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TERRITÓRIOS INQUIETOS: os processos de subjetivação dos professores da rede pública estadual Dóris Maria L Fiss 1 Resumo: este trabalho decorre de uma pesquisa-assessoria (1996-1998) desenvolvida com a participação de professores de uma escola pública estadual de Porto Alegre, que teve como objetivo analisar os processos de constituição da autoria, suas implicações no engendramento das propostas pedagógicas e inter-relações. O estudo também teve como objetivos a realização de uma análise do discurso pedagógico com a finalidade de discutir sobre os processos de subjetivação das professoras e a constituição heterogênea dos sujeitos e dos sentidos. O campo discursivo de referência compreende o discurso pedagógico. Abstract: this study originates from a research and consulting work (1996/1998) developed with the participation of teachers of a state-owned public school in Porto Alegre. This research aimed at analyzing the processes of constitution of authorship, their implications in the engendering of the pedagogical proposals and interrelations. The study also aimed at an analysis of the pedagogical discourse with the purpose of discussing the subjectivation processes of the teachers and the heterogeneous of the subjects and meanings. The discoursive field of reference comprehends pedagogical discourse. Palavras-chave: processos, discurso, autoria, professores Key-words: processes, discourse, authorship, teachers Preâmbulos: o lugar da autoria e do mal-estar na constituição do sujeito-professor O trabalho que ora se discute surgiu como uma espécie de prolongamento e ampliação de pesquisa realizada no período entre 1996 e 1998. Na época, voltei minha atenção sobretudo para o que sentem os educadores da rede pública estadual no 1 Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (UFRGS) vinculada à Linha de Pesquisa O sujeito da educação: conhecimento, linguagem e contextos – Área de Estudos em Educação e Análise de Discursos.

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Resumo: este trabalho decorre de uma pesquisa-assessoria (1996-1998) desenvolvida com a participação de professores de uma escola pública estadual de Porto Alegre, que teve como objetivo analisar os processos de constituição da autoria, suas implicações no engendramento das propostas pedagógicas e inter-relações. O estudo também teve como objetivos a realização de uma análise do discurso pedagógico com a finalidade de discutir sobre os processos de subjetivação das professoras e a constituição heterogênea dos sujeitos e dos sentidos. O campo discursivo de referência compreende o discurso pedagógico.Abstract: this study originates from a research and consulting work (1996/1998) developed with the participation of teachers of a state-owned public school in Porto Alegre. This research aimed at analyzing the processes of constitution of authorship, their implications in the engendering of the pedagogical proposals and interrelations. The study also aimed at an analysis of the pedagogical discourse with the purpose of discussing the subjectivation processes of the teachers and the heterogeneous of the subjects and meanings. The discoursive field of reference comprehends pedagogical discourse.Palavras-chave: processos, discurso, autoria, professoresKey-words: processes, discourse, authorship, teachers

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Page 1: Artigo Para Revista Da Unisc

TERRITÓRIOS INQUIETOS: os processos de subjetivação dos professores da rede pública estadual

Dóris Maria L Fiss1

Resumo: este trabalho decorre de uma pesquisa-assessoria (1996-1998) desenvolvida com a participação de professores de uma escola pública estadual de Porto Alegre, que teve como objetivo analisar os processos de constituição da autoria, suas implicações no engendramento das propostas pedagógicas e inter-relações. O estudo também teve como objetivos a realização de uma análise do discurso pedagógico com a finalidade de discutir sobre os processos de subjetivação das professoras e a constituição heterogênea dos sujeitos e dos sentidos. O campo discursivo de referência compreende o discurso pedagógico.Abstract: this study originates from a research and consulting work (1996/1998) developed with the participation of teachers of a state-owned public school in Porto Alegre. This research aimed at analyzing the processes of constitution of authorship, their implications in the engendering of the pedagogical proposals and interrelations. The study also aimed at an analysis of the pedagogical discourse with the purpose of discussing the subjectivation processes of the teachers and the heterogeneous of the subjects and meanings. The discoursive field of reference comprehends pedagogical discourse.Palavras-chave: processos, discurso, autoria, professoresKey-words: processes, discourse, authorship, teachers

Preâmbulos: o lugar da autoria e do mal-estar na constituição do sujeito-professor

O trabalho que ora se discute surgiu como uma espécie de prolongamento e

ampliação de pesquisa realizada no período entre 1996 e 1998. Na época, voltei minha

atenção sobretudo para o que sentem os educadores da rede pública estadual no que tange à

sua profissão, imagem, relação com alunos e colegas, engajamento na luta por seus direitos,

construção de uma prática pedagógica crítico-reflexiva. Da participação nos Conselhos de

Classe, em aulas, reuniões, encontros informais e outros eventos organizados pela escola

em que se desenvolveu a pesquisa, surgiu o meu interesse por analisar os sentidos

manifestados nas falas das educadoras, relativos a suas posições de autoras nas diferentes

situações vividas no contexto pedagógico. Tomei, portanto, o discurso pedagógico como

campo discursivo de referência, sob a perspectiva do dizer do professor na escola pública

estadual nos dias de hoje.

A partir dos diálogos estabelecidos com as professoras e da análise discursiva

de suas falas, algumas idéias se evidenciaram no que diz respeito à escola e aos modos de

1 Mestre e Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (UFRGS) vinculada à Linha de Pesquisa O sujeito da educação: conhecimento, linguagem e contextos – Área de Estudos em Educação e Análise de Discursos.

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funcionamento dos sujeitos. Foi possível perceber que, na instituição-escola, o

compromisso com a abertura de espaços de ação outros, para além daqueles articulados a

um paradigma mais tradicional (racionalista), adquire uma dimensão em que o aprender a

se colocar como professor-autor corresponde ao assumir esse papel social na realidade

possível para a instituição – o que me levou a insistir na possibilidade de ressemantização

do ato pedagógico e do espaço/tempo escolar. Exatamente por existir uma articulação

possível entre a ação docente e movimentos de avanços e recuos, subversões, audácias e

medos, resistências e desistências, percebi a condição de possibilidade de reinterpretações

dos tempos/espaços e dos mais diversos deslocamentos dos sujeitos e dos sentidos nesses

tempos e espaços (Fiss, 1998).

