bobbio - ideologias e poder em crise

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    Norberto Bobbio

    As ideologias e o poderem crise

    4edio

    Traduo

    Joo Ferreira

    Reviso tcnica

    Gilson Cesar Cardoso

    EDITORA

    UnB

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    Direitos exclusivos para esta edio:EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASLIASCS Q. 02 Bloco C N 78 Ed. OK 2 andar70300-500 Braslia DFFax:(061)225-5611

    Copyright 1982 byCasa Editrice Le Monnier-Firenzi

    Ttulo original: Ideologie e il potere in crisi

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao poderser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizaopor escrito da Editora.

    Impresso no BrasilIMPRENSA OFICIAL

    EDITORAOEWANDRO MAGALHES JNIOR E REGINA COELI ANDRADE MARQUES

    REVISOFTIMA REJANE DE MENESES E WILMA GONALVES ROSAS SALTARELLI

    CAPACRISTINA GOMIDE (FORMATOS DESIGN E INFORMTICA)

    ISBN: 85-230-0262-6

    Ficha catalogrfica elaborada pelaBiblioteca Central da Universidade de Braslia

    Bobbio, NorbertoC 392 As ideologias e o poder em crise / Norberto

    Bobbio: traduo de Joo Ferreira; reviso tcnicaGilson Csar Cardoso. - Braslia : EditoraUniversidade de Braslia. 4a edio, 1999.

    240 p.

    340.11Ttulo original: Ideologie e il potere in crisi.301.152.4 32

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    Sumrio

    Nota preliminar

    PRIMEIRA PARTEPLURALISMO

    O que o pluralismo?

    Entendemos a mesma coisa?

    Karl Marx era pluralista?

    Nem tudo que reluz ouro

    SEGUNDA PARTEO QUE O SOCIALISMO?

    Mais igualdade

    Mais iguais ou mais livres?

    Existe consenso e consenso

    H dissenso e dissenso

    O barrete de Lenin

    Lenin era marxista?

    Mas que tipo de socialismo?

    Uma sociedade jamais vista?

    A Unio Sovitica um pas socialista?

    Os parentes difceis

    O intelectual desobediente

    As liberdades so solidrias

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    TERCEIRA PARTEOS FINS E OS MEIOS

    Se a lei ceder

    A lgica da guerraFria destrutiva

    Os fins justificam os meios?

    Os homens como coisas

    Dois cdigos diferentes mas necessrios

    A poltica no pode absolver o crime

    A conscincia moral perante a violncia

    O brao armado da tiraniaO pacto dos violentos

    QUARTA PARTEEXISTE A TERCEIRA VIA?

    A terceira via no existe

    A via democrtica

    A via e a meta

    Quem deixa a via velha

    A via intermediria

    Um aplogo

    Vida difcil para a "terceira fora"

    QUINTA PARTEO MAU GOVERNO

    O dever de sermos pessimistas

    A lio da histria

    A Constituio no tem culpa

    Partidos ou faces?

    preciso governar

    Quem governa?

    Os meandros do poder

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    O poder invisvel

    Um sistema descentralizado

    APNDICETRS PERSONAGENS DA "ITLIA CIVIL"

    Salvatorelli: o educador antifascista

    Bauer: a f na democracia

    Jemolo: um mestre

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    Nota preliminar

    Devo ao meu amigo Giovanni Spadolini a idia de reunir num

    volume da coletnea Quaderni di Storia, por ele dirigida, os artigos

    que publiquei em La Stampae Avanti!nos ltimos quatro anos. Devo

    ao diretor de ento, Arrigo Levi, e ao inesquecvel amigo Cario

    Casalegno o fato de ter-me decidido a aceitar o convite de colaborar

    periodicamente num jornal.

    H trinta anos no escrevia regularmente num jornal, desde

    os tempos de Giustizia e Libert, jornal esse dirigido por Franco

    Venturi e que circulou por alguns meses em Turim, logo aps a

    Libertao. O motivo deste retorno foi o debate que mantive com

    alguns intelectuais comunistas sobre o pluralismo: Aldo Tortorella,

    Nicola Badaloni e Biagio De Giovanni, no Festival Nacional da Unit

    em Npoles, em setembro de 1976.

    O diretor de La Stampa mandou a Npoles Gaetano

    Scardocchia e publicou, assinado por este, um artigo intitulado

    "Trs perguntas de Bobbio ao PCI" (17 de setembro de 1976). O

    artigo atravs do qual se iniciou minha colaborao no jornal (e

    tambm o primeiro desta coletnea) e que foi publicado com um ttulo

    um pouco didasclico "O que o pluralismo" continha a

    essncia desse debate. Enviado pelo diretor do jornal a eminentes

    polticos de diversos partidos, intervieram, para esclarecer suas

    respectivas posies, Antonio Giolitti, Ingrao, Ugo La Malfa, Zanone e

    Zaccagnini. Em seguida, o debate se estendeu a outros jornais com

    artigos de filsofos, historiadores, socilogos e cientistas polticos,

    como Cerroni, Farneti, Ferrarotti, Fisichella, Galasso, Lucio

    Lombardo Radice, Alessandro Passerin d'Entrves, Spriano e Tullio

    Altan. Respondi com outros artigos sobre o tema: juntamente com o

    primeiro, representavam a nova proeza de minha carreira de

    jornalista e constituem agora a primeira parte desta coletnea.

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    Terminado (mas no esgotado) o debate sobre o pluralismo, o

    curso dos acontecimentos no deixou de oferecer-me outras

    oportunidades para dialogar ou induzir o diretor do jornal a dialogar

    comigo. Escrevi, por este motivo, outros artigos. Ao recolh-los,

    percebi que poderia dividi-los em quatro temas principais (sem contar

    o pluralismo que vai guisa de introduo): o socialismo e suas

    relaes com o inimigo-irmo (umas vezes mais irmo, outras mais

    inimigo, de acordo com as circunstncias), o comunismo; a violncia

    e o problema, a esta estreitamente associado, da relao entre

    Estado e fora e entre moral e poltica; a terceira via, que no deve ser

    confundida com a terceira fora; e a crise das instituies. Intitulei as

    diversas partes: 1. O que o socialismo?2. Os fins e os meios. 3. Existe

    a terceira via?4. O mau governo.

    A conselho do diretor da coletnea, so publicados em apndice

    trs retratos de personagens que nos so caros como representantes

    daquela Itlia ideal, a "sua" Itlia da razo e a "minha" Itlia civil, a

    que ficamos fiis na lembrana e firmes na esperana.

    Reconheo que a republicao de artigos de jornal um ato

    discutvel. Tenho uma nica atenuante: quase sempre me esforcei

    por ligar o problema quotidiano a um tema geral ou de filosofia

    poltica ou de cincia poltica, duas disciplinas a que dediquei boa

    parte de meus estudos e de minhas prelees universitrias.

    Em resumo, quase sempre busquei em minhas intervenes

    uma oportunidade para tentar aproximar o leitor comum de alguns

    problemas fundamentais da poltica; de forma particular, dos

    grandes temas das ideologias polticas e da organizao do Estado.

    A princpio encontram-se os artigos sobre liberdade e igualdade

    e suas inter-relaes, e tambm os que dizem respeito distino

    entre socialismo e comunismo; posteriormente, os que se referem

    relao entre Estado e fora, entre Estado e violncia, entre Estado e

    guerra, assim como governabilidade das sociedades complexas e s

    caractersticas especficas da crise italiana. Por uns e por outros

    perpassa o tema da relao entre moral e poltica. Todos, enfim,

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    giram em torno de um problema central, que a democracia:

    pluralismo e democracia, socialismo (ou comunismo) e democracia,

    violncia e democracia, terceira via e democracia, bom governo (ou

    mau governo) e democracia. Na verdade, so variaes sobre um

    mesmo tema, que a atormentada democracia italiana, frgil, mas,

    apesar de tudo, viva.

    No preciso lembrar que os anos em que apareceram estes

    artigos, de fins de 1976 a fins de 1980, so anos de permanente e

    sucessivo agravamento da instabilidade poltica. Em julho de 1976,

    teve incio a stima legislatura, que durou apenas trs anos, foi

    sucedida pela oitava, com os dois governos de Cossiga, seguidos do

    breve governo de Forlani. Essa fase se caracteriza pela tentativa

    abortada dos governos de coligao nacional e do retorno s velhas

    coligaes, assim como pela mais temerria e clamorosa ao

    terrorista, na qual se destaca o assassinato de Aldo Moro em 9 de

    maio de 1978.

    Retomando o ttulo de um livro de Julien Benda, publicado logo

    aps a Libertao, poderia definir nosso estado de coisas como uma

    "democracia posta prova". esta prova difcil, incerta e no-

    resolvida que me fez falar num dos artigos no "dever de ser

    pessimista". Desejaria, por agora, acrescentar apenas que tal dever

    no exclui o desejo e a esperana de que a prova seja superada.

    Setembro de 1981 Norberto Bobbio

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    O que o pluralismo?

    candente a discusso em torno do pluralismo. Trinta anos

    atrs ramos todos democratas. Hoje somos todos pluralistas. Mas

    estaremos certos de saber o que se entende por pluralismo?

    O termo novo, mas o conceito no. Que uma sociedade tanto

    melhor governada quanto mais repartido for o poder e mais

    numerosos forem os centros de poder que controlam os rgos do

    poder central uma idia que se encontra em toda a histria dopensamento poltico. Uma das formas tradicionais para distinguir um

    governo desptico de um governo no-desptico observar a maior ou

    menor presena dos chamados corpos intermedirios e, mais

    precisamente, a maior ou menor distribuio do poder territorial e

    funcional entre governantes e governados. A alta concentrao de

    poder que no tolera a formao de poderes secundrios e

    interpostos entre o poder central e o indivduo, e que anula toda aoposio ao arbtrio do governante, caracteriza essencialmente todo

    governo desptico.

    Neste critrio baseava-se a distino que Maquiavel fazia entre o

    reino turco e o reino da Frana. Enquanto a monarquia turca "

    governada por um senhor, com os outros como servos", o rei da

    Frana "est no meio de uma multido antiga de senhores

    reconhecidos e amados no pas por seus sditos, que o rei no pode

    eliminar sem correr riscos".

    A Montesquieu se deve, como sabemos, a anlise mais ampla e

    profunda do despotismo, o qual se distingue dos governos no-

    despticos pela ausncia dos corpos intermedirios: "O governo

    monrquico tem uma grande vantagem sobre o governo desptico.

