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INSTITUIÇÕES E POLÍTICAS DE COMBATE À POBREZA NO BRASIL: CONFRONTO ENTRE MODELOS EMERGENTES DE POLÍTICAS SOCIAIS DOS GOVERNOS FHC, LULA E DILMA
Adriana Aranha, Maria Rita Loureiro e Fernanda Lima-Silva
ResumoUm novo ciclo de políticas públicas se iniciou no Brasil a partir da Constituição de
1988. O País apresentou avanços significativos, decorrentes do crescimento econômico
combinado com inclusão social que contribuíram para a redução da pobreza e
desigualdade, principalmente nos anos recentes. Impactos positivos alcançados pelos
programas brasileiros chamaram atenção de diversos países e influenciaram a
implantação de novos modelos emergentes de políticas sociais, principalmente na área
de combate à extrema pobreza e a fome. Esse trabalho consiste na análise das políticas
sociais voltadas à redução da pobreza no país, efetuados pelos governos de Fernando
Henrique Cardoso (FHC), Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, comparando-as
tanto no plano institucional, quanto no plano das orientações que as presidiram.
Palavras-chaves
Pobreza, Welfare State, Políticas Sociais, Capacidades Estatais,Democracia
I- INTRODUÇÃOApós Constituição de 88, o Brasil passou por um novo ciclo de políticas públicas. Na
área de políticas sociais, a partir dos anos 2000 até muito recentemente, o País
apresentou avanços significativos, decorrentes do crescimento econômico combinado
com inclusão social que contribuíram para a redução da pobreza e desigualdade
(LINDERT, 2007; MONTEIRO ET AL.,2009; BARROS, 2010; PAES-SOUSA, 2013).
Além disso, os programas brasileiros inaugurados na área social tornaram-se referência
internacional graças aos resultados alcançados. A taxa de desnutrição foi reduzida em
cerca de 62%, passando de 12,5%, em 2003 para 4,8% em 2008. A de pobreza
decresceu 56%, caindo de 35,8%, em 2003, para 15,9%, em 2012. Embora o país ainda
se mantenha entre um dos mais desiguais do mundo1, o índice de Gini passou de 0,597,
1 Em 2012, 10% da população mais pobre se apropriava de 1,1% da renda, enquanto os 10% mais ricos se apropriam de 41,9% da riqueza gerada no país (IPEA, 2012).
1
em 2000, para 0,507 em 2011, ou seja, teve uma queda de 18%, a maior nos últimos 30
anos.
Levando em conta este contexto, este artigo consistirá de análise das políticas sociais
voltadas à redução da pobreza no país nos governos de Fernando Henrique Cardoso , do
Partido da Social Democracia Brasileira (doravante PSDB), bem como de Luís Inácio
Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT),
comparando-os tanto no plano institucional, quanto no plano das orientações que as
presidiram. A pergunta que orientará a análise comparativa é a seguinte: há diferenças
significativas entre estes governos em relação ao grau da institucionalização das
políticas analisadas e à orientação escolhida quanto aos princípios de justiça social e
eficiência econômica ou de administração da escassez (Santos, 1987)?
O objetivo desta sistematização é conferir a validade ou não das afirmações frequentes
de que as políticas de combate à pobreza dos governos comandados pelo PT são
desdobramentos de políticas já iniciadas no governo FHC e que a diferença entre eles é
de caráter apenas quantitativo. Com vistas a responder à pergunta de pesquisa, foram
selecionadas para a análise políticas voltadas ao enfrentamento à pobreza, através dos
Programas de Segurança Alimentar e Nutricional, de Transferência de Renda e de
Assistência Social.
A hipótese é que os governos comandados pelo PT, dada a nova correlação de forças
entre atores políticos, alteraram qualitativamente as orientações que pautaram as
escolhas efetuadas para combater a pobreza e, por isso, promoveram a construção de um
novo aparato institucional (órgãos, legislação, base de dados, sistemas de informação e,
principalmente, recursos financeiros) para concretizar tal orientação. Essa hipótese não
implica desconhecer que a trajetória das políticas não é linear, podendo ocorrer avanços
ou recuos, tanto em termos temporais como na continuidade de diretrizes, mesmo entre
governos do mesmo partido.
Do ponto de vista teórico, o trabalho se ancora em dois referenciais. De um lado, aquele
trazido pelo institucionalismo, envolvendo as relações entre estrutura institucional e
ação política e levando em conta que as instituições importam, mas não explicam
completamente os fenômenos políticos. Assim, a análise supõe que as instituições
influenciam os resultados, mas também exprimem a dinâmica entre atores políticos em
2
luta, orientados por interesses e valores distintos. (IMMERGUT, 1998; STEINMO,
2001; 2008).
De outro lado, considerando que as políticas sociais e os modelos de Welfare State
adotados pelos países refletem diferentes visões de igualdade, justiça e solidariedade e
ainda de nível de responsabilidade estatal na garantia do bem estar social, o presente
trabalho se remete também à discussão sobre os dilemas entre princípios de justiça e de
eficácia econômica, para melhor entender as escolhas efetuadas pelos governos bem
com as decisões relativas ao arranjo institucional construído (SANTOS, 1987). Como
já se indicou, há contradições relativas ao ideal de igualdade e estas podem, em alguns
momentos, se polarizar entre, por exemplo, a igualdade de resultados que buscaria
critérios igualitários para a distribuição de recursos e a igualdade de oportunidades que
procuraria respeitar as diferenças e legitimar o tratamento desigual aos desiguais.
(DRAIBE, 1995). Assim, será retomada, ainda que brevemente, a reflexão filosófica de
Amartya Sen (1999), que, partindo da crítica ao utilitarismo econômico e das
formulações de John Rawls (1971), propõe uma teoria da escolha social e incorpora
reflexões filosóficas sobre critérios de justiça e da eficiência econômica para a análise
da tomada de decisão em políticas públicas.
