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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE RACHEL GADELHA WEYNE O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ: CONFORMAÇÕES, CONFIGURAÇÕES E PARADOXOS. FORTALEZA - CE 2013

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

RACHEL GADELHA WEYNE

O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ:

CONFORMAÇÕES, CONFIGURAÇÕES E PARADOXOS.

FORTALEZA - CE

2013

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RACHEL GADELHA WEYNE

O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ:

CONFORMAÇÕES, CONFIGURAÇÕES E PARADOXOS.

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e

Sociedade, da Universidade Estadual do

Ceará, como requisito parcial para obtenção do

grau de Mestre em Políticas Públicas e

Sociedade.

Orientador: Alexandre Barbalho.

FORTALEZA - CE

2013

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Felipe

Que durante o período em que trabalhei nessa pesquisa, também empreendeu uma travessia

em busca de si mesmo. Para você, meu amor e o desejo que encontre sua estrela guia e a paz

de um porto seguro.

Aos jovens produtores

Por tudo que ainda está por vir.

Que vocês percorram um caminho mais claro, mais potente, mais produtivo e mais criativo.

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AGRADECIMENTOS

Ao Mestre

A força que move e nos mantêm eternamente aprendizes.

Rui e André

Pelo carinho e cuidado. Apoio incondicional e sensibilidade.

Por compreenderem minha ausência. E mais do que tudo, pelo amor diário.

A todos os produtores culturais entrevistados

Minha gratidão pela confiança, sinceridade e entusiasmo.

Por tudo o que vocês são, fazem e representam para a cultura do Ceará.

Alexandre Barbalho

Apoio e sensibilidade. Conhecimento e dedicação.

Presença amiga, competente e segura na orientação deste trabalho.

Minha família: Cecilia, Osvaldo, Gadelhas e cia.

Meu abrigo constante. Amor e apoio incondicional.

E por terem me ensinado a ir à busca dos próprios sonhos.

M. Silvio e amigos da União

Pela compreensão nas ausências, pela forte presença e por ter para onde voltar.

Ana Carla Fonseca, Ana Stela Câmara, Pedro Rogério e Sylvio Gadelha

Por terem acreditado e por terem me feito acreditar.

Maria Amélia Mamede, Lucas Benedecti, Ana Jouselini Santos e amigos da Via de

Comunicação

Por nossa história compartilhada. Pela compreensão, paciência e suporte.

João Domingues e Kadma Marques

Pelas observações precisas, sensíveis e construtivas que enriqueceram esse trabalho.

Jocastra Holanda, representando os colegas, servidores e professores do MAPPS

A boa companhia na viagem. Em nome da alegria que há no conhecimento.

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RESUMO

Este trabalho fornece elementos para uma melhor compreensão do campo da produção

cultural no Ceará e de sua relação com as políticas públicas de financiamento à Cultura do

Brasil. Objetiva refletir sobre o lugar do produtor cultural e a sua importância no sistema da

cultura e investigar como se configuram as relações entre os atores no interior do campo,

identificando suas tensões e especificidades. Para isso, analisará como o sistema de

financiamento à Cultura, especialmente às leis de incentivo, influenciaram (e continuam

influenciando) o campo da produção cultural no estado do Ceará. A pesquisa tem como base

teórica principal os estudos de Pierre Bourdieu, na sociologia da cultura, e a bibliografia

contemporânea produzida sobre o tema. Os depoimentos dos produtores culturais cearenses,

coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, são o fio condutor que permitirá a

inserção no campo e o fornecimento dos elementos necessários à compreensão e visibilidade

da atividade da produção cultural.

Palavras-Chave: Política Cultural. Financiamento à Cultura. Produção Cultural. Organização

da Cultura. Campo da Cultura.

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ABSTRACT

This paper provides elements for a better understanding of the field of cultural production, the

process of the activity's conformation in the state of Ceará and its relationship with public

funding policies to culture. It aims to reflect upon the place of the cultural producer and its

importance in the culture system and investigate how to set up the relations among actors

within the field, identifying tensions, specificities and paradoxes. In order to do that, it will

analyze how the system of culture financing, especially the incentive laws and tally sheets,

have influenced (and continue to influence) the field of cultural production in Ceará. The

research is primarily based on theoretical studies of Pierre Bourdieu's - sociology of culture -

and contemporary literature produced on the subject. The testimony of Ceará's cultural

producers collected through semi-structured interviews are the common thread that allows the

insertion in the field and the provision of the necessary elements to the understanding and

visibility of contemporary cultural production activity.

Keywords: Cultural Politics. Financing of Culture. Cultural Production. Organizational

Culture. Field of the Culture.

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LISTA DE SIGLAS

CEFIC - Certificado Fiscal de Incentivo à Cultura

CFC - Conselho Federal de Cultura

CNIC - Comissão Nacional de Incentivo à Cultura

CONCINE - Conselho Nacional de Cinema

CONCLA - Comissão Nacional de Classificação

CPC- Centros Populares de Culturas

CPC - Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural

FEC – Fundo Estadual de Cultura

FGV - Fundação Getúlio Vargas

FICART - Fundo de Investimento Cultural e Artístico

FNC - Fundo Nacional de Cultura

FUNARTE – Fundação Nacional de Artes

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços

ICMS - Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação

de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação

IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana

IR - Imposto de Renda

ISS - Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza

LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros

LOA - Lei Orçamentária Anual

MAM – Museu de Arte Moderna

MASP – Museu de Arte de São Paulo

MEC – Ministério da Educação

MINC – Ministério da Cultura

ONU – Organização das Nações Unidas

PAC- Programa de Ação Cultural

PEC - Proposta de Emenda à Constituição

PNC – Plano Nacional de Cultura

PRONAC - Programa Nacional de Apoio à Cultura

SCDC - Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural

SECULT - Secretaria da Cultura do Estado do Ceará

SECULTFOR - Secretaria de Cultura de Fortaleza

SECULTFOR – Secretaria de Cultura de Fortaleza

SEFAZ - Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará

SEFIC - Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura

SID - Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural

SIEC - Sistema Estadual de Cultura.

SNC- Sistema Nacional de Cultura

UECE – Universidade Estadual do Ceará

UNE - União Nacional dos Estudantes

UNESCO - Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura

UNIFOR - Universidade de Fortaleza

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 FINANCIAMENTO À CULTURA 24

2.1 Financiamento à Cultura na sociedade contemporânea: modelos

paradigmáticos.

29

2.2 Políticas de incentivo à Cultura no Brasil: leis e editais. 31

2.3 Políticas culturais e financiamento à Cultura no Ceará 43

2.4 Breves considerações sobre o sistema de financiamento à Cultura no

Brasil

50

3 O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL E AS POLÍTICAS

PÚBLICAS DE FINANCIAMENTO À CULTURA

60

3.1 Compreendendo o lugar: percursos e nomeações 64

3.2 Produção cultural: uma atividade complexa e ainda em formação 71

3.3 As políticas públicas e a produção cultural no Brasil 82

4 O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ 99

4.1 Percursos e conformações 107

4.2 Configurações e paradoxos 132

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 149

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 154

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1 INTRODUÇÃO

A percepção do potencial estratégico da Cultura para o desenvolvimento humano,

social e econômico marcou o campo cultural nos últimos anos. As políticas públicas passaram

a ser elaboradas a partir de uma visão transversal, abordando suas interfaces com demais

setores - Economia, Política, Turismo, Tecnologia, Comércio -, requerendo atores mais

qualificados e com visão multidisciplinar.

As diretrizes estabelecidas durante a gestão da cultura do governo Luís Inácio

Lula da Silva (2003-2010) possibilitaram a ampliação de um mercado cultural, com gradativo

deslocamento de estratégias e ações dos centros urbanos nacionais para outras regiões e

pequenos municípios no País. A possibilidade de dar vazão a essa imensa demanda represada,

impôs uma maior organização do sistema, tornando cada vez mais complexas as relações de

troca e de poder no campo social.

O Ceará viveu e absorveu, a seu modo, todas as políticas públicas direcionadas à

cultura no País nas últimas décadas. Sede da primeira Secretaria da Cultura do Brasil, criada

em 1966, o Estado possui um histórico de gestão pública da cultura que se funda no governo

militar, perpassa o período da democratização do País e a política neoliberal de Fernando

Henrique, até alcançar as diretrizes socioculturais do governo do Partido dos Trabalhadores de

Luís Inácio da Silva e de Dilma Rousseff.

Neste período, houve uma expressiva mudança no campo cultural no Estado. As

produções amadoras observadas no trato com as expressões artísticas, a ausência e/ou

fragilidade das políticas públicas e a dependência direta de recursos do Estado foram sendo

gradativamente alteradas com a criação dos mecanismos de incentivo à Cultura, que

introduziram novos agentes, procedimentos e práticas, o que contribuiu para a criação de

sistema cultural mais dinâmico. De uma fase onde a Arte e a Cultura tinham forte componente

ideológico de resistência, passou-se a um regime, sob a égide das leis de incentivo, onde se

valorizavam projetos com maior potencial de visibilidade e retorno para seus investidores,

destacadamente na gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003).

Posteriormente, já no mandato do presidente Lula (2003-2011), propunha-se uma

nova concepção política onde cada cidadão era, em potencial, um produtor de cultura. Novos

valores eram atribuídos à cultura onde se exaltava seu poder de inclusão, acessibilidade,

geração de renda e desenvolvimento social. Para atender a essas diretrizes, as políticas

públicas investiram esforços no lançamento de editais, instrumentos públicos de seleção de

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projetos culturais. Essa nova modalidade de financiamento também provocou mudanças no

campo, tanto pela sua capacidade de direcionar o apoio a segmentos específicos de interesse

do Estado, como também pela possibilidade de acesso a inúmeros agentes, que não

conseguiam viabilizar seus projetos por meio das leis de incentivo.

Atualmente, o sistema de financiamento à Cultura no Brasil e no Ceará tem como

base principal esses dois recursos, que sustentam não só os projetos propostos pela sociedade

civil, os produtores culturais e a classe artística, mas, muitas vezes, as próprias ações de

interesse público. Os dois mecanismos têm sido responsáveis por diversas iniciativas

importantes na área da Cultura, mas também por inúmeras distorções, problemas e

instabilidades no próprio campo, que a despeito de observar grandes mudanças, não

conseguiu produzir as alterações estruturais necessárias para consolidar suas conquistas.

Todas essas políticas repercutem, em maior ou menor grau, no sistema da Cultura

como um todo. Sistema aqui entendido tal qual proposto por Albino Rubim (2005, p.16), que

nomeia ações e atividades essenciais para o desenvolvimento da cultura, a saber: 1. Criação,

inovação e invenção; 2. Transmissão, difusão e divulgação; 3. Preservação e manutenção; 4.

Administração e gestão; 5. Organização; 6. Crítica, reflexão, estudo, pesquisa e investigação e

7. Recepção e consumo. Ou seja, um conjunto complexo, pulsante e interligado, que precisa

funcionar de maneira sistêmica, com a ativação de todas as suas instâncias. Conjunto que

forma o ambiente onde se dá a correlação de forças entre a produção cultural e as políticas

públicas de cultura, configurando-o como espaço de tensões, interatividade, transversalidade e

dinamismo.

Entre as inúmeras mudanças que se processaram, ao longo desse percurso

destacamos, na instância da organização da cultura, a criação de uma nova categoria de

trabalhadores: os produtores culturais. Atuando profissional e diretamente no aspecto da

administração da cultura, cabe a estes profissionais a responsabilidade de criar e/ou “tornar

exequível” uma ideia no campo das Artes ou da Cultura, cuidando de todas as etapas de que

esta necessita para se tornar realidade, desde o planejamento até a administração dos recursos

humanos, técnicos e financeiros. São inúmeras providências para projetos diversos que

demandam, de acordo com suas características singulares, reflexões e respostas imediatas

num ambiente de tensão e diálogo permanentes.

Mesmo que essa função já estivesse presente no campo da cultura, não era

considerada uma atividade profissional em si, mas um meio necessário à efetivação dos

projetos artísticos idealizados, realizada, portanto, de maneira informal, amadora e precária.

As próprias mudanças na concepção de cultura, a instauração de políticas públicas e a criação

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dos mecanismos de financiamento são alguns dos responsáveis pelas alterações que vem se

dando no campo da produção cultural.

O prestígio e a distinção social que a Cultura adquiriu nesse processo, categorias

utilizadas por Pierre Bourdieu, geraram o interesse de novos agentes que, em sua maioria,

ingressaram no mercado sem formação adequada, impelidos por aptidões, qualidades

empreendedoras e afinidades pessoais. São diversos percursos individuais que se configuram

como disposições incorporadas, que sugerem e induzem escolhas e se traduzem no conceito

de habitus, de Bourdieu, entendido como “conjunto de disposições incorporadas e princípio

gerador de práticas”. (BOURDIEU, 2005, p.87). Conceito fundamental para nortear as

reflexões acerca da formação dos agentes, que atuam no interior do campo da produção

cultural, no sentido de suas disposições internas e construção de práticas coletivas.

É importante lembrar que o exercício da produção cultural apresenta

características complexas, inerentes à função de dar forma e administrar bens materiais e

imateriais, subjetividades, talentos individuais, processos criativos e recursos escassos. Assim,

é imprescindível que, ao analisarmos a organização da Cultura, seja considerada a sua própria

natureza que se traduz num campo mutável, plural e multifacetado.

Esse agente, denominado aqui de produtor cultural, tem um papel central no

sistema da cultura, uma vez que cabe a ele agir como intermediário, conector e elemento que

viabiliza e da materialidade e efetividade a diversos projetos e iniciativas culturais. É aquele

que põe em movimento os anseios culturais da sociedade e da classe artística e cede

materialidade às políticas culturais.

Apesar de sua relevância, observamos que não há ainda uma percepção social e

política de sua função no sistema, o que repercute diretamente na pouca visibilidade da

atividade, nas condições precárias em que esta é realizada e também na formação insuficiente

e ainda sem um campo de conhecimento consolidado.

Mas, tão grave quanto à ausência de formação específica para o exercício desta

atividade, é a escassa bibliografia sobre o tema e a pouca compreensão do papel do produtor

cultural e de sua importância do momento organizativo no sistema da Cultura. Torna-se, pois,

importante aprofundar o estudo sobre esse lugar, suas possibilidades de contribuição efetiva

no sistema cultural vigente e como essa instância tem sido conformada pelas políticas

públicas em nosso País.

Segundo Bourdieu (2005), a história da vida intelectual e artística de uma

sociedade pode ser contada por meio da transformação de seus bens simbólicos e da crescente

autonomização do seu sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens

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simbólicos. Esse processo é construído por agentes num contexto localizado social e

politicamente, conforme descreve o autor:

[...] as funções que cabem aos diferentes grupos de intelectuais e artistas, em função

da posição que ocupam no sistema relativamente autônomo das relações de

produção intelectual ou artística, tendem cada vez mais a se tornar o princípio

unificador e gerador (e, portanto, explicativo) dos diferentes sistemas de tomadas de

posições culturais e, também, o princípio de suas transformações no curso do tempo.

(BOURDIEU, 2005, p.99).

Trabalhamos numa perspectiva de que essas construções implicaram na busca por

legitimação cultural, com hierarquia entre áreas, obras e competências e que essa estrutura

afetou e é afetada pelas relações objetivas entre os produtores de bens simbólicos, as relações

entre os produtores e as instâncias de legitimação, e as relações objetivas entre as diferentes

instâncias de legitimação (BOURDIEU, 2005). Relações que repercutiram na crescente

exigência de profissionalismo e na necessidade de absorção de novos conhecimentos,

perceptíveis no delineamento de linhas de atuação profissional e na feição dos projetos

realizados que, muitas vezes acompanham, moldam-se e atendem às políticas culturais

vigentes.

Compreendemos que, ao mesmo tempo em que os produtores culturais tiveram

sua atuação moldadas pelas respectivas políticas públicas, também trouxeram novas

conformações ao campo da Cultura, criando projetos culturais e demandando respostas e

posicionamentos do poder público. Assim, um importante fluxo de forças se estabeleceu no

período recente do Brasil, em uma intensa relação de troca e interdependência, nem sempre

harmoniosa e convergente. Segundo Maria Helena Cunha:

Existe uma relação muito próxima entre as transformações sociopolíticas e históricas

das sociedades com o fortalecimento do mercado cultural e com a expansão da

capacidade de produção artística. Associa-se a esse cenário as transformações econômicas de âmbito global, que criaram as condições para o surgimento de novos

agentes que compõem as categorias profissionais do campo da cultura – nesse caso o

gestor cultural -, o que, consequentemente, altera a estrutura desse campo

profissional. (CUNHA, 2007, p.182).

Todas essas configurações implicam na produção de diferentes saberes, rotinas e

percepções sobre o próprio campo da produção cultural, o que repercute também na

impossibilidade de uma classificação única da categoria. Agentes que, na sua diversidade

natural, com seus distintos habitus influenciaram e foram também influenciados pelas

políticas públicas e diferentes contextos sociais e políticos.

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Influências que geram tensões em um processo de interação entre múltiplos

agentes em relações de poder e busca de espaço em um campo social. Nesse espaço

relacional, diferentes saberes se incorporam e interagem dentro de um campo de forças, onde

atuam vários atores em disputas por espaço, reconhecimento e posições, com interesses

convergentes ou não, em constante mutação. Debatem-se no cotidiano do campo da produção

cultural disputas por verbas, crescentes exigências de conhecimento, produção de novos

discursos, tensão e luta permanente por prestígio, reconhecimento e apoio.

A complexidade do campo pode ser também observada: na atuação dos

produtores culturais em diferentes áreas das linguagens artísticas, o que reflete na

heterogeneidade de contextos e percepções; nas diferentes posições que os produtores ocupam

em um mesmo campo que abriga autônomos, prestadores de serviços, proprietários de

empresas culturais e gestores de organizações não governamentais que atuam na área cultural,

todos com demandas específicas e diferenciadas; e ainda outra variedade que se configura na

própria forma de inserção no setor da cultura, que abriga produtores terceirizados por

projetos, produtores/gestores que se concentram na produção de seus próprios projetos e uma

terceira categoria, que realiza projetos para diversos clientes como forma de manter as

empresas em atividade enquanto viabilizam suas próprias iniciativas.

Mesmo os que atuam nas áreas afins, além de compartilharem afinidades e

práticas, disputam com os mesmos agentes políticos e econômicos a aprovação de seus

projetos, a viabilização de sua atividade profissional e o reconhecimento e distinção de suas

realizações e iniciativas culturais.

Na maioria dos casos essas posições são cambiantes, sobrepostas e se agrupam,

conforme os fluxos de trabalho e as diferentes solicitações e contextos. Cada uma dessas

subáreas, apesar de compartilharem entre si processos semelhantes, demanda conhecimentos

específicos. Segundo Nádia Gonçalves e Sandro Gonçalves:

Cada elemento do campo é um agente, e os agentes de um determinado campo

partilham um conjunto de interesses e capital comuns, mais fortes que os

antagonismos que possam ter, ao mesmo tempo em que se trava uma luta concorrencial decorrente de relações de poder internas ao campo. Todos os campos

caracterizam-se por possuírem características próprias, com dinâmicas, regras,

capitais específicos e por um polo dominante e outro dominado, com possíveis

gradações intermediárias e conflitos constantes, e definidos de acordo com seus

valores internos. (GONÇALVES, Nádia; GONÇALVES, Sandro, 2011, p.48).

Cientes da complexidade e amplitude da trama, que tece o campo da produção

cultural, utilizamos as teorias de Pierre Bourdieu para nortear esta reflexão e subsidiar nossos

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questionamentos com base na sociologia da cultura. Alguns de seus conceitos são de

fundamental importância para a elaboração teórica desta pesquisa, destacando-se dentre eles

as noções de campo e subcampo, entendidos como espaço social onde se desenham as

trajetórias dos produtores. O autor assim define espaço:

[...] é de fato diferença, separação, traço distintivo, resumindo, propriedade

relacional que só existe em relação a outras propriedades. Essa ideia de diferença, de separação, está no fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições

distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às

outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou

de distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre

[...] (BOURDIEU, 2001, p.18).

Nesse trabalho, investigaremos esse espaço por meio de uma perspectiva que

posiciona o produtor cultural como elemento central no campo, uma vez que consideramos

que este impulsiona e cede materialidade as demais instâncias. A escolha se justifica porque,

apesar de sua centralidade, o produtor cultural ainda é um elo pouco percebido neste sistema.

Tanto pelo caráter recente da atividade, como pela escassez de instituições formativas e até

pela pouca de compreensão dos processos e singularidades da própria atividade.

Procuramos, então, compreender como as distintas políticas culturais,

destacadamente aquelas relacionadas ao financiamento da Cultura, influenciaram as

conformações do campo da produção cultural no Ceará. O que nos instiga é o desejo de

investigar como estas políticas impactaram e ainda impactam na produção cultural, não só no

aspecto do desenvolvimento da atividade e ampliação do campo, mas também na indução de

discursos, valores e fazeres.

Interessa-nos identificar e revelar a multiplicidade e complexidade de relações que

se estabelecem, especialmente nos aspectos que dizem respeito às tensões e disputas no

âmbito do financiamento à Cultura, como se configuram e o que podem revelar sobre a

própria categoria e o campo da produção cultural, pois acreditamos - como assegura Bourdieu

- que:

Não é demais afirmar que a história do campo é a história da luta pelo monopólio da

imposição das categorias de percepção e apreciação legítimas; é a própria luta que

faz a história do campo; é pela luta que essa se temporaliza. (BOURDIEU, 2008,

p.88).

É, pois, essa luta e essa trajetória que nos propomos a conhecer. Como o Ceará

tem experiências relevantes na gestão pública da cultura, bem como projetos culturais

reconhecidos nacionalmente, acreditamos que se faz necessária e pertinente uma reflexão

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acerca do processo de criação deste segmento profissional e da experiência acumulada por

meio de tentativas, acertos e falhas nos caminhos percorridos.

Neste sentido, consideramos extremamente importante aprofundar o

conhecimento acerca dos frágeis mecanismos em que esta profissão se sustenta, bem como

sua complexa relação de interdependência com as políticas públicas de financiamento à

Cultura. Assim, esta pesquisa busca trazer novos olhares sobre essa realidade profissional,

focando mais diretamente em seus elementos constitutivos e suas interfaces com as políticas

públicas vigentes, colaborando para a compreensão e visibilidade do sistema cultural em seu

aspecto organizativo.

É este cenário sobre o qual nos debruçamos em busca de resposta para relevantes

indagações: qual a influência das políticas públicas de financiamento à Cultura no campo da

produção cultural no Ceará? Quais os elementos constitutivos desse novo campo e de que

forma se estabelecem essas relações de poder e (inter)dependência entre seus agentes, no

caso, os produtores e o poder público? Quais as disputas e tensões que ocorrem no interior do

campo? Estas são indagações que ganham maior premência na medida em que nos

consideramos intrinsicamente necessitados destas respostas, não só como pesquisadora, mas,

também, como produtora cultural e partícipe de todo esse processo estudado.

Ao observarmos o campo da produção cultural no Ceará, desde meados da década

de 80, temos acompanhado as distintas etapas descritas na pesquisa e vivenciado, no exercício

desta respectiva atividade as novas e crescentes demandas do mercado. Nesse cenário cultural

temos sofrido um processo de “profissionalização” e sentimos os reflexos causados no

exercício dessa atividade diante das diferentes políticas culturais, assim como os principais

momentos e desafios do campo da produção cultural hoje.

Estivemos à frente e/ou participamos de relevantes projetos culturais realizados no

Ceará nesse período e pudemos perceber, em seu próprio interior, o processo de

complexificação do campo, as disputas e tensões, as crescentes exigências de aperfeiçoamento

técnico e a escassez de conhecimento teórico, que nos impeliu na busca de novos espaços de

conhecimento e atuação política para fazer frente aos crescentes desafios do campo cultural.

Desta forma, essa pesquisa surge como uma necessidade de gerar conhecimento e reflexão

sobre uma ampla experiência empírica e vivencial. A nossa experiência em produção cultural

facilita o processo de imersão e a própria navegação no campo.

É importante destacar alguns fatores que se apresentam como as maiores

dificuldades para a realização deste trabalho: a contemporaneidade dos acontecimentos

estudados, o que torna mais difícil uma compreensão retrospectiva e objetivada; e a ausência

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de instituições consolidadas na área, principalmente no âmbito da produção de conhecimento

científico do setor, o que repercute na escassez de produção teórica sobre o tema. Porém,

nenhuma delas é tão relevante como o caráter amplo, multiforme e complexo, inerente ao

campo da produção cultural, nosso objeto de estudo.

Fizemos escolhas para configurar o campo estudado em um universo de

possibilidades e priorizamos recortes que atendessem ao nosso objeto de interesse. Adentrar

no campo da produção cultural nos envolveu tal qual uma investida no fundo do mar, envolto

em seres desconhecidos, diversos, com uma variedade incomensurável de formas e cores. Em

qualquer lugar que se penetre nas profundezas do oceano, a possibilidade de descoberta será

diferenciada, condicionada ao instante, a profundidade, a localização, as correntes, ao clima e

a outros aspectos que nos fogem ao comando. Será sempre uma aventura misteriosa e

enigmática essa expedição marítima e, a cada investida, novos cenários e seres se

descortinarão, bem como diferentes descobertas sobre o que pulsa e vive no fundo do mar e,

em nenhuma, a possibilidade do conhecimento pleno e definitivo. Essa analogia traduz nossa

percepção e posicionamento sobre a dificuldade metodológica que se impõe, quando nos

propomos a compreender e identificar os processos que se dão no campo da produção

cultural. Para isso, se faz necessário um recorte, limitado, mas nem por isso menos revelador.

Nosso recorte será a investigação do campo tendo como referência o trabalho de

profissionais que lidam com a cultura, propondo e realizando seus projetos no Ceará, ou seja,

atuam no campo criando e desenvolvendo iniciativas culturais, o que requer não só

competência operacional, mas também capital cultural. Estes produtores necessitam de

recursos financeiros para viabilizar seus projetos, colocando-os em interface permanente com

as políticas públicas de financiamento à Cultura.

Para a seleção destes agentes, como já foi dito, utilizamos a definição já

apresentada de produtor cultural, priorizando aqueles que criam, viabilizam e administram

seus próprios projetos, estando, portanto, envolvido nas múltiplas dinâmicas do campo. Visão

esta que vem somar-se à definição de José Marcio Barros, ao trazer uma denominação

ampliada de gestão para a atividade:

O gestor cultural é um mediador entre a dimensão subjetiva e sensível da cultura e

os seus desdobramentos e interfaces com os outros campos da experiência humana

[...] é uma espécie de roteador de informações alternativas e possibilidades

dinâmicas de construção de cenários prováveis, mas também de cenários utópicos.

[...] é um profissional da complexidade da cultura. E isso significa habilidades,

grandes habilidades do ponto de vista da análise conceitual, metodológica e também

tática. (BARROS, 2008, p.111).

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Os entrevistados são agentes que se reconhecem como produtores e/ou gestores

culturais e que se encontrem no exercício da profissão. Residem em Fortaleza, apesar de

atuarem em diferenciados municípios do Estado. Dirigem empresas ou instituições culturais e

se responsabilizam pela proposição e/ou realização de projetos culturais próprios, estando

sujeitos às correlações de força do campo cultural e que tem a atividade cultural como fonte

de renda prioritária, ou seja, encarada como categoria profissional.

Propusemo-nos a penetrar nessa temática, tendo como referencial teórico os

conceitos de Pierre Bourdieu sobre o campo da produção artística, que se mostram

importantes instrumentos para iluminar os temas abordados. Como a pesquisa tem estreito

diálogo com acontecimentos sociais contemporâneos, trabalhamos também com autores que

têm se debruçado sobre as recentes transformações culturais no Brasil e no mundo por meio

de estudos que retratam a produção de conhecimento contemporâneo nas áreas de políticas

culturais, sistema de financiamento à Cultura, mercado cultural e gestão da cultura.

Utilizamos ainda pesquisas e produções literárias recentes, que tratam do tema da

produção cultural no Brasil contemporâneo. São documentos que continuam a dar ênfase ao

caráter pragmático da produção, mas que tem o mérito de registrar aspectos da atividade e

depoimentos desses atores, contribuindo para a compreensão do assunto abordado na

pesquisa, uma vez que compõem os documentos mais atualizados sobre o campo da produção

cultural no Brasil.

As políticas culturais, aqui entendidas segundo definição de Lia Calabre (2010,

p.11) como o “planejamento e a execução de um conjunto ordenado e coerente de preceitos e

objetivos que orientam linhas de ações públicas mais imediatas no campo da cultura”,

também foram importantes na elaboração da pesquisa por meio de documentos oficiais, como

plano de ações e seus programas, folders promocionais, apresentações públicas, publicações e

home page institucional, que se somaram à bibliografia aqui apontada. Utilizamos ainda

registros em jornais e revistas, que tratavam do tema de estudo, durante os dois anos de

realização da pesquisa. No entanto, o fio condutor da investigação é o conteúdo da própria

narrativa dos produtores culturais do Ceará, que ao expor suas trajetórias, reflexões e

inquietações sobre o campo, contribuíram decisivamente para assegurar a possibilidade de

acesso ao conhecimento que nos propomos.

Buscamos, pois, revelar as percepções e aspectos da trajetória dos agentes, que

faziam produção cultural no final da década de 60 e por toda a década de 70; dos que

iniciaram a atividade com a criação das políticas de financiamento à Cultura - federais e

estaduais – nas décadas de 80 e 90; e daqueles que ingressaram na área já na vigência das

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novas diretrizes políticas do século XXI, que propõem a visão da Cultura em um espectro

mais ampliado, no sentido antropológico do termo.

Para tanto, foram selecionados 20 produtores culturais que estão em relação

permanente com as políticas públicas estudadas, a fim de relatar seus depoimentos e reflexões

sobre o próprio campo. Apesar de se identificarem com a produção cultural, estes

entrevistados ocupam lugares distintos no campo, o que confere aos depoimentos visões

diferenciadas e complementares, que possibilitam a recomposição da riqueza e da diversidade

dos fluxos e redes estabelecidas no âmbito da cultura, recordando, sempre, que o conteúdo por

hora apresentado será somente uma parte do campo e em determinado momento apreendido.

Ao assumirmos o desafio desta incursão, organizamos os produtores entrevistados

em três grupos diferenciados, denominados segundo características que destacamos.

Grupo 1 - Produtores/Artistas

Produtores que atuavam no campo da cultura antes do período de criação das leis

de incentivo (décadas de 60, 70 e meados de 80), quando a produção ainda era exercida como

uma atividade meio, consequência da necessidade do artista de viabilizar sua própria

expressão artística.

A inserção desse grupo de entrevistados possibilita a compreensão de como se

dava a produção cultural no Ceará antes do surgimento das leis de incentivo e captar a

percepção desses produtores sobre as principais mudanças ocorridas, assim como seu

entendimento sobre o processo de profissionalização da categoria, as novas exigências do

mercado e do advento de outros atores no campo da produção cultural. Investiga ainda como

esses primeiros produtores reagiram a todas essas mudanças e como percebem sua inserção no

campo da cultura nos dias de hoje.

Grupo 2 - Produtores/Empreendedores

Grupo formado por produtores que tiveram seu ingresso na atividade da produção

cultural impulsionada pela criação das leis de incentivo à Cultura, segunda metade dos anos

80 e toda a década de 90.

Esses produtores já se inseriram no campo, posicionados como produtores

culturais e participaram, atuando na atividade, de um processo de transição de uma política

pautada na visão neoliberal na gestão FHC para outra de promoção de novas diretrizes

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culturais na gestão de Lula. Eles têm um perfil empreendedor, pois aprenderam na prática o

exercício da produção cultural, onde desbravaram caminhos e forjaram um mercado. Neste,

formaram suas empresas e atuam profissionalmente com a atividade da organização da

cultura. São personagens de uma história recente, relevante e ainda não narrada.

Grupo 3 - Produtores/Gestores

Produtores que iniciaram sua atividade no século XXI, ingressando em um

mercado já em desenvolvimento, com a existência de políticas de financiamento à Cultura e

de programas e diretrizes culturais públicas em processo de implementação, seja no âmbito

federal, estadual ou municipal, pelas instituições culturais.

Em geral são produtores jovens, com uma formação diversificada e uma

percepção social mais ampla. Se por um lado não tiveram que “desbravar” terrenos, por outro

se deparam com mais possibilidades de trajetórias e caminhos diferenciados. Ingressaram em

um campo onde as políticas públicas estavam sendo construídas e com mais oportunidades de

atuação profissional e formação, o que lhes propicia uma familiaridade com a gestão, reflexão

e participação social no âmbito da Cultura.

Por meio destas entrevistas, buscamos também perceber se o posicionamento

temporal ocasiona diferenças de atitudes e percepções e, identificar quais são e como

ocorrem. Procuramos na fala dos entrevistados, identificar, sob o seu ponto de vista, como o

processo de criação de um novo campo cultural ocorreu, quais foram os fatores que

influenciaram sua profissionalização e sua ampliação e como os valores culturais apregoados

nos diferentes contextos interferiram na conformação dos projetos realizados. Intentamos

captar a percepção dos entrevistados sobre os processos vividos, as principais mudanças e seu

olhar sobre o cenário atual. Por fim, por meio dos depoimentos, registramos a visão dos

entrevistados sobre o lugar e a importância do produtor no campo da Cultura.

Essa a dissertação contém três capítulos distribuídos de forma a possibilitar uma

compreensão ampla do tema e a percepção das especificidades do campo. Inicia com uma

abordagem do sistema de financiamento à Cultura no Brasil, passando pelas repercussões das

políticas públicas no campo da produção cultural, até chegar ao estudo do campo no Ceará,

com suas conformações, configurações e paradoxos.

O capítulo intitulado Financiamento à Cultura apresenta como se estabelecem

as relações que se dão entre os detentores dos recursos financeiros e o campo da Cultura no

País, questão fundamental para compreensão das dinâmicas e relações processadas no campo

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da produção cultural. Introduz como essas relações se davam nos governos autoritários,

apresenta a criação das leis de incentivos e editais, seus distintos contextos sociais e políticos

e a repercussão desses diferentes momentos na gestão da cultura no Brasil. Esse capítulo se

mostra relevante devido à intensa relação (de dependência e tensão) que existe entre a

necessidade de financiamento e o desenvolvimento do campo da produção cultural. A

perspectiva ampliada do sistema de financiamento à Cultura faz-se necessária para o posterior

entendimento de como essas políticas afetaram os modos de ser e fazer da produção cultural

em suas distintas diretrizes e contextos. Para isso, dividiremos o capítulo em três tópicos.

O primeiro, denominado Financiamento à Cultura na sociedade

contemporânea: modelos paradigmáticos traz uma breve apresentação de dois modelos de

políticas públicas no que tange à questão do financiamento à Cultura, no caso dos Estados

Unidos da América e França, que exerceram influências no sistema implantado no Brasil. O

segundo, intitulado Políticas de incentivo à Cultura no Brasil: leis e editais trata dos

distintos momentos históricos do financiamento à Cultura em nosso País e se aprofunda da

criação das leis de incentivo no Brasil e os ideais que animaram a formulação desses

mecanismos. Aborda também a criação dos editais públicos de apoio a projetos culturais

como reflexos dos novos contextos políticos e diretrizes para a cultura. O terceiro tópico,

intitulado Políticas culturais e financiamento à Cultura no Ceará traz uma visão de como

o processo de criação dos mecanismos de incentivo à cultura se deu no Estado, não só como

reflexo das políticas nacionais, mas também com características e peculiaridades locais. Por

fim, no último tópico intitulado Breves considerações sobre o sistema de financiamento à

Cultura no Brasil, diferentemente dos anteriores, que retratam o processo de criação e

funcionamento das leis e editais, propõe a realização de uma análise das principais conquistas

obtidas pelo sistema de financiamento à Cultura do Brasil, assim como a identificação de suas

contradições, distorções e fragilidades. Todas essas questões são relevantes para a

compreensão de como esses mecanismos atua na conformação do campo da produção cultural

no Brasil e, particularmente no Ceará, objeto dessa pesquisa.

O capítulo seguinte tem como tema O campo da produção cultural e as

políticas públicas de financiamento à Cultura e aborda mais diretamente as questões

centrais para a pesquisa, uma vez que é aqui que começa a se delinear a compreensão do

campo da produção cultural e as formas como este foi e continua sendo afetado pelo sistema

de financiamento à Cultura no Brasil. Dedica especial atenção à busca da compreensão da

atividade da produção cultural, sua função e relevância para o sistema da cultura e do registro

de suas práticas e processos. Traz, também, reflexões que fornecem elementos para a

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percepção das ocorrências e fluxos que se estabeleceram nos últimos anos no campo da

produção cultural no Brasil, apresentando a multiplicidade de atores, suas dinâmicas internas

e as principais rotinas e atividades realizadas por esses profissionais no exercício de sua

atividade. São elencadas ainda as diversas demandas e áreas de conhecimento exigidas de um

produtor, que refletem a complexidade do campo da produção cultural no Brasil

contemporâneo.

Organizado em três tópicos, onde o primeiro tem como título Compreendendo o

lugar: percursos e nomeações e reflete sobre o processo de construção da atividade e sobre o

“lugar” conferido a esses agentes no campo cultural, além de apresentar suas inserções em

distintos contextos e nomeações. O segundo tópico, intitulado Produção cultural: uma

atividade complexa e ainda em formação trata da difícil classificação da atividade, suas

diversas formas de atuação e suas práticas. Aborda as precárias condições de trabalho e a

incipiente regulamentação dessa categoria profissional no Brasil. As políticas públicas e a

produção cultural no Brasil é o último tópico e identifica os fatores que impulsionaram a

profissionalização da produção no Brasil, relacionando-os com as diversas políticas públicas e

criação dos mecanismos de financiamento à Cultura.

O capítulo final, intitulado O campo da produção cultural no Ceará apresenta a

pesquisa propriamente dita e tem fundamental importância, uma vez que traz a percepção dos

próprios produtores que, por meio dos depoimentos, expõem suas trajetórias e narrativas em

torno de temas como o ingresso na atividade, a percepção da produção cultural e do campo da

cultura no Ceará, as conformações que as políticas públicas de financiamento à Cultura têm

sobre a sua atividade e as formas de reinvenção e resistência, que encontram para lidar com

estas.

Organizado em dois tópicos, traz no primeiro intitulado Percursos e

conformações uma breve reconstituição histórica de como se organizou o campo da produção

desde o período que antecede a criação das leis de incentivo até os dias atuais. O tópico

confronta percursos individuais e coletivos e busca identificar como as distintas políticas

agiram na conformação do campo da produção cultural no Ceará. O segundo tópico,

Configurações e paradoxos, elucidam as diferentes configurações no campo da produção

cultural hoje, apresentando suas relações de disputas, tensões e paradoxos. Nossa intenção,

não é só reproduzir os conteúdos da fala dos produtores, mas refletir sobre eles, fazendo

correlações com as disposições do campo e inserindo-as no contexto das políticas públicas, do

campo da produção cultural no Brasil e da sociologia da cultura.

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2 FINANCIAMENTO À CULTURA

Esse capítulo abordará algumas questões relacionadas ao âmbito do financiamento

à Cultura, mais precisamente, as complexas relações que se dão entre aqueles que detêm os

capitais econômicos e sociais e artistas e produtores da cultura.

Uns dos primeiros aspectos a serem considerados nessa relação são os diversos

papeis que as artes assumiram na sociedade ocidental, trazendo, de acordo com cada contexto

histórico, diferentes justificativas de apoio e utilização. Na forma de festividades e eventos, a

Arte já foi utilizada pelos governantes como estratégia de entretenimento e recurso de

demonstração de prestígio, além de afabilidade e sensibilidade para com a cultura de seu

povo. Na forma de apoio direto aos criadores, pode ser observada como uma manifestação

explícita e concreta de poder pessoal e simbólica conferida aos patronos da Arte, que, ao

terem sob seu domínio e em relação de dependência direta, artistas das mais diversas

linguagens e talentos, projetam em si uma imagem de poder, identificação com a beleza e

enobrecimento cultural.

Durante séculos essas relações se manifestam de diversas formas, acompanhadas

de sentimentos ambíguos de necessidade, gratidão e ressentimento. Se por um lado, puderam

gerar interferências indesejadas e direcionamentos explícitos na criação artística, por outro,

foram também responsáveis pela produção de obras de arte da melhor qualidade estética que

fazem parte da história da humanidade e permanecem vivas e pulsantes até hoje.

Nos dias atuais, em maior ou menor escala, esses aspectos continuam presentes

nas relações que se travam no campo do financiamento à Cultura e à Arte. São questões de

difícil abordagem, que não permitem classificações simplistas e das quais nem mesmo os

grandes artistas puderam escapar, como podemos observar nos exemplos a seguir.

Michelangelo (1475-1564), ao pintar a Capela Sistina, produziu uma das obras de

arte mais importantes da humanidade. No entanto, a beleza deste trabalho não apaga o fato de

que a obra foi feita inicialmente sob desagrado do artista, que achava que não dominava a

técnica da pintura e estava mais interessado em trabalhar com esculturas na construção do

túmulo do Papa. No entanto, como dependia de seu patrono, teve que atender a encomenda do

seu mantenedor, o Papa Júlio II. Certa ocasião, ao refutar o pedido de fazer uma escultura em

bronze, alegando que não era sua especialidade, o artista ouviu de seu patrono a seguinte

frase: “Comece a trabalhar... E repita várias vezes até conseguir.” (KING, 2004, p.48). A

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produção artística não cabia exclusivamente ao artista e a relação se pautava em interesses

mútuos, porém, nem sempre convergentes.

Michelangelo era um artista sensível que necessitava de “carinho e estímulo”, mas

também precisava de recursos para viver e criar, o que o fez trabalhar durante vários anos sob

a proteção e apoio de seu mecenas, em relação de subordinação, consentimento e, em alguns

momentos, litígio. Naquele período, segundo King:

Era algo comum o cliente definir o tema que seria abordado em um trabalho.

Pintores e escultores eram vistos como artesãos que trabalhavam a partir de

instruções claras de quem estivesse pagando a conta... Assim, o artista na época de

Michelangelo tinha pouca semelhança com o ideal romântico do gênio solitário que

conjurava obras de arte originais das profundezas de sua imaginação, sem ser

perturbado pelas exigências do mercado de arte ou de um patrono. (KING, 2004,

p.65-66).

Shakespeare (1564-1616), por sua vez, teve a felicidade de viver em uma época

onde o teatro era valorizado pela própria regente, Rainha Elisabeth, que além de apreciadora

das Artes Cênicas, sabia reconhecer os lucros advindos com as práticas artísticas e

festividades locais. No entanto, outros aspectos interferiam no processo de criação artística,

pois havia uma forte regulamentação para os espetáculos, de forma a garantir que as

companhias se apresentassem de maneira “respeitosa e ordeira”. Bryson relata que, com medo

de serem associados a vagabundos, que mereciam açoitamentos, trupes de atores se ligavam

aos patrocinadores da aristocracia:

O patrocinador fornecia aos atores certo grau de proteção e eles, em troca, levavam seu nome país afora, dando-lhe publicidade e prestígio. Durante algum tempo,

patrocinadores colecionaram trupes de atores, do mesmo jeito que pessoas ricas de

uma época posterior colecionaram cavalos de corrida ou iates. (BRYSON, 2008,

p.77).

Quase 200 anos depois, período em que viveu Mozart (1756-1791), essas questões

ainda faziam parte da vida dos artistas, que continuavam a depender das benesses de um

patrono para criar e subsistir financeiramente com suas famílias, encontrando-se geralmente

empregados na “rede de instituições da corte ou em suas ramificações”. Segundo Elias, “os

músicos eram tão indispensáveis nestes palácios quanto os pasteleiros, os cozinheiros e os

criados, e normalmente tinham os mesmos status na hierarquia da corte”. (ELIAS, 1995,

p.18).

