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nossa vida social sofreu uma mudança profunda e radical. Se pretendermos que a educação tenha algum significado para a vida, teremos que fazê-la passar por uma transformação igualmente completa” afirmava há cerca de setenta anos John Dewey, o eminente filósofo da educação. A velha educação, com a sua “passividade de atitude, a massificação mecânica das crianças, a uniformidade de currículo e de método, tinha o centro de gravidade fora da criança, no professor, no livro de texto, em qualquer lado e em todo o lado que se queira, excepto nos instintos e actividades da própria criança”. O problema que confronta os educadores hoje em dia, prosseguia em outro do seus escritos, é o de, nas condições modificadas da vida mo- derna, “introduzir na escola ocupa- ções que reclamem responsabilidades pessoais e que exercitem a criança para as realidades físicas da vida”. E observava: “Se pensarmos bem na sala de aula comum, com as suas filas de desagradáveis carteiras, agrupadas para que haja o menor espaço de movimento possível, poderemos reconstituir a única actividade edu- cacional que, em boa verdade, pode desenrolar-se num tal local, ... a de ouvir”. “Ao exercitar uma criança para a actividade de pensamento devemos, acima de tudo, precaver-nos contra as ideias inertes - isto é, as ideias que são meramente recebidas pela mente sem serem utilizadas, ou tes- tadas, ou lançadas em novas combi- nações”, dizia, pela mesma altura, Alfred Whitehead, o ilustre filósofo, educador e matemático. “Uma edu- 76 cação que não começa por evocar a iniciativa e acaba a encorajá-la tem que estar errada”, afirmava ainda. O aspecto que mais perturba na recordação destas afir- mações, volvidas que são largas dezenas de anos sobre as datas em que foram proferidas, é o de se manterem, na sua essência, perfeitamente actuais. Nem uma geração inteira de reformadores e de críticos radicais à escola tra- dicional, nem a quase unanimidade das censuras dos especialistas de educação mais recentes, nem a mudança alucinante da vida económica e social que se seguiu à mudança que John Dewey considerava já tão profunda e radical, bastaram para abalar a inércia de uma escola burocratizada e vol- tada sobre si mesma, mal-grado os esforços que muitos dos seus agentes desenvolveram, e desenvolvem, com afinco, para a reformar. A introdução dos computadores nas escolas não será, por certo, por si só, nenhuma panaceia para a reso- lução destes males. Bastará recordar- mos as imagens, que nos chegam de fora, de salas de aula supostamente modelares, onde os computadores se alinham nas tradicionais e massifica- das filas de carteiras, para reconhe- cermos que nessas salas nada terá mudado - a não ser, talvez, para pior - na concepção que se tem do acto educativo. A resolução dos males estará, como sempre, nas vontades huma- nas. E não têm faltado, felizmente, experiências profundamente inova- doras - apoiadas, ou não, no uso de computadores - que rompem com o imobilismo das instituições, e nos dão uma imagem do que poderá Os computadores não estão a surgir nas escolas como poção milagrosa para todos os males da educação, mas a sua presença no dia-a-dia escolar promete tornar-se tão útil, familiar e discreta como na vida diária de todos nós. COMPUTADORES NAS ESCOLAS ANTÓNIO DIAS FIGUEIREDO Licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Universidade do Porto, e doutorado em Informática pela Universidade de Man- chester (1976), António Dias de Figueiredo é professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia de Coimbra. No âmbito da CEE representa Portugal no Grupo para as Tecnologias da Informação em Educação e participa no projecto “Start-up” do Programa DELTA. Pertence à comissão científica internacional do “NATO Special Programme on Advanced Educational Technology” e é orientador científico nacional do Projecto MINERVA. Já publicou mais de cinquenta trabalhos de investigação. “A Publicado na revista Coloquio-Ciencias, Fundação Calouste Gulbenkian, Jan-Abr 1989

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nossa vida social sofreu uma mudança profundae radical. Se pretendermos que a educaçãotenha algum significado para a vida, teremos

que fazê-la passar por uma transformação igualmentecompleta” afirmava há cerca de setenta anos John Dewey,o eminente filósofo da educação. A velha educação, coma sua “passividade de atitude, a massificação mecânica dascrianças, a uniformidade de currículo e de método, tinhao centro de gravidade fora da criança, no professor, nolivro de texto, em qualquer lado e emtodo o lado que se queira, exceptonos instintos e actividades da própriacriança”. O problema que confrontaos educadores hoje em dia, prosseguiaem outro do seus escritos, é o de, nascondições modificadas da vida mo-derna, “introduzir na escola ocupa-ções que reclamem responsabilidadespessoais e que exercitem a criançapara as realidades físicas da vida”.E observava: “Se pensarmos bem nasala de aula comum, com as suas filasde desagradáveis carteiras, agrupadaspara que haja o menor espaço demovimento possível, poderemosreconstituir a única actividade edu-cacional que, em boa verdade, podedesenrolar-se num tal local, ... ade ouvir”.

“Ao exercitar uma criança para aactividade de pensamento devemos,acima de tudo, precaver-nos contraas ideias inertes - isto é, as ideiasque são meramente recebidas pelamente sem serem utilizadas, ou tes-tadas, ou lançadas em novas combi-nações”, dizia, pela mesma altura,Alfred Whitehead, o ilustre filósofo,educador e matemático. “Uma edu-

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cação que não começa por evocar a iniciativa e acaba aencorajá-la tem que estar errada”, afirmava ainda.

O aspecto que mais perturba na recordação destas afir-mações, volvidas que são largas dezenas de anos sobre asdatas em que foram proferidas, é o de se manterem, nasua essência, perfeitamente actuais. Nem uma geraçãointeira de reformadores e de críticos radicais à escola tra-dicional, nem a quase unanimidade das censuras dosespecialistas de educação mais recentes, nem a mudança

alucinante da vida económica e socialque se seguiu à mudança que JohnDewey considerava já tão profunda eradical, bastaram para abalar a inérciade uma escola burocratizada e vol-tada sobre si mesma, mal-grado osesforços que muitos dos seus agentesdesenvolveram, e desenvolvem, comafinco, para a reformar.

A introdução dos computadoresnas escolas não será, por certo, porsi só, nenhuma panaceia para a reso-lução destes males. Bastará recordar-mos as imagens, que nos chegam defora, de salas de aula supostamentemodelares, onde os computadores sealinham nas tradicionais e massifica-das filas de carteiras, para reconhe-cermos que nessas salas nada terámudado - a não ser, talvez, parapior - na concepção que se tem doacto educativo.

A resolução dos males estará,como sempre, nas vontades huma-nas. E não têm faltado, felizmente,experiências profundamente inova-doras - apoiadas, ou não, no usode computadores - que rompemcom o imobilismo das instituições, enos dão uma imagem do que poderá

Os computadores não estão a surgir nas escolas como poção milagrosa paratodos os males da educação, mas a sua presença no dia-a-dia escolar promete

tornar-se tão útil, familiar e discreta como na vida diária de todos nós.

