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Descentralização e autonomia local na implementação da política de Assistência social: um estudo sobre as mudanças do Sistema Único de Assistência Social na Região Metropolitana de Porto Alegre (2004-2018) Luciana Pazini Papi 1 Taciana Barcellos Rosa 2 Thamires Valéria Andrade Vieira 3 RESUMO A descentralização das políticas sociais brasileiras após a Constituição Federal de 1988 modificou as relações federativas do país conferindo autonomia aos municípios para formular e implementar políticas públicas. A política pública de assistência social, assim como a as demais políticas sociais passaram a ter nos municípios os entes responsáveis pela implementação das suas ações. Entretanto, como historicamente a federação desenvolveu capacidades decisórias no centro, dificultou-se o processo de construção capacidades burocráticas e administrativas nos municípios para atender as novas demandas constitucionais. Passados treze anos do surgimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) as gestões locais permanecem ainda em estágio de consolidação da política, afetados, principalmente, pela atual crise política e econômica que vive o país. Frente a esse cenário o artigo investigou como tem ocorrido a implementação do SUAS no atual contexto nacional e adicionalmente, como o PCF tem sido implementado e afetado a autonomia dos municípios. 1 Professora adjunta do departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Universidade Torcuato Di Tella. É Pesquisadora Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal - NUPEGEM. Email - [email protected] , [email protected] 2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharela em Políticas Públicas pela mesma Universidade. Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal – NUPEGEM. E-mail: [email protected] 3 Estudante de graduação do curso de Administração Pública e Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista voluntária no Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal - NUPEGEM. Email - [email protected] [email protected] 1

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Descentralização e autonomia local na implementação da política de Assistência social: um estudo sobre as mudanças do Sistema Único de Assistência Social na Região Metropolitana de Porto Alegre (2004-2018)

Luciana Pazini Papi1

Taciana Barcellos Rosa2

Thamires Valéria Andrade Vieira3

RESUMO

A descentralização das políticas sociais brasileiras após a Constituição Federal de 1988 modificou as relações federativas do país conferindo autonomia aos municípios para formular e implementar políticas públicas. A política pública de assistência social, assim como a as demais políticas sociais passaram a ter nos municípios os entes responsáveis pela implementação das suas ações. Entretanto, como historicamente a federação desenvolveu capacidades decisórias no centro, dificultou-se o processo de construção capacidades burocráticas e administrativas nos municípios para atender as novas demandas constitucionais. Passados treze anos do surgimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) as gestões locais permanecem ainda em estágio de consolidação da política, afetados, principalmente, pela atual crise política e econômica que vive o país. Frente a esse cenário o artigo investigou como tem ocorrido a implementação do SUAS no atual contexto nacional e adicionalmente, como o PCF tem sido implementado e afetado a autonomia dos municípios.

PALAVRAS-CHAVE: assistência social, programa criança feliz, autonomia local, implementação de políticas públicas

INTRODUÇÃO

No Brasil, as ações de assistência social (AS) foram incorporadas tardiamente ao

Sistema de Proteção Social nacional quando comparada a outras ações vinculadas ao campo

social, como educação e saúde. Antes de 1988, não se pode falar propriamente em política de

assistência social, mas sim de ações dispersas e voluntariosas, marcadas pelo sentido da

“ajuda social” aos desfavorecidos e prestadas por primeiras-damas, pela igreja católica, ou às

iniciativas filantrópicas caritativas dos demais segmentos religiosos.

Apesar do inegável avanço legal a partir da Constituição Federal de 1988 (CF/88),

quando é alçada ao status de política pública compondo o Sistema de Seguridade Social, a

1 Professora adjunta do departamento de Ciências Administrativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Universidade Torcuato Di Tella. É Pesquisadora Coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal - NUPEGEM. Email - [email protected], [email protected] 2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharela em Políticas Públicas pela mesma Universidade. Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal – NUPEGEM. E-mail: [email protected] 3 Estudante de graduação do curso de Administração Pública e Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista voluntária no Núcleo de Pesquisa em Gestão Municipal - NUPEGEM. Email - [email protected] [email protected]

1

política de assistência social demorou a profissionalizar-se perpetuando-se com vieses

assistencialistas em meio ao processo de descentralização que trouxe consigo baixa

capacidade de resolutividade dos problemas sociais. Em um contexto de descentralização -

administrativa e financeira - e enxugamento do Estado, delegou-se aos municípios a gestão

integral dessas ações em seus territórios, responsabilizando-os pela formulação e

implementação de políticas sociais, sem que pudessem contar com apoio e coordenação

federal (PAPI, 2014). Desta forma, em meio às desigualdades regionais da federação

brasileira, municípios descapitalizados e com baixo desenvolvimento de capacidades estatais,

assumiram as responsabilidades pela formulação e implementação da política, em muitos

casos, repetindo as ações assistencialistas vividas no passado.

Esse panorama modificou-se, a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em

2003, que eleito sob bandeira do combate à fome no país aprovou, em 2004, o Plano

Nacional de Assistência Social (PNAS), e deliberou pela criação do Sistema Único de

Assistência Social (SUAS) no mesmo ano. A partir de então, a política pública, antes sob

responsabilidade municipal, passou a ser coordenada em nível nacional de forma que os três

níveis federativos passaram a compartilhar responsabilidades. Não obstante esse processo de

normatização ter acarretado na redução de autonomia para formular a política pública de AS,

muitos municípios avançaram na implementação e profissionalização de suas ações,

priorizando a construção de equipamentos públicos e contratação de corpo burocrático.

Contudo, com o processo de impeachment que afastou a presidenta Dilma Rousseff

em 2016, novamente a política pública sofreu importantes mudanças, perdendo seu status

estratégico na política nacional. Com a posse do até então vice-presidente Michel Temer, a

ideia de sistema integrado de ações em um combate geracional da pobreza, foi substituída

pela priorização de ações focalizadas na primeira infância com a implementação do Programa

Criança Feliz (PCF), que destinado à coordenação de Marcela Temer, centralizou novamente

as ações sociais na figura da primeira-Dama.

Procurando apreender em que medida, esse contexto político nacional tem afetado o

processo de implementação local da política de AS, apontando, hipoteticamente, para um

novo modelo de descentralização - com menor apoio e coordenação federal -, propomo-nos a

investigar como tem ocorrido a implementação do SUAS no atual contexto nacional em

conjunto com o PCF. Para isso, foi realizado um estudo de caso múltiplo, longitudinal, em

três municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre: Alvorada, Viamão e São Leopoldo

nos quais foram analisadas mudanças no processo de descentralização entre os anos de 2004-

2018. Do ponto de vista metodológico, foram realizadas entrevistas em profundidade com

2

gestores e trabalhadores do SUAS nos três municípios escolhidos, assim como, análise

documental para verificar as mudanças em curso. Do ponto de vista da análise foi realizada

análise temática a partir de blocos de questões.

Para atender aos objetivos do trabalho, primeiramente apresentamos uma discussão

sobre as relações federativas no Brasil e como os níveis governamentais dispõe de diferentes

graus de autonomia para formular e implementar políticas públicas. A seguir demonstramos

um panorama histórico da política de assistência social no país, com especial atenção ao

estabelecimento do SUAS. Por fim, apresentamos os achados da pesquisa, a partir das

entrevistas com os gestores e trabalhadores municipais, responsáveis diretos pela

implementação da política no país.