A elaboração teórica desses movimentos flutuantes que conjugavam processos

de autoria e de mal-estar permitiu vários questionamentos. Em decorrência disso, alguns

passos importantes foram dados no sentido de situar, um pouco melhor, o lugar da autoria e

do mal-estar na economia das práticas pedagógicas desenvolvidas na instituição. Apesar de

o professor, às vezes, buscar construir forças unificantes de repúdio a normas pré-

fabricadas, não é possível esquecer que estas mesmas forças estão veiculadas a uma

tradição que pode “enquadrar” sua concepção de mundo. Em outras palavras, não existem

garantias de que a construção de novas dimensões de autoria, de fato, dissipe o mal-estar da

cotidianidade dos educadores. Somado a isso, o trabalho realizado conduziu a uma

reflexão, pelo menos, estarrecedora: em muitas circunstâncias, as professoras, ao tomarem

distância do mal-estar, terminam por representá-lo como uma situação de bem-estar. Elas

tendem a se defender da problematização da prática pela ocultação da mesma, disfarçando

seus procedimentos e mascarando a si mesmas. Tendem a se anular enquanto sujeitos,

muitas vezes, em função do medo de serem descobertas, ou melhor, questionadas em seu

modo de ser professora e em seu fazer pedagógico. Esta conclusão conduziu a outra:

funcionando de maneira diferente, reagindo e respondendo ao mal-estar de formas distintas,

as professoras terminam por constituir lugares diferentes em que se situam – o que

corresponde a também diferentes posições de sujeito assumidas e à produção de modos de

interpretação distintos.

Tais considerações remetem a outro fenômeno tão importante quanto grave:

aquilo que designo como divisão social do trabalho de autoria e cujas marcas é possível

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encontrar na escola. Com relação às professoras, parece estar claro que lhes foi delegada a

tarefa de funcionar no campo da proibição da interpretação, portanto, do recalque da

autoria. Da mesma forma, parecem estar claros os níveis de ansiedade e de sofrimento

decorrentes do cumprimento de um papel que está sempre a questionar este mesmo papel,

imprimindo-lhe sentidos de desvalia. Ou seja, está sempre a, contraditoriamente, prometer a

segurança de um lugar garantido, porque institucionalizado, e a abandonar as professoras

no vazio das concepções que sustenta.

Assim, é importante destacar que, tendo remetido a diferentes posições de

sujeito, o mal-estar ocupou grande parte do tempo/espaço de análise. Por mal-estar

compreendi, num primeiro momento, a situação de indigência que atinge o professor em

seus valores, princípios e atitudes, levando-o a exercer atividades que têm por fim a

disciplina dos alunos e a auto-disciplina, a manutenção da ordem social, do status quo e

das relações políticas (Fiss, 1998, p. 20). Ele deve adaptar seus atos e suas finalidades,

reduzindo sua existência aos limites do narcisismo social. Em outras palavras, deve reger

suas ações segundo normas e critérios que lhe são estranhos. Apesar disso, precisa segui-las

para que se torne supostamente “igual” aos outros, constituindo, assim, uma espécie de

comunidade de referência de que permanece ausente o diálogo enquanto processo produtor

de conhecimento. Tal concepção de mal-estar, no entanto, foi ressignificada à medida que

as experiências e convivências com as professoras da escola iam se entrecruzando.

Por conseguinte, constatei que este mesmo mal-estar, lugar onde o sujeito se

descobre “exilado” de si próprio, pode se constituir em dispositivo de transgressão das

limitações impostas pela árida realidade que vem acompanhada por sentimentos de

abandono e desvalia. Daí se falar em mal-estar como um momento de autoria, como

condição de possibilidade de autoria. Apontei, no discurso das professoras, os lugares do

mal-estar em relação ao instituído, os lugares de deslocamento de posição, os lugares de

autoria. A partir das análises discursivas, mostrei constituir-se o mal-estar enquanto lugar

extremamente paradoxal (Fiss, 1998, p. 110) que se manifesta sob a forma de queixas

centradas numa perspectiva corporativista, pelo desconcerto e insatisfação diante dos

problemas reais da prática de ensino e aprendizagem (idem, p. 119) e pelo esgotamento e

desencanto diante das exigências sociais e políticas de qualificação e melhoria e os

escassos (em muitos casos, inexistentes) recursos destinados pelas políticas educacionais

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(idem, p. 120). Esse mal-estar é paradoxal na medida em que tanto pode sufocar como

gestar um projeto pedagógico que se vislumbra, no discurso das professoras, enquanto

sentido de responsabilidade e de resistência possível, enquanto instância de autoria

possível.

Com relação à autoria, parto do princípio de que ela se vincula aos modos de

interpretação dos sujeitos. Seria dizer que a condição de autor torna o sujeito responsável

por um dizer/fazer que tenha sentido, que possa ser interpretado. Nós, enquanto sujeitos,

estamos condenados a significar, portanto, a fazer e a ter sentido. Pensar autoria desta

maneira, isto é, enquanto movimento potencial e possível sempre para todo e qualquer

sujeito que, portanto, pode se constituir como autor, conduziu à identificação de três

posições de sujeito apontadas e que estão articuladas a instâncias de autoria distintas e

complementares: a instância de autoria plana, a instância de autoria intermediária e a

instância de autoria redonda. Nessas instâncias, conforme analisei, o sujeito produz

sentidos de maneiras diversas, se inscrevendo também diferentemente no processo.

Reitero, assim, a afirmação de que, muitas vezes, é o próprio mal-estar que

funciona como convite à mudança em função mesmo da positividade que lhe é inerente.

