artigo cientifico 1 - ancilostomídeo

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Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical 34(1):61-67, jan-fev, 2001.

ARTIGO DE OPINIO

Um sculo de experincia no controle da ancilostomaseOne century of experience in the control of ancylostomiasisLus Rey

Resumo A ancilostomase despertou a ateno do mundo, no comeo do sculo XX, como grave problema de sade pblica e deu origem aos primeiros planos sistemticos de controle de uma endemia em larga escala. Passou depois a ser vista como questo de menor importncia quando surgiram medicamentos antihelmnticos eficazes e o desenvolvimento econmico dos pases mais ricos reduziu neles a subnutrio, melhorando ao mesmo tempo as condies habitacionais e sanitrias que tornaram as infeces residuais clinicamente assintomticas. O problema persiste; entretanto, no terceiro mundo que deve encar-lo com realismo e agir em conseqncia. Sugestes so feitas nesse sentido. Palavras-chaves: Ancilostomase. Ancylostoma. Necator. Anemia. Tratamento e controle. Abstract In the beginning of the XX century, ancylostomiasis was considered a serious public health problem and governments started the first systematic planning for the control of an endemic disease, in large scale. Thereafter, ancylostomiasis was considered a less important subject, because efficient anti-helminthic drugs were introduced, this in combination with the economic development in rich countries, reduced undernourishment and improved housing and sanitary conditions. Consequently, the residual cases of the infection became in general asymptomatic. However, in the third world the problem is still present, and must be considered with realism and managed accordingly. Various suggestions for controling the disease are presented in this paper. Key-words: Ancylostomiasis. Ancylostoma. Necator. Anemia. Treatment and control.

Os ancilostomdeos so helmintos que ou foram herdados pela espcie humana atravs da evoluo simultnea do parasito e do hospedeiro, ou adaptaram se aos homens ou aos nossos ancestrais homindios, quando esses abandonaram as florestas para viverem em savanas, margens de rios ou lagos e comearam a freqentar ambientes favorveis ao ciclo de transmisso dos helmintos de outras espcies2. Ainda hoje, podemos nos infectar com os parasitos de candeos e feldeos, como Ancylostoma ceylanicum e A. caninum. Mas os homens nmades das pocas pr-histricas, no deviam apresentar infeces importantes ou escapavam completamente do parasitismo quando seus deslocamentos os levavam a regies com clima ou terreno desfavorvel sobrevivncia das larvas do parasito no solo. Tornando-se sedentrios e com residncia fixa, crescendo em nmero e vivendo cada vez mais em

coletividades densas, os homens civilizados criaram, por vezes, ecossistemas muito propcios aos helmintos; poluindo intensamente o solo sobre o qual marchavam descalos, eles reuniram condies timas para as infeces pesadas e, por conseguinte, para o desenvolvimento da ancilostomase doena. Procurou-se em alguns antigos documentos egpcios e gregos referncias a um conhecimento sobre esse problema mdico que devia existir h mais de dois ou trs mil anos. Mas, as interpretaes desses textos tendo permanecido sempre muito discutveis, devemos aceitar como primeira referncia clara a esse conhecimento, os escritos de Avicena, famoso mdico rabe do sculo XI, onde ele fala de pequenos vermes redondos que provocam uma forma de anemia6 18. Podemos reconhecer a os ancilstomas.

REDESCOBERTA DA ANCILOSTOMASE Cados no esquecimento, esses parasitos tiveram que esperar mais alguns sculos para que fossem redescobertos vrias vezes e em diferentes pases6. Desde 1637, no Brasil, Piso, mdico holands que acompanhava o prncipe Maurcio de Nassau, assinala epidemias de uma doena caracterizada por perturbaes intestinais, fraqueza e uma anemia que conduzia, por vezes, hidropsia e que era freqente entre os escravos. Cinqenta anos depois, Labat a descreve em Guadalupe, enquanto que no curso dos sculos XVIII e XIX os mdicos

Fundao Oswaldo Cruz, Instituto Oswaldo Cruz, Departamento de Medicina Tropical, Rio de Janeiro. Endereo para correspondncia: Dr. Lus Rey. R. Prudente de Moraes 307/801, 22420-041 Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Recebido para publicao em 16/8/00.