Do ponto de vista metodológico, o estudo será efetuado por meio de análise comparada
de casos (BOHN, 1996) em que as unidades a serem comparadas serão o conjunto
formado por aquelas políticas em três momentos distintos: governo FHC, governo Lula
e governo Dilma. A pesquisa se desdobrará em etapas, sendo que na primeira serão
analisados separadamente cada uma dessas políticas e em seguida, extraído um traço
comum que as unifica em termos de orientação geral. Também se procurará mostrar as
relações entre o tipo de orientação mais voltada para a eficiência econômica do
programa ou, ao contrário, para atender ao princípio de justiça social e as escolhas
relativas ao arranjo institucional. Por fim, cabe indicar que modelo analítico que
estrutura a relação entre as variáveis se encontra, todavia, em fase de elaboração.
Ao final, teceremos uma breve consideração do momento atual do Brasil e a Presidência
de Michel Temer, iniciada em meados de 2016.
3
II- BREVE DISCUSSÃO SOBRE O WELFARE STATE NA ATUALIDADE2
O debate global sobre a crise do welfare state inicia-se nos anos 1980. Porém, a
importância desse debate aumentou recentemente, em parte, em virtude da deflagração
da crise econômica mundial em 2008 e das reformas de austeridade fiscal propostas pela
União Europeia para diminuir os efeitos desta crise no Velho Continente.
Que lições esse debate internacional sobre a crise do welfare state, desde a
década de 1980 até a atualidade, traz? As correntes teóricas divergem: para algumas o
quadro fatal é irreversível, para outras não. Contudo, o que estamos assistindo é que,
passados mais de 30 anos de crise, os Estados de Bem-Estar social continuam presentes
no século XXI, mesmo aqueles que sofreram modificações radicais. Afinal que crise é
essa? Parte da crise está no campo da explicação do próprio fenômeno social. Num
ambiente de constantes transformações e mudanças, adaptações são necessárias, afinal,
novas demandas sociais surgem com o aumento da complexidade da sociedade.
Temos um lado da crise que tem a ver com mudanças demográficas. Por
exemplo, é certo que o aumento da expectativa de vida da população aumenta a
demanda por serviços e consequentemente aumenta os custos, principalmente com a
área da previdência e da saúde. Ademais, os riscos sociais que o Welfare State tinha que
enfrentar no momento de sua expansão, no pós-II Guerra mundial, mudaram
radicalmente no século XXI: mercado de trabalho, demografia e composição das
famílias. Certamente, outros modelos teriam que ser pensados frente aos novos desafios
sociais surgidos. Com demandas crescentes, políticas mais complexas que pressupõem
desenhos mais ousados, e a crise fiscal, os governos deparam-se com uma equação
difícil de ser solucionada.
Para além dessas mudanças, existe no campo das políticas sociais, um constante
questionamento sobre a própria necessidade dessas políticas e, a cada problema e crise
enfrentado nessa área, coloca-se em cheque a continuidade delas. Então, essa crise
contribui para a emergência de argumentos a favor do Estado mínimo, que associa a
proteção social ao gasto público e não ao investimento e ao desenvolvimento. Aqui
encontram-se os debates ideológicos sobre qual é o papel do Estado frente a realidade
da pobreza e desigualdade social dos países.
2 Esta parte do texto está diretamente vinculada com a pesquisa da tese de doutoramento da autora Adriana Aranha, a ser defendida em 2019.
4
A dissociação entre a economia e a política social fragiliza os estudos das duas
áreas e aumenta a especialização e o insulamento destas disciplinas. Especificamente na
área social, a maioria dos estudos focam na questão da eficácia econômica ou na
avaliação dos resultados e estão mais voltados para análises de programas isolados ou
para análises organizacionais (DRAIBE e RIESGO ,2011; MKANDAWIRE,2011,
KERSTENETZKY,2011).
Portanto, relacionar o sistema de proteção social num quadro mais amplo de
estudo integrado sobre o Estado parece ser um caminho promissor quando se quer
observar a dinâmica dos efeitos das políticas sociais sobre o desenvolvimento
econômico e não só o contrário, como tradicionalmente se faz. Amplia o olhar sobre os
sistemas de políticas sociais que, para além das bases materiais, podem promover e
facilitar o crescimento econômico (MKANDAWIRE, 2001). Esse foco vem sendo
divulgado pelo sistema das Nações Unidas há mais de quarenta anos e teve um papel
importante na defesa da tese de que a política social constitui condição do
desenvolvimento econômico. Encontram-se aqui a ampla divulgação de conceitos como
desenvolvimento social, direitos sociais e humanos, desenvolvimento humano, inclusão
social e coesão social (DRAIBE e RIESGO, 2011).
O enfoque integrado também tem centralidade em outras matrizes analíticas que
tratam dos desenhos dos programas sociais, vinculando-os ao desenvolvimentismo,
produtivismo ou inserção produtiva. Aqui encaixam-se visões distintas, desde àquelas
que subordinam as políticas sociais às políticas econômicas, até as que se centram no
desenvolvimento efetivo das pessoas3. Mas ambas vinculam os benefícios e
beneficiários das políticas sociais às dinâmicas econômicas de inserção ao mercado de
trabalho ou ao retorno econômico.
Já no campo da teoria do capital humano4, temos as contribuições de Amartya
Sen (1999), também com um enfoque integrado. Para este autor, os programas sociais
devem ser concebidos como investimento em capital humano e social, resultando na
3 Segundo DRAIBE e RIESGO (2001), são diversas manifestações da concepção de bem-estar vinculado a inserção produtiva e a maioria enfatiza a redução dos riscos sociais mediante a educação e a capacitação, com o objetivo de transformar os cidadãos de meros receptores passivos de benefícios sociais em pessoas independentes, ativas, co-produtoras da sua própria proteção social e são muito vinculados aos partidos social-democratas dos anos 90,em especial à “terceira via”, tais como: Productivist Welfare, Workfare or Welfare to Work, New Welfarism (Taylor-Gooby, 1998 y 2001), Positive Welfare (Giddens, 1998) ou Active Welfare (Vandenbroucke, 2005).