Conclusão que decorreu das análises discursivas construídas e originou propostas de ação

que desafiaram as professoras a construir categorias interpretativas a partir das quais

retornassem e questionassem suas práticas. Isso se constituiu em ação vinculada à própria

constituição do sujeito enquanto sujeito-autor – elemento principal de um estudo sobre a

responsabilidade correspondente ao papel do educador na realidade possível para a escola e

os deslizamentos de sentidos peculiares aos processos de constituição da/do autoria/mal-

estar. Dessa forma, meus instrumentos de pensamento e meus focos de interesse para

análise foram a palavra, o discurso. No plano da materialidade lingüística (intradiscurso),

reconheci tanto o mal-estar quanto a autoria enquanto processos inter-relacionados.

Ademais, como referi acima, identifiquei diferentes modos de funcionamento dos sujeitos-

professores articulados a três instâncias de autoria: plana, intermediária e redonda.

Dessa forma, também é possível afirmar que as professoras produzem sentidos,

nem sempre apresentando mudança de posição, que podem provocar posteriores

desalojamentos na posição que assumiram, flutuando de um estado de mal-estar para outro

estado de mal-estar. O interessante é que esta flutuação termina por abrir condições de

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possibilidade de autoria. Talvez seja possível afirmar também o contrário: que a flutuação

da autoria termina por abrir condições de possibilidade de mal-estar – o que estaria

vinculado ao modo heterogêneo de constituição dos processos de autoria em três instâncias

já mencionadas e, a seguir, melhor explicitadas.

Antes, porém, de dar maior visibilidade às instâncias em questão, faz-se

necessário mencionar que, para este trabalho, em um primeiro momento, estabeleci várias

interlocuções com autores que discutem a questão da autoria a partir de princípios

vinculados à Pedagogia Libertadora e à Análise de Discurso. Recorri, pois, a Paulo Freire,

Ernani Maria Fiori e Paula Allman, Michel Foucault, Michel Pêcheux, Eni Orlandi,

Eduardo Guimarães, Eduardo Calil e Solange Gallo. Há que se mencionar, igualmente, Jose

Esteve – autor em que busquei elementos para a problematização do mal-estar-docente. Da

história de leituras assim constituída derivaram as considerações e conclusões apresentadas

nesta primeira parte do artigo. E, em função também de tais leituras, se tornou possível

evidenciar o funcionamento das três instâncias de autoria e do mal-estar em sua

multiplicidade. Ademais, os redimensionamentos das concepções apresentadas pelos

autores possibilitou a caracterização do princípio de autoria e da função-autor, a partir das

instâncias de autoria identificadas, num universo discursivo povoado pelas falas das

professoras da escola pesquisada. Sendo assim, é importante retomar brevemente as

relações estabelecidas entre as instâncias de autoria, o princípio de autoria2 e a função-

autor3.

Na instância de autoria plana ocorre um estado de sujeição maior. Ao mesmo

tempo, esse é o lugar em que o convite ao deslocamento se coloca com maior força –

2 Em Foucault (1996, p. 11), o lugar de autor se relaciona com o princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significações, como base de sua coerência. Portanto, ele surge como sujeito responsável pelo texto que produz (pela organização do sentido e pela unidade do texto). Seria dizer que ele produz ilusoriamente estas unidade e organização materializadas no texto, bem como

um efeito de continuidade e completude no próprio sujeito. Além disso, Foucault estabelece relação entre autor e instauração de discursividade. Eni Orlandi (1993; 1995; 1996) também caracteriza o princípio de autoria como um princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significações. O autor se configura como responsável pelo texto que produz, pela organização do sentido e pela unidade do texto. Um sujeito que produz um lugar de interpretação, inscrevendo o dizer no interdiscurso, ou seja, no repetível histórico. Todavia, não há estabelecimento de relação necessária entre autor e instauração de discursividade (como supõe

Foucault), mas há relação entre autor-produção de um lugar de interpretação. O princípio de autoria, pois, é um lugar onde se produz a coesão e a coerência textuais, lugar onde a dispersão adquire a aparência de unidade. Vale ressaltar que Orlandi tem articulado tais concepções a práticas de textualização. Eu, por outro lado, redimensionei tais concepções ao conjugá-las aos diferentes modos de funcionamento do sujeito-autor articulados a três instâncias de autoria identificadas a partir do trabalho com o discurso oral, ou seja, com as falas e pronunciamentos das professoras em reuniões nas escolas, caracterizadas como sessões de estudos, de assessoramento pedagógico.3 A função-autor remete à função social que esse ‘eu’ assume enquanto produtor de linguagem. [...] e, das dimensões enunciativas do sujeito, é a que mais está determinada pela exterioridade (contexto sócio-histórico) e mais afetada pelas exigências de coerência, não-contradição, responsabilidade etc. (Orlandi e Guimarães, 1993, p. 61). Em outras palavras, a função-autor está relacionada com o exercício social de autoria – o que está historicamente marcado.

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embora isto nem sempre esteja muito claro. Essa instância se encontra mais próxima do

princípio de autoria. Em função de o nível de sujeição do sujeito ao instituído ser maior

aqui, o sujeito tenderá a produzir um discurso em que estarão preservadas sua unidade e

coerência. Por outro lado, a possibilidade de ele interpretar o já-dito e lançar o que está por

ser dito é, consideravelmente, reduzida – não ouso dizer que seja inexistente. Todavia, o

próprio modo de funcionamento de um sujeito-autor plano não pressupõe a produção do

novo, mas incentiva a manutenção do existente. Em decorrência disso, aqui, o princípio de

agrupamento coeso e coerente do discurso se traduz, também, como princípio de

manutenção da suposta unidade das normas e das leis.

Se a instância de autoria plana se constitui enquanto um dos pólos, a de autoria

redonda é o outro. Ela vem acompanhada de um desafio: o abandono das certezas diante

das falhas/faltas que surpreendem o sujeito. O processo discursivo surge como jogo com o

imprevisível, com o sentido outro, com o discurso outro (também discurso do outro. Neste

pólo, a constituição do princípio de autoria vem acompanhada do exercício social da

autoria. Por conseguinte, da função-autor – aquela em que o sujeito falante está mais

afetado pelo contato com o social e suas coerções. No discurso pedagógico, ao invés da

sujeição, irrompe a resistência, materializada em sentidos concernentes a práticas diferentes

das cristalizadas no inventário pedagógico tradicional.