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a diagnosticaram um pouco por toda parte nos pases tropicais e em certas regies temperadas da Amrica, da Europa e norte da frica, assim como na sia e nas ilhas do Pacfico. A anemia ancilostomtica recebeu os nomes de clorose do Egito, anemia dos mineiros, caquexia africana, anemia intertropical, amarelo e opilao; estes dois ltimos no Brasil. Em 1838, Dubini encontrou o parasito nos intestinos de uma mulher falecida de pneumonia, que autopsiara em Milo6. A ele deve-se a primeira descrio detalhada do verme e o nome Ancylostoma duodenale.Tendo encontrado o parasito vrias vezes nas autpsias, foi levado a fazer

pesquisas sistemticas; mas, ainda que os exames se mostrassem positivos em 20% dos casos, ele no chegou a estabelecer sua relao com a anemia, visto que a causa mortis era geralmente outra17. Coube a Griessinger (1851) e a Bilharz (1853), no Egito, o mrito de associar a presena e a ao dos ancilstomas clorose do Egito. Wucherer (1886) e outros mdicos, no Brasil, confirmaram os trabalhos de Bilharz6. A partir de 1878, o diagnstico de ancilostomase tornou-se fcil e preciso, graas aos trabalhos de Grassi e dos irmos Parona, na Itlia, que mostraram a possibilidade de estabelec-lo buscando os ovos do parasito nas fezes dos pacientes6.

EPIDEMIAS NA EUROPA Pouco depois (1880), uma epidemia de ancilostomase devia declarar-se entre os trabalhadores italianos encarregados de abrir, nos Alpes, o tnel de So Gotardo18. Nessa ocasio, Perroncito teve que sustentar longos debates com seus colegas mdicos que no aceitavam a etiologia parasitria da anemia. Essas discusses no podiam seno estimular pesquisas que, finalmente, contriburam para a introduo de dois medicamentos para tratar a ancilostomase: o extrato de feto-macho e o timol. Este ltimo passou a ser o medicamento de escolha at que, em 1917, foi adotado o leo de quenopdio seguido, em 1922, pelo tetracloreto de carbono e, depois, pelo tetracloroetileno, descoberto em 1925. O tetracloroetileno foi extensamente utilizado em campanhas de massa, at que surgiram os antihelmnticos modernos, de largo espectro.

O CICLO PARASITRIO Pouco antes do fim do sculo XIX, um acidente de laboratrio deveria concorrer para esclarecer uma das questes de importncia capital para o conhecimento do ciclo evolutivo e do mecanismo de transmisso da doena. Looss, trabalhando no Cairo, havia derramado acidentalmente sobre sua mo uma suspenso de larvas de ancilstoma. Ao secar, o lquido produziu forte prurido e uma dermatite no lugar de contato. Pouco tempo depois, ele pde verificar, pelo exame das fezes, aquilo de que suspeitava fortemente: tinha-se infectado por via cutnea. Essa observao foi confirmada experimentalmente e conduziu-o a descobrir o ciclo completo do parasito6 18. Sabia-se, ento, que os ovos eliminados com as matrias fecais (e contendo apenas 4 a 8 clulas) formavam em 18 a 24 horas, se as condies do meio externo fossem favorveis, larvas ditas rabditides que abandonavam sua casca para se deslocarem na pelcula lquida que envolve as partculas do solo, nutrem-se a de bactrias e matrias orgnicas, at se transformarem em larvas de 2 e de 3 estdio, ao fim de 5 a 7 dias. As larvas de 3 estdio so as nicas infectantes para o homem. Elas j no se alimentam mais, mas permanecem ativas na superfcie do solo durante semanas ou meses (at que se esgotem suas reservas nutritivas). A penetrao se faz principalmente pela pele das extremidades inferiores. Atravs da circulao sangnea, elas chegam aos capilares pulmonares, atravessam a parede alveolar, sobem com as secrees mucosas da rvore brnquica at a laringe e a faringe e, deglutidas, vo ter ao intestino, onde ocorrem as ltimas ecdises e transformao final em vermes adultos, machos e fmeas. O ciclo mostra que o controle da ancilostomase pode ser feito pela interrupo da transmisso em diferentes nveis14:1) tratando os indivduos parasitados, para reduzir ou suprimir as fontes de infeco; 2) assegurando um destino adequado s fezes humanas, para impedir a contaminao da superfcie do solo com os ovos e larvas dos parasitos (uso de fossas sanitrias e latrinas ligadas a um sistema de esgoto); 3) protegendo as pessoas contra a penetrao das larvas infectantes, mediante o uso de calado.

