aquisiÇÃo da leitura: percursos e percalÇos no...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO DCIE NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - NEAD AQUISIÇÃO DA LEITURA: PERCURSOS E PERCALÇOS NO DECORRER DO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO Ana Paula Souza Báfica Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC [email protected] Maria D’Ájuda Alomba Ribeiro 1 Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC [email protected] RESUMO Aprender a ler nas séries iniciais é um dos grandes desafios que a educação tem encontrado. Por esse motivo, o presente artigo traz os resultados de um estudo acerca do(s) fator(es) determinante(es) para a não aprendizagem da leitura, utilizando para isso, a técnica de observação participante e uma pesquisa bibliográfica focada nas contribuições de alguns teóricos como: Cagliari (1994), Koch e Elias (2006), Mortatti (2000 e 2004), Pinheiro (1994), entre outros. Para iniciar, aborda acerca do percurso histórico da alfabetização no Brasil, falando sobre as dificuldades encontradas no decorrer da história, e, em contrapartida, enfoca os avanços no que concerne à alfabetização. Em seguida, discorre sobre as questões socioeconômicas e suas influências no processo e explana sobre leitura e processamento cognitivo, citando a dislexia como um distúrbio frequentemente encontrado nas crianças de séries iniciais. Por fim, ressalta que muitos são os percalços presentes no processo de aquisição da leitura. Entre eles, as condições materiais e estruturais oferecidas para que esse aprendizado aconteça. No entanto, se todos os envolvidos (professor/escola/família) continuarem se empenhando, com certeza, a leitura passará a fazer parte de realidade de muitos. Palavras-chave: Leitura. Aprendizagem. Questões socioeconômicas. Processamento cognitivo. INTRODUÇÃO Quando pensamos em leitura, vem à mente um processo onde une-se apreensão e compreensão de uma informação que nos é dada nos mais 1 Profa. Orientadora. Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade de Alcalá, Departamento de Filologia (2005) e coordenadora do Colegiado do Mestrado em Letras: Linguagens e Representações.

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – DCIE NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - NEAD

AQUISIÇÃO DA LEITURA: PERCURSOS E PERCALÇOS NO DECORRER

DO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

Ana Paula Souza Báfica Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC

[email protected]

Maria D’Ájuda Alomba Ribeiro1 Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC

[email protected]

RESUMO

Aprender a ler nas séries iniciais é um dos grandes desafios que a educação tem encontrado. Por esse motivo, o presente artigo traz os resultados de um estudo acerca do(s) fator(es) determinante(es) para a não aprendizagem da leitura, utilizando para isso, a técnica de observação participante e uma pesquisa bibliográfica focada nas contribuições de alguns teóricos como: Cagliari (1994), Koch e Elias (2006), Mortatti (2000 e 2004), Pinheiro (1994), entre outros. Para iniciar, aborda acerca do percurso histórico da alfabetização no Brasil, falando sobre as dificuldades encontradas no decorrer da história, e, em contrapartida, enfoca os avanços no que concerne à alfabetização. Em seguida, discorre sobre as questões socioeconômicas e suas influências no processo e explana sobre leitura e processamento cognitivo, citando a dislexia como um distúrbio frequentemente encontrado nas crianças de séries iniciais. Por fim, ressalta que muitos são os percalços presentes no processo de aquisição da leitura. Entre eles, as condições materiais e estruturais oferecidas para que esse aprendizado aconteça. No entanto, se todos os envolvidos (professor/escola/família) continuarem se empenhando, com certeza, a leitura passará a fazer parte de realidade de muitos.

Palavras-chave: Leitura. Aprendizagem. Questões socioeconômicas. Processamento cognitivo. INTRODUÇÃO

Quando pensamos em leitura, vem à mente um processo onde une-se

apreensão e compreensão de uma informação que nos é dada nos mais

1 Profa. Orientadora. Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade de Alcalá, Departamento de

Filologia (2005) e coordenadora do Colegiado do Mestrado em Letras: Linguagens e Representações.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ - UESC DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO – DCIE NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - NEAD

diferenciados contextos. No entanto, para chegar a essa capacidade, o

indivíduo percorre um caminho que muitas vezes é permeado por desafios e

dificuldades.

