segundo caso, depende da natureza do procedimento considerado adequado para alcançar soluções compartilhadas, mais do que do procedimento que se dedica a contar as opiniões; no primeiro, depende da natureza da autoridade a quem se apela, e que neste senti do e a autoridade primeira, diante da qual todas as outras têm de ceder seu lugar, embora se trate da autoridade da maioria. Por outro lado, os dois casos citados se assemelham porque as conseqüências práticas podem ser idênticas: o descrédito da regra de maioria e ate mesmo sua completa supresSão. Nasceram dai duas formas clássicas de despotismo, que poderíamos chamar de despotismo dos antigos e despotismo dos modernos: o primeiro baseia-se na infalível autoridade de Deus, o segundo na autoridade - igualmente infalível - da ciência. Ambos se apóiam em uma autoridade cuja credibilidade não esta sujeita a votação.Por ultimo, entre os limites subjetivos a aplicação da regra de maioria encontra-se aquele que decorre da existência do que - em termos hegelianos – se pode chamar o ethos de um povo: hábitos, costumes, língua e tradições. Isso se evidencia no caso das minorias étnicas que, precisamente por serem minorias, seriam as eternas perdedoras se o princípio de maioria fosse adotado rigidamente. Um exemplo muito comum e a imposição da língua da maioria a uma minoria lingüística, que em todos os casos a minoria considera uma imposição,

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independentemente de que se trate de uma determinação tomada pela maioria. Claro esta, devemos diferenciar a tutela para a minoria que faz parte de um órgão coletivo que adota como regra à de maio ria e a tutela para uma minoria religiosa ou étnica: tutelar a primeira consiste em evitar fechar a possibilidade de ela tomar-se maioria, enquanto no segundo caso - o de uma minoria que evidentemente nunca poderá converter-se em maioria - consiste em impedir que a maioria tenha direito a intervir em certos âmbitos reservados, como, precisamente, os relacionados com o ethos. Este tipo de limite para a aplicação da regra de maioria e, grosso modo, da mesma natureza que aquele que decorre do reconhecimento dos direitos fundamentais: trata-se de um limite que indica a indisponibilidade de alguns âmbitos e não uma inadequação do princípio.

XI

Dentro da categoria geral que aponta os limites da eficácia da regra de maioria incluem-se todos aqueles ressaltados pelos que sustentam que a aplicação da regra não cumpre nem pode cumprir com tudo o que oferece, a começar pela promessa que deu origem a todos os regimes democráticos mais desenvolvidos, ou seja, transformar radicalmente as relações entre as classes sociais: por isso, acusam-na de ser um procedimento útil, mas insuficiente. Este é um tema freqüente na propaganda política, sobretudo da esquerda, e cuja difuSão nos permite não nos deter excessivamente nele, a não ser para observar que, apesar de tudo, a regra majoritária resiste a todas as criticas simplesmente porque não se encontrou outra melhor.Comentaremos apenas um desses limites: o caráter irreversível de algumas decisões depois que elas foram tomadas e executadas. Em que sentido se pode interpretar como limite para a eficácia da regra de maioria o caráter irreversível dos efeitos de alguma de suas decisões? Um dos lugares-comuns mais usados para salientar os benefícios da regra de maio ria e que sua aplicação coerente e rigorosa, sem colocar obstáculos a possibilidade de que a minoria se tome maioria, favorece a alternância no governo, e, em conseqüência, as mudanças de direção política. Também neste caso podemos continuar citando Kelsen: "Quando o número

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daqueles que estão em desacordo com a ordem imperante e maior que o número daqueles que estão a favor, e possível uma mudança..." 14 Evidentemente, considerar a possibilidade de mudar como um beneficio da regra de maioria supõe um juízo axiologicamente positivo sobre a mudança em si mesma, o que nem sempre é certo. Mesmo atribuindo a mudança esta conotação positiva, segue em vigência a pergunta sobre ate que ponto a nova maioria está em condições de transformar a situação que se criou a partir do domínio da maioria precedente. Sobre isso, Kelsen menciona a mudança na ordem vigente ou em uma de suas normas; porem, não se trata aqui apenas de transformar essas coisas, mas sim de modificar situações reais criadas pela ordem anterior ou por uma de suas norm as que, depois de sua aprovação, não podem transforma-se e tomam-se irreversíveis.