Nesse tipo de estrutura social, alguns músicos se destacavam artisticamente, o que

possibilitava uma maior visibilidade, prestígio e ampliação do campo de atuação, permitindo-

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se sonhar com uma autonomia criativa. No entanto, Elias lembra que a Música era tratada

como um ofício, se guardando uma enorme desigualdade social entre os produtores de arte e

os patronos.

No caso de Mozart não era diferente. Cabia ao seu empregador, o príncipe-bispo

de Salzburgo, a decisão de onde e quando tocar e, muitas vezes, o que compor. Situação que

não era bem aceita pelo músico, que teve sua vida e sua obra profundamente marcadas por

essa ambiguidade: necessidade básica de subsistência; rancor por quem lhe garantia emprego

e trabalho; desejo de se tornar um artista autônomo e a necessidade de reconhecimento e

aceitação de sua arte pelo establishment. Segundo o autor:

Mozart viveu a ambivalência fundamental do artista burguês na sociedade de corte,

que pode ser resumida na seguinte dicotomia: identificação com a nobreza da corte e

seu gosto, ressentimento pela humilhação que ela lhe impunha... Lutou com uma

coragem espantosa para se libertar dos aristocratas, seus patronos e senhores. Fez

isso com seus próprios recursos, em prol de sua dignidade pessoal e de sua obra

musical. E perdeu a batalha. (ELIAS, 1995, p.24-16).

O músico quis escapar dessa relação de submissão explícita e, acreditando na sua

superioridade musical, aventurou-se a trilhar uma trajetória incerta longe de seu patrono,

morrendo prematuramente aos 35 anos de idade, cheio de dívidas, derrotado e decepcionado,

“levando consigo para a sepultura inimagináveis criações musicais ainda por compor”.

(ELIAS, 1995, p.9).

Esses exemplos retratam de maneira inequívoca a complexidade que envolve o

tema do financiamento à Cultura. Relações pautadas por ameaças de domínio,

constrangimento e dirigismo, mas também pela necessidade e troca de interesses mútuos,

responsáveis por proporcionar as condições de criação e produção de obras artísticas

essenciais para a percepção do potencial simbólico e artístico do ser humano.

Na figura de um mecenas, seja ele uma autoridade instituída ou não, pode-se

encontrar tanto o apoio necessário e entusiasmado de uma alma sensível às artes, como a

busca de obtenção de prestígio e demonstração de poder. No entanto, independente da

motivação, os apoios dispensados à Arte em diversos tempos, foram fundamentais para a

existência de obras de inegável valor artístico e cultural que, ou teriam se perdido, ou até

mesmo deixado de se realizar. Isso sem falar da importância do mecenas para assegurar, além

da possibilidade de criação, a condição de vida e subsistência pessoal dos artistas e suas

famílias.

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Segundo relato de Reis, o mecenato é a primeira forma de associação entre capital

e cultura. No campo privado se traduzia em demonstração de poder e prestígio para aqueles

que cultivavam artes, uma forma de ostentar riqueza e afirmar um bom posicionamento social.

Perpassam diversos extratos de poder e períodos históricos distintos e continuam a se

manifestar na sociedade contemporânea.

Presentes desde o império romano, por meio das ações “benfeitoras” de Gaius

Maecenas, o mecenato, como ficou conhecido o apoio às artes, sofreu mudanças em torno da

História que retratam o próprio entendimento da Arte nos diversos contextos sociais. Teve

grande prestígio no Renascimento, onde a Arte desempenhava importante papel funcional e

estético; e no Iluminismo, onde o mecenato passa a assumir uma função socioeconômica, de

difusão de ideias transformadoras e atração de artistas, novos mercados e símbolos culturais.

A prática aportou no século XX por meio de grandes milionários emergentes, especialmente

nos Estados Unidos. (REIS, 2006).

Na verdade, apesar de todas essas diferentes trajetórias, observa-se ainda um

desconforto em associar as práticas culturais aos interesses econômicos, o que seria, segundo

Durand, “[...] uma expressão inconsciente de uma antiga e aristocrática reivindicação de

prestígio baseada na crença de que o mundo das artes seria, em sua essência mais íntima, o

reino do completo desinteresse”. (DURAND, 2007, p.12).

Relutância que merece ser adequada e aprofundada, pois permanece encoberta,

imprecisa e presente no imaginário daqueles que atuam na área cultural e artística, como se a

junção do dinheiro com a Arte fosse sempre um estranho e necessário incômodo, ainda a ser

administrado na sociedade contemporânea.

Ainda sem ter encontrado respostas mais confortáveis para essas antigas

problemáticas, a questão do financiamento assume gradativamente na sociedade

contemporânea novas configurações, na medida em que a Arte e a Cultura saem do patamar

das Belas Artes e assumem o lugar de um tema transversal em uma esfera ampla, marcada por

perspectivas sociais, políticas, econômicas e estéticas.

As formas do mecenato mudaram. Outros atores ingressaram nesse sistema,

tornando as relações ainda mais complexas. Às tensões ainda não conciliadas, se somaram

novos atores e cenários. A questão do financiamento à Cultura e Arte se dá hoje em uma

sociedade globalizada e em um mercado ancorado em uma forte indústria cultural, que

coexiste em meio a enormes desigualdades culturais, sociais e econômicas, que precisam ser

contempladas e inseridas. Todas essas demandas exigem novas respostas e pressionam o

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Estado e os demais agentes por respostas que passam desde convenções internacionais,

políticas públicas para a cultura e participação da sociedade civil, dentre outras.

Esse capítulo procurará discorrer sobre como tem se dado a questão do

financiamento à Cultura na contemporaneidade e busca identificar quais as repercussões e

problemáticas que a adoção de um sistema, ancorado em leis de incentivo fiscal e editais

públicos têm trazido para o campo da Cultura em nosso País.

Faremos, de maneira sintética, a apresentação de dois modelos paradigmáticos de

tratamento da questão do financiamento à Cultura nos Estados Unidos e na França para

auxiliar na compreensão das possibilidades de intervenção das políticas públicas e como estas

podem inspirar o modelo adotado no Brasil.

Em seguida faremos um histórico sobre o sistema de financiamento à Cultura no

Brasil, onde nos deteremos principalmente nas leis de incentivo à cultura e na política de

editais. Como o objeto dessa pesquisa tem como base o campo da produção cultural no Ceará,

daremos também atenção sobre como tem se configurado, no âmbito das políticas públicas, o

trato com as questões do financiamento à Cultura no Estado.

Por fim, apresentaremos algumas questões que se colocam como resultantes do

sistema de financiamento à Cultura no País e no Ceará, procurando identificar, além de suas

conformações e contradições, os principais problemas que estão postos e tem forte

repercussão no campo da produção cultural do Ceará e do Brasil.

Acreditamos que a questão do financiamento à Cultura assume uma posição de

centralidade no campo da cultura contemporâneo e que não seria possível efetuar a presente

pesquisa sem compreender a forma como a produção cultural é atravessada pela necessidade

de recursos financeiros e pelas disputas e tensões que se dão nessa correlação de forças.

Dessa forma, a escolha por iniciar a pesquisa apresentando um panorama do

financiamento à Cultura no Brasil, servirá como base para compreensão do campo da cultura

e início do percurso que faremos para compreender, no final do trabalho, as particularidades e

sutilezas que compõem a atividade da produção cultural.

Acreditamos que só a partir da visão ampliada do campo, que tem o tema do

financiamento com um aspecto central para seu desenvolvimento, é que poderemos

compreender as configurações que a produção cultural assumiu no Brasil nas últimas décadas.

Interessa-nos, a partir da análise do sistema de financiamento à Cultura no Brasil,

identificar quais os agentes que atuam no campo, seus aspectos relacionais com suas disputas

e tensões, e como essas políticas de financiamento e seus diferentes instrumentos têm

conformado o campo da produção cultural.

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2.1 FINANCIAMENTO À CULTURA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA:

MODELOS PARADIGMÁTICOS

Nos anos recentes, as políticas públicas vêm tentando, de diferentes formas, dar

conta da questão do financiamento à Cultura. O tema, ainda complexo e inconcluso, passou a

ocupar a atenção do poder público e da sociedade em diversos países na contemporaneidade e

demandado novas respostas para velhas questões.

Bolán, ao refletir sobre uma política cultural, destaca a questão complexa que

versa sobre a autonomia da criação artística, frente à necessidade de subvenção e estímulo por

parte do Estado. Esse aspecto talvez se configure como uma das questões mais complexas das

políticas que tratam da Cultura, diretamente relacionado com o que o autor aponta como

tensões entre a Cultura e o Estado, que surge na necessidade de encontrar alternativas que

minimizem o direcionismo e ampliem a autonomia dos agentes culturais. (BOLÁN, 2006).

As principais referências de políticas de financiamento à Cultura no mundo

ocidental têm como base as experiências utilizadas pela sociedade americana e francesa, que

serão apresentadas sucintamente a seguir como modelos paradigmáticos que, de alguma

maneira, influenciam e repercutem nas políticas adotadas por diversas outras nações, dentre

elas o Brasil.

O moderno mecenato americano está profundamente associado às características

culturais e religiosas daquela sociedade por meio da filantropia e das boas práticas

comunitárias, como forma de angariar prestígio e reconhecimento social. Carnegie,

Rockfeller, Getty e Ford ilustram de maneira contundente a participação dos empresários

americanos na vida cultural e social dos Estados Unidos que, por meio de investimento com

recursos próprios em fundações destinadas à Cultura e a Educação, foram responsáveis por

inúmeras iniciativas de alto valor artístico que marcaram definitivamente a vida cultural no

País. Seus legados se confundem com a própria história da cultura americana, repercutindo na

formação dos gostos, valores e mercados. (MÁRTEL, 2006).

Ao nos ocuparmos da história das políticas culturais norte-americanas e seus

processos de construção social, podemos observar traços distintivos daquela sociedade. Seja

pelas características marcantes de separação entre Estado e sociedade - que estão presentes na

própria essência de sua vida comunal, como percebido por Tocqueville (1998) no século XIX

-; seja nos traços morais e espirituais relacionados ao espírito protestante, destacado por

Weber (2001), que favoreceu o surgimento de uma sociedade formada por homens proativos,

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voluntaristas e propensos à participação social ativa, além da valorização da prática da

caridade e da beneficência social.

Todos esses fatores, de alguma forma, estão presentes na política cultural

americana. Podem ser perceptíveis na cultura do mecenato, na filantropia e no voluntariado,

sinônimos de prestígio social. Não basta ser bom e valoroso: é preciso mostrar-se como tal. O

apoio à Cultura configura-se como símbolo de poder, compartilhada entre pares, por homens

de bem que constroem uma sociedade melhor, pautada naquilo que são valores essenciais para

os norte-americanos: a liberdade e o empreendedorismo.

Toda essa política de mecenato é amparada por mecanismos de financiamento

com base na renúncia fiscal e uma cultura de reconhecimento e valorização pública da ação

em prol do benefício social. A eles soma-se uma vigorosa indústria cultural, que mobiliza um

potente mercado onde interessa a consagração de artistas renomados, como o apoio à

criatividade e o estímulo à descoberta de novos valores.

Observa-se nos Estados Unidos um intrincado processo de ativação da Cultura,

que se anima no seio da própria sociedade, por meio de inúmeras associações não vinculadas

aos governos e que atendem a uma diversidade de linguagens e interesses. Mantidas por

financiamentos privados e públicos, são responsáveis pela riqueza do campo da cultura norte-

americana que, segundo Martel, funciona concomitantemente ao mercado e ao governo.

Um dos aspectos que merece ser destacado no sistema de financiamento à cultura

americana é a coexistência de inúmeros recursos e diferentes agentes, o que pode significar

sinal de vitalidade e de relativo grau de autonomia, pois ao contar com fontes variadas de

sustentação minimiza a possibilidade de dependência acentuada de um ou outro setor.

O estudo das políticas culturais francesas, apresentado por Philippe Urfalino

(2004) e Jean-Michel Dijan (2005), aponta para outros caminhos na questão do papel do

Estado e sua responsabilidade quanto ao financiamento à Cultura. A experiência interessa não

só por sua relevância cultural, mas também por se reconhecer na França o que se pode chamar

de invenção da política cultural, uma vez que foi naquele país, sob a inspiração do governo de

André Malraux (1959-1969), que se deu a criação do Ministério de Assuntos Culturais. Sob

um forte cunho ideológico e com significativa influência da tradição cultural e das ideias da

Revolução Francesa, a política pública se configurou com um acento na questão do acesso e

da democratização cultural, sob um viés de desenvolvimento social.

De acordo com essa concepção, o Ministério tinha como missão: tornar acessível

a um grande número de pessoas as obras capitais da humanidade; colaborar com a melhoria

da condição de vida das populações francesas; e estimular a criação, sustentando estruturas

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que assegurassem a produção artística. Uma vez estabelecidas essas diretrizes, houve um

esforço continuado e marcado por diferentes contextos políticos e sociais, de construir uma

política cultural na França amparada por todo um suporte de instituições, planos, orçamentos,

recursos humanos e materiais, legislações e disputas políticas, dentre outros. Todo esse

complexo formou a base do que se conhece como o modelo de política cultural pública mais

consolidada na sociedade contemporânea ocidental.

Mais recentemente, durante a gestão do governo de Jack Lang à frente do

Ministério da Cultura (1988-1992), marcada por novos ambientes sociais próprios de um

mundo globalizado, observou-se uma maior associação da Cultura à Economia e a

aproximação do Estado com as chamadas indústrias culturais, agregando a essa visão

desenvolvimentista e inclusiva de cultura outras perspectivas: as políticas e a econômica, tão

importantes e simbólicas quanto à primeira.

Cabe ainda observar que, ao longo desses 60 anos de política cultural na França, o

Ministério passou por distintos contextos políticos e sociais, que deixaram marcas não só no

campo das ideias, mas também no âmbito material e organizacional, traduzidas na forma de

inúmeras experiências de gestão da cultura como as casas de cultura, criação de legislações

próprias, políticas transversais e integrativas com outros ministérios, mecanismos de

financiamento e de estímulo à participação social, dispositivos de renúncia fiscal, etc.

2.2 POLÍTICAS DE INCENTIVO À CULTURA NO BRASIL: LEIS E EDITAIS

A despeito das inúmeras diferenças culturais, podemos perceber nas políticas

públicas de cultura brasileiras releituras, sínteses, interpretações e adaptações de experiências

já realizadas na América do Norte e na França como: a presença das leis de incentivo; a

valorização dos ideais de uma democracia cultural; a utilização da cultura como recurso de

inclusão e desenvolvimento social; a junção da economia como mercado; a tentativa de

criação de um sistema nacional de cultura; os esforços na elaboração de legislação adequada

ao segmento, dentre outros.

O estudo das políticas culturais norte-americanas e francesas suscita diversas

reflexões sobre as políticas voltadas ao financiamento à Cultura no Brasil. Um dos primeiros

pontos a se considerar é o questionamento sobre até que ponto se pode falar na consolidação

de políticas públicas de Cultura em nosso País, entendendo o termo como representativo de

uma visão sistêmica e articulada do poder público, que corresponda a um esforço concreto,

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contínuo e articulado, no sentido de alcançar os resultados esperados, disponibilizando para

isso recursos materiais, financeiros e humanos. Ou, na concepção de Calabre, “o

planejamento e execução de um conjunto ordenado e coerente de preceitos e objetivos que

orientam linhas de ações públicas”. (CALABRE, 2010, p.11).

Destacamos algumas características que uma política cultural deve conter, como a

priorização de um tipo de intervenção que atenda a coletividade; a disposição efetiva para

percorrer os caminhos para se chegar ao objetivo proposto; a disponibilização de recursos

para esses objetivos e tempo para sua maturação. Sob esse ponto de vista, podemos identificar

em diversos momentos da História da gestão da cultura no Brasil, alguns desses elementos,

mas raramente encontramos todos juntos. Esse aspecto de nossa gestão pública da cultura se

traduz na ausência de maturidade e em uma política precária que, segundo Rubim, padece de

três tristes tradições: ausência, autoritarismo e instabilidade. (RUBIM, 2007).

Para que possamos compreender um pouco mais como essas tradições se

formaram e como repercutem na sociedade contemporânea, principalmente no que diz

respeito ao trato com o financiamento à Cultura, retrataremos alguns aspectos da política

cultural em nosso País.

O Brasil teve sua referência inicial de um benfeitor das artes na figura de D. João

VI que, ao residir aqui, implantou as primeiras instituições culturais e educacionais em nossas

terras, tarefa que seria posteriormente reforçada por D. Pedro II, homem culto e afeito às

questões educacionais e artísticas. Segundo Barbalho, apesar da sua contribuição se

concentrar em uma arte considerada erudita e culta, “deve-se ressaltar a proteção,

materializada em apoio financeiro e distinções honoríficas, que D. João dispensou a artistas e

intelectuais”. (BARBALHO, 2009).

Posteriormente, o País viria a ter já no século XX sua versão de mecenato privado

por intermédio de personalidades como Olegário Maciel, apoiador de Candido Portinari; ou

ainda Assis Chateubriand e Francisco Matarazzo, apreciadores das artes plásticas, que foram

fundamentais para a criação do Museu de Arte de São Paulo – MASP e Museu de Arte

Moderna de São Paulo – MAM, respectivamente. Segundo Nussbaumer, estes dois

empresários são exemplos da compatibilidade existente entre o mundo dos negócios e cultura,

ou ainda de como a Arte pode ser usada como “fonte de rentabilidade simbólica valiosa para

homens e empresas”. (NUSSBAUMER, 2000, p.28).

No âmbito público, durante o governo de Getúlio Vargas (1934-1945), o Brasil

vivenciou uma mudança social e econômica com a decadência das oligarquias, a crescente

industrialização e surgimento das classes médias urbanas. Foi nesse período que o Estado

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adotou, pela primeira vez no País, um modelo de administração racional-legal. Surgia uma

nova classe média disposta a consumir sua cultura e a assumir um papel político

administrativo central na construção de uma moderna sociedade industrial urbana. Investia-se

na criação de espaços, físicos e simbólicos, constituindo-se em uma primeira tentativa de

estruturação de uma política pública de cultura e de construção de uma identidade nacional.

(CALABRE, 2009; BARBALHO, 2007).

No entanto, as contradições do próprio governo de Getúlio se manifestavam no

campo cultural. Conforme descrito por Rubim (2007), essa foi a primeira vez que o Estado

nacional realizava um conjunto de intervenções na área da Cultura, articulando uma atuação

negativa de opressão, repressão e censuras, com outras afirmativas por meio de formulações,

práticas, legislações e novas organizações da Cultura.

É nesse período que se forma também o embrião de uma indústria cultural no

País, com base na música que girava em torno dos programas radiofônicos. No entanto, a

produção artística brasileira apresentava forte vinculação com o poder vigente, seja nas

veiculações de mensagens que valorizam uma pretensa cultura nacional de interesse do

Estado; seja na formação de um mercado de trabalho crescente, porém, ainda bastante

dependente e bastante suscetível aos seus humores. Segundo Castro, a conhecida “Lei

Vargas1” de 1935, que obrigava os cassinos brasileiros a contratarem artistas nacionais para

compor a programação dos cassinos (juntamente com os americanos, franceses e argentinos

de costume), foi decisiva para a formação de um mercado para os músicos locais que

“adoravam Getúlio”. No entanto, em 1946, milhares deles

[...] perderam o emprego de uma canetada – bastou o novo presidente, Eurico

Gaspar Dutra, eleito para suceder Getúlio, assinar um hipócrita decreto-lei proibindo

o jogo no Brasil... Deu-se o pânico. Muitos profissionais se desesperaram – alguns se mataram – e houve manifestações em frente ao Palácio das Laranjeiras para

suplicar que Dutra voltasse atrás. De nada adiantou. (CASTRO, 2005, p.417).

Esse exemplo ilustra uma das características apontadas por Albino de nossa

tradição cultural, que é a instabilidade, e que ainda hoje paira sob o campo da Cultura.

Convivemos com alternâncias de governo que representam, em sua grande maioria, mudanças

de diretrizes e muitas vezes, desmobilização do que vinha sendo construído. Essa é uma

história que se repetirá muitas vezes no Brasil, em âmbito federal, estadual e municipal.

1 Lei sancionada por Getúlio Vargas, que prevê a regulamentação da profissão do artista, transformando-o

legalmente em trabalhador e instituindo diversos benefícios para a categoria.

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Assim, o fim da Era Vargas, representa também um arrefecimento no interesse

público pelas questões da Cultura. Os governos que se sucederam demonstraram indiferença

na construção de um projeto cultural consistente. No entanto, apesar da ausência de políticas

estruturadas para a Cultura, inúmeras iniciativas surgiram no próprio seio da sociedade, na

forma de uma cultura mais engajada, como era o caso dos Centros Populares de Culturas -

CPCs da União Nacional dos Estudantes, dos cinemas de vanguarda e até mesmo da Bossa

Nova, que encantava o Brasil e o mundo com promessas de um país pleno de futuro.

O governo dos militares (1964-1985) implantou uma reforma empresarial no

Estado, por meio de uma administração descentralizada e, ao investir na instalação de uma

infraestrutura de telecomunicações, favoreceu a implantação de uma indústria cultural no

Brasil e na formação de um mercado de trabalho para artistas e produtores.

Cabe aos militares à tentativa de integrar simbolicamente o País, de acordo com a

política de segurança nacional, o que se deu também com a criação de importantes instituições

culturais como a Funarte, Radiobrás, Conselho Nacional de Cinema, dentre outros. Segundo

Calabre, “o governo que se instaurou com o golpe de 1964 demonstrou desde os primeiros

tempos uma preocupação com o campo da cultura” (CALABRE, 2009, p.68), tendo sido

responsável por estabelecer esforços para a criação mecanismos que possibilitassem uma ação

sistemática de atuação com abrangência nacional, como a implantação de um Conselho

Federal de Cultura em 1967 e a elaboração de uma Política Nacional de Cultura em 1975.

As relações com a sociedade, porém, eram tensas e precárias e, devido ao forte

componente ideológico, havia um afastamento de importantes segmentos de artistas e

intelectuais do Estado, impelindo este a aumentar os investimentos na área, em um esforço de

aproximação. (MICELI, 1984). Com um papel relevante para os setores que orbitavam em

torno da Arte e da Cultura, o Estado assumia uma posição central, ora como núcleo a ser

evitado e contestado, ora como apoiador necessário, onde se questionava sua ideologia, mas

se precisava de seus recursos. Aqui se observa outra característica de nossa política cultural,

que é a ambivalência e a convivência com paradoxos.

Ambiguidades que se observavam no próprio seio do governo, conforme retrata

Isaura Botelho, ao relatar a experiência da FUNARTE, vinculada ao Governo Federal. A

instituição, que tinha entre suas finalidades apoiar a produção cultural brasileira, atravessou

diversas fases, sofrendo processos de descontinuidade, com ciclos de apogeu e esvaziamento

de suas funções e com a dupla missão de ser financiadora e produtora de projetos ao mesmo

tempo. No entanto, a despeito de suas dificuldades, a história da FUNARTE durante o

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período militar representa o esforço de instituição de uma política cultural para o País, com

planejamento e verbas, que criou algumas iniciativas bem sucedidas.

Durante um período do governo militar a cultura contou com maior volume de

verbas, mais prestígio e poder de atuação, conforme descreve Botelho ao falar do período de

atuação do PAC - Programa de Ação Cultural, vinculado ao Ministério da Educação, na

década de 70:

Tendo de priorizar a promoção de eventos para evitar a rota de coalização com

outros órgãos do MEC, o PAC acabou por transformar o ministério em um poderoso

e moderno empresário de espetáculos, abrindo novas frentes de trabalho no mercado

cultural. (BOTELHO, 2000, p.62).

O Brasil vivia um período onde o Estado era ao mesmo tempo o impulsionador do

mercado e seu principal financiador, como descreve Botelho (2000, p.172) ao a mencionar a

figura do “estado-empresário, aquele que emprega diretamente artistas com o fito de alimentar

seu mercado de trabalho”.

A centralidade da posição do Estado no sistema de financiamento à Cultura, a

ausência de tradição na participação de outros agentes e instituições, aliados a políticas

culturais ainda precárias, colaboraram para que nesse período ainda vigorasse amplamente o

que ficou conhecido como “política de balcão”, ou seja, um tipo de apoio fortemente

condicionado a contatos sociais e favorecimentos pessoais, onde o financiador se coloca em

um papel de “dadivoso” e o receptor de “devedor”. Essa cultura política também revela traços

culturais fundantes de nossa sociedade que, em maior ou menor grau, permanecem presentes

no imaginário do povo brasileiro.

Essa dependência se estendia também aos governos estaduais e municipais que

contavam com poucos recursos e buscavam apoio nas verbas federais. Observa-se nesse

período também uma maior articulação da região sudeste para a obtenção do imprescindível

financiamento. A escassez de recursos e a disputa nacional por verbas geravam outros efeitos

colaterais, danosos ao sistema como um todo:

Na verdade, a tendência das secretarias estaduais sempre foi, com raras e honrosas

exceções, a de concorrer, principalmente no caso dos eventos, com suas homólogas

em nível municipal nas capitais, ao invés de estruturar seu trabalho na forma de

atender às demandas do conjunto do estado. (BOTELHO, 2000, p.217).

Com o fim do regime militar e início da redemocratização ocorreram importantes

mudanças nas políticas sociais como o pacto federativo, que priorizou o município como

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campo de implantação e espaço das deliberações democráticas e o surgimento das leis de

incentivo, que viriam a influenciar decisivamente a produção cultural no Brasil nas próximas

décadas. A transição para um regime político democrático trazia o anseio de maior

participação popular que, no campo da cultura, representava também a “renovação da função

do próprio estado ao lado de sua presença junto à sociedade, no estímulo à produção cultural”

(BOTELHO, 2000, p.222).

Essa expectativa de maior participação social e de diminuição da dependência

direta do Estado é a chave para se compreender o contexto em que foi forjado o novo modelo

de financiamento à Cultura no País, com base no incentivo fiscal, que viria a pautar as

décadas posteriores e deixar reflexos em todo o campo cultural brasileiro.

José Sarney enquanto parlamentar acalentou durante 14 anos2 o sonho de criar

uma lei de incentivo à cultura, o que foi concretizado quando assumiu a presidência do novo

governo democrático do Brasil (1985-1990). A Lei 7.505/86 que viria a ser conhecida como

“Lei Sarney” foi promulgada na gestão de Celso Furtado (1986-1988), seu ministro da

cultura. O mecanismo permitia a dedução de 10% do Imposto de Renda de pessoas físicas e

2% de pessoas jurídicas para utilização em projetos culturais e se configurava numa tentativa

de minimizar a dependência do Estado como fonte quase exclusiva de recursos para a imensa

demanda represada em todo o Brasil e a consequente atração de novos “investidores” para a

cultura.

Para serem beneficiadas, as instituições culturais precisavam se inscrever em um

Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas de Natureza Cultural (CPC), comprovando em ter em

seu contrato social, objetivos compatíveis com as atividades cobertas pela lei e receber um

atestado, emitido por alguns órgãos públicos específicos, afirmando sua aptidão para as

atividades pretendidas. O governo não mantinha controle das atividades realizadas, uma vez

que não fazia avaliação prévia dos projetos. (GOMES, 2012).

Em um país recém-saído do regime militar, que perseguiu, torturou e exilou várias

pessoas ligadas ao segmento cultural, bem como cerceou o direito à livre expressão

de opinião e manifestação artística, era de se esperar o apoio a um projeto que garantisse a liberdade de artistas e produtores de realizarem seus projetos sem

intervenção governamental. Dominava a opinião de que não cabia ao Estado ditar

regras do jogo. Agora, seria a sociedade civil que livremente escolheria o que seria

realizado no campo da cultura... (GOMES, 2012).

2 O projeto de Lei foi apresentada pela primeira vez em 1972, quando José Sarney era presidente do Senado

Federal.

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Interessa destacar que essa visão é de alguma forma compactuada pelo ministro

que, ao abordar a lei, se referia constantemente a importância da mudança nas relações entre

sociedade e Estado, convidando que esta primeira assuma a realização e fiscalização dos

projetos e se liberte das limitações do paternalismo estatal. Celso Furtado ressaltava em seus

pronunciamentos o “potencial criativo do povo brasileiro” como um grande foco de atenção

do poder público e “a condição essencial” para a remoção definitiva dessa herança que nos

aprisionava. (FURTADO, 2012, p.88).

No entanto, a despeito de suas boas intenções, a nova lei enfrentou algumas

dificuldades que a fragilizaram como o desconhecimento do mecanismo por parte do

empresariado, produtores e classe artística e, principalmente, a ausência de mecanismos de

controle, o que fez que em quatro anos fosse extinta a imagem de ser um instrumento

facilitador de mal uso de recursos públicos, que, de alguma forma, ainda reverbera até hoje.

A utilização desse tipo de mecanismo apresenta aspectos que merecem ser

destacados: em primeiro lugar, trata-se de uma lei de incentivo, portanto, instrumento de

política econômica, comumente utilizados na estratégia geral de promoção de indústrias

nascentes, como forma de influenciar e/ou modificar a conduta de agentes econômicos.

(CORREIA, 2010). Outro aspecto relevante, destacado por Silva, é a lembrança de que a

escolha da adoção de incentivos fiscais se deu em um contexto onde o “orçamento com a

cultura era um dos menores da República”, revelando uma fragilidade central, uma vez que “o

financiamento é um dos mais poderosos mecanismos para se viabilizar uma política pública”.

Segundo o autor:

O entusiasmo com o aumento de recursos incentivados esconde um problema grave:

as instituições federais de cultura foram penalizadas com a falta de investimentos e

de recursos orçamentários que lhes permitissem a ampliação de suas capacidades de ação cultural. (SILVA, 2007, p.184).

A ausência de outras fontes orçamentárias, a pouca expressividade de grandes

indústrias instaladas fora da região Sudeste e o desconhecimento da utilização com o

mecanismo, fez com que a Lei Sarney não tivesse grande repercussão fora daquela região.

Mesmo assim, a possibilidade de utilização de novos recursos deixou marcas na gestão

pública e no imaginário dos que trabalhavam com arte no País. A Lei Sarney, serviu de

inspiração para um modelo de financiamento à Cultura, que permanece até hoje no Brasil,

onde a obtenção de recursos por meio da renúncia fiscal se configuraria posteriormente no

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principal instrumento de financiamento a projetos culturais no País e peça estrutural no

orçamento da Cultura.

Diante da persistência da fragilidade orçamentária, o presidente Collor de Mello

(1990-1992) continuou apostando na reativação do mecanismo de renúncia fiscal e, no final

de 1991, criou a Lei 8.313 que institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura - Pronac. A

lei tinha a finalidade de captar e canalizar recursos para a cultura no Brasil, suprindo a lacuna

deixada pela extinta Lei Sarney. Para isso, trouxe novas exigências, processos e instrumentos

de fiscalização.

O Pronac tem objetivos ambiciosos como: possibilitar os meios para o livre acesso

às fontes da cultura; permitir o pleno exercício dos direitos culturais; estimular a

regionalização da produção cultural e artística brasileira, dentre outros. Para atender esses

objetivos, conta com três tipos de mecanismos. O Fundo Nacional de Cultura – FNC,

administrado pelo próprio Ministério da Cultura, e que se destina a projetos artísticos e

culturais que atendam aos interesses da coletividade, priorizando aqueles que tenham pouco

atrativo mercadológico e, portanto, menos possibilidades de desenvolvimento com recursos

próprios.

O segundo mecanismo previsto é o Fundo de Investimento Cultural e Artístico –

FICART, que se destina a projetos com um potencial de lucratividade, que possam atrair

possíveis investidores na forma de condomínio, sem personalidade jurídica, caracterizando

comunhão de recursos destinados à aplicação em projetos culturais e artísticos.

O terceiro mecanismo trata do Incentivo a Projetos Culturais, que passou a ser

popularmente conhecido por Mecenato ou Lei Rouanet, em alusão ao intelectual e diplomata

Paulo Sérgio Rouanet, à época Ministro da Cultura e criador da Lei. Tem como princípio a

renúncia fiscal por parte do Governo e foi concebido sob os preceitos da visão neoliberal do

Estado, como um instrumento de estímulo à participação da iniciativa privada no apoio a

projetos culturais, previamente aprovados pelo Ministério. Por intermédio dele, pessoas

físicas, pagadoras de imposto de renda (IR), que podem repassar até 6% do imposto devido

para o projeto, ou empresas tributadas com base no lucro real, que podem repassar até 4% do

seu imposto para o projeto que lhe convier.

Dos três mecanismos previstos na Lei 8.313, o que teve mais adesão social foi o

Incentivo a Projetos Culturais. A pequena oferta e procura por projetos de interesse de retorno

comercial fizeram que o FICART não conseguisse se tornar uma realidade de fato e o Fundo

Nacional de Cultura - FNC encontrou dificuldades de operar devido ao seu baixo orçamento.

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A criação da Lei Rouanet foi um marco para a cultura no Brasil; no entanto,

conviveu logo após sua criação com pouco prestígio e investimentos na pasta, políticas

públicas em formação, instituições culturais frágeis e baixo orçamento. Apesar da utilização

do mecanismo ainda ser incipiente, inspirou a criação de um recurso similar diretamente

relacionado ao audiovisual, um setor mais organizado, com maior prestígio e mais

identificado à indústria cultural.

Em 1993, pressionado pelos produtores de cinema, o presidente Itamar Franco

(1992-1995) promulgou a Lei 8.685 - conhecida como “Lei do Audiovisual” - onde além de

deduzir integralmente o apoio oferecido a um projeto audiovisual, o patrocinador ainda

poderia lançar esse recurso como despesa, ampliando ainda mais seu benefício. A iniciativa

movimentou o mercado do audiovisual, mas segundo Ikeda a lei que buscava interromper um

espiral crescente de definhamento da indústria cinematográfica no Brasil, na verdade, “ao

invés de uma política industrial de ocupação do mercado audiovisual, existiu, simplesmente,

uma política de produção de longas metragens cinematográficos.” (IKEDA, 2012, p.15).

Durante o mandato presidencial de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) o

Brasil vivia o ápice de um contexto de política econômica neoliberal, no qual o mercado

representava uma “nova utopia”, extrapolando sua função econômica e ganhando foro de

“mito organizador de um novo mundo” onde só sobreviviam os mais competentes. (ROSA,

2010).

Nesse período, foi feito um trabalho de aproximação do empresariado brasileiro

com os mecanismos de renúncia fiscal em prol da Cultura. Com o apoio do presidente, o

Ministro da Cultura Francisco Weffort empreendeu esforços para dar consistência, agilidade e

aumentar o volume de recursos e projetos incentivados. Para tanto foi efetuada uma reforma3

na Lei em 1995, com o objetivo de ampliar o limite de desconto para as empresas

patrocinadoras, desburocratizar os procedimentos para agilizar a obtenção dos recursos e

estimular a formação de um mercado de captação, reconhecendo a atividade de

“intermediação” para o profissional empenhado na captação dos recursos, o que será

aprofundado posteriormente. Além disso, por determinação do presidente as estatais passaram

a se utilizar do mecanismo, aumentando os recursos investidos em projetos culturais. Diversos

encontros foram realizados com empresários em todo o País, onde eram apresentados os

benefícios da Lei e distribuídas publicações demonstrando que o investimento em cultura "é

um grande negócio". (MOISÉS, 1998, p.4).

3Lei n 9.065, de 20 de junho de 1995.

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Em 1997, uma Medida Provisória4 trouxe para a Lei Rouanet a possibilidade de

dedução integral do patrocínio para algumas linguagens artísticas, atendendo a pressão de

setores mais organizados e também como forma de favorecer expressões artísticas de menor

atratividade mercadológica. A Lei, que ainda viria a sofrer inúmeras alterações, ao incluir

novas categorias entre os beneficiados com 100% de isenção fiscal, gerou uma cultura de

dependência e acomodação da iniciativa privada, que passou a optar pelo apoio a projetos que

permitem a dedução integral do imposto de renda. Assim, estabeleceu-se um círculo vicioso,

que terminou por minar a intenção original de injetar novos recursos para a Cultura e que

permanece até hoje como um problema a ser enfrentado.

Gradativa e progressivamente a Lei Rouanet passou a fazer parte do cotidiano de

artistas e produtores culturais, favorecendo a formação de um mercado cultural e de projetos

financiados sob o prisma do marketing cultural, onde se sobressaíam aquelas iniciativas

culturais com maior poder de visibilidade e retorno para a imagem da empresa.

Durante o governo Fernando Henrique Cardoso a utilização da Lei Rouanet

ganhou força como referência de captação de recursos, principalmente na região Sudeste do

País. Sua utilização privilegiou um modelo de gestão da cultura com base em uma valorização

de projetos com maiores atrativos mercadológicos, uma cultura de ações pontuais e pouco

sistêmicas com base em “projetos” e uma acirrada disputa por verbas, que agora além de

depender do aval do Estado passava a depender também da aprovação das empresas.

Em 2003, Luís Inácio Lula da Silva assume a presidência do Brasil, com a

pretensão de introduzir novos valores sociais e políticas sociais redistributivas, que

repercutem nas políticas culturais. Foi nessa gestão que se assistiu o ingresso de outro

mecanismo de incentivo à cultura: os editais, instrumentos de seleção para escolha de projetos

a serem financiados pelo poder público, direcionados a segmentos culturais e sociais

estabelecidos como prioritários pelo Estado.

Financiados diretamente com recursos do Fundo Nacional de Cultura, os editais

tem duas características fundamentais que os distinguem do mecanismo das leis de incentivo:

elimina a necessidade da intermediação da iniciativa privada, uma vez que a aprovação em

um edital se propõe a assegurar o repasse direto de verbas segundo o projeto proposto, e o

direcionamento por parte do poder público, que enuncia e explicita as áreas de interesse e

configurações dos projetos que devem ser incentivados.

4Medida Provisória no 1.589, de 24 de setembro de 1997.

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A política de editais pode também ser um recurso a ser utilizado como auxiliar de

políticas afirmativas, induzindo a promoção de setores culturais de interesse para as políticas

públicas vigentes ou setores em que o Estado considera necessária uma atuação mais diretiva.

Enquadram-se nessa categoria: projetos na área da cultura afro-brasileira, culturas tradicionais

e populares; comunidades indígenas; cultura LGBT, e revelam a necessidade de diálogo do

Ministério da Cultura com os movimentos sociais, sendo direcionados a entidades sem fins

lucrativos.

Os editais ganharam força na gestão do governo Lula, apresentando-se como um

contraponto à Lei Rouanet, com o objetivo de contemplar outros atores que não conseguiam

viabilizar seus projetos no mercado cultural. O mecanismo geralmente disponibiliza um

volume menor de recursos para um número maior de contemplados e atende a demanda de

acesso e produção da cultura de artistas independentes, grupos populares, associações

culturais, dentre outros.

O edital também é justificado sob a alegação de ser “universalista”, ou seja, pelo

seu caráter de possibilitar um acesso universal, democrático e igualitário. No entanto, esse

aspecto apesar de coerente na teoria, nem sempre ocorre na realidade, uma vez que para

participar de editais faz-se necessário o aporte de conhecimentos básicos prévios, que

assegurem o mínimo de um domínio na produção de textos e regularidade fiscal e social.

A política de editais, juntamente com as leis de incentivo, tornaram-se os

principais mecanismos de financiamento à Cultura no País na última década. Nesse período

também foram tomadas iniciativas no sentido de corrigir distorções no PRONAC, com

debates públicos nacionais, visando à construção de outro recurso que dê conta das novas

demandas, conhecido como Procultura5, projeto de lei nº 6722/2010, atualmente em

tramitação na Câmara dos Deputados.

Após inúmeros debates e polêmicas nacionais, o substitutivo da Lei-Procultura foi

elaborado, prevendo uma série de medidas com o objetivo de aperfeiçoar distorções da Lei

Rouanet e ampliar a participação pública na gestão, avaliação e promoção de projetos de

interesse coletivo. Está contemplada na nova proposta uma maior atratividade para o aporte

de investimentos no FNC; novas fontes de recursos para o segmento cultural; critérios de

pontuação diferenciados, que repercutirão em diferentes faixas de renúncia; criação de fundos

setoriais e maior autonomia da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC.

5 Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=730738&filename=

PL+6722/2010>.

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A medida, no entanto, não se propõe a alterar um aspecto essencial para a

conquista de novos investidores e a ampliação efetiva de mais recursos para a Cultura: o

acesso à participação de contribuintes pagantes de imposto de renda por lucro presumido. Ao

permitir o ingresso desses contribuintes no sistema de financiamento pela renúncia fiscal,

estaria se abrindo uma possibilidade de participação de novos patrocinadores para a Cultura,

distribuídos em todo o País e mais acessíveis aos produtores culturais.

A concentração de patrocínio em grandes empresas também apresenta um caráter

de fragilidade institucional, uma vez que coloca na mão de poucos patrocinadores um grande

volume de recursos, favorecendo a formação de um poder paralelo do mercado, que atua

tendo sua base em recursos públicos. Esse caráter também não favorece a consolidação de um

sistema autônomo de financiamento, pois mantém o campo dependente de poucos

investidores, reféns de seu ânimo, bom desempenho comercial e das oscilações de mercado.

Atualmente o campo da cultura convive com a expectativa da mudança, diante do

iminente esgotamento do modelo de financiamento à Cultura no Brasil. Seja pela

desigualdade de acesso aos recursos e a exclusão de inúmeras iniciativas relevantes por meio

da Lei Rouanet, seja pela morosidade do repasse de verbas para as iniciativas contempladas

nos editais ou, ainda, pelo dirigismo e burocracia na formulação de projetos em ambos os

mecanismos.

De 2011 até 2014, ano da posse da presidente Dilma Rousseff, o MinC mantém

grande parte dos programas iniciados na gestão anterior, tendo como uma das "heranças" o

desafio de aperfeiçoar o mecanismo de financiamento da Cultura, em uma complexa e

delicada tessitura de (re)construção e diálogo com a sociedade.

Faz-se necessário superar a vulnerabilidade e a inconstância nos aportes de

recursos e isso só será possível se forem feitas alterações profundas no sistema de

financiamento à Cultura no Brasil, que é basicamente ancorado em incentivos fiscais. Dois

projetos tramitam atualmente no Congresso Brasileiro que, sendo aprovados, ampliará em

pelo menos 50% o investimento atual, provocando significativas alterações nesse quadro. São

as Emendas Constitucionais – nº 310/2004 e nº 150/2003 – que estabelecem patamares

obrigatórios de investimento do poder público na área cultural, prevendo a destinação de no

mínimo 2% do orçamento anual do Governo Federal, 1,5% dos Estados e do Distrito Federal

e 1% dos Municípios.

Apesar dos recursos para a cultura terem sua mobilização por meio de leis e

editais, é importante destacar que existem outras fontes que podem ser acessadas: premiações

artísticas; doações de pequeno porte com empresas locais; ações beneficentes de cunho

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cultural; apoios de agências ou organismos internacionais; linhas de créditos e emendas

parlamentares. Nos últimos anos tem se assistido ao surgimento de uma nova modalidade de

incentivo, com base em redes colaborativas, conhecido como crowdfunding, onde diversos

indivíduos se associam, disponibilizando recursos em prol de um projeto em comum. No

entanto o volume de recursos dispendidos nessas modalidades, ainda é insuficiente para suprir

as necessidades do campo.

A questão do financiamento continua a ser um problema de primeira ordem e a se

fazer presente nos debates que tratam da Cultura. Na III Conferência Nacional de Cultura,

realizada em novembro de 2013, diversas propostas6 que tratam do tema foram selecionadas

como demandas prioritárias como a solicitação da aprovação da PEC 1507; a garantia de

repasse de 10% do Fundo Social do Pré-Sal para a Cultura; a aprovação e regulamentação do

Projeto de Lei 1.139/2007 – Procultura; o fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura,

como principal mecanismo de financiamento público da Cultura, e o repasse de recursos do

FNC para os fundos estaduais, distrital e municipais, dentre outras.