Dentro dessa perspectiva, fica fácil compreender a definição de Cagliari

(1994) quando diz que a leitura é a atividade fundamental desenvolvida pela

escola, sendo mais importante ler do que escrever. Por isso, ressalta que a

complexidade do ato de ler envolve problemas semânticos, ideológicos,

filosóficos e fonéticos.

Nessa direção, partindo da definição dada pelo supracitado autor,

quando diz que “a leitura é a realização do objetivo da escrita” (p.149), e

sabendo que esse mundo do letramento é complicado e caótico, faz-se

relevante a realização do presente estudo. Um trabalho que surgiu das

inquietações do cotidiano, quando eram realizadas análises da prática docente

e da experiência em turmas de primeiro ano do Ensino Fundamental I.

Nesse universo educacional, muitas vezes nos vemos esbarrando em

percalços envolvendo o processo de aquisição da leitura, pois, por mais que a

educação tenha evoluído, suas tecnologias, seus recursos e inovações

pedagógicas, ainda enfrentamos (docente/discente) muitas dificuldades no que

concerne ao desenvolvimento dessa capacidade.

Todos os desafios presentes na escola e muitas vezes fora dela, podem

ser divididos em dois momentos: as dificuldades relacionadas aos fatores

socioeconômicos e aquelas que partem do processamento cognitivo. Porém,

questionamentos ficam pairando no ar, pois, como sabermos quando a

dificuldade não advém de distúrbios de aprendizagem? Qual a resolução para

os problemas financeiros e culturais que atrapalham esse processo? O que

fazer quando os dois entraves aparecem interligados?

Enfim, perguntas são muitas, mas as respostas fazem parte dos anseios

da maioria dos docentes desse nível de ensino. Por esse motivo, o presente

estudo foi realizado, tendo como ponto de partida a observação do cotidiano

escolar de algumas crianças que se encontram no primeiro ciclo de uma escola

pública do município de Canavieiras na Bahia, sendo que uma apresenta uma

dificuldade de aprendizagem ligada ao cognitivo, enquanto a outra não

demonstra ter tais complicações. Tendo uma pesquisa elaborada em torno de

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descobrir qual dos fatores é o mais determinante para a não aprendizagem da

leitura.

Desse modo, visando entender o que foi citado acima, essa pesquisa

será sintetizada em três momentos: primeiro, fazer uma abordagem acerca do

percurso histórico da alfabetização no Brasil; em seguida, discorrer sobre as

questões socioeconômicas e suas influências no processo e explanar sobre

leitura e processamento cognitivo; num terceiro momento, serão feitas

considerações em torno do que foi encontrado, refletindo se os

questionamentos levantados foram respondidos ou não.

1. PERCURSO HISTÓRICO DA ALFABETIZAÇÃO NO BRASIL

Todas as discussões em torno do processo de alfabetização inicial no

Brasil giram em torno das questões ligadas à escolha dos métodos utilizados

para que a criança venha fazer parte desse mundo da cultura letrada.

Esses debates tem tornado-se cada vez mais fortes e frequentes nos

espaços educacionais e também fora deles. De acordo com Mortatti (2000) foi

a partir do final do século XIX, mais precisamente com a proclamação da

República, que a educação começou a se configurar em um sonho para a

modernidade.

Nesse sentido, Gumperz-Cook (2008) aponta que dentro de uma

perspectiva histórica, a alfabetização começou a ser foco central no espaço

educacional no período moderno, onde passou a ser entendida como virtude

moral que está ligada a seu uso. Portanto, uma pessoa letrada era, e ainda é,

vista como alguém capaz de exercer julgamento bom ou razoável.

Partindo desse pressuposto, nos permitimos entender o letramento

como a capacidade de discernir entre o que é realmente válido e satisfatório

para nossa construção do conhecimento. No entanto, se levarmos em conta

que a proposta de educação no Brasil visa uma unicidade de cidadão, onde

todos são vistos como “iguais perante a lei”, percebemos que vários

questionamentos podem ser levantados acerca desse processo histórico, de

uma alfabetização que está sempre centrada em métodos. Uma metodologia

que vê os indivíduos como iguais, sem levar em conta suas especificidades.

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Para tanto, Gumperz-Cook (2008) destaca que os escritos literários da

década passada contribuíram para a construção de um conceito de

alfabetização como multifacetada. Uma perspectiva que auxiliou as primeiras

pesquisas na adoção de uma visão centrada no Ocidente. Esses tratavam o

desenvolvimento social e o uso de literaturas como centrais à própria história,

desencadeando uma distorção do conceito de letramento.