Já, na instância de autoria intermediária, em que o dizer e o silenciar andam

juntos (Orlandi, 1995), os limites entre as redes de sentidos diversas se tornam mais nítidos,

porque os sentidos produzidos ocupam as margens das mesmas – o que permite evidenciar

embates entre redes de saberes e de sentidos antagônicas e, também, conflitos entre as redes

de sentidos a que os sujeitos se filiam. Dito de outra forma, a partir das análises discursivas

construídas, concluí que o sujeito-professor percorre o espaço de sedimentação de sentidos

instituídos e o declara como legítimo, e percorre o espaço da ruptura dos sentidos e também

o declara como legítimo. É lícito aventar que, mesmo sem explicitar, o sujeito perceba

alguma positividade nas duas redes de sentidos, não optando por nenhuma delas em

particular, mas por ambas. Essa instância, além de revelar o quanto o mal-estar é ambíguo e

difuso, indica a plasticidade da própria autoria que se constitui a partir de um jogo de

relações de força entre diferentes redes de sentidos.

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Dessa forma, destaco, no que concerne a essa posição outra identificada, que o

sujeito-autor intermediário termina por se colocar nas bordas de redes de sentidos distintas

e opostas na tentativa de construir um sítio de bem-estar, revelando a situação-limítrofe em

que se encontra. É como se o sujeito ocupasse as margens de diferentes redes de sentidos,

flexibilizando as relações de antagonismo pelos movimentos de errância/escapância que

constitui e ligando tais redes sem a necessidade de explicitar a dominância de uma sobre a

outra. Dito de outra forma, por estar no entre-lugares (Bhabha, 1998) de redes de sentidos

distintas, este sujeito revela também certa sedução ambígua pela incorporação das mesmas.

Em decorrência de tudo que se expôs até agora, reconheço, no que concerne ao

mal-estar, que dele escoam sentidos vinculados a uma espécie de desorientação, uma

espécie de distúrbio sintomático na escola pública estadual – o que remete à situação de

indigência do sujeito-professor e acentua a negatividade do mal-estar. Admito, igualmente,

que escapam desse mal-estar sentidos relacionados a movimentos exploratórios incessantes

que são articulados pelas professoras, movimentos que escorregam de todos os lados e para

lá e para cá, avançando e recuando – o que estabelece vínculos identitários entre mal-estar,

autoria e instâncias de autoria, apontando para a positividade inerente ao próprio mal-estar.

O que surgiu, pois, como nova interrogação no que se refere ao mal-estar? A novidade

remete a um mal-estar que se constitui enquanto espaço cultural híbrido (Bhabha, 1998)

que surge contingente e disjuntivamente nas práticas das professoras. Na verdade, desta

“novidade” e do estranhamento diante da instância de autoria intermediária, da terceira

posição discursivo-enunciativa identificada, derivaram desdobramentos do trabalho que

provocaram inquietações outras articuladas aos processos de constituição das identidades

pelos sujeitos-professores da rede pública estadual. Além disso, tais inquietações

provocaram o estabelecimento de novos elos teóricos.

Desdobramentos: os modos de constituição dos sujeitos-professores

Pensar sobre o lugar da autoria e do mal-estar na constituição do sujeito-

professor da rede pública estadual possibilitou reconhecer a constituição heterogênea desses

sujeitos e dos sentidos manifestados por eles, evidenciando os modos difusos, ambíguos e

paradoxais de engendramento dos processos de autoria e de mal-estar, bem como suas

implicações na construção das propostas de ação pedagógicas e suas inter-relações

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possíveis. Conforme foi referido anteriormente, da identificação de um terceiro elemento –

a instância de autoria intermediária, derivaram dúvidas que se desdobraram em novas

questões e, portanto, reivindicaram o encontro com autores outros. Quanto às dúvidas

surgidas da condição intempestiva que estava a exigir o estabelecimento de novas relações

que incluíssem autoria e mal-estar, mas buscassem também ir além delas, é possível

traduzi-las em questões que passaram a orientar a proposta deste trabalho. Passei a

perguntar-me: De que modo o sujeito-professor, em seus dizeres, evidencia efeitos de

sentidos sobre a condição do ser professor hoje e as diferentes relações estabelecidas com o

sujeito-aluno, com seus pares, com os diversos encargos da docência, com os pais, com a

carreira do magistério, com o ato pedagógico, com a condição de ser mulher-mãe/mulher-

professora/mulher-proletária, com o ser funcionária pública e com a estabilidade no

emprego, entre outros? Como o sujeito-professor, ao acontecer no discurso como sujeito-

autor, manifesta deslizamentos de sentidos enquanto efeitos de autoria?

Com relação aos elos teóricos instituídos, busquei incluir a problematização do

hibridismo cultural e do entre-lugares (Homi K. Bhabha), da heterogeneidade constitutiva e

mostrada (Jacqueline Authier-Revuz), da constelação de poderes sociais (Boaventura de

Souza Santos) e do sujeito dividido (Jacques Lacan) – o que conduziu a uma forma

diferente de compreender autoria e de constituir os dispositivos teórico-analíticos. Tais

filiações e costuras remetem à nossa própria condição híbrida e heterogênea sobre a qual,

de uma forma ou de outra, suspeitei da existência quando me deparei com aquele ponto

intermediário de autoria.

Assim sendo, há que se abrir mão das certezas relacionadas ao estabelecimento

de sentidos fixos (e certos!). E esse abrir mão do suposto garantido é buscar contemplar, em

referência ao professor, o que Santos (2000) designa como constelação de poderes sociais

ou de modos de subjetivação que constituem esse sujeito: o poder cultural, político,

econômico, religioso, profissional, local, translocal, nacional, transnacional, entre outros.