Não conheço nenhum critério para diferenciar os atos reversíveis dos irreversíveis, mas alguns exemplos mostram que efetivamente existe uma diferença: São reversíveis muitas medidas de política econômica, social e fiscal, tais como facilidades de credito, imposição ou eliminação de obrigações fiscais, ampliação ou restrição da seguridade social. Mas são dificilmente reversíveis as condições originadas por grandes reformas, como a divisão de grandes latifúndios ou a nacionalização de uma industria, assim como são irreversíveis algumas transformações do território geradas por uma política favorável a especulação imobiliária (na Itália, nenhuma nova maioria, nem a mais ilustrada, poderá devolver a beleza de certas paisagens irremediavelmente destruídas). Alguém poderia argumentar que qualquer classe dirigente no poder, e não somente a que governa em nome da maioria, cria situações irreversíveis. Isso e correto. Mas nenhum sistema de governo, com exceção daquele que se baseia na regra de maioria, tem a pretensão de assegurar transformações paulatinas e pacíficas: só a este tipo de governo se atribui tal capacidade. A existência de situações irreversíveis não é incompatível com um governo baseado em - digamos - conquistas, já que este não pretende evitar a criação de situações irreversíveis (ao contrário, sua premissa e a oposta). Já para um governo baseado em uma regra que tem a vantagem, entre outras, de facilitar a mudança, isso constitui

14 H. kelsen op. Cit. P. 291

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uma incompatibilidade ou, como a temos chamado, uma aporia.

XII

Uma análise completa dos problemas relacionados com a regra de maioria deve levar em conta não somente os limites dessa regra, que examinamos ate aqui, mas também as dificuldades inerentes à aplicação da regra considerada apenas como expediente técnico, e que aqui chamamos de "aporias", a fim de sublinhar suas diferenças em relação aos limites dos quais falamos até agora. Os “limites" referem-se essencialmente a dimensão axiológica do problema, enquanto as aporias fazem referência ao âmbito técnico. Estas são tais e tão numerosas que não pretendemos listar todas, só algumas, sobretudo a fim de evidenciar como o problema é vasto e como é necessária uma análise ainda mais exaustiva d o que proponho em seguida.

(a) Os votantes. A regra de maioria estabelece que se adote como uma decisão coletiva àquela que for tomada pela maioria dos votantes, mas não específica nada em relação à composição do conjunto de pessoas cujo voto se pede. Não há resposta a pergunta: "Quantos e quem são os votantes?" Na primeira parte deste texto, mencionamos que o que confere a regra de maioria seu caráter de instituição democrática e o sufrágio universal; o número daqueles que participam das decisões baseia-se no calculo do maior número. Mas, maior número comparado com o que? a maior número de cidadãos nas cidades gregas, em que os cidadãos livres eram uma minoria, não e o mesmo que em um Estado moderno, onde, como disse Hegel, "todos são livres". A maioria em um Estado colonial em que os indígenas não tem direito a voto, ou em um regime de ditadura do proletariado, em que os que não são proletários não tem direito a voto, não e a mesma que em um Estado metropolitano, onde não ha discriminação racial, ou em um Estado de democracia formal, em que, pelo menos no que diz respeito ao direito ao voto, não há discriminação de classes. Em um sistema de democracia formal, onde existe o sufrágio universal para homens e mulheres, o problema da coincidência da regra de maioria com o princípio democrático parece estar resolvido.