COMPUTADORES NAS ESCOLAS

ANTÓNIO DIAS FIGUEIREDO

Licenciado em Engenharia Electrotécnicapela Universidade do Porto, e doutoradoem Informática pela Universidade de Man-chester (1976), António Dias de Figueiredoé professor catedrático da Faculdade deC iênc ias e Tecno log ia de Co imbra . Noâmbi to da CEE representa Por tuga l noGrupo para as Tecnologias da Informaçãoe m E d u c a ç ã o e p a r t i c i p a n o p r o j e c t o“Start-up” do Programa DELTA. Pertenceà comissão científica internacional do “NATO Special Programme on AdvancedEducational Technology” e é orientadorcientífico nacional do Projecto MINERVA.Já publicou mais de cinquenta trabalhosde investigação.

“A

Publicado na revista Coloquio-Ciencias, Fundação Calouste Gulbenkian, Jan-Abr 1989

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ser uma escola de sucesso. Só que o sistema educativoé um sistema extremamente pesado na adopção d e novasdinâmicas, e complexo nas interacções entre componen-tes. Se é fácil pôr em marcha um processo de inovaçãoem pequenos sectores do sistema, é particularmente difí-cil propagá-lo a todo o sistema sem riscos consideráveisde desvirtuação de objectivos e de práticas, que poderãocondenar ao fracasso os esforços e os meios dispendidos.

É em particular a esse nível que a introdução doscomputadores poderá ter um papel a desempenhar nacontribuição para a harmonização, e para a consolidação,de um processo de mudança dirigido à totalidade do sis-tema.

A utilização qualificada dos computadores no sistemaeducativo reveste-se, a nosso ver, de consideráveis bene-fícios quando dirigida, em particular, para a exploraçãodas suas potencialidades, como:

- instrumentos que enriquecem as estratégias peda-gógicas do professor e estimulam, em diversos con-textos educativos, metodologias mais incentivadorasda actividade, participação, colaboração, iniciativae criatividade dos alunos;

- ferramentas de visualização, simulação, análise, sín-tese, e organização de conhecimentos, susceptíveisde serem enquadradas pelos alunos em estratégiase competências de actuação e de aprendizagemmais adaptadas à crescente intelectualização do tra-balho;

- mecanismos de adaptação dos contextos educativosa características particulares de alguns alunos, tantono que se refere a estilos de aprendizagem que seapoiam mais dificilmente nos suportes convencio-nais, como na superacção de dificuldades queresultam de deficiências físicas ou psíquicas;

- suportes de actualizações curriculares, nas diversasdisciplinas, e em áreas interdisciplinares;

- instrumentos potenciadores da criação de novasdinâmicas sociais de aprendizagem, quer emambientes formais, quer em ambientes informaisde aprendizagem;

- mecanismos para a exploração de novas representa-ções do mundo físico e de ligações mais ricas daactividade laboratorial escolar com a realidadeexperimental;

- sustentáculos de novas estratégias da escola (naagregação de interesses dentro de grupos disciplina-res, no suporte a iniciativas transdisciplinares, e naligação da escola com outras escolas e com a reali-dade social, económica e natural circundantes);

- instrumentos de apoio à actividade do professor nagestão e acompanhamento do processo deensino/aprendizagem, nomeadamente no que res-peita à elaboração de suportes de apoio à sua acti-vidade, manutenção de registos, e avaliação forma-t iva e sumativa (elaboração de testes e suaclassificação e tratamento estatístico);

- suportes de uma infra-estrutura informática ao ser-viço da organização do ensino, aos diversos níveisdo aparelho educativo;

- estímulos de uma reflexão permanente sobre o actopedagógico (quer seja apoiado, quer não, por com-putadores).

Esta reflexão sobre o acto pedagógico, conduzida poruma população crescente de professores, tern constituídoum benefício importante, muitas vezes ignorado, daintrodução dos computadores nas escolas. Com efeito, oscomputadores têm vindo a operar, em muitos casos,como instrumentos de uma renovação de atitudes hámuito desejada, mas que, embora independente do usode novos meios, só agora parece estar a encontrar, comeles, um estímulo e um contexto que muitos docentessentiam que faltava.

AS TEORIAS DA APRENDIZAGEM

A utilização dos computadores nas escolas processou--se, durante muitos anos, e em muitos países e sistemaseducativos, numa ignorância quase total de razões denatureza pedagógica. É certo que a História demonstraque os métodos pedagógicos não se desenvolvem nor-malmente por razões pedagógicas, mas por razões econó-micas e sociais: são as necessidades do desenvolvimentoeconómico e do controlo social que determinam, emúltima instância, a estrutura e o funcionamento dos sis-temas educativos. No entanto, no caso da introduçãodos computadores nas escolas, e em particular nos paísesque desempenharam o papel de pioneiros, a aplicaçãoapressada desta lei teve custos elevados: a colocação deequipamentos em escolas onde não existiam professorespreparados, a proliferação de suportes lógicos educacio-

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Fig. 1 - Livro de texto e computador em exploração conjunta.

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nais de qualidade nula, e a confusão geral acerca dosobjectivos a atingir com a introdução dos novos meios,redundou, em muitos casos, em situações grotescas dedistorção pedagógica e de desperdício de recursos.

Por isso se afigura importante que, ao procurar pers-pectivar as potencialidades e as modalidades de utiliza-ção dos computadores nas escolas, se deva tomar comoreferência o desenvolvimento, nas últimas décadas, dainvestigação acerca dos mecanismos da aprendizagem. Écom esse objectivo que se traça aqui um esboço, necessá-riamente muito breve, das etapas mais significativasdesse desenvolvimento.

O nosso século foi marcado por duas grandes correntessobre as bases psicológicas da aprendizagem: o “beha-viourismo” e o “cognitivismo”. O behaviourismo surgiude forma fulgurante no início da segunda década doséculo, como reacção contundente à ausência de rigorcientífico das ruminações subjectivas, de carácter intros-peccionista, em que laboravam os psicólogos dessaépoca. Fazendo tábua rasa de muitas décadas de pensa-mento válido que antecederam esse período menos felizda história da educação, e apoiando-se na popularidade deque gozavam nessa altura as correntes positivistas, ospsicólogos behaviouristas, liderados por John Watson,passaram a defender com a mais radical das intransigên-cias os princípios positivistas da observação e da experi-mentação.

Nessa óptica, sustentavam que o objectivo fundamen-tal da psicologia não era o estudo do funcionamento damente, mas sim o estudo das regras do comportamento,desenvolvido com base exclusiva no exame de comporta-mentos objectivos e observáveis. A actuação dos indiví-duos - incluindo a sua capacidade para aprender -não resultaria das suas sensações, percepções, imagens,desejos ou intenções, nem de mecanismos mentais comvirtudes estruturantes, mas sim das forças e factores aque fossem sujeitos pelo ambiente circundante. A apren-dizagem era, assim, um processo reflexo e relativamentepassivo: a mente constituía uma “caixa preta” que, rece-bendo informação e estímulos do exterior, reagia forne-cendo comportamentos. O que se passava no seu inte-rior, sendo inacessível à observação, era destituído dequalquer interesse.