1 Descentralização e o debate sobre autonomia municipal na formulação e

implementação de políticas públicas

O debate sobre autonomia dos governos locais é antigo e remonta a clássicos como

Toqueville que, em “A democracia na América” (1840), já destacava os benefícios de se

governar próximo aos governados, em um processo onde os mesmos pudessem opinar e

controlar as ações despóticas dos governos centrais. Epistemologicamente, a obra clássica do

autor, que estudou o caso dos Estados Unidos, acaba associando modelos descentralizados de

governo com o desenvolvimento de instituições políticas ou de costumes nacionais

democráticos. Ao mesmo tempo em que faz essa associação e compara com a história dos

povos europeus, herdeiros dos Estados centralizados absolutistas, atrela a ideia de

autoritarismo a tipos de Estados que não nascem das mesmas condições que o caso

americano. Martha Arretche (1996), já chamava atenção para essa associação maniqueísta

traçada entre descentralização, democracia e eficiência dos governos e, por outro lado,

centralização, autoritarismo e ineficiência, uma vez que a maioria dos Estados ocidentais

nasceram de processos distintos do caso norte americano, concedendo autonomia aos

governos locais. A autora defende ainda que nem sempre é o nível de governo que garante

democracia e eficácia nas entregas de serviços públicos, mas a natureza das relações entre

burocracias públicas, e as possibilidades de controle efetivo dos cidadãos sobre a ação dos

governos responsáveis pela prestação dos serviços.

Ao relativizar tal associação entre descentralização, democracia e eficiência nas

políticas públicas, sobretudo pautado no caso particular dos Estados Unidos, coloca-se o

ponto de se pensar a construção institucional específica de cada país (a relação entre os

3

poderes locais e centrais) para compreender como a descentralização opera, sobretudo no

campo específico da autonomia dos governos.

Em termos conceituais, a definição de descentralização é ambígua na medida em que

se trata de um processo multifacetado ocorrido no país, sobretudo nos anos 1980, em que se

colocou em questionamento a forma pretérita de se administrar o Estado, até então bastante

burocrático e centralizado. Nesse bojo passou-se a questionar a forma de divisão de poder

territorial dentro dos Estados, antes bastante concentrado em uma ou poucas esferas

governamentais e a forma de aproximar a população da administração, antes restrita a poucos

governantes e elites burocráticas. Por essas razões, e sobretudo por se tratar de um fenômeno

complexo, a descentralização passou a ser abordada por diferentes campos acadêmicos que

tentaram compreender o fenômeno sobre diferentes prismas.

De acordo com Guimarães (2002) é possível identificar a discussão sobre

descentralização em vários campos disciplinares. No campo das ciências econômicas, ela é

vista como transferência de responsabilidades das atividades econômicas públicas para o

setor privado. No campo da sociologia, a descentralização é tida como um mecanismo para a

autorização (“empowerment”) da sociedade civil, com o objetivo de incrementar a cidadania.

No campo da Administração Pública, ela constitui uma política para se diluir o poder

decisório e administrativo dentro das agências públicas centrais, através da desconcentração,

ou seja, da transferência de responsabilidade administrativa sobre os serviços básicos

públicos do nível nacional para os governos regional e local (Guimarães, 2002, p. 2).

Já para o campo da Ciência política, a descentralização é tratada como um processo

que repassa autonomia política dos níveis centrais para os níveis regionais e locais,

geralmente associado ao debate sobre federalismo (PAPI, 2017). Neste aspecto cabe assinalar

que a descentralização pode se apresentar tanto como desagregação de poder decisório,

configurando assim a transferência de competências e autoridade sobre a gestão do território

do centro para a periferia, mas também pode transferir apenas a responsabilização sobre a

execução de atividades, sem o devido repasse de autoridade/autonomia política para tanto. As

distintas formas de operar a descentralização dependem das trajetórias prévias de construção

do Estado-nação em cada caso e como se organizaram política e administrativamente os

distintos níveis de governo.

Nesse sentido, para a compreensão dos distintos sentidos da descentralização, além de

considerar que o tempo e história importam, cabe assinalar a ressalva metodológica que

Arrteche (2012) nos proporciona para pensar sobre a autonomia que logram os distintos

níveis de governo. Segundo a autora, autonomia dos governos deve ser diretamente

4

relacionada à capacidade decisória dos mesmos e para tanto, deriva das capacidades política,

administrativa e fiscal que cada ente acumula e desenvolve historicamente. Nesse sentido a

autora chama a atenção para duas formas de se diferenciar a descentralização e autonomia

dos governos: os conceitos de policy making e policy decision making (ARRETCHE, 2012).

De acordo com a autora, policy making pode ser compreendido como à

descentralização de competências para os níveis inferiores de governo sem a devida

transferência de autoridade e dessa forma os governos locais tornam-se apenas executores de

decisões tomadas em escalões mais altos do governo. E o policy decision making, que

configura-se como a descentralização de autoridade decisória sobre as políticas públicas, ou

seja a transferência de autonomia política para esses níveis. Argumentando que, em muitos

países, governos subnacionais podem ter grande responsabilidade por políticas públicas sob

elevada regulação e supervisão dos governos centrais, sem gozar de autonomia para definir a

agenda e formulação das políticas públicas sobre o território, postulamos que para

compreender a autonomia que logra o governo local no Brasil, faz-se mister retomar a

construção dessas duas dimensões a partir da análise de formulação de políticas públicas,

especialmente aqui a de assistência social.

A partir dessa escolha metodológica, assume-se que a descentralização é um processo

de reforma do Estado que pode transferir responsabilidade, recursos ou autoridade de níveis

mais altos para os mais inferiores de governo, possuindo sentidos, conteúdos e aplicações

variáveis de acordo com as características do Estado que busca reformar-se (FALLETI,

2006).

No caso brasileiro, o debate sobre descentralização inicia nos anos 1980 em meio a

dois processos concomitantes: 1) o local - redemocratização em que os atores sociais e locais

ansiavam pelo fim do regime autoritário e por maiores fatias de poder antes nas mãos da

União; e 2) o internacional - processo de reforma do Estado que vinha no bojo do fim da

guerra fria, da suposta vitória do capitalismo e da globalização sobre modelos de Estado

keynesianos e de Bem Estar Social pretéritos, amplos e interventores. Nessa perspectiva se

postulava diminuir o tamanho do Estado e reformá-lo para adequá-lo ao modelo do mercado -

supostamente mais eficiente na alocação de recursos e na implementação de serviços. Nesse

sentido a descentralização surge como estratégia central para levar a cabo tal projeto (PAPI,

2010).