Além disso, abrir mão desse suposto garantido é transitar no limite e entre limites de

sentidos – o que remete à problematização, no interior/exterior do campo de significações,

de uma dialética constitutiva do sujeito-professor: a dialética da

estabilização/desestabilização simbólica dos professores nos limites de diferentes

paradigmas epistemológicos e político-pedagógicos.

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A esse respeito, Michel Pêcheux oferece contribuições interessantes,

principalmente, em seus dois últimos trabalhos – O papel da memória e Discurso: estrutura

ou acontecimento, produzidos em 1983, Lembra o autor que, em se tratando de

estabilização/desestabilização dos sentidos,[...] a memória tende a absorver o acontecimento [...], mas o acontecimento discursivo, provocando interrupção, pode desmanchar essa ‘regularização’ e produzir retrospectivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar o aparecimento de uma nova série que não estava constituída enquanto tal e que é assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de regularização anterior (Pêcheux, 1999, p. 52).

Portanto, mesmo sentidos supostamente fixos jogam nesse movimento que

inclui tanto a regularização do pré-existente quanto a desregulação perturbadora da rede de

sentidos. Tais processos remetem, por sua vez, a um real constitutivamente estranho à

univocidade lógica (Pêcheux, 1997, p. 43). Dito de outra forma, ao real da língua, à alíngua

(concepção tomada por empréstimo de Milner) preenchida por processos de equivocação

ligados ao reviramento dos sentidos, a pontos em que a consistência da representação lógica

cessa, ao discurso outro que marca a resistência do outro como lei do espaço social e da

memória histórica (idem, p. 55). Incluir tais elementos à discussão parece possibilitar o

trabalho no interior/exterior dessa constelação de poderes (Santos, 2000) que circulam

socialmente. E tudo isto remete à crescente presença de pessoas, coisas, fenômenos e

lugares que parecem se situar em entre-lugares ou, como pontua Bhabha (1998, p, 20), em

lugares deslizantes, em momentos e processos que são produzidos na articulação de

diferenças culturais.

Abrindo um breve, mas necessário, parágrafo, é preciso destacar que, em se

tratando de diferenças culturais e para além do que nos coloca Bhabha em suas ponderações

a análises, tal categoria despertou meu interesse pela sugestão de outros modos de

interpretação do discurso pedagógico e, por extensão, do profissional do magistério. Para o

autor hindu-britânico, uma série de processos e fenômenos são articulados a este vasto

campo de significação social que atende pelo nome de diferença cultural e que ele

conceitua como processo de identificação através do qual afirmações da cultura ou sobre a

cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência,

aplicabilidade e capacidade (Bhabha, 1998, p. 63). Ainda que todo esse contexto teórico

não me passe despercebido, devo enfatizar que um tal interesse só se justifica se estiver

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estreitamente vinculado ao discurso pedagógico, pois as diferenças culturais, que

consistiriam numa força capaz de alterar mais substancialmente a escola, costumam

muitas vezes ser apagadas no seio da própria instituição (Mutti, 2000, p. 13). Ao buscar,

no trabalho realizado, a identificação das marcas de heterogeneidade mostrada nos dizeres

das professoras de uma escola pública estadual, de uma maneira ou de outra, busquei

também evidenciar os rastros que as tentativas(?) de apagamento das diferenças culturais

deixam na língua e nos sujeitos.

Nesse sentido, vale referir algumas conclusões que advieram das análises

discursivas construídas em decorrência deste trabalho. Considerando, pois, as concepções

que tomo como pilares teóricos deste trabalho, é chegado o momento de enfocá-las de

modo mais organizado. Para tanto, apresentarei algumas relações depreendidas dos dizeres

de uma das professoras que participou deste trabalho (doravante, designada por P),

buscando articulá-las à constelação de poderes proposta por Santos (2000). Ao longo do

trabalho analítico, anterior a este texto e fundamental para a possibilidade de construção

dele, busquei evidenciar sentidos ligados à constituição heterogênea das identidades do

sujeito-professor e da autoria. Com um objetivo como este, vários enunciados foram

analisados e, de tais análises, decorreu a evidenciação dos múltiplos sentidos que

constituem o sujeito-professor. Foi possível perceber que o sujeito-professor transita por

diferentes pontos na constelação de poderes sociais.

Após a construção das análises, e retornando freqüentemente aos dizeres da

professora quando declara que Eu acho que nós ainda somos heroínas, com tudo isso aí, nós entramos em sala de aula, damos a nossa aula, fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa. Deixamos a coisa fluir. [...] não tem alternativa, infelizmente, porque eu acho que nunca vai dar um salário digno para o nosso trabalho, porque eles alegam que são muitos. Hoje, inclusive, está na ZH que são muitos. São 80 não sei quantos professores e não sei quantos aposentados. Inclusive, ele diz que paga dois aposentados para um professor em sala de aula. Então, quer dizer que ele não vai dar nunca uma coisa que a gente vai achar digna. Como é que vai falar em melhoria sem salário? Como é que vai fazer cursos, comprar livros?,

alguns sentidos foram evidenciados para além daqueles que estariam supostamente contidos

nas palavras – se desbanalizou os sentidos, abrindo caminho para uma perspectiva de

interpretação que considera a heterogeneidade enquanto constitutiva dos sentidos e dos

sujeitos (Authier-Revuz, 1982).

Page 11: Artigo Para Revista Da Unisc

Por extensão, foram identificados efeitos de sentidos de doação, busca de

inclusão e inclusão, expropriação de condições mínimas para o exercício da cidadania,

permissão, exposição pública, desmobilização, caridade e incompetência tanto pedagógica

quanto social, todos eles articulados a um núcleo que denominei sentidos de crise do

magistério ou sentidos de crise do trabalho docente. Eram, assim, identificados processos

discursivos a partir dos quais foi possível fazer costuras entre os pontos da constelação de

poderes sociais e os sentidos que deles escoavam. Este trabalho fez com que se passasse a

falar em memória social, profissional, de gênero em decorrência da articulação entre pontos

de sentidos investigados (a condição de mulher mãe-esposa-professora-proletária-

funcionária pública, o ato pedagógico enquanto trabalho intelectual e caminho

investigativo, o sujeito-aluno, as ações do sindicato, o plano de carreira, as políticas

públicas de educação) e pontos de poderes (poder de gênero, profissional, político, social,

econômico). Além disso, conduziu ao reconhecimento de um modo de funcionamento que

permite cogitar sobre o quanto tais pontos de poderes e de sentidos habitam o sujeito-

professor e são por ele habitados, conduzindo a deslocamentos que fazem supor um sujeito

que se constitui nos e pelos processos que protagoniza ou, como diria Bhabha (1998), um

sujeito que se forma nas bordas intervalares da realidade, nos entre-lugares. Dito de outra

forma, um sujeito heterogêneo porque intervalar e intervalar porque heterogêneo.