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Porem, será que é assim mesmo? Claro que o problema se resolve para o maior número de cidadãos desse Estado, mas quando as decisões coletivas dos cidadãos interferem nos direitos ou interesses de outros Estados, por que o conjunto de pessoas que decide não deveria incluir também os cidadãos desse outro Estado? Também neste caso trata-se de uma discriminaS;ao, em nada diferente daquela que exclui os indígenas em um Estado colonial, os não proletários em um Estado proletário e os pobres em um Estado burguês. Recordemos que o principal argumento para conceder direitos políticos apenas aos proprietários e excluir deles os despossuídos sempre foi o de que estes últimos não tem interesse na administração dos assuntos públicos. Como podemos sustentar que os cidadãos de outro Estado não têm interesse na deciSão de invadir seu território, tomada por uma maioria de cidadãos agressores? Reconheço que estou forçando os termos do problema, mas faço isso para evidenciar que a ralação entre maioria e minoria só mudará quando a composição dos órgãos colegiados for transformada. ou, para dizer de forma mais simples e direta, quero destacar que o problema de quem vota não tem menos importância que o problema de como se vota.

Deixando por um momento o âmbito das hipóteses, levantemos um problema histórico que nos diz respeito: o debate na Itália, depois da LiberaS;ao em 1944, sobre convocar um referendo popular ou entregar a Assembléia Constituinte a deciSão entre República e Monarquia. a que se discutia não era a regra de maioria, mas sim quem deveria responder ao chamado de tomar a decisão majoritária. o debate foi duro, pois, se o órgão eleitoral fosse formado por membros da Assembléia Constituinte, o resultado a favor da República teria sido seguros; em contrapartida, se fosse formado por eleitores, teria sido incerto (de fato, o resultado foi favorável à República por pequena margem).

A regra de maioria e um instrumento maleável: pode conduzir a resultados opostos, conforme esteja mais aberta ou mais fechada à porta de acesso aos usuários; todavia, abrir em maior ou menor medida essa porta pode não ser uma deciSão que dependa da aplicação da regra de maioria; com freqüência, é uma decisão tomada pelo alto ou em conseqüência de um compromisso entre as forças sociais em

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conflito (voltamos aqui ao problema iniludível da negociação como um meio alternativo para tomar decisões coletivas).(b) as não-votantes. Até aqui falamos de maioria como se esta idéia fosse clara e definida. Não é assim: mesmo deixando de lado todas as distintas formas de maioria (relativa, absoluta, qualificada etc.) e considerando apenas a maioria absoluta, que é a forma habitual, o cômputo de uma maioria dentro de qualquer órgão coletivo não é tão simples como pode parecer; na verdade, gera muitas dificuldades para os compiladores e comentaristas dos regulamentos das assembléias. Tudo isso seria simples, até simplíssimo, se em todos os casos se cumprissem as duas seguintes condições: (a) que votassem todos os detentores do direito e (b) que o problema submetido à votação fosse formulado de modo a que só pudesse ser respondido com "sim" ou "não", ou que os votantes fossem obrigados a responder "sim" ou "não". Na realidade, estas duas condições quase nunca se realizam: em geral, os problemas não se colocam de forma a que possam ser respondidos com um "sim" ou um "não"; alem disso, permite-se aos votantes expressar sua vontade sob a forma de abstenção ou apresentando um voto em branco.Comecemos pela primeira questão: assim como muda o resultado da votação ao mudar o organismo eleitoral, da mesma forma, embora o organismo eleitoral seja idêntico, a votação varia dependendo da maior ou menor participação: disso decorre que todo calculo da maioria supõe um acordo sobre as regras preliminares que vão reger as modalidades de totalização. A diferença de resultados e grande, conforme se compute a maioria levando em conta os detentores do direito (e portanto também aqueles que, mesmo tendo direito de voto, não o exercem) ou os votantes.No segundo caso, é necessária uma regra preliminar adicional para que o computo seja possível: a que estabelece qual deve ser o número de votantes para que uma eleição seja considerada valida. Caso se estabeleça que a decisão ou a eleição e valida quando se tenha obtido o voto da maio ria dos detentores do direito, usa-se uma regra de maioria para decidir sobre a validade da votação por maioria. Um caso extremo é o estatuto de algumas associações, segundo qual a assembléia de sócios em segunda convocação é válida independentemente do número dos presentes; trata-se de um caso-limite porque demonstra que o princípio de maioria pode

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ser cumprido formalmente até mesmo nos momentos em que se inutiliza completamente sua função, que é a de assegurar que a decisão coletiva corresponda à vontade dos membros do corpo colegiado.