Aps a epidemia de So Gotardo, a ancilostomase tornou-se um problema grave na maioria das minas europias, aparentemente devido s migraes da mo de obra e s precrias condies de trabalho no fundo das galerias. Entretanto, a aplicao sistemtica das normas estabelecidas para o controle da parasitose acompanhouse de notvel sucesso em todos os pases da Europa que as puseram em prtica8.

AS PRIMEIRAS CAMPANHAS DE MASSA Nos Estados Unidos, Charles W. Stiles, um zologo que, tendo completado seus estudos na Europa, havia aprendido muito sobre a ancilostomase, demonstrou em 1902 que o agente causal da doena na Amrica era um helminto diferente, que denominou Necator americanus6. Ele devia reconhecer mais tarde que essa

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espcie originria da frica e que sua presena no Novo Mundo era conseqncia do trfico de escravos. Fazendo inquritos nos estados do sul daquele pas, Stiles constatou a importncia dessa parasitose nas zonas rurais e, durante vrios anos, insistiu sobre a necessidade de uma campanha de recuperao dos poor-whites que, nessa poca, se acreditava serem preguiosos, no doentes. Seus apelos foram finalmente ouvidos e, em 1910, a Comisso Sanitria Rockefeller (que viria a tornar-se a Fundao Rockefeller) estruturou-se para pr em marcha seu velho projeto, que, sob a direo de Wickliffe Rose, lanou-se ao trabalho18. Durante 5 anos e com um oramento total de quase um milho de dlares, ele examinou em 11 estados do sul 1.300.000 pessoas e tratou 700.000. O projeto falava de erradicao, mas Rose compreendeu logo seu equvoco. Stiles havia estimado em dois milhes o nmero de casos de ancilostomase no sul, mas havia trs ou quatro milhes. Rose no acreditava que a Comisso, sozinha, pudesse ou devesse chegar erradicao; mas supunha que o exemplo e a propaganda acabariam por mobilizar todos os mdicos, todas as autoridades concernentes, assim como a populao em geral para um esforo que levaria erradicao. Suas decepes comearam com a fraca colaborao do corpo mdico; sobre 20.000 mdicos rurais dos nove

estados sulinos, de que ele esperava colaborao, poucos responderam ao apelo. Muitos perguntavam quem iria pagar o tratamento dos indigentes; outros, mesmo pagos, no fizeram muita coisa. No fim da campanha, devia-se constatar que apenas 30% dos mdicos haviam aplicado tratamentos anti-helmnticos. Sob a presso de Stiles, Rose teve que aceitar uma soluo que no lhe agradava: organizar ambulatrios gratuitos em cada localidade, onde, uma vez por semana, um mdico da equipe vinha para as consultas e os tratamentos. Diante das dificuldades que se apresentavam ao longo da campanha, a Comisso ensaiou fazer um esforo de erradicao total em uma vila de pescadores de menos de 600 habitantes, isolada na Ilha de Knotts, na Carolina do Norte. Mesmo nessas condies, a erradicao fracassou. Ainda antes dessa experincia piloto, em 1913, havia sido criada uma Comisso Internacional, denominada mais tarde International Health Division, para repetir em outros pases a demonstrao gigantesca que se desenvolvia no sul dos EUA. Em 1921, os trabalhos eram feitos em mais de 30 pases ou territrios, sobretudo na Amrica Central, nas Antilhas, na Colmbia, no Brasil, no Egito, nas ndias e em outras regies da sia e do Pacfico. Ao todo, quase 4 milhes de pessoas foram examinadas e 2 milhes de tratamentos foram aplicados18.