    J que sua natureza requer que o Prncipe tenha subordinadas a ele

    vrias ordens conexas com a Constituio, o Estado fica mais firme,

    a Constituio menos abalvel e a pessoa dos governantes mais

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    segura".

    Hegel, aplaudido ou censurado como o terico do Estado total,

    e sob influncia direta de Montesquieu, retoma muitas vezes o

    conceito da pluralidade das "esferas particulares" que Se

    desenvolvem nas sociedades mais avanadas como nica garantia

    contra o poder absoluto do monarca, mais uma Vez como critrio de

    distino entre governo livre e governo desptico. A mais antiga forma

    de domnio, que , segundo uma tradio secular, o despotismo

    oriental, caracteriza-se pela "totalidade da vida estatal... ainda

    involuda, uma vez que suas esferas particulares ainda no

    alcanaram autonomia prpria". A forma mais moderna de domnio,

    que pra Hegel como para a maior parte dos filsofos da restaurao

    ainda a monarquia constitucional, caracteriza-se por um poder de

    natureza tal que "fora dele as diversas esferas devem ter sua prpria

    autonomia".

    Quando hoje se fala de pluralismo ou de concepo pluralista

    da sociedade, ou coisa semelhante, entendem-se mais ou menos

    claramente essas trs coisas. Antes de tudo, uma constatao de

    fato: nossas sociedades so sociedades complexas. Nelas se formaram

    esferas particulares relativamente autnomas, desde os sindicatos at

    os partidos, desde os grupos organizados at os grupos no-

    organizados, etc. Em segundo lugar, uma preferncia: o melhor modo

    para organizar uma sociedade desse tipo fazer com que o sistema

    poltico permita aos vrios grupos ou camadas sociais que se

    expressem politicamente, participem, direta ou indiretamente, na

    formao da vontade coletiva. Em terceiro lugar, uma refutao:

    uma sociedade poltica assim constituda a anttese de toda forma

    de despotismo, em particular daquela verso moderna do despotismo

    a que se costuma chamar totalitarismo.

    No que toca, porm, teoria tradicional dos corpos inter-

    medirios, o pluralismo contemporneo exprime uma tendncia no

    somente antidesptica, mas tambm antiestatal, entendido o Estado,

    todo Estado, como um momento necessrio mas no exclusivo da

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    evoluo histrica. Comum a todas as correntes pluralistas existe

    uma forte polmica contra o Estado moderno, ou seja, contra o

    Estado que aps a dissoluo da sociedade feudal e a decomposio

    da autoridade imperial foi-se formando com base na necessidade de

    um poder forte para se opor aos mpetos destrutivos que provm

    contemporaneamente da sociedade religiosa e da sociedade civil,

    ameaando a paz social que s o Estado pode garantir na guerra de

    todos contra todos.

    Com as teorias pluralistas da sociedade e do Estado acontece

    uma autntica inverso na interpretao do desenvolvimento

    histrico: enquanto da sociedade medieval at o grande Leviatobserva-se um processo de concentrao do poder, de estatizao da

    sociedade, com o advento da sociedade industrial est acontecendo

    um processo inverso, com fragmentao do poder central, exploso

    da sociedade civil e posterior socializao do Estado.

    So trs as correntes que se autodefiniram como pluralistas e

    das quais convm partir para evitar a confuso das lnguas, to

    freqente nas discusses polticas. As trs nascem no seio dos trs

    mais importantes sistemas ideolgicos do nosso tempo: o socialismo,

    o cristianismo social e o liberalismo democrtico, que correspondem,

    grosso modo, s trs culturas de que tanto se fala hoje em dia.

    O socialismo que se autodefine como pluralista o do ingls

    Hobson, de Cole, do jovem Laski, conhecido principalmente como

    guild-socialism, ou socialismo sindicalista, que tem uma de suas

    matrizes no socialismo autonomista e libertrio de Proudhon. Num

    ensaio de 1941, Cole escreve: "A democracia real que existe na Gr-

    Bretanha deve ser procurada no no Parlamento, nem nas

    instituies do governo local, mas nos grupos menores, formais e

    informais... nessas comunidades, na capacidade de se formarem

    rapidamente sob a presso das necessidades imediatas, que reside o

    verdadeiro esprito da democracia". Segue-se da que a

    descentralizao territorial de onde deriva a distino entre governo

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    central e governo local deve ser complementada pela descentralizao

    funcional, atravs da qual o indivduo protegido no mais como

    mero cidado, mas como produtor e consumidor.

    O pluralismo da doutrina crist-social est bem definido no

    Cdice di Malines, onde se l que "a vida humana se desdobra num

    certo nmero de sociedades", as quais so, alm do Estado que

    constitui a sociedade poltica , a famlia, as associaes

    profissionais e de qualquer outra natureza, a Igreja e a sociedade

    internacional. A multiplicidade das sociedades naturais e no-

    naturais aduzida como uma prova contra as duas falsas doutrinas

    opostas entre si: o individualismo que deifica o indivduo e o

    coletivismo que deifica o Estado.

    A forma como essa concepo foi acolhida no art. 2 da

    Constituio italiana, segundo o qual a Repblica reconhece e garante

    os direitos inviolveis do homem enquanto indivduo e enquanto

    membro das formaes sociais onde sua personalidade se

    desenvolve, bem conhecida. Foi por ocasio do debate deste artigo

    na Assemblia Constituinte que os jovens doutores da democracia

    crist, La Pira e Dossetti, falaram oficialmente, pela primeira vez, em

    pluralismo, e Dossetti, referindo-se ao "pluralismo social",

    acrescentou que "deveria ser agradvel s correntes progressistas

    aqui representadas".

    Enfim, o pluralismo liberal-democrtico , nem mais nem

    menos, a ideologia mais representativa da sociedade norte-

    americana, apesar de contestado muitas vezes naquele pas. Um dos

    mais autorizados cientistas polticos americanos, Robert Dahl,

    entende que a Constituio americana se inspirou nestes trs

    princpios: a autoridade limitada, a autoridade equilibrada e o

    pluralismo poltico. Em seguida, define este ltimo: "Uma vez que os

    prprios mecanismos jurdicos e constitucionais podem ser

    subvertidos quando alguns cidados ou grupos de cidados ganham

    parcelas desproporcionadas de poder em relao a outros cidados, o

    poder potencial de um grupo deve ser controlado pelo poder potencial

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    de outro grupo". E enuncia-lhe o princpio fundamental com estas

    palavras: "Em lugar de um centro singular de poder soberano, devem

    existir muitos centros, mas nenhum deles deve ou pode ser

    inteiramente soberano. Na perspectiva do pluralismo norte-

    americano, o nico soberano legtimo o povo, mas o povo no deve

    nunca ser um soberano absoluto... A teoria e a prtica do pluralismo

    norte-americano tendem a afirmar que a existncia de uma

    multiplicidade de centros de poder, sem que nenhum deles seja

    inteiramente soberano, ajuda a controlar o poder e a assegurar o

    consentimento de todos para a soluo pacfica dos conflitos".

    Como se v, h pluralismo e pluralismo. Frente a essa

    pluralidade de pluralismos, a pergunta inicial: "Estaremos certos de

    saber o que se entende por pluralismo?" pode ser reformulada deste

    modo: "Estamos certos de que, falando de pluralismo, entendemos a

    mesma coisa?".

    21 de setembro de 1976

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    Entendemos a mesma coisa?

    H pluralismo e pluralismo. Como todas as palavras da

    linguagem poltica, tambm "pluralismo" uma hidra de muitas

    cabeas. As vrias formas de pluralismo, respeitando a base comum

    que a valorizao dos grupos sociais que integram o indivduo e

    desintegram o Estado , podem ser identificadas com base em dois

    critrios.

    Antes de tudo, existe um pluralismo arcaizante e outro

    modernizante. A polmica contra o Estado-Leviat pode ser mantida

    com o olhar voltado para o passado ou para o futuro. Olhando o

    passado, descobrimos a pequena comunidade, a corporao dos

    artesos, o ncleo familiar ainda estreitamente agregado, numa

    palavra, o particularismo. Olhando o futuro, descobrimos a fora

    brotando de novas formaes sociais produzidas pela sociedade

    industrial, a vitalidade perene da sociedade civil que tende a absorver

    a sociedade poltica.

    Nem sempre fcil separar, em cada corrente pluralista, a

    nostalgia pelo passado da projeo para o futuro, a reproduo do

    antigo da formulao do novo, at porque a histria,

    independentemente do que pensam seus atores-expectadores, avana

    no por vias retas, mas em serpentina, como na subida das estradas,

    onde para avanar preciso, em certos trechos, caminhar em sentido

    oposto. Descobrimos o bairro, mas na realidade estamos descobrindo

    a vizinhana. Queremos destruir o universo concentracionista das

    grandes cidades e achamos o burgo. Queremos romper o domnio

    inteiramente avassalador do poder pblico e camos na "selvageria"

    dos poderes privados, naquela privatizao do pblico de que falou

    recentemente Pizzorno.

    Da mesma forma, se estes dois aspectos do pluralismo so

    freqentemente inseparveis, tambm so, por outro lado,

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    perfeitamente distinguveis. O critrio de diferenciao deve ser

    buscado, mais uma vez, na oposio existente entre uma concepo

    catastrfica da histria, que em cada etapa vive dramaticamente o

    contraste entre a necessidade e a impossibilidade do retorno, e uma

    concepo pragmtica, que considera a histria como um processo em

    contnuo desenvolvimento mediante a insero do novo no velho.

    Essa diferenciao entre o retorno puro e simples e a laboriosa e

    fecunda recuperao divide cada uma das grandes correntes

    ideolgicas do nosso tempo. Constant distinguia a liberdade dos

    antigos da liberdade dos modernos. O prprio Marx distinguia o

    socialismo reacionrio do socialismo crtico e revolucionrio. Nada de

    estranho, por conseguinte, na oposio que existe, no seio das

    correntes pluralistas, entre um pluralismo reacionrio e antigo e um

    pluralismo crtico e moderno.

    O segundo critrio de distino entre os vrios pluralismos de

    natureza estrutural. Baseia-se na forma de conceber a estrutura da

    sociedade, interpretada ou projetada antes como um multiverso do

    que como um universo. Confrontando as diversas doutrinas

    pluralistas, achamos a distino entre os dois modelos tradicionais

    do sistema social, o modelo orgnico e o modelo mecnico. Existe

    um pluralismo organicista e funcionalista, de um lado, e um

    pluralismo mecanicista e conflitualista, do outro. Enquanto

    pluralismos, os dois partem da constatao ou da exigncia da

    sociedade desarticulada, mas a articulao feita de maneira

    diferente.