4 Diverge de posições dentro desse campo pouco críticas do crescimento e de seus efeitos sociais e ambientais. (DRAIBE e RIESGO,2011)
5
ampliação das capacidades humanas para participar com liberdade do processo
produtivo.
Cohn (1995) já observava que, em contextos onde se encontram a necessidade
de estabilidade e ajustes econômicos de um lado e, de outro, a democracia política e
democracia social, há sempre uma entrelaçada discussão entre Estado/sociedade e
Estado/mercado, dentro dos preceitos neoliberais com a intenção de reformar o Estado
tendo como pressuposto que a lógica do mercado imprime mais competência,
dinamismo e racionalidade às sociedades modernas.
Portanto, o desafio das políticas sociais sempre foi compatibilizar
desenvolvimento e crescimento econômico com democracia social. Por distintas que
sejam as correntes intelectuais, além de apontar a questão da equidade, não perdem de
vista a relação entre as modernas instituições da política social e o processo de
desenvolvimento e modernização capitalistas. A discussão sai da esfera da explicação e
passa pela definição de que Estado de Bem-Estar queremos?
O desenvolvimento das políticas sociais dos países demonstra as diversas visões
de igualdade e justiça existentes. Há algumas contradições na dimensão do ideal de
igualdade que, em alguns momentos, se polarizam. A igualdade de resultados buscaria
critérios igualitários para a distribuição de recursos, e a igualdade de oportunidades
procuraria respeitar as diferenças e legitimar o tratamento desigual aos desiguais.
(DRAIBE, 1995).
As políticas sociais são implantadas nos países através dos Sistemas de Bem-
Estar Social que vêm sendo delineados historicamente, de acordo com a especificidade
política e econômica de cada país e são permeados por distintas concepções de justiça,
igualdade, liberdade e solidariedade. Os modelos de welfare state diferem de país para
país e estão diretamente relacionados à responsabilidade estatal, na garantia de um certo
patamar mínimo de bem-estar social dos cidadãos. (DRAIBE, 1995).
ESPING-ANDERSEN (1991) desenvolveu uma tipologia que classifica o
welfare state em três tipos. O primeiro tipo pode ser denominado de residual ou liberal.
Neste, a intervenção do Estado tem um corte seletivo, um caráter emergencial e um
tempo determinado. O segundo denomina-se meritocrático-particularista ou
conservador. As demandas são respondidas por um sistema que é seletivo, considerando
o mérito e a contribuição das próprias pessoas beneficiadas. O terceiro tipo é o welfare
6
state institucional-redistributivista ou social-democrático. Esse modelo está pautado na
compreensão de que o mercado, sozinho, não é capaz de absorver e alocar recursos
suficientes para dar respostas às demandas sociais, oriundas das contradições do próprio
mercado. Tal padrão de welfare state trabalha as políticas sociais como direito, os bens e
serviços sociais tendem a ser produzidos e distribuídos gratuitamente pelo Estado,
através de critérios mais universais de inclusão dos beneficiários.
Num trabalho de grande fôlego sobre a literatura da área, Marta Arretche (1995)
analisou autores que explicaram a origem e o desenvolvimento do welfare state. Ao
analisar a experiência latino-americana, a autora aponta que esse fenômeno em países
em desenvolvimento é pouco investigado. Trabalho semelhante feito por Thandika
Mkandawire (2011), inspirado na Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social de
Copenhague5, também aponta o fosso entre o trabalho teórico sobre os Estados de bem-
estar social nos países da Organização de Cooperação Econômica e Países do
Desenvolvimento (OCDE) e a literatura sobre políticas sociais nos países em
desenvolvimento. Registra-se aqui uma deficiência na literatura da área nos países em
desenvolvimento.
Segundo MKANDAWIRE (2011) a pouca teorização da política social nos
países em desenvolvimento pode ser atribuída ao fato de que os autores que trabalham
na vanguarda das teorias do estado de bem-estar social nos países da OCDE raramente
prestaram atenção às experiências da política social nos países em desenvolvimento,
muitas vezes por não aceitarem suas premissas normativas ou considerarem escassos os
dados para estudos comparáveis. Outro fator desse “gap” na literatura é o fato dos
estudos do desenvolvimento do estado do bem-estar social serem mais lineares. A
institucionalização do Estado de bem-estar social é vista como um processo histórico de
longo prazo, a aprendizagem se dá num processo de erros e acertos. As experiências dos
regimes de bem-estar nos países mais avançados podem contribuir bastante para os
países em desenvolvimento.
Os estudos dos países em desenvolvimento são mais recentes e a maioria
relacionam-se a programas ou áreas específicas ou ao estudo organizacional e de
5 Realizada em 1995 uma das resoluções dessa Conferência insistiu para que o desenvolvimento social e o desenvolvimento econômico não fossem separáveis, mas mutuamente constitutivos e que, embora as situações dos países em desenvolvimento e os países desenvolvidos fossem diferentes, as questões sociais se desenvolvem em torno dos mesmos assuntos fundamentais de bem-estar econômico e justiça social. (Mkandawire,2011)
7
resultados. Poucos são os estudos sobre sistemas de proteção social como um todo e,
menos ainda, os relacionados ao desenvolvimento econômico. Isto torna o estudo desses
países ainda mais complexo, pois além da convivência com os desafios atuais e suas
instituições democráticas pouco consolidadas, como é o caso observado recentemente
no Brasil, existe pouco acúmulo analítico sobre a trajetória de suas políticas sociais.
A desconexão entre a política econômica e a política social tem sido uma
característica da literatura voltada para os países em desenvolvimento. MKANDAWIRE
(2011) acredita que mais recentemente, a crise do Estado de bem-estar aproximou os
países desenvolvidos e em desenvolvimento, e isso pode contribuir para um diálogo
entre as literaturas da área. Além de ter aumentado iniciativas inovadoras na área de
Políticas Sociais nos países em desenvolvimento em suas novas democracias.