OS RESULTADOS E SUA INTERPRETAO No Mississippi, onde se havia trabalhado intensamente e onde a educao sanitria havia sido beneficiada pelo apoio e colaborao da imprensa e dos meios escolares, um primeiro inqurito para avaliar os resultados, feito em 1933, mostrou que a prevalncia baixara de 53% para 19,6% e, posto que apenas uma casa rural sobre dez possua uma latrina satisfatria, a reduo no era atribuvel ao saneamento. Entre os obstculos ao controle da ancilostomase, falou-se muito da no-cooperao de uma parte da populao, ou seja da dificuldade de fazer com que as pessoas modificassem seus hbitos ou que aceitassem as latrinas rurais de construo econmica. Em verdade, os aspectos econmicos e sociolgicos do problema haviam sido subestimados, quando eles so de extrema importncia no controle de certas endemias. Mesmo as condies de ordem epidemiolgica no haviam sido tomadas em considerao adequadamente, pois: no se consegue descobrir todos os casos ou tratar todos aqueles que foram diagnosticados; os medicamentos no curavam todos os casos tratados; a contaminao fecal do solo, que havia sido causada pelas pessoas parasitadas antes da medicao, persiste ainda durante vrias semanas ou alguns meses aps o tratamento, se as condies locais do clima e do terreno permanecerem favorveis sobrevivncia das larvas de ancilostomdeos; a poluio fecal do meio, pelos indivduos no-tratados, no-curados ou reinfectados, continua a acrescentar novas quantidades de ovos do parasito no solo, que em determinados lugares do peridomiclio continuar fervilhando de larvas infectantes.

Nessas condies, a transmisso da ancilostomase permanece ativa e assegura a reinfeco da populao suscetvel. Em 1940, uma nova avaliao feita em oito estados sulinos dos EUA, mostrava que a taxa de positividade havia passado de 37% para 11% e que apenas um caso sobre dez apresentava sinais clnicos da ancilostomase. A melhora ocorria sobretudo nos aspectos clnicos da infeco: as formas graves de anemia tornavam-se cada vez mais raras e, nos ltimos anos, os mdicos encontravam poucos casos de ancilostomase-doena, apesar da presena da infeco nas plancies arenosas, desde as regies costeiras do Mississippi at a Carolina do Norte. Mas ningum se iluda sobre as causas dos bons resultados alcanados nos EUA, a longo prazo. O desenvolvimento econmico havia modificado profundamente o quadro ecolgico: a urbanizao, a elevao do poder de compra da populao rural, (com permitindo o uso cada vez mais generalizado e mais

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freqente de calados, a melhoria das casas instalaes sanitrias adequadas), assim como da alimentao, so

todos fatores decisivos da mudana e sem relao com as campanhas anti-helmnticas.