    O primeiro concebe os vrios entes dispostos num sistema

    hierrquico e finalstico. Cada parte tem sua colocao no todo a

    partir da funo que nele desenvolve com base numa ordem e num

    grau. O segundo os concebe na relao de conflito que existe entre

    eles e considera o todo como o resultado jamais definitivo de um

    equilbrio de foras que se cindem e se recompem continuamente. No

    primeiro caso, a ordem social , por assim dizer, preestabelecida. o

    caso do organismo humano, onde cada rgo executa a funo que

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    lhe prpria sem poder assumir outra, sob pena de destruir o todo de

    que faz parte. No segundo, a ordem social o efeito do movimento

    interno dos corpos que o compem e o renovam continuamente. O

    primeiro modelo mais esttico, o segundo, mais dinmico.

    O pluralismo da doutrina crist-social , pelo menos na origem,

    do primeiro tipo; o pluralismo liberal-democrtico, do segundo. La

    Pira, que defendeu na Constituinte os direitos dos grupos primrios,

    particularmente os da famlia, comenta: "O ideal a ser proposto numa

    sociedade pluralista precisamente este ideal orgnico onde cada

    homem tenha uma funo e um lugar no corpo social, funo e lugar

    que deveriam ser definidos pelo assim chamado estado profissional

    que fixa a posio de todos no corpo social".

    Por outro lado, se remontarmos a uma das matrizes da

    ideologia pluralista norte-americana a teoria dos grupos elaborada

    por Bentley no princpio do sculo, sem falarmos no mito do

    associacionismo americano derivado de Tocqueville , descobriremos

    que a sociedade americana interpretada como um viveiro de grupos

    sociais interpenetrados que permitem a manifestao dos diversos

    interesses e cujo antagonismo regulado pelo grupo universal, o

    grupo em rigoroso sentido poltico, cujo objetivo principal no

    permitir a alterao das regras do jogo.

    A utilidade dessas distines est em permitir traar as linhas

    divisrias no universo dos pluralismos e fazer compreender a razo

    pela qual em cada forma de pluralismo podem verificar-se juzos de

    valor contrastantes. Os conceitos polticos so no s descritivamente

    ambguos, mas tambm emotivamente polivalentes.

    Pluralismo evoca positivamente um estado de coisas no qual

    no existe um poder monoltico e no qual, pelo contrrio, havendo

    muitos centros de poder bem distribudos territorial e

    funcionalmente, o indivduo tem a mxima possibilidade de participar

    na formao das deliberaes que lhe dizem respeito, o que a

    quintessncia da democracia. Negativamente, d a imagem de um

    estado de coisas caracterizado, de um lado, pela falta de um

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    verdadeiro centro de poder e, de outro, pela existncia de inmeros

    centros de poder continuamente em luta entre si e o poder central, ou

    seja, pela prevalncia dos interesses particulares, setoriais e grupais

    sobre o interesse geral, das tendncias centrfugas sobre as

    centrpetas, pela fragmentao do corpo social em vez de sua

    benfica desarticulao.

    Pluralismo ou particularismo? Pluralismo ou neofeudalismo?

    Pluralismo ou corporativismo? Sociedade pluralista ou sociedade

    policrtica? S para dar um exemplo que nos toca de perto, o que foi

    e o que hoje a polmica contra a "partidocracia" seno a

    interpretao da nossa sociedade como sociedade policrtica e no

    como sociedade pluralista?

    Comecei esta exposio sobre o pluralismo dizendo: "Hoje todos

    somos pluralistas". Diz-se pluralista e apresenta-se como corifeu

    do pluralismo um partido como o partido comunista, que, se fosse

    examinado quer em sua matriz cultural, quer no que so e como

    agem os partidos comunistas que esto no poder, deveria ser

    colocado no plo oposto de uma concepo pluralista da sociedade e

    da histria. No mistrio para ningum que a temtica pluralista foi

    posta em circulao tanto pelas correntes leigas que defendem um

    pluralismo antagnico quanto pelas correntes catlicas que

    defendem um pluralismo orgnico, com objetivos anticomunistas e

    particularmente anti-soviticos. Por outro lado, quem conhece um

    pouco da histria das doutrinas pluralistas sabe bem que elas se

    formaram fora do raio de influncia do marxismo em suas vrias

    espcies e subespcies. uma questo de entendimento, portanto.

    Foi com este objetivo de entendimento que me pareceu que a primeira

    coisa a fazer era explorar com ateno o territrio que no mapa da

    teoria geral da poltica aparece com o nome de pluralismo.

    Dessa primeira e sumria explorao apareceu um territrio

    com fronteiras ainda indefinidas, acidentado, de clima inconstante,

    onde se alternam florestas misteriosas e terrenos cultivados e, o que

    mais grave, disputado por grupos rivais que se atribuem o domnio

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    exclusivo sobre ele. Voltando, pois, pergunta com que

    terminamos o primeiro artigo: "No, no estou inteiramente certo

    de que entendemos a mesma coisa quando falamos de pluralismo".

    22 de setembro de 1976

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    um "ismo" no pode ser corrigido ou revisto seno atravs da

    contraposio de outro "ismo". Para aqueles que por sua vez consideram

    Marx como um cientista, a reviso ou o resultado de sua pesquisa um

    fato natural, no-catastrfico; a cincia procede atravs de contnuas

    revises sem nunca dar lugar oposio frontal entre ortodoxos e

    revisionistas. Pelo contrrio, aquele que rev considerado um benemrito

    e no um traidor.

    No que se refere relao entre pluralismo e teoria (e prtica) dos

    partidos comunistas, sei que nos ltimos anos, no mbito da cincia

    poltica norte-americana, foram feitas algumas tentativas de interpretao

    pluralista do novo curso do Estado sovitico, conforme podemos ler nos

    artigos contidos no fascculo do outono de 1975 dos Studies in

    Comparative Communism. Tambm no ignoro que o maior inqurito-

    anlise sobre a Unio Sovitica do perodo stalinista, escrito por ocidentais

    e traduzido para o italiano em 1950, era uma tentativa, para dizer a

    verdade, temerria, de apresentar a sociedade sovitica como uma

    "democracia multiforme" ou como "um novo tipo de organizao social, na

    qual os prprios indivduos que dela fazem parte, na sua trplice

    qualidade de cidados, produtores e consumidores, se unem para

    conseguir uma vida melhor".1

    Mas o contraste fundamental, independentemente das palavras

    usadas, entre os sistemas polticos dos pases comunistas e dos pases de

    democracia representativa, mediante a interpretao da qual foi forjada a

    categoria do pluralismo, permanece. No obstante os esforos dos atuais

    liberaisnorte-americanos e dos dois ilustres fabianos de quarenta anos

    atrs, so os mesmos escritores e polticos soviticos que considerariam a

    interpretao pluralista do seu sistema como um disfarce, seno uma

    aberrao.

    (1) Refiro-me a O comunismo sovitico: uma nova civilizao, de Beatriz e SidneyWebb, II, p. 708. (N. A.)

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    O partido socialista do tempo da "fuso" deu muitos e talvez at

    demasiados saltos, mas ningum o crucifica por isso.

    O tema da relao entre pluralismo e compromisso histrico foi

    o assunto principal da interveno de Antonio Giolitti.4 O problema

    pode ser colocado atravs da pergunta: o compromisso histrico

    uma proposta poltica pluralista? J tive ocasio de dizer em vrias

    oportunidades que o compromisso histrico, se destinado a ser

    verdadeiramente histrico, terminaria por bloquear o

    desenvolvimento de uma sociedade pluralista, e que, portanto, ele

    sugerido pela preocupao frente ao aparecimento dos elementos

    negativos do pluralismo mais que pelos elementos positivos.

    La Malfa de opinio diferente, assim como Ingrao. Contrrios,

    alm de Giolitti, so Orlandi e Zanone. Giolitti acha que no se deve

    correr o risco da falta de alternativas, porque sem alternativa e sem a

    possibilidade de uma oposio capaz de substituir pacificamente o

    governo em exerccio "teramos um pluralismo social preso a um

    totalitarismo poltico". Esse argumento me parece difcil de refutar.

    No me oponho, observe-se, a que algum venha me dizer que

    numa sociedade que apresenta sintomas de desagregao, como a

    italiana, insistir no desenvolvimento do pluralismo, em vez de sua

    momentnea suspenso, um erro. Parece-me, pelo contrrio, pouco

    convincente que se agite a bandeira do pluralismo para fazer uma

    poltica que, com toda a sua boa vontade em no fazer polmica por

    polmica, no se pode considerar seno antipluralista em todos os

    sentidos at agora descritos deste to maltratado termo. No Festival

    de Npoles foi-me objetado: "O fato de que ns, os comunistas, no

    s no rejeitamos mas procuramos a aliana com outros a prova de

    que no somos exclusivistas, que somos pluralistas". Respondo: a

    prova do pluralismo no nunca a formao de um novo bloco

    histrico, mas, como notou d'Entrves, a liberdade do dissenso, ou

    seja, a condio reservada queles que no fazem parte do bloco.

    (4) "Pluralismo e compromisso", 12 de outubro.

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    O ltimo tema pluralismo e futura sociedade socialista

    aquele sobre o qual, se devesse ater-me s intervenes, nada teria a

    dizer. La Malfa colocou em forma de pergunta este tema, mas

    ningum o colocou em forma de resposta. A razo pela qual no foi

    dada uma resposta clara a essa pergunta est no fato de uma

    sociedade ao mesmo tempo socialista e democrtica ainda no ter

    sido vista at hoje por ningum. Uma sociedade que seja ao mesmo

    tempo socialista e democrtica pertence categoria dos eventos

    desejveis. Mas nem todos os eventos desejveis so possveis.

    Assim como o pluralismo comeou, nos tempos atuais, por

    fazer parte do nosso conceito de democracia, sabemos tambm que

    uma sociedade socialista, para ser democrtica, ter de ser

    pluralista. Mas ainda no sabemos como.