Nas democracias mais antigas e consolidadas, a abstenção eleitoral e um dos fenômenos mais evidentes. Para evitar chegar à conclusão de que a democracia como governo baseado na participação popular, está em crise ou falhou em suas promessas, justifica-se essa grande ausência no exercício do voto com a suposição de que a pessoa que não vai votar não rechaça o método democrático em geral, mas sim que, no caso específico, é indiferente diante das alternativas que estão colocadas; seja qual for à opção ganhadora, a pessoa se sentira satisfeita. Em outras palavras, o não-votante seria aquele para quem tanto faz "este ou o outro": deixa de eleger não por falta de vontade, mas sim porque não sabe o que eleger; ambas as opções lhe parecem "boas" ou "mas" ao mesmo tempo e com a mesma intensidade.(c) A abstenção. Por "abstinentes" não se entendem aqui as pessoas que nãovotam, das quais falamos acima, mas sim aquelas que emitem seu voto mas se abstém de expressar sua vontade a favor de uma das opções (São aquelas que emitem votos em branco).15

Trata-se de situações distintas, embora com freqüência se use a palavra "abstenção" para ambas..

Retomando o que foi dito no fim do item anterior, podemos dizer que, enquanto a abstenção do não-votante pode ser interpretada como um estado de indiferença diante de todas as alternativas colocadas, a abstenção de quem vota em branco deve ser interpretada como um estado de hostilidade diante dessas opções. o não-votante diz "sim" ao presidente X e ao presidente Y, pois nenhum deles representa uma diferença (dai sua indiferença); o que vota em branco manifesta claramente seu juízo negativo em relação a ambos: sua lógica e "nem um nem outro", e não "um ou outro"; esta última e a lógica de duas maiorias potenciais que tendem a excluir-se mutuamente. Nas pesquisas, qualquer um percebe a

15 0 tema da abstenção é um dos que costumeiramente despertam entre os juristas a paixão por controvérsias sutis, que freqüentemente parecem ser um fim em si mesmas mas, ao contrário, tem efeitos práticos relevantes. Algumas indicações bibliográficas estão em vários autores, II regolamento della Camera dei Deputati, Roma, Camara dos Deputados, 1968, p. 779ss.

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diferença entre não expressar a própria opinião, declinando responder ao questionário, e expressar uma resposta distinta de "sim" ou "não", marcando o espaço reservado a "não sei". Resta mencionar que a clara distinção entre não votantes e abstinentes tem conseqüências práticas relevantes caso a maioria seja calculada a partir do número de votantes, incluídos os que optaram pela abstenção, ou a partir do número dos que tem direito a votar. o debate sobre a maneira de resolver o problema do computo dos votos em branco trouxe riscos á República italiana nascente. Depois de conhecer o resultado do referendo, Os partidários da Monarquia colocaram o seguinte problema: para a contagem da maioria favorável a República, será que o total de votos devia incluir a soma dos votos a favor e contra, ou também os votos em branco (alem dos nulos)? Evidentemente, ao aumentar o total, também aumentava o limite de maioria necessário, até o ponto de tomar incerto o êxito dos Republicanos. Nesse caso, e contrariamente a communis opinio dos juristas, que em mais de uma ocasião se pronunciaram favoravelmente quanto a distinguir o não-votante e o que se abstém, o tribunal que analisou o problema rechaçou essa distinção, igualando como não-votantes todos os que haviam votado mas não expressaram sua vontade a favor de uma ou outra opção; assim, ficou menor o total de votos computáveis para o calculo de maioria e, por conseguinte, também o limite de maioria necessário. Sua argumentação principal foi a seguinte: "As cédulas em branco representam formas de abstenção de voto; juridicamente e manifesta a equivalência entre a inércia de quem se abstém completamente de dirigir-se ate o local de votação e a posição de quem não exerce esse direito, ao deixar de manifestar sua vontade na cédula emitida." 1616

Apesar do julgamento histórico realizado pelo Tribunal, é obvio que não se deve equiparar o comportamento de quem vota, porém se abstém, com o de quem se abstém de votar. Mas não é tão evidente que o voto em branco, se ele é considerado válido, deva ser contabilizado entre os votos negativos e não entre os positivos: tratar-se-ia de estabelecer se, dadas as duas posições opostas - concordância ou