Uma das consequências mais relevantes do behaviou-rismo para o estudioso das relações entre computadorese aprendizagem foi a do desenvolvimento do “ensinoprogramado”, uma criação do psicólogo behaviourista B.F. Skinner, que conheceu grande sucesso nos anos ses-senta. Numa unidade de ensino programado a matériaa ensinar é dividida em pequenos módulos de dificul-dade crescente, que são encadeados segundo umasequência lógica. Depois de lhe ter sido apresentado ummódulo, o aluno é sujeito a uma ou mais perguntas quepermitem avaliar o seu sucesso na aprendizagem domódulo e que condicionam a passagem ao móduloseguinte. As perguntas são consideradas como estímulos,

aos quais, no caso de a resposta ser correcta, correspondeum comentário elogioso imediato. O comentário repre-senta um reforço positivo destinado a consolidar a reten-ção das matérias sobre as quais as perguntas incidiam.Por outras palavras, a um estímulo corresponde uma res-posta que, no caso de ser correcta, é reforçada para asse-gurar a retenção do comportamento que exprime.

A progressão na sequência e os mecanismos de repeti-ção e reforço são concebidos com um grande pormenorque assegura uma cobertura minuciosa e, desejavel-mente, a retenção de toda a matéria. Conforme a pro-gressão se verifique segundo uma sequência linear, ouobedecendo a redes arborescentes, assim se terão, respec-tivamente, os “programas lineares”, defendidos por Skin-ner, ou os “programas ramificados” propostos por umoutro psicólogo behaviourista, Crowder.

Embora uma das principais consequências do ensinoprogramado tenha sido a publicação de grande númerode manuais, das mais diferentes matérias, organizadossegundo os princípios behaviouristas da atomização dosconteúdos, do encadeamento por graus crescentes dedificuldade, do reforço positivo, e da repetição,interessa-nos notar em particular que desde muito cedovários módulos deste tipo de ensino foram programadosem computador. O passo decisivo da aproximação entreaprendizagem e computadores surgiu, assim, pela mãodos behaviouristas. A “Instrução Assistida por Computa-dor, (“Computer Assisted Instruction”, ou CAI), hojeconsiderada uma das formas mais rudimentares da“Aprendizagem Assistida por Computador, (“ComputerAssisted Learning”, ou CAL), nasceu precisamente dessaaliança. As primeiras versões do Sistema PLATO, desen-volvido na Universidade de Illinois, Urbana, nas quais oterminal do computador se comportava como um dispo-sitivo para fazer desfilar no “ecran” as páginas de um“livro” electrónico, constitui um dos exemplos maisrepresentativos desta era.

Ao defenderem que a aprendizagem se processava,por efeito exclusivo do ambiente, da parte para o todo,e do concreto para o abstracto, as teorias atomistas eascendentes dos psicólogos behaviouristas opunham-sefrontalmente às convicções cognitivistas de que a apren-dizagem resulta de uma estruturação gradual dos conhe-cimentos construída pelo próprio instruendo, e rompiamde forma radical com a tradição molar e descendente dospsicólogos Gestaltistas e dos seus predecessores da escolade Würtzburg. Foi graças a programas de investigaçãocomo os de Jean Piaget, na Suíça, de Fredric Bartlett eWilliam McDougall, no Reino Unido, e de Karl Lashleye Edward Tolman, nos Estados Unidos, e a conceitosmolares por eles defendidos, como os de padrões, estru-turas, operações e estratégias, que as convicções de raizessencialmente cognitivista herdadas do Gestaltismo semantiveram vivas durante o longo apogeu da era beha-viourista. Foi assim que em 1948, numa célebre conferên-cia sobre Mecanismos Cerebrais e Comportamento reali-

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zada no California Institute of Technology, o próprioKarl Lashley, ex-discípulo de John Watson, encontroucondições para lançar o primeiro ataque à hegemoniabehaviourista.

De todos os nomes representativos do cognitivismo, ode Jean Piaget merece lugar de destaque, pela profundainfluência que exerceu sobre a actual geração de educa-dores, nomeadamente no que se refere à compreensãodos mecanismos da aprendizagem na criança, desde anascença até à adolescência. Nas teorias que emergemdos seus trabalhos destaca-se a importância de que sereveste para o desenvolvimento cognitivo da criança aexploração activa que ela própria faz do seu ambientecircundante, e que a leva, através de um processo com-plexo de assimilação, de acomodação e de procura deequilíbrios, a organizar as suas experiências em padrõesde conhecimentos. A experiência vivida é assim interiori-zada, de tal forma que a criança passa a dispor de repre-sentações mentais do mundo.

Para além do nome de Piaget, muitos outros, aindaque eventualmente menos conhecidos dos não especialis-tas, constituem referência imprescindível para os estudio-sos das utilizações dos computadores na educação. Desdeo Modelo de Processamento de Informação proposto por

Shiffrin e Atkinson para descrever os processos dememorização, até à Teoria dos Modelos Mentais deJohnson Laird, passando pelas propostas de Jerome Bru-ner acerca das fases da conceptualização, todo um corpode doutrina acumulado ao longo dos últimos anos nadenominada “Ciência Cognitiva” se torna agora funda-mental para compreender os efeitos das tecnologias dainformação na educação e orientar com racionalidade asua evolução futura.

Na ciência cognitiva têm-se agregado, ao longo dasquatro últimas décadas, especialistas provenientes devárias disciplinas específicas - em particular da psicolo-

gia, inteligência artificial, neurociência, filosofia, antro-pologia e linguística (que alguns denominam as “ciênciascognitivas”). Na sua preocupação fundamental de inves-tigar os mecanismos do pensamento e da aprendizagemno ser humano e na máquina, a ciência cognitiva temtido um profundo impacto, tanto no progresso das teo-rias da educação como no desenvolvimento de umavocação cognitiva para as tecnologias educativas, aindaexcessivamente dominadas por práticas tradicionais deinspiração behaviourista, que tendiam a enfatizar artifi-cialmente o ensino em detrimento da aprendizagem.

Ao fornecer um corpo de saber teórico para a com-preensão da natureza activa do raciocínio e da aprendi-zagem, e ao apontar métodos de verificação da teoriasuficientemente apurados para conferirem valor operató-rio às explicações que vinham a ser propostas sobre osmecanismos da estruturação do saber, a ciência cognitivaveio reforçar de forma decisiva um longo processo decontestação das estratégias mecânicas do behaviourismo edo ensino do século XIX, estas últimas, por sua vez,ainda fortemente enraizadas nos cânones de repressão daautonomia e da curiosidade intelectual herdados da esco-lástica medieval.