    Para definir a democracia so necessrias duas negaes: a

    negao do poder autocrtico, em que consiste a participao, e a

    negao do poder monocrtico, em que consiste o pluralismo. Pode-se

    pensar perfeitamente numa sociedade democrtica no-pluralista,

    como a repblica de Rousseau; e existiram sociedades pluralistas

    no-democrticas no regime feudal. Uma sociedade socialista, para

    ser democrtica, deveria ser no-autocrtica e no-monocrtica. Os

    esforos do pensamento socialista e democrtico voltaram-se para o

    primeiro objetivo alargamento da participao do poder poltico

    estreitamente ligado ao poder econmico e ainda no para o

    segundo. Ficaramos satisfeitos se este debate servisse para

    identificar um problema, pelo menos.

    28 de novembro de 1976

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    Nem tudo que reluz ouro

    O incio do meu primeiro artigo sobre o assunto que nos ocupa

    dizia: " candente a discusso sobre o pluralismo". Posso ter errado

    em muitas coisas, mas no nessa constatao. A discusso que se

    prolongou durante dois meses em vrios jornais prova disso. No

    intervalo foram publicados dois livros que registro para os

    interessados e sobre os quais poderemos falar em ocasio oportuna:

    Unidade e pluralismo na Igreja5 e O pluralismo no liberalismo e no

    socialismo.6O primeiro contm as atas de um seminrio de estudos

    realizado em Roma, em maio de 1975, promovido pelo Comit Catlico

    dos Professores Universitrios. No segundo, o jovem autor, ltimo

    rebento da Escola de Frankfurt, faz do pluralismo, forando um

    pouco, uma categoria histrica de longo alcance, considerando-o o

    instrumento de anlise mais adequado para compreender a fase de

    desenvolvimento da sociedade industrial, que superou o liberalismo e

    est destinado a ser superado pelo socialismo.

    O debate que se seguiu aos meus dois artigos concentrou-se

    principalmente nestes dois pontos: 1. significado do pluralismo; 2.

    aspectos positivos e negativos do pluralismo.

    A minha descrio de pluralismo foi tida como limitativa

    (Passerin d'Entrves) e enganosa (Ingrao). Provavelmente, os meus

    crticos no consideraram que eu na verdade no havia pretendido

    dar uma definio pessoal de pluralismo, mas me limitara a assumir

    este termo em seu significado tcnico, que podia presumir ser

    conhecido dos participantes do seminrio mais do que dos leitores de

    um jornal.

    (5)Unit e pluralismo nella Chiesa, Ed. Ares, Milo, 1976. No volume, GiovanniBognetti traa as linhas da doutrina e da prtica pluralista no Estadocontemporneo, num ensaio intitulado "Pluralismo na sociedade civil" (pp. 23-63).

    (6)Rainer Eisfeld. Ilpluralismo fra liberalismo e socialismo, Il Mulino, Bolonha, 1976.

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    Na histria do pensamento poltico do ltimo sculo so chamadas

    pluralistas certas doutrinas, e outras no; e so chamadas assim

    porque tm certas caractersticas e no outras. As doutrinas

    pluralistas nascem da descoberta da importncia dos grupos sociais,

    outrora chamados "corpos intermedirios", que se interpem entre o

    indivduo e o Estado e tendem a considerar bem-organizada a

    sociedade em que os grupos sociais gozam de uma certa autonomia

    no que diz respeito ao poder central e tm o direito de participar,

    mesmo concorrendo entre si, da formao das deliberaes coletivas.

    No tenho dificuldade alguma em admitir e nisso estou de

    acordo com Ingrao que algumas doutrinas histricas do pluralismo

    esto atrasadas em alguns aspectos. Um exemplo desse atraso

    encontramos no reconhecimento que Zaccagnini faz a propsito do

    pluralismo orgnico dos catlicos. Apesar disso, a exigncia

    fundamental de onde provm todas as variantes histricas do

    pluralismo, de achar antdotos para a prepotncia do Estado na

    oposio dos grupos, no s no foi desvalorizada, mas, exatamente

    por aquilo que o prprio Ingrao diz sobre a formao das grandes

    concentraes, sempre atual e at, deveria ser dito, cada vez mais

    atual. Mas, se algumas formas de pluralismo so atrasadas, no

    atrasado o mapa com que as descrevi. Quem escava runas no

    ele mesmo uma runa, mas um arquelogo. O nico juzo legtimo

    para uma descrio de um mapa como o meu "ser fiel ou no ser

    fiel".

    Dizendo que pluralismo um termo da linguagem tcnica, no

    contesto seu uso cada vez mais freqente na linguagem comum.

    Limito-me a advertir que no se pode encher ou esvaziar, a bel-prazer,

    o termo de seu significado, como o faz por exemplo Cerroni num artigo

    do Paese Sera,7 onde escreve que o pluralismo "alude por vezes ao

    mtodo da democracia poltica", o que muito genrico, e, "por

    (7) Pluralismo e democrazia socialista, 22 de setembro de 1976.

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    vezes, existncia das relaes sociais tpicas do capitalismo", o que

    uma distoro, e conclui que nesta segunda acepo "o pluralismo

    termina por significar pura e simplesmente individualismo

    dominante, liberdade de mercado e at de explorao", o que ao

    mesmo tempo genrico e fora de propsito.

    Considero um marco da passagem do termo de seu significado

    tcnico para um significado mais genrico a citao feita por Ingrao

    do art. 3 da Constituio italiana. O artigo que introduziu o

    pluralismo no sentido tcnico, como teoria e ideologia dos grupos

    sociais, o art. 2, que dispe que o indivduo seja tutelado no s

    enquanto indivduo, mas enquanto membro das formaes sociais. O

    pluralismo do art. 3 genrico, mas o do art. 2 especfico.

    Sobre o pluralismo tambm se pode dizer que nem tudo que

    reluz ouro. Eu prprio tenho dito que juntamente com o benefcio

    que pode derivar da fragmentao do poder existe o malefcio da

    desagregao. Quem reler o segundo artigo8 perceber que sobre o

    mapa do pluralismo no tinha colocado uma bandeira, mas apenas

    sinais. exceo de Orlandi9 e de Zaccagnini,10 que sabiamente

    escrevem "que no preciso nunca acentuar o risco da desagregao

    para diminuir ou desvalorizar o perigo da burocratizao

    partidria", a maior parte de meus interlocutores pegou mais o

    aspecto negativo que o positivo.

    Sobre o aspecto negativo se deteve, de forma particular, C.

    Tullio Altan.11 Mas houve outros que tambm chamaram a ateno,

    como Ugo La Malfa12 e mais fortemente Valerio Zanone.13

    (8)"Come intendere il pluralismo". 22 de setembro de 1976.(9)"Il pluralismo negato", 14 de outubro.(10)"Quale pluralismo?", 18 de novembro.(11)"Forze disgreganti nella societ italiana", 6 de outubro.(12)"Pluralismo e socialismo", 9 de outubro.(13)"Il pluralismo si basa sul dissenso", 20 de outubro.

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    D'Entrves observou que o pluralismo de hoje, diferentemente do da

    sociedade medieval, sempre "criao do Estado porque subsiste

    enquanto o Estado... o permite e o tutela". Precisamente: o

    pluralismo uma interpretao e tambm um projeto de reforma do

    Estado moderno: nunca foi uma negao radical de toda a forma

    possvel de Estado.

    No Festival de Npoles, depois de ter indicado a tendncia das

    nossas sociedades para a multiplicao dos grupos de interesse no

    totalmente polticos e econmicos (os pais dos alunos de uma escola

    no constituem nem um grupo poltico nem um grupo econmico),

    havia dito: "No preciso, alm disso, esconder que esta tendncia

    pode representar gravssimos perigos. No existe nenhum processo

    linear na histria. Se a histria fosse linear seria menos complicada

    do que parece a ns, que a fazemos ou suportamos. O perigo mais

    grave o excesso oposto concentrao, a desagregao. Dito de

    outra maneira, a reduo do interesse pblico a uma mirade

    decomposta e no mais recomponvel de interesses privados. Ou seja:

    o temvel ou evocado retorno Idade Mdia, onde em vez de contendas

    entre famlias rivais (de resto, numa economia pr-capitalista a famlia

    tambm o centro do poder econmico) surgem contendas entre

    grupos de interesses opostos, que tornam impossvel a satisfao de

    qualquer interesse coletivo".

    O pluralismo nasce contra o Estado-totalidade e de fato

    renasceu aps os vrios totalitarismos contemporneos; mas no

    uma teoria evasiva. Reconhece a importncia dos grupos, das

    sociedades parciais que o unitrio Rousseau pregava, mas no

    desconhece a importncia decisiva e conclusiva daquele grupo

    universal cujos membros so os indivduos enquanto cidados e que

    constitui o Estado-sociedade, distinto do Estado-aparelho. Acentua,

    por razes polmicas e em dadas circunstncias histricas, o

    momento da redistribuio do poder, mas no recusa o da

    reagregao. Convida a no esquecer que numa sociedade complexa

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    como o Estado moderno, juntamente com o equilbrio entre o

    momento da fora e o momento do consenso, nos quais habitualmente

    se apiam os tericos da poltica, dever existir tambm um

    equilbrio entre o momento da unidade e o da pluralidade. Quem tem

    o costume de lidar com textos clssicos sabe que a discusso secular

    pr e contra o governo misto se move entre os fautores da unidade e os

    fautores da pluralidade do poder.

    Constato, entretanto, que no foi retomada a referncia que fiz

    sociedade policrtica, ou seja, ao aspecto negativo do pluralismo

    que consiste no na impotncia do Estado, mas na prepotncia do

    grupo sobre o indivduo. O pluralismo sempre foi bifrontal: uma face

    voltada contra o estatismo totalizante e outra contra o individualismo

    atomizante. Se, do ponto de vista do Estado, a acusao que pode

    ser levantada contra o pluralismo a de enfraquecer a

    compatibilidade e diminuir a fora unificante e necessria, do

    ponto de vista do indivduo o perigo consiste na tendncia natural de

    cada grupo de interesse endurecer suas estruturas medida que

    cresce o nmero dos membros e se amplia o raio de ao, da

    mesma forma que o indivduo que cr ter-se libertado do Estado-

    patro torna-se escravo de muitos patres.