Vale aqui voltar às contribuições de Arretche (1995) sobre a emergência dos
Estados de Bem- Estar. Para ela, pode-se agrupar os estudos em dois grandes grupos: os
que consideram que os condicionantes da emergência e desenvolvimento do welfare
state são predominantemente de ordem econômica e os que consideram que os
condicionantes são predominantemente de ordem política.
Esse trabalho comunga com esse último grupo e destaca para efeito desse
trabalho duas linhas. Uma, do autor já apresentado aqui, Gosta Esping-Andersen, cuja a
ideia é de que os diferentes welfare states resultam da capacidade de mobilização da
classe trabalhadora no interior de diferentes matrizes de poder
A outra corrente apresentada por Arretche (1995) integra os autores que
consideram condicionantes para a emergência do welfare state o resultado de
configurações históricas particulares de estruturas estatais e instituições políticas. Este
grupo é orientado pela análise neoinstitucionalista. As autoras mais importantes são
Theda Skocpol, Ann Shola Orloff, Margareth Weir. A partir das influências de Weber
sobre a autonomia do Estado perante a sociedade civil, foi possível analisar a ação das
burocracias públicas, indicadas ou eleitas, como variável independente, quetambém
formulam e perseguem objetivos próprios.
Em relação ao Brasil, o sistema nacional de proteção social, após a
redemocratização, caracterizava-se pelo alto grau de centralização, superposição de
programas, de beneficiários e de órgãos, tanto internamente quanto entre esferas
diferentes de governo, sem o oferecimento adequado de serviços públicos e, em muitos
8
casos, sendo oferecidos pela iniciativa privada lucrativo e/ou filantrópica, além de um
sistema desarticulado e fragmentado. Nas palavras de Cohn (1995: 3):
“ Em resumo, herda-se no presente um enorme aparato institucional voltado para ações
na área social e que, tomado em seu conjunto, na prática acabam por reproduzir as
desigualdades sociais ao invés de se traduzirem em políticas sociais compensatórias das
desigualdades originadas no mercado. (COHN,1995, p.3)
III- INSTITUIÇÕES, MUDANÇAS INSTITUCIONAIS E IDEOLOGIA
Do ponto de vista teórico, este trabalho se insere na problemática das relações entre
estrutura institucional e ação política. Reconhece-se a importância analítica e teórica da
emergência do movimento de “redescoberta” do Estado, a partir dos anos 1980, quando
este foi trazido para o centro da análise política, constituindo-se como objeto autônomo
de estudo. Com a redescoberta do Estado, a discussão da teoria política - antes centrada
nos processos que se desenrolavam na sociedade, vistos como determinantes das
decisões governamentais, tais como luta de classes, competição e conflitos entre grupos
de interesse - desloca-se para as instituições e atores estatais, para o poder e a ação do
Estado. Com ela, surge não só ampla literatura sobre políticas públicas, mas também
sobre o impacto das instituições nos resultados das políticas públicas.
O pressuposto básico do neo-institucionalismo é que as instituições afetam o
comportamento de atores sociais, ou seja, a ação social é determinada por instituições, e
não apenas pelo somatório das preferências, como advogavam os behavioristas
(IMMERGUT, 1998). Por meio de suas normas operativas, órgãos, legislações, sistemas
de informação e banco de dados, recursos financeiros, cultura organizacional, etc., as
instituições configuram um conjunto de regras formais e informais que influenciam na
capacidade de produção de políticas públicas dos Estados, na estratégia políticas dos
atores, etc.
Todavia, esta pesquisa almeja ir além da interpretação de que as instituições são
as únicas ou as principais influências nos resultados de implementação de políticas
públicas e nas configurações político-sociais. Ou seja, a presente análise se sustenta no
pressuposto teórico de que as instituições (concretizadas em leis, programas
governamentais, órgãos, orçamentos etc.) influenciam, mas também refletem a dinâmica
entre atores políticos em luta, orientados por interesses e valores distintos.
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Isto posto, nesta pesquisa optou-se pela utilização da lente teórica do neo-
institucionalismo histórico, uma das abordagens mais influentes na ciência política
contemporânea, que emerge quando diversos autores passaram a analisar o papel do
Estado no desenvolvimento econômico em países de industrialização tardia na Ásia e
América Latina (SIKKINK, 1991; EVANS, 1995 e 2004), nas revoluções sociais
(SKOCPOL,1979), entre outros temas. Esta abordagem é apropriada para pesquisadores
interessados em entender e explicar eventos e resultados reais, pois nela resultados
particulares não podem ser compreendidos sem o exame de como as instituições
influenciaram ou estruturaram o processo político (STEINMO, THELEN ET AL, 1992;
STEINMO, 2001).
Portanto, para pesquisadores desta abordagem, explicar processos decisórios em
instituições demanda considerações sobre o indivíduo, o contexto e as regras, ou seja, é
necessário contextualizar, pois não existe possibilidade de saber a priori o que é mais
importante para explicar resultados políticos (STEINMO, 1963). Adicionalmente,
segundo Skocpol (1985), os processos decisórios governamentais devem considerar,
entre outros fatores, as características das instituições governamentais, do sistema
partidário e eleitoral, além das políticas adotadas anteriormente, que reestruturam o
processo político anterior: como a política cria políticas, estas também reelaboram a
política (feedback das políticas para política).
Emerge então um conceito caro a esta abordagem, a noção de path dependency,
que aponta para a importância da existência de legados políticos sobre escolhas
subsequentes (HALL; TAYLOR, 1996). Nesta visão, as mudanças, portanto, se dariam
apenas em momentos críticos (COLLIER; COLLIER, 1991), que são momentos de
significativa mudança, hipotetizados para produzir legados distintos, cujo tempo de
duração pode ser de anos ou décadas.