Esse conflito na formulação de conceitos traz para o centro da

discussão, a necessidade de perceber a alfabetização como um processo, e

não como um todo pronto e acabado. E nessa perspectiva, surgem críticas

acerca dos métodos definidos como únicos para um procedimento que precisa

ser dialógico e diferenciado.

Nessa direção, cabe citar que num dado momento da história da

alfabetização, mais precisamente no início do século XX, começou uma

acirrada disputa, por parte dos revolucionários, em torno do método analítico

(processos de palavração, setenciação), e a luta para a extensão do método

tradicional. Outra discussão frequente nas disputas educacionais nesse

período era com relação à letra adequada a ser utilizada na escrita (cursiva,

imprensa, maiúscula, minúscula). (MORTATTI, 2000).

Quando refletimos acerca da supracitada afirmação, vêm à tona

realidades atuais com relação à escolha do método e da letra a ser utilizada na

escrita, as quais ainda estão sendo temas de debates em encontros

educacionais. Por isso, essa revolução, pensada desde os primórdios das

pesquisas voltadas para o processo de alfabetização inicial, faz-se extremante

necessária.

Para dar continuidade, no decorrer da história da alfabetização, Mortatti

(2000) fala sobre a fundação de uma nova tradição no ensino de leitura e

escrita, o que viria propor uma “alfabetização sobre medida”, ou seja, as

questões didáticas estariam subordinadas às questões psicológicas. Com isso,

a escrita continuou sendo vista como dependente de habilidade caligráfica e

ortográfica, sendo ensinada concomitantemente à habilidade de leitura. No

entanto, era necessário um período preparatório permeado por exercícios de

coordenação motora, viso-motora, posição de corpo e membros entre outros.

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É importante ressaltar, que segundo Mortatti (2004), num outro

momento, mais precisamente início da década de oitenta, surgem

questionamentos com relação a essas tradições e outras urgências de ordem

política e social. Tudo isso deu ênfase à apropriação da teoria construtivista,

fundando uma nova tradição chamada desmetodização da alfabetização.

Passou-se então, a enfatizar quem aprende e como aprende a lecto-escrita.

Ainda nesse período, inicia-se uma emergência no pensamento

interacionista em alfabetização, o qual vê o texto como unidade de sentido da

linguagem, devendo ser tomado como objeto de leitura e escrita. E é a partir

daí que é gerada a disputa entre os defensores dessa teoria e os do

construtivismo, o que foi acabando com o passar do tempo, devido à

conciliação entre aspectos de uma e de outra concepção (MORTATTI, 2004).

Dando um salto no período histórico, chegamos aos tempos atuais e,

ainda observamos semelhanças e permanências no decorrer do processo,

mesmo com a urgência de discussões que tirem o foco dos métodos de ensino

e voltem as atenções para o processo de aprendizagem dos educandos. De

acordo com Mortatti (2004), esse fato é justificado por novas tendências, como

as contribuições de Emília Ferreiro acerca da Psicogênese da Língua escrita.

É possível concluir esse breve percurso histórico, destacando que foi

feita uma tentativa de resumir destaques de diferentes épocas da alfabetização

no Brasil, as quais podem ser entendidas como progressivas. Pois, mesmo

esse processo tendo sido marcado pela questão dos métodos de ensino, pela

ruptura com o modelo tradicional e da concepção de educação como

esclarecimento, vemos uma busca em dirimir as dificuldades que nossas

crianças enfrentam para adentrar no mundo da cultura letrada.

2. QUESTÕES SOCIOECONÔMICAS E INFLUÊNCIAS NO PROCESSO DE

ALFABETIZAÇÃO

A leitura é uma prática que não é exclusiva da escola, ela é necessária e

imprescindível para o cotidiano de todos os seres que integram a sociedade.

Nessa perspectiva, Cagliari (1994) afirma que saber ler tem mais importância

do que o próprio diploma, pois essa habilidade é entendida como a extensão

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da escola na vida dos indivíduos. Ou seja, quando aprendemos a ler, e mais do

que isso, nos tornamos bons leitores, nossa formação é muito mais perfeita do

que aqueles que não criam esses “vínculos afetivos” com os livros.