    Valha a considerao de que, nas nossas sociedades

    caracterizadas por grupos e organizaes sociais de grandes

    dimenses, a reivindicao dos tradicionais direitos de liberdade,

    como a liberdade de pensamento, de opinio, de reunio e at de

    liberdade poltica, entendida como direito de participar da formao

    da vontade coletiva, vai-se desviando do terreno tradicional do

    Estado-aparelho para o das grandes organizaes que cresceram

    dentro ou alm do Estado, como as empresas. O art. 1 do Estatuto

    dos Trabalhadores Italianos, que proclama o direito de os

    trabalhadores manifestarem livremente o prprio pensamento nos

    locais de trabalho, demonstra que a liberdade do indivduo no se

    defende apenas contrao Estado mas tambm dentroda sociedade, e

    que, onde quer que se constitua um poder, este mostrar cedo ou

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    tarde seu vulto "demonaco".

    1 de dezembro de 1976

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    SEGUNDA PARTE

    O que o socialismo?

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    Mais igualdade

    A repercusso que teve e continua a ter o congresso do partido

    socialista operrio na Espanha, que viu reunidos alguns dos maiores

    lderes histricos e atuais do socialismo europeu entre os quais

    Pietro Nenni, smbolo da unidade entre a velha e a nova Espanha ,

    uma confirmao da extraordinria vitalidade daqueles ideais e

    daquelas foras que se inspiram no socialismo como doutrina ou

    concepo de vida e se movem em direo ao socialismo como novo

    modelo de sociedade.

    Nascido como movimento europeu, o socialismo tornou-se,

    repartido em muitas formas, aspectos e perspectivas e nesse

    contexto no distingo o socialismo do comunismo , um movimento

    extra-europeu, tornando-se, sobretudo no mundo ocidental, o ideal

    humano e a proposta poltica em que se espelham os movimentos de

    libertao vitoriosos ou vencidos, j no poder ou em luta para

    conquist-lo, do Terceiro Mundo. Nos Estados Unidos, o socialismo

    inexistente como fenmeno politicamente relevante. Em toda parte,

    onde tenham rudo imprios coloniais ou cado governos despticos, os

    liberados pedem no apenas democracia, mas democracia com

    socialismo. Em um sculo, o socialismo tornou-se, no obstante os

    obstculos que teve de superar, a grande ofensiva de todos os

    fascismos e de todos os regimes militares e policialescos do mundo,

    um movimento universal, agrade a constatao ou no, o nico

    movimento verdadeiramente universal desta segunda metade do

    sculo XX.

    Mas o que o socialismo? Uma pergunta como esta, quando a

    palavra est na boca de todos, quando no h discurso poltico que

    no acabe pedindo mais socialismo ou menos socialismo, quando

    um dos problemas que mais interessam aos idelogos de todos os

    grupos polticos se estamos ou no numa fase de transio para o

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    socialismo e quais so "os elementos do socialismo" que se podem

    introduzir numa sociedade capitalista, etc., pode parecer insolente.

    Entretanto, uma pergunta sria, inevitvel e embaraosa.

    Quantos so hoje os socialistas no mundo? O socialismo, dizia,

    tornou-se um fenmeno universal, mas, ao universalizar-se, perdeu

    toda a determinao especfica, tornando-se um imenso genus que

    compreende uma mirade de species. Antigamente, quando se

    entendia socialismo como doutrina e como sistema de idias

    antes do advento de regimes que se autoproclamaram socialistas ,

    os doutos divertiam-se em registrar as inumerveis definies de

    socialismo: tenho a impresso de que Sombart catalogou duzentas e

    sessenta. talvez exagerado afirmar que hoje, depois que o

    socialismo passou de doutrina a movimento e regime, existem

    duzentos e sessenta movimentos e regimes socialistas. Os partidos

    socialistas so em nmero muito maior.

    Antes do grande cisma que separou os partidos comunistas dos

    socialistas, uma caracterizao satisfatria do socialismo era mais

    fcil de encontrar: deixando de lado o debate entre meios e fins, que

    sempre existiu at o momento presente, o socialismo podia ser

    identificado como o programa poltico do movimento operrio.

    Socialismo e movimento operrio cresceram ao mesmo tempo.

    Digo que essa definio de socialismo era a mais fcil porque

    procurava o elemento especfico numa temtica histrica a classe

    operria , que qualquer coisa bem mais concreta que um sistema

    de idias. Os dois grandes partidos socialistas do incio do sculo, o

    partido trabalhista ingls e a social-democracia alem, eram os

    partidos da classe operria, qual fosse o fim prximo e remoto, que

    permitia definir imediatamente o socialismo tanto da parte daqueles

    que eram contra como da parte daqueles que nele viam um

    movimento, uma organizao, um corpo visvel ou um partido; no

    precisamente um fim, sempre vago e interpretvel de mil maneiras

    diferentes, mas o movimento, se quisermos usar a famosa

    distino de Bernstein, embora em sentido diferente.

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    Hoje, essa definio atravs do movimento operrio seria

    limitativa e fora de propsito. Passaram a fazer parte do movimento

    pelo socialismo as massas camponesas dos pases menos

    desenvolvidos, muitos grupos de pequeno-burgueses nos pases mais

    desenvolvidos, os marginais, os excludos, os sub-proletrios, as

    vanguardas estudantis, as pontas avanadas dos movimentos

    feministas.

    O processo de universalizao do socialismo, de que falei,

    depende em grande parte do crescente nmero de camadas, de

    grupos sociais e classes que aspiram mais ou menos

    conscientemente a uma mudana, a uma grande reforma, a uma

    transformao da sociedade, a uma autntica virada do curso da

    histria humana, que continua a chamar-se, em sentido eulgico, de

    socialismo, no obstante os novos elementos com que se enriqueceu o

    velho conceito e o contraste sobre tticas e estratgias que dividem

    duramente os "sujeitos histricos", que de quando em vez se

    consideram arautos exclusivos do socialismo apesar das diferenas

    insuperveis sobre o que deveria servir para distinguir o socialismo

    de qualquer outro ideal poltico, isto , sobre o modo de entender a

    futura sociedade socialista.

    Se algum me perguntasse hoje o que aproxima os vrios

    socialismos, no tentaria responder recomeando um interminvel

    debate sobre meios e fins. No me arriscaria sobretudo a descrever

    uma sociedade que se pudesse chamar, em bom direito, de

    socialista. No saberia por onde comear, tendo em vista os milhares

    de autores que a ela se referiram. No saberia dizer a que ttulo uma

    sociedade mais socialista que outra. A nica resposta que tenho

    condies de dar que socialismo, em todas as suas diferentes e

    contrastantes encarnaes, significa, antes de tudo, uma coisa: mais

    igualdade.

    Parece uma resposta um pouco pobre. Apesar de tudo, uma

    das poucas coisas que apreendi da histria e da meditao atravs

    dos livros com homens de todos os tempos que uma das maiores

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    linhas de diviso entre os homens, em sua atitude para com seus

    semelhantes, a que ocorre entre igualitrios e no-igualitrios, ou

    seja, entre os que crem que os homens so iguais entre si, apesar

    das diferenas, e os que crem que so desiguais, apesar das

    semelhanas; ou ainda entre os que acham injustas as

    desigualdades sociais porque os homens so mais iguais que

    desiguais e os que pensam que todo o processo de encurtamento

    das distncias entre classes e categorias no se justifica por serem os

    homens mais desiguais que iguais.

    Sei que estou simplificando a ponto de parecer uma pessoa que

    em vez de cortar um fio de erva em quatro divide o mapa-mndi em

    dois hemisfrios. Mas vou propor que se chame liberal aquele que

    tende a colocar em evidncia no aquilo que os homens tm em

    comum enquanto homens, mas aquilo que tm de diferente enquanto

    indivduos. Daqui nasce a freqente reduo do liberalismo ao

    individualismo. Proponho tambm que se chame socialista aquele que

    tende a evidenciar no o que distingue os homens enquanto

    indivduos, mas aquilo que tm em comum enquanto homens.

    Daqui nasce o casamento do socialismo, em suas diferentes formas

    de igualitarismo, com o solidarismo, com o comunitarismo, o

    coletivismo, etc.

    De um ponto de vista abstrato, ou seja, prescindindo de um

    contexto histrico preciso, um sistema de idias vale o outro:

    factualmente verdade que os homens so iguais, por exemplo,

    frente morte, como tambm so diferentes em relao forma como

    morrem, razo pela qual se verdade que todos os homens morrem,

    tambm verdade que morrem de maneiras diferentes. Num

    determinado contexto histrico, porm, onde existam dominadores e

    dominados, opressores e oprimidos, exploradores e explorados, os

    dois sistemas de idias no so mais indiferentes e equivalentes. A

    ideologia daqueles que esto no poder geralmente no-igualitria,

    enquanto a dos que servem geralmente igualitria.

    Ao dizer "mais igualdade" quero dizer tambm mais liberdade.

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    E por isso que, pessoalmente, acredito ser o ideal socialista

    superior ao ideal liberal. O primeiro engloba o segundo, mas no

    vice-versa. Sei que de maneira geral se pensa o contrrio, e embora

    neste caso devesse alongar o discurso, tentarei desviar a gua para

    meu moinho com dois argumentos.

    Primeiro: a doutrina liberal clssica sempre defendeu que a

    funo do Estado garantir a cada indivduo no apenas a liberdade,

    mas a liberdade igualitria. Com isso deu a entender que um sistema

    no pode considerar-se justo onde os indivduos so livres mas no

    igualmente livres, mesmo quando entende por igualdade a igualdade

    formal ou, nas formas mais avanadas, a igualdade de

    oportunidades. Segundo: a maior causa da falta de liberdade

    depende da desigualdade de poder, isto , depende do fato de haver

    alguns que tm mais poder econmico, poltico e social do que

    outros. Portanto, a igualdade do poder uma das maiores condies

    para o crescimento da liberdade. Se por um lado no faria sentido

    algum dizer que sem liberdade no h igualdade, por outro, perfei-

    tamente legtimo dizer que sem igualdade (como reciprocidade de

    poder) no h liberdade.

    8 de dezembro de 1976

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    Mais iguais ou mais livres?

    Ao concluir o captulo anterior com alguns destaques imprudentes

    reconheo-o sobre as relaes entre a liberdade e a igualdade, sabia

    que estava levantando objees e dando margem a incompreenses. As

    objees vieram de Luigi Firpo14 e o pedido de explicaes da parte de

    Guido Calogero.15

    A ttulo de premissa diria que o status e a hierarquia dos valores

    ltimos so um terreno no qual no me sinto muito vontade, porque

    quase sempre nos perdemos na selva sem sada das disputas

    meramente verbais, dando lugar ao vanilquio cheio de fatuidade.