Sobre o primeiro aspecto, cabe assinalar que o momento da redemocratização inseriu

o fortemente o debate da descentralização na Constituinte de 1988 como forma de redefinir

as bases políticas da federação até então centralizadas. Com efeito, as lideranças locais

5

forjadas na construção de nosso Estado (nota de rodapé) e que passaram alijadas durante

quase 50 anos da partilha de poder, aproveitam o contexto para reclamar sua autonomia

perdida no período autoritário. De acordo com Affonso

O fato decisivo, e que torna singular a experiência brasileira, é que a redemocratização ocorreu primeiro nos governos subnacionais, com eleição para governadores e prefeitos no início dos anos oitenta, e somente em 1988 chegou ao nível central do Estado, com a Assembléia Nacional Constituinte e, em 1989, com a eleição direta para presidente da República. Dessa forma, ocorreu uma identificação entre a luta contra o autoritarismo e a luta pela descentralização. A União ficou sem defensores durante a elaboração da constituição de 1988 (AFFONSO, 1996, p.5)

A partir da promulgação da CF/88 (formulada em grande parte por forte lideranças

regionais), foi cristalizado e reforçado o princípio federativo de divisão paritária de poder

entre os entes constitutivos da nação que passaram a ter poderes e competências equivalentes.

Assim é que o município vai ser alçado pela CF/88 ao status de ente federativo com plena

autonomia política, administrativa e financeira4 para legislarem sobre sua jurisdição (TOMIO

2005, p.104). Isto inaugura um fato histórico novo no Brasil, na medida em que coloca o

município, antes responsabilizado pelas mais diversas práticas oligárquicas, no centro da

nova reforma estatal e em condição de igualdade com os demais entes federativos. Disto

resultará uma grande expectativa em torno das potencialidades do governo local que passa a

ser concebido como berço de democracia, de práticas inovadoras e da eficiência em políticas

públicas, verdadeiros laboratórios de boas práticas (FIGUEIREDO e LAMOUNIER, 1996).

Para dar sustentação a este processo, que repassou autonomia política/administrativa

aos entes subnacionais, houve o aumento no aporte de recursos a favor de estados e

municípios por via dos repasses federais através dos Fundos de Participação Municipal e

Estadual (FPM e FPE). Como nos mostra trabalho de Affonso (1996) os municípios

ampliaram sua participação na receita disponível (receita total, computando as transferências

intergovernamentais), de 9% em 1980 para 15% em 1994. E os estados aumentaram de 22%

em 1980 para 27% até 1988 sua participação na receita disponível.

Entretanto, em meio ao processo de descentralização de recursos fiscais e autonomia a

favor dos estados e municípios, sabe-se que houve um significativo aumento do número de

pequenos municípios5 (TOMIO, 2005) e paralelamente, uma maior absorção de encargos por

4 1) Descentralização política (relativa a possibilidade de os governos locais serem eleitos diretamente sem revogações dos níveis superiores de governo); 2) descentralização fiscal (relativo às receitas e despesas em gastos agregados); e 3) descentralização de competências (relativo à execução de políticas públicas).5 Após a promulgação da constituição de 1988 foram criados 1.385 municípios no Brasil, cerca de 25% dos 5.564 dos hoje existentes e, ou 33% de acréscimo sobre os 4.179 que existiam até 1988 (TOMIO, 2005).

6

parte destes níveis de governo, que muitas vezes descapitalizados e sem condições de gerar

recursos próprios, sobreviveram às custas de transferências e políticas públicas nacionais. De

acordo com Almeida & Carneiro (2003), pode-se afirmar que, no Brasil, o sentido da

descentralização colocou o município como o principal destinatário de competências e

atribuições na prestação de serviços, principalmente na área social, como podemos ver no

trecho a seguir:

Com efeito, além de ter-se transformado em ente federativo, o município recebeu a parcela maior do aumento das transferências constitucionais e foi o destinatário principal da descentralização de competências e atribuições nas políticas públicas da área social. (ALMEIDA; CARNEIRO, 2003, p.129)

Todo esse processo de revalorização do local e de descentralização de

responsabilidades insere-se igualmente em um contexto externo - o fator internacional - em

que se anunciava um tipo de reforma do Estado que buscava o enxugar e torná-lo o mais

próximo possível do modelo privado de administração.

Com efeito, a partir da crise do Petróleo nos anos 1970, mas sobretudo com a queda

do bloco soviético, desencadeia-se um processo advindo das elites liberais do primeiro

mundo, de questionamento do modelo de Estado keynesiano e de Bem-Estar Social -

responsável pelo dinamismo econômico do pós-guerra. As críticas direcionavam-se para os

problemas de gestão do Estado centralizado política e economicamente que seria, na

interpretação do mainstream econômico liberal6, o principal responsável pelos infortúnios da

crise internacional vivenciado na época. A solução para tais infortúnios seria expor tal

“modelo” de Estado providência a todo o tipo de reformas.

Em consequência, toma-se a defesa de reformas embasadas numa concepção

minimalista do Estado cujos pressupostos levaram à busca pelo enxugamento das máquinas

burocráticas centrais, o fortalecimento de organizações transnacionais, da presença de

Organizações Não Governamentais - ONG’S, a descentralização e a maior demanda por

participação da sociedade civil7 no nível local.

É diante deste contexto que o discurso e as práticas descentralizadoras foram

propostas em larga escala, principalmente pelas instituições multilaterais, como o Banco

6 Desta forma, nas décadas de 80 e 90, sobretudo sob o comando de Thatcher, na Inglaterra, e Reagan nos Estados Unidos, são readequados os pressupostos neoliberais, cujo epicentro reside na crítica à idéia de Estado atuante e planejador (CHANG, 2008).7 Sobre este assunto ver Dagnino (2004) que trata da “Confluência perversa” chamando a atenção para a existência de dois projetos políticos com conteúdos políticos distintos nos países da América Latina, que no entanto, lançam mão de mesmos conceitos e discursos na defesa da prática participativa e na revalorização da sociedade civil. Trata-se do projeto neoliberal versus o projeto democratizante que se constituiu no período de resistência contra os regimes autoritários

7

Mundial, que defendeu estas reformas como solução para os problemas estruturais dos

países menos desenvolvidos (CHANG, 2008). Como consequência, a revalorização do

âmbito local como berço de boas práticas e boa política ressurgem no imaginário popular e

nas ações dos Estados, dando a impressão que a roda da história pendia para a

descentralização (ARRETCHE, 1996). Entretanto, sabe-se que, a despeito da euforia gerada

em torno das potencialidades do governo local, no caso brasileiro, a capacidade do governo

local exercer autonomia e promover as políticas públicas antes sob responsabilidade do

governo federal apresenta restrições entre regiões e localidades em decorrência, dentre

outras questões, das grandes desigualdades inter e intra regionais.

A este respeito, Souza (1996 e 1998) demonstra que a descentralização não

necessariamente trouxe melhorias na gestão pública local. Em países marcados por alto grau

de heterogeneidades e desigualdades, a reforma na gestão pública local passa prioritariamente

pela importância da União e dos estados no apoio a estas reformas. Ou seja, apesar dos

municípios terem passado por um fortalecimento de poder político e de recursos financeiros

após a redemocratização, isso não quer dizer que os governos locais sejam iguais na sua

capacidade de cumprir esta reforma. Permanecem os limites na capacidade administrativa e

institucional nos municípios, oriundos, sobretudo, das extremas desigualdades sociais e

regionais no país. Portanto, o grau de autonomia local e os efeitos da descentralização podem

ter implicações variadas de acordo com as diferenças econômicas, políticas e sociais de

determinado local. Estas diferenças podem inclusive prejudicar os objetivos da reforma na

gestão pública, na medida em que a descentralização financeira a favor das esferas

subnacionais reduz as possibilidades de ajuda federal e estadual às esferas locais com o

objetivo de minimizar os efeitos das referidas desigualdades.