Adicionalmente, segundo Steinmo (2008), duas importantes agendas emergiram
na abordagem neoinstitucionalista histórica: mecanismos de mudança institucional e o
papel das ideias nas políticas e na história. Para o autor, a melhor maneira de se explicar
mudança institucional é trazer ‘ideias’ para a análise institucional, estas entendidas
como “soluções criativas para problemas de ação coletiva”. Portanto, a mudança
institucional ocorre quando atores poderosos têm habilidade e vontade para alterar as
instituições em favor de um novo ideário, seja por mudanças incrementais internas ou
externas - como eleições. Considera-se, em suma, que o ideário do neo-
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institucionalismo histórico, considerando seu enfoque na importância das instituições e
das ideias no resultado político, constituem referencial adequado para lidar com a
proposta desta pesquisa.
VI- A CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE COMBATE À POBREZA NO BRASIL
IV. 1. O período FHC: da Constituição cidadã à contenção de gastos sociais
O Programa Comunidade Solidária foi instituído logo no início do governo Fernando
Henrique Cardoso, em 1995, para o enfrentamento da fome e da miséria. O programa
foi presidido pela então primeira-dama do país, Ruth Cardoso, e era vinculado
diretamente à Casa Civil da Presidência da República.
Seu objetivo era coordenar ações governamentais dirigidas à parcela da população que
não dispunha de meios para prover suas necessidades básicas e, em especial, o combate
à fome e à pobreza. Seus objetivos específicos: coordenação e a melhoria da gestão de
programas governamentais; articulação entre os diferentes níveis de governo;
focalização das ações em áreas e populações mais necessitadas; incentivo a novas
formas de parceria entre governo e as diversas organizações da sociedade. Para isso, o
programa contava com seis linhas de ação: redução da mortalidade na infância;
suplementação alimentar; apoio ao ensino fundamental; apoio à agricultura familiar;
geração de emprego e renda e qualificação profissional e desenvolvimento urbano.
O diagnóstico que serviu para guiar o programa foi elaborado pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) através do Mapa da Fome em março de 1993, que
estimava em 32 milhões o número de indigentes no país, mais de 20% da população
que, em 1990, era de aproximadamente 147 milhões de pessoas.
A responsabilidade de execução do programa, que abrangeu 1.369 municípios, ficava a
cargo do Governo Federal e da Sociedade Civil. E a instância de participação era um
Conselho Consultivo, formado por 10 ministros de Estado e 21 personalidades da
sociedade civil, escolhidas pelo Presidente da República, e por uma Secretaria-
Executiva.
Em relação a criação de institucionalidades, o que se observa nesse período é a extinção
de órgãos na área social. Segundo Peres (2005), no momento da criação do Comunidade
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Solidária foram extintos o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA), a
Legião Brasileira de Assistência (LBA), e dois outros importantes órgãos para a
proteção e assistência sociais, o Ministério do Bem-Estar Social (MBES) e o Centro
Brasileiro para a Infância e a Adolescência (CBIA).
Na área de Assistência Social, em substituição aos órgãos de assistência social extintos,
foi criada a Secretaria de Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência
Social (SAS/MPAS). Em 1999, essa Secretaria passa a ser responsável pela
coordenação da Política Nacional de Assistência Social e pela normatização e
articulação das ações governamentais e não-governamentais no campo da assistência
social, apoiando técnica e financeiramente os Estados, os Municípios e o Distrito
Federal, com o nome de Secretaria de Estado da Assistência Social, SEAS, que
continuou vinculada ao Ministério da Previdência e Assistência Social.
Na área de Segurança Alimentar e Nutricional, extinguir um órgão como o CONSEA
foi acabar com a única iniciativa federal na área iniciada na década de 90. O CONSEA
surgiu a partir do Plano de Combate à Fome e à Miséria (PCFM), criado em abril de
1993 no Governo anterior, Itamar Franco, para articular as três instâncias de governo
(municipal, estadual e federal) e a sociedade civil na revisão dos programas federais
num projeto para o combate à fome e à miséria6.
A Lei Orgânica da Assistência Social n. 8.742/1993 (LOAS)7, é uma lei que foi
reapresentada e sancionada pelo presidente Itamar Franco, após ter sido vetada
anteriormente pelo Ex-Presidente Fernando Collor de Melo. Segundo Sposati (1995b), a
LOAS regulamentou os preceitos estabelecidos pela Carta Constitucional de 1988 à
seguridade social que rompem com o modelo tradicional de assistência social pautado
em entidades prestadoras de serviços ou filantrópicas na medida em que colocava a
assistência social no campo das políticas públicas. A LOAS constitui um sistema
descentralizado e participativo, com transparência e controle social.
6 Órgão de assessoramento ao Presidente, com a participação da sociedade civil e dos órgãos de governo que foi extinto em 1995. O conselho tinha a função de consulta, de assessoria e de indicação de prioridades ao Presidente da República deveria ser exercida por uma parceria entre ministros de Estado e personalidades de destaque na sociedade brasileira, identificadas com vários setores da sociedade civil, na sua maioria indicados pelo Movimento pela Ética na Política.
7 A partir da LOAS, a assistência social passou a ser direito do cidadão e dever do Estado (art. 1º): “Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”.
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Em suma, o governo de FHC pautou-se principalmente pela agenda neoliberal, com
focalização de ações, descaracterização da assistência social enquanto direito social,
diminuição do papel do Estado no combate à pobreza e estímulo ao crescimento do
Terceiro Setor, responsabilizando a sociedade e a família pela área social.(Yazbek,1996;
Montaño,2003; e Silva et. al., 2001; Tessarolo, e. M., Krohling,A ,2011).
IV.2 O período Lula: De gasto social para investimento social
Já no primeiro ano do Governo Lula, em 2003, sob a égide do Fome Zero,
compromisso assumido pelo Presidente para zerar a fome, inicia-se a institucionalização
da área com a criação do Ministério Extraordinário de Segurança alimentar e Combate à
Fome (MESA), o Ministério da Assistência Social (MAS) e uma Secretária Especial de
Renda e Cidadania. Essa última, fruto de um Grupo de Trabalho de integração dos
programas de transferências de renda.