    Naquela frase final "Se, por um lado, no faria sentido algum dizer

    que sem liberdade no h igualdade, por outro perfeitamente legtimo

    dizer que sem igualdade (como reciprocidade de poder) no h liberdade"

    , no tive nenhuma inteno de fazer uma afirmao de carter geral

    sobre as relaes entre liberdade e igualdade, Quis simplesmente chamar

    a ateno para uma propriedade dos dois conceitos que geralmente no

    relevada. Se no se pode definir a igualdade pela liberdade, h pelo

    menos um caso em que se pode definir a liberdade pela igualdade. Essa

    a situao, de resto extremamente importante na casustica da liberdade,

    onde por liberdade se entende a eliminao da desigualdade de poder,

    ou, por outras palavras, a condio em que todos os membros de uma

    sociedade se consideram livresporque tm igualpoder.

    Considero extremamente importante essa situao na

    casustica da liberdade, porque ela que permite compreender,

    melhor que qualquer outra, por que razo a democracia, a forma

    de governo em que todos tm ou deveriam ter, em princpio, igual

    poder a comear pelo poder poltico e a terminar pelo poder

    (14)"Societ di eguali pu essere libera?", in La Stampa, 12 de dezembro de 1976.(15)"Quale socialismo fra i tanti?", in II Corriere della Sera, 28 de dezembro de 1976.

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    econmico considerada comumente e justamente como uma

    prtica da liberdade. Entre as mil definies que podem ser dadas ou

    que foram dadas de democracia, uma das possveis e menos banais

    a que a considera uma forma de governo onde todos so livresporque

    so iguais. No consigo, por outro lado, imaginar uma forma de

    governo que possa ser definida atravs da frmula oposta, ou seja,

    onde todos so iguais porque so livres. Evidentemente, ao dizer que

    na democracia todos so livres porque so iguais, no me refiro a

    uma igualdade genrica que fosse uma caixa vazia (no estilo do

    exagero da linguagem poltica) nem tampouco a uma igualdade

    universal como ideal inalcanvel. Minha idia visa quela forma

    determinada de igualdade que a igualdade do poder, conforme tive

    o cuidado de precisar, juntando ao termo "igualdade", entre

    parnteses, "como reciprocidade de poder".

    Explico-me melhor. Objetivamente, uma das razes atravs

    das quais numa sociedade existem pessoas livres e pessoas no-

    livres, ou ainda, mais livres e menos livres, a pssima distribuio

    do poder. Tem toda a razo Calogero ao dizer que neste debate deve

    prevalecer a lgica do mais e do menos sobre a do sim e do no.

    Subjetivamente, uma das razes pelas quais eu me considero menos

    livre que outras pessoas porque estou convencido de que essas

    pessoas tm mais poder que eu, o que significa que podem fazer

    coisas que eu no posso fazer e at mandarem que eu faa coisas que

    no posso mandar que elas faam. A famosa afirmao de Spinoza,

    segundo a qual uma pessoa tem tanto mais direito quanto mais poder

    tiver, pode reconverter-se perfeitamente nesta outra: uma pessoa

    tem tanto mais liberdade quanto mais poder tiver. No limite

    extremo, a liberdade absoluta coincide com o poder absoluto:

    absolutamente livre s o onipotente. Podemos colocar o problema

    partindo tambm do contrrio da liberdade, ou seja, da sujeio e da

    dependncia. No-livre aquele que depende de outro. Isso significa que

    existe algum que tem poder sobreele porque tem mais poder do queele,

    exatamente porque o poder est mal distribudo.

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    Mas o que significa dizer que o poder est mal distribudo seno

    afirmar que est distribudo de forma desigual e que, portanto, nem todos

    tm poder igual?

    Na verdade, de qualquer lado que partirmos para colocar o

    problema da liberdade, acabaremos sempre no reconhecimento de que

    no possvel estender a liberdade. Isso significa, em outras palavras, que

    no podemos passar da liberdade de poucos para a liberdade de muitos,

    nem construir uma sociedade mais livre, at no sentido da doutrina

    liberal, a no ser atravs de um processo de igualizao do que diferente

    e atravs de uma operao que permita sustentar e entender melhor a

    afirmao que fiz no captulo anterior, a qual pareceu errada e pouco

    clara: quando se diz "mais igualdade" ("como reciprocidade de poder") diz-

    se tambm "mais liberdade".

    Com esse esclarecimento, que ao mesmo tempo uma delimitao

    do mbito do meu discurso, espero ter atendido o pedido que

    amigavelmente me foi dirigido por Calogero para que me explicasse melhor,

    e tenho a iluso de ter respondido tambm objeo de Firpo, segundo o

    qual a afirmao de que "a igualdade contm a liberdade talvez e

    apenas um sonho generoso" por ser evidente "que a uniformidade sufoca o

    pluralismo das culturas, as infinitas variedades dos modos de existncia,

    etc." Firpo teria perfeitamente razo se eu tivesse dito que uma sociedade

    de iguais, sem outras especificaes, por isso mesmo uma sociedade de

    pessoas livres, se me tivesse perdido na vaguidade de uma nova sociedade

    igualitria e depois acrescentasse que essa nova sociedade igualitria ao

    mesmo tempo uma sociedade de pessoas livres (um belo exemplo de

    sociedade igualitria para mim aquela que se acha descrita na

    Conspirao pela igualdade, de Filipe Buonarroti). Na verdade, eu me

    limitei a refletir e a fazer refletir sobre a forma especfica de no-liberdade

    que consiste numa forma especfica de desigualdade, que a desigualdade

    de poder e que, como tal, no pode ser corrigida a no ser atravs de

    "maior igualdade".

    Para isso devemos ter bem clara na mente a distino entre a

    reivindicao desta ou daquela igualdade especfica e o ideal

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    igualitrio, ou seja, a distino entre uma reforma igualitria, atravs

    da qual passa a via para o socialismo, e o esvaziamento de uma

    sociedade igualitria. Para definir o igualitarismo, que aquele tipo

    de sociedade que Firpo justamente cita, apesar de eu achar que no

    justo confundi-la com a "eterna repblica dos insetos felizes" que

    igualitria certamente no , j me servi, em determinada ocasio,

    de um expediente que vou passar a expor. Toda vez que se discute

    liberdade e igualdade, para evitar o vanilquio a que me referi no

    incio, importante colocar o problema de tal maneira que se possa

    responder, no que toca liberdade, a estas duas perguntas:

    "Liberdade para quem?" e "Liberdade de quem?", e no que toca

    igualdade, a estas duas outras: "Igualdade entre quem?" e "Igualdade

    a respeito de qu?". Deixando de lado as perguntas respeitantes

    liberdade, acho que s perguntas relativas igualdade podem-se dar

    pelo menos quatro respostas, na base das quais podem ser

    classificadas as vrias teorias: 1. igualdade de todos em alguma

    coisa; 2. igualdade de alguns em tudo; 3. igualdade de alguns em

    alguma coisa; 4. igualdade de todos em tudo.

    Pois bem: a resposta do igualitrio a ltima. O liberal e o

    socialista, por sua vez, se encontram na primeira. A diferena entre o

    liberal e o socialista est naquele "em alguma coisa". Socialista

    aquele que tende a obter a igualdade de todos "em alguma coisa

    mais", convencido de que em certos casos pedir mais igualdade, como

    no caso da igualdade de poder, significa tambm pedir mais

    liberdade. De passagem acrescento que a mesma diferena que existe

    entre quem pede uma reforma igualitria e um igualitrio ocorre

    entre quem pede uma reforma liberal e um libertrio, o qual poderia

    ser definido, usando o mesmo expediente, como aquele que quer a

    liberdade de todos em tudo.

    Podemos dizer a mesma coisa de outra maneira. Uma reforma

    igualitria, como a que estendeu o direito de voto s mulheres, uma

    reforma que elimina uma desigualdade precedente, por achar que se

    tornou irrelevante o motivo de discriminao que antes era considerado

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    relevante: no caso especfico, por exemplo, o desinteresse das mulheres

    pela coisa pblica. Uma sociedade igualitria, ao contrrio, uma

    sociedade em que todos os possveis critrios de discriminao entre os

    homens (melhor seria dizer entre homens e mulheres, j que as sociedades

    igualitrias do passado, como a de Babeuf e companheiros, eram,

    geralmente, como hoje se diz, machistas) so considerados irrelevantes sem

    levar em conta as diferenas relevantes, nem todas eliminveis, que a

    natureza criou e tambm as da histria, que elimina as velhas para

    criar rapidamente outras novas. Em resumo, aquele que pede reformas

    igualitrias de acordo com os tempos e as circunstncias, como o

    socialista, baseia-se na histria. Aquele que defende a constituio de

    uma sociedade igualitria, em que todas as diferenas so consideradas

    irrelevantes no que diz respeito distribuio das vantagens e das

    desvantagens, voa pelos cus da utopia.

    E os reinos da utopia (um estudioso das utopias como Firpo sabe-o

    melhor do que eu), alm de inexeqveis, seriam, se fossem colocados em

    execuo, sociedades menos felizes do que seus criadores imaginaram.

    Contrariamente aos utopistas de todos os tempos, estamos convencidos

    hoje de que as utopias "felizmente" so inexeqveis.

    7 de janeiro de 1977

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    consenso"), tambm Alberoni caiu, em minha opinio, no excesso oposto

    ("a democracia fundada no dissenso"). A verdade que a democracia

    no se funda apenas no consenso nem tampouco no dissenso, mas sobre

    a simultnea presena de consenso e dissenso, ou mais precisamente

    sobre um consenso que no exclua o dissenso e sobre um dissenso que

    no exclua nem torne vo o consenso, dentro das regras do jogo,

    claro que Alberoni queria dizer outra coisa, que pode ser lida nas

    entrelinhas. No queria dizer que para haver um regime democrtico no

    necessrio o consenso. Queria dizer, sim, que para a existncia de um

    regime democrtico no necessrio seria at deletrio um

    consenso unnime. Ora, o que distingue os regimes de democracia

    ocidental dos de democracia chamada totalitria no o fato de uns

    estarem fundados sobre o dissenso e outros sobre o consenso, mas sim

    que nos primeiros existe um consenso, o qual, contentando-se em ser o

    consenso dos mais ou da maior parte, baseado nas regras do jogo, admite

    o dissenso dos menos ou da minoria, enquanto nos segundos h um

    consenso que no admite o dissenso porque ou pretende ser o consenso

    de todos. Como diz muito bem Alberoni, os regimes da democracia

    totalitria, em vez de deixarem queles que a pensam diferentemente o

    direito de oposio, ou, em outras palavras, o direito de dissenso,

    querem reeduc-los de tal modo que se tornem, por amor ou pela fora,

    consencientes.