Um primeiro exemplo ilustrativo da contribuição daciência cognitiva para a reforma de um ensino essencial-mente centrado sobre a repetição mecânica e a memori-zação pode ser colhido em trabalhos recentes de análiseexperimental sistemática das estratégias de aprendizagemseguidas pelos alunos em tarefas de natureza académica.De acordo com as conclusões destes trabalhos, algunsalunos seguem uma “abordagem profunda”, guiada pelaintenção de conseguir uma compreensão genuína dasmatérias, e necessitam para esse efeito de meios que lhespermitam estabelecer uma interacção viva com o seusaber e experiência anteriores. Outros, pelo contrário,optam por uma “abordagem superficial” dirigida para asatisfação de requisitos impostos externamente e, semcolocarem qualquer interesse pessoal na tarefa de apren-der, limitam-se a memorizar os aspectos pontuais sobreos quais esperam vir a ser avaliados. Como se verificouno quadro deste trabalho, só a primeira aborda-gem - a mais difícil, se não, por vezes, mesmo, impos-sível, de incentivar nos sistemas educativos tradicio-nais - permite uma compreensão efectiva das matérias,e só ela possibilita ao aluno construir um quadro con-ceptual sobre o qual assenta a criação de competênciase uma retenção de longo prazo autêntica.

Compreende-se assim que contextos de aprendizagemque permitem liberdade de escolha, enfatizam a relevân-cia, estimulam o interesse, recompensam explicitamente oprogresso, se ajustam às competências dos alunos easseguram a ligação com conhecimentos previamenteadquiridos sejam considerados privilegiados para assegu-rar uma pedagogia de competência. Compreende-se, emcontrapattida, que factores como a ansiedade, a falta demotivação instrumental, os condicionalismos de tempo,

Fig. 2 - Uma situação frequente, a merecer reflexão: os rapazes, maisempreendedores, junto ao computador; as raparigas, mais contem-plativas e distantes...

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a falta de liberdade na escolha de estratégias de aprendi-zagem autónomas, e a imposição de métodos de avalia-ção inibidores possam remeter os alunos para abordagenssuperficiais geradoras de insucesso.

É tendo em consideração este tipo de factores que seassiste presentemente a uma alteração profunda nasabordagens de utilização dos computadores na educação.

Quebrando com uma tradição de cerca de vinte anos deempirismo e de sujeição a critérios de natureza predomi-nantemente tecnológica, que com frequência se materia-lizavam em soluções pedagógicas ainda mais ultrapassa-das do que as que pretendia reformar, a utilizaçãoeducacional dos computadores começa agora a entrarnuma fase de maturidade claramente apoiada em razõesde natureza pedagógica, tanto a nível da concepção desuportes lógicos educacionais como ao nível das estraté-gias de utilização dos computadores nos ambientes for-mais e informais da aprendizagem escolar.

Um outro exemplo da contribuição da ciência cogni-tiva para a renovação da qualidade da aprendizagem nasescolas diz respeito a estudos efectuados com o objectivode comparar as estratégias seguidas por peritos e pornoviços na resolução de um problema. Verificou-se queenquanto os primeiros concentram maioritariamente oseu esforço na compreensão do problema, e o resolvemem geral com relativa facilidade uma vez compreendido,os segundos tendem a lançar-se de imediato na resolu-ção, muito antes de terem compreendido todas, ousequer parte, das condicionantes das quais depende asolução. Embora a abordagem sistémica, descendente,usada pelo perito esteja hoje consagrada para a resoluçãode problemas de qualquer índole, o reconhecimento daimportância de criar condições para o exercício plenodeste tipo de abordagem nas didácticas das diversas dis-ciplinas é ainda pouco generalizado. A utilização doscomputadores para a criação de micromundos de com-plexidade crescente, que adiante se referirá, e as estraté-gias seguidas por um número crescente de professores naexploração pedagógica dos processadores de texto, dasfolhas de cálculo, dos sistemas de gestão de bases dedados e dos programas de projecto assistido por compu-tador são exemplos de aplicações escolares em que estasconclusões começarm a ser tidas em consideração.

Como estas, muitas outras aquisições recentes da ciên-cia cognitiva começam a influenciar a concepção desuportes lógicos educacionais e as estratégias seguidaspelos pedagogos na utilização dos computadores comoauxiliares da aprendizagem. É nesse espírito que asvariáveis individuais dos alunos (níveis de inteligênciageral, conhecimentos prévios, estilos cognitivos, pré--representações, tempos de latência) começam a ser arti-culadas com modelos descritivos dos processos de apren-dizagem, modelos do conhecimento, análises dosconteúdos e produtos das actividades, tendo em vistaassegurar uma utilização educacional do computadorcada vez mais qualificada.

MODALIDADES DE UTILIZAÇÃO DOS COMPUTADORESNA EDUCAÇÃO

Uma forma relativamente eficiente de familiarizar oleitor com as utilizações educacionais dos computadoresconsiste em descrever, segundo uma perspectiva taxonó-mica, as diversas modalidades de que se pode revestiressa utilização. Seguiremos aqui as linhas gerais de umaabordagem adoptada pela OCDE, que distingue trêsgrandes modalidades, ou modos, de utilização: o modotutor, o modo ferramenta e o modo instruendo (Quadro1). No “modo tutor”, o computador; tal como um tutorhumano, assume, de forma mais ou menos directiva, opapel de orientador do processo de aprendizagem. No“modo ferramenta”, o computador tem um papel muitomais neutro, e independente das matérias a aprender,comportando-se essencialmente como um instrumentoque o aluno utiliza com grande margem de iniciativa narealização de tarefas que, directa ou indirectamente, seinscrevem no processo de aprendizagem. Quanto ao“modo instruendo”, poderemos descevê-lo como sendo oreverso do modo tutor: o computador assume-se comodiscípulo, e deixa ao aluno a incumbência de se compor-tar como tutor.

Quadro 1Modalidades de utilização dos computadores na educação

Os exemplos mais clássicos do modo tutor, representa-dos pelos denominados “programas tutores”, ou simples-mente “tutores”, remontam aos anos sessenta, e corres-pondem à aplicação das teorias behaviouristas de Skinnere de Crowder sobre o ensino programado. Os programastutores apresentam-se como conjuntos de perguntas--respostas organizados segundo sequências lineares, ouobedecendo a redes ramificadas em vários níveis de difi-culdade, nos quais a progressão do aluno é condicionadapela sua capacidade de fornecer ao computador res-postas previstas. A rigidez estrutural destes programas,

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que os torna inadequados para todas as formas de explo-ração que não tenham sido previstas pelo autor, res-tringe consideravelmente a sua aplicabilidade. Noentanto, algumas evoluções mais recentes, nas quais seprocurou superar as limitações de uma lógica estrita-mente behaviourista, rêm encontrado algum sucesso, emparticular na aprendizagem de aspectos sectoriais daMatemática e das Ciências da Natureza. Por outro lado,quando não explorados de forma exclusiva, mas simcomo componentes de programas que integram algumasdas outras modalidades, ou mesmo como componentesde conjuntos multimedia de aprendizagem, os progra-mas tutores podem constituir auxiliares de utilidadeinquestionável.