Passado o primeiro ano com uma ampla etapa de diagnóstico, formulação e
implantação de diversos programas surge, a partir de 2004, a necessidade de integração
da área social. Cria-se o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome com
o intuito de agregrar em um único órgão as políticas de segurança alimentar para a
população mais vulnerável, a política de assistência social e os programas de
transferências de renda.
Percebe-se claramente uma inflexão, tanto em termos de aumento exponencial
de recursos destinados à área, quanto ao tratamento mais sistêmico e duradouro frente à
complexidade dos problemas sociais a serem enfrentados. Criaram-se por exemplo dois
novos sistemas públicos, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e Sistema
Integrado de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). O conceito de investimento
social substituiu gradativamente o conceito de gasto social.
As mudanças de rota dos programas sociais também podem ser observadas na
tentativa de integração e institucionalização desses. Programas fragmentados e sem
integração ganharam uma densidade, não só na ampliação do número de pessoas
beneficiadas, como na qualidade e integração com outras áreas sociais, como foi o caso
dos Programas de Transferência de Renda.
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Na área da Segurança Alimentar sempre houve descontinuidade dos projetos
implementados, desarticulação entre os três níveis de governo, desintegração entre os
diversos setores e ineficiência administrativa. Contudo, ainda que existisse no Brasil
uma política de alimentação, ela caracterizou-se, predominantemente, como
fragmentada, emergencial, não prioritária e desarticulada. Apenas em
1993, esse tema ganha destaque no País devido à mobilização do movimento da
Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Com a implantação do
CONSEA – e com a realização da 1ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar no
Brasil ocorre uma ampla discussão no País sobre o tema, com notórias conquistas.
Várias iniciativas da sociedade civil foram consolidadas através de mais de sete mil
comitês de combate à fome implantados em todo o Brasil no período 1993-1994.
Porém, como indicado anteriormente, o CONSEA foi extinto na ocasião do lançamento
do Programa Comunidade Solidária.
Não obstante, a temática da segurança alimentar foi retomada com vigor no
governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, com o Programa
Fome Zero. A prioridade da segurança alimentar materializou-se na criação, logo no
início do Governo Lula, de três instâncias, diretamente ligadas à Presidência da
República e voltadas especificamente para a implementação de uma Política Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional, quais sejam: i) o Gabinete do Ministro
Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome - MESA -, ii) o Conselho
Nacional de Segurança Alimentar – CONSEA - que envolve representantes
governamentais e personalidades oriundas de organizações da sociedade civil, iii) uma
Assessoria Especial da Presidência da República de Mobilização para o Fome Zero.
As ações deste programa se enquadraram em quatro eixos articuladores. Cada
eixo tinha programas próprios, mas todos se integravam em uma mesma estratégia
macro, pois compreendia-se que nenhum deles, isoladamente, conseguiria atingir a meta
de zerar a fome.
O primeiro eixo, Acesso aos Alimentos, implementou ações diretamente
voltadas para a ampliação do acesso à alimentação pela população de baixa renda. A
principal delas foi a imediata instituição e rápida expansão de um programa de
transferência de renda, o programa Bolsa Família. O acesso foi também promovido pelo
remodelamento e ampliação do programa de alimentação escolar e pelo apoio à criação
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de equipamentos públicos, tais como restaurantes populares, cozinhas comunitárias e
bancos de alimentos.
O segundo eixo de atuação da Estratégia Fome Zero foi voltado para o
fortalecimento da agricultura familiar, que constitui a parte majoritária dos
estabelecimentos agrícolas e a principal responsável pelo fornecimento de alimentos ao
mercado doméstico. Logo no início do Fome Zero instituiu-se um Plano de Safra
específico para essa categoria de agricultores englobando, de um lado, a ampliação do
programa de crédito já existente – o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (PRONAF). Trata-se de um programa de crédito exclusivamente
dedicado a esse tipo de agricultura, apoiando majoritariamente a produção de alimentos.
De outro lado, foi criado o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura
Familiar (PAA), um exitoso programa intersetorial que estabelece elos entre a oferta de
alimentos proveniente da agricultura familiar e a demanda por alimentos para
programas e equipamentos públicos (alimentação escolar, hospitais, distribuição gratuita
de alimentos, cadeias etc.) e também para a formação de estoques.
O terceiro eixo, de Promoção de Processos de Geração de Renda, desenvolveu
ações de qualificação da população de baixa renda no sentido de contribuir para a sua
inserção no mercado de trabalho. Foram desenvolvidas diversas parcerias nessa área
com iniciativas inovadoras de geração de trabalho e renda em economia solidária, apoio
às organizações que operam com Fundos Rotativos Solidários e Bancos Comunitários
levando financiamento solidário e disponibilizando recursos financeiros para viabilizar
ações produtivas associativas e sustentáveis.
No quarto eixo e último eixo, Articulação, Mobilização e Participação Popular,
foram firmadas mais de cem parcerias para a realização de campanhas de combate à
fome e de segurança alimentar e nutricional. Esse eixo também proporcionou a
educação cidadã por meio da mobilização e formação da cidadania.
Como resultados desta atividade, podemos destacar o fortalecimento e a criação
de fóruns e conselhos de segurança alimentar; criação de feiras itinerantes de agricultura
familiar e economia popular solidária; iniciativas de trabalho com indígenas,
quilombolas, mulheres, catadores e recicladores de materiais; estímulo à criação dos
consórcios de segurança alimentar e desenvolvimento local; monitoramento e controle
social do Bolsa Família e de outras políticas públicas; fortalecimento das políticas
territoriais; criação de núcleos de educação popular com as famílias beneficiadas pelo
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Fome Zero e em condições de vulnerabilidade social; mobilização de educadores e
famílias para a participação nas conferências de Segurança Alimentar e Nutricional e
processos de discussão e aprovação das leis da área.