2.3 POLÍTICAS CULTURAIS E FINANCIAMENTO À CULTURA NO CEARÁ

O Ceará tem o mérito de abrigar a primeira Secretaria da Cultura criada no Brasil,

o que ocorreu em 1966, no governo do coronel Virgílio Távora, em pleno Regime Militar.

Essa vantagem, no entanto, não repercute de maneira direta em avanço nas políticas públicas

culturais.

Segundo Barbalho, a criação de um órgão para a cultura no Estado se deve, em

grande parte, ao “intimismo” da intelectualidade cearense Pós-64 com o poder. Relações de

sempre estiveram presentes, em menor ou maior intensidade, marcando uma ambiguidade e

tensão presentes há muito tempo na agenda da cultura no Ceará.

A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, especificamente, surge em 1966 de uma

articulação autônoma do campo cultural cearense, sem o apoio ou incentivo federal.

Utilizando seu capital simbólico, setores ilustrados da intelectualidade cearense, com relações de proximidade com o campo político, procuram dar vazão aos seus

anseios de controle cultural através da imposição oficial, concedida pelo poder

6 Documento disponibilizado no site: <http://www.cultura.gov.br/3cnc>. 7Proposta de Emenda à Constituição 150 que prevê que a União aplicará, anualmente, nunca menos do que 2%

da receita tributária na preservação do patrimônio cultural brasileiro e na produção e difusão da cultura nacional.

A aplicação orçamentária para os estados e o Distrito Federal será de 1,5% e para os municípios de 1%. A União

terá ainda que dividir 50% de sua cota da Cultura com as outras unidades da Federação - 25% com os estados e

25% com os municípios, de acordo com o texto.

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estatal, detentor do monopólio da violência simbólica legítima.” (BARBALHO,

1998, p. 212).

De início, principalmente na gestão de Ernando Uchoa (1971-1977), esforços

foram feitos para justificar e legitimar a necessidade da criação da Secretaria, uma vez que a

cultura era fortemente associada a um bem de luxo, supérfluo e desnecessário, em um Estado

com tantas carências sociais concretas. Nas primeiras gestões, as metas se direcionavam a

uma política de interiorização das ações culturais e um esforço de popularização da atividade,

distanciando-se da costumeira cultura do mecenato ou subsídio a pequenos eventos na capital.

Foi esse esforço que contribuiu para a legitimação do órgão junto aos seus opositores.

(BARBALHO, 1998).

As ações públicas na pasta de cultura no Estado do Ceará nesse período estão

fortemente vinculadas ao prestígio do gestor e a afinidade que o chefe do executivo tem com

relação ao tema, aspecto que fragiliza (ou fortalece) a pasta e propicia uma cultura de

alternância e instabilidade. Situação que ganha expressiva relevância por “caber ao Estado o

papel de patrono que intervém na produção cultural com recursos públicos”, que em última

instância, confere-lhe o “poder de patrono, de decidir qual ação implementar”. (BARBALHO,

1998, p.141).

Na verdade, observa-se no Estado, entre os anos 60 e 90, um reflexo das mesmas

ocorrências do País: ausência de tradição de mecenato privado, excessiva dependência do

poder público e utilização de contatos e prestígio pessoal para a obtenção de financiamentos.

Instaura-se no campo cultural um fluxo de ações onde os artistas se movimentam,

organizando-se de forma alternativa ao poder instituído e/ou contando com pequenos apoio e

iniciativas da ação pública o que, como já foi dito, confere a este uma centralidade neste

campo de forças. Aspecto que reforça o caráter ambíguo da relação entre artistas e aqueles

detentores de poder simbólico e econômico, aqui representados pelo Estado.

Apesar da constatação da relevância do poder público, como detentor do capital

político e econômico e de sua centralidade no campo, os agentes culturais no Ceará sentiram

os efeitos ocasionados com as alternâncias de governo e ausência de políticas públicas de

estado, que repercutiam diretamente na descontinuidade de projetos, escassez de verbas e no

papel secundário que era conferido ao tema nas sucessivas gestões estaduais, o que fez com

que a produção artística na década de 80 no Ceará fosse “se reduzindo até tornar-se o estado

do Nordeste com menor número de pessoas dedicadas às artes, segundo pesquisa realizada

pelo MEC”. (BARBALHO, 2005, p.54).

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Nesse período, vigorava a prática da “cultura de balcão” onde se esperava que a

Secretaria da Cultura apoiasse as iniciativas dos artistas locais que dela lhe valiam. Tempos de

orçamentos pequenos e apoios simbólicos, mas significativos. Foi esse o cenário que estava

posto no Ceará, quando Tasso Jereissati, empresário e governador eleito com a expectativa de

representar ares de mudança e modernização para o Estado, encontrou ao assumir pela

primeira vez o governo em 1987.

[...] um campo cultural frágil no que se refere às instituições públicas. Vigoram no

Ceará as melhores relações clientelistas e paternalistas generalizadas no resto do

país. Não existiam, portanto, estratégias definidas para o setor. (BARBALHO, 2005,

p.54).

No início de sua gestão a cultura não foi considerada uma pasta estratégica. No

entanto, o próprio Estado sofria novas influências de contextos externos como: a criação do

Ministério da Cultura; as novas diretrizes da cultura pautadas por instituições com a ONU e a

UNESCO; a democratização; a retomada da discussão sobre a identidade cultural; a

demarcação de novos espaços; o fortalecimento do conceito de pluralismo cultural; inserção

da Cultura como tema integrante do desenvolvimento social; e, por fim, a criação da Lei

Rouanet. Conforme observa Barbalho: “[...] havia um descompasso entre a pujança dos

debates sobre as políticas culturais realizados em diferentes ambientes e o local desprestigiado

que a Secult ocupava na administração estadual”. (BARBALHO, 2005, p. 60).

No entanto, no esteio dessas mudanças, assumiu a pasta da cultura Violeta Arraes

(1988-1991), irmã do ex-governador pernambucano Miguel Arraes, que ao residir no exterior

por diversos anos se relacionou com inúmeros artistas e políticos exilados no período da

Ditadura. A nova secretária trouxe para a pasta prestígio pessoal e capital cultural, que se

traduziram também em capital político na nova secretaria e mais recursos para a realização de

obras expressivas, como a reforma do Theatro José de Alencar, importante equipamento

cultural do Estado e a realização de grandes eventos nacionais. Violeta conseguiu, mais

simbólica do que efetivamente, mas não por isso com menos valor, aproximar o Ceará do

Brasil e da Europa.

A gestão posterior, do publicitário e pensador Augusto Pontes (1991-1993), tem o

mérito de trazer novas reflexões para o campo cultural, ampliando seu conceito e introduzindo

importantes formulações sobre seu aspecto formativo. Mas foi somente na gestão de Paulo

Linhares (1993-1998) que se produziu um documento mais sistematizado sobre a cultura no

Ceará com o Plano de Desenvolvimento Cultural 1995/1996. Foi nesse período também que

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se construíram os arcabouços do que deveria ser uma gestão “moderna, competente e eficaz

de cultura” segundo os preceitos neoliberais vigentes na sociedade brasileira.

A pasta da cultura passava a ser vista com destaque, associando-se a seu potencial

simbólico de construção de uma nova imagem do Ceará. O Estado vivia um período de

mudanças e no âmbito da cultura construiu-se o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura,

investiu-se na formação de novos profissionais ligados à arte e a cultura por meio do Instituto

Dragão do Mar de Arte e Cultura e apostou-se na criação de uma indústria audiovisual, que

não chegou a funcionar plenamente.

As iniciativas públicas animavam o mercado cultural que começava a se formar e,

apesar de todo o investimento, o Estado ainda carecia de verbas na pasta da cultura. Assim,

para atender demandas internas e externas, em 1995 foi criada uma Lei de Incentivo à Cultura

estadual, Lei 12.464, que ficou conhecida como Lei Jereissati em alusão ao governador.

Inspirada na criação da Lei Rouanet, a lei instituía dois mecanismos de incentivo à

cultura: o Fundo Estadual de Cultura – FEC e o incentivo a projetos culturais, conhecido

como mecenato cultural. O mecanismo permite aos empresários investir em projetos culturais

no Estado, por meio da transferência de recursos financeiros deduzindo mensalmente até 2%

do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) devido. A Lei Jereissati criou

também o Fundo Estadual de Cultura (FEC) para incentivo e financiamento de atividades

culturais tradicionalmente não absorvidas pelo mercado formal. O Fundo apoia até 80% do

valor do projeto proposto por órgãos municipais ou estaduais de cultura e entidades culturais

de caráter privado sem fins lucrativos. Cabe ao proponente assegurar uma contrapartida no

valor de 20% do montante.

Já o mecenato autoriza que o proponente capte no mercado, com instituições

pagadoras do imposto estadual, o apoio necessário à realização de sua iniciativa. Segundo

esse mecanismo, existem três modalidades de repasse de verbas: a doação com dedução de

100% do valor do projeto aprovado; o patrocínio com repasse de 80% do valor total e a

necessidade de uma contrapartida de 20% pelo proponente do projeto e a modalidade de

investimento, que prevê o repasse de apenas 50% do valor total. Todas preveem diferentes

condições de visibilidade a marca da empresa investidora.

A Lei Jereissati, juntamente com novas políticas públicas imbuídas de uma visão

mais estratégica do setor8, estimulou a dinamização do campo cultural, injetando novos

8 Segundo Barbalho em seu livro “A modernização da Cultura Políticas para o Audiovisual nos Governos Tasso

Jereissati e Ciro Gomes Ceará 1987-1998”, o Estado nesse período cultura nesse período era dirigida por um

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recursos para a Cultura no Estado e contribuindo para a formação de um mercado local mais

ativo e diversificado. O Ceará viveu, a seu modo, o período de ascensão do marketing cultural

e da modernização da cultura com a realização de diversos eventos e iniciativas que

projetavam a imagem de um Estado pujante e criativo.

Em 2006, já na gestão do governador Lúcio Alcântara (2003-2006) e sob os

auspícios da era Lula, a Lei Jereissati foi revisada e sancionou-se uma nova legislação para o

financiamento à Cultura no Estado (Lei 13.811), que acompanhando as atuais diretrizes da

política cultural nacional, instituía o SIEC - Sistema Estadual de Cultura. Além de ter como

um de seus objetivos a integração ao Sistema Nacional de Cultura, o novo mecanismo traz em

sua essência a ampliação da noção de cultura, englobando conceitos como diversidade e

pluralismo, cidadania cultural, inclusão social, acessibilidade e participação da sociedade,

dentre outros.

Prevê ainda a realização de editais por parte do poder público a ser financiado,

com recursos do Fundo Estadual de Cultura e como instrumento para assegurar a nova

política de acesso democrático de toda a sociedade aos investimentos governamentais. Assim,

acompanhando as mudanças ocorridas no campo da cultura no País, os agentes culturais do

Ceará passam a conviver com as leis de incentivo e os editais, como fontes fundamentais para

a execução de seus projetos, que se somam à Lei Rouanet e aos editais federais. Segundo

depoimento de Claudia Leitão (2003–2006), Secretária da Cultura à época:

O novo SIEC propõe um redimensionamento da Lei estadual de Incentivo à Cultura,

através da criação de uma política de quotas capaz de neutralizar a concentração de

bens e serviços somente na capital do Estado. Deste modo, os recursos do Fundo

Estadual da Cultura passam a garantir uma política de editais para todo o Estado,

democratizando o acesso aos recursos para a cultura a todos os artistas, produtores,

pesquisadores e profissionais das cadeias produtivas das artes e da cultura.

(SANTOS; GUEDES, 2006, p.10).

O poder público passou a direcionar sua atenção para o interior do Ceará,

empreendendo esforços para promover à institucionalização de um Sistema Estadual de

Cultura. Nesta gestão foi dada ênfase a interiorização de ações da pasta, promovendo eventos

regionais e estimulando a criação de secretarias da cultura nos municípios do Ceará. Essa

aparente prosperidade não consegue sobrepor-se a realidade de orçamentos baixos e recursos

insuficientes para arcar com as necessidades e projetos da própria Secretaria, que disputava

secretário com capital social e cultural, que possuía apoio político e promovia uma política cultural definida e

alinhada com os ideais da modernização da gestão, dentro de um padrão midiático.

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por verbas no campo político e ainda necessitava dos recursos do SIEC para viabilizar suas

iniciativas. Segundo depoimento de Paulo Linhares, em um olhar retrospectivo:

A lei permitiu que até hoje, a Secretaria atravesse crises financeiras como a que

recentemente atravessou e não seja destruída totalmente. O que possibilitou nesses

dois primeiros anos do Governo Lucio, que não tinha dinheiro para nada, uma crise

de financiamento do Estado como um todo, que a Secretaria não parasse totalmente,

que não fosse até fechada, foi uma estrutura do Fundo Estadual de Cultura e da Lei

de Incentivo. Na verdade, o que acontece: os recursos do orçamento são duramente

disputados, passam por crises e a lei corre um pouco fora desse sistema. (SANTOS; GUEDES, 2006, p.72).

O que se percebe é que, mesmo os novos instrumentos de democratização dos

acessos são insuficientes para responder a escassez de recursos. Há deficiências crônicas no

sistema de financiamento que geram instabilidade e disputas em correlação de forças com

diferentes posições e pesos. Entidades ligadas aos equipamentos públicos se utilizam das leis

de incentivo como forma de suprir suas limitações orçamentárias - a própria Secretaria da

Cultura passou a desenvolver vários projetos e se posicionar como mais um captador de

recursos no mercado (em posição muito mais privilegiada) - e compete ao Secretário da

Cultura aprovar “ad referendum” os projetos que julgar conveniente. Estes são só alguns

exemplos do compartilhamento de recursos que se dá entre produtores e Estado com bases nas

leis de incentivo. A essa disputa, somam-se ainda algumas limitações impostas por um acordo

entre as Secretarias da Fazenda e Cultura, que indica um teto para o volume de recursos

disponíveis para captação mensal via renúncia fiscal e a pequena participação das empresas

como financiadoras de cultura por meio do Sistema Estadual de Cultura.

Os velhos problemas perduram e se agravam. O atual governo do Ceará, sob a

gestão de Cid Gomes, iniciada em 2006, não apresenta um destaque na área da cultura que já

está sendo administrada pelo terceiro secretário. A pasta tem enfrentado diversas críticas9,

onde os produtores e artistas demonstram sua insatisfação, reclamando da falta de verbas e de

atenção para com o setor. Como resposta, a nova gestão anunciou a criação de um grupo de

estudo e a realização de uma consulta popular para subsidiar propostas de aperfeiçoamento do

Sistema Estadual de Cultura, responsável pelo financiamento a projetos culturais, cujo

resultado foi anunciado à sociedade em dezembro de 2013 e deverá ser submetido à votação

na Assembleia Legislativa em 2014.

Por sua vez, as políticas públicas municipais dedicadas à Cultura só foram se

efetivar de forma mais estruturada em 2005, quando toma posse como prefeita de Fortaleza,

9 Jornal O Povo 07/09/12 e 26/04/2013.

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capital do Estado, Luizianne Lins (2005-2012), que no início de 2008 oficializa a criação de

um órgão exclusivo para a cultura no município, a Secretaria de Cultura de Fortaleza –

Secultfor, com o objetivo de criar o Sistema Municipal de Cultura para integrá-lo ao Sistema

Nacional de Cultura do Governo Federal.

A gestão municipal, também em consonância com as diretrizes nacionais e

internacionais de democratização cultural e inclusão social, passa a adotar a política de editais

como sua principal fonte de financiamento para iniciativas culturais realizadas na sociedade.

Com dotação orçamentária insuficiente para suprir a demanda e sem o apoio dos mecanismos

de renúncia fiscal municipal, os editais são financiados com recursos próprios da Secretaria,

que provém de uma conta única do tesouro municipal. Dentre as ações da Prefeitura destaca-

se a criação de um Sistema Municipal de Fomento à Cultura10

, formado por um Fundo

Municipal de Cultura e pelo Mecenato, com deduções de Imposto sobre Serviços de Qualquer

Natureza (ISS) e/ou Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) nos

moldes das outras já existentes, que, no entanto, ainda não foi regulamentada por se encontrar

em avaliação no Conselho Municipal de Cultura.

A Lei Orçamentária Anual - LOA, aprovada em novembro de 2013 pela Câmara

de Vereadores, prevê um aumento de mais de R$ 800 milhões na receita do município,

benefício, porém, que não beneficiará a cultura, uma vez que a receita prevista para Secretaria

Municipal da Cultura sofreu uma redução de 38,6% em relação ao orçamento de 2013.

2.4 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O SISTEMA DE FINANCIAMENTO À

CULTURA NO BRASIL

Mesmo com o passar dos anos, a Lei Rouanet continua a ser utilizada como um

importante instrumento de captação de recursos para viabilizar a realização de projetos

culturais em diversos estados do Brasil, apesar das inúmeras fragilidades, conforme

explicitado por Rubim ao enumerá-las:

1. O poder de deliberação de políticas culturais passa do Estado para as empresas e

seus departamentos de marketing; 2. Uso exclusivo de recursos públicos; 3.

Ausência de contrapartidas; 4. Incapacidade de alavancar recursos privados novos;

5. Concentração de recursos. Em 1995, por exemplo, metades dos recursos, mais de

50 milhões, estavam concentradas em 10 programas; 6. Projetos voltados para

institutos criados pelas próprias empresas (Fundação Odebrecht, Itaú Cultural,

Instituto Moreira Sales, Banco do Brasil, etc.); 7. Apoio equivocado à cultura

mercantil que tem retorno comercial; 8. Concentração regional dos recursos. Um

10Lei Nº 9904 de 10 de abril de 2012. Dispõe acerca do Sistema Municipal de Fomento à Cultura (SMFC).

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estudo realizado, em 1998/99, pela Fundação João Pinheiro, indicou que a imensa

maioria dos recursos da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual iam para regiões de

São Paulo e Rio de Janeiro. (RUBIM, 2007, p.27).

Esses problemas continuam presentes como desafios a ser superado pelas políticas

públicas de cultura. Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Cultura11

, em 2012 foram

incentivados 3.398 projetos culturais, com um montante de recursos captado de R$

1.230.140.075,39. A região Sudeste captou 73% dos recursos utilizados pela Lei Rouanet em

todo o Brasil e o restante foi distribuído da seguinte forma: 12% na região Sul; 10% na região

Nordeste; 4% na região Centro-Oeste e apenas 1% para a região Norte. A desproporção dos

números na captação de recursos reproduz a mesma lógica de desigualdade social presente no

País.

Essa disparidade, no âmbito da Cultura, dá-se de diversas formas. Inicia-se já na

quantidade de projetos apresentados: em 2012 a região Sudeste aprovou 3.115 projetos na Lei

Rouanet, enquanto a região Norte somente 55. Esses números deixam transparecer não só a

necessidade de ações de divulgação do mecanismo de incentivo, estímulo à participação e

capacitação para o preenchimento dos formulários e gestão de projetos, mas também uma

descrença na obtenção de patrocinadores. As demais regiões também se encontram numa

situação inferior aos números apresentados pela região Sudeste, mas numa posição mais

favorável do que o desempenho da região Norte. O Centro-Oeste aprovou 241 projetos, a

Nordeste 404 e a região Sul 1.022.

No entanto, mesmo que os projetos sejam submetidos e aprovados, os

proponentes ainda têm à frente o enorme desafio de obter a adesão efetiva dos patrocinadores

para seus projetos. Diminuindo ainda mais o espectro de captação para artistas e produtores,

algumas empresas costumam investir recursos em suas próprias instituições ou a entidades e

projetos a elas vinculadas, como é o caso do Instituto Itaú Cultural, que lidera o ranking12

dos

maiores proponentes de projetos culturais na Lei Rouanet de 2012.

As maiores investidoras de projetos culturais se concentram na região Sudeste do

País13

e o acesso a elas não é fácil para os produtores e artistas de regiões menos

11Informações apresentadas em documento que consolida o desempenho da Lei Rouanet em 2012 elaborado e

fornecido pela SEFIC (Secretaria de Fomento e Incentivo à Cultura)/MinC. 12 Lista dos 10 maiores proponentes de 2012: Instituto Itaú Cultural, Fundação Padre Anchieta Centro Paulista e

TVs Educativa; Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, Associação Orquestra Pró-Música do Rio de Janeiro,

Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM, Fundação Orquestra Sinfônica de São Paulo, Fundação Bienal de

São Paulo, Associação Sociedade de Cultura Artística e Museu de Arte de São Paulo Assis Chateubriand. 13Em 2012, as 10 maiores incentivadoras da cultura no Brasil foram a Petrobrás – Petróleo Brasileiro; VALE,

Banco do Brasil, Centrais Elétricas Brasileiras - Eletrobrás; Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e

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desenvolvidas. Os projetos com mais proximidade com a indústria cultural e/ou realizados nas

grandes metrópoles (principalmente Rio de Janeiro e São Paulo) apresentam maior potencial

de interesse da mídia e, consequentemente, oferecem mais visibilidade aos patrocinadores,

criando uma situação de "concorrência" bastante desigual. A concentração excessiva de

projetos na região Sudeste do Brasil tem um efeito nefasto na promoção e valorização da

diversidade cultural brasileira. A priorização dos aspectos de visibilidade e retorno

institucional desejada pelo patrocinador também interfere na concepção dos projetos culturais,

que passam a considerar, no momento de sua concepção e produção, formas de se tornarem

mais atraentes aos olhos das empresas.

Esses aspectos ressaltam a crítica que se faz a política de financiamento à Cultura

por meio das leis de incentivo, que é o processo de "privatização" da cultura, uma vez que a

definição de quais projetos serão apoiados e, consequentemente, realizados, concentram-se

nas grandes empresas, detentoras de impostos que asseguram os aportes necessários.

Se no início o mecanismo foi pensado como indutor de novos recursos para a

cultura, esse objetivo não se cumpriu plenamente. Ao estabelecer duas categorias de apoio no

Mecenato14

, a Lei Rouanet autoriza que projetos na área de Artes Cênicas, livros de valor

artístico e cultural, música instrumental e erudita, doação de acervos para bibliotecas públicas

e museus, construção de salas de cinema, produção de obras cinematográficas e preservação

do patrimônio cultural material e imaterial recebam um tratamento diferenciado por parte do

Ministério e gozem do direito de receber o benefício de 100% de isenção fiscal. A facilidade

do benefício de isenção total de impostos foi inserida durante a gestão do ministro Francisco

Weffort, como explicitado anteriormente, dentro de uma estratégia para aumentar o poder de

atratividade da Lei Rouanet.

Esse benefício que, em tese, prevê uma maior atenção a projetos com menor apelo

comercial, de fato, gerou uma crescente demanda por parte de proponentes e investidores, por

iniciativas que gozem do benefício da isenção integral, o que induziu a valorização de

Social - BNDS, Petrobrás Distribuidora; Bradesco Vida e Previdência, Souza Cruz, Telecomunicações de São

Paulo e Cielo. 14 O artigo 18 prevê um tratamento diferenciado por parte do Ministério para alguns segmentos que gozam do

direito de receber o benefício de 100% de isenção fiscal. Enquadram-se nessa categoria projetos na área de

Artes Cênicas, livros de valor artístico e cultural, música instrumental e erudita, doação de acervos para

bibliotecas públicas e museus, construção de salas de cinema, produção de obras cinematográficas e preservação

do patrimônio cultural material e imaterial, dentre outros. As demais categorias culturais se enquadram no artigo

26, que autoriza a dedução de 80% do apoio, obrigando que o patrocinador desembolse 20% do valor do apoio

com recursos próprios.

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algumas expressões culturais em detrimento de outras, afetando a pluralidade e integridade

das expressões artísticas e culturais.

Com o passar dos anos, criou-se uma tendência no mercado de priorizar o aporte

de recursos em projetos integralmente beneficiados. Caso houvesse uma mudança radical

nesse sistema, é provável que poucas empresas se disponibilizassem a investir recursos

próprios em projetos culturais. Situação que poria em risco diversas iniciat ivas bem sucedidas

em todo o Brasil, provocando uma crise em um setor que, apesar dos problemas, vem

passando por um período de dinamização. Dessa forma, qualquer alteração no sistema de

financiamento à Cultura no Brasil demandará uma operação precisa e paciente, para alterar as

regras sem inviabilizar o jogo.

Os mecanismos de renúncia fiscal instauraram também uma nova relação entre o

setor público e privado, que afeta o Estado, as empresas, os atores do campo da cultura e a

sociedade, relação de contornos fluidos, onde nem sempre fica claramente delineado o papel

de cada um. Quase vinte anos depois de criado o mecanismo da Lei Rouanet, observamos que

ainda não há um consenso sobre a quem pertencem os recursos utilizados nas leis de incentivo

à Cultura. Alguns entendem que a verba utilizada pelas empresas em benefício de divulgação

de sua imagem é pública, uma vez que é proveniente de impostos. Outros compreendem que,

uma vez que optou pela renúncia, o recurso não pertence mais ao Estado, podendo e devendo

ser amplamente utilizado pelas empresas. O que se destaca aqui é a falta de consensos

mínimos sobre o sistema que ancora a política de financiamento à Cultura no Brasil e a

percepção de que, em última instância, os recursos pertencem à sociedade, que paga os

impostos.

A questão dos investimentos públicos e privados na cultura se torna mais

complexa se observarmos que na listagem dos 10 maiores incentivadores de cultura, via Lei

Rouanet, em 2012. Cinco são estatais, enquanto na lista de beneficiados com maiores verbas

captadas, encontram-se diversos proponentes15

cujas iniciativas dizem respeito a projetos

relacionados a instituições e equipamentos de interesse público. Esse aspecto exemplifica o

labirinto em que se encontra o sistema de financiamento à Cultura no Brasil.

O MINC buscava alternativas de aprimoramento do mecanismo, formas de

aperfeiçoar o diálogo com a sociedade e estimular uma maior participação de novos

contribuintes. No entanto, como afirma João Leiva, o debate foi prejudicado pela falta de

15Fundação Catarinense de Cultura; Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo; Secretaria de Estado

da Cultura de São Paulo; Associação de Amigos do Teatro Municipal do Rio de Janeiro; Fundação Orquestra

Sinfônica do Estado de São Paulo; Fundação Orquestra Sinfônica Brasileira, dentre outros.

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clareza na identificação dos aspectos positivos e negativos que o mecanismo trouxe para a

área cultural e no excesso de opinião que era acompanhado da mais absoluta falta de

informação. (LEIVA, 2009). O próprio Ministro da Cultura Juca Ferreira (2008-2010)

protagonizou inúmeros debates onde afirmava de que o modelo atual é “inviável, injusto e

hipócrita”. (FERREIRA, 2009). Diante da possibilidade de visões reducionistas e/ou

maniqueístas, Leiva pondera que:

E esse é um perigo enorme, pois pode nos levar a tomar a regra por exceção, a

mistificar as distorções, a inverter responsabilidades, a confundir problemas

pontuais com questões estruturais e, pior, a dar um tiro no pé, eliminando da lei

justamente seus principais aspectos positivos.

Muita gente ainda não entendeu sequer que o poder público é na verdade o principal

agente da Lei Rouanet. O MinC é o responsável pela aprovação e pela fiscalização

de todos os projetos patrocinados e as estatais definem o destino de cerca de 40% dos recursos! Mas é mais cômodo acreditar que o “mercado” é o grande controlador

e vilão da lei. (LEIVA, 2009, p.43).

Henilton Menezes, ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do Ministério

da Cultura, em palestra proferida no Seminário ProCultura na cidade de São Paulo, em maio

de 2012, apresenta os benefícios e aponta as deficiências do mecanismo da Lei Rouanet,

reconhecendo a incapacidade do mecanismo de traduzir o atual momento da cultura brasileira

no quesito diversidade e territorialidade; a indução ao investimento em projetos e segmentos

culturais que permitem 100% de abatimento do imposto de renda; a promoção da

concentração de recursos em dois estados brasileiros; a ausência de estímulo ao investimento

privado na Cultura; a exclusão de agentes culturais, que não têm acesso aos patrocinadores; o

fato de tornar o produtor e seus projetos reféns dos recursos incentivados; e, por fim, o mais

importante: a não garantia ao acesso dos brasileiros à Cultura.

A despeito de todas as fragilidades que o mecanismo apresenta, é inegável sua

importância para o desenvolvimento de um mercado da cultura no Brasil. Inúmeras iniciativas

de alta relevância cultural e valor artístico foram realizados no País, com o apoio da Lei e

diversas profissões e atividades se criaram no esteio do crescimento cultural observado desde

sua criação. Parece-nos que muitas das críticas que o modelo de renúncia fiscal recebe ganha

maiores proporções devido à ausência de outros mecanismos de financiamento, à fragilidade

de nossas políticas culturais, a pouca percepção que a sociedade tem da Cultura como direito

fundamental e necessário, assim como o fortalecimento do campo da Cultura e da

consolidação de hábitos de consumo cultural em nosso País.

Vivemos em um período de transição, onde mudanças precisam ser feitas e

conquistas mantidas. É preciso assegurar a consolidação das políticas públicas e a atuação do

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Estado, a liberdade criativa sonhada por Celso Furtado e uma participação mais potente e

igualitária da sociedade na gestão da cultura, onde se incluem artistas, produtores e

empresários. Conforme descreve Teixeira Coelho:

Em outras palavras, o velho não foi consolidado e o novo ainda não se fortaleceu:

esse é, de fato, um efeito perverso da lei de incentivo. Mudanças precisam ser feitas

como em todo organismo vivo. Mas mudanças que preservem o espírito da lei:

liberdade, ação direta, autogestão – seguida, se for o caso, de cogestão. (COELHO,

2009, p.14).

Foi nesse contexto que os editais se apresentaram como uma alternativa

importante para resolver alguns dos problemas identificados nas leis de incentivo. Utilizados

inicialmente pelo poder público em nível federal, estadual e municipal, passam a ser

utilizados também pelas empresas16

para selecionar projetos que serão incentivados por elas.

Diferentemente dos editais do Governo Federal e governos estaduais, estes preveem maiores

recursos e são utilizados para facilitar o processo de seleção dos projetos, já beneficiados

pelas leis de incentivo brasileiras, que receberão apoio das empresas.

Gradativamente os editais passam a fazer parte da rotina daqueles que precisam de

financiamento para seus projetos culturais. Lançados em datas dispersas ao longo do ano,

estes mecanismos de seleção pública preveem incentivo para produção de diferentes

linguagens artísticas, festividades populares, datas comemorativas, culturas tradicionais,

processos criativos, festivais, dentre outras, envolvendo um espectro mais diversificado de

iniciativas culturais e linguagens.

Os editais são processos públicos de seleção de projetos que, em sua maioria,

operam com a lógica de repasse de valores módicos a um número maior de beneficiados,

como um contraponto as leis de incentivo, que possibilitam a captação de somas maiores na

mão de poucos proponentes. Exatamente por isso são utilizados prioritariamente por pequenos

artistas e produtores, além de associações sem fins lucrativos. Devido a seu poder de

capilaridade social e sua esfera de micro atuação, os editais tornaram-se imprescindíveis na

concepção de política cultural efetuada durante e após o governo de Lula, que estimulou a

valorização das culturas populares e do cidadão como produtor de cultura.

16

Oi, Volvo, Votorantim, Natura, Itaú, Correios, Petrobrás, Caixa, BNB e outros, são algumas das empresas que

lançam editais periodicamente para selecionar projetos que serão contemplados para patrocínio. Alguns exigem

que o projeto seja contemplado em leis de incentivo estaduais e/ou federal e outros preveem o repasse de verba

direta.

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Usados também como mecanismo de ativação de políticas e campos de interesse

do Estado, os editais podem ser compreendidos como um recurso17

onde a sociedade se torna

parceira do Estado, na busca da resolução das mazelas sociais que afligem o País. Em sua

maioria, os editais públicos solicitam contrapartidas sociais e demandam a realização de

projetos, que promovam algum tipo de inclusão, acessibilidade, promoção social,

desenvolvimento territorial e valorização de segmentos excluídos, só para citar alguns. Essa

percepção é mais nítida nos editais afirmativos, conforme observado por Barbalho, Gadelha e

Holanda:

É uma forma complexa e sutil de estimular à participação social, disciplinando-a e controlando-a desde sua criação e ainda assegurar seu caráter social e benéfico. Os

editais de ação afirmativa são apresentados como mecanismos que oferecem

diversos benefícios à sociedade: além de relevância artística, cultural ou científica,

ainda asseguram o atendimento de fins socialmente justificáveis, como inclusão

social, reconhecimento e afirmação identitária, reparação de problemas e práticas

discriminatórias. Uma cultura útil e boa, que serve a sociedade neoliberal,

contribuindo para a ideia da redução dos problemas gerados por ela. Conformada e

adequada por meio de editais, com sua seleção condicionada ao cumprimento de

todos os preceitos exigidos pelo Estado. (BARBALHO; BEZERRA; GADELHA,

2013, p.16).

Também pode ser considerado um instrumento de contenção social, uma vez que

se propõe tal qual o Bolsa Família18

, a suprir uma necessidade básica e crescente de produção

cultural diluída em todo o País, sem, no entanto, promover uma possibilidade de rompimento

desses laços, fazendo que diversos agentes culturais se considerem “editais dependentes”.

Continua a se reproduzir, por outros instrumentos, uma cultura de dependência onde o Estado

permanece na centralidade do repasse de verbas.

Mesmo que se pretendam universais e acessíveis, os editais são também criticados

por excessivas exigências de documentação, tanto no momento da inscrição como no de

prestação de contas, tornando o processo burocrático e por vezes inacessível para diversos

atores do campo da Cultura.

Na prática, os dois mecanismos, editais e leis de incentivo, mesmo com todas suas

deficiências, têm sido responsáveis pela realização da quase totalidade dos projetos de cunho

17De acordo com Miller e Yúdice (2004), a cultura vem sendo utilizada progressivamente como importante

recurso para a obtenção de fins sociopolíticos e econômicos e minimização de problemas sociais. Conforme

assinala os autores “a cultura não é mais experimentada, valorizada ou compreendida como transcendente. A arte

e a cultura são vistas como fundamentalmente interessadas” (MILLER; YÚDICE, 2004, p.27-28). 18 O Programa Bolsa Família prevê a transferência direta de renda para beneficiar famílias em situação de

pobreza e de extrema pobreza em todo o País. Mensalmente, o governo federal deposita uma quantia para as

famílias que fazem parte do programa, de acordo com o tamanho da família, da idade dos seus membros e da sua

renda. O programa objetiva, em curto prazo, minimizar os transtornos decorrentes de uma situação de pobreza

extrema e é criticado por seu caráter assistencialista e por criar uma cultura de dependência.

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cultural realizados pelos produtores brasileiros. Como já foi dito, em geral, os projetos

maiores com mais atrativo de visibilidade se ancoram nas leis de incentivo e as iniciativas

menores nos editais. No entanto, muitas vezes esses mecanismos se mesclam, sendo usados

concomitantemente, de acordo com a oferta e a oportunidade. Outras vezes, dependendo de

fatores externos, onde há oscilação nas políticas e descontinuidades, um mecanismo pode

funcionar como suporte do outro, criando condições de sustentação das iniciativas.

O Ceará não foge aos parâmetros mencionados. Os maiores eventos se utilizam

regularmente das leis de incentivo, federal e estadual, e pontualmente dos editais, enquanto

artistas e pequenos e médios produtores trabalham com editais, que tem assumido nos últimos

anos um peso grande na mobilização de recursos para a Cultura.

É importante destacar que em 200619

foram realizadas alterações na sistemática de

funcionamento da Lei Estadual que, ao invés de promover uma maior agilidade nos trâmites e

acompanhar o dinamismo da produção cultural, gerou mais lentidão e maior burocracia. A

mudança determina o lançamento anual de pelo menos um processo público de seleção de

projetos culturais, com recursos do Fundo Estadual de Cultura - FEC. Essa nova organização

deu mais morosidade nos processos, uma vez que anteriormente a lei de incentivo estadual era

disponível para demanda espontânea ao longo do ano e agora passa a depender dos prazos da

Secult, juntamente com os outros editais.

As críticas mais comuns se referem ao desencontro da agenda de projetos

realizados no Estado, com o calendário do edital da Secult e ao atraso no repasse de verbas.

Mensalmente a Secretaria de Cultura do Estado divulga uma relação onde constam os

projetos, que receberão o Certificado Fiscal de Incentivo à Cultura – CEFIC, documento que

autoriza o investidor a deduzir o imposto em prol de um projeto cultural beneficiado pelo

Mecenato.

Uma Portaria20

assinada pela SEFAZ e SECULT regulamenta o limite máximo

mensal a ser repassado para a Cultura por meio da SIEC. Atualmente o teto é R$ 1.197.000,00

e há uma previsão de que em 2014 passe a vigorar o valor mensal de R$ 1.700.000,00. Na

relação de beneficiados com o CEFIC de julho de 2013, das vinte e cinco iniciativas

contempladas, doze21

são eventos com data fixa e já realizados, que ainda aguardavam a

19 Lei 13.811 de 16/08/06. 20 Portaria Conjunta SECULT/SEFAZ nº 01/2010 de 03 de março de 2010, publicada no Diário Oficial do

Estado do dia 09 de abril de 2010, página 06. 21

III Festcine de Maracanaú - Festival de Cinema Digital e Novas Mídias (4 a 9 de junho de 2012); Feira da

Música 2012 (22 a 25 de agosto 2012); 23° Festival Ibero Americano de Cinema (07 a 04 de setembro de 2012);

Festival Floração do Maracujá (26 a 28 de setembro de 2012); Bienal de Par Em Par 2012 (19 a 28 de outubro de

2012); Ceará Musical (12 a 13 de outubro de 2012); VII Festival da Lagosta (15 a 18 de novembro de 2012);

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liberação da Secult para quitar seus pagamentos. Encontram-se, dentre estes, iniciativas

realizados em junho de 2012, como o III Festcine de Maracanaú, portanto, com quase 11

meses já passados do período de realização do projeto. Nesta mesma relação de julho de 2013,

o valor a ser repassado aos eventos já realizados chegava a um montante total R$ 613.438,00,

mais da metade do valor devido. É importante destacar que a liberação do CEFIC não

significa necessariamente o acesso automático a essa verba, uma vez que a efetivação do

pagamento ainda depende da disponibilização orçamentária da empresa apoiadora.

Outro aspecto que fragiliza a boa performance do Sistema Estadual de Cultura no

Ceará é a participação reduzida de empresas com potencial para fazer maiores aportes como

patrocinadora, o que leva uma concentração da quase totalidade de recursos em poucas

instituições, gerando uma excessiva dependência das cifras da cultura do Estado, tanto para

uso no Mecenato como no FEC, na mão de praticamente 11 empresas investidoras. Uma

delas, sozinha, responde por aproximadamente 70% do total dos recursos. Para ilustrar a

precariedade do SIEC e a baixa adesão das empresas locais é só fazer um comparativo com a

Lei Rouanet22

, que contou, somente no ano de 2012, com 7.768 investidores na forma de

pessoa jurídica e com 16.955 investidores pessoa física.

Essa situação demonstra uma fragilidade orçamentária de grandes proporções para

o financiamento à Cultura no Ceará, tornando-o altamente vulnerável. Em 2011 essa maior

empresa investidora de cultura no Estado, pelo SIEC, sofreu alterações na sua gestão

administrativa, que acarretou mudança nos trâmites de aprovação dos projetos que realizados

no Ceará. A apreciação de quais iniciativas merecerá apoio da empresa, agora são decididos

no exterior o que, além de uma situação peculiar, ainda acarreta uma perda de agilidade nos

processos decisórios, que pode demorar até quatro meses em seu trâmite de aprovação

interna/internacional, ou seja, no prazo necessário para comunicar ao produtor se o projeto

será aprovado ou não. Essa vulnerabilidade atinge inclusive as ações do poder público, que

também necessita dos recursos aportados no Fundo Estadual de Cultura – FEC para executar

projetos de seu interesse, inclusive os editais anuais.

Esses aspectos contribuíram para uma situação de crise e precariedade no sistema

de financiamento à cultura no Ceará, fazendo com que em novembro de 2013 o recém-

empossado secretário Paulo Mamede reunisse os produtores para iniciar uma etapa de diálogo

e parceria na resolução dos problemas. Trabalha-se em três frentes: na proposta de alterações

Mostra Itinerante de Cinema do Ceará (10 a 17 de Novembro de 2012); VIII Curta Canoa (27 de novembro e 1º

de dezembro 2102 ); III Manifesta! - Festival das Artes (8 de dezembro de 2012); Festival Jazz e Blues 2013 (09

a 15 de fevereiro de 2013); Dragão Fashion (13 a 18 de março de 2013). 22 Dados disponíveis no site no Ministério: <http://sistemas.cultura.gov.br/salicnet/S>.

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do Sistema Estadual de Cultura, na organização de um novo calendário de recebimento dos

recursos atrasados e na captação de novas empresas para incrementar as fontes de recursos

disponíveis para aplicação no SIEC, visando à manutenção do calendário de eventos culturais

realizados no Estado.

Em dezembro de 2013 foi apresentada à sociedade uma proposta de alteração no

SIEC, que prevê o aumento do valor da dedução do ICMS de 2% para até 3% (três por cento)

do ICMS para aporte no FEC ou Mecenas e ainda a transferência direta de 1,5% da receita

orçada proveniente do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e

sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação

– ICMS em favor do Fundo Estadual de Cultura. Também prevê uma maior participação da

sociedade no Comitê Gestor do SIEC e a volta do recebimento de projetos apresentados por

demanda espontânea, no período de fevereiro a novembro. Essas mudanças ainda serão

apresentadas a Assembleia Legislativa para apreciação e posterior votação.

A situação dos recursos para a Cultura também tem enfrentado obstáculos na

gestão do município de Fortaleza, que vem sendo criticada na imprensa23

pelo atraso no

repasse de verbas dos editais. Os produtores reclamam do descumprimento de prazos, da falta

de diálogo e atenção e da burocracia nos pagamentos, que fragiliza todo o campo.

Não bastassem todas essas dificuldades, outro aspecto merece ser observado: as

leis de incentivo e editais têm garantido a realização de inúmeras iniciativas, mas não

asseguram a continuidade e manutenção delas, uma vez que os projetos são formulados com

previsão de início, meio e fim, enquadrados e cronogramas e orçamentos finitos e

previamente aprovados.

Essa situação tem se configurado no decorrer desses anos como um dos maiores

paradoxos das políticas culturais do Brasil. Por meio de diferentes mecanismos, estas têm sido

responsáveis pelo surgimento e proliferação de inúmeras iniciativas de pequeno, médio e

grande porte em diversas localidades do País. No entanto, a gestão e sustentabilidade desses

projetos ainda são desafios a serem superados.

Desde os grandes projetos e eventos, até as atividades mais tímidas, mesmo que

tenham conseguido alcançar seus objetivos na captação dos recursos, se quiserem continuar a

desenvolver seus projetos, terão que iniciar todo o processo novamente. Isso cria uma espécie

de regra no "jogo" da cultura, onde, no final da partida, automaticamente, o jogador volta para

a primeira casa e inicia nova etapa, praticamente do ponto zero. Como esses projetos não são

23 O POVO de 25/11/ 2012 e Diário do Nordeste de 28/10/2013.

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autossustentáveis há a impressão de que tudo o que está sendo feito no campo da produção

cultural, baseado nos mecanismos disponíveis no atual sistema de financiamento, são como

construções de castelos em bancos de areia. Além de retrabalho, o sistema não favorece uma

cultura de planejamento, aproveitamento de recursos e continuidade das iniciativas.

Por fim, é importante destacar que o aperfeiçoamento do sistema de

financiamento à Cultura no Brasil pede soluções estruturais e políticas, que trabalhem com

cenários de médio e longo prazo, assim como a percepção da Cultura como pauta importante

na agenda pública do País, como destaca Barbosa da Silva:

O entusiasmo com o aumento dos recursos incentivados desvia a atenção do fato de que as instituições federais de cultura foram penalizadas com a falta de

investimentos e de recursos orçamentários que lhes permitisse a ampliação de suas

capacidades de ação cultural.