Com os progressos da investigação em InteligênciaArtificial e a aproximação entre os investigadores destedomínio e os da Psicologia Cognitiva, a filosofia dosprogramas tutores desdobrou-se muito recentementepara um novo rumo, radicalmente afastado das influên-cias behaviouristas: o dos “sistemas tutores inteligentes”.Um sistema tutor inteligente típico procura conduzir oaluno num processo de aprendizagem que o vai aproxi-mando do nível de competência do perito na matéria aaprender. Para esse efeito, um sistema tutor inteligentecomporta três módulos: um sistema pericial, que simulao conhecimento que um perito tem sobre a matéria aaprender, e que, a partir desse conhecimento, é capazde responder às questões colocadas pelo aluno, de anali-sar as respostas que o aluno dá, de gerar exemplos, e deexplicar as soluções que propõe; um módulo de diagnós-tico, que, com base nas respostas do aluno, vai cons-truindo um modelo cognitivo do aluno com quem estáa interactuar; e um módulo das estratégias de progres-são, que, tomando. em consideração o modelo que vaiconstruindo do aluno, vai definindo a sequência de tare-fas que melhor se adapta ao seu nível de compreensão,competência e estilo cognitivo.

Como se ilustra no Quadro 1, os “exercicios repetiti-vos” são outra das modalidades da utilização do compu-tador como tutor. Trata-se igualmente de uma aborda-gem nascida das interpretações behaviouristas doprocesso de aprendizagem, que explora, neste caso, aspotencialidades do computador como meio de assegurar,por um lado, mecanismos de reforço, e por outro a con-dução do aluno ao longo de uma cadeia de exercícios decomplexidade crescente. O computador propõe um pro-blema ao qual o aluno procura dar resposta: se a res-posta for certa, o computador apresenta outro problemade maior dificuldade; se for errada, o computadorsugere problemas mais fáceis, e poderá, eventualmente,aconselhar o auxílio do professor. Ao contrário dos pro-gramas tutores, os programas de exercícios repetitivosnão prevêm, em geral, a apresentação de matéria nova.

Esta segunda modalidade de utilização do computadorem modo tutor tem encontrado algum sucesso quandoexplorada fora da sala de aula, nomeadamente: no apoio

a disciplinas que, como as de línguas estrangeiras, exi-gem a aquisição e reforço de automatismos; em estraté-gias de recuperação de alunos com dificuldades deaprendizagem; e como forma de orientar e estimularalguns alunos em trabalhos individuais de consolidaçãode conceitos. No entanto, o facto de se limitar a promo-ver a criação de automatismos de baixo nível, e o seuemprego indiscriminado, normalmente desenquadradode uma cuidadosa fundamentação pedagógica que eviteque se substitua ao estímulo de faculdades de raciocíniosuperiores, tem conduzido a grande número de práticasaberrantes, e justifica muito do cepticismo que temvindo a ser alimentado a seu respeito. Constitui, apesardisso, ainda, a modalidade mais divulgada no mercadomundial, onde empresas, muitas vezes de competênciapedagógica duvidosa, conseguem, através do aliciante daimagem e da cor, encantar os professores e responsáveisescolares menos preparados para a introdução dos com-putadores nas escolas. A complementaridade evidenteentre a utilização do computador em exercícios repetiti-vos e a sua utilização em programas tutores justifica queos dois métodos se encontrem frequentemente associa-dos, e que alguns autores optem mesmo por os agruparnuma única categoria.

Uma terceira modalidade da utilização do computadorcomo tutor é a que corresponde à sua exploração comoinstrumento de “simulação e construção de modelos”.O computador é usado, neste caso, para construir umadescrição simplificada do mundo real, reduzindo-o a umconjunto de elementos, condições, relações e processosque facilitam o seu estudo. Pode-se construir, assim, porexemplo, o modelo de um reactor nuclear, de umacadeia da indústria química, de um acontecimento histó-rico, ou de um fenómeno físico, químico ou biológico,e deixar que o aluno, por simples alteração de variáveis,verifique à vontade a confirmação, ou não, das hipótesesque emitiu acerca desse modelo. Se é certo que a reali-dade que se oferece ao aluno, mesmo na aula tradicio-nal, é uma realidade transformada simbolicamente,organizada, codificada, e suportada por diferentes meios,no caso particular do recurso a simulações por computa-dor a representação da realidade pode ocorrer com carac-terísticas de tal modo poderosas - no volume de variá-veis que podem ser manipuladas, na multitude derelações que podem ser estabelecidas, e na própria com-pressão ou esbatimento temporais que podem ser explo-rados - que alguns autores consideram que o uso desimulações por computador constitui a maior contribui-ção da informática para o progresso da prática educativa.Sem elas, com efeito, fenómenos que, pela sua rapidez,longa duração, complexidade, escala, perigo, ou custo,nunca estariam ao alcance do estudioso humano, emuito menos da realidade escolar, podem ser facilmentereproduzidos e colocados à disposição do aluno, paraque os estude com a minúcia e profundidade que lheaprouver.

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Para além de permitirem a descoberta, pelo aluno,dos valores de parâmetros e das relações entre parâme-tros, e de lhe possibilitarem estudar fenómenos e siste-mas através da introdução, na simulação, de variáveisque os seus próprios saber e experiência lhe ditem, mui-tos destes programas permitem ainda ao aluno aprendera desenvolver, ele próprio, os modelos dos fenómenos esistemas a estudar, e testar a respectiva validade. Apesarda flexibilidade que proporcionam, são, em geral, pro-gramas em que o computador assume um papel impor-tante na condução do processo de aprendizagem,guiando o aluno para uma trajectória certa quando assuas tentativas se revelam infrutíferas ou inconsequentes,e por isso mesmo são ainda classificados como perten-cendo ao modo tutor.

Também no modo tutor se incluem os programas de“resolução de problemas”, quarta modalidade que aquianalisamos. Nesta categoria de programas o aluno temque definir, ele próprio, os algoritmos adequados para aresolução dos problemas que lhe são colocados. Emalguns casos o problema fica resolvido quando o alunorealiza um cálculo mais ou menos complicado, mas nou-tros casos é o próprio computador que realiza o cálculouma vez garantido que o aluno definiu a estratégia cor-recta para a resolução do problema. Noutros casos,

ainda, o programa vai mais longe, e exige uma análisedos erros cometidos no estabelecimento da estratégia deresolução.