Falar em entre-lugares, aqui, quer remeter a processos que se constituem a

partir de diferenças culturais as quais, embora muito específicas do universo pedagógico,

são oriundas de diferentes instâncias sociais. O sujeito se forma nos pontos de encontro

entre elementos que são da ordem do político, do econômico, do social, das relações de

gênero, do profissional. Tais elementos se constituem, por conseguinte, numa espécie de

fronteira que dissolve a polarização: ao mesmo tempo em que ela estabelece um sentido em

relação a outro (X em oposição a Y, por exemplo), dá visibilidade a uma espécie de

processo de descascamento dos sentidos pelo qual a linguagem se hibridiza – o sentido

pode ser um, pode ser outro, pode ser nenhum, pode ser todos ao mesmo tempo. Bhabha, de

certa forma, desenvolve tal idéia quando nos fala da linguagem da diferença no mesmo, a

linguagem que desestabiliza, rompe, fura fronteiras dicotômicas pelo apelo à multiplicidade

de sentidos, ao seu descascamento.

Page 12: Artigo Para Revista Da Unisc

Tal proposição de Bhabha permite a pergunta sobre o que produziria a diferença

do mesmo num discurso pedagógico marcado por sentidos de crise do magistério e do

trabalho docente. Uma possível resposta remete àquilo que existe no intervalo entre as

polaridades primordiais que, no caso do discurso em análise, poderiam ser identificadas

pelos pares público/privado e passado/presente. Ou seja, tal resposta parece conduzir à

necessária identificação de movimentos intervalares manifestados pelos sujeitos quando

transitam pelos pontos de sentidos e de poderes supracitados. Ao transitar, vale destacar,

tais sujeitos e sentidos se constituem e se desconstituem de modo permanente. Sendo esta a

condição primeira para a constituição de suas identidades e filiações, por extensão, é

também condição de possibilidade de autoria no momento em que, como pontua Santos

(2000), revela diferentes combinações dos sentidos e das formas de poder que circulam na

sociedade.

Neste momento, é lícito aventar o encontro das perspectivas de Pêcheux,

Bhabha, Authier-Revuz e Lacan. Falar em trânsitos, deslocamentos ou derivas dos sujeitos

e dos sentidos está relacionado aos processos de estabilização/desestabilização dos sentidos

a que faz referência Pêcheux (1997, 1999) - o que se articula, por extensão, ao

desdobramento do dizer ou, para citar Authier-Revuz (1998a, 1998b), às operações de

desdobramento metaenunciativo ou reflexividade opacificante do dizer. De alguma forma,

tudo isto se associa ao problema fundamental do equívoco enquanto próprio do sujeito e à necessidade de acompanhar ou, pelo menos, de o sujeito se incluir/inscrever nesses jogos sobre o quê (aquilo quê) da língua é trabalhado pelo equívoco e pela conseqüente proliferação do significante (liberado e vigiado) que aí se manifesta (Fiss, 2001, p. 15).

De alguma maneira, também se costuram tais considerações aos acenos, mais ou

menos evidentes, de Lacan para a produção de descontinuidades por um real

necessariamente faltoso, em função de o real ser impossível de se escrever enquanto tal,

remetendo a uma dimensão que poderia ser caracterizada como inassimilável e que

acionaria o surgimento de possibilidades de reviramento dos sentidos pela via da

equivocidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidades de evocar o dizer em sua totalidade.

Seria como dizer que aquele que utiliza a linguagem não pode manter com ela uma relação

de pura literalidade, buscando negligenciar os movimentos de escapância de sentidos-

outros/Outros que são constitutivos tanto da linguagem quanto dos sujeitos e que, talvez,

Page 13: Artigo Para Revista Da Unisc

possam remeter a estranhos momentos marginais, lapsos de língua, irrupções do

inconsciente que se instituem na perda de controle do falante e se manifestam como que

simulando faíscas crepusculares da linguagem. Conforme lembra Lacan (1983, p. 129), o

que parece harmonioso e compreensível é que encerra alguma opacidade. E é,

inversamente, (...) na dificuldade que encontramos chances de transparência.

Ouso arriscar uma hipótese segundo a qual seria permitido entender dificuldade

como um correlato das marcas de heterogeneidade mostrada que terminam por inscrever o

outro na seqüência discursiva em relação a uma série de noções enunciativas. Estão

articuladas a tais relações e correlações duas noções que aproximam os autores estudados

aqui: a fala fundamentalmente heterogênea e o sujeito dividido. Uma fala que, por ser

heterogênea, se desdobra, se reduplica e se recobre à medida que o sujeito se desloca por

entre polaridades, constituindo outros pontos de visão e outros modos de funcionamento.

Enfim, à medida que P, por exemplo, habita e é habitada por pontos de poderes múltiplos

que tocam o econômico, o social, o profissional, as relações de gênero, o político, e pontos

de sentidos também diversos e incertos a partir dos quais ela fala e é falada em suas

relações com o sujeito-aluno, com a condição de ser mulher-mãe-esposa-professora-

proletária-funcionária pública, com as políticas públicas de educação, com o plano de

carreira, com o ato pedagógico enquanto trabalho intelectual e caminho investigativo e com

as ações do sindicato.