ANCILOSTOMASE NO TERCEIRO MUNDO Que se passou nos pases em desenvolvimento? Tomemos como exemplo o Brasil, onde a Comisso Rockefeller havia examinado 77.436 pessoas, entre 1916 e 1921, e encontrado 77,4% de casos positivos para ancilostomdeos5 19. Nessa poca (1918), Monteiro Lobato descreve em Urups o caboclo brasileiro como um anemiado crnico, simbolizado na figura de Jeca Tatu, que, dizia ele, no um preguioso, mas um doente. Trinta anos mais tarde (1947-1952), os inquritos parasitolgicos do Ministrio da Educao e Sade, dirigidos por Amilcar Barca Pellon e Isnard Teixeira12 13, que incidiram sobre 400.000 escolares do Nordeste e Centro-Leste do pas, encontraram 46,1% de resultados positivos. Mais tarde, em 1969, os exames feitos pela rede de laboratrios do Ministrio da Sade (DNERu)20, sobre todo o territrio nacional, no encontraram mais que 28,8% de parasitados, entre os 2,5 milhes de exames feitos. Essas porcentagens que, aparentemente, indicam uma evoluo muito favorvel, escondem no entanto a verdade. Os nmeros provveis de casos de ancilostomase foram calculados pelos autores respectivos5 12 13 20, como mostra a Tabela 1.

Tabela 1 - Resultados dos inquritos sobre ancilostomase feitos no Brasil em diferentes pocas.Autor e ano Hackett, 19205 Pellon e Teixeira, 195012 Vinha, 196820 Exames positivos (%) 77,4 42,5 28,8 Estimativa do nmero de casos 23.500.000 22.300.000 24.000.000

A populao parasitada permaneceu praticamente constante porque o nmero de pessoas expostas ao risco de infeco, isto , a populao rural, pouco aumentou nos ltimos oitenta anos, enquanto que as condies ecolgicas permaneceram quase sempre as mesmas. O enorme crescimento da populao brasileira tendo sido sobretudo urbano, uma proporo sempre maior de pessoas escapa desse risco14, ainda que, ultimamente, os movimentos migratrios do campo para a cidade, em busca de trabalho, estejam criando nos bairros perifricos condies higinicas to precrias quanto as rurais. Mas, nas regies do mundo onde a exploso demogrfica no foi acompanhada de um processo de urbanizao rpido, deve-se esperar um aumento do nmero de pessoas parasitadas. Em 1957, sobre 656.700 casos de ancilostomase diagnosticados em 169 pases ou territrios das regies tropicais, mais de 2/3 encontravam-se na frica. Nesse mesmo estudo feito pela Diviso de Cincias Mdicas da National Academy of Sciences, National Research Council (EUA), a ancilostomase apresentava-se, dentre as doenas parasitrias, como a segunda causa de

morbidade, depois da malria, e como a terceira causa de mortalidade, depois da malria e da amebase. Estimou-se no passado que os ancilostomdeos parasitavam um quarto da populao mundial e esse clculo pareceu muito razovel, ao menos para os 2 bilhes que, em 1975, formavam a populao rural dos pases menos desenvolvidos. Se considerarmos que muitas cidades pequenas do Terceiro Mundo tambm ofereciam um meio favorvel transmisso da parasitose, o nmero total de pessoas infectadas podia ser estimado, sem risco de exagerar, entre 500 e 700 milhes. Ora, apesar da forte tendncia urbanizao, a populao rural desses pases deve estar aumentando de 864 milhes, entre 1975 e 2000; e, como o saneamento e o nvel econmico no se desenvolvem mais rpido que suas populaes, a ancilostomase tende a aumentar sua freqncia (como se ver adiante). Ento, que fazer? Vejamos primeiro quais so os conhecimentos e os recursos atuais com que podemos contar para um esforo de controle eficiente da endemia.

OS ANCILOSTOMDEOS E A DOENA As migraes humanas apagaram quase completamente os antigos limites de distribuio geogrfica das duas espcies de helmintos que parasitam o homem: Ancylostoma duodenale (primitivamente na sia e Regio do Mediterrneo) e Necator americanus (originariamente na frica subsaariana). Se, nas Amricas, o A. duodenale chegou antes da descoberta, com as migraes humanas vindas atravs do Pacfico2, o N. americanus foi introduzido com o trfico de escravos18. Esta ltima espcie vai se tornando cada vez mais prevalente nas diversas regies endmicas.