Ainda a respeito dos limites e possibilidades da descentralização em âmbito local e os

constrangimentos à autonomia decisória, Celina Souza (1996) traz as os casos de Salvador e

Camaçari, que seriam representativos neste sentido. Na mesma perspectiva Bremaeker

(1994), Tinoco (1998) e Clementino (1996) mostram a dependência dos municípios do

Nordeste das transferências de outros entes federativos, cabendo pouco espaço para os

prefeitos implementarem uma agenda própria por inexistir nestes municípios condições de

arrecadar recursos próprios.

Diante destas restrições os municípios têm procurado o apoio de recursos financeiros

em nível estadual e, sobretudo, federal para a implantação e manutenção de políticas públicas

de interesse local pela via de transferências negociadas ou voluntárias através de convênios,

com recursos de emendas orçamentárias, ou diretamente dos próprios ministérios. Ademais,

8

a partir dos anos 2000, quando cresce o papel do governo central na formulação e

investimentos em políticas de proteção social, muitos municípios passam a viver não apenas

dos repasses federais, mas dos recursos destinados à implementação das políticas públicas

federais.

Esse é o caso da política de Assistência social que vem sendo redesenhada desde

2004 com o SUAS e fortemente normatizada e impulsionada pelo governo Federal aos

municípios. Caso que será discutido a próxima seção

2 A construção da assistência social como política pública e o papel dos municípios na

sua implementação

Historicamente, a assistência social (AS) encontra suas raízes na ação social da Igreja

Católica através da caridade - esta considerada como a “missão última do cristão” (EGER,

2013). Uma vez absorvida pelo sistema de proteção social8 público no Brasil, em meados da

década de 1930, assumiu como prática um conjunto de ações dispersas e voluntárias

associadas, geralmente, ao gabinete das primeiras Damas e às iniciativas filantrópicas. A

construção do entendimento da Assistência Social como política pública no país se deu a

partir da CF/88, como parte da seguridade social (BRASIL, 2009).

Em 1993, a implementação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), buscou

regulamentar as questões que ficaram sem orientação concreta na Constituição e institui

como diretriz principal da Assistência, no seu artigo 5°, a primazia da responsabilidade do

Estado na condução da política de assistência social e a descentralização político-

administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios9 como estratégia normativa

para superar o passado assistencialista.

Entretanto, em que pese o avanço no aspecto legal, a prática da assistência social

demorou a profissionalizar-se perpetuando-se com vieses assistencialistas e com um processo

8 A proteção social pode ser compreendida como aquela que incorpora “formas, às vezes mais, às vezes menos institucionalizadas, que todas as sociedades humanas desenvolvem para enfrentar vicissitudes de ordem biológica ou social que coloquem em risco parte ou a totalidade de seus membros” (SILVA E SILVA et.al., 2008, p.17). Podendo ser composto por entidades como a família, os vizinhos, associações comunitárias e instituições religiosas, privadas e estatais, que isoladas ou conjuntamente se responsabilizam por oferecer ações, serviços e bens que “protejam socialmente” determinados indivíduos ou grupos.9 Com a redemocratização as regras que regem a formulação e implementação de políticas públicas foram alteradas. A nova constituição não apenas ampliou a garantia de direitos institucionalizando políticas sociais como direito dos cidadãos e dever do estado (a exemplo da assistência social), como deslocou através da descentralização, recursos de autoridade sobre política, orçamento e administração do nível central do governo para os níveis periféricos. Com isso, os governos locais antes concebidos como meros agentes de execução local das políticas centralmente formuladas, passam a assumir funções de formulação, execução e gestão de políticas públicas com a promessa de ser “a saída” para o atraso histórico de muitas políticas públicas, principalmente as sociais.

9

de descentralização tortuoso que trouxe baixa capacidade de resolutividade dos problemas

sociais. Isso pode ser interpretado dentro dos marcos do programa de municipalização da

assistência social, proposto pelo governo federal, que colocou os municípios sob a orientação

direta de assumir a gestão integral das ações no seu território em um contexto de

descentralização e enxugamento do Estado que delegou a estes a responsabilidade completa

pela formulação e implementação de políticas públicas sociais restando baixo apoio e

coordenação federal (PAPI, 2014).

Com efeito, entre os anos 1995 e 2002, a discordância entre os objetivos

macroeconômicos de estabilização da economia com as reformas sociais focadas na

eficiência das políticas públicas, os gastos com estas políticas foram entendidos como

causadores da crise fiscal do Estado (BRASIL, 2009). O foco deste período foi a estabilidade

econômica, o crescimento econômico e políticas públicas voltadas no combate à fome e à

pobreza, consequentemente, causando um ajuste fiscal que prejudica o repasse de verbas

destinadas à Assistência Social (BRASIL, 2009). Devido a estas restrições, a

responsabilidade da política de AS é transferida para os municípios através da

descentralização proposta pela União, ocasionando uma discrepância na gestão desta política.

Entretanto, as desigualdades regionais e a baixa capacidade estatal10 impediu que a política

obtivesse grande êxito (PAPI, 2017).

A partir 2003, com a troca de governo federal, os problemas sociais voltam a ser

colocados no centro das atenções públicas e logo são criadas novas instituições para tratá-

los. O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) fica responsável pela

integração entre serviços e benefícios socioassistenciais e ações de segurança alimentar e

nutricional. A Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB-

SUAS), proporciona as regulações para disciplinar a gestão pública da assistência social para

torná-la um sistema nacional (BRASIL, 2012). Estas ações foram fundamentais para a

mudança conceitual, organizativa, no gerenciamento, na institucionalização e no controle das

ações socioassistenciais no país (PAPI, 2014). Para isto, foi preciso alinhar as

responsabilidades de cada ente federativo.

Com efeito, a implantação do SUAS no ano de 2005, configurou uma concepção de

sistema orgânico da política pública de assistência social, em que a articulação entre as três

10 O tema sobre capacidades hoje é aplicado por vários ramos das ciências humanas. No campo da Ciência política o tema ganhou relevância com o trabalho de Teda Skocpol, Rueschemeyer e Evans (1985) em que se relacionou a autonomia relativa do Estado com a habilidade do mesmo de implementar seus objetivos. Sinteticamente podemos conceituar capacidades estatais como o conjunto de instrumentos e instituições de que dispõe o Estado para estabelecer objetivos, transformá-los em políticas e implementá-las. Conforme Evans (1993) trata-se da capacidade de ação do Estado.

10

esferas de governo constituiu-se elemento fundamental, a exemplo do Sistema Único de

Saúde (SUS). Desse modo, estabeleceu-se a regulação e a organização em todo o território

nacional das ações socioassistenciais, em que todos os entes federados têm

responsabilidades11 na implementação da política de assistência social, com atribuições

específicas estabelecidas nas Normas Operacionais Básicas do SUAS.