[...] o aumento dos recursos orçamentários para a vitalização e ampliação das

instituições públicas federais nas suas capacidades de operação na área cultural,

embora central, não envolve simplesmente o apreço ou desapreço dos

administradores públicos pelas coisas da cultura, sendo que a ampliação ou

diminuição dos recursos depende, por um lado, das estratégias gerais do governo

com relação a variáveis macroeconômicas e, por outro lado, envolve a ampliação da

capacidade de gasto e de melhor uso dos recursos orçamentários por parte das

instituições públicas culturais. Ou seja, exige ampliação da capacidade de gestão e

planejamento. (SILVA, 2009, p.19).

Essas considerações sobre o sistema de financiamento à Cultura no Brasil e no

Ceará, longe de esgotar o tema, pretendem apenas apresentar algumas questões necessárias

para a compreensão da produção cultural no Brasil contemporâneo, nosso tema de pesquisa,

uma vez que é nesse campo, marcado por tensões, disputas, instabilidades e também

conquistas e realizações que tem se forjado o crescimento dessa nova categoria profissional

que é a dos produtores culturais.

No próximo capítulo, iremos nos deter mais detalhadamente no estudo do

funcionamento do campo da produção cultural e nas suas relações com as políticas públicas,

bem como no entendimento de como esse sistema de financiamento repercute na produção

cultural.

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3 O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE

FINANCIAMENTO À CULTURA

Uma vez tendo sido feita uma breve contextualização sobre o sistema de

financiamento à Cultura no Brasil contemporâneo, que envolve relações entre mecenas,

benfeitores, governantes e artistas, pretendemos agora direcionar nossa atenção para outro

tipo de agente muitas vezes partícipe dessa relação, que tem desempenhado um papel oculto,

porém, essencial: o de possibilitar a concretização do percurso que se dá entre o momento da

inspiração artística até a sua contemplação pelo público, passando pela etapa de captação de

recursos.

Falamos de pessoas que, mesmo não sendo necessariamente artistas e nem

detentoras de recursos financeiros, materiais ou políticos, que lhes confira uma condição de

poder para viabilizar a produção de uma obra de arte ou projeto cultural, trabalham

incansavelmente e, por vezes, anonimamente para criar as condições necessárias à

concretização de uma ideia artística.

Em muitas ocasiões, são pessoas com características específicas e que têm em

comum afinidade com o campo das artes e convicção no potencial de um projeto ou de um

artista. Possuem uma considerável capacidade de realização, articulação e negociação, assim

como a força de superar desafios para possibilitar a concretização de empreendimentos

artísticos e culturais em que acreditam.

A Literatura não abriga muitos títulos sobre esses personagens, o que dificulta a

identificação de seu lugar no campo da Cultura e a observação mais precisa da sua

contribuição ao longo da História da Arte. No entanto, é de se imaginar que esse tipo de

atividade que impulsiona, organiza e viabiliza a produção artística deve ser tão antiga, quanto

necessária. Supomos que muitas pessoas que atuaram anonimamente, junto a artistas e

financiadores, tiveram um papel fundamental na mediação de relações e produção de grande

parte do legado artístico e cultural que conhecemos hoje.

Para ilustrar o relevante papel que essas pessoas tiveram ao longo da História,

retrataremos aqui um pouco da vida de Cosima Liszt (1837-1930), com base na obra

“Cosima: A Sublime”, de Françoise Giroud, que narra a história de uma mulher que

desempenhou um papel indispensável na vida de importantes artistas e, no entanto, permanece

desconhecida para a grande maioria do público.

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Filha do compositor Franz Liszt, Cosima casou-se primeiramente com o regente e

pianista Hans Von Bulow, de quem se separou para unir-se ao compositor Richard Wagner,

provocando grande escândalo na sociedade. Teve também um destaque na vida de Friedrich

Nietzsche, que nutria por ela uma enorme admiração e fascínio e a quem ofereceu o primeiro

manuscrito de sua obra “Nascimento da Tragédia”. No entanto, vamos nos ater aqui ao papel

importantíssimo que Cosima teve na carreira de Richard Wagner, atuando ao seu lado na

viabilização das condições necessárias para que o artista pudesse criar, subsistir

materialmente e apresentar suas criações ao público, o que possibilitou um importante legado

musical à humanidade.

Inteligente, conhecedora das artes e pianista, Cosima tinha um forte magnetismo

pessoal. Recebia a sociedade local, frequentava salões e articulava contatos que eram

imprescindíveis para um ambiente propício e favorável ao artista. Abraçou a carreira do

marido, contribuindo para a glória de Wagner.

O seu trabalho assegurou, além da sustentação financeira de compositor e da

família, as condições necessárias para suas criações artísticas. Para isso, planejou e envolveu-

se em inúmeras e complexas articulações com autoridades instituídas, particularmente Luís II,

rei da Baviera, em busca da imprescindível adesão e financiamento permanente para o artista.

Luís II, tocado de maneira profunda pela arte de Wagner, foi incisiva e

permanentemente assediado por Cosima, que demandava um número crescente de recursos

para o compositor. Tornou-se o grande patrocinador do artista, numa relação íntima e

complexa que envolvia afinidades artísticas, afetos, intrigas, poder, política e economia.

Relação tão forte que fez Wagner afirmar que “seremos mais felizes que quaisquer outros

mortais, porque nós três – o rei inclusive – somos imortais”. (GIROUD, 1998, p.51).

Cosima também teve um papel decisivo na construção do teatro de Bayreuth24

e

na realização de 13 festivais musicais lá apresentados. Dedicou grandes esforços para sua

viabilização, promovendo ações de persuasão para captação de recursos junto a diversos

patrocinadores. Com isso, tornou possível o sonho de Wagner de apresentar suas peças -

dentre elas Siegfried, A Valquíria, O Ouro do Reno, Parsifal - em um teatro próprio. Suas

belas composições não deixavam transparecer a trajetória de altos e baixos em busca de

recursos, perceptíveis na afirmação de Wagner a respeito de sua parceira: “Cada pedra dessa

construção é vermelha do meu sangue e do teu”. (GIROUD, 1998, p.131).

24 Inaugurado em 1876, foi concebido especialmente pelo compositor para apresentar suas obras. Demorou

quatro anos para ser construído, o que demandou enormes esforços de Wagner e Cosima para assegurar sua

viabilização. Localizado na Alemanha, é hoje um importante reduto dos apreciadores de Wagner.

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O papel de Cosima pode ser melhor mensurado se observamos que Wagner,

quando a encontrou, estava numa situação financeira desastrosa, ameaçado de prisão por

dívidas, sem credibilidade e apoio pecuniário, o que apresentava repercussão direta em seu

processo criativo. Ao fim de 20 anos de convivência e trabalho e 67 dedicados à sua obra,

Wagner era um dos mais importantes compositores do mundo.

Cosima trabalhou diariamente, ao longo de anos, pela criação de condições que

garantissem a viabilização das ideias e projetos do compositor, animando-o e assessorando-o

no aspecto artístico, na construção e administração do teatro, na gestão dos músicos,

concepção dos figurinos e maquiagem, na direção técnica dos espetáculos, negociação de

direitos autorais, relações com a imprensa, contatos com a elite e patrocinadores, realização

de eventos de captação, emissão de certificados de patrocínios, organização de turnês, etc.

Apesar de Wagner ter se tornado uma celebridade mundial, enganam-se quem

subestimar a importância de Cosima, pois sua “verdadeira natureza era o comando”.

(GIROUD, 1998, p.101). Importância creditada a ela pelo próprio Wagner que afirmava:

“Nós ficaremos, você e eu, na memória dos homens. Você, sobretudo”. (GIROUD, 1998,

p.79). No entanto, a previsão de Wagner não se concretizou. Em menos de cem anos, o nome

e a importância de Cosima se apagaram no tempo.

Essa falta de visibilidade não diz respeito somente a Cosima. Ao nos remetermos

à produção cultural e artística de distintos períodos da sociedade moderna, nos referimos,

quase que automaticamente, aos seus criadores e/ou movimentos culturais e, em alguns casos,

a seus mecenas e benfeitores. Pouco se destaca sobre os agentes que tiveram papel

preponderante para que essas ideias e criações se tornassem realidade.

Para ilustrar essa afirmação em período um pouco mais recente, podemos

apresentar o exemplo da Semana de 2225

. Quando são citados nomes do movimento

modernista no Brasil, se refere comumente a Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral,

Vila Lobos, Victor Brecheret, Di Cavalcante, dentre outros. São artistas e intelectuais que,

com suas produções artísticas e debates acalorados na mídia, participaram de um momento

criativo da cultura brasileira, que expressou artisticamente um movimento de ruptura próprio

de uma metrópole emergente. A História registra e consagra artistas e obras.

No entanto, ao adentrarmos os bastidores do evento, encontramos outros

personagens fundamentais que garantiram não só os recursos financeiros, mas o senso de

25 Evento ocorrido em São Paulo no ano de 1922, nos dias 13 a 17 de fevereiro. Realizado no Teatro Municipal,

com uma programação de pintura e escultura, poesia, literatura e música, marcou o início do modernismo no

Brasil e tornou-se referência cultural do século XX.

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oportunidade e a objetividade necessária à realização da empreitada. Um deles é o intelectual

paulista Paulo Prado, ilustrado fazendeiro que atuou como um elo entre gerações, sendo

orientador e proponente de questões para os jovens artistas. Prado mobilizou a sociedade

paulista em torno do projeto de um evento nascente, garantiu as condições necessárias à sua

realização e conferiu prestígio, poder, recursos e organização à empreitada dos modernistas.

Seu papel, apesar de fundamental, também não é devidamente destacado na história da

Semana de 22. (GONÇALVES, 2012).

Paulo Prado representava a personalização do poder político, cultural e

econômico, que possibilitou a concretização dos sonhos dos jovens da pauliceia. Mas, além de

emprestar prestígio ao projeto de realização da Semana de 22, conferiu a esta a capacidade de

execução e organização que faltava aos artistas para levar à sociedade uma apresentação mais

estruturada de suas ideias e produções artísticas. Foi dele a sugestão da realização do evento

no Theatro Municipal de São Paulo e a obtenção do espaço para este fim, além da

mobilização de recursos para viabilizar a empreitada e a divulgação do mesmo junto à elite

paulistana. Sua importância foi tanta que fez Mário de Andrade afirmar que:

[...] o grande responsável pela Semana – seu fautor verdadeiro – não poderia

ter sido outro senão o abonado e bandeirantíssimo Paulo Prado, o homem que

levantou, com seus amigos da alta sociedade paulista, os meios para realizar

os festivais no Municipal. (GONÇALVES, 2012, p.253).

A relevância que os modernistas atribuem a Paulo Prado remete à convicção com

que Wagner falava da importância de Cosima para sua vida e obra. Interessante destacar que a

esses personagens é atribuído não só um papel executivo e operacional, mas também uma

relevância no sentido de planejamento e estratégia de condução dos acontecimentos, visando à

obtenção dos objetivos propostos.

Importância esta que não tem sido devidamente (re)conhecida pela História,

fazendo-nos imaginar que muitos outros podem ter ocupado um papel semelhante, ao lado de

artistas e ideias inovadoras. Essa constatação nos instiga a refletir sobre algumas questões:

que papel essas pessoas cumpriram para se configurar assim como tão necessária aos artistas?

A que se deve essa aparente irrelevância histórica?

Este capítulo se propõe a identificar os lugares ocupados por esses agentes

culturais na sociedade contemporânea em um esforço de reconhecimento da atividade, sua

função, atribuições e diversas nomeações a que tem recebido, assim como seus significados.

Buscamos apresentar o processo que possibilitou a inserção desses agentes no campo cultural

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em uma perspectiva de formação de atividade profissional, assim como questionar as

condições de exercício do trabalho hoje.

Uma vez reconhecida essa prática, cabe-nos indagar que transformações lhe têm

sido postas, com o desenvolvimento do Capitalismo e a crescente complexidade da sociedade

de rede, globalizada, multifacetada e diversa culturalmente e qual o papel essa atividade

ocupa hoje no campo da cultura e quais atribuições lhe competem no sistema cultural

contemporâneo.

Para isso, faremos uma breve retrospectiva sobre como se formou a categoria em

suas relações com as políticas públicas, principalmente aquelas relacionadas à captação de

recursos. Nesse retrospecto, daremos especial atenção à formação dos produtores culturais no

Ceará e a formação do campo de atuação no Estado.

Objetivamos, por fim, compreender como a categoria se insere no campo social e

apresentar as especificidades desse campo e suas principais tensões e disputas em seu

relacionamento com as políticas culturais de financiamento à Cultura, base de sustentação da

atividade, no Brasil e no Ceará.

3.1 COMPREENDENDO O LUGAR: PERCURSOS E NOMEAÇÕES

Inicialmente, podemos constatar que a função primordial do agente que

desempenha esse papel de organização nos bastidores é dar forma, viabilidade, garantir a

realização e efetividade de ideias no campo cultural e artístico. Exatamente por ter essa

finalidade, configura-se como uma atividade de intermediação, ligando pontos e pessoas em

prol de objetivos comuns. Talvez nesse aspecto resida uma das razões de sua pouca

visibilidade, pois quem desempenha essa atividade não tem necessariamente, como principal

atributo, a posse de recursos financeiros e materiais, nem a capacidade criativa dos artistas,

ainda que isso não seja excludente, mas possui a capacidade de criar condições que integrem

uns aos outros. Situa-se numa condição que, apesar de fundamental, não lhe assegura a

exposição e prestígio dos detentores de poder econômico ou político, nem o carisma que

costuma acompanhar os artistas.

Essa realidade é explicitada em um jargão na atividade que diz: “O bom produtor

é aquele que não aparece. Se ele aparecer é porque algo deu errado.” Além de retratar uma

característica coloquial da atividade profissional, a expressão sugere a necessidade de um

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olhar mais apurado sobre aquele que está presente e não aparece. É sobre esse “não

lugar/lugar” que direcionamos nossa atenção.

Falamos de uma atividade que, apesar de ainda ocupar um espaço pouco visível

no campo da cultura, desempenha uma função essencial para viabilizar a trajetória de

encontro de um produto artístico com seu público. Em nossa percepção, essa função que já

deve ter sido desempenhada muitas vezes de forma espontânea e sem nomeações específicas

em diversos momentos da História, com certas características e regularidades, merece ser

mais investigada e compreendida. Cumpre-nos refletir sobre a existência de suas práticas e

saberes em comum, apesar das diferenças de contextos, situações e condições históricas.

É uma função que pode ser desempenhada pelos próprios artistas ou por pessoas

que a ele estejam próximas e apresentem afinidades com a Arte, mas, principalmente, por

pessoas que tenham características empreendedoras para criar as condições necessárias à

execução de projetos e ideias no campo da cultura. Essa prática se traduz em uma disposição,

um modo de se colocar e operar em situações concretas e específicas.

Remetemo-nos aqui ao conceito de habitus, de Bordieu, considerando-o um

conjunto de disposições incorporadas que tornam “explícitas as relações intrincadas, embora

convergentes, entre as disposições inconscientes e as experiências por elas estruturadas [...]”

(BOURDIEU, 2007, p.161) para perceber que esse conhecimento foi se dando de forma

cumulativa e gradual, com base em afinidades, características pessoais e trajetórias de vidas,

que repercutem na subjetividade e nas práticas desses agentes, produzindo não só “práticas

individuais e coletivas, mas também fazendo história”. (BOURDIEU, 2007, p.76).

Apesar de não termos dados suficientes que possibilitem com precisão a

identificação das pessoas que já desempenharam ou desempenham essa função, podemos

perceber, por meio de depoimentos, algumas regularidades no comportamento e na realização

da atividade em diferentes contextos, o que nos permite trabalhar com a percepção de uma

“orquestração sem maestro que confere regularidade, unidade e sistematicidade às práticas de

um grupo ou de uma classe.” (ORTIZ, 1983, p.67).

A grande maioria das pessoas que trabalha nessa atividade se forjou como

profissional por meio de um conjunto de disposições. São pessoas que tiveram acesso às artes,

ou seja, alguma familiaridade com a ambiência cultural. Possuem características pessoais em

comuns, como senso de iniciativa e oportunidade, objetividade, capacidade de se comunicar,

organização e planejamento, para citar algumas. Por apresentarem esses atributos, em alguns

momentos se viram impelidos a usá-los em prol de um projeto ou ideia que necessitava ser

concretizada.

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Dessa forma, segundo a teoria de Bourdieu, as conjunturas exercem sua ação de

estímulo, atraindo aqueles que estão dispostos a constituí-la, dotados de um determinado tipo

de disposição passíveis de serem redobradas e reforçadas pela posse direta de um discurso ou

saber capaz de assegurar o domínio simbólico dos princípios do habitus da classe. Foi,

portanto, dentro do campo e em contextos sociais, econômicos e culturais específicos,

vivenciados ao longo do tempo, que a atividade foi se configurando.

Para possibilitar o início do percurso dentro desse campo, faz-se necessário definir

o que entendemos como Cultura. Para isso, utilizaremos a definição adotada pela Organização

das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura – UNESCO. A escolha se deve ao fato

da instituição ter assumido um papel de crescente protagonismo influenciando, com a

promulgação documentos, convenções e declarações às políticas culturais em diversos países.

Segundo a UNESCO26

a Cultura é

o conjunto de traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social [...] englobando as artes, as letras,

os modos de vida, os direitos fundamentais ao ser humano, os sistemas de valores,

as tradições e as crenças.

Chauí destaca que a Cultura é o “campo no qual uma comunidade institui as

relações entre seus membros e com a natureza, conferindo-lhes sentido ao elaborar símbolos e

signos, práticas e valores, ao definir para si o possível e o impossível [...]”. (CHAUI, 2006,

p.131). Sendo um conceito iminentemente social, em tempos de globalização,

multiculturalismo e estados supranacionais, a Cultura assume outras funções e com elas,

novos discursos, conceitos e transversalidades. Ao identificar a complexidade que a cultura

assume na sociedade contemporânea, Rubim afirma que:

Com a modernidade temos a autonomização (relativa, é claro) do campo cultural em

relação a outras esferas societárias, notadamente a religião e a política. Tal processo

– que não pode ser confundido com isolamento ou desconexão social – implica a

constituição da cultura como campo social singular, que articula e inaugura

instituições, profissões, linguagens, símbolos, valores e tensões. A partir daí a

cultura passa a ser nomeada e percebida como dimensão social determinada que

pode ser estudada em sua especificidade. (RUBIM, 2008, p.46).

Rubim continua a apontar algumas transformações observáveis no campo da

cultura, no período que se sucede à sociedade moderna e perpassam o campo cultural na

contemporaneidade. Um deles é a “politização da cultura”, onde essa passa a se configurar

26 Definição proposta na Declaração da Cidade do México sobre Políticas Culturais de 1982 e adotado pela

Unesco em 1982, durante a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais Mundiacult.

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como uma fonte significativa de legitimidade para o Estado moderno, uma vez que “a política

necessariamente se articula com a cultura, posto que trata da elaboração e da disputa de visões

do mundo”. Por outro lado, destaca também o aspecto da “culturalização da política”,

ressaltando a crescente e progressiva inserção de temas da agenda política moderna no campo

da cultura e de suas práticas e valores (2008).

Outro ponto que merece a atenção do autor é a “mercantilização da cultura”, uma

vez que com o advento da indústria cultural, observa-se o “avanço do capitalismo sobre os

bens simbólicos”, fazendo com que estes passem a ser concebidos, produzidos e vendidos

como mercadorias. Por fim, aponta outro eixo, complementar e simultâneo a este, que é a

“culturalização da mercadoria”, ou seja, “o papel de componentes simbólicos no valor das

mercadorias, inclusive de bens materiais” (2008).

Costa (2011) adverte que a crescente autonomização da cultura como um campo

social, além de ter possibilitado o surgimento de diversas instituições e categorias

profissionais, manifesta-se por meio de uma estrutura organizacional inserida em um

complexo sistema de relações humanas, produtivas e culturais, que culminam com a divisão

social do trabalho, tese compactuada por Linda Rubim ao afirmar que a tarefa de organizar a

cultura sempre esteve presente em diversas circunstâncias sociais, que com a secularização da

cultura, passou a solicitar profissionais diferenciados. Segundo ela:

No passado, um sistema cultural não comportava a diferenciação destas e de outras

atividades. Em tempos remotos, muito provavelmente, tais atividades não apareciam

como atividades diferenciadas e especificas, mas estavam imersas no bojo de um

conjunto indiferenciado, e simultaneamente, de modo inespecífico, de diversas

dimensões. A distinção das atividades faz parte, portanto, do processo de

complexidade da sociedade e do sistema cultural. (RUBIM, 2005, p.16).

É Albino Rubim, porém, que aprofunda o tema ao inserir esta atividade como

parte de um complexo sistema cultural, mais precisamente, do âmbito da organização da

cultura. Segundo ele, para que haja um pleno desenvolvimento da cultura na sociedade

contemporânea, faz-se necessário uma compreensão integrada do sistema cultural e das

diversas instâncias nele envolvidas distribuídas da seguinte forma: 1. Criação, invenção e

inovação; 2. Difusão, divulgação e transmissão; 3. Circulação, intercâmbio, trocas,

cooperação; 4. Análise, crítica, estudo, investigação, pesquisa e reflexão; 5. Fruição, consumo

e públicos; 6. Conservação e preservação; 7. Organização, legislação, gestão e produção

cultural. (RUBIM, 2007).

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Ao adotarmos a perspectiva de sistema cultural de Rubim, não podemos esquecer

que a Cultura se dá em um fluxo de movimento e trocas permanentes, que não pode ser

analisada de forma estática e imutável. No entanto, Geertz reconhece que “os sistemas

culturais tem que ter um grau mínimo de coerência, do contrário, não o chamaríamos

sistemas”. (GEERTZ, 1989, p.13). Mas é Bauman que traz algumas questões relevantes ao

afirmar que:

A busca da ordem torna toda ordem flexível [...] a cultura nada pode produzir além

de mudança constante, embora só possa produzir mudança por meio do esforço de

ordenação [...] Ao falar de um grupo de itens como um sistema, temos em mente que

todos os itens estão interconectados, que o estado de cada um deles depende dos

estados que todos os outros assumem. (BAUMAN, 2012, p.29).

Essa compreensão ampliada da Cultura como parte de um sistema constitutivo de

diferentes e complementares instâncias sinaliza a amplitude do campo e a necessidade de

aprofundamento do conhecimento sob cada momento, suas peculiaridades, funções e

necessidades. Sabemos que estas instâncias encontram-se entrelaçadas e se dão de forma

simultânea e interdependente, formando um amplo e complexo sistema de relações e que, para

que o sistema funcione a contento, todas as instâncias precisam ser observadas e

contempladas.

Diante do exposto, quando abordamos o tema da Cultura, remetemo-nos a um

conceito que transcende a produção artística e, ao tratarmos da atividade da produção cultural,

objeto desta pesquisa, estamos nos referindo a um trabalho tangível e intangível ao mesmo

tempo, que tem relevância por sua capacidade de atuar como potencializador de novos

processos, transformações e percepções de uma sociedade, pois como ressalta Chauí:

Como trabalho, a cultura opera mudanças em nossas experiências imediatas, abre o

tempo para o novo, faz emergir o que ainda não foi feito, pensado e dito. Captar a

cultura como trabalho significa, enfim, compreender que o resultado cultural (a

obra) se oferece aos outros sujeitos sociais, se expõe a eles, oferece-se como algo a

ser recebido por eles para fazer parte de sua inteligência, sua sensibilidade, sua

imaginação e ser retrabalhada pelos receptores, seja porque a interpretam, seja

porque uma obra suscita a criação de outras. (CHAUI, 2006, p.136).

O objeto de interesse dessa pesquisa é o trabalho desenvolvido pelo profissional,

que possui papel fundamental na emergência dessas novas expressões culturais, ao mobilizar

esforços e recursos que possibilitam a existência dos produtos culturais, ofertando-os à

sociedade. Diferentemente do artista - que produz a Arte em si -, aquele que atua no âmbito da

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organização da cultura produz a condição da manifestação da obra de arte e de um bem

cultural. E, porque não dizer, produz a si também como trabalhador.

Cabe ao trabalhador da organização da cultura avaliar cenários, identificar

possibilidades, propor caminhos, movimentar ferramentas e mobilizar as condições que

permitam a conexão com todas as outras instâncias do sistema. Lembrando sempre, como já

anunciado por Bauman, que esse esforço de organização se dá em um processo de mudança

contínua. Em muitos momentos, cabe a ele encontrar a possibilidade onde nada existia, criar

cenários e ofertar novas realidades. Atividade iminentemente relacional que, na prática,

congrega um número extenso de agentes e uma diversidade de interesses. Cabe a este

organizador, como diz a música de Caetano Veloso27

, fazer o movimento preciso, no tempo

propício, para espalhar benefícios.

A constatação de que a organização da Cultura se faz presente em diversos planos

é mais perceptível em grandes projetos e eventos, onde se identifica a necessidade da

administração de inúmeros recursos, serviços e processos. Mas convém observar a sua

relevância em todas as práticas do fazer cultural, nas rotinas e procedimentos cotidianos.

Mesmo as pequenas iniciativas culturais, de alguma forma, necessitam de esforços de

organização para se viabilizarem enquanto produtos, a fim de que possam atingir o objetivo

de ser apreciadas por seu público. No entanto, a visibilidade e o conhecimento acerca do

campo de organização da Cultura ainda são incipientes, o que sinaliza uma ausência de

tradições, saberes e conceitos consolidados. As diversas nomenclaturas dadas aos agentes que

atuam nessa área tentam dar conta da identificação e classificação desta atividade. Porém,

essa é uma difícil empreitada, uma vez que se trata de um campo amplo, complexo e em

constante mutação e movimento. Segundo Calabre:

[...] pensar e planejar o campo da produção, circulação e consumo da cultura dentro

de uma racionalidade administrativa é uma prática que pertence aos tempos

contemporâneos. A gestão cultural é um campo novo, com fronteiras fluidas, no

qual o perfil profissional se encontra em pleno processo de construção. (CALABRE,

2008, p.66).

Esse processo de construção pode ser observado ainda no difícil enquadramento

da atividade. Diversos nomes são atribuídos, em diferentes contextos e países, ao profissional

que trabalha na organização da cultura: animadores, mobilizadores, intermediadores,

produtores e gestores são os mais comuns. Cada um deles carrega múltiplas funções e, no

dizer de Rubim, “a pluralidade de denominações não só indica a idade recente das práticas e

27 Oração ao Tempo, de Caetano Veloso.

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dos estudos acerca da organização da cultura, mas sugere pensar em itinerários e

peculiaridades [...]”. (RUBIM, 2008, p.52).

Dentre as inúmeras nomeações que a atividade recebe, “nenhuma delas é aceita

universalmente e mais grave: nenhuma delas está isenta de problemas de definição

conceitual” (RUBIM, 2005, p.21). Todas dizem respeito, de alguma maneira, aos contextos

em que foram forjadas, às políticas culturais vigentes e reforçam, em maior ou menor grau,

aspectos diferenciados da atividade. As nomenclaturas divergem de acordo com regiões,

períodos e também países. Ou, no dizer de Costa, “cada uma dessas definições sugere um

histórico”. (COSTA, 2011, p.48).

Na tradição americana, ao se referir ao profissional que atua na organização da

cultura, acentua-se seu caráter gerencial e administrativo. Conhecidos como arts

administrators, deles é esperada: uma administração racional, produtiva e próspera para dar

conta do sistema cultural do País, que abriga uma legislação específica de incentivo às artes;

tradição de apoio às causas sociais e filantropia; grandes instituições privadas de cultura em

convivência com pequenas associações comunitárias; uma sólida indústria cultural; e estímulo

a iniciativas de vanguarda. Permeiam todas essas instituições, políticas públicas de cultura,

interesses financeiros globalizados e fluxos dinâmicos, além de uma intensa rede de

networking. Cabe a esse profissional intermediar e otimizar as imbricadas relações entre

artistas, o público, a mídia, o Estado e o empresariado. (MCGUIGAN, 1996; MARTEL,

2006).

A Europa Pós-Guerra, por sua vez, preocupou-se em preservar a primazia do

Estado perante seu patrimônio cultural, elegendo a Cultura como um bem coletivo e criando

instituições públicas capazes de respaldar suas políticas. Apesar da consolidação de suas

instituições, não há um consenso sobre a nomenclatura dos profissionais que atuam na

organização da cultura. Na França, a despeito da utilização de outras nomenclaturas, pode-se

destacar a figura dos “mediadores culturais, que seriam o conjunto de intermediários pelos

quais as obras ou objetos poderiam se tornar conhecidos, compreendidos, recebidos.”

(COSTA, 2011, p.41).

Na Espanha, é comum se denominar os profissionais da área como “animadores e

promotores culturais”. Essa nomenclatura sugere a atividade de estimulação e fortalecimento

das relações entre os produtores e os receptores de cultura, o que é também uma função de

mediação, que visa o incremento do acesso público às artes. Apresenta também um viés

pedagógico, uma vez que tem o objetivo de estimular e animar a criatividade e a fruição

comunitária. Com o desenvolvimento das instâncias governamentais de cultura, insere-se, a

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partir da segunda metade da década de 80, o termo “gestão cultural” que cuida não só da

atenção ao público, mas do planejamento, concepção e organização da oferta. (COSTA,

2011).

Ferreira, ao abordar a relevância dos “intermediários culturais” para o sistema

cultural de Portugal, afirma que “estes agentes desempenham um papel duplamente vital no

circuito cultural: agilizam a ligação entre criadores e públicos, ao mesmo tempo em que

concorrem para os processos de construção e consagração das carreiras e das obras dos

criadores”. A noção reporta-se a um conjunto de “atividades especializadas de agentes e

organizações que intervêm nos processos de seleção, filtragem, distribuição, divulgação,

avaliação e valorização das criações”. (FERREIRA, 2002, p.5).

3.2 PRODUÇÃO CULTURAL: UMA ATIVIDADE COMPLEXA E AINDA EM

FORMAÇÃO

Apesar de, como já foi dito, a atividade de produção cultural existir há muito

tempo, no Brasil, só recentemente ele começou a se configurar com uma atividade

profissional, ou seja, como ocupação financeira principal. Sua formação e crescimento estão

associados às políticas públicas de financiamento à Cultura, surgidas a partir da década de 80,

que possibilitaram a esses agentes vislumbrar em suas aptidões e afinidades artísticas, uma

atividade profissional inserida em um mercado e com possibilidades remunerativas.

Compreendemos que a atividade deve, como exemplificado na Semana de 22,

existir há muito tempo; porém, foi por meio da criação de políticas direcionadas ao

financiamento da Cultura, abordadas no capítulo anterior, que esses agentes puderam

vislumbrar a possibilidade de formação de um mercado para a cultura, o surgimento de novas

vocações produtivas e desenvolvimento dessa atividade numa perspectiva profissional,

processo que ainda está em formação e mutação constante, ainda carecendo de conceituações

primárias, dentre elas a própria denominação.

Apesar de encontrarmos no País denominações como animadores culturais,

intermediários, promotores culturais, dentre outros, visando à nomeação e identificação desses

agentes, dois termos são utilizados mais comumente: produtor cultural e gestor cultural. O

consenso sobre a nomenclatura adequada não existe e cada um enfatiza aspectos

diferenciados. Ainda assim, apresentam limitações para definir a extensão de suas funções.

Ao tratar do conceito de produção cultural, iniciamos remetendo-nos a Rubim

(2008). Segundo ele, enquanto a América Latina atuava com a noção de gestão cultural, no

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Brasil, as políticas culturais priorizaram a ênfase nas leis de incentivo à Cultura e o Mercado,

o que fez com que o Estado se afastasse do seu papel de produtor cultural, que foi delegado à

sociedade. Assim, essa responsabilidade foi transferida para novos agentes que ingressaram

no mercado, atendendo pelo nome de produtores culturais. Segundo ele:

A ausência de tradição na formação de gestores, a submissão da cultura à lógica de

mercado e a fragilidade das políticas culturais do Estado nacional – fortemente acentuada nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort – são,

por excelência, o contexto elucidativo da emergência da nomeação de produtores

culturais, com as características que eles adquirem no país. (RUBIM, 2008, p.27).

Segundo Cunha, as imprecisões na definição dos perfis e nomenclaturas desses

agentes devem-se a própria dificuldade de sua colocação de forma mais objetiva no mercado,

mas também pelo fato da categoria ainda estar constituindo seu próprio campo profissional.

Adverte, no entanto, que a seleção do termo produtor cultural ou gestor cultural revelam

também aspectos sobre seu posicionamento no mercado. Segundo ela:

O produtor tem sido colocado como um profissional mais executivo e o gestor no

âmbito das ações mais estratégicas. No entanto, apesar de serem identificadas como

duas profissões diferentes, elas se confundem enquanto ocupação de espaços de

atuação no mercado cultural e, principalmente, em relação aos saberes desenvolvido

em cada profissão, coexistindo, ao mesmo tempo, no mercado de trabalho. (CUNHA, 2008, p.8).

Rubim recomenda o aprofundamento nas reflexões entre a gestão e a produção

cultural, de forma a marcar suas diferenças e semelhanças. Lembra ainda que, na própria

esfera da organização da cultura, há distintos níveis:

[...] a dos formuladores e dirigentes, afeitos ao patamar mais sistemático e macrossocial das políticas culturais; os gestores, instalados em instituições e/ou

projetos culturais mais permanentes, processuais e amplos; e, finalmente, os

produtores, mais adstritos a projetos de caráter mais eventual e microssocial.

(RUBIM, 2008, p.28).

E continua a discorrer sobre o tema, apontando o que é, a seu ver, a diferença

marcante entre produtores e gestores: os primeiros circunscrevem sua atuação em uma esfera

mais pontual, detendo-se na prática a organização de shows, eventos e outros projetos com

duração limitada e definida, enquanto os últimos lidam com atividades constantes, de caráter

mais amplo e permanente. Essa visão, apesar de ainda guardar aproximações com o que

acontece no mercado, parece-nos simplificada e incapaz de atender a mudanças ocorridas no

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campo e as novas exigências e parâmetros de atuação, onde muitas vezes um mesmo

profissional atua em várias instâncias ao mesmo tempo.

Cunha compartilha da visão de que o produtor “dentro dessa divisão profissional,

tem a atribuição de executar tarefas”; no entanto, pondera que ele não limita sua ação,

necessariamente, em eventos pontuais, podendo estar envolvido em projetos de longa

duração. Considera ainda que os dois caminhem lado a lado, numa relação complementar e

recíproca, onde o produtor “é antes um apoiador, já que fornece suporte à ação planejada da

gestão”. (CUNHA, 2008, p.8).

A questão não é consensual e, a esse tema, Avelar dedica um capítulo inteiro em

seu livro “O Avesso da Cena - Notas sobre produção e gestão cultural”. Nele, reafirma as

diversas convergências e pontos em comum entre as duas definições: ambos realizam

atividades cotidianas no âmbito da administração e ocupam um lugar de interface com os

diversos agentes do sistema da cultura (mídia, artistas, público, poder público, profissionais e

técnicos e empresas, dentre outros). Nesta perspectiva, define o produtor cultural como:

O profissional que cria e administra diretamente eventos e projetos culturais,

intermediando as relações dos artistas e demais profissionais da área como Poder

Público, as empresas patrocinadores, os espaços culturais e o público consumidor de

cultura. (AVELAR, 2010, p.52).

E continua seu esforço de conceituação, ao apresentar o gestor cultural como:

Profissional que administra grupos e instituições culturais, intermediando as relações

dos artistas e dos demais profissionais da área com o Poder Público, as empresas

patrocinadoras, os espaços culturais e o público consumidor de cultura; ou que

desenvolve e administra atividades voltadas para a cultura em empresas privadas,

órgãos públicos, organizações não governamentais e espaços culturais. (AVELAR.

2010, p.52).

Para ele, as semelhanças são muitas e a principal diferença se concentra

fundamentalmente no fato de que os produtores criam e administram diretamente eventos e

projetos culturais e os gestores administram grupos e instituições culturais. Lembra, no

entanto, que as fronteiras entre um e outro são tênues e que, em determinadas ocasiões, um

mesmo profissional pode ocupar uma ou outra função, ou acumular as duas. (AVELAR,

2010).

Na verdade, acreditamos que as duas definições apenas se aproximam da

complexidade vivenciada na prática, onde muitas vezes esses papéis se diferenciam ou se

aproximam, de acordo com projetos e contextos específicos e os diferentes habitus desses

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agentes. Retratam não só um campo de atuação em si, mas uma maneira de se ver, de se

posicionar e do que se tem para disponibilizar ao campo.

Parece-nos que a seleção de uma ou outra nomenclatura sinaliza outra questão

essencial para a compreensão dessa categoria profissional emergente. Em nosso ponto de

vista, as diferentes nomenclaturas falam das mutações e exigências do próprio campo, que

iniciou seu processo de desenvolvimento com ênfase no aspecto da realização e do fazer,

razão pelo qual se destacou o termo produção cultural. Campo que, gradativamente, assiste ao

surgimento de novos conhecimentos e demandas, assim como de novos postos de trabalho no

setor público e empresarial, que solicitam outro posicionamento do profissional, não mais

concentrado no fazer, mas também no saber. Exige-se hoje, além da ação e da intermediação

inerentes ao ofício do produtor, a reflexão e o planejamento, atributos consagrados ao gestor.

Assim, quando falamos das definições de produção cultural e gestão cultural, estamos falando

muito mais de um processo do que de uma atividade.

A dificuldade de definição de nomenclaturas, a ausência de uma tradição na

formação para o setor, o baixo reconhecimento social como profissão, a não formalização da

atividade como categoria profissional, a própria mobilidade e amplitude do campo contribuem

sobremaneira para que não haja, inclusive entre os mesmos profissionais, um consenso sobre

o que fazem e qual a nomenclatura apropriada. Observa-se a utilização de um e outro, numa

espécie de autodefinição com base na trajetória desenhada no próprio campo da cultura.

Diante do que já foi abordado, nos propomos a fazer um recorte no campo da

produção cultural, apesar de consideramos que um produtor cultural pode atuar de diversas

formas, organizando projetos eventuais ou permanentes, de iniciativa própria ou sob

solicitação de terceiros. Elegemos como objeto de estudo neste trabalho o termo produtor

cultural, para descrever o profissional que cria e executa projetos artísticos e culturais e que

não restringe sua atuação só no âmbito operacional, mas toma para si a responsabilidade de

concepção, planejamento, intermediação e mobilização de recursos para viabilizar a

execução de suas propostas.[grifo nosso].

Nessa definição, ainda que parcial por ser incapaz de dar conta da totalidade da

categoria, enfatizamos a capacidade intelectual e criativa do produtor de apresentar iniciativas

de relevância cultural e artística e sua condição de torná-las viáveis numa relação favorável de

custo benefício, com qualidade técnica, eficácia e eficiência.

Além de sua capacidade de conceber, ou seja, de interferir conceitualmente no

campo da cultura, domina as técnicas de planejamento e gestão de processos intangíveis e

tangíveis. Um profissional com habilidade para efetuar um rigoroso e detalhado planejamento

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que inclui a identificação de objetivos e processos, o dimensionamento de recursos (humanos

e materiais) e a organização das etapas, que serão percorridas assim como mecanismos de

acompanhamento e avaliação.

No entanto, além das técnicas de gestão, o produtor cultural deve ter ainda

habilidades relacionais e visão sistêmica, ao ter que assegurar todas as conexões necessárias à

realização de seus projetos, conciliando interesses, pessoas e cenários em prol da mobilização

dos recursos necessários à execução de suas propostas.

Acreditando no potencial de um projeto cultural ou artístico, possuem uma forte

capacidade de realizar, articular e negociar, assim como a condição de superar desafios para

possibilitar a realização dos empreendimentos a que se propõem. Movimentam o processo

cultural, criam projetos e dão forma e concretude às diversas iniciativas artísticas, numa

interface direta e permanente com a sociedade, artistas e poderes instituídos. Não são

necessariamente artistas e nem detentores de recursos financeiros, materiais ou políticos, mas

trabalham incansavelmente e, por vezes, anonimamente para criar as condições necessárias à

produção e à apreciação da Arte.

Priorizamos trabalhar nesta pesquisa com profissionais que, por meio de suas

produções, representam iniciativas surgidas no seio da sociedade, movimentando o campo da

cultura e atuando onde o Estado não consegue diretamente alcançar e que têm uma importante

colaboração no dinamismo cultural contemporâneo. Ou seja, utilizamos uma abordagem que

incorpora elementos das duas terminologias, ao priorizarmos como objeto de investigação

produtores que atuam na gestão de projetos produzidos por eles mesmos. Devido essa

perspectiva, em alguns momentos podemos utilizar as definições atribuídas ao gestor, para

ressaltar alguns aspectos também presentes no produtor.

A escolha da utilização do nome de produtor / produção cultural neste estudo

deve-se também por ser o nome mais utilizado no campo da cultura por aqueles profissionais

que labutam no mercado cultural em interface direta com as leis de incentivo [grifo nosso] e

as políticas públicas como um todo, objeto do nosso estudo. Ou seja, a incorporação e

aceitação da maneira como se denominam será priorizada. É importante registrar ainda que o

termo “produtor cultural” é também encontrado na Literatura para designar aquele que

produz, no sentido da criação, objetos ou obras de Arte. No entanto, apesar de reconhecermos

a pertinência da expressão, não será esta a acepção utilizada no presente documento.

O surgimento das políticas culturais no Brasil e a crescente importância que a

cultura tem assumido na sociedade atual, fazem com que os produtores desempenhem cada

vez mais um papel estratégico na interface das políticas públicas com a sociedade.

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Desse profissional, se esperam múltiplas competências e responsabilidades. Ao

apresentar o perfil do gestor cultural, José Marcio Barros destaca alguns atributos desejáveis:

[...] mediador entre a dimensão subjetiva e sensível da cultura e os seus

desdobramentos e interfaces... Antes de ser um especialista em conhecimentos e

práticas exclusivas e excludentes, é uma espécie de roteador de informações

alternativas e possibilidades dinâmicas de construção de cenários prováveis, mas

também de cenários utópicos... O gestor de hoje é um profissional da complexidade

da cultura (BARROS, 2008, p.111).

Atuando profissional e diretamente no aspecto da organização da cultura, cabe a

estes profissionais a responsabilidade de criar e/ou “tornar exequível” uma ideia, cuidando de

todas as etapas de que esta necessita para se tornar realidade, desde o planejamento até a

administração dos recursos humanos, técnicos e financeiros. São inúmeras providências para

projetos diversos que demandam, de acordo com suas características singulares, reflexões e

respostas imediatas num ambiente de tensão e mutação, com múltiplos interlocutores em

diálogo permanente.

O exercício da produção cultural apresenta características complexas, inerentes à

função de dar forma e administrar bens materiais e imateriais, desde a subjetividade e

peculiaridades inerentes ao processo criativo, até a gestão de fornecedores e serviços de uma

ampla cadeia produtiva em um ambiente de recursos financeiros (quase sempre) escassos.

As características da própria atividade ganham maior gravidade no embate com o

sistema de financiamento à Cultura no Brasil, que apresenta suas próprias inconsistências,

acentuando a difícil subsistência no campo e exigindo maiores desafios do produtor cultural.

É imprescindível que a organização da cultura seja percebida como uma atividade complexa

de administração em num campo dinâmico, plural, criativo e multifacetado.

Ao nos defrontarmos com as características que o campo da cultura assumiu na

sociedade contemporânea brasileira e na importância da organização desta para dar

concretude e efetividade às ações culturais, cabe aprofundar o estudo sobre o momento

organizativo atual da cultura no Brasil e suas possibilidades de contribuição efetiva no sistema

cultural vigente.