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Os conhecimentos sobre as vias de penetrao e de migrao larvria desses parasitos so mais precisos. Enquanto para o N. americanus a penetrao cutnea a nica possvel, para infectar uma pessoa, o A. duodenale pode penetrar tambm por via oral (com o consumo de legumes frescos, p. ex.) e, neste caso, deixar de fazer o ciclo pulmonar, completando todo seu desenvolvimento larvrio nos intestinos do paciente, com maior proporo de larvas chegando fase adulta. Algumas observaes, feitas sobretudo na ndia (Bengala Ocidental), sugerem que A. duodenale pode deter seu desenvolvimento, depois da infeco e s completlo tempos depois, coincidindo com o regime das mones, estao das chuvas, favorvel para a propagao da infeco17. As pesquisas sobre mecanismos patognicos, utilizando rdio-istopos para marcar as hemcias, permitiram seguir o destino destas no organismo1 3 15 16. Assim, foi possvel medir precisamente as perdas sangneas causadas pelos vermes, segundo a espcie e o nmero de helmintos albergados. Tornou-se mais clara a relao entre a espoliao sangnea e a absoro de ferro, na produo da anemia, com o que pde-se compreender a razo de existirem na mesma rea endmica casos de parasitismo sem anemia e casos de anemia sem parasitismo; ou porque a anemia pode ser desencadeada por cargas parasitrias to diferentes (medidas pelo nmero de ovos por grama de fezes), segundo os pases, os regimes alimentares ou as condies individuais. Destacou-se, ento, de maneira geral, a relao entre a intensidade do parasitismo e o volume de sangue perdido por dia: cerca de 2 a 3ml de sangue para cada 100 ovos/ grama de fezes, entre os camponeses da Venezuela infectados pelo Necator americanus15 16. Uma pessoa albergando 700 nectores, por exemplo, perde 22ml de sangue por dia, ou 11mg de ferro, dos quais 40% so reabsorvidos pelo intestino. A perda efetiva ser portanto de 6,6mg e, se sua alimentao no lhe assegurar mais que uma reposio de 2,6mg por dia, o dficit cotidiano ser de 4mg. Ora, um homem de 60 quilos dispe de quase 3.000mg de ferro total, dos quais 2.000mg ligados hemoglobina e 900mg de reserva. Enquanto as reservas no se esgotarem, a hematopoese faz-se normalmente. Depois, a taxa de hemoglobina comea a baixar, mas, na

nossa hiptese, sero necessrios 220 dias para que isso acontea. Mas, medida que o paciente vai ficando anemiado e se o volume de sangue retirado pelos parasitos permanecer constante, suas perdas de ferro diminuem, at que a quantidade de ferro perdida por dia se torne igual fornecida pela alimentao do doente. Nesse momento a anemia se estabiliza. O nvel de estabilizao funo, evidentemente, da carga parasitria e da ingesto e absoro do ferro alimentar. Desde que se administre ferro aos pacientes, a anemia melhora rapidamente, pois a capacidade de absoro intestinal e de utilizao do ferro em circulao encontramse aumentadas nesses pacientes anmicos. Se ns os tratarmos simplesmente com um anti-helmntico, a recuperao ser mais lenta, devido ao baixo teor de ferro na alimentao das populaes das reas endmicas. Note-se, ainda que o ferro de origem vegetal, o mais abundante no regime dessas pessoas, de absoro mais difcil que o de origem animal. Nessas regies de subnutrio crnica, a anemia persiste, por vezes, mesmo depois da desparasitao ou existe sem infeco ancilostomtica. A anemia devida aos ancilostomdeos de tipo ferroprivo, no havendo fator hemoltico envolvido11 15 16. Se a vida mdia das hemcias menor que a normal, isso se deve a um defeito de formao dos glbulos vermelhos, ligado a um dficit protico e destruio precoce das hemcias pelo bao. A hipoproteinemia outro sinal clnico da doena, causando edemas e, em alguns casos, atrofia da mucosa intestinal, com reduo e achatamento das vilosidades e diminuio da capacidade de absoro intestinal. Essa hipoproteinemia parece resultar das perdas intestinais, da ingesto insuficiente de protenas na dieta (a anorexia podendo contribuir para isso), e da capacidade reduzida de sntese protica pelo fgado, afetado pela anxia resultante da anemia. O carter crnico, a evoluo lenta e progressiva da doena, assim como a ausncia de dramaticidade, na grande maioria dos casos de intensidade mdia ou leve, contribuem para um estado permanente de m sade que tanto pode comprometer o desenvolvimento fsico, mental ou cultural dos jovens, como a capacidade de trabalho dos adultos. Esse estado de sade precria, predispe os pacientes a sofrerem a ao de outros agentespatognicos, eventualmente mais graves.