O sistema classificou a organização das ações da assistência por níveis de proteção -

básica, média e alta complexidade -, que possibilitou a construção de uma referência unitária

em todo o território nacional. Institui-se uma rede pública de equipamentos através dos

Centros de Referência de Assistência Social (CRAS)12 e o Centro de Referência

Especializado de Assistência Social (CREAS)13, além dos abrigos/casas/lares de crianças,

adolescentes, idosos, mulheres que operam pela Alta complexidade. Quanto ao financiamento

da assistência, o SUAS estabeleceu a utilização de indicadores para a realização da partilha

de recursos, considerando o porte populacional, seus indicadores socioterritoriais, a

capacidade de gestão, de atendimento e de arrecadação de cada município.

Outra novidade foi a maior fiscalização da utilização dos recursos federais pelos

municípios. Estes, para terem acesso aos recursos do Fundo Nacional da Assistência Social

(FNAS), passaram a prestar contas anualmente através do Relatório Anual de Gestão, renovar

o plano de assistência social a cada quatro anos e manter ativo o conselho municipal,

instância de participação popular. A criação da Secretaria de Gestão da Informação (SAGI)

do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) permitiu monitorar e avaliar nacionalmente

as ações de assistência, por meio da produção de dados e informações fidedignas sobre a rede

de serviços, auxiliando no processo de planejamento da política e na tomada de decisão

nacional e local (JANNUZI, 2012).

Como se pode observar, não foram poucos as mudanças normativas e concretas

trazidas pelo governo federal para inverter a lógica da gestão e operação da assistência social

em nível nacional e local, apontando para a consolidação de um sistema com capacidade de

romper com o passado assistencialista e de baixa resolutividade pública. A partir de sua

11 De acordo com as novas regras, cabe à União a coordenação e o estabelecimento de normas gerais, enquanto aos estados e aos municípios cabe a coordenação e a execução dos programas (BRASIL, 2004). Ainda se estabeleceu que cada esfera federativa possui a tarefa de coordenar, formular e cofinanciar as ações, além de monitorar, avaliar e sistematizar informações pertinentes à sua esfera de atuação.12 O CRAS atua como a porta de entrada ao Sistema Único e tem por objetivo prestar serviços à população no sentido de fortalecer a função protetiva das famílias, evitando a ruptura de vínculos e o agravamento de problemas sociais, como a violência de diferentes matizes, a situação de rua, entre outros.13 O CREAS é o equipamento onde funcionam os serviços de média complexidade, em situações de agravamento de problemas sociais, tais como famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos, violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas e cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto.

11

instituição, em 2005, houve uma grande adesão por parte dos municípios ao SUAS. Até 2010,

dos 5.564 municípios brasileiros, 5.526 (99,3%) estavam habilitados em algum dos níveis de

gestão estabelecidos pela NOB/SUAS 2005, apenas 38 municípios (0,7%) ficaram de fora.

Por conseguinte, até 2010, foram implantados no país 7.475 novos CRAS, em 5.254

municípios (95% dos municípios brasileiros) e 2.109 novos CREAS. Dados do Censo SUAS

de 2011 apontavam que 75% dos municípios brasileiros contavam com secretarias municipais

exclusivas, e não mais compartilhadas com outros departamentos como da saúde, habitação

etc. A estruturação e a implantação dos serviços como o Serviço de Proteção e Atendimento

Integral à Família (PAIF) e o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (presente

em 91% dos CRAS), indicam uma maior padronização dos serviços.

Além disso, o aporte de recursos humanos para a área foi significativo. De acordo

com o Censo SUAS de 2010, houve um crescimento de profissionais de 9,6% ao ano, entre

2005 e 2010, totalizando 232.085 profissionais, sendo que 47% eram compostos por vínculos

estáveis. Embora estudos recentes apontem para essa fragilidade do SUAS – funcionários

com vínculo precário (BRASIL, 2013) – e a necessidade de se avançar na qualificação

técnica por meio de contratos com proteção aos direitos trabalhistas, o quadro atual ainda

mostra avanços se comparado ao passado.

Os Gastos Sociais Federais (GSF) durante o governo de Lula, totalizaram R$ 3.789,6

bilhões, com média anual de 14,25% do PIB nacional do período. Desse montante, R$ 242

bilhões foram investidos diretamente em assistência social, representando uma fatia de 6,39%

do GSF durante o período. Ademais os investimentos apresentaram um importante aporte

quantitativo no campo específico da assistência social.

Na análise da trajetória dos gastos em assistência social entre os anos de 1995 e 2010,

verificou-se um crescimento anual nos investimentos. No entanto, se durante o período FHC

os gastos passaram de R$ 1,7 bilhões (0,08% do PIB) para R$ 15,8 bilhões (0,6% do PIB), a

partir de 2003 os investimentos continuaram crescendo, atingindo, em 2010, o montante de

R$ 44,2 bilhões, ou seja, 1,07% do PIB nacional.

Diante desse panorama, pode-se sustentar que ao contrário do ocorrido até então, em

que os municípios formulavam suas agendas de programas e ações de assistência de forma

isolada e reclamavam a ausência das demais esferas federativas no apoio técnico e financeiro

para a concretização da política de assistência, com a pactuação ao SUAS e as iniciativas dos

governos de centro-esquerda esse quadro muda de forma que os municípios contam com

normatizações e amparo de recursos federais para implementar suas ações locais.

12

Apesar da autonomia para formular da política pública tenha recuado (policy decision

making) a reponsabilidade cos a execução (policy making) ampliou-se e tornou-se um grande

desafio. Ou seja, os municípios tiveram que se capacitar para a execução da política de

assistência social gerando assim expertise sobre o tema e profissionalizando sua burocracia

para planejar e implementar essas ações. É o que buscaremos demonstrar a partir de uma

análise da implementação do SUAS na Região Metropolitana de Porto Alegre, com especial

atenção ao mais atual programa assistencial lançado pelo atual governo de Michel Temer, o

Programa Criança Feliz.

3 As mudanças atuais na política de assistência social e o programa Criança Feliz: uma

reflexão sobre autonomia local na implementação de políticas públicas

Dado o recente processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016,

juntamente a ruptura no plano de governo a âmbito Federal, passando de uma agenda

progressista de garantia de direitos, a qual tinha as políticas sociais como instrumentos

estratégicos de ação, migrando para uma agenda neoliberal de diminuição do Estado, com a

posse do até então vice-presidente da república Michel Temer, nos levaram a uma crise tanto

política, quanto econômica no país.

A destinação de recursos do governo federal para os municípios na área social sofreu

retração, assim como as economias locais estão sendo impactadas pela queda arrecadatória

oriunda da baixa mobilidade dos setores de consumo e serviços com o processo de crise. Em

termos institucionais, o Ministério de Desenvolvimento Social – responsável pela

coordenação do SUAS a nível nacional - passou a dividir sua estrutura física e financeira com

o Ministério do Desenvolvimento Agrário, atual Ministério do Desenvolvimento Social e

Agrário (MDSA).

Foi em meio a esse cenário que entrou em vigor o Programa Criança Feliz, lançado

pelo MDSA, tendo a primeira dama Marcela Temer como sua embaixadora. Segundo o

decreto nº 8.869, de 5 de Outubro de 2016, o público alvo do Programa são as crianças na

primeira infância de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, ou afastadas do

convívio familiar decorrente de medida protetiva. O Programa focalizado e seletivo propõe a

realização de visitas domiciliares por profissionais de diversas áreas, que apoiem crianças de

até seis anos de idade e gestantes. Ademais, o programa conta com o aporte de oferta de

capacitação dos profissionais envolvidos, o desenvolvimento de conteúdo e material de apoio

para auxiliar os atendimentos e a promoção de estudos e pesquisas acerca do

desenvolvimento infantil.