Ferreira, ao refletir sobre o papel desses agentes no sistema cultural de Portugal,

reforça sua importância destacando a denominação de “novos notáveis”, que Cláudia Madeira

(1999) confere a estes protagonistas da Cultura. Destaca ainda outro aspecto, que é o poder

simbólico conferido a estes produtores/intermediadores:

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Estes agentes desempenham então um papel duplamente vital no circuito cultural:

agilizam a ligação entre criadores e públicos, ao mesmo tempo em que concorrem

para os processos de construção e consagração das carreiras e das obras dos

criadores. A este duplo papel poder-se-á acrescentar um terceiro, que aparentemente

se manifesta de forma particularmente intensa nos mundos da arte e da cultura mais

mercantilizados e industrializados: o de interferirem substantivamente no processo e

nos conteúdos da criação e da produção cultural [...] (FERREIRA, 2002, p.4).

O autor amplia a percepção da relevância desses profissionais, ao destacar que sua

atuação, além de repercutir em programas de formação, qualificação e atração dos públicos

para a Cultura, atua diretamente no sistema de representações simbólicas, produzindo

instrumentos de integração e coesão, de partilha de sentidos e valores e identidade coletivas

capazes de criar novas configurações ou consolidar as já existentes. Assim, para ele:

O alargamento e a complexificação dos circuitos por onde transitam as artes e as

diversas formas de cultura e o seu permanente entrecruzamento com outros circuitos

de ação tornam, na verdade, o papel dos intermediários mais cruciais do que nunca e

merecedor de uma atenção sociológica mais abrangente, já que é da sua ação que

dependem, em larga medida, a natureza e os efeitos desses entrecruzamentos.”

(FERREIRA, 2002, p.6).

Apesar da centralidade do papel do produtor cultural, que possibilita a

“transmutação” do processo criativo individual para torná-lo um bem coletivo e das

crescentes responsabilidades e atribuições que assume no campo da cultura, seu ofício ainda

permanece envolto em desconhecimento e invisibilidade. Ainda hoje, essa não é uma

atividade reconhecida “de direito”, mesmo que seja “de fato”. Na Comissão Nacional de

Classificação – CONCLA, do Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão, a categoria

que mais se aproxima da produção cultural se encontra na Seção que trata de “Artes, Cultura,

Esportes e Recreação”, que prevê as atividades artísticas, criativas e de espetáculos e aquelas

ligadas ao patrimônio cultural e ambiental. Como pode se constatar, uma categorização

genérica e bastante abrangente.

No âmbito do Ministério do Trabalho, a atividade de produção cultural também

não se enquadra na listagem de profissões regulamentadas, sendo a que mais se aproxima

desta atividade é a de “Artista/Técnico em Espetáculos de Diversões”28

.

O Panorama Setorial da Cultura Brasileira, editado em 2012, com o objetivo de

retratar o cenário da Indústria Cultural brasileira por meio da perspectiva de seus atores,

revela dados interessantes sobre os produtores culturais de todo o País: 83,4% são

28

Norma Regulamentadora: Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978 - Dispõe sobre a regulamentação das profissões

de Artista e de Técnico em Espetáculos de Diversões e dá outras providências. Decreto nº 82.385, de 5 de

outubro de 1978 - Regulamenta a Lei nº 6533, de 24/05/1978

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representados por pessoas jurídicas; 86,2% utilizam o Mecenato como mecanismo de apoio

para captação de recursos; 89% dos produtores estão acima de 31 anos e 54% tem mais de 11

anos de experiência.

A importância que esse agente tem na dinamização do campo cultural, não

encontra correspondência na solidez de sua formação. Os produtores culturais mais

experientes, no âmbito da sociedade brasileira contemporânea, em sua maioria, aprenderam o

ofício na prática, uma vez que os primeiros cursos de graduação em produção cultural no

Brasil surgiram somente em 1996, sendo um na Bahia e outro no Rio de Janeiro. (CUNHA

2007; COSTA, 2011). Dados da pesquisa já citada mostram que 64% dos entrevistados se

tornaram produtores sem planejar, aproveitando uma oportunidade, e 47% ingressaram na

carreira forçados pela necessidade de viabilizar seus projetos artísticos. A pesquisa relata que

77% dos produtores têm formação superior, o que é um dado excelente, uma vez que segundo

o IBGE29

apenas 7,9% da população brasileira tem esse tipo de formação. No entanto, desse

total somente 1% tem formação em produção cultural e 66% vem da área de Humanas. Esse

dado retrata o longo caminho a ser percorrido no País para que a produção cultural se

consolide, como campo com saberes constituídos e atividade profissional estruturada. Os

dados também sinalizam a estreita ligação da atividade como conhecimento empírico e

intuitivo.

O documento mostra ainda que 86,6 % dos produtores culturais mencionam ter

renda individual acima de R$ 2.501,00, mas ressalta que 63% dependem de remuneração

advinda de outras atividades. Esse aspecto evidencia uma desconcentração na área de

atividade e sugere a subutilização de um potencial intelectual, criativo e organizativo

desperdiçado na gestão da cultura no Brasil.

Por fim, outro dado da pesquisa revela aspectos interessantes da atividade.

Quando indagados sobre sua própria autoimagem, os produtores se enquadram em cinco

perfis: 32% se consideram “idealistas”; 28% “desiludidos”; 18% “alienígenas”; 13%

“profissionais”; 9% “por acaso”, ou seja, aquele que atua na área por uma oportunidade. A

reflexão sobre esse resultado pode nos levar a considerações importantes acerca da produção

cultural no Brasil. O que significa considerar-se um “alienígena”? Ou praticar uma profissão

que o faça se sentir um ser diferente dos outros? Será o peso de sentir-se só e isolado? Que

profissão é essa que para exercê-la é necessário uma grande dose de idealismo? Uma

profissão que se institui por acaso, sem planejamento?

29Censo 2010.

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O que apreender de uma profissão recente, onde 28% dos seus quadros se

declaram desiludidos? Número que, somados aos que se consideram “alienígenas”, chega a

expressivos 46%. Ou seja, quase a metade do universo entrevistado sente algum tipo de

desconforto em relação à profissão. Esses resultados merecem uma reflexão mais aprofundada

sobre a condição em que a profissão se estabeleceu no Brasil.

Uma das primeiras questões a serem consideradas é a própria noção de

profissionalização que precisa ser relativizada, pois a atividade ainda não está regulamentada

e não possui sindicatos ou entidades fortes que a representem como categoria30

. Os

produtores, mesmo os pequenos empresários, trabalham em prol de suas iniciativas culturais

com o objetivo de viabilizar não só suas ideias, mas seu próprio sustento. Muitos trabalham

como prestador de serviço, em um mercado sazonal e frágil em sua base de sustentação, como

foi visto no capítulo que tratou do financiamento à Cultura no Brasil. Dessa forma, apesar de

já serem representados por pessoas jurídicas (o que denota certo grau de amadurecimento da

atividade), observa-se um elevado grau de insegurança e instabilidade em uma perspectiva de

futuro desses profissionais que, em sua maioria, não contam com um sistema de previdência,

nem de aposentaria e direitos trabalhistas.

Essas constatações nos remetem a algumas reflexões sobre a administração do

capital humano na contemporaneidade. Segundo Boltanski e Chiapello (2009), a partir dos

anos 80 a introdução do conceito de flexibilidade na nova organização do trabalho,

possibilitou transferir para os assalariados, subcontratados e prestadores de serviço o “peso

das incertezas do mercado”. Passa a ser cada vez mais utilizada a mão de obra maleável, na

forma de empregos precários, temporários e autônomos; contratados por temporadas, jornadas

ou horas. No caso dos produtores, por projetos. Esse caráter da atividade profissional do

produtor é fortemente estimulado pelo sistema de financiamento à Cultura, base de

sustentação do mercado e de seu campo de atividade, que se ancora como já vimos nas leis de

incentivo e editais.

Como a possibilidade de uma atuação profissional no campo da produção cultural

é recente, nasce diretamente imbricada com essa nova cultura gerencial, que é coordenada por

determinados valores econômicos, que migraram para outros domínios da vida social e

“ganharam um forte poder normativo, instituindo processos e políticas de subjetivação que

30 Existe uma entidade intitulada Associação Brasileira de Produção Cultural – ABPC - que nasceu da iniciativa

de um grupo de profissionais graduados em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense. Apesar de

ter o objetivo de atuar em prol dos trabalhadores da cultura, não tem ainda penetração em âmbito nacional.

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vem transformando sujeitos de direito em indivíduos-microempresas – empreendedores”.

(GADELHA, 2009, p.144). Segundo o mesmo autor:

[...] é esse mesmo indivíduo que se vê induzido, sob essa lógica, a tomar a si mesmo

como um capital, a entreter consigo (e com os outros) uma relação na qual ele se

reconhece (e aos outros) como uma microempresa;e, portanto, nessa condição, a ver-

se como entidade que funciona sobre o imperativo permanente de fazer investimento

em si mesmo – ou que retornem, a médio e/ou longo prazo, em seu benefício – e a

produzir fluxos de renda, avaliando racionalmente as relações de custo/benefício que

suas decisões implicam. (GADELHA, 2009, p.149).

Boltanski e Chiapello reiteram essa visão, ressaltando que até a década de 60

cabia às empresas produzir riqueza e ao Estado assegurar que essas fossem distribuídas aos

cidadãos. Com o advento de uma moderna gestão empresarial, pós-industrial, criaram-se

novas concepções que repercutiram diretamente na organização do trabalho. Espera-se, nesse

novo regime, que um trabalhador que seja capaz de se agenciar, de utilizar todas suas

capacidades humanas para desenvolver-se plenamente. O trabalhador (que agora passa a ser

um colaborador) é seduzido pela “perspectiva de trabalhar para um projeto interessante, que

valha a pena, coordenado por uma pessoa excepcional, cujo sonho vai ser compartilhado”.

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.122).

Criam-se assim novas formas de estímulo para substituir as carreiras hierárquicas,

que serão substituídas por uma sucessão de projetos. Segundo Boltanski e Chiapello:

As pessoas não farão carreira, mas passarão de um projeto a outro, pois o sucesso

em dado projeto lhes possibilitará acesso a outros projetos mais interessantes. Como cada projeto dá oportunidade de conhecer novas pessoas, há a possibilidade de ser

apreciado pelos outros e, assim, poder ser chamado para outro negócio. Cada

projeto, diferente, novo e inovador por definição, apresenta-se como uma

oportunidade de aprender e enriquecer competências que se tornam trunfos na busca

de outros contratos. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 125).

Assim se constitui a atividade da produção cultural, onde nem bem se executa um

projeto, já se tem que viabilizar o próximo. O produtor se encontra imerso em um enorme

campo de possibilidades, de redes e contatos, de atores cuja matéria-prima é inesgotável e o

produto, sempre um vir a ser. O sistema de financiamento à Cultura não lhe oferece garantias

e as políticas públicas não contemplam iniciativas que assegurem sua “proteção”.

A própria natureza mutável e intangível da Cultura e a ausência de políticas que

garantam sustentabilidade da atividade evidenciam essa nova cultura gerencial. É, pois, uma

atividade que se vem se configurando como profissão no centro dessa perspectiva do

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trabalhador / empreendedor, onde, como dizem comumente os produtores, “é preciso matar

um leão por dia”. No dizer de Gorz:

A pessoa deve, para si mesma, tornar-se uma empresa; ela deve se tornar, como

força de trabalho, um capital fixo que exige ser continuamente reproduzido,

modernizado, alargado, valorizado... Ela deve ser sua própria produtora, sua própria

empregadora e sua própria vendedora. (GORZ, 2005, p.23).

Para dar conta dessa tarefa de produzir-se como agente competitivo e portador de

boas ideias, o produtor precisa apresentar qualidades de comportamento “expressivas e

imaginativas”, onde não conta só sua inteligência, saber e atitudes, mas suas relações e a

capacidade de se viabilizar e permanecer inserido no campo. Desempenho esse, cuja

performance será avaliada também por meio da implicação subjetiva do produtor, por sua

motivação e envolvimento nos projetos que realiza, pois, como diz Gorz, os trabalhadores

pós-fordistas devem entrar no processo de produção com toda a sua bagagem cultural.

No caso dos produtores, muito mais deve ser dado, como trabalha com cultura,

lazer e entretenimento, muitas vezes atua no horário comercial para viabilizar seus projetos e

nas noites, fins de semana e feriados para acompanhá-los. É necessária sua disponibilidade

integral (física, psicológica, pessoal e às vezes até financeira) em prol dos projetos. Essa

demanda incessante chega ao ponto de uma indefinição sobre o que é pessoal e profissional,

ambos são um só, como descrito:

Doravante, não nos é mais possível saber a partir de quando estamos do lado de fora

do trabalho que somos chamados a realizar. No limite, não é mais o sujeito que

adere ao trabalhado; mais que isso, é o trabalho que adere ao sujeito. (COMBES;

ASPE apud GORZ, 2005, p.22).

Todos esses aspectos somados elucidam parte da fala dos produtores ao destacar

altas doses de idealismo para o exercício da atividade e sinais de desânimo e solidão

apontados na pesquisa. Sabemos que essa nova concepção de trabalho está inserida em um

contexto global, abrangendo várias profissões, mas é inegável que na atividade da produção

cultural se apresenta de forma mais contundente, por todos os motivos já explicitados. Para

tanto, é necessário avançar no estudo de como essa atividade vem se configurando no País nos

anos recentes.

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3.3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A PRODUÇÃO CULTURAL NO BRASIL

No Brasil, como pudemos observar, a profissionalização no campo da organização

da cultura ainda é recente, seja ela feita por produtores ou gestores. É também uma atividade

que precisa ser mais bem compreendida em sua função social. Dentre tantos pontos que

merecem ser aprofundados, destacaremos aqui a investigação sobre como os produtores

culturais se relacionam com políticas públicas de cultura e como estas têm afetado o

desenvolvimento e as conformações desse campo.

Faremos um esforço aqui de relacionar o desenvolvimento da atividade da

produção cultural com as políticas públicas de cultura no Brasil, com ênfase naquelas

relacionadas à questão do financiamento por entender, como já foi dito, que estas é que

assegura a condição de viabilidade dos projetos culturais, razão de ser da própria atividade.

Nos governos autoritários de Getúlio Vargas (1930-1945) e (1951-1954) e do

Regime Militar (1964-1985), observamos nesses dois períodos na cultura política brasileira a

dificuldade de viabilização de artistas e intelectuais fora do espaço institucional dominante.

Segundo Barbalho, ao tratar da cultura no Estado ditatorial de Vargas, “em um mercado de

bens simbólicos pouco desenvolvidos, os produtores culturais31

tinham que fazer valer essa

intimidade com os homens públicos para conseguir sinecuras e patrocínio e continuar

produzindo”. (BARBALHO, 1998, p.47).

Barbalho continua sua argumentação, afirmando que o estado autoritário se

utilizava de alguns mecanismos de controle, que iam desde a censura propriamente dita, até a

negação de disponibilização de recursos financeiros para determinadas produções. Em

períodos de maior desgaste político, também se observava um incremento do investimento na

cultura e a busca de maior aproximação e diálogo com a sociedade civil.

A relação entre artistas e produtores culturais com o Estado nos governos

autoritários é marcada por tensões e oscila entre momentos de cooptação na forma de

obtenção de empregos e troca de favores até momentos de rejeição aos circuitos oficiais,

criando-se alternativas de produção cultural “marginais, alternativas e independentes”

acentuadamente no final da década de 60 e 70. Segundo Barbalho, “A relação Estado-Cultura

no Brasil foge a qualquer olhar reducionista ou simplista, e traz a marca da contradição”.

(BARBALHO, 1998, p.91).

31 O autor, quando se refere a produtores culturais, está incluindo nessa categoria artistas e criadores.

Utilizaremos a expressão do autor, pois entendemos que muitas vezes esses atuavam como mobilizadores de

recursos ou se associavam a terceiros para a realização de seus projetos.

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É preciso lembrar que nas relações entre política e mercado cultural as contradições

nem sempre se manifestam de forma antagônica. A intenção de enfrentar o autoritarismo militar, com suas estratégias e dispositivos de controle, censura,

manipulação, esbarrou em mecanismos de dependência das benesses estatais por

parte dos artistas, intelectuais e profissionais de comunicação e da cultura. (PORTO

ALEGRE, 2006, p.18).

Nesse contexto, no campo cultural também se observam outros componentes da

cultura política brasileira: a alternância de interesses de acordo com distintos governos;

políticas públicas de cultura alinhadas com afinidades artísticas pessoais dos gestores;

utilização de círculos de amizade pessoal na obtenção de favorecimento/apoio a projetos

culturais; e o estabelecimento de uma relação de submissão e dependência, que perdurou

durante muitos anos no Brasil e ficou conhecida como “cultura de balcão”. O Estado dava um

pouco para (quase) todos, comprometendo aqueles que recebiam as benesses com gratidão e

um silencioso consentimento.

Nessa época, observava-se também uma atividade de caráter mais “artesanal”. As

produções eram feitas a um custo acessível e contava-se, além do apoio de instituições

públicas, com a rede de relacionamentos dos artistas e produtores. Os orçamentos não eram

onerosos e o custo era viabilizado por meio de pequenos apoios, contrapartida de serviços e

adesão e voluntariado de muitos. A possibilidade de remuneração (e, dificilmente, de lucro)

consistia basicamente na venda de ingressos ou produtos.

Todas essas relações marcaram a atuação dos produtores no campo da

organização da cultura, contribuindo para o estabelecimento de práticas amadoras, cenários

instáveis e uma relação de submissão com o poder instituído. Relações que, de alguma forma,

ainda permeiam o imaginário e a vivência dos produtores culturais, que se confrontam

cotidianamente com crescentes necessidades de autogestão, solicitada pelas leis de incentivos

e editais, e que coexistem com uma forte dependência do Estado, instituição responsável pelo

aval final nas principais fontes de recursos no sistema de financiamento à Cultura no Brasil.

A redemocratização trouxe novas configurações sociais e sucedeu-se um período

de importantes mudanças nas políticas sociais, como o pacto federativo, onde se observou

uma perspectiva de participação gradativa da sociedade civil. No entanto, as diversas crises

envolvendo a tentativa de resolução das mazelas econômicas e sociais que afligiam o Brasil

impactaram também nas políticas públicas da cultura.

A gestão institucional da cultura atravessou um cenário de instabilidade, com a

posse de 10 gestores da cultura em apenas três mandatos presidenciais, entre 1985 a 1995

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(José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco). Ficaram como importantes marcos dessa

época a criação do Ministério da Cultura (1985), o surgimento da primeira Lei de Incentivo à

Cultura no Brasil (1986), na gestão de Celso Furtado (1986 a 1988), à época Ministro da

Cultura de José Sarney, e a extinção de diversos órgãos da cultura na gestão do presidente

Collor (1990)32

.

A implantação de uma Lei de Incentivo à Cultura introduziu uma ruptura com o

modelo vigente de financiamento às artes ancorado no Estado, sendo agora pretensamente

substituído pelo mercado. A maior contradição, no entanto, consistia em dar autonomia às

empresas para definir os projetos de seu interesse, quando, na verdade, a verba oriunda da

renúncia fiscal continuava a ser pública (RUBIM, 2007). Essa fragilidade não ofusca os

significados da lei, visão corroborada por Rosa Furtado, partícipe do momento:

O contexto era adverso, mas não foram poucas as realizações [...] A mais inovadora

foi a elaboração da primeira legislação brasileira de incentivos fiscais à cultura... A

lei apelava para a parceria com o empresariado no financiamento de projetos

culturais e, em troca o governo abria mão de parcelas do imposto de renda devido.

Isso que hoje é moeda corrente há 25 anos era uma novidade. [...] Ou seja, a ideia

era que a sociedade civil assumisse as propostas culturais da própria comunidade,

arcando com o financiamento dos recursos [...]Afinal, o espírito da lei era,

justamente, devolver à sociedade a iniciativa cultural, sair do paternalismo que

prevaleceu no Brasil no passado. (FURTADO, 2012, p.14).

A Lei Sarney, como ficou conhecida, teve curta duração33

, mas guarda o mérito de

apresentar aos produtores culturais outras possibilidades de financiamento, com o ingresso de

novos atores (empresários e contribuintes) e apontar para a atenuação da relação de

dependência direta do Estado, apesar dos recursos continuarem sendo públicos. Estimulou

também a necessidade de mais organização e novas competências dos agentes da cultura.

Celso Furtado, em sua curta permanência no Ministério (1986-1988), plantou

algumas bases importantes o campo cultural no Brasil, como a compreensão da dimensão da

cultura em seu processo produtivo, e não apenas como produtora de bens simbólicos; a

necessidade de diagnósticos com a contratação da primeira pesquisa do setor34

, feita pela

Fundação João Pinheiro; e a busca da valorização da arte e da criatividade do povo brasileiro

32 Funarte, Embrafilme, Pró Memória, Fundacem, dentre outros. 33A Lei Sarney foi revogada em março de 1990, depois de sofrer inúmeras críticas por não contemplar

mecanismos estruturados de controle e fiscalização das verbas financiadas. 34Diagnóstico dos investimentos em cultura no Brasil – Fundação João Pinheiro. Faz um levantamento e uma

análise dos gastos realizados com cultura pelos poderes públicos federal, estadual e municipal das capitais dos

Estados, ao nível das administrações direta e indireta, no período de 1985 a 1995/97.

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nos projetos e programas ministeriais. (MAGALHÃES, 2012). Outro aspecto importante na

gestão de Celso, segundo Magalhães, é que ele:

Propunha, até mesmo, a ampliação da presença do Estado em determinadas áreas,

em confronto com as teorias neoliberais que, naqueles anos, apoiavam medidas de

enfraquecimento do Estado, revigoradas pelo impacto das ideias de Margaret

Thatcher, cujo modelo de governo era copiado pelo mundo afora, com significativa

aceitação no Brasil, principalmente pela imprensa. (MAGALHÃES, 2012, p.180).

As teorias neoliberais35

tiveram seu ápice no Brasil na gestão de Fernando

Henrique Cardoso (1995-2002), período onde a administração era pautada pela pretensa

eficiência do gerenciamento público. Na nova ordem, o Estado deveria se ater exclusivamente

à política social, estimulando a privatização e investimentos econômicos do setor privado.

Esperava-se das instituições públicas autonomia financeira e administração voltada para

resultados, semelhantes a uma lógica empresarial.

Essa filosofia teve um impacto direto na área cultural. Durante o governo de FHC,

as políticas públicas estiveram sob a égide do mercado, atingindo seu ápice com um esforço

de divulgação e incremento na utilização da Lei Rouanet, dispendendo esforços para aumentar

sua adesão por parte das grandes empresas e estatais. A nova política cultural priorizava o

patrocínio cultural e o empoderamento da esfera privada. O crescimento do mercado cultural

e a visão da Cultura como negócio foram algumas das heranças da gestão Fernando Henrique

Cardoso, conforme descreve Leonardo Brant (2009), ao afirmar que nesse período o Estado se

tornou cada vez mais diminuto, cuidando apenas do aparato burocrático do funcionamento do

mecanismo da Lei, cabendo às empresas privadas a definição de que projetos culturais

deveriam ser financiados ou não, associando a realização de um trabalho artístico a uma

adequação ao mercado. A Lei Rouanet foi o grande instrumento de política pública da gestão

de FHC.

O modelo de captação de recursos com base na renúncia fiscal inspirou a criação

de novos mecanismos de financiamento em estados e municípios brasileiros, que, por sua vez,

estimulou o surgimento e profissionalização do campo da produção cultural em outras regiões

do País. Observou-se também a realização de iniciativas artísticas de maior porte, antes

35 Concepção segundo a qual o mercado deveria servir como base de organização da sociedade, formulada

neoliberal formulada em 1947 por Friedrich August Von Hayek, tendo sua expansão nos governos de Margareth

Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (Estados Unidos), a partir dos anos 1980. Segundo sua concepção, o

Estado deve restringir sua responsabilidade social, relegando ao mercado e às empresas privadas parte dos seus

encargos. O neoliberalismo propõe uma desregulamentação da economia (controles públicos menos rígidos das

atividades econômicas), a privatização das empresas estatais como as usinas de energia, as indústrias de base, a

construção e administração de estradas, a administração de portos e até parte de setores de fundamental interesse

público como saúde e educação. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/>.

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concentradas dos centros urbanos nacionais, em outros estados e pequenos municípios.

Ampliaram-se as relações de troca e de poder no campo da produção cultural. Albino Rubim

aborda esse processo, afirmando que:

A partir dessa revirada (criação das leis de incentivo) começa a predominar no Brasil

aquilo que vamos chamar de produtores culturais. As primeiras leis de incentivo não

previam isso, mas a reforma da Lei Rouanet passa a prever os intermediários

culturais que, na verdade, é outro nome para falar dos produtores culturais.

Começamos a ter, a partir de então, uma dominância no campo da organização da

cultura dos produtores culturais. Isso é uma singularidade brasileira. (RUBIM, 2008,

p.102).

Neste contexto, se observa de forma mais estruturada o surgimento de uma nova

categoria profissional no Brasil: os produtores culturais. Originalmente, no Art. 28 da Lei

Rouanet, previa que nenhuma aplicação dos recursos poderia ser feita por meio de qualquer

tipo de intermediação e ressaltava, no parágrafo único, que a contratação de serviços

necessários à elaboração de projetos para obtenção de doação, patrocínio ou investimentos

não se configurava como intermediação.

Em 1997, a medida provisória nº 1.589 alterou o transcrito parágrafo único, que

passou a declarar que a contratação de serviços necessários à elaboração de projetos para a

obtenção de doação, patrocínio ou investimento, bem como a captação de recursos ou a sua

execução por pessoa jurídica de natureza cultural, não configura a intermediação referida

neste artigo36

. Essa Medida Provisória foi reeditada várias vezes e finalmente convertida na

Lei nº 9.874/1999. Assim, passa a constar na Lei Rouanet a figura do intermediário cultural,

um profissional autorizado a captar recursos e a menção a atividade de elaboração do projeto.

O reconhecimento de uma atividade de intermediação por parte do Ministério teve uma forte

carga simbólica e, ainda que por via de uma definição limitada, contribuiu para que o produtor

cultural começasse a perder sua condição de “invisibilidade”.

Em cartilha37

produzida para estimular a cultura do mecenato, o MinC mostra o

reconhecimento do papel dos agentes culturais – produtores, agências de propaganda,

consultores, etc – e aceita a inclusão no orçamento dos projetos dos custos de captação,

divulgação e elaboração de projetos. Posteriormente, em 2012, o MinC publica outro

36

Redação dada pela Lei nº 9.874, de 1999. 37 Cartilha intitulada “Cultura é um bom negócio” lançada no governo Fernando Henrique Cardoso, direcionada

aos empresários com o objetivo de apresentar aos empresários as vantagens do investimento em cultura por

meio do mecanismo de incentivo público.

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documento38

, contendo uma planilha com o indicativo de preços de “mão de obra” da área

cultural para subsidiar a elaboração dos orçamentos de projetos apresentados na Lei Rouanet,

onde já constam 161 atividades profissionais envolvidas na cadeia produtiva da cultura,

incluindo somente 06 tipologias de produtores.

Segundo depoimento de Mequita Andrade, coordenadora da Lei Rouanet na

Secretaria de Livro e Leitura do Ministério da Cultura, no início da implantação do

mecanismo de incentivo, houve certo constrangimento por parte do Ministério em tratar, no

âmbito da Lei Rouanet, da remuneração dos profissionais emergentes:

[...] assim foi nascendo uma nova categoria de profissionais: produtores culturais, analistas de projetos, restauradores e captadores. Os captadores, por exemplo, eram

pessoas que tinham entrada nas empresas e que, pela própria lei, tinham direito a

uma remuneração equivalente a 10% dos investimentos. Isso causava certo

desconforto, pois existiam projetos milionários, como os da área de restauro do

patrimônio. Alguns ajustes, ainda na gestão de Weffort, foram feitos, mas o volume

era demasiado grande e havia pouco dinheiro para realizar as mudanças de forma

rápida e democrática. Para contornar a questão, estabelecemos um teto de R$ 100

mil para o captador. (ANDRADE, 2011, p.48).

Em 2013, outra alteração39

na Lei explicita que a “captação de recursos será

realizada por profissionais contratados para este fim ou pelo próprio proponente, cujo valor

será limitado a cem mil reais ou a dez por cento do valor do projeto” e aceita que o

proponente seja remunerado com recursos decorrentes de renúncia fiscal, desde que preste

serviço ao projeto, discriminado no orçamento analítico. Muitas vezes, o proponente é o

próprio produtor e essa será sua remuneração. Esses exemplos mostram como uma dose de

indefinição, invisibilidade e constrangimento sempre permearam a relação destes

profissionais com as leis de incentivo.

Mesmo com a ausência de política mais claras relacionadas aos produtores

culturais, as leis de incentivo dinamizaram o setor e promoveram a profissionalização e o

aumento da oferta de iniciativas culturais, que acarretaram transformações no campo da

cultura criando novas rotinas, práticas e saberes. Instaurou ainda a busca por projetos de

excelência e acentuou antigas desigualdades culturais, sociais e territoriais brasileiras, ao

favorecer projetos com maior visibilidade e/ou realizados na região sudeste do País. Sentia-se

a nova atmosfera da cultura, mas o acesso aos grandes patrocinadores da Lei Rouanet ainda

não tinham chegado com mais intensidade ao Ceará.

38Lista de mão de obra elaborada pelo MINC e Fundação Getúlio Vargas – FGV com indicadores de valores da

cultura, disponível no site <http://www2.cultura.gov.br/site/2012/05/16/indicadores-de-precos-da-cultura-2/>. 39Instrução Normativa Nº 01, de 24 de junho de 2013.

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Vivia-se a crença em um movimento de renovação política e gerencial, que ficou

conhecido como Período Mudancista, com os governos de Tasso Jereissati e Ciro Gomes

(1987-2002). No âmbito da cultura, assistia-se no Estado o prestígio dessa pasta, a realização

de projetos de grande porte, a reforma e construção de equipamentos culturais, a valorização

da cultura local, investimentos na indústria audiovisual e a criação da lei estadual de incentivo

à Cultura.

A possibilidade de novas fontes de financiamento; a valorização de projetos e

eventos com visibilidade e apelo “comercial ou institucional”, que despertassem o interesse

das empresas investidoras; a busca por padrões de “excelência” técnica e artística; e as

competitividades entre os projetos em um mercado ainda incipiente alteraram as relações no

campo da cultura e exigiu dos produtores um esforço acentuado para se enquadrar nos novos

padrões da política cultural brasileira.

Os produtores culturais sentiram a necessidade de aprimorar sua qualificação e se

capacitar para ingressar no novo “mercado da cultura”. Com formação autodidata, em sua

grande maioria, tiveram que aprender rápido para aprimorar discursos e incorporar técnicas

gerenciais de forma a provar aos investidores que seus projetos eram “viáveis e competitivos”

e que “trariam bons resultados” à empresa apoiadora.

O Estado viveu também seus primeiros passos no que pode ser considerada uma

política de formação na área com a criação do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura.

Segundo o ex-secretário Paulo Linhares40

(1993-1998), criador do projeto, a ideia deveu-se a

seu entendimento de que o Ceará precisava de uma escola de cultura que criasse uma geração

de novos profissionais e técnicos, além de investimentos na gestão cultural. A intenção não

era só ter gestores, mas “criar uma compreensão da importância cultural”. Foi imbuída desse

espírito que a Secult ofereceu, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas – FGV, um curso

de 72h/a intitulado “Administração da Cultura”, repassando para os aspirantes à carreira de

produção e gestão cultural, os primeiros preceitos da nova atividade.

A política de financiamento pautada na Lei Rouanet inaugura uma profunda

mudança ao campo da cultura. Segundo Olivieri, os produtores ou artistas proponentes que

pleiteavam esse benefício fiscal passaram a sentir a necessidade de novos conhecimentos que

iam muito além do fazer artístico. Para ela, “a formação e a capacitação artísticas não são

suficientes e não garantem a sobrevivência no processo de aprovação e realização de

40 Depoimento registrado no livro 40 anos da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará 1966 – 2006. A história

da Secult por seus secretários. (SANTOS, Fabiano; SILVA e GUEDES, Mardonio - Orgs). Coleção Nossa

Cultura, p.70.

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projetos”. (OLIVIEIRI, 2004, p.128). Os procedimentos necessários para atender as inúmeras

solicitações do Ministério e demais secretarias estaduais, dependendo das instituições

demandadas, acabam por requerer um gasto de tempo excessivo no projeto que, após passar

por essa etapa, ainda tem que vencer o desafio da captação, onde o projeto cultural, além de

atender a diversos pré-requisitos legais, precisa estar em conformidade com os interesses da

empresa. Segundo Olivieri, “esse conceito criou vários cursos, palestras e livros (apostilas)

explicando várias formas de empacotar o projeto cultural para que ele atenda às necessidades

de comunicação das empresas.” (OLIVIERI, 2004, p.135). [não posso alterar citações]

Isso, sem falar das inúmeras estratégias, tempo e recurso despendido para ter

acesso aos setores de marketing ou comunicação das possíveis empresas com potencial de

investimento. Na verdade, o desconhecimento da lei de incentivo era grande. As empresas

possuíam potencial de patrocínio restrito, sendo, em sua maioria, localizadas na região

sudeste, o que exigia grandes esforços por parte dos produtores culturais de outras localidades

do país para despertar o interesse sobre suas iniciativas.

O alarmante descompasso entre a demanda de patrocínio e a disponibilidade de

verba, agravado pelo número restrito de fontes de financiamento, criou concorrência

entre os produtores culturais na obtenção de patrocinadores [...] dessa forma, o

proponente que, para a aprovação de seu projeto junto ao Ministério da Cultura,

deveria ter no primeiro momento, capacitação para o desenvolvimento de objetivos,

fundamentos, metas, orçamentos, controle financeiro e obtenção de documentos, deverá na segunda fase (captação), cumular as funções de empacotador de seu

projeto de acordo com as teorias de comunicação e marketing, bem como de acordo

com o balanço da empresa e das estratégias de mercado. (OLIVIERI, 2004, p.153).

É importante destacar o aspecto de que os produtores culturais já se forjaram

como categoria profissional em um cenário de disputa por obtenção de patrocínios, que se

manifestava na forma de concorrência por verbas, prestígio e visibilidade para seus projetos.

Essa, com certeza, é uma importante característica na conformação do campo da produção

cultural no Brasil.

Às disputas e tensões do mercado se somavam também a necessidade de

atendimento de múltiplas expectativas e ao incremento constante nos projetos, de forma que

esse se destacasse no mercado cultural, trazendo outras implicações e conformações ao

processo, em consonância com a política neoliberal de estímulo ao empreendedorismo,

concorrência e maximização de resultados.

O produtor ou é um super-homem, com várias habilidades e competências, ou

deverá contratar profissionais que o auxiliem no caminho. Os profissionais ainda são

poucos e nem sempre se habilitam a trabalhar em função do sucesso na obtenção de

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patrocínios. Ademais, os profissionais, de acordo com as próprias regras de

mercado, agrupam-se ao redor de projetos maiores e mais fáceis de serem aceitos

pelo mercado [...] (OLIVIERI, 2004, p.53).

Observa-se uma maior possibilidade de êxito para aqueles que estão associados a

projetos com viabilidade financeira ou de interesse comercial, o que se configura como uma

deformação no sistema cultural, uma vez que exclui desse leque projetos com caráter

experimental, polêmicos ou sem grande poder de visibilidade. Olivieri aponta ainda outro

aspecto crucial, por vezes despercebido, que pesa sobre o ombro do produtor, nesse

emaranhado de relações que ocorrem no campo da cultura entre artistas, produtores, poder

público e empresas patrocinadoras: “o Estado passou para o produtor e/ou artista a

responsabilidade de obter recursos e, portanto, a culpa na hipótese de insucesso”. (OLIVIERI,

2004, p.53).

Foi com esse peso em seus ombros e a responsabilidade de abrir caminhos e criar

condições de garantir a sustentabilidade de seus projetos, e ainda se adaptando aos padrões e

demandas, que os produtores culturais assistiram ao surgimento de novas e profundas

transformações no mercado: o início do governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, e,

com ele, a valorização de novos símbolos culturais e políticos, que vieram acompanhados de

uma crescente complexificação do campo da cultura no Brasil.

Maquiavel (1999), no início do século XVI, já trazia em O Príncipe

recomendações sobre a condução atenta que um governante deve ter para manter seu poder,

em tempos de guerra e paz. Apontava como atributos importantes para um bom governo,

dentre outros, a necessidade de consideração dos "costumes / modos de ser" de um povo

subjugado; a permanência da conquista pela "amizade / estima"; a observação da "memória"

de um povo e a importância que ele dá à noção de liberdade e à necessidade do favorecimento

às artes em seu reinado. Seus conselhos, que continuam atuais, reforçam a existência de

imbricadas e complexas relações entre cultura e poder.

Essas recomendações nos auxiliam a perceber a dimensão simbólica e política dos

discursos e pronunciamentos de Gilberto Gil41

, quando esteve à frente do Ministério da

Cultura – MinC (2003-2008) e, posteriormente, de seu sucessor Juca Ferreira (2008-2010),

quando afirma, na época, que o novo governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-

2010) representa uma “mudança estratégica e essencial, que mergulhe fundo no corpo e no

espírito do País” e continua enfatizando o papel das políticas culturais do governo como

41 Discurso proferido na Solenidade de Transmissão do Cargo. Brasília, 02 de janeiro de 2003. Disponível em:

<http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u44344.shtml>.

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“parte do projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso País [...] e que deverá

permear todo o governo, como uma espécie de argamassa de nosso novo projeto nacional”.

Essa perspectiva inédita possibilitou uma retomada do papel intervencionista do

Estado e a reestruturação institucional do Ministério da Cultura (MinC), que criou secretarias

e programas para atender às novas áreas culturais, por meio de processos de construção de

políticas culturais mais democráticas. A Cultura passou a ser percebida e publicizada como

importante instrumento de inclusão social, cidadania e desenvolvimento. A ênfase saía do

mercado - o que até então prevalecia na política cultural brasileira - para o social, com

programas e ações direcionados a todos os “cantos e recantos do Brasil”. Embora o uso do

conceito “antropológico” de cultura e a valorização da diversidade cultural não seja uma

novidade histórica nas políticas culturais no Brasil, agora se apresenta de forma mais

sistematizada em um conjunto de ações e programas políticos.

As políticas culturais sofreram também influências da mundialização, da

internacionalização dos mercados, da complexificação das relações sociais e da nova

conjuntura política com o fortalecimento de países emergentes, onde se destacou o Brasil.

Também trouxeram significativas contribuições ao processo de construção da nova agenda

cultural, instituições externas, principalmente a Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO. Por meio de convenções internacionais,

indicaram ainda novos parâmetros e perspectivas para as políticas públicas, dando prioridade

a conceitos de desenvolvimento social, diversidade cultural e preservação do patrimônio

material e imaterial.

Nesse período, o governo brasileiro se destaca pela criação da Secretaria da

Identidade e da Diversidade Cultural (SID/MinC), responsável por fomentar políticas para a

diversidade cultural brasileira. Alguns programas buscaram sistematizar a atuação do

Ministério em nível nacional, descentralizando e ampliando o apoio do MinC às instituições e

grupos culturais de todo o País, como o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania

-Cultura Viva42

, criado 2005, por meio da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural

(SCDC/MinC).

Foi com essa missão ampla e complexa que o Ministério da Cultura, na gestão de

Gil e Juca, estabeleceu uma importante fase da história da política cultural contemporânea no

42O Programa Cultura Viva, por meio dos editais do Ponto de Cultura, privilegia o investimento público direto

nos projetos da sociedade civil, que tem como foco primordial promover a acessibilidade à cultura – produção,

fruição, difusão – e inclusão de novos agentes no atendimento das políticas culturais, sem restrição de segmento,

expressão cultural, condição social ou posição geográfica. Funciona, desse modo, como o principal fomentador

da diversidade de expressões culturais brasileiras. (IPEA, 2011).

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Brasil. Durante esse período, o MinC trabalhou para: atuar na formulação e execução do que

seria a base de políticas públicas para o setor; na reforma administrativa e nos marcos legais;

na criação de diversos programas e projetos; na ampliação do seu campo de atuação por meio

de uma visão antropológica, cidadã e econômica da cultura; na inclusão de novos atores no

campo da cultura; na abertura de canais de diálogo com a sociedade; e na inserção da pauta da

cultura brasileira na agenda política nacional e internacional do País. As políticas almejavam

ampliações não só territoriais, mas também sociais, simbólicas, políticas e culturais.

Esses novos modelos e discursos aconteceram em paralelo ao pleno

funcionamento da Lei Rouanet, que enfrentou um intenso debate sobre a necessidade de

reforma43

. O governo Lula propôs, pela primeira vez, uma revisão pública para corrigir as

suas deficiências e limitações. Como resultado de fóruns públicos, a proposta de mudança

pretende corrigir antigas distorções do programa, de forma a aferir mais peso político e

recursos financeiros ao Estado, diminuir as desigualdades regionais, estimular a inserção de

novos atores, dentre outros. Processo criticado por Sarkovas:

O Ministério da Cultura de Gilberto Gil esforçou-se para realizar mudanças que

mantenham tudo como está. Cheio de ambição e bons propósitos, mas sem nenhum

plano estratégico e de ação, desencadeou em diversas cidades do País um “processo

democrático” de consultas ao qual deu o nome de “Cultura para Todos” para

“aprimorar” a Lei Rouanet. Embrenhou-se num cipoal de pressões localizadas que

arrastaram o final do processo e não apontaram para nenhuma solução estrutural. Fez de conta ser possível evitar o desabamento de um edifício com problemas no

alicerce mudando as regras do condomínio e as pastilhas da fachada. (SARKOVAS,

2011, p.55).

Como alternativa de financiamento à Cultura, como já citado, o governo Lula

também foi responsável pela criação de uma política de editais, com objetivo de estimular

segmentos culturais estabelecidos como prioritários pela nova política cultural do governo.

Enquadram-se nessa categoria projetos na área de cultura Afro-Brasileira; Identidade e

Diversidade; Patrimônio Imaterial; Economia Criativa; Educação e Cultura; Intercâmbios

Culturais com países da América do Sul e da Lusofonia; Produções Culturais em

Comunidades Indígenas e Territórios com Baixos IDHs; Cultura LGBT; Culturas

Tradicionais e Populares, entre outros. (SALGADO et al RUBIM, 2010). Editais que, apesar

de atenderem a uma demanda de interesse do Estado, também são criticados pelo excesso de

burocracia e direcionismo.

43 Proposta de reforma no sistema de financiamento da cultura, com debates públicos nacionais visando à

construção de uma Lei que dê conta das novas demandas, conhecida como Procultura, atualmente em tramitação

no Congresso Federal.

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Ainda no governo Lula, promoveu-se um esforço de estimular a participação da

sociedade civil na construção das políticas públicas de cultura. Nessa perspectiva é que se deu

a elaboração de um Plano Nacional de Cultura44

e de um Sistema Nacional da Cultura, que

consistiu no empenho por parte do Ministério de implantar um sistema de gestão integrado

entre as políticas públicas federais, estaduais e municipais. No que diz respeito, a

implementação de mecanismos de democracia participativa da sociedade civil na esfera

pública foram realizadas amplas consultas nacionais e locais por intermédio de fóruns,

conferências45

e conselhos.

A quantidade e variedade de iniciativas e a velocidade com que se processaram,

nos remetem a um crescimento que não teve tempo de maturação, de criação de bases sólidas.

Alguns anos depois, já vivemos no campo das políticas públicas culturais com uma sensação

de perplexidade diante da necessidade de dar continuidade aos diversos esforços que foram

mobilizados. Diante das inúmeras expectativas geradas, ainda não foram feitas mudanças

substanciais que garantam a continuidade e permanência de uma nova política cultural. Não

há uma consciência ampliada da relevância da cultura na sociedade e no Estado; os aportes de

recursos orçamentários por ora são insuficientes; leis importantes ainda estão por ser

aprovadas e há pouco envolvimento social nas políticas culturais. Ou, como diz Sarkovas, foi

arquitetado uma linda reforma no edifício, sem, no entanto, se ter autorização para alterar seu

alicerce. Com todas suas limitações, a gestão da cultura no governo Lula chegou ao seu final

como um marco para as políticas públicas, muito mais pelo que representou simbolicamente,

do que estruturalmente.