IMUNIDADE E VACINAO As maiores lacunas no conhecimento sobre a ancilostomase humana esto no setor imunolgico. No se tem, sequer, provas de que a infeco seja capaz de induzir o hospedeiro a produzir anticorpos protetores. Suspeita-se que deva existir alguma proteo, ainda que fraca, porque a carga parasitria aumenta at a idade de 15-20 anos e se estabiliza depois, a menos que isso se deva a mudanas comportamentais dos pacientes, com reduo do risco na idade adulta. Na ancilostomase experimental do co, se o nmero de larvas empregadas na infeco inicial for suficiente, a reao imunolgica resultante confere certa proteo contra uma segunda invaso, o que permitiu a utilizao de larvas irradiadas para vacinar animais muito jovens7. As maiores dificuldades de investigao, no caso humano, decorrem de no existirem modelos experimentais para a infeco por N. americanus ou por A. duodenale.

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Os riscos de usar material radioativo e o fato de que o homem se reinfecta muito facilmente4, em condies

naturais, so de tal ordem que desencorajam as pesquisas em domnio to problemtico.

PREVENO E TRATAMENTO NA ATUALIDADE Os recursos hoje disponveis so vrios9 14. O uso constante de calado condio bsica para a preveno das infeces e reinfeces e, portanto, para o xito de quaisquer tratamentos; pois estes se tornam precrios se ocorrerem reinfeces. Conta-se atualmente com ampla gama de medicamentos eficientes e adequados para o tratamento da ancilostomase, que proporcionam taxas de cura em geral acima de 85%. Alguns so mais especficos, enquanto outros possuem largo espectro de ao, sendo portanto recomendveis nos casos de poliparasitismo. Para o tratamento individual ou de massa, os mais recomendados11 so: Mebendazol. Eficaz contra Necator, Ancylostoma, Ascaris, Trichuris e Enterobius, atuando sobre os vermes adultos e ovos por inibir a utilizao da gliclise. Uso oral, administrando-se para adultos ou crianas 100mg da droga cada 12 horas, durante 3 dias. Para tratamento de massa em dose nica, administrar 500mg, em qualquer idade acima de 2 anos. Contra-indicado na gravidez. Albendazol. Eficaz contra as duas espcies de ancilostomdeos e outros nematides (menos ativo contra Trichuris e Strongyloides). Dose nica de 400mg, em O diagnstico fcil e o tratamento eficaz dos casos fizeram com que, nas ltimas dcadas, esta doena perdesse muito de seu carter dramtico, na maioria das regies endmicas, o que tem levado em geral os governos e os servios mdicos subestimarem sua importncia em sade pblica10 11 21. No entanto, a Organizao Mundial da Sade22, em seu relatrio de 1998, publicou as estimativas de prevalncia para o ano de 1997, onde se v que devem existir atualmente no mundo 1,25 bilho de pessoas parasitadas por A. duodenale ou por N. americanus, das quais 151 milhes sofrem de ancilostomase qualquer idade acima de 2 anos. Atua sobre os vermes adultos, larvas e ovos. Contra-indicado na gravidez. Pirantel. O pamoato ou emboato de pirantel induz paralisia espstica dos vermes adultos ( Necator, Ancylostoma, Ascaris e Enterobius). Os ancilostomdeos requerem 10mg/kg/dia durante 3 dias. Alguns autores recomendam 20mg/kg/dia, em dose nica A anemia deve ser tratada com administrao de ferro (p.ex.: sulfato ferroso, 200mg 3 vezes ao dia, durante 3 meses ou mais, e alimentao abundante, principalmente em protenas e vitaminas. Saneamento. A construo e o uso de latrinas ou de outros tipos de instalaes sanitrias so aspectos importantes do saneamento ambiental, que devem ser avaliados quanto ao seu impacto a curto e longo prazo sobre o controle das parasitoses intestinais, relao custo/benefcio, aceitao pelos moradores do campo, manuteno em condies satisfatrias, durao etc. A educao sanitria deve visar mudanas comportamentais que reduzam a poluio fecal do solo, no peridomiclio e nos locais de trabalho, atuando junto a crianas e adultos.