13

Segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), para a criação do

Programa Criança Feliz foi feita a redução do orçamento da Assistência Social. Ou seja, foi

remanejado parte do orçamento de um programa de caráter universal para um programa

focalizado. A LOA de 2017 estabeleceu que o PCF teria o valor de R$ 328 milhões para o

funcionamento do Programa, mas um estudo feito pela CNM demonstra que este orçamento é

insuficiente e que os municípios que aderissem teriam que arcar com uma contrapartida de

até 82% dos custos de sua implementação. Segundo uma nota pública de repúdio ao

programa feita pelo Conselho Federal de Serviço Social, o programa é um retrocesso com

relação aos direitos dos cidadãos, pois, além de incentivar a atuação das primeiras-damas o

que remete aos tempos anteriores à CF/88, também incentiva o conservadorismo e a

filantropia, desresponsabilizando a figura do Estado como principal ente promotor da

proteção social, assim como podemos observar no artigo 12 da Lei nº 13.257, de 8 de março

de 2016, que diz que “A sociedade participa solidariamente com a família e o Estado da

proteção e da promoção da criança na primeira infância”.

Em meio a esse cenário de instabilidade e mudanças na política e economia nacional,

fomos a campo com o questionamento sobre a autonomia municipal para formular e

implementar a política de assistência social. Assim, nos debruçamos sobre os municípios de

Alvorada, Viamão e São Leopoldo, buscando observar como vem se desenhando a

implementação da política de assistência social a nível local após as mudanças trazidas pelo

novo governo Federal.

A escolha desses municípios deveu-se ao fato de que se buscou diferentes cenários do

ponto de vista socioeconômico, escolhendo São Leopoldo como um município desenvolvido

do ponto de vista socioeconômico, que apresenta, no entanto, um histórico recente de

implantação das ações de assistência social, e Alvorada e Viamão como municípios de baixo

desenvolvimento socioeconômico, mas com uma trajetória de implantação dos serviços

iniciada ainda na década de 1990. Abaixo os quadros apontam o PIB per capita dos

municípios, assim como, o estágio de implementação do SUAS.

Quadro 1 – PIB per capita a dos municípios pesquisados

Municípios PIB per capita

Alvorada R$ 7.853,42

São Leopoldo R$ 19.442,30

Viamão R$ 9.217,69

14

Fonte: as autoras, a partir de dados do IBGE cidades.

Quadro 2 - Caracterização dos municípios quanto à adesão ao SUAS

Mês/ Ano

adesão SUAS

Número de

CRAS em

2013

Número de

CREAS em 2013

Número de funcionários CRAS em

2013

Número de

funcionários CREAS em 2013

IDCRAS – Censo SUAS 2011

Secretaria/ Departame

nto em 2013

Viamão Ago./05 Cinco Um 169 33 0.20 Secretaria conjunta

Alvorada Ago./05 Cinco Um 196 48 0.83 Secretaria conjunta

São Leopoldo

Ago./05 Cinco Um 196 59 0.63 Secretaria exclusiva

Fonte: as autoras, a partir de dados do CENSO SUAS 2011 e 2013.

As entrevistas foram realizadas dentre os meses de maio e agosto deste ano de 2018.

Foram entrevistados gestores de médio escalão, isto é, responsáveis pela administração da

política em nível local junto às Secretarias Municipais de governo, assim como, trabalhadores

implementadores. Procurou-se centrar as entrevistas com os responsáveis pelos setores de

vigilância socioassistencial, os quais realizam as atividades de monitoramento e avaliação das

ações ofertadas. Juntamente, com profissionais que tivessem participado/vivenciado grande

parte desses momentos de mudança que a política nacional nos trouxe nos últimos dois anos.

Diante desse cenário, investigamos como tem se dado a implementação do programa

Criança Feliz nos três municípios e como isso tem afetado a autonomia dos mesmos na

condução da política pública de Assistência social.

No caso de Alvorada, mesmo apresentando alinhamento partidário com cenário

nacional, o programa foi inicialmente rejeitado pelos trabalhadores, e não funcionou por

alguns meses mesmo após a pactuação. Criou-se uma comissão de profissionais tanto de

médio escalão quanto burocratas de nível de rua, que buscaram alertar o secretário sobre as

demandas do programa para a gestão municipal, pois apesar do Criança Feliz ter recursos

próprios, demandaria organização da gestão e deslocamento de profissionais locais, assim

como expressa o entrevistado:

O secretário não teve como dizer não ao programa, mas devido aos prazos da secretaria e do programa, perdeu o time do pedido e então

15

não estamos implementando. Mas vamos implementar esse programa, não sabemos como ainda… mas sabemos que teremos a resistência de muitos trabalhadores (ENTREVISTA 5).

Tomando o caso de Alvorada pode-se refletir a respeito do conceito de autonomia a

partir de dois eixos: a do município que pode dizer sim ou não ao programa, e nesse caso o

fator sócio-econômico pode ter pesado menos que a motivação política derivada do

alinhamento eleitoral (município e união do MDB); e no caso dos trabalhadores que ao

adquirirem conhecimento sobre o SUAS e as demandas sociais do município forçaram a

balança para o lado da negação ao programa. A implementação e concretização do programa

torna-se uma importante agenda de pesquisa para se analisar posteriormente como isso se

desenvolve.

No caso do município de São Leopoldo, atualmente governado por um partido de

oposição a gestão nacional - o PT, por uma decisão deliberada do secretário municipal não se

aderiu ao programa, sendo que as motivações parecem ter sido de cunho ideológico -

partidário.

O único caso de funcionamento do programa nos municípios analisados, foi em

Viamão. Governado atualmente pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, a

gestão local decidiu aderir ao programa e, segundo o entrevistado, funciona de maneira

estratégica nas ações da política de assistência social, em conjunto com a política de saúde,

por conta da interação com o Programa Primeira Infância Melhor-PIM14, assim como afirma

o entrevistado:

Sim, está bem forte aqui. Mas ele vem vinculado ao PIM, tanto que o nome dele ficou Criança feliz /Primeira Infância Melhor (ENTREVISTA 2)

Nesse sentido, há uma intersecção entre as políticas de saúde e assistência para

implementação do programa, de forma que a assistência social serve como principal

instituição de formalização financiadora e a saúde funciona como a implementadora por meio

das ações que já ocorriam com o PIM, assim como relata o entrevistado:

Entra dinheiro e vai para o PCF e daí é feita uma parceria junto com a saúde pras ações, pra pensar essas ações, mas na verdade a gente sabe que há uma força muito grande de dentro da saúde. A saúde é uma política muito mais sólida, estruturada, do que a da assistência. A assistência vem meio que no sentido de trazer o dinheiro e a saúde de dizer como vai ser feito” (ENTREVISTA 1).