No entanto, muitos entraves acometem esse processo, fazendo com que

se torne, muitas vezes, um desafio para alguns. Porém, essas barreiras não

são apenas advindas de falhas no processamento cognitivo, pois muitas outras

dificuldades podem ocorrer, entre elas estão as questões socioeconômicas, as

quais, em muito influenciam nesse percurso.

Quando falamos em percalços no processo de aquisição da leitura,

Almeida (2009) traz para as discussões, a possibilidade de traumas de cunho

emocional presenciado ou vivenciado pela criança, da não afetividade entre

educando e educadores, sejam eles pais ou professores e as causas

pedagógicas, ou seja, escolha de métodos e técnicas que não condizem com o

potencial dos discentes.

Desse modo, a necessidade de entender o processo e os anseios dos

alunos é o essencial para aqueles que fazem parte desse universo

alfabetizador, pois, às vezes, a escolha feita para efetivação dessa prática

alfabetizadora pode atrapalhar, deixando as crianças sem os conhecimentos

básicos para seguir sua vida escolar. É o que Almeida (2009) confirma quando

diz que “nestes casos, não se trata de uma dificuldade de aprendizagem do

aluno, mas de uma gama de problemas apresentados pelas escolas e pelos

atores que a compõe”. (p.12)

Muitos dos fracassos nas práticas leitoras dos alunos ocorrem por

dificuldades que podem ser entendidas como um percurso. Ou seja, a criança

vem de uma realidade de vida dura e desmotivadora, morando em local

desestruturado, tendo, muitas vezes, como única refeição, a merenda escolar.

Quando chegam à escola, não conseguem desenvolver-se a contento e inicia-

se uma barreira entre docente e discente, desencadeando a falta de

afetividade. Desse modo, fica quase impossível ocorrer a aprendizagem.

Outro fator frequente quando trata-se de aquisição da leitura é a

ansiedade por parte dos pais, do professor e dos alunos que querem a todo

custo ver resultados positivos. Sobre esse assunto, Cagliari (1994) vem falar

que o ensino/aprendizagem forçado por quem quer que seja, resulta em

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leitores maus formados e com péssimos hábitos de leitura, entre eles: a

soletração (ler em ritmo silábico), a deturpação fonética e a não compreensão

do que é lido (falta de controle do pensamento).

Ainda enfocando os entraves ambientais, Barbosa (1990) fala sobre o

medo do desconhecido que, com frequência, acomete os alunos. Seria um

fator que muitas vezes leva as crianças a não querer aprender, pois elas

sentem-se receosas de não serem capazes, têm medo de não poder errar e,

com isso, acabam desenvolvendo um bloqueio que dificulta a aprendizagem.

Enfim, se a escola cobra demais o acerto, é possível que elas não tenham

disposição para aprender.

Uma das conclusões chegada pelo autor acima, é que a criança pode

decidir por não se esforçar para aprender. E isso, envolve várias razões. No

entanto, cabe aos envolvidos no processo de formação desse indivíduo,

perceber quando isso ocorre. Pois, muitas são as causas disso: a falta de

motivos para aprender a ler, devido às práticas fracassadas de leitura ocorridas

na escola; a urgência de outros fatores (alimentação, carinho, moradia); a

ausência de ambiente alfabetizador, de métodos conquistadores, de materiais

de leitura envolventes, entre outros.

Por isso, o professor torna-se um integrante essencial para auxiliar

nesse processo, porque, ele, muitas vezes, é o único adulto mediador e

incentivador. Portanto, cabe a ele deixar de ser o “transmissor de conteúdos”,

aprofundar-se nas questões referentes à leitura e conhecer a fundo as crianças

que lhes são confiadas, levando sempre em conta a realidade social de cada

uma (BARBOSA, 1990). Mas, não podemos eximir a responsabilidade dos

outros atores, canalizando apenas para o docente, pois, a educação das

crianças não é encargo unilateral.

3. LEITURA E PROCESSAMENTO COGNITIVO

A leitura tem muitas definições, porém é consenso entendê-la como

produção de sentido. Quando uma criança aprende a ler, ela entra em contato

com um mundo cultural que lhe possibilita interagir nos mais diferentes

espaços e contextos. Esse fato acontece, porque a leitura é entendida como

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objeto de desejo de muitos, pois ler é participar das atividades sociais de

prestígio.