No entanto, os múltiplos programas do Ministério e a implantação do Sistema

Nacional de Cultura estimularam o surgimento de novas articulações em inúmeros pontos de

cultura46

e a criação de secretarias da cultura em diversos municípios do País, que também

repercutiram no campo da produção cultural, estimulando novas oportunidades de trabalho. O

sistema cultural não era mais pautado somente pelos mecanismos de incentivo, por meio das

44 PNC – Plano Nacional de Cultura instituído pela Lei 12.343 tem por finalidade o planejamento e

implementação de políticas públicas de longo prazo (até 2020) voltadas à proteção e promoção da diversidade

cultural brasileira. 45Em 2005 foi realizada a I Conferência Nacional de Cultura, com o tema “Estado e Sociedade construindo

políticas públicas de cultura”, com a participação de 1.200 municípios brasileiros. Em 2009, aconteceu a II

Conferência Nacional de Cultura, com o tema “Cultura, Diversidade, Cidadania e Desenvolvimento”, contando

com o envolvimento de 2.974 municípios, o que equivale a mais de 50% dos municípios do país (SOTO et al

RUBIM, 2010). 46

Pontos de Cultura integram o Programa Cultura Viva do MinC e prevê o financiamento de projetos de pequeno

porte realizados por entidades governamentais ou não-governamentais, que visam a realização de ações de

impacto sociocultural nas diversas comunidades brasileiras. Um dos mais importantes programas do Governo de

Gilberto Gil.

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leis de financiamento à Cultura, com seus projetos de grande porte e visibilidade. Com eles,

atuavam, concomitantemente, os pontos de cultura, as pequenas iniciativas, a formação de

redes, as associações sem fins lucrativos e, sobretudo, novos valores a serem considerados.

Entram em cena novos atores culturais, que ingressam no mercado já encontrando

um campo em formação e atividade. Se o produtor cultural já vivia em um ambiente de tensão

e disputa pela captação de verbas em um contexto pautado pela ênfase na Lei Rouanet,

assistiu, em poucos anos, ao alargamento do seu campo de atuação e o ingresso de novos

interlocutores no sistema cultural.

A gestão da cultura no Ceará nesse período acompanhou, a sua maneira, todas as

diretrizes das políticas nacionais. A então Secretária de Cultura do Estado, professora Claudia

Leitão (2003-2006), contou com dois fatores favoráveis: o apoio do governador Lúcio

Alcântara e do ministro Gilberto Gil. Viveu-se um período de intensas parcerias, apesar de

ambos não serem alinhados politicamente47

.

A Secretaria, que passava a defender a “retomada do Estado no seu papel de

definição de uma política voltada para a inclusão social, por meio da construção de uma

cidadania cultural48

”, despendeu seus esforços na criação de um Sistema Estadual de Cultura

e elegeu as ações no interior do Estado como prioritárias. Entre os anos de 2005 e 2006 a

Secretaria e grande parte de seu staff esteve em todas as 184 cidades cearenses, em um projeto

denominado “Cultura em Movimento”, promovendo pessoalmente a sensibilização de

gestores municipais, Poder Legislativo e sociedade para a criação de secretárias e órgãos para

a cultura e adesão ao Sistema Estadual. (NUNES, 2007).

Vivia-se uma “euforia” da descoberta do potencial dos recursos da cultura em sua

condição de transversalidade, com a exaltação das associações entre desenvolvimento

territorial, inclusão, formação, turismo e cultura, dentre outros. Criaram-se diversos eventos,

intitulados projetos estruturantes, em regiões distintas do interior do Estado, capitaneados pela

própria Secretaria, que passava a assumir o papel de produtora. Essa situação impactou

diretamente no campo de atuação dos produtores culturais, uma vez que, além de propor os

projetos, a própria Secretaria se encarregava de captar os recursos por meio das leis de

incentivo, estadual e federal, gerando uma situação desigual de acesso e de disputa no

mercado.

47 Gilberto Gil representava o governo do Partido dos Trabalhadores – PT e Lúcio Alcântara era filiado ao

Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. Sobre esse assunto ler artigo O “PARTIDO DA CULTURA”:

Política cultural no Ceará na Era Lula de Alexandre Barbalho e Jocastra Bezerra. 48 Texto de apresentação do documento “Secretaria da Cultura: um caminho trilhado (2003-2004)”, publicado

pela Secretaria da Cultura do Governo do Estado do Ceará.

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A gestão também realizou mudanças na lei estadual, ajustando-a as novas

necessidades, que findaram por tornar o processo mais burocrático e moroso para os

produtores. Nesse período, o financiamento à Cultura no Estado passa a contar com o

incremento de outros mecanismos como a Lei Rouanet, que fica mais acessível a outros

estados brasileiros, e ao incremento dos editais, que passam a ser usados largamente nas

políticas estadual e federal.

Surgia outra geração de produtores e novas demandas de organização da cultura.

É nesse período que aparece com mais ênfase o termo “gestão cultural” e a percepção da

necessidade de formação na área, seja nas políticas públicas ou em instituições educativas

técnicas ou superiores. Amplia-se o mercado de trabalho, seja nas recém-criadas instituições

públicas, em associações sem fins lucrativos ou como autônomos, criando seus projetos ou

contratados para trabalhar nas iniciativas culturais e eventos que passam a acontecer com mais

frequência.

Observa-se também a necessidade do produtor somar novos conhecimentos aos já

incorporados. Além de ser um bom executor e administrador de projetos, é requerido agora

competências de planejador, articulador e conhecedor de políticas públicas de cultura.

Começava a surgir uma geração de produtores que buscavam novos conhecimentos e, no ano

2000, na transição dos governos FHC e Lula, foi ofertada no o I Curso de Especialização em

Gestão e Produtos Serviços Culturais no Ceará, promovido em uma parceria da Universidade

Estadual do Ceará – UECE com a Secretaria da Cultura.

Além de conhecimentos inéditos, é importante destacar a “valorização” de novos

símbolos. A ênfase nos conceitos de diversidade, democracia, desenvolvimento e inclusão

cultural, dentre outros, provocaram efeitos no cotidiano dos produtores culturais que passaram

a incorporar esses valores em seus projetos, discursos e práticas. Criam-se assim novas

conformações no campo da produção cultural. Outras exigências se sobrepunham às antigas

deficiências, ainda não resolvidas.

Se antes os produtores já enfrentavam dificuldades para captar verbas para seus

projetos, agora se viam na condição de incorporar a eles novos discursos e parâmetros sociais

compatíveis com as diretrizes do Estado. Essa situação, muitas vezes, ampliava ainda mais o

escopo dos projetos, resultando em orçamentos mais onerosos, que terminava repercutindo

também na dificuldade de captação de recursos.

Nesse período se observa a inclusão de mais agentes ao campo da cultura,

passando a se observar já uma segmentação das atividades e perfis, composta por produtores

vinculados a empresas, outros a instituições públicas, alguns atuando na área social, outros

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administrando companhias e grupos e mais um leque diversificado de possibilidades. Ainda

de que forma incipiente, inicia-se também uma maior organização do campo em regiões

menos desenvolvidas economicamente do Brasil e nos maiores municípios do Ceará.

Além de cuidar da gestão de seus próprios projetos e de sua subsistência

econômica, os novos atores do campo da cultura, como os produtores, também se viram

compelidos a vivenciar mais ativamente da construção social das políticas públicas, que agora

seriam pensadas pelo viés da participação social.

A gestão da presidenta Dilma Rousseff (a partir de 2011) deu continuidade aos

principais programas de Luís Inácio Lula da Silva. Em 2013, apresentou à sociedade brasileira

a versão final do Plano Nacional de Cultura, cujo documento apresenta um planejamento de

longo prazo para a cultura no País, prevendo 53 metas a serem cumpridas até 2020, com

responsabilidades compartilhadas entre estado e sociedade.

São metas que tratam desde o aumento de emprego no setor cultural (11); maior

oferta de graduação e pós-graduação na área do conhecimento cultural (16); ampliação da

oferta de cursos e oficinas em gestão cultural e outros campos afins (18); aumento de

produção e circulação de espetáculos nos municípios das macrorregiões do País fomentados

com recursos federais (24); gestores capacitados em 100% das instituições e equipamentos

culturais apoiados pelo MinC (35); promoção de cursos ou certificações promovidos pelo

MinC para gestores e conselheiros em 100% das Unidades da Federação (36); aumento de

recursos para á área com 10% do Fundo Social do Pré-Sal para a cultura (50); aumento de

37% acima do PIB, dos recursos federais para a cultura (51); e aumento de 18,5% acima do

PIB da renúncia fiscal do Governo Federal para incentivo à Cultura, só para citar algumas.

Não só as mencionadas, mas todas as metas - ao traduzirem e proporem

intervenções no campo da cultura no Brasil - possui em maior ou menor extensão repercussão

no âmbito da produção cultural. Além de apresentar importantes elementos para a

compreensão das questões que afligem o campo da cultura no Brasil, nesse momento atual

sinalizam um cenário desejado e os passos a serem dados.

É inegável a importância que todo esse processo teve no campo da cultura; porém,

segundo nossa perspectiva de avaliação, parece-nos, figurativamente falando, com um bolo

que em sua feitura recebeu muito fermento, cresceu rápido demais e depois de frio começa a

minguar. Parece-nos que foram realizadas inúmeras (e necessárias) iniciativas em pouco

tempo, e que estas não tiveram tempo (nem talvez a intenção) de assegurar as bases mais

sólidas de sustentação.

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No Ceará, desde o início do governo Cid Gomes (2007 até os dias atuais) a pasta

da cultura perdeu relevância. São inúmeras as críticas49

que passam pela ausência de políticas,

falta de prestígio e recursos, além de ausência de diálogo com os produtores. Situações que

agora, na gestão do terceiro Secretário, prometem ser resolvidas, ou pelo menos, amenizadas.

No âmbito da produção cultural, está sendo ofertado um curso técnico de média

duração50

intitulado Laboratório de Produção – Curso Técnico em Produção de Eventos

Culturais, o primeiro desse tipo direcionado para formação de produtores de eventos culturais

no estado do Ceará. O curso foi proposto por uma produtora e conta com a parceria da

Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e do Instituto Centro de Ensino Tecnológico –

CENTEC. Contou com 467 inscritos dos quais 40 foram selecionados. Para retratar a situação

de instabilidade do campo, a iniciativa foi viabilizado por meio da proposição de um projeto

no Sistema Estadual de Cultura, com o apoio da iniciativa privada, não tendo, portanto, a

despeito de sua importância, a garantia da realização de outras turmas assegurada.

No nível da formação superior, os cursos ofertados são insuficientes e apenas

tangenciam a área da produção cultural, pois são poucos e sua criação também se insere na

transição do século XX para XXI. Em 1999, a Universidade Estadual do Ceará – UECE

ofertou um curso de Especialização em Organização de Eventos, com 450h/a; em 2000, o já

citado I Curso de Especialização em Gestão e Produtos Serviços Culturais no Ceará; e em

2005, a Universidade de Fortaleza – UNIFOR realizou uma Pós-Graduação Lato Sensu em

Criação e Gestão de Eventos, com 375h/a. A UNIFOR oferece, desde 2002, um Curso

Superior de Tecnologia em Eventos, com 1.620h. Como vimos os cursos ainda são poucos e

há uma carência no Estado de formação aprofundada no campo da produção e gestão cultural,

que colabore para o amadurecimento do setor.

Vivemos uma espécie perplexidade diante de um fim de ciclo, em que temos que

assegurar os ganhos obtidos, sem ter as condições necessárias para isso. No Ceará, muitas das

iniciativas realizadas no interior, lutam para continuar acontecendo e instituições funcionam

de maneira precária, sem recursos, pessoal especializada e visão política da relevância da

gestão cultural. Os inúmeros agentes que se formaram nesse período, também tentam se

manter e viabilizar seus projetos em um cenário incerto no âmbito do financiamento público,

como já abordado.

Essa situação nos põe diante da responsabilidade de consolidar as bases de uma

política cultural consistente, duradoura e compartilhada com a sociedade, o que só é possível

49 Jornal o POVO edições de 18/12/11, 22/04/12, 17/06/12, 06/07/12, 23/01/12, 25/11/12, 02/06/13 e 26/12/13. 50 1.050 horas/aula, distribuídas ao logo de dezoito meses.

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se compreendermos com mais profundidade onde estamos e como chegamos aqui. É isso que

nos propomos agora, ouvindo e analisando o depoimento dos próprios produtores, que

viveram e continuam a vivenciar o processo retratado nesse trabalho.

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4 O CAMPO DA PRODUÇÃO CULTURAL NO CEARÁ

Neste capítulo apresentaremos o campo da produção cultural, com foco nas

diversas relações que nele se configuram, campo entendido aqui como espaço onde são

vivenciadas as relações entre os produtores culturais, entre si e com os demais agentes que

compõem esse locus. Campo também longe de ser um ambiente estático, haja vista ser um

espaço de disputas, multiforme e permeável, não só receptor das tensões, mas emissor de

novas configurações.

Usaremos os conceitos de Pierre Bourdieu como instrumentos para nos auxiliar

nessa empreitada de compreensão de um tema tão complexo, caleidoscópico e ainda em

formação. Nosso objetivo é, por meio da memória vivida no próprio contexto, narrada por

seus agentes, compreender também o seu processo de conformação, aprendendo alguns de

seus significados e repercussões, pois como descreve o sociólogo francês:

Não é demais afirmar que a história do campo é a história da própria luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção e apreciação legítimas; é a

própria luta que faz a história do campo; é pela luta que ela se temporaliza.

(BOURDIEU, 2008, p.88).

Por fim, essa tarefa só será possível se nos aventuramos na inserção no próprio

campo. Para isso, aproveitaremos a nossa própria experiência no mercado cultural, além da

leitura de publicações recentes sobre o tema, artigos em jornais e blogs publicados durante o

período da pesquisa.

No entanto, o fio condutor serão os conteúdos dos depoimentos coletados com os

produtores, por meio de entrevistas semiestruturadas, onde fizemos algumas interrogações

pontuais para auxiliar na elucidação de aspectos de maior interesse e deixamos os

interlocutores discorrerem à vontade sobre os temas abordados. Os depoimentos apresentados

foram editados para preservar a identificação dos entrevistados, porém, sem perda da

fidelidade do conteúdo.

Partimos do ponto de vista de que o produtor ainda se encontra em uma condição

de “invisibilidade”, sendo, portanto, um agente que carece ser melhor percebido e escutado. A

necessidade premente da realização de atividades concretas faz com que sua fala seja

comumente condicionada a intervenções direcionadas e, quase sempre, em busca de

resultados específicos.

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Dessa forma, buscamos nas entrevistas oferecer espaço para um discurso

autorreflexivo, onde o entrevistado pudesse falar sobre si, sua história e seu próprio campo. O

sentido aqui não era buscar dados concretos e informações precisas e cronológicas sobre a

atividade. Antes disso, nossa intenção era muito mais captar o sentimento, a percepção, as

impressões e interpretações desses protagonistas sobre seu lugar no campo da cultura e sobre

o próprio campo.

Explicitar e nomear as vivências desses produtores nos parece de fundamental

importância para a compreensão do campo da produção cultural. Por meio de suas falas,

tentaremos buscar conexões e sentidos que possam revelar o que ainda não havia sido

percebido. Buscaremos regularidades e pistas que nos permitam compreender melhor como se

deram as conformações do campo da produção cultural no Ceará e as distintas configurações

que este assumiu.

Exatamente para assegurar a livre expressão, optamos por não identificar os

produtores culturais entrevistados. Como atuam em um campo ainda restrito, onde a grande

maioria dos agentes se conhece, compreendemos que essa seria a melhor solução para manter

a potencialidade e a integridade dos discursos. Por uma estranha ironia, para dar visibilidade a

esses atores no coletivo, estes terão que ficar no anonimato no plano individual.

Foram entrevistados 20 produtores culturais, residentes em Fortaleza (capital do

Ceará) e que atuam no mercado, distribuídos em três grupos distintos. O primeiro formado

por produtores que começaram sua carreira na produção cultural antes da criação das leis de

incentivo; o segundo formado por produtores que identificam sua “profissionalização” em um

processo de relação direta com as leis, federal e estadual, no Ceará; já o terceiro grupo iniciou

suas atividades já no século XXI, na gestão do presidente Lula, encontrando um campo maior

de possibilidades de atuação e políticas culturais mais expressivas.

A esse grupo de entrevistados, somou-se também o depoimento de alunos do

Laboratório de Produção Cultural, em relatos coletados em agosto de 2013, ocasião em que

pudemos ministrar a 55 discentes uma disciplina sobre Produção Cultural onde debatemos,

durante 20 horas, o campo da produção cultural no Ceará e no Brasil. Compreendemos que as

reflexões, trabalhos e debates realizados na turma, composta majoritariamente, por produtores

que estão ingressando no mercado em busca de uma melhor formação, também contribuirão

para enriquecer este trabalho.

A decisão de ouvir produtores culturais atuantes em Fortaleza, na capital do

Estado, já revela algo sobre o campo. Alguns desses entrevistados são provenientes de

distintos municípios do interior do Ceará; no entanto, afirmam que para atuar

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profissionalmente na área da cultura, tiveram que migrar para Fortaleza. Apesar de já terem

desenvolvido atividades culturais em suas cidades, sentiram em determinado momento, o

campo limitado, com poucas possibilidades de subsistência e formação restritas, fazendo com

que apesar de eventualmente continuarem a manter laços e iniciativas pontuais em seus

municípios, passassem a atuar na capital.

É importante registrar que essa divisão em grupos, em subcampos distintos, não

tem contornos e limites rígidos e se dá apenas por uma necessidade metodológica. Apesar de

os grupos guardarem algumas distinções, atuam juntos no mercado contemporâneo, em

correlação de forças e disputas dentro do mesmo campo na atualidade. Para guardar maior

sigilo, os entrevistados serão identificados no final de seus depoimentos por uma letra de seus

nomes, seguida da indicação do grupo a que pertencem.

Posta essa observação, passaremos a descrever cada um dos grupos, utilizando

nomeações que, longe de corresponder a totalidade do grupo, ressalta algumas características

mais marcantes e facilita a identificação.

Grupo 1– Produtores/Artistas

Para a composição deste grupo foram entrevistados seis produtores culturais.

Fazem parte desse conjunto: cineastas, músicos, gestores de associações culturais, produtores

de projetos relacionados às culturas populares e diretores de festivais culturais e eventos de

grande porte. Alguns ocupam mais de uma dessas atividades simultaneamente.

Os mais experientes, iniciaram seu trabalho no campo da cultura ainda no final da

década de 60. A maior parte, porém, ingressou nos anos 70. Esse grupo foi afetado pelas

repercussões da Contracultura e teve, nesse período, uma atuação artística marcada por um

posicionamento ideológico de esquerda e contestação.

Os que vieram do interior do Estado trouxeram uma bagagem cultural fortemente

associada às culturas populares tradicionais e, com ela, a temática da valorização da nossa

identidade cultural. Os entrevistados desse grupo deixam transparecer a convivência com o

campo da cultura desde uma idade tenra e a naturalidade dessa relação, que tem como base a

família, a comunidade local ou a escola. Uma vez na capital, disputaram com outros agentes a

legitimação e afirmação de suas culturas.

No interior do Estado as atividades realizadas também eram comumente

associadas a agremiações escolares e as manifestações artísticas e culturais da capital tinham

forte relação com o ambiente universitário, o que evidencia o poder da instituição educacional

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enquanto instância consagradora. Grupos diversos vinham de cidades do interior ou de bairros

da periferia para ter acolhida no ambiente democrático e acolhedor da universidade.

Os entrevistados relatam a existência de vínculos mais próximos e solidários com

a comunidade onde se inseriam. A prática da cultura e da atividade artística era feita de

maneira mais simples e artesanal, em um sistema de compartilhamento e apoio mútuo. As

produções artísticas se davam, muitas vezes, de maneira coletiva. Vivia-se uma efervescência

criativa e o que prevalecia era a relevância da manifestação estética e não necessariamente a

qualidade técnica, ou no dizer de um deles: “Era um período efervescente, inquieto. Tudo era

ideológico e visceral”. Partilhava-se um sonho.

Interessa observar que, mesmo que não havendo um mercado consolidado, a

maioria dos entrevistados não cogitava viver sem o contato com a Cultura, mesmo que para

isso tivessem que buscar outras fontes de renda paralelas, que possibilitassem,

paradoxalmente, viver de Arte. Nesse sentido, era fundamental a busca de uma segurança

profissional em alguma instituição que assegurasse a sua subsistência mínima. Muitos

obtinham emprego no próprio poder público.

Nesse sentido, como não havia fonte de renda assegurada, nem leis de incentivo

ou políticas consolidadas de financiamento à Cultura, a realização de um projeto cultural,

como a simples gravação de um disco, poderia durar vários anos. Trabalhava-se por etapas. O

apoio vinha da rede de relacionamento dos artistas (amigos, parceiros, empresários de

pequeno porte, agremiações políticas, etc) e eventualmente, de pequenos patrocínios do poder

público (órgãos da cultura ou outros) e da Universidade. Raras vezes esse apoio vinha em

forma de dinheiro, fazendo-se presente principalmente por meio de permutas de serviços,

pagamento direto de fornecedores, empréstimos, cessões, trabalho voluntário, etc. Muitas

vezes os produtores/artistas investiam em seus projetos e colocavam suas economias para

financiar suas iniciativas.

Não havia a prática da elaboração de projetos complexos com objetivos, metas a

serem alcançadas, contrapartidas, resultados esperados, cronogramas e planilhas

orçamentárias. Também não era necessário fazer uma prestação de contas. Essa se efetivava

por meio da própria comprovação do projeto, fosse ele um produto ou um evento. Os

apoiadores também recebiam seus agradecimentos em forma de discos, livros, ingressos para

shows, etc. As contrapartidas eram negociadas caso a caso.

Uma das características mais marcantes desse grupo é que nenhum dos

entrevistados iniciou no campo com o desejo explícito de ser produtor cultural. Todos se

autodeclaram artistas, que ingressaram na atividade da produção por uma absoluta

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necessidade de viabilizar suas expressões artísticas e, às vezes, de seus colegas. A produção

era simplesmente um meio e não uma atividade em si. Até hoje, entrevistados desse grupo

trazem essa dicotomia presente em sua própria essência e no desempenho de suas atividades.

Observa-se que os produtores que consultamos continuam a realizar seus projetos

culturais, mas não o fazem sob uma perspectiva empresarial. Vivem com padrões financeiros

módicos e tem restrições ao desenvolvimento mercadológico do mercado da Arte.

Desenvolvem outras atividades para assegurar sua subsistência, realizam projetos com

intervalo espaçados de tempo e tem como resistência a crença e o desejo de fazer somente a

arte que lhes interessa e a busca de um equilíbrio entre a carreira de gestor e artista. Ainda há

um estranhamento na relação com a produção. Melhor é ser artista.

Grupo 2 – Produtores / Empreendedores

O segundo grupo é formado por produtores que ingressaram na atividade nas

décadas de 80 e 90 e que usufruíram como consumidores de cultura em um ambiente artístico

cultural formado, em grande parte, pelos agentes do grupo anterior, na década de 70. Jovens,

já participavam dos movimentos culturais realizados em Fortaleza, que se dava em torno

principalmente de apresentações e formações de grupos artísticos, que começavam a ganhar

novos contornos na cidade.

Mesmo que ainda se observasse um papel importante da Universidade nesse

período, já começava a ganhar mais visibilidade alguns outros espaços da boemia, festivais,

shows, etc. Durante o período da transição democrática, meados de 80, alguns grupos

conseguiram “abrigo” em gestões públicas mais receptivas às manifestações artísticas. Havia

um ambiente propício ao consumo cultural e a experimentação. Mesmo que não se possa falar

na existência de políticas culturais, os relatos trazem a importância decisiva de determinados

gestores em lugares estratégicos para a animação do campo.

Um aspecto interessante, é que esse grupo traz entre seus membros, a presença

majoritária de indivíduos que não são artistas e já começaram a atuar, desde o início, sob a

perspectiva da organização e intermediação dos processos, ou seja, da produção cultural. Com

formação variada, se inseriram no campo em uma condição de tornar viáveis os

empreendimentos artísticos e culturais, seja organizando as iniciativas propostas pelo poder

público, seja criando suas próprias iniciativas e buscando os meios para viabilizá-las.

Esses profissionais iniciaram sua atividade como autônomos, participando

ativamente de um campo em formação, aprendendo na prática e estimulando outros a se

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profissionalizarem. Segundo o depoimento de um deles, foi preciso “Criar os mecanismos da

profissão. Criar rotinas, processos, agendas, etc. Foi preciso botar moral”.

Os membros desse grupo se inserem na atividade em uma época de transição.

Vivenciaram o fim do período em que se fazia uma produção de forma artesanal (Grupo 1) e

continuam a trabalhar e repensar sua atuação dentro das novas configurações do século XXI

(Grupo 3). Essa é sua riqueza e peculiaridade. Nesse período, puderam acompanhar a

implantação das políticas de cultura e seus respectivos discursos, a criação das leis de

incentivo e dos editais, o desenvolvimento das tecnologias digitais e a ampliação do campo.

Todos têm destacada influência na maneira de fazer produção cultural e na

“profissionalização” da atividade no Ceará.

Na busca de recursos para seus projetos, esses produtores alcançaram o período

onde captação se dava de maneira mais informal e, no próprio exercício da atividade, tiveram

que ir se adequando às novas exigências do marketing cultural e às posteriores expectativas

das políticas de democratização e inclusão cultural. Como diz o jargão “tiveram que trocar o

pneu com a bicicleta andando”.

Respondem por esse grupo nove entrevistados, que atuam profissionalmente na

área, e tem a atividade de produção/gestão cultural como fonte de renda exclusiva e/ou

prioritária. Todos estão à frente de grandes projetos culturais realizados no Ceará, nas mais

diversas expressões artísticas, com visibilidade nacional. Sete deles dirigem empresas

culturais, criadas no final da década de 90 ou início dos anos 2000 e são responsáveis pela

contratação de outros profissionais da área, ocupando uma posição de liderança no campo.

Dois deles atuam com associações culturais e gestão pública, mas também estão à frente de

grandes projetos culturais.

No entanto, apesar de assegurarem um prestígio no campo e a imagem de

empresas consolidadas, esses produtores/empreendedores vivenciam diariamente o equilíbrio

precário na gestão de suas atividades, uma vez que assumiram responsabilidades e

compromissos, empresariais e culturais, em um setor que ainda é extremamente frágil, sem

um mercado de consumidores amplo e, portanto, dependente das políticas públicas em vigor.

Foram e continuam a ser empreendedores culturais.

Esta geração iniciou desempenhando a função de “produtores de plantão”. Uma

vez que não tinham aptidões artísticas determinadas que os inserissem em uma linguagem

específica, produzia tudo o que fosse necessário, independente de suas aptidões pessoais.

Nesse período, contavam-se muito mais uma atitude, do que uma especialização. Como o

mercado era incipiente, fazia-se o que aparecesse e o que fosse necessário. Com o passar do

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tempo, o campo ganhou maior complexidade e passou a absorver diferentes posições. A

maioria desses produtores (na forma de suas empresas ou ONGs) se especializou em

determinadas linguagens ou nichos de mercado, onde desenvolvem suas produções, apesar de

estarem aptas a exercer inúmeras outras atividades no campo.

Grupo 3 – Produtores/Gestores

O terceiro grupo é composto por cinco produtores culturais, que iniciaram sua

atuação no campo da cultura depois do ano 2000, com trajetória profissional fortemente

influenciada pelas políticas culturais do governo Lula, o que possibilitou tanto o ingresso de

novos atores no campo, como a ampliação do seu espectro de atuação. Fato que pode ser

observado na própria formação do grupo, que é mais eclética tendo chegado à produção

cultural por meio de distintas influências: movimentos sociais; partidos políticos; influência

de ambientes familiares; afinidades pessoais e gosto pelas práticas artísticas.

É um grupo mais heterogêneo, de difícil enquadramento. Não só em sua

formação, mas também na sua atuação profissional. Desenvolvem suas atividades sob

diversas formas de organização: administrando empresas, participando de associações

culturais ou coletivos artísticos, atuando na iniciativa privada e na gestão pública e também

como empreendedores individuais, mobilizando outros produtores em prol de seus projetos.

Observamos novamente a presença do artista que se tornou produtor para viabilizar suas

próprias expressões e crenças.

Apesar das diferenças, o grupo tem em comum o gosto pela cultura e o desejo de

produzir suas ideias e viabilizar projetos que representem suas crenças e valores. Não somente

em forma de eventos e apresentações pontuais. Esses produtores pensam em atividades

formativas e em políticas de educação e desenvolvimento social. Como já iniciaram suas

atividades, inseridos no contexto das políticas culturais de Gilberto Gil, compartilham com

naturalidade dos conceitos em vigência como diversidade cultural, inclusão, acessibilidade,

etc. Os membros desse grupo apresentam uma percepção do contexto social onde estão

inseridos e da necessidade de sua participação políticas na gestão da agenda da cultura, que

está sendo construída no Estado e no País.

Apesar dessa consciência, observa-se que estes jovens produtores fazem

investimentos e esforços permanentes para conseguirem se inserir no mercado, afirmar seus

projetos, dar continuidade a estes e ainda subsistir materialmente. Nesse aspecto, observamos

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que alguns estão em uma posição mais confortável do que outros. Obtém mais vantagem,

quem se situa no campo com mais capital cultural, intelectual, político ou econômico.

Como estes produtores não possuem larga experiência, nem ainda empresas com

um portfólio extenso, utilizam como aporte no mercado seu capital e sua rede de contatos.

Assim, se observa que ora se apoiam nos movimentos sociais, na militância “de esquerda”, na

gestão pública, ou ainda em coletivos artísticos. Outros buscam estabelecer uma ampla rede

de parcerias políticas, institucionais e até internacionais, criando mecanismos que minimizem

a dependência das leis, editais e instabilidades políticas locais. No entanto, aqueles que não

têm esse suporte sentem-se mais fragilizados e numa posição menos competitiva nas disputas

e embates travados no campo, o que demonstram na forma de insegurança e angústia.

Os jovens produtores administram seu empreendimento criativo de maneira mais

alternativa e menos onerosa do que os membros do Grupo 2, podendo por vezes montar suas

bases de atuação em casa, em escritórios virtuais ou em empresas formais com menos

funcionários fixos e mais terceirizados.

Alguns dos entrevistados já atuaram ou ainda atuam na gestão pública,

compartilhando ambas as experiências. São profissionais que investem na sua formação e

procuram se aperfeiçoar nos estudos da cultura e em suas competências como uma das formas

de possibilitar uma ascensão e desenvolvimento profissional que minimize os riscos da

atividade. A virtualidade, multiplicidade de papeis, investimentos na formação e a

empregabilidade na gestão pública se configuram como características do grupo em que se

encontram.

O sentimento de fragilidade diante dos desafios do campo é bem mais visível nos

alunos do Laboratório de Produção. A percepção da complexidade do campo e o sentimento

de que disputam pela obtenção de verbas em condições desiguais com projetos culturais mais

antigos e produtoras consagradas é bastante presente. São inúmeros esforços de inserção sem

a garantia de espaço para novos projetos. Isso sem falar da necessidade de sobrevivência

financeira. É perceptível em muitos deles um sentimento de angústia, incerteza e frustração.

No entanto, são os produtores desse mesmo grupo que, diante dessa dificuldade, estão

buscando novas formas de inserção no mercado, melhor formação teórica, maior participação

política no campo e fontes alternativas de gestão e financiamento para seus projetos. A

dificuldade os faz atuar em grupos e trabalhar com trocas de serviço, pequenos apoios,

voluntariado e projetos menos onerosos, lembrando, em alguns aspectos as formas de trabalho

empregadas pelos produtores do Grupo 1.

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Uma vez apresentados os distintos grupos, organizaremos o conteúdo desse

capítulo em dois tópicos. No primeiro, intitulado “Percursos e conformações”, abordaremos

os distintos processos vividos ao longo do período estudado, que contribuíram para a

formação do campo. Ou seja, propõe um olhar sobre os percursos realizados e sobre como

estes contribuíram para a(s) forma(s) que o campo assumiu nas décadas recentes.

No segundo e último tópico, intitulado “Configurações e paradoxos”, buscaremos

identificar as distintas formas que o campo apresenta hoje, algumas tensões e relações que se

dão entre os agentes, lugares de distinção e de ocupação nos espaços, onde se situam os

produtores culturais e como se instituíram essas posições. Tentaremos compreender quais as

estratégias utilizadas por esses produtores na conquista e manutenção de seus espaços em

relação às políticas de financiamento à Cultura e que recursos utilizam para manter a

ocupação de seu espaço e obter melhores resultados, bem como esses diversos elementos se

combinam e relacionam, na busca de “desmistificar o caráter sagrado da cultura e considerar

sua produção como resultado de um amplo empreendimento de alquimia social”.

(BOURDIEU, 2008, p.13).

Adentraremos nessa busca guiada pelos próprios agentes que o integram. Esse

será o fio condutor. Esperamos com a apresentação desses aspectos colabore para a

compreensão do campo e sua especificidade, assim como para uma inserção social e atuação

profissional do produtor cultural mais clara, criativa e potencializada.

4.1 PERCURSOS E CONFORMAÇÕES

Ortiz, ao abordar aspectos da teoria de Bourdieu, afirma que o campo é o “espaço

onde as posições dos agentes se encontram a priori fixadas. O lócus onde se trava a luta

concorrencial entre os atores em torno de interesses específicos que caracterizam uma área em

questão.” (BOURDIEU, 1983, p.19). No entanto, as lutas travadas e os diversos interesses,

geram mudanças de posições, que se recriam e transmutam os agentes e suas posições.

Lutas nem sempre visíveis com facilidade, uma vez que se dá em diversos

subcampos, de contornos sutis e muitas vezes diluídos ao longo do tempo. Para auxiliar a

perceber esses processos, em sua relevância e regularidade, utilizaremos a teoria de Bourdieu

sobre os campos como um princípio que permita enxergar “o real social como relacional, não

como interações, mas, com inter-relações de estruturas invisíveis. É no campo de luta onde os

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agentes altamente especializados se enfrentam em busca de legitimidade”. (LINHARES,

2013, p.264).

No entanto, como adverte Ortiz, o campo “não é o resultado das ações

individuais”. Por isso se faz necessário o estudo das estratégias utilizadas pelos agentes que o

compõem: seus sistemas de transformação e conservação. É antes um campo de luta, espaço

onde se manifestam relações de poder, que se estrutura a partir de uma distribuição desigual

de um quantum, formado por dominados e dominantes, onde aqueles que ocupam o lugar de

dominantes são justamente os que possuem um máximo de capital social. (ORTIZ, 1983).

Capital que, segundo Bourdieu, é uma medida de reconhecimento e tem como base a

identificação das “categorias de percepção, os princípios de visão e divisão, os sistemas de

classificação e os esquemas cognitivos”. (LINHARES, 2013). Assim, é necessário fazer uma

retrospectiva com um olhar direcionado para o microcosmo, para compreender o espaço e o

contexto em as relações objetivas se efetivam. Buscaremos nas distintas trajetórias, uma

chave para a percepção das atuais conformações do campo. Falamos de trajetórias, como uma

série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo agente em estados sucessivos no

campo. (LINHARES, 2013, p.102).

Na identificação das trajetórias, devemos observar outro conceito fundamental,

utilizado por Bourdieu, que é o de habitus, como organizador das práticas e das percepções

sobre essas práticas e mais ainda, como princípio gerador dessas práticas. Ouvindo os relatos

dos entrevistados, podemos perceber certas disposições introjetadas, que além de estruturadas

pelo campo da produção cultural, também o estruturam.

Para compreender o campo, iniciaremos pelos depoimentos dos primeiros

produtores que atuavam no Ceará, pertencentes ao Grupo 1, que com seus habitus, trazem

diversas regularidades discursivas e trajetórias em comum

Segundo os entrevistados, nesse período vivia-se em um o campo cultural

dominado por questionamentos políticos e ideológicos, onde a Arte representava a

demarcação de um posicionamento. Mas também era uma época de paixões, inquietações e

contestações. Esse contexto político e social é bastante presente na fala dos produtores, e

incide, fortemente sobre suas práticas, disposições e concepções.

Havia uma forte influência da Contracultura que vinha na época de 60 e adentra-se

um pouco na década de 70, onde a ditadura militar era mais pesada. Essa Contracultura, essa cultura subterrânea, essa cultura marcadamente é influenciada

por uma cultura internacional, na contracultura norte americana que ela vai de

encontro com a cultura popular... Era um período intenso, inquieto... (C., Grupo 1).

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Segundo esse entrevistado, a Arte era um instrumento de afirmação de valores e

contestação. Havia uma maior liberdade na manifestação, que também repercutia na forma de

produzir. As relações no campo da cultura se davam em um ambiente de maior proximidade e

interação. O que era sonhado precisava ser expressado e essa expressão só era possível se

houvesse um esforço coletivo e comunitário para sua concretização. Por isso, contavam uns

com os outros, com seus familiares e amigos.

[...]a gente tinha muita entrega porque era muito difícil não tinha nenhum mercado,

a gente tinha que conquistar as pessoas. Então você contava muito com as pessoas

mais próximas, as pessoas da família, as pessoas amigas. Não havia um público,

então era um trabalho mesmo de formiguinha, de ir lá e de fazer tudo... Era um

mutirão danado feito muito na base das amizades de muito amor e um estoicismo

danado. Ou você abraça a sua causa ou ela vai ficar sem abraço (A., Grupo 1).

Assim se consolidava um poder que, segundo Bourdieu (2008), não deriva

somente da riqueza material ou cultural, mas da capacidade de transformá-la em capital social

e simbólico. Capital simbólico entendido como “uma dádiva atribuída àqueles que possuem

legitimidade para impor categorias do pensamento e, portanto, uma visão de mundo”.

(BOURDIEU, 2008, p.12). Valorizava-se nessa economia simbólica pensar o social, ser um

pouco ousado, um pouco subversor.

Essa maneira de vivenciar a Arte fez com que alguns artistas se destacassem no

campo, distinguindo-se não só como portadores de um capital simbólico, mas por suas

qualidades de liderar o grupo, propor soluções criativas que viabilizassem a realização das

ideias e organização dos processos. Essas pessoas, geralmente artistas, se destacam por seu

capital, assumindo então uma posição diferenciada no campo, mesmo que intuitivamente e

sem planejamento prévio.

Eu era obrigado a inventar produção, se não nada acontecia, ou ficava ali a mercê

de um convite, sazonal. Eu sentia essa necessidade de me expressar assim, de

colocar para fora, de divulgar para os terceiros. Era eu sempre quem tomava a

iniciativa... (L., Grupo 1).

Esses agentes desempenhavam várias atividades ao mesmo tempo. Criavam

oportunidades para arrecadar recursos, organizavam os grupos, divulgavam as ações nas

comunidades locais. Observa-se ainda que como o campo ainda estava em formação, as

posições ocupadas era menos hierarquizadas e disputadas, o que permitia que os artistas

ocupassem papeis, hoje já considerados de menor prestígio no campo e portanto evitadas,

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como assumir a função de produzir as condições operacionais de viabilizar sua inserção

artística no campo cultural.

Alguns já traziam consigo essa prática desde jovens, em suas cidades do interior.

De um habitus passava a se conformar uma prática que ganhava novos contornos nas

produções que continuaram a acontecer já na capital, ainda que em espetáculos produzidos de

forma artesanal, apresentados nas escolas ou faculdades. Configurava-se nesse período a

formação de um agente no campo com disposições de um produtor/artista.

Eu fazia bingos e rifas. Dirigia teatro junto com os grupos de jovens. Ia na rádio

divulgar e chamava os amigos para participar. Então sempre teve isso... A

necessidade de complementar o que o artista fazia. (L., Grupo 1).

Nós mesmos, artistas, era que saíamos em uma Kombi, pregando cartazes, uma

Kombi que era da produção. Saíamos com um monte de artistas pregando cartaz

nas ruas. (S., Grupo 1).

Nós produzimos o espetáculo, produzimos a venda desse espetáculo, e a divulgação

desse espetáculo, produzimos as entrevistas desse espetáculo... Eu comecei a produzir esses espetáculos, e depois eu produzi todos os outros subsequentes.

Comecei a fazer, definimos os espetáculos, as concepções artísticas, a partir das

concepções artísticas a gente procurava o lugar, acertava o lugar, fazíamos

cartazes, levava na imprensa, cobrávamos para ver se conseguíamos apoio ou não...

(F., Grupo 1).

Observamos aqui uma característica interessante da produção cultural em sua

formação como campo. Como foi forjada em um status coletivo na forma de práticas grupais,

não se evidenciava a atividade da produção cultural com um fim em si, mas apenas como um

meio. Esse aspecto pode ser observado na Literatura existente sobre o campo artístico cultural

no Ceará, que faz raras e difusas menções ao agente que organizaram as iniciativas culturais

nessa época, onde os protagonistas da História são, majoritariamente, os artistas. No dizer de

um dos entrevistados, fazia-se produção por meio de uma “polifonia de vozes e de artes”.

O livro Massafeira 30 Anos é um exemplo disso. Falamos da primeira edição de

um evento multicultural, realizado em 1979, que reuniu em quatro dias de celebração,

centenas de artistas de distintas linguagens em um acontecimento cultural de grandes

proporções para a cultura cearense. O evento, sob a liderança do cantor e compositor Ednardo,

teve o mérito de ser pensado e realizado coletivamente. Caso esse projeto fosse proposto hoje,

é impensável que não utilizasse recursos de financiamento público e não contasse com o

suporte de produtores culturais. No entanto, ao longo das páginas do livro destinadas a

construção do projeto, não se destina muita atenção a esse “detalhe”.

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Segundo depoimento de Augusto Pontes, mentor intelectual do grupo, foi o

próprio caldo cultural da época que fez com que a Massafeira “nascesse espontaneamente”

com tudo acontecendo “muito junto”. Segundo ele, “as pessoas gostavam de estar juntas,

podiam estar juntas, havia tempo para isso...” (2010, p.60). Augusto explicita mais ainda seu

pensamento, ao afirmar que “A Massafeira foi um movimento que explodiu. Ninguém é autor

dele. Todos participaram.” (2010, p.123).

Mas é Brandão, compositor cearense, que ao fazer as analogias do que foi o

Massafeira com as regras do campo cultural hoje, traz questões desconcertantes:

O que teria sido a Massafeira? Um show? Um show pago ou gratuito? Se com entrada paga, por quais critérios teria sido feita a distribuição da arrecadação dos

artistas?

Se gratuito, foi financiado por quem e com que interesse? Teria sido um evento

patrocinado pelo governo estadual ou municipal para a promoção da cultura ou do

turismo? Teria sido alguma tentativa oficial ou de um grupo empresarial artístico de

lançar as sementes de algum festival anual?

Teria sido organizado por ONGs que, engajadas em alguma política pública,

destinava-se a trabalhar com a cultura entre os jovens mesclando experiências e

talentos de diferentes épocas e regiões?” (2010, p.69).

Nenhuma dessas regras vigentes hoje no campo da cultura conseguiria traduzir e

reproduzir o que aconteceu no Massafeira. Era uma época em que se pensava e agia sob

outros regimes de valor, em que o campo prestigiava a criatividade artística e a acolhia com

práticas mais amadoras e discursos coletivos. Mais importante do que os benefícios

financeiros e comerciais, almejavam-se os lucros simbólicos. No entanto, ainda assim, se

fazia necessário buscar formas de viabilizar as iniciativas, criando novas maneiras de obter as

benesses das velhas instituições - Igreja, Empresários e Estado, no papel dos tradicionais

mecenas - conforme visto no primeiro capítulo dessa dissertação.