Neste momento, é importante retornar a Santos e, a partir desse retorno,

construir algumas possibilidades de entendimento dos pontos em que tais deslocamentos

dos sujeitos por lugares de poder e de sentidos diversos tocam os processos de constituição

da autoria que estão, por sua vez, diretamente relacionados aos processos de subjetivação

dos sujeitos-professores. Parece-me que é um deslocamento como tal que possibilita

evidenciar os entre-lugares constituídos pelos sujeitos e que também os constituem

enquanto sujeitos – portanto, retornar a Santos significa, da mesma forma, lançar um olhar

outro para o que nos propõe Bhabha e, por extensão, provocar uma aproximação maior

entre as categorias heterogeneidade (Authier-Revuz e Pêcheux) e hibridismo.

Ao longo deste artigo, pontuei sentidos múltiplos que se articulam a formas de

poder as quais circulam na sociedade, destacando sentidos de crise do magistério e do

trabalho docente nos quais foi possível evidenciar ressonâncias de sentidos de mal-estar.

Page 14: Artigo Para Revista Da Unisc

Surgiram das análises discursivas realizadas, enquanto objeto de pesquisa a ser investigado,

inquietações e dúvidas sobre o porquê da permanência dos sujeitos-professores. São mal

pagos, mal reconhecidos, mal considerados, mas permanecem, continuam, entram em sala

de aula, dão suas aulas, fazem tudo o que têm que fazer, deixam a coisa fluir – e isto quem

nos diz é a própria P.

Com relação a estes porquês, parece-me possível especular um pouco a respeito

do assunto, porque a permanência tende a se configurar como um importante entre-lugar a

partir do qual talvez se possa entender os processos de constituição da autoria e das

subjetividades dos sujeitos-professores. Falar em entre-lugar reivindica, por seu lado, que

seja percebida a heterogeneidade constitutiva dos sujeitos e dos processos sociais e, por

conseguinte, os movimentos produzidos por esses sujeitos. Dessa forma, faz-se necessário

pelo menos mencionar contradições próprias da educação.

Como salienta Milton Santos (1996), o processo de educação atual no mundo é

duplamente polarizado: de um lado, ocorre uma divisão exacerbada do trabalho que exige

saberes específicos para fazeres especializados; de outro lado, uma tal exacerbação da

divisão do trabalho (relacionada à pulverização e fragmentação dos saberes) exige uma

atitude oposta que é o conhecimento do mundo, sem o que não há formação do cidadão.

Decorre de tal contradição ainda uma outra: àquela entre o mundo e as visões, os modos de

interpretação do mundo de que dispomos num dado momento histórico – o que remete à

constituição de linhas que, tendo se originado a partir da globalização, tendem a separar o

mundo da ciência e o mundo da técnica. Tais contradições têm se refletido na escola de

maneiras diversas que provocam um desnorteio na construção das práticas pedagógicas e

em sua legitimação pelos professores.

De maneira bastante ampla, é possível identificar na escola uma função histórica

de preservação da identidade nacional, ou seja, dos valores que caracterizam e distinguem

uma sociedade. Todavia, muitas vezes tal trabalho de preservação dos vínculos identitários

não está fundado no interesse mais geral. Daí o professor, em certas situações, não saber ao

certo o que fazer e ter o seu trabalho questionado com excessiva freqüência. Da mesma

forma, tal estado de coisas denuncia a redução do campo das reflexões abrangentes

(Santos, 1996) de que deriva um fazer sem crítica – denúncia que se materializa nas

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palavras de P quando ela declara, sobre seu trabalho, as rotinas que o caracterizam: o entrar

em sala de aula, dar a aula, fazer tudo o que tem que fazer, deixar a coisa fluir.

Ainda que se possa evidenciar em tais dizeres aquilo que Santos (2000) designa

como patologia da participação e patologia da representação4, ressoam neles ecos

bastante fortes que se articulam a tentativas de “salvar” o trabalho docente. Seria dizer que

a professora, mesmo que indicando de maneira mecânica a rotineirização de suas

atividades, tem nessas mesmas atividades a compensação do mal-estar. Ela se compensa no

poder de professora pelo qual circula, na certeza de que, apesar das críticas dirigidas à

escola e aos professores, a sociedade considera fundamental o seu papel enquanto sujeito

que participa e alavanca processos a partir dos quais é possibilitada a preservação de

valores sociais que garantem a constituição de uma memória coletiva – o que convida o

sujeito-professor a reconhecer sua história passada e, sem sucumbir no mal-estar de uma

história de desvalorização e críticas, investigar condições outras para se constituir, de forma

criativa e rebelde, nas malhas do tempo presente.

Em função disso, é possível afirmar que, pelo menos, em dois momentos

escapam pelas palavras de P sentidos de permanência no magistério que rompem com a

inexorabilidade de uma suposta desistência da professora movida pela mal-estar. Quando

ela diz que fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa, ela busca no

próprio exercício de sua profissão as razões para nela permanecer, demonstrando que,

apesar de tudo, este é um espaço que ela não negligencia, mas assume enquanto espaço a

ser constituído com a participação de outros sujeitos. Pouco depois, quando indaga Como

vai falar em melhoria sem salário? Como vai fazer cursos, comprar livros?, P deixa

escapar sentidos de indignação e de inconformismo. E é na profissão que se compensa de

novo, é da posição de professora-mulher-proletária que questiona sobre o absurdo da

condição do ser professor hoje. Ao fazê-lo, parece-me que ocorre certa abertura para o

heterogêneo que tem caracterizado nossos tempos, portanto, ela termina por se constituir a

partir de um entre-lugar de sentidos e de poderes que dá visibilidade para a conflitualidade

de conhecimentos, enquanto modos diversos de entendimento do mundo e das relações

sociais, que se revela na escola e nas práticas que desenvolve em sociedade. Portanto, P não

4 Formas de conformismo, abstencionismo e apatia política associadas a um esvaziamento dos espaços de representação do sujeito (a escola, o sindicato, as instâncias políticas etc.).

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está totalmente imóvel, acomodada, congelada pelo mal-estar e pela queixa; ela também se

rebela e busca legitimar, através de sua prática docente, o lugar social no qual se inscreve e

a partir do qual se constitui como sujeito-autor.