Diante dessas perspectivas, Koch e Elias (2006) destacam que a leitura

envolve experiências do indivíduo e funcionamento neurológico, ou seja, ler

está muito além de ser um processo simplificado. Essa capacidade vai desde a

decodificação até a reflexão e compreensão do que está sendo lido. As

mesmas autoras falam que ler não é somente memorizar, é também,

depreender sentidos e realizar inferências para possível entendimento do que

não está explícito no texto.

No entanto, essa habilidade pode ser seriamente comprometida quando

vem aliada a dificuldades de aprendizagem de cunho cognitivo. Pois, sabe-se

que esses chamados distúrbios, ainda são o “bicho-papão” da escola. Isso

acontece por diversos fatores, que vão desde a falta de informação e preparo

dos profissionais envolvidos no processo, até a escassez de recursos para

trabalhar com esses casos.

Quando falamos em dificuldades envolvendo o cognitivo e o neurológico

somos levados a pensar na dislexia, distúrbio sem explicação aparente, que se

não for o principal, é um dos principais problemas que envolvem crianças em

séries iniciais e que muitas vezes só é detectado tardiamente. Porém, um aluno

disléxico que é diagnosticado a tempo, não tem a sua aprendizagem

comprometida.

Nessa direção, Almeida (2009) enfatiza que:

Para tratar das dificuldades em leitura e escrita de causas orgânicas, as mais complexas, uma série de atitudes é imprescindível. Porém, qualquer que seja o método de tratamento ou de intervenção, nenhum deles irá desconsiderar a necessidade de se avaliar toda a dimensão que caracteriza o problema. Por isso, avaliar a situação psicológica, social, emocional e, até mesmo, financeira da família é uma das mais importantes tarefas no início de um tratamento rumo ao sucesso das intervenções que serão desencadeadas (p.12).

A citação acima vem trazer um norte para o trabalho que deve ser

desenvolvido pelo docente, pois se ficar clara a necessidade de intervenções

diárias com as crianças que apresentem dificuldades na aquisição da

lectoescrita, os resultados serão obtidos com mais rapidez, o que auxiliará na

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manutenção da autoestima do discente, sendo este aspecto uma das principais

implicações nesses casos.

Enfim, as dificuldades de leitura orgânicas necessitam ser

diagnosticadas assim que são percebidos os primeiros sinais, sendo

necessária uma equipe multidisciplinar para isso. No entanto, Almeida (2009)

fala em intervenções que podem ser feitas pelo próprio docente, desde que

realizadas com responsabilidade e estudo. Uma dessas é o método fônico que

consiste em atividades de desenvolvimento da consciência fonológica e

linguística.

3.1 Dislexia: o que é?

Diferente da fala que é socialmente construída, a leitura é ensinada. E

isso, pode parecer um problema quando estamos tratando com pessoas que

apresentam dislexia. A palavra “Dislexia” é formada pela contração das

palavras gregas: dis = difícil, prejudicada, e lexis = palavra, e caracteriza-se por

uma dificuldade na área da leitura, escrita e soletração, sendo normalmente

identificada durante o processo de alfabetização, em salas de aula, podendo

provocar uma defasagem inicial no aprendizado.

Para Pironatto (2008), a dislexia, num sentido epistemológico, configura-

se por uma alteração nos neurotransmissores cerebrais, os quais prejudicam o

aprendizado e compreensão da leitura. Para esta autora, trata-se de um

problema na base cognitiva, que impede o desenvolvimento das habilidades

linguísticas, associadas à leitura e à escrita.

Quando está aprendendo a ler, a criança associa fonema a grafema, ou

seja, memoriza e associa letras a seus sons. A partir disto, ela passa a analisar

as palavras e percebê-las em sílabas. Todo este processo parte do

desenvolvimento cerebral, que tem a função de construir uma memória

permanente que reconheça termos familiares. Portanto, à proporção que a

criança vai dominando este processo de leitura, o esforço cerebral vai

diminuindo (PINHEIRO, 1994).

Nesta direção, Pironatto (2008) destaca que com os disléxicos, este

processo não ocorre desta maneira, devido a falhas nas conexões cerebrais.