Sem formação específica para atuar no campo, com um mercado cultural e

políticas públicas incipientes, as estratégias de captação e conquista de apoiadores eram

criadas, observando-se adaptações que eram processadas nas pequenas comunidades e/ou

círculos sociais e readaptadas à capital. O campo da produção cultural se forjava intuitiva e

criativamente.

Eu inventava... Eu inventava porque eu via também que a gente fazia isso, de uma

forma lúdica, na festa da igreja, nas quermesses, nas festas da padroeira, no leilão

de Santa Luzia... Eu era observador e via. Bebia daquilo que as pessoas faziam

como experiência, e me alimentava daquilo. Eu imitava! Por exemplo, eu sabia que

na igreja, os senhores sentavam na primeira fila. Na festa [tinham melhor lugar]

aqueles que davam as maiores prendas... E o cara ficava lá todo enxerido, aquele

prefeitão, aquele político... O cara se alegrava também do padre dizer: Olha essa é

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uma oferta de fulano! Quer dizer, eu acho que essa coisa toda, eu fui transformando

do meu jeito. Por exemplo, tinha bodegueiro no meu interior, uns comerciantes que

eram conhecidos como “os sovinas” que não davam nada a ninguém. Eu chegava

lá, conversava com a mulher dele, ficava aquela coisa e tal. Eu dizia: “olhe é a

senhora que dorme com ele, dá uma conversada com ele, isso vai ser bom para a

comunidade, para nós e não sei o quê”. E acabava vindo, umas besteirinhas de

nada, mas vinha. Eu agradecia e aquilo formava uma coisa que até possibilitou

abrir portas para outros... (L., Grupo 1).

Na capital também se percebia a necessidade do estabelecimento dos contatos

pessoais, das persuasões, do investimento na elaboração de discursos e argumentos para o

convencimento dos apoios. Algumas instituições assumiram, nesse período, um papel central

no acolhimento das iniciativas culturais, apoiando com pequenos volumes de recursos,

destacando-se nesse segmento o papel da Universidade. O campo abrigava posições

ideológicas bem definidas e os movimentos sociais e estudantis também investiam nos

projetos dos artistas identificados com a ideologia de esquerda.

No entanto, era necessário contar com o apoio do Estado, seja por meio das

gestões estaduais e municipais, o que nem sempre se configurava como uma situação

confortável como já se percebeu ser bastante comum nas relações entre mecenas e artistas.

Nós estamos falando do final dos anos 70, e começo dos anos 80. Então ainda tinha

um pouco desse resquício da ditadura, desse tipo de política que era muito “toma lá da cá”, de troca interesses. Às vezes até a gente tinha o receio de contar com apoio

institucional do estado ou do município, porque não pegava bem. Era um negócio

meio assim ligado a uma politica que não era o que a gente apostava. A gente era à

margem disso. Então, a partir do momento em que começou abertura e o momento

político brasileiro foi mudando, essa questão e também o diálogo com as

instituições ditas oficiais. (A., Grupo 1).

Mesmo ocupando posições divergentes e bem demarcadas, ambos precisavam um

do outro. Nessa prática da “cultura de balcão”, trocava-se capital econômico e político por

capital simbólico. Com os recursos ofertados esperava-se reconhecimento e gratidão, alguma

dose de contenção e às vezes até simpatia. A relação se pautava em um interesse mútuo, que

era administrado da forma mais conveniente por todos os envolvidos, onde algumas vezes a

menção do apoio do poder público poderia até ser omitida.

O Governo, por sua vez, oferecia recursos módicos para o artista, em um valor

que não assegurava a realização total da iniciativa artística, mas já configurava uma

demonstração de “boa vontade”. Muitas vezes, os artistas/produtores eram chamados atenção

por sua reincidência nos pedidos. Forjava-se aí uma percepção que continua a existir como

uma tensão presente nessa relação, onde o produtor continua a ser visto, muitas vezes, como

um demandante insaciável e, por vezes, inconveniente.

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Importante destacar que a relação entre produtores/artistas e Estado variava de

acordo com o momento político, mas também com o grau de sensibilidade e simpatia do

gestor de plantão ao tema e ao artista solicitante. A relação se dava de forma bastante

individualizada e em padrões que se aproximavam do apadrinhamento pessoal. Os jovens

produtores/artistas não encontravam, em um mercado precário, condições de subsistir com o

fruto de seu trabalho artístico e, muitas vezes, o apoio a um projeto se davam em forma de

contratação do artista em órgãos públicos, com respectiva liberação para realizar as suas

produções e criações artísticas.

No entanto, segundo os depoimentos, esse modelo passa a não atender mais a

demanda dos projetos, sempre crescente, e a própria necessidade de subsistência dos agentes

culturais, que vão amadurecendo, constituindo família e ampliando suas expectativas. Pouco a

pouco as criações artísticas passam a se individualizar, assim como aumenta o desejo de

conquistar algum retorno financeiro e maior espaço simbólico no mercado. Apesar de ainda

não existir efetivamente um mercado cultural, que assegure uma subsistência mínima ao

artista, ao menos se faz necessário garantir a realização de seus projetos.

A atividade da produção cultural passa a ocupar um espaço mais necessário,

porém, ainda desempenhado por artistas que ocupam uma posição privilegiada no campo,

graças a seu capital cultural e suas aptidões técnicas, aqui denominados de produtores/artistas.

Estes assumiam uma posição que os distinguiam no campo, conferindo-lhes vantagem em

relação aos outros que dependiam do suporte de terceiros.

Eu me acostumei a essa dinâmica de produzir meus próprios trabalhos, de estar à

frente da direção, de ter controle sobre todas as etapas, que uma produção requer.

Eu não sou alienado em relação ao que eu estou fazendo, então, eu gosto disso, de

estar acompanhando todas as etapas, de perceber, de aprenderas nuances que

qualquer tipo de produção requer. É um processo muito rico. (F., Grupo 1).

No entanto, com as mudanças e as especializações na área, surgem também novos

questionamentos e a necessidade de conceituações, disposições, investimentos e também

algum profissionalismo. A atividade que era feita de forma “distraída”, começa a solicitar

definições.

Aqui é preciso fazer uma reflexão mais apurada para compreender os sentidos que

essa produção assumia nesses agentes, como era percebida e como estes se relacionavam com

essa atividade. Para isso, utilizaremos três depoimentos, que traduzem as questões mais

relevantes dessa relação.

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Eu fui ser produtor cultural pela necessidade do artista. (A., Grupo 1).

Eu me defino antes de tudo como um artista, mas também como produtor cultural.

(O., Grupo 1).

Eu não quero [que diga] que eu sou produtor, eu não divulgo essa parte, ela é como

é que se diz... Ela é velada... Ela é uma consequência, porque eu quero e prefiro, eu

me sinto mais como artista, como criador. (L., Grupo 1).

Os depoimentos reafirmam o papel secundário que era conferido ao produtor e

uma hesitação em assumir esse lugar como atividade principal. Surpreende, porém, perceber

que essa atividade ainda continua a ser percebida como um “mal necessário”, um dever de

ofício, representando um ônus para aqueles que a exercem nessa condição. Entre os

depoimentos, identificamos um entrevistado que, mais de três décadas depois do início de

suas atividades de produção cultural, continua tendo com ela uma relação de velado

constrangimento.

Um dos fatores que contribui para essa postura é a valorização dos benefícios

simbólicos das iniciativas culturais e de suas manifestações estéticas e sociais, em detrimento

aos seus aspectos administrativos, financeiros e técnicos. Em sua maneira de ser feita e de

acordo com os valores da época, valorizava-se seu aspecto de guerrilha. Fazer produção

cultural era uma forma de afirmação e resistência, e esse altruísmo era também uma

oportunidade de conquistar uma posição privilegiada no campo.

Alguns produtores/artistas se posicionam distintivamente no campo, afirmando

sua disposição de fazer interferências, propor e concretizar criações autorais e, cientes de seu

capital cultural, posicionam a produção não como um trabalho laboral em si, mas como uma

possibilidade de demarcar espaços e conquistar capital simbólico e uma relativa autonomia. O

depoimento de dois artista/produtores deixa essa postura transparecer:

A questão da produção para mim é uma questão de posicionamento político da minha percepção de mundo. Ou seja, eu vou te dar um exemplo eu digo: „Ah, eu vou

criar um projeto X‟. Aquilo não é por nenhuma necessidade minha de produção.

Não é nenhuma necessidade minha financeira. Não é nenhuma necessidade minha

profissional, mas é para por em prática o movimento, uma percepção que eu tive

sobre a vida sobre o mundo. (C., Grupo 1).

Eu não tenho vergonha, na realidade de ser produtor. Eu considero assim uma

faceta de muitos méritos de enfrentamento. Tudo começa, na realidade, em um

processo de difusão, de concretização. Tudo começa com produção. Depois da

criação, propriamente dita, você tem que ter uma produção, porque produção

também é criação. (F., Grupo 1).

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Este produtor assume novas competências no campo e passa, ele também, a fazer

parte das instâncias de consagração, na acepção de Bourdieu, na medida em que se apropria

do lugar de ser mais um a proclamar o prestígio de artistas e produtos culturais, a ressaltar

experiências estéticas ou, como diz o sociólogo francês, “a atuar como um banqueiro

simbólico que oferece como garantia todo o capital simbólico que acumulou.” (2008, p.22).

Revestem-se do papel de serem “descobridores” de talentos, de “apresentadores” de

conteúdos e “propositores” de valores estéticos e sociais à sociedade. Com isso, e como parte

desse ciclo que integram, passam a adquirir uma autoridade, um crédito junto à sociedade.

Estabelecem-se reputações e conquistam-se espaços diferenciados.

O campo passa a abrigar novas possibilidades de atuação e uma ampliação da rede

de relações. Na década de 70 e 80 uma geração de artistas51

cearenses, por exemplo, deixa a

capital em busca de inserção no mercado nacional, com consequentemente aumento de

repertório cultural e intercâmbio com a região sudeste do País. Dotados de um maior capital

cultural, alguns agentes com mais predisposição para a produção cultural anseiam por

distinção no campo, demonstrando maior ousadia e buscando propor projetos mais “atraentes”

para outros setores da cidade, com o objetivo de extrapolar o mercado restrito da cultura, com

padrões técnicos que se espelhavam nas produções nacionais.

Quando a gente retornou do Rio [de Janeiro] veio a vontade de produzir alguns

espetáculos nossos aqui no Ceará. Desde aí a gente começou a procurar o Sistema

Verdes Mares52... Nós ousamos preparar um evento no litoral do Ceará, e isso não existia nessa época nenhum incentivo estadual, municipal como hoje existe. Para se

fazer um evento, nessa época eram somente os grupos da universidade ou então os

grupos da iniciativa privada... Fortaleza era bem menor e as ações dos produtores

culturais eram setorizadas. Fomos atrás de apoio local, logístico, que eram hotéis

que hospedavam artistas e o apoio logístico local. Foi uma cadeia de apoio de

produtores iniciantes e isso nos fez ficar bem entusiasmados... (S., Grupo 1).

Nos anos 80 já se observa uma mudança na forma de produzir cultura, com a

necessidade da conquista de espaços na mídia e uma inserção na indústria cultural. No âmbito

da política, o País vive o período de democratização e mudanças ocorrem também no Estado,

com a eleição em 1985 de Maria Luiza Fontenele, do Partido dos Trabalhadores para a

prefeitura de Fortaleza. Nesse período, observa-se a criação de novos espaços de fruição e

criação artística na cidade, na forma de eventos promovidos pela Prefeitura Municipal de

51 Fagner, Ednardo, Belchior, Rodger Rogério, Teti, Fausto Nilo, Augusto Pontes, Stélio Vale, Mona Gadelha e

diversos artistas saíam de Fortaleza para se estabelecer nas grandes capitais em busca de viver profissionalmente

da Arte. 52Grupo de Comunicação local com um complexo de TV, Rádio e Jornal. É transmissor da afiliada da Rede

Globo no Estado.

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Fortaleza, que passa a demandar a contratação de produtores locais para organizar as

iniciativas. Estimulados, uma nova geração de produtores passa a aproveitar as oportunidades

e criar outras possibilidades de atuação no campo cultural.

Observa-se nesse período um número maior de shows, festivais de música,

encenações teatrais, produções cinematográficas, dentre outros. E o surgimento de projetos

que não são criação exclusiva de artistas, mas sim pensados por produtores ou pela gestão

pública para a cidade nas diversas linguagens e expressões artísticas. Surge uma geração que,

mesmo não sendo de artistas, integra-se ao campo já na condição de produtor cultural, ainda

que este conceito esteja em formação.

É nesse contexto que os entrevistados do Grupo 2, passam a participar mais

ativamente desse processo e dão seu depoimento:

Nessa época, a Maria Luiza assumiu a Prefeitura de Fortaleza, e tinha alguns

projetos bem bacanas... A gente pegou muita experiência nessa época. Eram

eventos maiores que tinham uma periodicidade e isso obrigava a gente a se

organizar. A gente sentia muito o quanto não tínhamos mão de obra preparada, a

gente se dedicava muito... Aprendemos fazendo mesmo, e a gente tinha que “botar

moral” porque era uma coisa meio sem moral. Você está desocupado e pode

produzir. Então a gente começou a sistematizar as coisas e a organizar cadastros

do pessoal. A gente não tinha também uma metodologia ainda clara, tinha pouca

gente. Quando o evento era maior, sofríamos para dar fluidez ao processo... Era

muito difícil juntar tudo isso e fazer a ligação com a infraestrutura da cidade ligada à prefeitura e a necessidade do evento, segurança aquela coisa toda. A gente sentia

que era bem difícil, era uma época no começo assim de organização era um esforço

muito grande. Mas, muito cedo eu entendi que aquilo era minha profissão que eu

era uma produtora cultural. (C., Grupo 2).

Os novos produtores atuavam em um contexto de precariedade no âmbito

profissional, de mercado e de política públicas. Ou seja, contavam basicamente com sua

disposição. Ainda não era possível pensar a produção cultural como atividade remunerativa

principal e estes produtores precisavam buscar alternativas para viabilizar projetos e garantir

uma remuneração básica. Nessa etapa, os entrevistados relatam a necessidade de desempenhar

diversas outras atividades profissionais no setor de comunicação, publicidade, entretenimento,

educação e outras áreas. Todos esses conhecimentos seriam assimilados e adaptados

posteriormente na atividade da produção cultural.

Realizavam atividades freelancers e pontuais, atuando aonde houvesse trabalho.

Recebiam o pagamento disponível, num misto de desbravamento, aventura e coragem. Eram

poucos profissionais autônomos, que criavam as oportunidades em um campo a ser construído

e, como tal, encaravam-se enormes desafios, inclusive monetários. O que se ganhava em um

projeto, poderia ser totalmente perdido no seguinte.

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Já se observa nesse contexto a formação de pequenos subcampos com

características distintas e complementares: os produtores/artistas que continuavam a viabilizar

seus projetos, os produtores que criavam suas próprias iniciativas e administravam seus

empreendimentos culturais e aqueles que atuavam aonde se apresentasse a oportunidade. No

entanto, ainda era uma atividade árdua, precária e bastante dependente de recursos públicos,

conforme o depoimento de alguns produtores, ao relatar suas experiências no trato das

questões diárias. Enumeramos alguns tópicos para elucidar a riqueza desse momento na

formação dos códigos que hoje já estão instituídos na atividade:

Captação: Visitava dez [lugares em busca de apoio] e levávamos uns sete nãos, ou oito ou nove para ganhar um sim. ... Depois, começava outra rodada com mais dez.

(L., Grupo 1).

Apoio: Não tinha como você ir a um empresário e ter contrapartidas, mesmo por

vias fiscais e de qualquer outra maneira de marketing. Não tinha nada disso. Era na

base de convencer alguém a apostar na sua ideia. Era uma coisa muito romântica,

mas que era um início de um trabalho. Era uma época que também não comportava

uma coisa mais arrojada, eram produções sempre muito simples, a gente sonhava,

mas também não dava para delirar muito. (A., Grupo 1).

Retorno financeiro: Você não tinha um retorno imediato de produção, como hoje a

gente pode quantificar. Hoje você pode até dizer, vou gastar tanto e vou lucrar tanto como produtor. Esse é o meu valor e eu vou ganhar tanto. Nessa época, não tinha

isso não, era fazer e arriscar. Às vezes não ganhar e às vezes perder... (F., Grupo 1).

Visibilidade dos apoiadores e contrapartidas: Eu não misturava [correntes

ideológicas diferentes], como eu também não botava gabinete do deputado da

esquerda, também não botava. Eu botava instituição. Era uma cartilha que eu

mesmo inventava, da minha postura, do meu centro de cidadão, do meu interior. Eu

inventava uma postura ética, para mim mesmo, perante aquele que estava me

apoiando. (L., Grupo 1).

Rede de apoiadores: Eram todos pequenos apoios, em uma rede da qual eu fazia parte, de um determinado movimento, do qual eu estava inserido, e aquela era

minha produção. Era uma produção que envolvia pequenos recursos, nós também,

colocávamos os nossos recursos, eu me lembro que no meu primeiro projeto, eu

trabalhei três anos, de professor e depositava em uma poupança. Gastava pouco, eu

tinha uma poupança direcionada para aquele projeto. (F., Grupo 1).

Forma de apresentação: Nós não usávamos essa termologia de projeto, eu nem

sabia nada, não tinha esse negócio de projeto nem nada. Eu me lembro muito bem

[da primeira vez que um gestor me pediu um projeto]. Nós só fazíamos projetos na

escola. (F., Grupo 1).

Atuação: Eu comecei realizando, só que para mim. Eu não tinha muita noção, a gente ia fazendo... Eu nem tinha noção de como se configuravam o meio... Nós não

tínhamos ainda a visão estratégica, das ações, nós sabíamos das necessidades que

tinham, mas sabíamos que tínhamos que correr atrás. Não existia nem a palavra

checklist. (G., Grupo 2).

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Esse cenário se estendeu com poucas modificações e muitas regularidades,

durante as duas décadas de 70 e 80, sofrendo alterações importantes depois de 1987, quando

Tasso Jereissati foi eleito Governador do Estado em uma gestão identificada com a promessa

de uma mudança, de ingresso do Estado na moderna administração. Contribuíram

significativamente para a transformação desse quadro a criação da Lei Sarney (1986), a

criação da Lei Rouanet (1991) e posteriormente a criação, no âmbito do estado, da Lei

Jereissati (1995).

O que se sucedeu nesse período foi uma significativa transformação no campo da

cultura no Ceará. Além das leis de incentivo, que vislumbravam a possibilidade de novas

formas de financiamento, assistiu-se a uma inserção da Cultura na agenda do Estado em

patamares mais elevados de prestígio e visibilidade. Além disso, houve um desenvolvimento

no mercado cultural estimulado pelas políticas públicas que direcionaram seus esforços no

investimento da indústria cultural cinematográfica, na criação e reforma de equipamentos e

iniciativas de formação na área, temas que já foram tratados nos capítulos anteriores.

As leis de incentivo, apesar de assumirem um papel fundamental na conformação

do campo, foram sendo absorvidas gradativamente. Mudanças que alteraram as relações dos

atores envolvidos e exigiram novos esforços de adaptação, por parte dos produtores. Estes,

além da necessidade de dispor de mais conhecimentos e habilidades, também tiveram que

fazer investimentos para possibilitar a ampliação do mercado e a adesão das empresas

investidoras. Alguns anos se passaram entre o período de criação das leis federais, até sua

efetiva utilização. O mecanismo confirmando as distintas posições de disputa no campo foi

incorporado primeiro na região Sudeste, para depois ser absorvido e utilizado no Ceará.

Interessa-nos aqui, destacar, como essas mudanças foram percebidas pelos

produtores e o que representaram na conformação do campo. Para isso, selecionamos alguns

depoimentos.

A primeira vez que nós começamos a interagir com esses mecanismos foi com a Lei

Sarney, mas era tão confuso, que nós não conseguimos fazer. Tinha uns mecanismos

que ninguém conseguia mexer direito, nós tentamos até aprender algo sobre ela, mas não deu. Aí começou a Lei Rouanet, em 1991 e nós não tivemos experiência

com a Lei Rouanet por um bom tempo. O primeiro projeto que nos fizemos com

incentivos fiscais foi em 1996 pela Lei Estadual. (V., Grupo 2).

A partir da Lei Rouanet começou a se ter uma discussão mais aprofundada do que é

esse ramo cultural. Eu acho que foi o momento que o produtor cultural começou a

ter alguma importância. Antes era muito focado no artista, e acho que a partir desse

momento, o produtor cultural passa a ter um papel fundamental, porque ele vai ter

que ter assim um rigor maior no preenchimento de formulários, no

acompanhamento em prestações de contas, então o produtor ele vai se fazer muito

presente, muito atuante (M., Grupo 2).

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O início [das leis de incentivo] trouxe muita esperança, como se isso fosse resolver

alguns gargalhos. A Lei Federal se mostrou muito cruel, porque nessa época era

muito difícil, o acesso era infinitamente mais difícil do que é agora. Enviávamos

vários projetos antes de obter alguma resposta. Não era algum sucesso não, era

uma resposta do ministério. Então o próprio ministério era ausente mesmo, muito

distante. (C., Grupo 2).

Se trabalhar com os mecanismos de financiamento federais à Cultura não parecia

acessível, tampouco os produtores encontraram facilidade imediata para lidar com a Lei

Estadual. A dificuldade aqui não residia na sistemática de funcionamento da Lei, uma vez que

o processo era relativamente simples e a Secretaria da Cultura se mostrava receptiva e

acessível. No entanto, o mecanismo além de introduzir a prática da elaboração de projetos,

demandou um esforço adicional dos agentes do campo que passavam agora a ter o dever de

prestar contas, apresentando relatórios e documentação fiscal das despesas realizadas. Essas

mudanças também contribuíram para a valorização da atividade do produtor cultural que

agora passava a ser visto não mais só como animador e organizador, mas como um

profissional com tarefas mais específicas e necessárias.

Outra atribuição que passava a competir ao produtor era a obtenção dos

patrocínios, agora já sob os preceitos do marketing cultural, com novas exigências e

demandas. Antes disso, era preciso criar as condições de interesse por parte desses

investidores, que ainda atuavam com base nas relações pessoais e não haviam ingressado na

“era” do marketing cultural.

As empresas não conheciam a lei, as empresas achavam que era uma devassa fiscal.

Algumas empresas de fora, que tinham filiais aqui, passaram a investir na cultura

do Ceará. Nenhum governo teve a expertise de preparar os empresários para

compreender essa lei... Os artistas e os produtores começaram a entender que

precisavam se organizar para que os empresários começassem a conhecer isso... Foi um interesse nosso. Eu fui voluntário aqui na FIEC53 para que houvesse essa

compreensão... Se os empresários não sabiam, muito menos os prefeitos, e os

secretários de cultura do interior. (S., Grupo 1).

Depois de superada as dificuldades iniciais de adaptação às leis e de

esclarecimento do mecanismo aos empresários, observou-se um período de otimismo no

campo, com o surgimento de diversas iniciativas culturais de porte mais profissional no

Estado, relevância artística e qualidade técnica. Havia um ambiente de crença e euforia com a

criação de variados projetos no Estado por parte desses produtores. De festivais e eventos, de

53 Federação das Indústrias do Estado do Ceará.

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porte local e nacional, e uma diversidade de filmes, CDs, livros que passavam a ser

viabilizados sob os auspícios das leis de incentivo.

Teve foi um momento que teve essa abertura e se começou a criar muitas coisas

interessantes. Muita gente pode gravar CD, que antes era muito restrito a quem era

amigo dos políticos. Agora é para quem é amigo dos políticos e dos empresários,

pelo menos é mais um novo componente aí. Eu acho que teve um momento em que

as pessoas estavam animadas. Sabe, teve uma liberdade grande, não teve muita

interferência política na época. Sempre tem, não é? Porque, o Estado ele tem que

realizar os projetos dele, mas tinha certa liberdade... (M., Grupo 2).

O desenvolvimento dessas políticas públicas estimulou também a abertura das

primeiras empresas especializadas em produção cultural no Ceará. Estas foram criadas com a

crença de que haveria mercado para desenvolver seus próprios projetos ou para atender alguns

clientes, oriundos do poder público, associações não governamentais, instituições públicas e

privadas. Formava-se um mercado, que pouco a pouco, passava a absorver novos agentes e

estimular a formação de vocações produtivas na área cultural. Surgem, então, os

produtores/empreendedores.

As empresas de produção cultural passavam a se diferenciar no campo por

atuarem em segmentos diferenciados. Umas se especializaram em determinadas linguagens

artísticas e projetos culturais; outras optaram por priorizar a elaboração de projetos e

prestação de contas para leis de incentivos e editais; outras elegem a organização de eventos

culturais para terceiros; e algumas ainda desempenhavam todas essas atividades.

Permaneciam no campo também os produtores/artistas que resistiam buscando alternativas

para viabilizar suas próprias criações.

No entanto, aquilo que se acreditou ser uma panaceia para a ausência de recursos

e consolidação de um mercado, as leis de incentivo passaram a apresentar suas próprias

contradições e mostrar a continuidade e permanência de antigas mazelas. Concentração,

dependência do Estado, relações de subserviência e fragilidade do sistema de financiamento,

são alguns desses exemplos, segundo os próprios produtores.

Lutou-se muito para se criar leis de incentivos, aqui no próprio Estado. Foi uma

luta constante, agora o que se vê tudo é que isso é sempre uma tensão muito grande. Qual é essa tensão? A tensão é a grande luta para que essas leis sejam criadas,

sejam estabelecidas, e tal. E se percebe que as normas, regras e não funcionam

porque são concentracionárias. E mesmo assim o que se vê é que cada vez mais, é

que o acesso é muito difícil, e que nos terminamos construindo também uma coisa

muito, muito perigosa, que foi entregarmos nas mãos de empresas, a decisão, que

termina sendo ideológica e estética, também sobre a Arte que se vai fazer ou como

se vai fazer isso termina gerando um filtro ideológico muito pesado entendeu? No

meu entender, acho que essas leis todas levaram a uma concentração muito grande.

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Por exemplo, a briga do Sudeste, que é quase oitenta e tantos por cento, mas se

você olhar o próprio Estado mesmo, você vê que é muito concentrado. As empresas

investem muito pouco, você aprova muito pouco, e mais das metades dos projetos

caducam, sem captar nada. É preciso de uma relação de corpo a corpo, que termina

sendo quase uma relação politica também no sentido do mendigo mesmo, de pedir

esmola! (C., Grupo 1).

Mesmo que esses projetos sejam aprovados, depois de aprovados o que fazer com

eles? Então é muito frágil tudo isso. A maioria dos projetos se ancoram em duas ou

três empresas no máximo. Algumas empresas [financiadoras] são do próprio

Governo e aí é que fica mais difícil isso mesmo, e a gente não sabe qual a escolha e a determinação dessa verba, não se sabe na realidade quais os critérios. Não se

sabe mesmo. Então é usado pelo próprio governo para resolver as suas questões.

(C., Grupo 2).

[A lei funcionou] para quem podia, para quem tinha as conexões, para quem era

mais esperto. Como eu tinha o nome já firmado na comunidade, então é claro que

você é ouvido, a pessoa para e escuta o que é que você tem a dizer. Diferente de

uma pessoa que está se lançando. Quer dizer, complicou para esse povo, se eu

começasse no período das Leis de Incentivo, adeus. Por quê? Porque particulariza

muito, tira aquele espírito... Se livra, é como se eles dissessem “Não, isso aqui não

é comigo. É com a Lei de Incentivo”. A pessoa tira o corpo. Um empresário deixa aquela responsabilidade. No começo ainda era um pouco disfarçado, mas hoje é

assim: não tenho nada a ver com cultura, é a Lei de Incentivo. Então, aquele

mecenas apaixonado, só se for dos 45 anos para cima, que ainda se lembram da

gente, porque esses novinhos aí perguntam „Ah! O que é isso?‟” (L., Grupo 1).

Eu não tinha um alcance, não tinha essa, eu não almejava, ou não conseguia

porque talvez eu não tentava. Ou talvez tivesse uma percepção que [meu projeto]

não chegava, ao mundo empresarial, voltado para uma produção mais midiática.

Não tinha essa consciência, mas, na época, talvez eu tivesse um pressentimento que

eu não tinha aquele acesso, então eu nunca busquei esses apoios mais comerciais,

dentro desse lado do empresariado. (F., Grupo 1).

Vivia-se um paradoxo e já se evidenciavam as diferentes posições no campo.

Sentia-se a importância da Cultura, o tema estava mais presente na agenda pública e na mídia

nacional. A cadeia produtiva54

do setor se ampliava e os agentes investiam na formação de um

mercado, mas o modelo nem bem havia começado e já mostrava suas debilidades. Era o final

do governo Fernando Henrique Cardoso e outra transição iria acontecer com a posse do novo

ministro Gilberto Gil. Um dos entrevistados faz uma analogia interessante para a

compreensão simbólica da transformação que iria se processar:

[Gil] era um grande pensador da Cultura e a gente ficava muito feliz vendo tudo

aquilo acontecendo. [Porque antes] é como se você tivesse fazendo a festa na sua

casa, e tinha um bolo muito gostoso lá na sala, só você não podia provar do bolo, porque você só via as pessoas falando do gosto do bolo, mas você não podia entrar,

porque a festa não é sua, é do seu vizinho. Então, [na nova gestão] a gente começa

a fazer uma festa, a gente pode convidar o nosso vizinho e a gente pode participar

também disso. Você começa a entender que... Pode existir uma democratização

54 Conjunto de serviços e produtos que tem seu incremento relacionado com o desenvolvimento do mercado

cultural como serviços de iluminação, sonorização, estruturas, comunicação, gráficas, apresentadores, roadies,

técnicos, etc.

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maior sobre a Cultura. E ele não partiu do princípio das capitais, colocando isso

aos secretários. Os Pontos de Cultura foram um grande passo, a consideração dos

Mestres da Cultura, também foi outro grande passo... (S., Grupo 1).

Percebe-se a repercussão no campo, na possibilidade de alteração na correlação de

forças nas disputas no campo da cultura. Além do tradicional espaço dos agentes que

dispunham de capital cultural e econômico, localizados no sudeste do País e nas capitais

brasileiras, novos agentes são convidados a ingressar no campo e participar da festa. Os

valores da nova gestão, que se pretende mais democrática, também repercute no Ceará e

passam a se sobrepujar aos preceitos do marketing cultural anteriormente mais prestigiados.

Muita coisa mudou, porque já não é mais só a experiência, entra também um

aspecto interessantíssimo, que é o diálogo. A possibilidade de você conhecer

pessoas que estão se dedicando exclusivamente a essas temáticas [da Cultura],

pessoas que estudam profundamente essa questão de mercado, de diálogo com

empresas, que exploram toda uma questão de captação de recursos e tal. E também

hoje, quer dizer, de um tempo para cá, você também tem os workshops, e oficinas.

Fernando Henrique, ele não influenciava, e sim ele reduzia o poder de impacto daquilo que a gente queria fazer, porque era um período de política neoliberal e a

visão do Estado ela não priorizava essas coisas que eu gosto muito de trabalhar que

é a cultura tradicional. (A., Grupo 1).

O Gil trabalhou muito essa questão, simbólica, da autoestima, que o Lula trazia

também. O Lula trazia essa coisa do povo brasileiro, da possibilidade de se

acreditar no povo brasileiro. O Gil foi muito sensível a isso, captou essa mensagem

do governo Lula, ampliou isso, e criou programas, de uma amplitude maior, como o

Mais Cultura55, eu acho que o programa Mais Cultura, foi um grande programa,

através dos pontos de cultura. O Gil não construiu absolutamente nada, nenhuma

parede, mais ele foi o cara que mais construiu essa dinâmica, porque ele potencializou o que existia. (F., Grupo 1).

Como já falamos, para atender aos novos preceitos, surgem os editais públicos,

como contraponto as leis de incentivo e com a justificativa de serem instrumentos mais

democráticos e universais. Os editais, juntamente com outros programas, como o Cultura

Viva, priorizam a inserção dos chamados grupos tradicionais, as culturas populares e o

protagonismo cultural. Segue-se um período onde novos discursos são aprendidos e práticas

são readequadas para se ajustar às políticas vigentes. São vários os reflexos dessas políticas

nas conformações do campo. Um deles é a institucionalização de inúmeras atividades

culturais, ligadas aos movimentos sociais e populares, que eram desenvolvidas de maneira

55 Programa do Ministério da Cultura que tem entre suas diretrizes garantir o acesso aos bens culturais, promover

a diversidade cultural, qualificar o ambiente social das cidades e gerar oportunidades de emprego e renda.

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informal e que agora passavam a se legalizar para receber recursos por meios dos

instrumentos públicos de fomento à Cultura.

Nesse processo, novos agentes passam a ingressar no campo, desempenhando

atividades de organização dessas instituições e de produção cultural. Pessoas que, além de se

organizar institucionalmente, passam a sentir a necessidade de dominar os códigos para

preenchimento de formulários e editais. Também se inserem no campo por meio da

participação nos processos de construção das políticas culturais, aproximando-se do

Ministério e demais instituições locais e dos movimentos que se organizavam em torno da

cultura e dos novos processos da gestão cultural.

Alguns relatos retratam a riqueza desse momento, que deixou várias repercussões,

como descrito a seguir:

[Senti necessidade de me aproximar do MinC e fui morar no Distrito Federal] Em

Brasília eu colocava o meu terno e a minha gravata e ia participar da agenda, que

eu pesquisava antes, do Ministério da Cultura, ou de qualquer ação que estivesse

ligada para que eu pudesse participara como diretor da minha instituição cultural.

Queria marcar a minha presença, compreender os mecanismos, depois disso, eu iria

buscar os meus recursos... Era a minha faculdade. Para a realização de um projeto,

eu precisaria naquele momento conhecer o mecanismo, saber por que aquele

dinheiro estava sendo dado para mim. Preencher uma planilha, aquilo para mim

não me interessava, o que interessava no momento era aprender porque que a gente

estava dentro desse processo, porque que nós somos gestores culturais. Porque na verdade, essas reuniões, esses conselhos, essas coisas todas que são da gestão de

um governo, elas só são gestões, mas quem executa somos nós. (S., Grupo 1).

Eu fui um produtor que procurei entender os contextos dos editais, e me adaptar as

linguagens, que estivessem mais no vácuo ali para ocupar... Então eu mudei, porque

eu acabei estudando um pouco mais, percebendo um pouco mais essas nuances dos editais. Precisei me adequar aos editais, às linguagens dos editais. Quando eu

participo de um edital na realidade eu tenho que estudar. Eu estudo até os termos

ortográficos, que ele vai usar, qual o objetivo que ele quer. Eu vou atingir o mesmo

objetivo que ele quer, a terminologia que ele usa... (L., Grupo 1).

Nesse período, entram diversos agentes no mercado, que, com outras formações,

passam a desempenhar a atividade de produtores culturais. São agentes oriundos dos

movimentos sociais, políticos, grupos tradicionais, grupos artísticos e também jovens que já

ingressaram no campo com formação superior diversificada, vislumbrando a atividade da

produção e da gestão cultural como uma realidade profissional possível.

A trajetória de um dos entrevistados, integrante do Grupo 3, exemplifica bem o

perfil do novo produtor e ilustra as semelhanças de algumas práticas desse grupo com antigos

processos, assim como as mudanças ocorridas. Ator destacava-se no seu coletivo teatral por

sua capacidade de articulação e organização. Preferiria seguir a carreira nas artes cênicas, mas

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almejava uma profissão que lhe garantisse mais estabilidade profissional. Optou por cursar

administração, uma vez que assim poderia se aproximar dos conceitos de gestão da cultura e

administração do grupo artístico.

Investiu no estudo da área, escreveu sua monografia sobre administração de

projetos culturais e estagiou, durante o período universitário, na gestão da cultura. Beneficiou-

se da carência de quadros para trabalhar nessa área e foi absorvido pelo poder público em

diferentes governos assim que concluiu o curso superior. Após trabalhar em três mandatos da

gestão pública, desejou mais estabilidade e novos desafios e optou por abrir sua própria

produtora. Jovem, vivencia os desafios de ser um empreendedor cultural e administrar sua

empresa em mercado ainda precário, faz uma pós-graduação e já possui uma experiência

diversificada. Sua trajetória ilustra bem o novo perfil profissional do produtor/gestor.

Eu nunca tinha trabalhado diretamente com gestão pública, então eu sofri bastante,

para aprender tudo, pegar todo o feeling da coisa, porque eu sabia muito, mais era

uma coisa muito teórica, muito ligada também aos conhecimentos, ligado a

administração, a gestão de projetos, mas nada de prática, enfim estava acabando de

sair de uma graduação. E [trabalhar na gestão pública] foi uma escola maravilhosa

para mim, foi um período que eu mais me desenvolvi. Eu fazia esse trabalho de

assessoria de projetos, todos os projetos que envolviam captação de recursos. Eu

que elaborava o projeto, formatava o projeto, e encaminhava os projetos para as

instituições, e cuidava do projeto até o recurso entrar dentro da conta da secretaria.

(S., Grupo 3).

Quando eu passei a de fato focar mais na empresa, e me desvencilhar, de fato no

trabalho na gestão pública, foi quando as fichas começaram a cair. O meu bolso

começou a apertar, porque antes era muito prático, eu tinha o dinheiro todo mês

fixo, ali e tal. Tinha uma certa segurança, daí quando eu passei a não ter essa

segurança, quando eu comecei a entender essa sazonalidade, do mercado cultural,

de que o primeiro semestre é morto, porque de fato o primeiro semestre para gestão

publica é muito complicado fazer com que esse dinheiro saia. A entender que até o

carnaval, nem pense em ter renda, porque não vai aparecer, não vai ter um órgão

publico que vai lhe financiar um projeto seu dentro desse período, então tudo isso

começou a cair a ficha, depois que eu comecei a focar de fato mais na minha empresa. (S., Grupo 3).

Outro exemplo dessa nova geração de produtores pode ser percebida na história

de outro entrevistado que, participando dos movimentos políticos e sociais ligados ao Partido

dos Trabalhadores, já dominava os conceitos de cidadania cultural56

, que posteriormente

viriam a ser implantados na gestão presidencial de Lula.

56 Cidadania cultural – Conceito defendido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo na gestão petista

de Luiz Erundina (1998-1992). O termo se refere a concepção que compreende a cultura como um direito do

cidadão e, em particular, como um direito à criação desse direito por todos aqueles que têm sido sistemática e

deliberadamente excluídos do direito à Cultura. Por direito à Cultura se entende: o direito de produzir cultura; o

direito de participar das decisões quanto ao fazer cultural; o direito de usufruir dos bens da cultura; o direito de

estar informado sobre os serviços culturais; o direito à formação cultural e artística pública e gratuita; o direito à

experimentação e à invenção do novo nas Artes e nas Humanidades; o direito a espaços para reflexão, debate e

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A familiaridade com os ideais e o círculo de amizade pessoal com aqueles que

viriam a ocupar o poder, aliados ao seu capital cultural, colaboraram decididamente para que

esse produtor se posicionasse em uma perspectiva que favorecesse a proposição de iniciativas

bem sucedidas no campo da captação de recursos, no domínio das regras políticas e na criação

de iniciativas que estivessem bem posicionadas perante as políticas públicas. Consegue olhar

para o ambiente e identificar as oportunidades, compreendendo a sua atuação sob um viés

político e social ampliado. Em suas próprias palavras:

Alinhamos nossos projetos com as políticas públicas. Estávamos alinhados com a

necessidade de integração da América Latina... Pensamos também em projetos que

melhorem a nossa condição de trabalho – do produtor. Procuramos perceber as

necessidades do mercado, do Brasil. Um mercado cultural mais potente é melhor

para todos os produtores. (H., Grupo 3).

O peso do social no conjunto das coisas [da cultura] tem a ver com o jeito do PT

conduzir. Não digo que é bom, nem ruim. É importante ter, mas precisa ver até onde

a mão pesa sobre isso. É complicado. E a gente sente muita dificuldade, porque

acaba por reproduzir modelos, palavras, conceitos. Trabalhar dentro de uma repetição mais do que com um espaço de criatividade e estamos trabalhando com

cultura, conhecimento. (H., Grupo 3).

Outros produtores ingressaram no campo da produção cultural na gestão Lula,

oriundo de agremiações culturais, associações ligadas às culturas populares e movimentos

culturais estudantis ou comunitários. Esses, muitas vezes, sentem um pouco mais de

dificuldade de se posicionar no campo e buscam aumentar sua legitimação por meio da

presença nos processos de participação social promovidos pelo Estado, no acompanhamento

das políticas públicas, além de depositar nos editais a viabilidade de seus projetos e em outros

programas públicos, como o Cultura Viva. Alguns desses agentes iniciaram sua atividade em

municípios do interior, com atuação próxima à gestão municipal, as políticas de cultura e os

esforços de implantação do Sistema Estadual de Cultura. Dois depoimentos, de agentes

diferentes, retratam esse grupo.

Nós éramos produtores culturais da cidade, atuando nos grupos de teatros, nos

corais e nas festas culturais cívicas. Nós produzíamos e nós refletíamos aquela

nossa ação, como proposta para uma coisa que o município todo tivesse como

direito, que seria a política pública. Nós criamos algumas definições, alguns

instrumentos para essa política pública de cultura se estabelecer, a secretaria,

programas culturais e etc... (Fe., Grupo 2).

crítica; o direito à informação e à comunicação. (CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural. São Paulo: Editora

Fundação Perseu Abramo, 2006).

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Alguns livros que eu consegui [produção cultural, políticas públicas], eu comprei e

fui estudar para entender mesmo o funcionamento. Foi quando eu comecei a

trabalhar com meu grupo, e aí comecei a produzir... A gente ganhou alguns

projetos, mais aí não estava funcionando porque era muito tempo e não tinha

dinheiro. Eu deixei o grupo, e já tinha o projeto de um evento. Já estava nessa

busca de realizá-lo, e aí fui migrando... A gente tem uma veia na tradição porque eu

fiz Pós-Graduação em Folclore. Eu gosto e eu sempre tento buscar trabalhar com

coisa do patrimônio histórico e material, só que não trabalho só com patrimônio

histórico, eventos em geral digamos assim mais, dentro da coisa chamada evento

cultural. (M., Grupo 3).

Outros ainda chegaram ao campo pelo convívio com as artes bebendo na fonte

criada pelos precursores e beneficiados pela maior oferta de festivais, eventos e projetos

culturais que já aconteciam na cidade com certa regularidade, realizados pelo Estado e pelos

produtores/empreendedores. Incidiu sobre esse processo a existência de um mercado, ainda

que incipiente, que demandava novos profissionais, técnicos e a oferta de cursos de curta

duração na área de elaboração de projetos e produção cultural, que sinalizavam a necessidade

de novos profissionais e a oportunidade de investimento no campo. É possível fazer uma

analogia desse grupo com os primeiros produtores/artistas do Grupo 1. Com novas leituras e

interpretações também estão no campo com o desejo de intervir criativamente. Não só realizar

seus projetos, mas interferir artística e conceitualmente no campo.

Acho que eu sou produtora cultural por necessidade de ver as minhas ideias

realizadas. Quando eu comecei a ter ideias, e querer ver elas acontecendo eu cansei

de esperar por outras pessoas que abraçassem essas ideias e fizessem elas entrarem

em ação. Para mim foi uma coisa que eu não fui muito atrás... Eu me vi tomada por

essa necessidade de produzir para ver acontecer essas coisas que eu desejava que

fossem realizadas. Acho que poderia mudar o nome, eu não sou produtora cultural,

eu sou produtora passional, porque eu só produzo aquilo que realmente eu sou

apaixonada, aquilo que eu realmente acredito. (Li., Grupo 3).