Santos (1996, p. 17) fala sobre a educação para o inconformismo, para um tipo

de subjectividade que submete a uma hermenêutica de suspeita a repetição do presente,

que recusa a trivilialização do sofrimento e da opressão e vê neles o resultado de

indesculpáveis opções. Talvez não seja exagerado entender que os sentidos manifestados

por P permitem evidenciar, mais do que a exigência de recursos materiais para a realização

de cursos e compra de livros, a indignação e o estarrecimento diante de um discurso que

continua pretendendo regular o espaço e o tempo do professor, atestando sua incompetência

e apresentando alternativas ainda pouco acessíveis a ele. Dito de outra forma, ao interrogar

as formas de regulação que acompanham o discurso da melhoria e da incompetência

pedagógica, P suspeita da legitimidade dos argumentos que sustentam tais discursos,

portanto, ela suspeita da legimitidade que supostamente poderia caracterizar os modos

pelos quais os sujeitos-professores têm sido falados, olhados e tratados na sociedade. Ao

suspeitar e por suspeitar, ela se desloca, ela habita as bordas intervalares de uma realidade

que já não pode ser compreendida apenas por meio de paradigmas dicotômicos que

colocam o professor na condição de oprimido, isto é, ela forma e se forma no entre-lugar

da permanência, da suspeita, da indignação. Ao mesmo tempo, ela busca fortalecer sua

condição de professora ao dirigir seus questionamentos a decisões que parece traduzir como

opções indesculpáveis pela marginalização do magistério, alavancando, enquanto

professora-mulher-proletária, formas de poder social, cultural e profissional que, por

contrariarem os sentidos de incompetência, indiciam sentidos de competência articulados a

uma visão moral e política das condições que o presente oferece ao magistério e daquilo

que o magistério pode construir com elas.

Parece-me que, em um tal contexto, o desafio que está posto ao professor é a

construção de processos de autoria para além do mal-estar enquanto degeneração da prática

docente que se sustenta no discurso da incompetência inerente ao discurso pedagógico. Em

decorrência disso, professores e alunos terão de se tornar exímios nas pedagogias das

ausências, ou seja, na imaginação da experiência passada e presente se outras opções

tivessem sido tomadas (Santos, 1996, p. 23). P, como foi evidenciado nas análises

Page 17: Artigo Para Revista Da Unisc

discursivas referidas ao longo deste trabalho, muitas vezes deixa escapar sentidos que

reviram a história do magistério, sua constituição como categoria profissional, seu

enfraquecimento. As indagações com as quais encerra sua fala parecem romper os sentidos

de mal-estar identificados antes na medida que lançam a este passado um olhar inquieto,

buscando, do interior de sua perplexidade, costurar passado e presente, compreender as

marcas da iniciativa humana que estão inscritas nas opções tomadas e naquelas que

poderiam ter sido tomadas e não foram. Tais indagações indiciam, sobretudo, o conflito de

P entre um modelo regulatório e classificatório de sociedade e um modelo emancipatório,

vulnerabilizando e desestabilizando sentidos cristalizados como o de incompetência

pedagógica e social.

Confesso, agora, que não é trabalho tranqüilo a evidenciação de entre-lugares

num espaço tão marcado pelos sentidos de mal-estar quanto o espaço pedagógico, contudo,

é trabalho desafiador que possibilitou surpreender alguns sentidos outros não previstos no

início da pesquisa realizada. Sem dúvida, um destes sentidos foi o de permanência. Os

sentidos de permanência possibilitaram, por sua vez, a evidenciação de um entre-lugar

extremamente significativo porque, através de sua manifestação, foi possível perceber que

o sujeito-professor (neste caso, P) se inscreve em vários lugares de sentidos não

necessariamente opostos.

Fazemos tudo o que temos que fazer numa boa, relativamente boa; Como vai

falar em melhoria sem salário? e Como vai fazer cursos, comprar livros? são formulações

que indiciam sentidos de incompetência pedagógica e social articulados à patologia da

participação e à patologia da representação (Santos, 2000). No entanto, mesmo se

constituindo enquanto sentidos de mal-estar, são estes mesmos sentidos que se colocam

enquanto condição de possibilidade de autoria por remeterem à formação de um entre-lugar

no qual se constitui o sujeito-professor. É possível, pois, falar em entre-lugar, porque o

sentido de permanência rompe os sentidos de desistência ou acomodação do sujeito-

professor que lança um contra-olhar, isto é, um olhar contra o discurso da desistência e da

acomodação na medida em que escapam pelas palavras proferidas por P a sua

desacomodação diante da condição do ser professor hoje. P está indignada, aborrecida,

inconformada, mesmo que assumindo por vezes a perspectiva enunciativa dominante de um

discurso colonial, P se agita, questiona, não se conforma com um encerramento de conversa

Page 18: Artigo Para Revista Da Unisc

do qual possam advir mais mecanismos de enfraquecimento do magistério público estadual.

As redes de sentidos com as quais P se filia passam por reviramentos. P não desistiu – e é

ela mesma que nos diz isto: Eu acho que nós ainda somos heroínas, não está

inexoravelmente acomodada e silenciada em sua capacidade de indignação. Do interior da

contradição senhor/escravo, opressor/oprimido, representante político/magistério público

estadual, ela lança o seu grito de inconformismo e permanece.

Creio que tais deslocamentos de sentidos e de sujeitos é que terminam por

constituir condições de possibilidade de produção de entre-lugares e, por extensão, de

processos de autoria inspirados em imagens desestabilizasdoras do passado e do presente

(que já não são compreendidos de maneira linear e seqüencial), portanto, imagens

suscetíveis de desenvolver nos professores a capacidade de espanto e indignação e a

vontade de inconformismo. Talvez possam derivar das perguntas de P, de suas

perplexidades e mesmo de seu mal-estar, aprendizagens de novos relacionamentos entre

saberes e, assim, entre pessoas, grupos sociais e culturas.

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