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Por consequência, os disléxicos apresentam dificuldades em diferenciar

fonemas de sílabas, o que o impede de reconhecer palavras que já tenham

sido estudadas, tornando a aprendizagem da leitura um grande esforço.

Esta mesma autora ressalta que para os disléxicos, a aquisição da

leitura pode apresentar um déficit de dois anos em relação à idade cronológica,

podendo ainda, apresentar “erros” ortográficos, grafia ilegível e escrita

espelhada. Um agravante, é que esse distúrbio não tem cura, portanto,

tratamentos que ajudem à criança criar estratégias que lhe ajudem a ler e

escrever são indispensáveis.

No entanto, essa desordem na aquisição da leitura e/ou escrita não é

tarefa fácil de ser identificada. Portanto, o ponto de partida para esta

identificação é compreender os meios pelos quais as crianças adquirem tais

habilidades. Para ajudar a compreender esse processo de aquisição, Pinheiro

(1994) diz entender ler e escrever como um processo cognitivo que passa por

três momentos: primeiro a palavra é vista como um todo, em seguida inicia-se

o desenvolvimento da consciência fonológica, ou seja, o momento de

corresponder grafema/fonema (é a fase alfabética) e por fim, chega-se à fase

ortográfica, que é o momento de analisar a estrutura e regras da língua

estudada.

Nessa perspectiva, devido aos desafios desse processo, Pironatto

(2008) afirma que é normal uma criança enfrentar dificuldades no primeiro ou

segundo ano escolar, porém, espera-se que nos anos seguintes ela atinja o

nível básico de desenvolvimento. Se isso não ocorre, deve-se realizar o

diagnóstico de dificuldade específica de leitura, que se baseia no grau de

atraso da leitura e não em erros cometidos pela criança. Passa-se então, a

uma avaliação global.

Para a supracitada autora, “avaliação global é um processo em que a

natureza exata da dificuldade de aprendizagem da criança é estabelecida”.

Neste momento, avalia-se o potencial e dificuldades da criança de forma

específica, planejando-se então, métodos apropriados de tratamentos.

Dentre os métodos utilizados, Pestun (1999) fala no “método de

exclusão”, afirmando ser, ainda hoje, um dos mais empregados. Este método

visa excluir déficit intelectual, sensorial, orgânico, motivacional e instrucional,

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que podem ser causadores de dificuldade na aquisição da leitura, para, a partir

deste ponto, iniciar a investigação acerca do dano na rota fonológica, e, só

então, selecionar as intervenções que mais se adéquam ao quadro.

Deste modo, identificar esta dificuldade de aprendizagem é trabalho

complexo, que requer uma anamnese, avaliação apropriada e recomendação

de um plano de tratamento feito por profissionais capacitados para tal fim.

No entanto, muitos tratamentos têm sido adotados. Entre eles, a

assimilação de fonemas, desenvolvimento do vocabulário, fluência e

compreensão na leitura é o que afirma Pegorin (2009). Esta autora defende

que esses métodos ajudam o disléxico na identificação de sílabas, letras,

palavras, sons e frases, visto que a memória recente é um problema para eles.

A mesma autora aconselha a leitura em voz alta, para que as correções

sejam feitas no momento. Outro fator importante é iniciar estes tratamentos

desde cedo, pois, ajudam a corrigir falhas nas conexões cerebrais.

Alguns disléxicos, por serem forçados a pensar e aprender de forma

diferenciada, muitas vezes, tornam-se mais criativos e inovadores que pessoas

não disléxicas. E mesmo não sendo curadas, as pessoas que tem dislexia tem

direitos assegurados por lei como: refazer provas orais, ter uma hora a mais

nas provas escritas e usar a calculadora livremente (PEGORIN, 2009).

A autora supracitada destaca que crianças disléxicas, quando tratadas

cedo, superam o distúrbio e se assemelham às não disléxicas. Além disso, este

não atraso na aprendizagem da leitura evita problemas como: baixa

autoestima, falta de confiança em si mesmo e evasão escolar, que são normais

em pessoas com dislexia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As considerações acerca desse trabalho são muitas e com certeza

parciais, pois é sabido que entender esse processo que envolve a aquisição da

leitura é tarefa infinda e de difícil conceituação. No entanto, não podemos

deixar de lado os anseios por resolver os problemas que acometem nossos

alunos, fazendo dessa etapa inicial, um desafio imenso.