16 A posição oposta foi então sustentada, com argumentações fortes e fundamentadas, por C. Esposito: "La Maggioranza nel referendum", em Giurisprudenza italiana, parte 1, seção I, 11,1946, onde se comenta 0 ordenamento do Tribunal, emitido em 18 de junho de 1946

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dissensão -, devemos considerar a abstenção como não-concordância ou não-dissensão. Claro que, quando ela e contada entre os votos negativos, reforça-se sua natureza de não-concordância. Todavia, podem ocorrer casos em que se deva evidenciar a natureza de não-dissensão: por que não se devem contar os votos dos abstinentes entre os positivos? A mesma pergunta pode ser feita como se segue: para que uma eleição colegiada possa ser admitida como expresSão da vontade coletiva, será necessária a maioria dos que consentem ou e suficiente a maio ria dos que não divergem? Esta pergUnta não e inútil; o artigo 94 da Constituição italiana diz: "o governo deve receber a confiança das duas Câmaras." Recentemente este problema colocou-se na prática do Parlamento: a fim de que o governo possa levar adiante suas de funções, é necessário o voto de confiança das duas Câmaras ou é suficiente a não-desconfiança “? As diferentes respostas a esta pergunta implicam uma valoração distinta dos votos daqueles que se abstiveram: se o objeto da votação é - a confiança, os votos de abstenção são negativos; se é a "não-desconfiança”, são positivos. Ora, aquele que se abstém manifesta ao mesmo tempo sua concordância e sua dissensão; assim, se a demanda de concordância prevalece, ele é considerado excluído; se prevalece a de dissensão, ele e considerado incluído”. Para contar com a confiança, o governo deve ter a maioria absoluta dos votos favoráveis, e os abstencionistas não se incluem entre eles; para obter a "não-desconfiança", é suficiente que não haja maioria de votos contrários, e os votos dos abstinentes não são calculados entre os de dissensão. Como vimos, aquele que se abstém e ao mesmo tempo parte da não-concordância e da não-dissensão; no primeiro caso, ele e considerado como um voto de "não-concordância"; no outro, como de "não-dissensão".(d) Será a maioria sempre possível? Entre todas as aporias da regra de maioria, esta é sem dúvida a mais evidente, de maneira que não é necessário estender-se muito para ilustrá-la. Se por maioria se entende (e se sobre-entende) a maioria absoluta, esta só e segura quando as soluções propostas ou os candidatos a um cargo resumem-se a dois. Em outros casos, quando as opções são mais numerosas, pode haver maioria absoluta, mas também pode não haver: nestes casos, a formação de uma maioria absoluta resulta de um acordo.

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Todavia, uma maioria negociada supõe de antemão o método de concertação entre as partes em conflito, e esse método aparece como um procedimento para a conformação de uma. vontade coletiva, diferente do procedimento de maioria em si (embora se considere este último apenas um expediente técnico). Só podemos dizer que a regra de maioria é uma etapa na formação da vontade coletiva, embora possa ser a etapa final.

XIII

Devemos distinguir os limites e as aporias da regra de maioria e as criticas que lhe foram feitas pelas diversas teorias minoritárias, desde a teoria medieval da sanior pars (a "parte mais sadia" ou mais qualificada) até as modernas teorias das elites. As observações neste texto não pretendem discutir a importância do princípio majoritário para um bom funcionamento democrático, já que não pertencem ao gênero critico; pretendem simplesmente chamar atenção para o fato de que este princípio e tão-somente um dos elementos que contribuem para o bom funcionamento do sistema democrático: é um procedimento que nem sempre funciona (limites) e, quando funciona, nem sempre e fácil colocá-lo em marcha (aporias).As dificuldades assinaladas constituem um obstáculo para o correto funcionamento de um sistema democrático, mas sozinhas elas não provocam sua crise. As razões da crise da democracia são mais numerosas, e nem todas dependem de objeções ao princípio de maioria. Todavia, afortunadamente, ha outras infinitas razões para se preferir um governo democrático, não obstante seus limites e aporias, a um governo autocrático.

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