14 O PIM é uma ação transversal, desenvolvida em 2003, de promoção do desenvolvimento integral na primeira infância. Desenvolve-se através de visitas domiciliares e comunitárias realizadas semanalmente a famílias em situação de risco e vulnerabilidade social, ligado a política pública de saúde. (SCHNEIDER, 2007)

16

No que diz respeito aos recursos destinados ao PCF, o entrevistado refere que além de

boas quantias, as quantias são de destinação exclusiva, não podendo ser remanejado para

outras áreas da política de assistência social de maior abrangência:

Ele vem com recursos específicos para o programa: bem gordinhos, diga-se de passagem. E a gente louco que viesse recursos para o resto das políticas, não é?!” (ENTREVISTA 1).

Fica evidente o quanto o programa é considerado central para o governo federal na

medida em que se compara seu orçamento e, consequentemente, recursos materiais e

humanos a sua disposição, sobretudo se comparado com o SUAS, que funciona como um

sistema integrado de ações voltadas a atender as famílias em situação de vulnerabilidade, e

igualmente ações voltadas à primeira infância. Conforme entrevistado:

O PCF tem camiseta própria, tem material gráfico, tem tudo que você puder imaginar. É a nossa “prima rica”, não é?! Claro que a gente sempre usa isso também como uma fórmula, uma estratégia de atingir a nossa população, melhorar as condições de vida, mas não posso te dizer que eu fico feliz com isso que eu acho que a gente ainda continua usando de subterfúgio para uma coisa que deveria ser específica pra a área da AS, para trabalhar os grupos de famílias, não só na primeira infância, mas em todas as fases. (ENTREVISTA 1).

A focalização do programa acaba por afastar o caráter intergeracional das ações de

superação da (extrema) pobreza, por essa razão é preciso que se mantenham em igual nível os

atendimentos à família em sua integralidade, como salienta o entrevistado:

Então, eu acho, assim, ótimo, tudo bem, a gente tem que investir na área da primeira infância, mas a gente não pode deixar tão descoberto o resto (ENTREVISTA 1).

Por fim, o entrevistado salienta que o programa não está sob a mesma coordenação,

possuindo não apenas orçamento próprio como equipe exclusiva para não concorrer com as

ações do SUAS na sua totalidade:

Assim, são coisas que funcionam separadas. O PCF tem uma coordenação própria aqui dentro do município e uma equipe própria para ele. Ele não faz parte das equipes do CRAS [...] Ele está dentro da região e tal, e funciona na parte física do CRAS, com salas que são para isso, para o desempenho deles, mas ele não tira técnicos para isso.” (ENTREVISTA 1).

No que diz respeito ao sentido normativo do programa, em que pese necessitar de

pesquisa aprofundadas sobre o tema, percebe-se pelos discursos de Marcela Temer,

embaixadora do PCF e primeira-dama da república, as ideias assistenciais e voluntaristas

voltando a figurar no panorama dessa política pública. Conforme as falas no momento de

implementação do PCF e do Programa Nacional de Voluntariado,

17

“Quem ajuda os outros, muda histórias de vida. Por isso fico feliz por colaborar com causas sociais do nosso país. [...] Meu trabalho será voluntário para sensibilizar e mobilizar setores da sociedade em torno de ações que possam garantir melhoria na vida das pessoas.” (informação verbal)15

“[...] devemos fazer uma ação solidária porque acreditamos que podemos mudar uma situação ou uma vida para melhor, a começar pela nossa própria vida. Quem é voluntário sabe que recebe de volta, em alegria, gratidão, amor, muito mais do que aquilo que doa.” (informação verbal)16

Assim, a partir dessa análise, tendo o PCF como centralidade dos investimentos e

atenção institucional de pactuação do governo federal com os municípios, se questiona se

houve de fato alguma mudança substancial no SUAS a partir do momento em que passa a

disputar legitimidade com outra concepção de assistência social.

A respeito dessa relação, os entrevistados relatam que ocorreram atrasos nos repasses

de verbas, prejudicando a implementação das ações do SUAS planejadas para o ano de 2017.

Entretanto, o montante dos repasses federais se mantiveram estáveis, assim como aponta um

entrevistado do município de São Leopoldo:

Nós estávamos com repasses de 2016 que ainda não tinha vindo 2017, super atrasado, e tu tens que considerar outro componente, quando tu reduz a arrecadação, que o governo federal tá fazendo isso, tu reduz automaticamente o FPM (fundo de participação dos municípios) então a demanda aumenta, mas diminui a receita, é uma cadeia. Nós tínhamos aprovado já a construção da casa, mas por outro lado tivemos um pouco menos de azar, é que no final do ano eles pagaram os atrasados de 2016 e boa parte de 2017, um desafogo em dezembro do ano passado. (ENTREVISTA 3)

Dado o cenário de aumento da demanda por proteção social, tendo em conta o

incremento dos índices de pobreza e situação de rua, os municípios avaliam a necessidade de

aumento na oferta de serviços. Entretanto, com a realidade de crise, os gestores comemoram

a manutenção dos serviços já prestados, assim como indicam os entrevistados:

Impactou no sentido de que aumentou a demanda, mas o serviço, a oferta continua a mesma. (ENTREVISTA 2)

[...] o prefeito fez questão de nos dizer que nós não vamos diminuir nenhum serviço, não vamos fechar nenhum serviço. A gente pode não fazer a ampliação deles ou criar novos serviços, mas que a gente vai fazer a manutenção e tentar qualificar o máximo possível que está aí, dos serviços que nós temos. (ENTREVISTA 1)

15 Discurso de Marcela Temer no dia 5 de outubro de 2016 para lançamento do Programa Criança Feliz.16 Discurso de Marcela Temer no dia 28 de agosto de 2017, Dia do Voluntário, para o lançamento do Programa Nacional de Voluntariado.

18

No caso de Alvorada, os trabalhadores ressaltam alguns avanços nos últimos anos

relacionados, principalmente, com a realização de concurso para técnicos de nível superior,

necessários para completar as equipes nas unidades de atendimento, assim como, cargos na

gestão, como no M&A e na vigilância sócioassistencial. Conforme as entrevistas, percebe-se

que com tal concurso o município conseguiu avançar rumo a uma maior institucionalização

da política de assistência,

Sim! Faz um ano que eu estou aqui.[...]. Chamaram uns 12 técnicos (no concurso)[...] assistente social, psicólogo , técnico social. [...] Eu acho que educador social não, teve processo seletivo [...] porque estava vigente o do educador social [...] Teve até uma moça que foi chamada em 2017 [...] 2015 eu acho que foi (o concurso). (ENTREVISTA 5)

De modo geral mantiveram-se os serviços sendo prestados pela rede pública

inicialmente, entretanto, os problemas de administração interna da secretaria, acarretaram na

interrupção da oferta por parte dos CRAS no ano de 2017 (um semestre), como pode-se

observar a partir do entrevistado:

Essa morosidade do processo aqui na prefeitura de alvorada é absurdo. A gente entende que tem que ser super organizado, e tem o rito “Ah licitação é 6 meses” enfim, mas fica um ano para orçar. Mas aí são problemas de gestão interna [...]E lá eles entendem que se tu tem dinheiro e não está gastando o porquê que tu precisa mais[...]Não, o nosso Serviço de Convivência (e Fortalecimento de Vínculos). Primeiro e segundo trimestre não foi executado, em função de uma série de questões de faltas, lacunas ne...era material, recursos humanos, até que recursos humanos nós tínhamos. Mas né, a questão dos materiais, e lanche. (ENTREVISTA 5)

Os entrevistados ressaltam as dificuldades que são enfrentadas não apenas em termos

de recursos materiais, mas também em relação a gestão dos locais públicos. Não há fluxos

padronizados de atendimento nas unidades públicas de atendimento e, com isso, os

funcionários têm seu desempenho prejudicado na troca de local de trabalho. Isto prejudica

também o público atendido pela unidade, como revela o entrevistado:

Porque eles também, apesar de serem concursados, têm uma grande rotatividade entre os serviços. Ele está no CRAS Umbu, daqui um pouco ele pode estar no Santa Bárbara, aí chega lá no Santa Bárbara e esse trabalho é de outra forma né. O ideal é que se padronize. (ENTREVISTA 5)

A partir das entrevistas fica claro que apesar de alguns problemas na implementação

das ações, em geral os municípios não sofreram modificações em termos de financiamento.