O PANORAMA ATUAL DA ANCILOSTOMASE doena. A mortalidade causada por esta parasitose foi estimada em 65.000 bitos, naquele ano. Assim, a ancilostomase, como entidade patolgica especfica, mata mais que outras, tais como raiva, meningite meningoccica, ascarase, oncocercose, doena de Chagas, febre amarela, esquistossomase ou clera. Alm disso, por seu carter de padecimento crnico, contribui para a m qualidade de vida de um nmero considervel de pessoas. Em 1994, no mundo em desenvolvimento, 2.284 bilhes de pessoas ainda viviam na zona rural em casas sem cobertura sanitria (OMS, 199822).

A ESTRATGIA NECESSRIA A experincia do passado e do presente sugerem que o controle da ancilostomase deva levar em considerao o seguinte:1. Ser inevitavelmente um programa a longo prazo, buscando reduzir o nmero de pessoas parasitadas e a carga parasitria da populao, mediante tratamentos anti-helmnticos peridicos e administrao de sulfato ferroso, para os casos indicados. Os resultados esperados compreendem a eliminao das formas clnicas graves da doena (anemia e suas complicaes) e a reduo da poluio fecal do meio com ovos de ancilostomdeos; e, conseqentemente, a reduo da transmisso da parasitose. 2. Para assegurar os meios e a continuidade desse programa, indispensvel que as decises sejam tomadas nos escales administrativos superiores do governo, inclusive naqueles responsveis pelo financiamento. 3. Para assegurar a eficcia na aplicao das medidas propostas e sua continuidade no tempo, evitando tambm os problemas de comunicao e relacionamento com a populao, importante que a equipe de trabalho seja, ao menos em parte, recrutada localmente. Ela deve receber a formao adequada para compreender perfeitamente a natureza e a epidemiologia da doena, os objetivos, a estratgia e os mtodos de ao, bem como tornar-se capaz de fazer trabalho educativo. Quanto

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maior for a participao de agentes da localidade, maior ser a implantao regional do conhecimento necessrio para o controle (vlido igualmente para outros problemas de sade). A educao sanitria deve preceder e acompanhar todas as etapas do controle, mobilizando, motivando e organizando a participao da comunidade, com o objetivo de modificar seus hbitos higinicos e de aceitar os tratamentos e as avaliaes que forem necessrias. nfase especial deve ser dada ao uso de calado, de forma constante, pelas pessoas de todas as idades. 4. Para que os bons resultados no sejam temporrios, so necessrias medidas de saneamento (mesmo que

venham a ser implantadas posteriormente s outras aes programadas).

A experincia tem demonstrado que os melhores resultados de programas dessa natureza, so obtidos quando h um desenvolvimento importante da economia regional, reduzindo a pobreza das famlias, melhorando as condies habitacionais, promovendo a alfabetizao e a educao da populao. O controle da ancilostomase deve fazer parte de uma poltica de sade abrangente, integrado numa poltica econmica nacional voltada para o bem estar de toda a populao. Essa basicamente a orientao sugerida pela Organizao Mundial da Sade em suas ltimas Assemblias Gerais (1998, 1999)10 22.

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