Nos “jogos educativos”, quinta modalidade a ser aquidiscutida, o computador é usado para criar situaçõeslúdicas cujo poder motivador é utilizado para incentivara aprendizagem. Alguns destes programas recorrem atécnicas de simulação, mas a maior parte baseia-se ernmecanismos mais simples. Embora o valor educacionaldestes jogos seja muitas vezes contestado, alguns autoresdefendem a sua utilidade para o desenvolvimento decompetências associadas à recolha e manipulação dedados, previsão, planeamento, análise, geração e verifica-ção de hipóteses, observação e descoberta. É indispensá-vel, em qualquer dos casos, grande moderação e compe-tência pedagógica na sua selecção, e particularescuidados em evitar que os aspectos motivacionais obscu-reçam os objectivos da aprendizagem. A maior parte dosjogos, ditos educativos, que se encontram hoje em diano mercado não permitem, infelizmente. satisfazer estespressupostos.

Um tipo particular de jogo educativo que começou amerecer recentemente grande aceitação por parte dealguns dos educadores dedicados aos níveis etários maisbaixos é o dos “jogos de aventura”. Os jogos de aventura

Fig. 3 - Quadro de um programa de História, sobre a expansão portuguesa, retirado de uma sequência que analisa o Tratado de Tordesilhas.

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colocam os alunos num mundo de fantasia no qual lhessão postos problemas que têm que resolver antes depoderem prosseguir. Segundo os seus defensores, osjogos de aventura desenvolvem a concentração e clarezade raciocínio, promovem a discussão, desenvolvem capa-cidades de tomada de decisão, de resolução de proble-mas, de linguagem e de compreensão, e auxiliam odesenvolvimento do sentido espacial e de direcção.

Recentemente, passou a dedicar-se grande atenção auma nova categoria de programas educativos - os “pro-gramas abertos”, ou “programas livres de conteúdo”.Estes programas constituem ferramentas destinadas a serconfiguradas pelo próprio professor de uma disciplina ougrupo de disciplinas. São concebidos de forma aprestarem-se a simples adaptação às mais variadas situa-ções de aprendizagem da(s) disciplina(s) em causa, facili-tando a inserção de novas perguntas, de novas respostas,de novas grelhas, ou de textos ou gráficos adequados aesta ou aquela situação que se pretenda explorar na salade aula. Diferentes conjuntos de perguntas, respostas,grelhas, textos ou gráficos podem ser armazenados emficheiros distintos, para serem utilizados posteriormentenas aulas, ou para serem trocados entre professores.

Um programa aberto permite sempre o funciona-mento em dois modos: o “modo professor”, que é usado

pelo professor para, recorrendo às estruturas e comandosque o programa lhe oferece, e que foram especifica-mente concebidos para facilitar a sua tarefa, configurarsequências de aprendizagem, ou exercícios acompanha-dos das respostas que pretende que lhe correspondam; eo “modo aluno”, que apresenta ao aluno, para explora-ção ou resolução, as sequências ou exercícios que o pro-fessor configurou.

Como exemplo muito simplificado de um programaaberto, poderíamos imaginar um que se destinasse àconstrução de palavras cruzadas, para aplicação noensino de um língua estrangeira. O modo professorcolocaria à disposição do mestre um conjunto de coman-dos que lhe permitissem construir facilmente um grelha,preenchida, de palavras cruzadas. O modo aluno apre-sentaria as palavras cruzadas por preencher, e iria esti-mulando ou auxiliando o aluno à medida que os seusprenchimentos fossem, ou não, correspondendo aos pre-vistos pelo professor. O programa é considerado “aberto”na medida em que poderia ser usado para construir asmais distintas palavras cruzadas, quer por diferentes pro-fessores, quer pelo mesmo professor mas com graus dedificuldade variáveis consoante as matérias que preten-desse, ao longo do ano, exercitar. Na prática, um pro-grama aberto é obviamente muito mais poderoso, tanto

Fig. 4 - Os grandes impérios coloniais, numa outra sequência do programa da figura anterior.

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na variedade de estruturas e contextos de exploraçãopedagógica que coloca à disposição do professor como nagama de comandos, em geral extremamente simples eintuitivos, que lhe fornece para a reconfiguração dessasestruturas e contextos.

A modalidade mais corrente de utilização do compu-tador em modo ferramenta (Quadro 1) corresponde aorecurso a suportes lógicos de aplicação, profissionais, deindole não pedagógica, como os processadores de texto,os sistemas de gestão de bases de dados, as folhas decálculo, os programas de projecto assistido por computa-dor, e grande número de outros suportes lógicos quecomeçam a surgir no mercado profissional. A aplicaçãodestas ferramentas nos ambientes escolares tem vindo arevelar largas potencialidades, e a exploração de novasaplicações pedagógicas, e consolidação das já identifica-das, constitui hoje em dia aturado tema de estudo porparte de grande número de pedagogos. Por outro lado,e dado que se trata de ferramentas que são usadas deforma crescente numa grande variedade de profissões, asua utilização em educação permite estabelecer umimportante elo de ligação entre a actividade escolar e arealidade profissional.

O recurso a processadores de texto, por exemplo, estáa proporcionar a exploração de abordagens inovadoras daaprendizagem da escrita, da estruturação de ideias, e dacomunicação em geral, e está a encontrar considerávelsucesso em algumas actividades relacionadas com aaprendizagem de línguas.

Os sistemas de gestão de bases de dados estão a pro-piciar interessantes aplicações em disciplinas como a His-tória, as Ciências Sociais, a Geografia, a Biologia, ou aGeologia, onde permitem manipular volumes de dadosque seriam ingeríveis sem o auxílio de computadores,prestando-se a análises estatísticas e ao estabelecimentode variadíssimas relações, quer dentro de uma disciplina,quer cruzando as fronteiras entre disciplinas (relaçãoentre pluviosidade, temperatura e culturas agrícolas; ourelação entre hidrografia e implantação urbana ao longodos tempos).

As folhas de cálculo, que uma organização modernanão pode hoje em dia dispensar nas suas aplicações deanálise financeira, planeamento e gestão, têm reveladoconstituir ferramentas particularmente poderosas comoauxiliares da aprendizagem das ciências exactas, naturaise sociais. Com efeito, como o estudo de grande númerode fenómenos se pode realizar em torno de uma repre-sentação tabular, bidimensional, de grandezas ou devariáveis, e como a transcodificação dessas representaçõesbidimensionais para curvas de variação, gráficos de bar-ras e diagramas circulares auxilia, em muitos casos, avisualização e compreensão de fenómenos complexos, asfolhas de cálculo revelam ser utensílios de grande flexi-bilidade na realização desses estudos. Assim, em aplica-ções destinadas aos níveis etários mais baixos, permitemque os alunos façam a introdução de dados e confirmem

e visualizem os resultados da aplicação de leis cujas fór-mulas foram previamente introduzidas pelo professor nafolha de cálculo. Quando exploradas por alunos commaior maturidade intelectual, permitem que sejam ospróprios alunos a ensaiar as leis e fórmulas a introduzir,e transformam-se, então, em instrumentos de simulaçãoque em alguns casos se revelam particularmentefecundos.