Nesse eixo também encontravam-se os programas de proteção social às famílias
atendidas dentro do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), através da rede
proteção e promoção social. O Programa de Atenção as Famílias (PAIF) desenvolvido
nos Centros de Referências da Assistência Social – CRAS realiza atendimentos às
famílias, com orientação social e psicológica, identificação de demandas e
encaminhamentos para outros níveis de complexidade do sistema.
Por fim, também incluem-se aqui as ações de controle social dos programas. Destaca-se
o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, ligado diretamente ao
Presidente da República, composto por 57 conselheiros (38 representantes da sociedade
civil e 19 ministros de Estado e representantes do governo federal) e 28 observadores
convidados.
Foi realizado um diagnóstico da situação jurídico-institucional dos programas
que compõem o Fome Zero, que acabou contribuindo para a elaboração da Lei Orgânica
de Segurança Alimentar e Nutricional – LOSAN, promulgada em 2006. Esta lei foi
elaborada em conjunto com a sociedade, aprovada por unanimidade no parlamento
brasileiro e sancionada pelo Presidente. Ela institui o Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional – SISAN que, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS) e
do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), integra e organiza as políticas
desenvolvidas nos âmbitos federal, estadual e municipal. A Lei consolida as bases
institucionais para que todas as pessoas possam ter uma alimentação saudável,
acessível, de qualidade, em quantidade suficiente e de modo. Institui, também, de forma
permanente, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e
cria a Câmara Interministerial com papel de organizar e articular as instâncias
responsáveis pelo Sistema.
Em 2010 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 64, que inclui a
alimentação entre os direitos sociais, fixados no artigo 6º da Constituição Federal
Brasileira . Assim, temos no campo jurídico, um largo instrumento de garantia de todas
as ações integradas pelo Fome Zero. Agora, o direito à alimentação é um direito
constitucional no Brasil.
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Em relação à integração dos programas, um bom exemplo foi a transferência de
renda para as famílias do Bolsa Família, programa chave para o Fome Zero. A
integração com outras ações, como a saúde, a educação e a assistência social, passou a
ser o diferencial na implementação deste programa.
Outra conexão importante pode ser observada entre dois programas que
compõem a estratégia de enfrentamento da pobreza na área da segurança alimentar: o
fortalecimento da agricultura familiar e a garantia da alimentação para populações. Para
viabilizar o escoamento da produção agrícola familiar foi necessário um esforço de
integração entre setores e áreas de governo com diálogos setoriais dificultados:
desenvolvimento agrário, educação, nutrição, assistência social, trabalho e renda.
Todos estes programas e ações, além de apontarem para uma maior integração e
institucionalização das diversas políticas sociais, possibilitaram uma ação mais
afirmativa e integrada do Estado, voltada para as famílias.
O foco nas famílias, o olhar atento às especificidades dos territórios, a
coordenação e integração dos ministérios na concepção, planejamento, implementação e
monitoramento das ações, assim como no orçamento, contribuiram para ampliar a
inclusão social e a cidadania. Os dados apontam que houve a ampliação do acesso aos
alimentos, a expansão da produção e consumo de alimentos saudáveis, o aumento da
frequência escolar, a melhoria das condições de saúde e do acesso ao saneamento e ao
abastecimento de água e a geração de ocupação e renda.
Foi também fundamental neste processo a realização de duas Conferências
Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional, com ampla participação da sociedade
civil neste período. A 2ª Conferência, ocorrida em Olinda, em março de 2004, resgatou
um processo interrompido por dez anos, após a realização da 1ª Conferência, em 1994,
iniciando o processo que resultou na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e
Nutricional (LOSAN). A 3ª Conferência Nacional realizada em Fortaleza, em julho de
2007, aprovou princípios e diretrizes que nortearam a construção do Sistema Nacional
de Segurança alimentar e Nutricional.
Cabe destacar que todo este processo de participação popular resgatado com o
Fome Zero na área de Segurança alimentar e Nutricional, além do CONSEA Nacional,
possibilitou-se a criação de CONSEAS Estaduais em 26 Estados e no Distrito Federal,
dentre os quais 11 já aprovaram Leis Estaduais na área (LOSANs estaduais) e 16 têm
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Comissões de Direito Humano à Alimentação. Atualmente cerca 700 CONSEAs
municipais funcionam no País8.
IV.3 O Período Dilma: De investimento social ao foco na miséria .
Constrangimentos orçamentários e escolhas públicas
O Brasil sem Miséria é um programa social do governo federal brasileiro, criado na
gestão da presidente Dilma Rousseff. Lançado em junho de 2011, o programa tinha
como objetivo retirar da situação de pobreza extrema 16,2 milhões de pessoas que
viviam com menos de 70 reais por mês9, cerca de 8,6% da população. Ele integra ações
de desenvolvimento social para o público da extrema pobreza em três eixos principais
de intervenção: transferência de renda, acesso a serviços e políticas e inclusão
produtiva.
O público-alvo do programa é a camada mais pobre da população brasileira, que
vive em condições de extrema pobreza. A partir do momento que uma família estiver
participando do programa, ela passa a beneficiar-se de ações de inclusão produtiva - por
exemplo cursos profissionalizantes e encaminhamento ao emprego - e de acesso a
serviços públicos, como escolas, água encanada e escoamento sanitário. O Brasil Sem
Miséria aprofunda as ações para famílias extremamente pobres por meio da busca ativa
das famílias que ainda não acessaram o Programa Bolsa Família, bem como integra os
serviços aos benefícios e desenvolve atividades de inclusão produtiva no meio rural e
urbano.
IV.4 O período Temer: um golpe no percurso – Dos sistemas públicos à caridade- o
retorno da patronagem
O segundo mandato presidencial de Dilma Roussef foi interrompido, em meados
de 2016, por um impeachment, constituindo uma conjuntura crítica na trajetória da
política. Michel Temer, que assumiu em seu lugar, conduziu um processo, ainda em
andamento, de alteração ideológica e programática da política de assistência social e
combate à fome.