    Podemos dizer a mesma coisa de outra forma: como numa

    sociedade cada vez mais complexa como a nossa o consenso unnime

    improvvel, para no dizer impossvel (a unanimidade possvel em

    pequenssimos grupos ou em momentos de grande tenso ideal), um

    regime que se contenta com o consenso da maioria pode deixar livres seus

    cidados para consentir ou dissentir, porque a formao de uma maioria

    e no apenas possvel mas provvel, no importando se a maioria de

    consencientes ou de dissidentes. Ao contrrio, um regime que exige

    um consentimento unnime ou que defende que um sistema poltico

    para ser legtimo deve fundar-se no consenso de todos, sem excluir

    ningum, no pode chegar a esse resultado, admitida a

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    improbabilidade da unanimidade numa sociedade complexa, a menos

    que consiga esse consenso de forma obrigatria.

    Ora, no h dvida de que o consenso se torna obrigatrio

    onde o dissenso proibido, e, em conseqncia, sempre que a

    proibio for violada, haver punio. Consenso e dissenso so dois

    comportamentos opostos: quando nos encontramos frente a dois

    comportamentos opostos, sem a alternativa de uma terceira via

    (tertium non datur), no h dvida de que a proibio de um implica

    a obrigatoriedade do outro.

    As coisas se complicam um pouco se admitirmos que entre o

    consenso e o dissenso h a possibilidade de um terceiro

    comportamento, que no nem consenso nem dissenso e se chama

    absteno, com a conseqncia de que a proibio do dissenso

    implica a obrigatoriedade ou do consenso ou da absteno. Mas no

    que diz respeito ao problema especfico que aqui nos interessa, que

    o problema do direito ao dissenso, este negado mesmo quando

    existe uma alternativa para manifestao do consenso, mas se limita

    no-manifestao do dissenso. De fato, aquilo que em tal regime se

    chama consenso geralmente, salvo casos excepcionais de

    mobilizao de massa como cortejos, desfiles, demonstraes e

    semelhantes, um comportamento negativo e at falta de dissenso

    mais do que um comportamento positivo ou a declarao explcita do

    consenso.

    Mas o consenso obrigatrio, ou, mais precisamente, o consenso

    resultante da proibio do dissenso, pode ainda chamar-se consenso?

    Os juristas consideram como vcio de consenso num negcio jurdico a

    violncia, entendida como ameaa de um mal injusto e notrio. No caso

    de um consenso extorquido ao cidado com a ameaa de um mal

    injusto e notrio para o dissidente, no se deveria falar de consenso

    "vicioso" no cumprimento daquele contrato social que vincula os

    governantes aos governados?

    Um dos mais conhecidos tericos do direito contemporneo

    identificou certa vez, nos possveis comportamentos do cidado frente

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    lei, a diferena entre obedincia e aceitao. Obedecemos lei

    apenas quando nos conformamos, quer por hbito quer por medo de

    sano. Aceitamo-la quando estamos convencidos de sua excelncia.

    O consenso obrigatrio ou vicioso revela-se na obedincia, no na

    aceitao. A propsito do fascismo, foi usada, como se sabe, a

    expresso "organizao do consenso". Mas seria muito mais exato e

    menos fora de propsito falar de "organizao da obedincia". O que

    aconteceu em 25 de julho de 1943 prova que a atitude da maior

    parte dos italianos perante o fascismo era de obedincia e no de

    aceitao.

    A diferena entre o consenso obrigatrio e o consenso livre

    importante porque o consenso foi usado como prova da excelncia de

    um regime. Ora, o consenso obrigatrio, enquanto vicioso e fictcio,

    no prova absolutamente nada, Na verdade, que valor pode ser

    atribudo ao consenso quando o dissenso no permitido, ou

    quando o cidado no livre para escolher entre consenso e

    dissenso, ou quando se chama "consenso" simples obedincia lei

    escrita ou no-escrita, vigente e eficaz, que pune o dissidente? E que

    valor pode ter um consenso tambm quando no h um verdadeiro

    consenso, mas simplesmente uma absteno coagida de dissentir?

    O consenso obrigatrio, alm disso, no prova nada porque no

    permite avaliar o consenso real, ou seja, se h ou no h um

    consenso que seja aceitao e no mera obedincia. A nica forma

    de avaliar o consenso real avaliar o seu contrrio, que o dissenso.

    Mas, como podemos avali-lo se o proibimos? Como podemos avaliar

    se existe o dissenso a partir do momento em que o dissenso

    qualquer coisa que no deve existir? E, para no deixar que ele

    exista, o punimos? Ora, se no podemos medir a entidade real do

    dissenso, como podemos medir a entidade real, no a fictcia, do

    consenso?

    Falei at agora dos regimes em que o dissenso proibido e de

    outros em que o dissenso livre. Para evitar equvocos e fceis

    objees, devo acrescentar que, na realidade histrica, como no

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    existe um sistema onde todas as formas de dissenso sejam proibidas

    ou pelo menos onde vrias formas de dissenso deixem de transparecer

    apesar das limitaes, assim tambm no existe um sistema onde

    no haja limites jurdicos para o dissenso, no obstante as

    proclamadas liberdades de opinio, de imprensa, etc. A realidade

    histrica no conhece tipos ideais, mas apenas diversas

    aproximaes de um ou de outro tipo. Existe tambm uma diferena

    entre admitir todas as ideologias e todas as formas de organizao

    poltica menos aquelas ditas subversivas (so consideradas

    subversivas geralmente as que no respeitam as regras do jogo) e

    excluir todas as ideologias e todas as formas de organizao poltica

    exceto a oficial (que a que impe no apenas as regras do jogo,

    mas at o modo como se deve jogar).

    Entre o despotismo em estado puro e a democracia em estado

    puro existem cem formas diferentes mais ou menos despticas e mais

    ou menos democrticas. E pode at acontecer que uma democracia

    controlada seja o incio do despotismo, como tambm que um

    despotismo frouxo seja o germe de uma democracia. Mas o critrio

    discriminativo existe: o maior ou menor espao reservado ao

    dissenso, que pode ser sintetizado nestas duas frmulas: "Toda

    forma de dissenso admitida, exceto as expressamente proibidas"

    ou "Toda forma de dissenso proibida, exceto as expressamente

    permitidas". A primeira frmula a das democracias liberais e a

    segunda prpria das democracias totalitrias.

    15 de fevereiro de 1977

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    dissenso, no admite que o direito ao dissenso seja exercido de modo

    a impedir o direito igual e contrrio de no estar de acordo com o

    desacordo.

    Por isso afirmo que h dissenso e dissenso. O critrio que

    permite distinguir um do outro o mesmo que nos permitiu

    distinguir, no artigo anterior, o consenso de uma democracia liberal

    do consenso de uma democracia totalitria. Com base no princpio de

    que s existe democracia quando existe consenso e dissenso livres, to

    pouco democrtico o sistema poltico que impede o dissenso como o

    movimento poltico de dissencientes que no tolera os consencientes.

    Da mesma forma que o consenso exclusivista prprio dos sistemas

    polticos autoritrios, tambm o dissenso exclusivista prprio dos

    movimentos revolucionrios.

    Um movimento revolucionrio, j em seu germe (e no h dvida

    de que os movimentos estudantis so tanto no bem como no mal

    movimentos revolucionrios), funda-se e deve fundar-se no princpio

    da unanimidade, ou seja, num princpio que contrasta com a regra

    da maioria, base de todo o sistema democrtico, e que se fosse

    aplicado colocaria todo regime democrtico na condio de no poder

    funcionar. De resto, assim como o movimento revolucionrio quase

    sempre a nica resposta possvel, ainda que nem sempre eficaz, a um

    regime autoritrio, assim tambm entende-se perfeitamente por que

    o consenso exclusivista e o dissenso exclusivista existem em relao

    recproca. Para voltar aos fatos da Universidade de Roma, os grupos

    que impuseram seu dissenso recorrendo at violncia sustentam

    que no tinham outro meio para afastar um consenso que no era

    proposto atravs de uma discusso aberta, mas imposto atravs de

    um comcio no-solicitado.

    No que se refere ao tema do princpio da maioria como regra

    urea da democracia, foram abordadas infinitas variaes. Num

    discurso como o presente, em que por democracia se entende o

    sistema poltico que consente ao cidado a livre escolha entre

    consenso e dissenso, o princpio da maioria revela toda a sua

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    importncia. Na verdade, ele o nico princpio que permite aos

    consencientes e aos dissencientes que se exprimam livremente, e por

    isso mesmo torna possvel a contempornea presena de consenso e

    dissenso. Pelo menos, por duas razes.

    Antes de tudo, a regra segundo a qual num corpo poltico se

    considera vlida a deliberao que goza do consenso da maioria

    apenas uma regra de procedimento. Ela no diz nada sobre o quese

    deve decidir mas limita-se a dizer como se deve decidir. Em outras

    palavras, no estabelece o que bom ou mau, mas prescreve que se

    aceite como boa uma deliberao qualquer que ela seja, votada de

    um certo modo. Mesmo enquanto regra de procedimento, isto ,

    enquanto regra que no impe um comportamento bom em

    contraposio a um comportamento mau, o princpio da maioria

    permite considerar o dissenciente no como um rprobo, mas como

    algum que, tendo refutado o bem e optado pelo mal, merece ser

    interpelado, reeducado ou talvez punido e posto em condies de no

    mais pecar. Induz a consider-lo pura e simplesmente como algum

    que, tendo aceito certas regras do jogo, perdeu a partida, embora

    possa venc-la ainda numa segunda rodada.

    Em segundo lugar, o princpio da maioria apia-se na

    presuno de que aquilo que agrada maioria corresponde ao

    interesse coletivo mais do que aquilo que agradou minoria. Tirania

    por tirania, a tirania da maioria, contra a qual os reacionrios de

    todos os tempos dirigiram seus raios, menos tirnica do que a

    tirania da minoria ou de um s. A maioria torna-se tirnica quando

    se aproveita da prpria maioria para mudar as regras do jogo, entre

    as quais, precisamente, fundamental a da maioria, fazendo passar

    a maioria para a unanimidade, que, como tal, no reconhece mais a

    minoria. A importncia dessa presuno est no fato de colocar o

    dissenciente na condio de que no se sinta vtima de um abuso,

    ou, para continuar a usar a metfora do jogo, que no se sinta como

    algum que perdeu porque os outros jogaram melhor. Enquanto, com

    base na considerao precedente, o dissenciente no um herege,

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  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    violncia. Trata-se de uma daquelas conquistas cvicas que

    desejaramos jamais fosse questionada ou repudiada pelos fatos. Para

    defender essa conquista, mesmo com o risco de passarmos por

    repetidores de coisas bvias, gastas e consabidas, devemos insistir em

    rejeitar qualquer sistema onde o no-reconhecimento da oposio

    deixe como alternativas unicamente a aquiescncia ou a rebelio.