Uma segunda categoria de utilizações dos computado-res em modo ferramenta é proporcionada pelos denomi-nados “laboratórios apoiados por microcomputadores”.Neste tipo de aplicação os computadores são usadoscomo instrumentos dos laboratórios de ciências físicas enaturais, onde efectuam a aquisição de dados a partir domundo real, executam a medida de grandezas físicas,traçam gráficos, processam as grandezas medidas, ecomandam diversas formas de actuação sobre o mundoexterior. Existe hoje em dia uma larga gama de sensoresque podem ser ligados aos computadores em trabalhoslaboratoriais de indole pedagógica, e que permitemmedir grandezas eléctricas, campos magnéticos, distân-cias, velocidades, acelerações, temperaturas, pressões,fluxos de escoamento, níveis de intensidade luminosa,sonora ou radioactiva, pHs, e muitas outras grandezas.

Para além de permitir recolher dados, um computadorpode simular um instrumento (como um osciloscópio,um analisador de espectros, um analisador lógico, ouum gerador de ondas), ou a combinação de vários ins-trumentos (e comporta-se então como um laboratóriointegrado). Pode ainda simular processos complexos,como, por exemplo, processos químicos industriais, ouprocessos de controlo industrial, recolhendo e proces-sando os dados físicos relevantes, e activando actuadoresque accionam interruptores, válvulas, motores de passo,servomotores, bombas hidráulicas, ou braços de robôsque controlam o processo.

Fig. 5 - Quadro de um programa aberto, para o ensino do Francês:Em “modo professor” cabe ao professor escolher o tema e ... o resto.

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Para ilustrar um caso simples da utilização de umlaboratório apoiado em microcomputadores pode-secitar, por exemplo, no domínio da biologia, o do usodo computador como instrumento de recolha e processa-mento de dados recebidos de sensores colocados emzonas-chaves de uma gaiola na qual se procura estudara frequência com que um animal em observação temacesso a água, alimento, dormida e exercício.

A terceira modalidade de utilização dos computadoresem modo ferramenta corresponde ao emprego, pelosprofessores, de “sistemas de gestão do ensino/aprendiza-gem”, isto é, de suportes lógicos que os auxiliam no pla-neamento das suas actividades docentes, na gestão derecursos de aprendizagem, na manutenção de registos, ena elaboração, classificação e tratamento estatístico detestes e de outros elementos de avaliação, quer do pro-gresso dos alunos, quer da sua própria actividade.

A utilização do computador como instruendo (Quadro1) coloca o aluno na posição, pouco usual e particular-mente motivadora, de tutor: tutor do computador, oututor dos seus colegas (e do próprio professor), atravésdo computador. Esta transferência da ênfase da aprendi-zagem do produto final para o processo, da aquisição defactos para a sua estruturação e compreensão tendo emvista a satisfação do prazer de resolver problemas e deensinar, era impossível, ou só muito marginalmente sus-ceptível de exploração, no ambiente massificado da aulatradicional. A forma mais consagrada de exercer estamodalidade de aprendizagem assenta no recurso a lin-guagens de programação, e, em particular, no recurso àlinguagem LOGO. Concebida por Simon Papert, doMIT, de acordo com as teorias construtivistas de Piaget,a linguagem LOGO tem como principal objectivo facili-tar a aprendizagem dos princípios de resolução de pro-blemas através de uma via exploratória que facilita aoaluno a combinação e encadeamento de procedimentos,

a criação de novos procedimentos, e a alteração extrema-mente fácil de procedimentos e estratégias que se reve-lem inadequados.

A forma mais divulgada de aplicação da linguagemLOGO assenta na manipulação de entes geométricos,facilitada pela chamada “geometria da tartaruga”. A tar-taruga é uma pequena figura que se desloca sobre o ecrãem resposta a um conjunto muito simples de comandosfornecidos pelo aluno. Através de sequências dessescomandos - que constituem, afinal, programas da lin-guagem LOGO - a criança pode fazer com que a tarta-ruga desenhe figuras geométricas com os mais variadosgraus de complexidade, pode movimentar essas figuras,e pode repeti-las à vontade. Uma série de operações pri-mitivas previstas na linguagem permitem, por outrolado, produzir programas de índole não geométricacapazes de se revestir de níveis de complexidade e degraus de abstracção muito mais elevados.

O conceito, de micromundo, entendido como umambiente simulado em computador, dotado de umalógica interna, mas flexível, susceptível de ser modifi-cado pelos alunos nas suas actividades de exploração,descoberta e resoluçáo de problemas, foi largamenteexplorado por Papert, que utilizava a linguagem LOGOcomo uma importante ferramenta para a construção demicromundos. Nessa linha, grande número dos micro-mundos presentemente a serem explorados nas salas deaula baseia-se no recurso à linguagem LOGO. Noentanto, o conceito de micromundo é anterior às pro-postas de Papert, e transcende largamente a utilizaçãoda linguagem LOGO. Originalmente proposto por Fis-her, Brown e Burton, em 1978, o conceito de micro-mundo corresponde a uma metodologia holística daaprendizagem, que os seus autores ilustravam com umexemplo baseado na aprendizagem do esqui: até àinvenção dos esquis curtos a aprendizagem desta modali-

Fig. 6 - Quadro do programa da figura anterior, agora em “modo alu-no”: o tema era “moyens de transport” e o aluno acertou mais umapalavra.

Fig. 7 - O mesmo quadro, quase concluído ...

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dade desportiva exigia enorme esforço e dedicação, res-tringindo significativamente o número de praticantes;com a invenção de esquis curtos a aprendizagem passoua fazer-se com o instruendo a começar por usar esquiscurtos, e mudando gradualmente para esquis maiores. Aaprendizagem tornou-se, assim, incomparavelmente maisrápida e eficaz, colocando o esqui ao alcançe de umapopulação muito alargada, e aumentado consideravel-mente o número de bons praticantes.

Transportado para as utilizações educacionais dos com-putadores, este conceito veio inspirar a criação deambientes de descoberta cuja complexidade vai aumen-tando à medida que o aluno progride. A lógica destesambientes, ou micromundos, é que no seu seio o aluno“aprende fazendo”, primeiro com bastantes apoios pro-porcionados pelo programa, e depois, gradualmente,cada vez com menos apoios. O desenvolvimento demicromundos com base em “kits” que, em vários domí-nios, auxiliam os alunos nas suas construções, constituihoje em dia uma área à qual se dedica grande númerode investigadores.