8 Estimativa do CONSEA Nacional em 2010.9 Cerca de U$ 21,87 (cotação de 07/09/2017).
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Em termos ideológicos, nota-se uma reaproximação com o ideário da eficiência
econômica e com a visão de políticas sociais como gastos. Adicionalmente, há uma
gradativa desinstitucionalização desta política, expressa na ausência de informação
oficial nos websites, , redução de investimentos e desestrutração ministerial em termos
programáticos e de recursos humanos. Por fim, destaca-se a retomada de uma
concepção mais assistencialista da política social, com a volta do “primeiro-damismo”
na condução do novo programa – “Criança Feliz”.
Em suma, a construção do Estado de Bem-Estar Social no Brasil não é marcada
por processos lineares em termos de institucionalidade ou de fins da ação social. Assim,
é plausível afirmar que esta trajetória teve, no período aqui analisado, um percurso
tortuoso. Instituições foram criadas e extintas, políticas e programas não foram perenes.
O quadro 1 sistematiza e permite comparações entre os programas e políticas do período
analisado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve o objetivo de analisar as políticas sociais voltadas à redução
da pobreza no Brasil nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da
Silva e Dilma Rousseff, comparando-os tanto no plano institucional, quanto no plano
das orientações que as presidiram.
A apresentação da trajetória das políticas de transferência de renda, assistência
social e segurança alimentar nestes governos mostrou que houve diferenças notáveis
entre eles, quanto a orientações ideológicas e demandas de institucionalidade. Notou-se,
de um lado, que o governo de FHC se pautou principalmente por princípios de
eficiência econômica, com focalização de ações, diminuição do papel do Estado no
combate à pobreza e estímulo ao Terceiro Setor. De outro, que os governos de Lula e
Rousseff, embora distintos entre si, aproximaram-se de princípios de justiça social e
efetuaram maior institucionalização da política, com leis, normas, novos conselhos
participativos, sistemas de políticas públicas, ministérios etc.
Logo, concluiu-se que os governos comandados pelo PT, dada a nova correlação
de forças entre atores políticos, conseguiram alterar a política social em foco tanto em
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termos qualitativos e de orientação ideológica, como quantitativos, além de
promoverem a construção de um novo aparato institucional para concretizar tal
orientação. Contudo, essa hipótese não implica desconhecer que a trajetória das
políticas não é linear e que já houve mudanças com o impeachment e o novo governo de
Michel Temer, relacionadas à orientação ideológica - novamente aproximando-se de um
ideário neoliberal -, e à redução da institucionalização desta política.
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Quadro 1 –
COMUNIDADE SOLIDÁRIA, FOME ZERO E BRASIL SEM MISÉRIA, CRIANÇA FELIZ (1995-2017)
Programas Comunidade Solidária Fome Zero Brasil Sem Miséria Programa Criança Feliz
Definição Estratégia do Governo Federal para assegurar o direito humano a alimentação adequada, priorizando as pessoas com dificuldade de acesso aos alimentos.
Plano nacional para superar a situação de extrema pobreza da população em todo o território nacional, por meio da integração e articulação de políticas, programas e ações.
Programa intersetorial para promover o desenvolvimento integral das crianças na primeira infância.
Objetivos Geral•Coordenar ações governamentais dirigidas à parcela da população que não dispõe de meios para prover suas necessidades básicas e, em especial, o combate à fome e à pobreza
•Promover a segurança alimentar e nutricional•Contribuir para a erradicação da pobreza extrema e para a conquista da cidadania da população mais vulnerável a fome.•Integrar diversos programas e ações.
•Promover a inclusão social e produtiva da população extremamente pobre, tornando residual o percentual dos que vivem abaixo da linha da pobreza •Elevar a renda familiar per capita.• Ampliar o acesso aos serviços públicos, às ações de cidadania e de bem estar social;• Ampliar o acesso às oportunidades de ocupação e renda através de ações de inclusão produtiva nos meios urbano e rural.
• Promover o desenvolvimento humano a partir do apoio e do acompanhamento do desenvolvimento infantil integral na primeira infância;• Apoiar a gestante e a família na preparação para o nascimento e nos cuidados perinatais;• Colaborar no exercício da parentalidade, fortalecendo os vínculos e o papel das famílias para o desempenho da função de cuidado, proteção e educação de crianças na faixa etária de até seis anos de idade;• Integrar, ampliar e fortalecer ações de políticas públicas voltadas para as gestantes, crianças na primeira infância e suas famílias.
Abrangência (municípios)
1.369 5.565 5.565 2.614
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Responsabilidade da execução
Governo Federal, Sociedade Civil
Governo Federal,Estados e Municípios
Governo Federal, Estados e Municípios
União, Estados, Distrito Federal e Municípios por adesão
Financiamento
Fundo de Combate à Pobreza
Fundo de Combate à Pobreza Recursos Federais e dos entes federados
Dotações orçamentárias consignadas anualmente nos órgãos e nas entidades envolvidos
Período de Vigência considerando fases e desdobramentos
1995 – 2002 (a) 2003 – 2010 (a) 2011 – 2014 (a) 2016- 2017 (a)
Instância de Participação Popular
Conselho Consultivo -10 ministros de Estado e 21 personalidades da sociedade civil,escolhidas pela Presidência
Conselho Consultivo - 59 conselheiros, sendo 17 ministros de Estado e 42 representantes da sociedade civil escolhidos pela Sociedade Civil, e por uma Secretaria Executiva
Estruturas de participação dos programas e ações que compõem o Brasil Sem Miséria
Orgão coordenador
Presidência e Secretária-Executiva(Primeira-Dama)
Presidência e Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome(Primeira -Dama)
(a) Considerou-se aqui as diversas fases e desdobramentos dos Programas ao longo do tempo, incluindo aqui programas novos que surgiram
a partir do Programa Mãe. Considerou-se aqui o Programa Criança Feliz como principal programa social do Governo Temer.
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