As dificuldades relatadas pelos entrevistados já vinham sendo observadas ao longo do

período de implementação da política. Entretanto, os municípios atentam para o fato de que

19

cortes estão anunciados para 2019 e seria em uma proporção de mais de 90%, como relata o

entrevistado:

É que quando se previu a lei orçamentária de 2018, a polêmica era de que teria uma redução de 92% no corte de assistência, que efetivamente, pra nós, não chegou a esse número. Porque quando a gente foi fazer o Plano de ação [...] fazendo a comparação com o ano anterior esses valores continuaram muito semelhantes, não veio esse corte [...] Não! Agora o orçamento de 2019 a gente não sabe como vai ser garantido, mas tu trabalha com base nesse valor que vem no Plano de Ação. (ENTREVISTA 5)

Ademais, apesar da continuidade do financiamento, a incerteza do cenário político

atual acaba por desmotivar os trabalhadores na gestão da política, assim como expressa esse

entrevistado: “ Nem é não priorizar, é desmontar. (ENTREVISTA 3)”. Muitas vezes, se veem

com pouca perspectiva de planejamento do futuro das ações:

Mas aí depois nos tornamos secretaria e de lá pra cá entrou em um processo de ampliação, de crescimento, de fortalecimento, mas nestes últimos anos, com todo o problema que está acontecendo a nível nacional a gente tem sentido muito uma desmobilização dentro da secretaria. Ah, gente, dá uma tristeza. (ENTREVISTA 1)

Nós temos um problema que é com a equipe de RH , criou um descrédito muito grande, com esse esvaziamento que ocorreu nesse período, e pra gestão se tu não criar um clima motivacional nos CRAS de ampliação de serviços, fizemos essa avaliação ano passado para um processo de planificação para este ano que se notou isso, os CRAS estão muito mais em atendimento individual clínico que de fato o PAIF define. (ENTREVISTA 3)

Concretamente as gestões locais estão em um processo de aperfeiçoamento e até

ampliação das ações municipais de assistência social, embora esse cenário dependa quase

exclusivamente das ações e investimentos locais. Esse cenário, acaba por permitir que

oscilações nas formas de compreender a política pública influenciem em sua forma de

implementação, como fala os entrevistados:

Hoje a nossa gestora vem da área da saúde, então, a terminologia que ela usa não é de usuário, mas de paciente. Então, seguidamente vem um pedido de cadeira de rodas, de muleta, para nós. Isso é muito triste de se ver porque a gente já tinha feito um grande avanço nesse sentido.. (ENTREVISTA 1)

[...] é um município de característica bem carente, até a população mesmo. Não se tem essa visão da política de assistência e não tem esse caráter mais profissional. Tanto que as instituições, que nós temos que são mais fortes, a maioria delas ou ta vinculada à igreja católica, igrejas de uma forma geral, evangélicas, católica e, normalmente, elas vêm de Porto Alegre. Elas têm serviço aqui, mas a base é em Porto Alegre. (ENTREVISTA 2)

20

Dessa maneira, como demonstram os entrevistados, juntamente com enfraquecimento

da compreensão da política por parte do Estado, proporciona-se o protagonismo do setor

privado a partir das entidades sociais, o que dificulta ainda mais o controle das ações que

estão sendo ofertadas:

É claro que aumentou os serviços, aumentou tudo. A nossa rede de parceria, rede privada, é bastante grande, absorve um bom volume, mas tem algumas coisa como o atendimento a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade extrema e população de rua. Infelizmente a rede privada ainda é seletiva, nós criamos uma casa de acolhimento, porque é seletiva, principalmente pela questão da dependência química, isso é pesado, isso é custo, mas tem que fazer. (ENTREVISTA 5)

Então, todos nós sabemos que a assistência é o berço do clientelismo. A gente comprou uma briga aqui, era demanda de vereador, mas foi cortado na raiz, é fácil ficar 4 anos fazendo de conta que faz gestão cedendo a qualquer pedido. Mas, o fato de ter passado pelo conselho, ter acompanhado o processo da conferência de 2003 que deu o desenho do SUAS 2004, os conselhos, 2005 o SUAS, 2006 a NOB RH, que eu ajudei a eleger/redigir, eu queria que aqui fosse Secretaria de Assistência Social, mas acabaram colocando Secretaria de Cidadania e inclusão Social, mas tudo bem, passou. (ENTREVISTA 3)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os achados do campo demonstram que o SUAS está enfrentando um período de

resistência, dados os cortes federais e a priorização ao PCF. Esse processo por se recente

ainda não demonstrou impactos em profundidade. Percebemos que o processo anterior de

construção do SUAS sustentado em maior coordenação federal, em que pese ter

aparentemente cerceado a autonomia local para formular a política pública, produziu efeitos

de autonomização, pois os trabalhadores da ponta e gestores de médio escalão ganharam

experiência e conhecimento sobre o sentido e funcionamento da política pública de forma que

influenciam atualmente nos destinos da mesma. Entretanto, o enfraquecimento do sentido

principal da política de assistência social: “garantir direitos fundamentais para todos”, acaba

por ser colocado em perspectiva, junto com as incertezas as quais rodeiam tanto as ações na

gestão, quanto, consequentemente, os serviços prestados na ponta.

Como sugere Castro (2010, p.47), “não é a tarefa em si o que define o seu conteúdo

assistencialista ou não”, resta-nos apreender o conteúdo das ações vinculadas à proteção

social à luz do momento histórico, sem perder de vista a perspectiva sobre as condições

socioeconômicas e políticas que lhes sustentam. Desta forma, o PCF com sua centralidade

para o governo Federal, em termos de recursos humanos e materiais destinados para essa

ação focalizada, comporta-se ainda como uma incógnita para as gestões. Ademais, somado ao

21

cenário de crise alteraram-se questões econômicas e sociais que afetaram diretamente a

política de assistência social nacional e local. O aumento do desemprego e informalidade no

trabalho seguido do incremento significativo do número da população de rua, desafiam

novamente as gestões nacionais e locais de assistência social. E a implementação e

concretização do PCF em específico, e do SUAS, em geral torna-se uma importante agenda

de pesquisa para se analisar posteriormente como isso se desenvolve.

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22

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