OS COMPUTADORES NAS ESCOLAS EM PORTUGAL

A introdução sistemática, gradual, dos computadoresnas escolas portuguesas teve lugar a partir de Outubrode 1985, com a criação do Projecto MINERVA (MeiosInformáticos Na Educação: Racionalização, Valorização,Actualização), dirigido para os objectivos de introduziras tecnologias da informação na prática educativa e nosplanos curriculares, e de promover a formação de profes-sores e de formadores para levarem a cabo essa tarefa.O número de escolas abrangidas evoluiu ao longo dosprimeiros anos do projecto de acordo com o Quadro 2,e correspondeu à cobertura geográfica, por concelhos edistritos, descrita no Quadro 3.

Quadro 2

Evolução dos números de escolas abrangidas pelo projecto Minerva

Quadro 3

Concelhos e distritos abrangidos pelo projecto Minerva

Durante a fase piloto do projecto, que durou trêsanos, a sua infra-estrutura de planeamento e execuçãofoi constituída por uma rede de universidades e escolassuperiores de educação - os “pólos” e “núcleos” do pro-jecto. Em Outubro de 1988 existia já um total de 10universidades e 12 escolas superiores de educação activa-mente empenhadas no projecto, e as equipas envolvidascobriam um largo espectro de especialidades, desde asciências exactas e naturais até à psicologia, ciências daeducação e sociologia, passando pela informática e enge-nharia de sistemas.

No que respeita à sua organização e funcionamento, oProjecto MINERVA desenvolveu-se, durante a sua fasepiloto, de acordo com as seguintes grandes opções:

- descentralização, quer geográfica, quer funcional,aos diversos níveis de organização, e consequenteatribuição de elevada relevância à iniciativa dosseus grupos constituintes;

- crescimento gradual, centrado numa dinâmica deexperimentação e de reflexão sobre os resultadosalcançados, orientada para uma assimilação cres-cente pela classe docente e pelos diversos níveis deensino;

- atribuição de particular importância à componentede investigação e desenvolvimento, materializadano papel central atribuído às universidades e esco-las superiores de educação;

- estruturação orientada para a garantia de que, pelacombinação das entidades intervenientes, o pro-cesso, sendo apoiado em elevada competência tec-nológica, se mantivesse, no entanto, permanente-mente animado e controlado pelos objectivoseducacionais.

Fig. 8 - ... e o resultado do exercício.

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A formação de professores em serviço foi uma dasáreas que mobilizou maiores esforços. Esta área foientendida pelo projecto num sentido que abrangeu arealização de actividades de animação pedagógica e umapoio continuado às escolas ao longo de cada ano lec-tivo. O objectivo fundamental desta abordagem foi o deassegurar, em todas as escolas abrangidas, uma utilizaçãopedagógica qualificada dos computadores e de criar umambiente estimulante de autoaperfeiçoamento no qualfosse possível aos professores desenvolverem, e adapta-rem à sua experiência e intuições, um sentido projectivoda utilização das tecnologias da informação na educação.

As actividades de investigação e desenvolvimentoactualmente em curso nas equipas do projectoMINERVA têm lugar fundamentalmente nas universida-des e em algumas das escolas superiores de educação.

Cerca de quatro dezenas de doutorados (no País e noestrangeiro) e três dezenas de possuidores do graus deMestre, para além de mais de duas centenas de licencia-dos numa larga gama de áreas, integram actualmente as

equipas do Projecto MINERVA, e várias dessas equipasestão profundamente empenhadas em projectos deenvergadura no dominio da utilização das tecnologias dainformação na educação, alguns no âmbito de programasda Comissão das Comunidades Europeias.

Com a entrada recente do projecto na fase operacio-nal, que corresponde à sua integração gradual no sis-tema normal de planeamento do sector da educação,inicia-se uma fase de consolidação das infra-estruturas deformação e de investigação nascidas na fase piloto, alar-gamento da acção do projecto ao todo nacional, e arran-que de iniciativas que assegurem um desenvolvimentoinstitucional harmonioso em todas as frentes. Os compu-tadores começam, assim, a ser tranquilamente assimila-dos pela realidade escolar. Não serão, por certo, umapoção milagrosa para todos os males da educação, masa sua presença no dia-a-dia escolar promete tornar-se tãoútil, familiar e natural como já o começa a ser, implícitaou explicitamente, na vida diária de praticamente todosnós.

As obras de índole geral mais bem conseguidas sobre o tema dautilização dos computadores nas escolas têm sido publicadas pelaOCDE, através do seu “Center for Educational Research andInnovation”, destacando-se em particular as seguintes:

Center for Educational Research and Innovation (CERI), “NewInformation Technologies: a Challenge for Education”, ou em ediçãofrancesa, “Les Nouvelles Technologies de L’Information: un Défi pourl’Education”, OCDE, Pans, 1986.

Center for Educational Research and Innovation (CERI), “InformationTechnologies and Basic Learning: Reading, Writing, Science andMathematics”, ou, em edição francesa, “Technologies de L’Informationet Apprentissages de Base: Lecture, Écriture, Sciences et Mathématiques”,OCDE, Paris, 1987.

Center for Educational Research and Innovation (CERI), “The Search forQuality in Educational Software”, ou, em edição francesa, “Pour uneMeilleure Qualité des Logiciels d’Enseignement”, Draft CERI / NT/ 88.01,OCDE, Paris, 1988.

De entre os textos que analisam os resultados da introdução dos com-putadores nas escolas de um país ou região merecem especial destaque:

Center for Educational Research and Innovation (CERI), “The

Introduction of Computers in Schools: The Norwegian Experience”,Examiner’s Report, OCDE, Paris, Nov. 1988.

Scottish Education Department,”Learning and Teaching in ScottishSecondary Schools: The Use o f Microcomputers”, A Report by HMInspectors of Schools, HMSO Publications Centre, London, 1987.

O leitor interessado em adquirir uma panorâmica geral sobre aevolução e estado actual da ciência cognitiva encontrará um estudo ri-goroso e de agradável leitura no livro:

Howard Gardner, “The Mind’s New Science: A History of the CognitiveRevolution”, Basic Books, New York, 1987.

O trabalho mais completo, em língua portuguesa, sobre a utiliza-ção dos computadores nas escolas é:

João Ponte “O Computador - Um Instrumento da Educação”, TextoEditora, 1986.

O leitor interessado em alargar os seus conhecimentos sobre estamatéria poderá ainda contactar os pólos e núcleos do Projecto MI-NERVA, alguns dos quais têm produzido ao longo dos últimos anos vá-rios trabalhos que, embora com tiragens e circulação restrita, se reves-tem de grande utilidade.

SUGESTÕES DE LEITURA

O autor deseja exprimir o seu agradecimento ao pólo de Coimbra do Projecto MINERVA e às escolas Avelar Brotero e Eugénio de Castropelas imagens, que acima reproduz, de programas educacionais desenvolvidos no âmbito das respectivas actividades. Agradece igualmente aoprofessor Secundino Correia a cedência das duas fotografias iniciais, e ao Prof. Doutor Ernesto Costa a estimulante troca de impressões sobre sis-temas tutores inteligentes.

AGRADECIMENTOS

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