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Quando essa pesquisa foi iniciada, muitos questionamentos mentais

foram levantados, entre eles estavam: Como a alfabetização é processada?

Em que se baseia o debate entre hereditariedade e ambiente no que concerne

à aquisição da leitura e da escrita? O acesso às situações de aprendizagem é

responsabilidade do lar ou da escola? Se o ambiente social é essencial na

aprendizagem da língua, qual o papel da família e da escola?

No intuito de tentar respondê-los, muitos caminhos foram percorridos. O

primeiro momento foi entrar em contato com crianças que apresentam

maneiras diferenciadas de aprender e de fazer uso do que é ensinado pela

escola. Nesse momento, começou-se a perceber que a dislexia, dificuldade de

aprendizagem fácil de ser encontrada em crianças em fase inicial de

alfabetização e que não tem cura, não é o determinante para que se aprenda

ou não a ler. Pois, os disléxicos aprendem sim, em tempo diferenciado, mas

aprendem.

Nessa direção, ao fazer uma comparação entre a criança disléxica e a

não disléxica, foi percebido que, mesmo sem dificuldades de aprendizagem de

cunho orgânico, a segunda criança apresentava um desenvolvimento aquém à

que possui a disfunção. Nesse momento, ficou aparente que as questões que

envolvem afetividade, relação familiar, alimentação e motivação intrínseca e

extrínseca podem determinar o grau de aprendizado do sujeito.

Nesse sentido, o caminho a ser traçado foi em direção de levantar os

dados do histórico escolar desses dois alunos, percebendo o avanço de um

(aluno com dislexia) e o retrocesso do outro. Esse fato pode ser percebido em

registros de anos anteriores, levando a confirmar as contribuições de diversos

autores, quando dizem que não é a dificuldade de aprendizagem que

determina o aprendizado. E sim, as condições materiais e estruturais

oferecidas para que esse aprendizado aconteça com sucesso.

Com isso, para confirmar o quadro exposto, partiu-se então para a

observação das atividades de leitura e as intervenções feitas com esses alunos

e os demais da turma na qual eles faziam parte. E ficou claro que a questão

não era metodológica, visto que a docente dessa turma faz uso de métodos

eficazes e propostos por teóricos que estudam as estratégias de leitura, ou

seja, aplica atividades que envolvem inferência, antecipação e verificação.

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Desse modo, pode ser percebido que, mais uma vez, a motivação

interna foi determinante para o avanço das crianças. E é a partir daí que

começamos a responder os questionamentos iniciais que foram citados no

início desse texto, pois o processamento da leitura se dá de forma diferenciada

visto que os seres são diferentes. Seria a afirmação de que cada um tem seu

tempo e modo de aprender.

Nessa direção, não cabe pensar em hereditariedade quando pensamos

em aprendizagem da leitura. No entanto, cabe e muito, pensar em ambiente.

Mas, devemos falar em ambientes (no plural), pois o ambiente familiar

determina, o ambiente escolar determina, o ambiente da sala de aula

(alfabetizador) determina, enfim, os ambientes que a criança frequenta e as

interações que faz é o determinante para o desenvolvimento dela, em qualquer

aspecto que seja.

Por esse motivo, quando nos propomos a estudar aquisição da leitura,

precisamos fazer um trabalho de exclusão, que consiste em ir excluindo os

aspectos que não fazem parte da realidade da criança analisada, para depois

começarmos a pensar no que realmente é necessário para sua aprendizagem,

e quais as intervenções que se adéquam à dificuldade apresentada por ela.

Enfim, o que fica de tudo o que foi lido, estudado e registrado é a certeza

de que o aluno é o principal ator, é por ele que a escola existe, portanto, é para

ele que a educação é construída. Desse modo, cabe pensar um ensino voltado

para o alcance dos objetivos de cada discente (individualmente), pois não

estamos tratando de homogeneidade. É certo que alfabetizar não é tarefa fácil,

mas se nós professores continuarmos buscando, envolvendo a família nesse

processo e adequando métodos, com certeza essa dificuldade será dirimida e a

leitura passará a fazer parte da realidade de muitos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Geraldo Peçanha de. Dificuldades de aprendizagem em leitura e escrita: método fônico para tratamento. Rio de Janeiro: Wak, 2009.

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