    1 de maro de 1977

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    O barrete de Lenin

    A relao entre o partido comunista e o marxismo-leninismo na

    Itlia no apenas um problema de estatuto de partido. Permanea

    ou caia a diretriz dada aos inscritos pelo art. 5 de "adquirir e

    aprofundar o conhecimento do marxismo-leninismo, aplicando os

    ensinamentos soluo das questes concretas" (ressalvadas as

    disposies do art. 2), a relao de fatoentre o partido comunista e

    o marxismo-leninismo j no atualmente o que era quando o

    estatuto hoje em vigor foi aprovado. De um lado, a conscincia sempre

    mais aguda da degenerao do Estado-guia que se inspira naqueles

    princpios, e, de outro, a impossibilidade de fugir luta de idias

    que mantm viva e vigilante a cultura das democracias ocidentais

    induziram o partido comunista j h muito a refletir criticamente

    sobre o prprio passado.

    Entretanto, a primeira observao a fazer que o dever de

    aprofundar o conhecimento do marxismo-leninismo e agir em

    conseqncia disso diz respeito apenas aos inscritos no partido.

    Todavia, o partido se tornou sempre, nos ltimos anos,

    especialmente nas ltimas eleies, um partido eleitoral, ou seja, um

    partido que foi aumentando o abismo entre inscritos e eleitores.

    Aqueles que votam pelos comunistas sem serem inscritos e sem

    inteno de o fazer no s no tm nenhuma obrigao de estudar os

    sagrados textos mas, tambm, ignoram em sua grande maioria que

    exista o art. 5. E, ainda que o soubessem, no lhes importaria nada.

    A segunda observao que o mesmo art. 5 ressalva "as

    disposies do art. 2", que so as daquele famoso artigo em que se

    diz que para algum se inscrever num partido precisa aceitar seu

    programa poltico "independentemente... da f religiosa e das

    convices filosficas"; e como o marxismo-leninismo sempre foi

    considerado, alm de programa poltico, como uma "convico

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    filosfica", segue-se necessariamente que o dever de ser bom

    marxista-leninista no conhecimento e na ao no diz respeito a

    todos os inscritos, dos quais alguns podem ser membros do partido

    sem estarem "convencidos" da excelncia do marxismo-leninismo. Se,

    j no momento da reestruturao, Togliatti achava oportuno deixar

    aberta a porta aos que pensavam de outra maneira, natural que

    hoje, vinte anos depois, tendo o partido conquistado nova fora

    poltica graas queles que nele votam sem estarem inscritos e sem

    terem a mais plida idia do que seja o marxismo-leninismo, os

    dirigentes se preocupem, ou pelo menos comecem a se preocupar ou a

    pensar que seria bom preocupar-se, em adequar a doutrina

    realidade.

    Em terceiro lugar, no podemos deixar de observar que o tempo

    passa e que um acontecimento grandioso como a Revoluo de

    Outubro no pode ser um modelo de ao poltica e termina por

    tornar-se um objeto de reflexo histrica. Conversando com jovens,

    conforme acontece freqentemente at por razes profissionais, tive

    inmeras ocasies para espantar-me com o desinteresse que eles

    demonstram em relao ao passado, com o fato de no se sentirem

    vinculados aos mitos, s crenas arraigadas, aos dios e aos amores

    das geraes passadas, a comear pela Resistncia. No mais, foi

    precisamente a gerao que precedeu a minha a que comeou a

    criticar o mito do Risorgimento.

    A maior parte dos comunistas militantes de hoje nasceram aps

    a guerra, nasceram e cresceram no "partido novo": um deles me dizia

    tempos atrs que o problema de que o partido fosse ou devesse ainda

    ser leninista, ou em que medida o fosse ou devesse s-lo, era-lhe

    indiferente. Com o passar do tempo este afastamento tende a

    aumentar, especialmente num partido dinmico, voltado

    impetuosamente para o futuro, como o partido comunista italiano.

    Tentativas de retorno s origens, ao marxismo-leninismo na sua

    pureza ideal, como corpo doutrinai e como cdigo tico, foram

    verificadas nestes anos, mas certamente no devidas aos jovens

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    comunistas. Um grande partido moderno no uma seita.

    At aqui minhas observaes se fundaram em dados de fato

    impugnveis: a transformao do partido comunista em grande

    partido tambm eleitoral, a comprovada abertura do partido de

    Togliatti para os infiis, a natural desconfiana dos jovens em relao

    aos ideais de seus pais. Mas o problema do marxismo-leninismo hoje,

    em sua significao atual, ou como valor de modelo terico e prtico,

    muito mais complexo e no pode ser resolvido nem com ligeiras

    declaraes nem com apaixonadas e autorizadas profisses de f.

    Constata-se que as ciladas, para um partido em movimento

    como o partido comunista italiano, que pretende proclamar-se

    tambm marxista-leninista, embora com todas as atenuantes,

    atualizao e desenvolvimento interno que a linha poltica do

    eurocomunismo requer, podem surgir de dois lados: um deles o fato

    de o marxismo-leninismo ser a doutrina oficial dos pases do

    "socialismo realizado", em particular da Unio Sovitica, com os quais

    as contas esto em aberto (uma das contas a encerrar diz respeito

    atualidade do pensamento de Lenin); o outro ter-se tornado o

    leninismo, enquanto teoria e prxis da revoluo, uma bandeira da

    maior parte dos movimentos da nova esquerda que opem ao realismo

    poltico do PCI a sua intransigncia revolucionria.

    Tenho comigo um pequeno volume de Mikhail Suslov, que

    passa por ser o maior terico do partido comunista sovitico. O

    livrinho intitula-se Il marxismo-leninismo. Dottrina internazionalistica

    della classe operaia. Os danos que um livrinho destes pode fazer a um

    partido como o italiano, que procura congregar os intelectuais, tem

    cartas regulares para o fazer e apesar de tudo desejaria ainda ser

    chamado de marxista-leninista, so incalculveis. Basta dizer que,

    em comparao, as Questes de leninismo de Stalin, to

    desconsideradas, so uma obra-prima de finura terica e densidade

    conceptual. Difcil imaginar uma seqela mais montona de frases

    feitas, de juzos convencionais, de elogios descomedidos e repetidos

    at saturao e ao ridculo dos grandes fundadores (Stalin no

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    citado nunca) e de invectivas contra os adversrios, to exageradas e

    vulgares que no provocam nenhum movimento de indignao.

    Numa palavra, um monumento de retrica celebrativa e mentirosa.

    Uma prova, se ainda fosse necessrio demonstrar, dos tristes efeitos da

    falta de dissenso, a nica coisa a manter vigilante a inteligncia crtica e

    tambm um argumento que no podia ser mais convincente em favor da

    fecundidade do debate. Uma demonstrao de como se pode transformar

    uma obra de pensamento, que precisa ser continuamente colocada em

    discusso para provar a prpria vitalidade e o prprio ncleo de verdade,

    em puro instrumento de domnio.

    Sobre a vertente oposta vejamos o que escreve sobre Lenin e o queentende por leninismo Antnio Negri, terico da nova esquerda

    revolucionria,16 em seu livro La fabbrica della strategia. Como se percebe

    pelo ttulo, o autor v em Lenin mais do que o fundador de um novo

    Estado o famoso Estado de transio que depois se tornou permanente.

    Negri v em Lenin o primeiro grande criador de uma estratgia

    revolucionria (Lenin como o Napoleo da Revoluo, que espera ainda seu

    Clausewitz), cujo escopo seria o de colocar no o problema do Estado masat o prprio oposto que o problema da destruio do Estado, onde a

    vontade de subverso e de poder " o elemento que caracteriza de maneira

    definitiva o leninismo e o transforma em categoria permanente, em

    marco diferencial entre o que revolucionrio e o que no ".17 No ficam

    dvidas contra quem dirigido o discurso de Negri e no precisamos

    coment-lo.

    Com isso no quero dizer que no existam outras possveisinterpretaes dos escritos e das obras de Lenin: ou catecismo do Estado

    ou manual do perfeito revolucionrio.

    .

    (16) Negri, Antnio, La fabbrica della strategia. 33 lezionisu Lenin, Padova, 1976(17) Idem, ibidem, p. 64.

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    Pois bem: as duas imagens que primeiro nos aodem mente quando

    pensamos no grande protagonista da Revoluo de Outubro so ou a do

    corpo embalsamado no museu da Praa Vermelha ou a do homem com o

    barrete de operrio que discursa para a multido, incitando-a revolta.

    No desejaria enganar-me, mas tenho a impresso de que ao partido

    que abriu caminho para o eurocomunismo no se aplica nem a

    primeira nem a segunda.

    27 de setembro de 1977

  • 7/28/2019 Bobbio - Ideologias e Poder Em Crise

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    Lenin era marxista?

    Ao ler a reportagem do encontro organizado pelo Manifestoem

    Veneza sobre "Poder e represso nas sociedades ps-revolucionrias"

    e ao participar do debate promovido pela Bienal sobre "Dissenso

    cultural", convenci-me de que a discusso que hoje se verifica no seio

    da esquerda histrica e no-histrica, a uma distncia de sessenta

    anos da Revoluo de Outubro, no muito diferente da que se

    desenvolveu sessenta anos atrs quando a revoluo ainda estava em

    curso. Com uma diferena: as crticas que ento se dirigiam ao

    modo como era conduzida a revoluo dos bolcheviques e aos

    resultados que dela derivavam provinham de inimigos do leninismo;

    hoje, pelo contrrio, as mesmas crticas freqentemente provm de

    leninistas e por vezes at de marxistas desiludidos e arrependidos.

    Entre os vrios argumentos que foram adotados a favor e contra

    a revoluo sovitica tiveram destaque especial os doutrinais. Chamo

    doutrinais aos argumentos fundados sobre a conexo entre a prtica

    da revoluo e a teoria do marxismo, ou seja