Quando eu resolvi ser produtor, eu sabia que para eu ser produtor eu tinha que ter produtos de excelência eu tinha que produzir isso. Para eu produzir isso eu tinha

que estudar eu tinha que aprender. Eu fiz isso. E criei mecanismos para que isso

acontecesse. Então eu comecei a entender que eu não queria ser esse produtor da

execução e de resolver esse problema da existência nem queria ser aquele cara que

ficava lá na execução do dia a dia do projeto e nem queria ocupar esse função local

do produtor do diálogo da existência. Sou meio ambicioso acho que temos que ser

ambicioso às vezes. Eu queria saber, e queria chegar à onda no nível nas pessoas

que criam essas políticas que criam esses conceitos. (V., Grupo 3).

O aumento da oferta de editais e de projetos passíveis de serem apoiados por meio

de fundos de cultura57

gerou também a inserção de uma nova modalidade de participação no

57 Os projetos para serem contemplados com recursos dos Fundos de Cultura (federal e estadual), só podem ser

propostos por instituições sem fins lucrativos. Lei 8.313 de 23 de dezembro de 1991 e Lei 13.811 de 16 de

agosto de 2006.

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campo da produção cultural: a criação de diversas associações e fundações culturais que

atuam na área da organização da cultura. Administradas, muitas vezes, por produtores que já

possuem uma empresa privada na área da produção cultural, essas instituições são um reflexo

das políticas públicas, que cobram a existência de entidades sem fins lucrativos para serem

beneficiárias de recursos para financiamento de seus projetos. Algumas funcionam quase

como uma extensão das empresas privadas de produção cultural; outras representam coletivos

de produtores ou agentes culturais, o que por si já aponta para a necessidade de novas relações

a serem desvendadas.

Como vimos, a cada tentativa de apresentar o campo da produção cultural, outros

subcampos vão se configurando e, com eles, novas e complexas relações, cada uma com uma

combinação diversificada de possibilidades e desdobramentos, tornando, assim, nosso

exercício precário e limitado. No entanto, a impossibilidade de alcançar o todo, não elimina a

validade de captação de aspectos dele a que nos propomos.

É importante destacar aqui que essa multiplicidade de novos agentes,

denominados produtores/gestores, entra em processo de interação em um campo já

constituído por produtores/artistas e por produtores/empreendedores, que permanecem no

mercado criando projetos em áreas com linguagens específicas, disputando verbas para

financiar suas criações artísticas e projetos culturais.

É interessante observar que entre essas três gerações há alguns pontos de

convergência como uma dose de idealismo: o desbravamento do campo e a necessidade de

adaptabilidade permanente; a afinidade pessoal com algumas linguagens específicas; a pouca

diferenciação entre os espaços de trabalho, vida e arte e uma alta dose de idealismo, são só

alguns dos exemplos.

No campo da produção cultural contemporânea pode-se identificar ainda um

espectro amplo e diversificado, também composto por várias subcampos de produtores

culturais que, ao ingressar no mercado sob os auspícios das leis de incentivo e, continuaram a

realizar suas atividades durante o governo Lula, assumiram configurações diferenciadas e de

difícil definição conceitual. Encontram-se nesse campo diretores de empresas de produção

cultural, com mais de dez funcionários permanentes; produtores/consultores especializados

em assessorar empresas na gestão de seus projetos; empresas cuja especialidade é formular,

inscrever, captar recursos e eventualmente produzir; produtores que prestam consultoria para

municípios do interior na elaboração de projetos e de planos de cultura e, uma expressiva

quantidade de empresas criando e realizando seus próprios projetos em diversos segmentos:

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de eventos internacionais à manutenção de grupos de culturas tradicionais, e nas diversas

linguagens artísticas e produtos culturais.

A diversidade e a complexidade são tantas, que não é possível nem o consenso

sobre como os próprios agentes nomeiam sua atividade profissional, como mostra a

diversidade de identificações fornecidas pelos entrevistados: realizador; pesquisador da

cultura; produtor musical; produtor artístico; gestor; difusor de cultura; articulador; assessor

de cultura; consultor; administrador cultural; empreendedora cultural e - é claro - produtor

cultural.

Essa mesma variedade se apresenta na forma de atuação daqueles que também

atuam empresarialmente. Para que esses subcampos e suas distintas interpretações fiquem

mais perceptíveis, reproduziremos aqui algumas apresentações que os entrevistados desse

grupo fizeram de sua atividade profissional/empresarial.

A gente passou por muitas possibilidades de empresa e a gente escolheu trabalhar com lei estadual. Teve duas coisas que a gente estabeleceu: que ia trabalhar só com

incentivo fiscal e que a gente não ia fazer produção de forma direta. A gente

também teve como estratégia atender o mercado... Então como a gente optou por

atender o mercado, nós temos muitos projetos rodando. Não são nossos, tem alguns

que estão no nosso nome, pois emprestamos [o nome para ser proponente].

Fazemos para as pessoas, pois a pessoa não tem capacidade técnica. Mas tem

muitos projetos que são de artista e que são de outros produtores porque eles

também não têm essa capacidade de fazer. Então a gente vai gerindo... Hoje a gente

é basicamente gestor de projetos. A gente era conhecido como captador de recursos

e a gente aboliu esse termo aqui. Nós somos agenciadores de recursos que parece

uma coisa só semântica, mas não é. A gente só faz o projeto se ele tiver viabilidade, que antigamente a gente fazia todos e buscava a viabilidade, hoje não a gente senta

vê a viabilidade, a gente não perde tempo. (F., Grupo 2).

Eu chamo de assessoria de projetos, eu chamo de consultoria, porque na verdade a

minha relação com isso também é uma relação muito estreita com as empresas. Eu

não tiro um projeto da cartola e acho que ele vai dar certo e saio correndo atrás

dele. Eu tento, dentro do que as empresas imaginam articular coisas que são

interessantes dentro de problemáticas, dentro de dinâmicas... Enfim, aí é onde eu

acho que eu entro, que é uma coisa mais delicada que é o que propor, o que definir

como fazer. Então eu não posso chamar isso de simplesmente um processo de

produção, é um processo de criação, de formulação de uma produção para eles. (S.,

Grupo 2).

A gente começou a pensar também como poderíamos contribuir para essa coisa da

formação dos agentes, em todos os sentidos, não é a formação só técnica não... É

sobre como que essas informações são democratizadas... A gente trabalha para o

restante dos outros agentes culturais. A gente planeja, a gente elabora projetos, e a

gente executa projetos e no meio disso a gente faz isso [formação dos agentes

culturais]. Faz formação, integra os agentes. Temos adicionado isso as nossas

tarefas. (C., Grupo 2).

Realizamos alguns projetos que são da própria empresa e projetos que são de

entidades, de outras pessoas que pediram para nós fazermos. Eu crio essas coisas, eu trabalho, eu vou atrás de outros projetos pontuais, porque eu preciso de dinheiro

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para me manter, e manter a empresa, porque dentro dos meus projetos [eventos]

não dá para tirar muito dinheiro. (L., Grupo 2).

Por fim, diante de um campo tão multifacetado, não se torna uma tarefa fácil

conceituar o que faz, quem é e qual o papel social e profissional atribuído a esse agente, ainda

que com nomenclaturas diversas. Vários aspectos contribuem para essa “polifonia”. O caráter

recente da profissão, a ausência de um processo formativo consolidado e a não

regulamentação profissional são alguns deles.

Entendemos que, para uma melhor compreensão da atividade e de sua função

social, é muito importante que seja dada voz aos próprios protagonistas dessa história, como

uma forma de unir os diversos fios que formam a rede, procurando fazer emergir o próprio

tecido dessa trama. Uma vez destacado, talvez possa ser melhor percebido, tornando seu lugar

no sistema da cultura mais tangível.

Acreditamos que apresentar os diversos entendimentos da produção cultural

descrito por seus próprios protagonistas, em um exercício de autorreflexão, é fundamental

para que a atividade supere sua condição de invisibilidade e para os objetivos desta pesquisa.

Não serão apresentadas todas as descrições, mas procuraremos selecionar as que apresentam

diferentes compreensões e pontos de vista complementares sobre a atividade do produtor

cultural.

Ele é fundamental, para você ter um cenário, um setor, vamos dizer assim, uma área, um campo cultural. Eu acho que é ele que vai fazer as coisas acontecerem. O

artista ele faz a parte da produção, mas quem coloca em circulação, quem dá

visibilidade, quem leva para o público é o produtor. O acesso do público vem

através do produtor, então eu compreendo assim que esse setor artístico sem o

produtor cultural não existe. Acho que é função mesmo do produtor cultural tentar

convencer um conjunto de atores por um projeto comum. Conciliar todos esses

interesses eu acho que esse é o exercício mesmo do produtor cultural. (M., Grupo

2).

Eu acho que o nome produtor cultural um pouco reducionista. Eu acho que você é

gestor, porque na verdade você não só produz, porque você sabe que produção é só

um momento. Quando você gere você entende o processo desde o início, percebe como é que faz o projeto. Acho que a gente pode inclusive ampliar esse conceito.

Produção é só uma parte do processo inteiro que a gente tem que fazer... (F., Grupo

2).

Eu sou um difusor de cultura. Eu acho que o meu trabalho dentro desses projetos é

de fermentar a cultura mesmo. (L., Grupo 2).

Produtor cultural é o cara que comenta é o comentador da cultura. É o cara que faz

as pontes, que faz as ligações, faz os contatos. Eu acho que é importante o papel do

produtor cultural. Embora não seja regulamentado e também não seja reconhecido,

é importantíssimo fazer esse papel. (X., Grupo 2).

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O produtor ele é prático, ele quer fazer o negócio acontecer e normalmente não

precisa ser o artista. A pessoa que pensa na coisa, às vezes joga muito alto, solta

muito a imaginação, joga todo o potencial criativo. É um casamento muito

interessante [artista e produtor]. Não dá para não ter um produtor realmente. (C.,

Grupo 2).

Somos bem articuladores mesmo, mobilizadores e sonhadores. (F., Grupo 2).

Eu acho que o produtor é esse grande engenheiro. Ele vai montando esse processo

de circular, de montar, de vender... A gente tem que ter esse conhecimento dilatado,

pois produtor não é só um cara que carrega gente para um lado e para o outro, só pra ver se um palco está pronto. Produtor tem que saber de conceito tem que

entender a linguagem. Se o cara está fazendo música ele tem que saber o que é

música, ele tem que saber o histórico daquele artista, que tipo de música que está

produzindo... Qual é o histórico disso, saber qual a referência disso mundialmente.

Se ele [o artista] é ou não importante, se isso é ou não importante pra cidade, para

um lugar dele sabe?! Eu acho que quando um produtor começa a entender isso ele

começa a contribuir com o lugar dele. Eu tenho que começar a entender, o que é

que eu, como um produtor tenho que começar a oferecer pra esse lugar pra

começar a transformar esse lugar. Esse produtor articulador, esse produtor

provocador é o que mais me agrada. (V., Grupo 3).

Essa profissão de produtor cultural, eu vejo que ainda não é muito bem definida. Na

minha concepção eu vejo que o produtor é aquele que coloca a mão na massa

dentro dos projetos culturais, ainda mais das coisas operacionais, de logística, e tal.

Já essa visão de um profissional articulador, que concebe, pensa, planeja, e executa

um projeto, gere um projeto cultural, eu vejo mais ele na posição de um gestor. Eu

digo que eu sou administrador, porque esse perfil de gestor é mais para um

administrador. (S., Grupo 3).

O produtor precisa entender que ele não é um tarefeiro. Ele trabalha com

conhecimento e seu projeto é um instrumento de gestão. A gente planeja, temos

capacidades. Temos que ser elevados a uma categoria mais autônoma, ter mais prestígio social. (B., Grupo 3).

O produtor cultural ele é necessário porque o artista em si, ele não sabe

administrar a realização por completo, do princípio ao fim, de escrever o projeto,

prestar contas, isso não cabe ao artista. Eu acho que, na medida, em que a gente vai

colocando essas funções sistemáticas para os artistas realizarem, a gente vai

cortando as asas, e vai podando um pouco o espaço da criatividade da realização.

Então eu acho que o produtor cultural é essencial para que exista a movimentação

cultural no nosso país no mundo. (L., Grupo 3).

Quem bota gasolina nesse negócio somos nós. Ser o combustível disso, esse é o

nosso papel. (F., Grupo 2).

A despeito das inúmeras formas de se posicionar no mercado, um dos primeiros

aspectos que merece ser apontado como definitivo para o estudo desse campo é a

compreensão do papel relevante que esse agente ocupa no sistema da cultura. Atuando na área

de elaboração de iniciativas que conferem vida, concretude e dinamicidade à cultura no

Brasil, esses produtores assumem uma ocupação necessária para o funcionamento do sistema,

atuando nas diversas linguagens artísticas e interagindo com as outras instâncias de criação,

circulação, consumo, divulgação, etc.

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A produção cultural ganha uma dimensão maior ainda pelas características

simbólica, criativa, operacional, política, econômica da cultura. Na prática, são eles que, em

sua maioria, dão materialidade às diretrizes e políticas públicas, ocupando-se a dar corpo e

concretude a inúmeras iniciativas culturais em diversas localidades do País. É no campo, no

embate e na disputa pela ocupação dos espaços entre produtores, artistas e Estado que as

políticas públicas vêm sendo criadas e readaptadas.

É a necessidade da produção cultural que a lei responde, ou que os programas

respondem. Você pode identificar claramente: esse programa aqui nasce realmente

dessa discussão do produtor, dos impostos, das isenções, das facilidades de

intercâmbio cultural, programas de viagem, edital de manutenção de grupo...

Então a política pública ela parece que responde a essa instância que é o produtor.

E é isso mesmo que deve a quem está vivendo atuando. O produtor, diferente dos

teóricos, ele não está pensando sobre isso, ele está vivendo isso, então muitas coisas na produção cultural você só descobre que elas precisam existir, na própria prática

daquilo. (Fe., Grupo 2).

É, portanto, o produtor cultural um receptor e um emissor. Ou, como afirma

Barros, um “roteador de informações alternativas e possibilidades dinâmicas de construção de

cenários prováveis, mas também de cenários utópicos.” (BARROS, 2008, p.113). Roteador

nos parece um termo bem adequado para definir o grande número de possibilidades de

conexões possíveis no campo, assim com a multiplicidade de formas e combinações que se

movimentam no mesmo tempo e espaço. Esse roteador administra dimensões subjetivas e

intangíveis em uma rede extensa e diversificada de relações e cenários.

Esse roteador também precisa ter um suporte para dar sustentação e efetividade às

atribuições que lhe são conferidas. No Brasil, ainda observamos uma pouca percepção social

da relevância da Cultura e da sua inclusão como um tema político prioritário. Ainda não

temos um mercado formado por consumidores de cultura e os produtores culturais

movimentam o campo sob influência direta das políticas de financiamento à cultura que, no

Brasil, tem como estrutura central as leis de incentivos e editais.

Este mecanismo, juntamente com as diversas políticas públicas, tem agido sobre o

campo e em intensa relação de pressão e conformações. Empresários, fornecedores,

movimentos sociais, artistas e diversos outros agentes se somam a esse campo de tensões.

Longe de ser uma relação passiva, esta se dá em uma intensa perspectiva relacional de

influências mútuas que conformam o campo e formam novas configurações. Faz-se

necessário mudar a própria concepção que se tem de produtor, minimizando seu lugar de

“pedinte ou receptor” e percebê-lo como ativador do sistema.

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Na verdade os produtores culturais são agentes do Estado, para realizar as ideias

que os Estados têm para a Cultura, ou são agentes das empresas para realizar as

ideias que as empresas têm. Um outro, consegue furar isso, e trazer uma ideia sua.

O lugar do produtor cultural é mais importante do que o lugar do poder público

nessa questão da cultura. Porque ele é o provocador... [aponta] para onde nós

devemos prestar atenção, para onde nós devemos olhar agora. O que o produtor

cultural faz, não tem poder público que alcance pelos seus instrumentos... [ele atua

em] uma comunidade de boi que mora no sertão central, a não sei quantos

quilômetros de uma cidade. Não tem poder público que dê conta de alcançar isso,

de alcançar a percepção sobre isso... Então, o produtor cultural ele é como se ele

fosse um agente de desenvolvimento, que presta atenção nos potenciais e provoca um encontro das forças que podem mobilizar esses potenciais. (Fe., Grupo 2).

É com esse entendimento do papel social do produtor cultural e já tendo

identificado aspectos importantes de como a atividade foi conformada nos últimos anos, que

chegamos agora ao ponto de examinar, com mais profundidade, não só o “lugar” que o

produtor ocupa, mas “como” ocupa esse lugar.

Não só por se encontrar ainda em processo de construção de suas bases, mas

também por natureza complexa, mutável e sistêmica, é imprescindível um olhar para a forma

como algumas relações se estabelecem e que repercussões têm gerado no campo da produção

cultural. É o que tentaremos apresentar agora, ainda que cientes da incompletude desta

missão, selecionando algumas questões para serem aprofundadas.

4.2 CONFIGURAÇÕES E PARADOXOS

Como vimos a própria atividade do produtor cultural é, em si, uma atividade

relacional, devido a seu papel de intermediador e propositor de iniciativas e conexões. A todas

as questões relacionadas ao próprio exercício da atividade de produção cultural, soma-se uma

quantidade significativa de interferências e contingências externas, além das relações que se

estabelecem no próprio campo, entre os diversos componentes do sistema da cultura.

Bourdieu, ao tratar do campo da produção artística, traz elementos que se

mostram pertinentes ao campo da produção cultural:

A forma das relações que as diferentes categorias de produtores de bens simbólicos

mantêm com os demais produtores, com as diferentes significações disponíveis em

um dado estado do campo cultural e, ademais, com sua própria obra, depende

diretamente da posição que ocupam na hierarquia propriamente cultural dos graus de

consagração, tal posição implicando numa definição objetiva de sua prática e dos produtos dela derivados. (BOURDIEU, 2005, p.154).

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A disposição que estes ocupam está diretamente relacionada ao prestígio das

iniciativas culturais desenvolvidas, que transfere poder simbólico aos produtores, poder este

que os une e/ou os distingue no interior do campo. O prestígio e o reconhecimento do valor

artístico e/ou cultural de seus projetos, seja pela mídia, nas esferas cultas e/ou educacionais,

ou pela própria sociedade, conferem àquele produtor um lugar privilegiado no espaço onde

atua que repercute diretamente na maneira como é percebido por seus pares, na obtenção de

visibilidade e apoio para seus projetos e, principalmente, na capacidade de influenciar o

próprio campo. Esse aspecto é tão relevante no estudo do campo que merece a seguinte

observação de Bourdieu:

Se, em um estudo do campo da magistratura, não se considerar o presidente do

Supremo Tribunal de Justiça ou se, se em um estudo sobre o campo cultural da

França em 1950, não se considerar Jean-Paul Sartre, o campo fica destruído, porque

estes personagens marcam, só por si, uma posição. Há posições de um só lugar que

comandam toda a estrutura. [grifo nosso]. (BOURDIEU,1989, p.40).

Cabe-nos, no estudo da produção cultural, buscar compreender as diferentes

posições desses agentes e o seu poder de influência no próprio campo, que pode se apresentar

de maneira explícita, como observado por Bourdieu, extrapolando as próprias dinâmicas do

campo, ou de maneira menos evidente, no interior do campo, mas ainda com forte influência

entre seus componentes.

O campo da produção cultural no Ceará não é homogêneo e apresenta distintos

espaços de atuação, prestígio e capital. Esse aspecto se apresenta como uma percepção, difusa

e imprecisa, porém, presente e que transparece na fala dos próprios entrevistados.

Contribuem para a inserção do produtor em determinada posição de prestígio,

diversos fatores: o seu capital intelectual e cultural; as relações políticas e sociais que

estabelece; o tempo de permanência no mercado; o prestígio obtido nas instâncias de

consagração (mídia, títulos, premiações, etc); as linguagens artísticas que trabalha; o prestígio

e a inserção nos campos nacional e internacional da cultura; a credibilidade e reconhecimento

de seus projetos; a proximidade ou afastamento de suas atividades com o comércio e o

mercado empresarial e até a retribuição financeira que recebem na atividade, dentre outros.

O depoimento de um produtor ilustra essa diferenciação. Como atua com projetos

exclusivos do rock, reconhece uma posição diferenciada, com acessos mais restritos aos

patrocinadores e outras situações que o desfavorecem no campo. Situação observada tanto

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internamente, entre os próprios produtores, e externamente, com patrocinadores e mídia,

dentre outros.

Eu nunca consegui trabalhar com empresa privada... Porque quando nós batemos

na porta da empresa todos falam que não tem interesse dizem que já desenvolvem

projetos com outras entidades. Aí a gente acaba que nunca consegue... Rock é

associado à violência e a droga, dizem quem não querem o nome associados a este

tipo de imagem. O estigma é grande. Diminuiu bastante, mas ainda existe. (X.,

Grupo 2).

Segundo Bourdieu (2008), a cada posição corresponde um número de

pressupostos. Esses aspectos, longe de serem consensuais e explícitos, também são

cambiantes e variam de acordo com cada subcampo. Alguns posicionamentos aproximam os

integrantes, outros os diferenciam. Um dos pontos comuns à grande maioria dos produtores

culturais são uma identificação e cumplicidade mútua, um sentimento de pertencimento a uma

categoria elevada, reverenciada por aqueles que vivem da “cultura”. O compartilhamento

desses valores os mantém coesos, destacando sua participação na sociedade em contraposição

com aqueles produtores que atuam na esfera iminentemente da indústria cultural, promovendo

produtos artísticos de caráter comercial sem nenhum prestígio simbólico e “valor cultural”.

Segundo Bourdieu:

É ainda nas características dos bens culturais, e do mercado onde são oferecidos, que

reside o princípio fundamental das diferenças entre os empreendimentos comerciais

e os empreendimentos criativos. Um empreendimento encontra-se tanto mais

próximo do pólo comercial (ou, inversamente, mais afastado do polo cultural),

quanto mais direta ou completamente os produtos oferecidos por ele no mercado

corresponderem a uma demanda preexistente, ou seja, a interesses preexistentes, e a

formas preestabelecidas. (BOURDIEU, 2008, p. 59).

Há um entendimento implícito que aproxima os produtores culturais, um tipo de

“enobrecimento”, por atuarem em empreendimentos criativos e culturais, com algum

distanciamento (ainda que em alguns momentos tênue) dos produtos duvidosos da indústria

cultural. Cabe a eles um duplo papel: o ônus e a honra de criar demandas culturais e de ofertar

a possibilidade do convívio da sociedade com estas.

A relação entre Arte e Comércio é complexa. Observa-se, em alguns subcampos

de linguagens artísticas eruditas ou ligadas à indústria cultural, que aferir lucros financeiros

pode ser sinal de prestígio e êxito profissional. Em outros, como nas atividades desenvolvidas

com as culturas tradicionais, pode adquirir significado oposto. O campo, em geral, considera o

sucesso “suspeito” e valoriza a ascese, que se torna, segundo Bourdieu,

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[...] à condição de salvação no além [...] encontra seu princípio na própria economia

da produção cultural ao pretender que os investimentos só terão retorno se forem operados, de alguma forma, a fundo perdido, a maneira de um dom, que só pode ter

a certeza do contra dom mais precioso, ou seja, o reconhecimento... (BOURDIEU,

2008, p. 65).

Ao entrevistarmos os produtores podemos perceber, de maneira velada, todas

essas formulações. Há um valor implícito na sua capacidade de doação e abnegação. E no

campo, sua apreciação torna-se complexa. A evidência de seu êxito profissional e financeiro,

ao mesmo tempo, que pode conduzir a um maior prestígio, também pode remeter a um

comércio sujo e condenável. Como diz um entrevistado, “na gestão cultural você tem que

esconder a sua riqueza”. Essa visão permeia o campo e os agentes que dela participam e se

abriga também no poder público, segundo depoimento dos próprios produtores:

[O poder público] sempre tem a visão que, o produtor e a produtora cultural, estão

querendo se dar bem de qualquer forma, sempre querendo ganhar dinheiro, sempre tendo uma visão de que são muitos ricos, e que estão querendo tirar o dinheiro

deles... Às vezes eu acho que rola até uma certa concorrência, dos projetos da

própria gestão pública, com os projetos da iniciativa privada. Um gestor público

fica querendo concorrer com os projetos, e quando eu falo concorrer, tanto

concorrer em relação a recursos públicos, a recursos de editais, de empresas

privadas, e também concorrer em relação a resultados. Isso é mais forte ainda nas

prefeituras. Na hora que algum projeto começa a dar certo, você vê um certo

incômodo dos gestores públicos. (S., Grupo 3).

Essa visão romântica e idealizada do campo da produção cultural, que não avaliza

a lucratividade e o êxito comercial nos projetos culturais, também se amplifica por meio de

uma compreensão equivocada que o poder público tem de seu papel no sistema cultural,

fazendo com que este, em alguns momentos, dispute o lugar de produtor cultural.

A história recente das políticas culturais no Brasil também contribui para essa

percepção, ao estimular a utilização da cultura como estratégia para minimizar as

desigualdades sociais do País, valorizando seu caráter social e benéfico, portanto, em

contraposição aos problemas gerados pelo mercado. Essa percepção permeia todo o campo da

produção cultural no Brasil e no Ceará, mas é mais presente na geração dos

produtores/artistas, que se formou em uma época de forte idealismo, e na geração dos

produtores/gestores que ingressou na atividade durante a gestão do presidente Lula. Os

produtores/empreendedores que foram estimulados a abrir empresas no período de livre

mercado de FHC, apesar de ter um discurso mais alinhado com as regras do mercado, ainda

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que dentro dos parâmetros culturais, sentem a tensão no campo, caso sua prosperidade seja

demasiada.

De uma maneira geral, há uma dificuldade de assimilação do lugar do produtor e

da aceitação da categoria como uma atividade profissional qualquer, portanto, digna de

disputar os lucros do mercado. Mesmo em épocas de “economia criativa” e

“empreendedorismo cultural” essa crença perdura. Visão também presente nas políticas de

financiamento público, que põem restrições à remuneração dos proponentes e avaliam com

desconfianças cifras altas. Esse é um dos temas nevrálgicos do campo e que, eventualmente,

tem sido alvo de debates e polêmicas58

na mídia nacional, principalmente na aprovação de

valores expressivos para projetos que se enquadram tanto no perfil cultural como comercial,

cujas opiniões dividem o próprio campo. Apresentaremos alguns depoimentos sobre como

esses grupos se posicionam em relação aos aspectos de sua própria remuneração.

Eu sempre tenho uma certa dificuldade [de estipular minha remuneração], porque eu tenho uma ligação muito forte com a gestão pública, com o trabalho público, e

isso dentro da gestão pública, é muito forte de que, sempre o dinheiro é muito

pouco, e que os produtores estão sempre ganhando dinheiro... Toda vez que eu vou

colocar a minha remuneração dentro dos projetos, que normalmente são

financiados com recursos públicos, eu tenho uma tendência a seguir a lógica dessa

visão de um gestor público... Mas não. Você está fazendo o seu trabalho e você

precisa ser remunerado. Você investiu na sua formação, você investe de outras

formas... Como livros, participações em eventos, seminários, conferências, coisas

que você esta sempre querendo se reciclar e para isso você precisa de dinheiro

também. E precisa que tudo isso que você investiu em você também seja

reconhecido, no sentido de você ter um bom retorno financeiro. Então, essa parte realmente, é uma parte que é um problema na minha vida profissional. (S., Grupo

3).

Acho que produção cultural e recursos são inseparáveis. Tem que vir de algum

lugar. Não se faz um trabalho desses com voluntários, as pessoas precisam e devem

ganhar dinheiro com essa atividade. Eu acho que não seja nenhum problema você

ser remunerado pelo que faz, é uma atividade como outra qualquer. (V., Grupo 2).

Quem cria essas leis não tem a menor ideia de como é que funciona o setor

cultural... Eu acho que existia também uma farra sabe, o artista também achando

que ele não deveria prestar conta de nada. Me dê o dinheiro porque o meu papel

para a sociedade eu já fiz que é a minha criação. Então eu acho que nesse sentido você avançou em alguma coisa de dizer que o artista é um trabalhador, que tem que

estar e tem que funcionar junto com outras coisas, ele não é uma coisa sagrada

dentro de uma sociedade, mas ele tem uma função, e essa função também esta

submetida às leis. (M., Grupo 2).

Eu tenho cobrar um custo que vai ter que pagar o meu funcionamento, então isso

daí também encarece a gente, não ter uma economia forte na área da Cultura. Você

58 Há diversos debates na mídia sobre cifras altas envolvendo a aprovação de projetos na Lei Rouanet propostos

por artistas que tem maior atratividade comercial na captação de recursos ou possibilidade de retornos

financeiros sem a necessidade dos incentivos. Alguns casos ficaram mais conhecidos como a gravação de DVD

de Maria Betânia, turnê de Caetano Veloso, apresentações do Circo Du Soleil e, por fim, a aprovação de desfiles

de estilistas brasileiros no exterior.

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tem uma informalidade muito grande, as pessoas que são só executoras da cultura

colocam os preços para baixo também, e quando vem uma empresa assim mais

estruturada as pessoas não compreendem o que é esse valor que você cobra... Na

área cultural tem aquela historia “Ah! Está pagando caro”, mas está pagando caro

porque é melhor, entendeu?Então tem muito dessa coisa assim, realmente de pensar

que essas pessoas estão explorando a área cultural. (M., Grupo 2).

Esse aspecto se acentua na medida em que, mesmo atuando como

empreendedores sociais e microempresários, a base de sua remuneração continua se dando

por meio de incentivos ou doações oriundas das verbas públicas. Nem há um mercado

consumidor de produtos culturais, que estipule a concorrência com base na oferta e na

procura; nem há a percepção social de que Cultura é um bem público que deve ser

assegurado. O produtor ocupa um espaço que se situa entre o sagrado e o profano. Ao mesmo

tempo em que compete a ele assegurar a criação artística, protegendo-a das interferências

negativas do mercado, espera-se dele bons resultados operacionais e financeiros e a garantia

de uma inserção qualificada do artista ou de seu projeto nesse mesmo mercado. Cabe-lhe o

papel de quem fica entre a pedra e o mar.

Segundo Bourdieu, a oposição entre o comercial e o não comercial é

incessantemente lembrada no campo da produção artística, estando presente em toda parte e

se configurando como um princípio gerador da maioria dos julgamentos. O que tende a

estabelecer uma correlação negativa entre o sucesso e o valor propriamente artístico. Para ele:

A oposição entre a arte verdadeira e a arte comercial abrange a oposição entre os

simples empresários que procuram lucro econômico imediato e os empresários

culturais que lutam para acumular um lucro propriamente cultural, nem que fosse mediante á renúncia provisória do lucro econômico. (BOURDIEU, 2008, p.31).

Como descrito por Bourdieu, ainda compartilhamos a concepção que o trabalho

com a Arte é da ordem de um campo mágico, místico, onde se perceber lucros, trabalhando

com cultura em si, pode representar uma profanação. Parte da mudança desse paradigma

passa pelo fortalecimento de um mercado consumidor de cultura, pela diversificação das

fontes de financiamento e pelo aumento do orçamento público da cultura, uma vez que essas

tensões se dão também pela necessidade concreta e objetiva de recursos para viabilizar as

ações públicas e as iniciativas realizadas pelos produtores culturais. Ou seja, trata-se de uma

disputa que se dá em um plano financeiro e simbólico ao mesmo tempo.

Essa percepção, acentuada pela disputa efetiva de um volume limitado de recursos

que circula no campo da produção cultural, contribui para uma tensão interna do campo, entre

os próprios produtores, que olham com desconfiança para aqueles que realizam grandes

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projetos ou iniciativas culturais bem sucedidas. Um dos entrevistados denuncia essa tensão ao

afirmar que “no Ceará se pune quem passa no vestibular”, ou seja, nem sempre quem tem

êxito será visto com bons olhos.

Essa disputa ganham crescentes e sucessivas proporções nos subcampos ou além

destes. Traduzem-se na concorrência entre projetos semelhantes ou de linguagens artísticas

iguais. Ou ainda: entre produtores de um mesmo território; produtores de diferentes regiões

do País; projetos diferentes em um mesmo território; projetos de natureza similar em diversas

regiões do Brasil e/ou no mesmo território; projetos de interesse social versus interesse

comercial, dentre outros. Por vezes, os produtores ainda têm que disputar pela captação de

recursos para suas iniciativas com projetos de interesse do próprio poder público, propostos

por associações, fundações, OSCIPS59

vinculadas a prefeituras e governos estaduais.

A despeito de todas essas relações que se estabelecem entre os próprios

produtores, podemos também destacar ainda outras questões que se instauram na dinâmica da

organização da cultura, tornando mais complexo o próprio exercício da atividade e que, não

serão aprofundadas neste trabalho.

Ferreira destaca alguns aspectos que devem ser observados no crescente papel que

é atribuído a esse agente no campo da cultura: as múltiplas tensões que, no contexto dos

processos de intermediação cultural, se estabelecem entre intermediários e criadores; as

modalidades de circulação e troca de informação entre os intermediários e entre estes e outros

agentes culturais, dimensão em que se opera a consolidação e a reformulação contínua de

concepções culturais, modelos, metodologias de atuação; a mutabilidade dos agentes na

ocupação de funções, posições, áreas de atividade e campos distintos; a abrangência da ação

simbólica que ocorre nos processos de intermediação cultural; e, por fim, aos efeitos que as

atividades de intermediação cultural, sobretudo aquelas que assentam na articulação entre

organizações culturais e entidades político-administrativas, produzem sobre o território e os

ambientes culturais urbanos. (FERREIRA, 2002).

Uma das tensões que merecerá destaque agora - e que talvez seja a de mais fácil

percepção - é a própria contradição que se instaura no processo de “organização” da cultura e

da arte e que já faz parte da própria dinâmica cultural. Bauman aborda a inconclusivibilidade

da Cultura, acentuando seu aspecto de veneno e cura. Para ele:

A ideia de cultura serviu para reconciliar uma série de oposições enervantes pela

incompatibilidade ostensiva: entre a liberdade e necessidade, entre voluntário e

59 OSCIP - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.

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imposto, teleológico e causal, escolhido e determinado, aleatório e padronizado,

contingente e obediente à lei, criativo e rotineiro, inovador e repetitivo - em suma,

entre a autoafirmação e a regulação normativa. (BAUMAN, 1997, p.17).

Por sua natureza criativa, expansiva e livre, muitas vezes cabe ao produtor a difícil

tarefa de contê-la, administrá-la e fatiá-la, tendo em vista que opera com ênfase na

administração de algo intangível. Equilibrar as distintas exigências do mercado e os processos

criativos dos artistas é outra atividade que lhe compete.

As leis de incentivo à cultura e os editais, por sua vez, também trouxeram outros

elementos ao campo da produção cultural, que agregam novas exigências, adesões e

enquadramentos. O campo não se sustenta mais tendo como base somente a intuição,

afinidades, dinamismo e uma forte dose de voluntarismo. Agora, para encontrar espaço no

campo e viabilizar suas iniciativas, os produtores culturais passam a se relacionar com

crescentes exigências legais, fiscais, trabalhistas e burocráticas.

Outro aspecto que tem se configurado como elemento paradoxal no campo

cultural é a crescente formalização dos procedimentos e necessidade de trâmites burocráticos

para utilização de leis de incentivos e editais. Estes solicitam ao proponente/produtor uma

quantidade cada vez maior de informações do projeto, além de documentos comprobatórios

de idoneidade técnica e legal para aprovação de suas iniciativas. O atendimento dessas

exigências requer a definição de detalhes financeiros, técnicos e conceituais do projeto, que,

em última instância, se tornam uma peça de ficção, uma vez que aquela ideia ainda irá se

submeter a diversas instâncias de análise e prováveis diligências60

até obter a aprovação e

passar pelo crivo do mercado na hora da captação.

Muitas vezes, o que está posto no papel não poderá ser realizado integralmente,

pois, além de depender do sucesso na obtenção do patrocínio - que nem sempre atinge

integralmente o valor apresentado - ainda está sujeito ao interesse e a disponibilização dos

recursos das empresas investidoras, que, por sua vez, dependem do desempenho de mercado e

da lucratividade e, por fim, da disponibilidade orçamentária do poder público para a liberação

dos recursos.

Tem uma burocracia que você tem que enfrentar para estar ok com os mecanismos.

Às vezes eu fico vendo as instruções normativas e eu penso será que o pessoal quer mesmo que a gente continue a produzir cultura? Porque são tantas situações que

você tem que ficar atento, que muda, que você tem que fazer tal coisa... Se você não

estiver atualizado com essas demandas você acaba se prejudicando. Eu tive que

60Averiguações tendentes a esclarecer qualquer assunto. Procedimento adotado pelos órgãos públicos da Cultura

para solicitar informações adicionais aos projetos submetidos às leis de incentivo.

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estudar, me aprofundar para poder tentar cumprir com o que eu tenho que produzir

e com as necessidades burocráticas da atividade e isso é muito pouco produtivo. Eu

acho que quem é artista tem poucas chances de usar esses mecanismos, porque ele

vai passar tanto tempo nessa burocracia que o processo criativo vai se perder.

Porque hoje pra mim o projeto cultural ele é caro, porque eu não consigo gerenciar

sozinha, eu tenho que ter alguém às vezes em tempo integral, com salários

relativamente altos, pois são pessoas que a gente tem que formar o mercado não

tem essas pessoas prontas. (V., Grupo 2).

É muito tempo despendido às vezes e fica a dúvida se tudo aquilo é desnecessário...

Eu acho que poderia ser mais fácil, eu acho que muita coisa da cultura devia ser desonerada. Principalmente para o realizador, ele perde tempo pensando nessa

coisa, principalmente no financeiro. De como fazer com cuidado para não errar

para isso. Porque não pode ter um erro aqui, você não pode deixar de tirar a cópia

do cheque, você não pode deixar de estar com o depósito na mão, você tem que

estar atento, é um saco, é meio sacal. (G., Grupo 2).

Uma coisa que eles [as leis e editais] não permitem mais é o exercício da criação, e

do improviso... Então você tinha no Brasil toda uma tradição bastante original do

cinema que tinha toda sua própria narrativa, que tinha toda sua própria forma de

fazer, onde o improviso, e a inserção do acaso, vamos dizer assim, das coisas,

estavam muito ligadas a esse fazer, a essa pulsação. Hoje você não pode mais fazer isso, você dá um roteiro lá, e fica amarrado naquele roteiro, e se você muda

qualquer coisa, eles vão lhe cobrar depois. Ou seja, você está amarrado pelo limite

da burocracia, de uma visão burocrática. Quer dizer, se os atores forem bons, se

eles me permitem, eu posso criar mil e uma situações, o filme pode crescer muito, se

enriquecer muito, com isso. Mas não, virou tudo burocracia... Sua alma fica cindida

com tantas coisas, porque você não pode colocar em movimento mais nenhum

projeto sem se transformar também em um economista, em um contador. Mesmo

você para fazer esses serviços, você tem que ter conhecimento, você se torna um

burocrata para cuidar dessas papeladas, dessas coisas todas. E fica dividido, com

varias outras preocupações e com a Arte também, e a Arte é um pouco egoísta, a

Arte é uma coisa que ela trabalha no inconsciente, ela trabalha na vida, ela trabalha na emoção, ela trabalha nas sombras, em outras dimensões, e outras

coisas que você não pode estar dividido. (C., Grupo 1).

Outro agravante que merece ser destacado, é a confirmação dos apoios e seus

respectivos valores que, muitas vezes, só são obtidos muito próximos à data de realização dos

projetos e, em diversas ocasiões, repassados aos produtores em moderadas parcelas, que serão

pagas após a realização da atividade incentivada. Situação incompatível com as exigências

legais e as necessidades de planejamento e organização dos empreendimentos, que demandam

tempo prévio para sua execução e contratação de serviços (com efetivação dos pagamentos)

que se dão antes do início do projeto.

Os produtores que atuam tendo como base uma empresa – o que exige

cumprimento de diversos compromissos legais e trabalhistas – ainda têm que fazer um esforço

adicional para honrar seus compromissos mensalmente e manter seu sustento regular. As

atuais configurações do campo fazem com que ele se considere um equilibrista, tentando

compatibilizar prazos, projetos, indefinições, captações e prestações de contas em um

processo de gestão empresarial, que não se concilia facilmente com as características e

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instabilidades do campo cultural. Diversos entrevistados explicitam sua angústia diante dessa

situação em que tem que recorrer a contrair empréstimos particulares para suprir o atraso no

repasse de verbas ou ficar endividado na praça.

Nós planejamos tudo, tínhamos uma verba e ela não saiu. Nós fizemos o maior

escarcéu na rede social, jornal, denunciamos e tal... Nós nos prejudicamos com os

cartões de crédito. Planejava de novo, reorganizava os prazos e quando era o dia

de receber a verba, cadê? Aí você se complicava todo. Tinha dois cartões de credito

com o limite de cinco mil reais cada um o limite, estourei tudo. Paguei, mas deixei

de pagar, vou pagar como? Fiquei com o nome sujo, sabe? Aí passava para um

outro colega entendeu? (X., Grupo 2).

A dor é essa dificuldade. Não é de você levantar verba, é a de você não saber se a

terá. O pessoal, os patrocinadores, as instituições públicas, governo e prefeitura, não levam muito em consideração a logística necessária, os tempos necessários de

produção, o cronograma que você monta. Então, você tem que montar o seu

orçamento até tal dia, mas aí você pediu um apoio lá e tal eles só vão avaliar o seu

apoio uma semana antes do evento. Eles não sabem o quanto isso mexe com o seu

orçamento. Então é muito difícil você não ser compreendido em toda essa trama que

é necessária estar conectada, para a coisa acontecer. Uma das maiores dores é essa

a incompreensão. (L., Grupo 3).

Instaura-se assim, a necessidade de uma administração feita em dois campos

simultâneos: um trata da gestão das rotinas, na medida em que ocorrem, no tempo real dos

acontecimentos; e outro da esfera legal, que inclui contratos, notas fiscais e prestações de

contas que precisam ser apresentados. A gerência de todas essas instâncias muitas vezes

acontece em diversos níveis paralelos, pois os projetos podem (e comumente são)

beneficiados por meio de mecanismos diferenciados como leis estaduais, federais, convênios

e editais, gerando um emaranhado de teias e processos de difícil acesso.

Podemos afirmar que o produtor cultural opera entre extremos. Por um lado,

trabalha com prazos fixos e definições rígidas, no âmbito dos projetos e de sua tramitação

para a obtenção de apoio e, por outro, se defronta com um cenário incerto e nebuloso, onde

não sabe se vai conseguir viabilizar suas iniciativas, nem em que condições e prazos isso se

dará. Situação agravada pela necessidade de, além de ter que assegurar a viabilidade de seu

projeto, precisar obter os meios para sua própria sobrevivência. No fim, a prestação de contas

tem que ser criteriosa e aprovada, pois dela depende a possibilidade da participação em novos

projetos. O processo é estressante e a conta dá muito trabalho para ser bem resolvida.

Como é que uma pessoa faz um trabalho para receber um ano depois? Nós temos

que encontrar meios... O próprio Governo nos força a ter que fazer as coisas

ilegais. Nós queremos trabalhar direito, nós temos nossas concepções do que é

direito, do que é certo, de como não deve ser, a contabilidade, as prestações de

contas, mas o próprio governo nos força a fazer na ilegalidade. Por exemplo, eu

consigo o dinheiro emprestado e pago a pessoa. Ou com um dinheiro nosso ou de

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um outro projeto e combino com aquela pessoa para que daqui a seis sete meses, ele

me dê uma nota de que ele recebeu... Eu perco muito mais tempo nos controles

disso, do que pensando nos projetos. Todo dia acordo pensando em mudar de ramo.

(L., Grupo 2).

É como se estivesse todo o mundo nervoso, em um mercado para se produzir ideias

maravilhosas, projetos maravilhosos, mas que está todo o mundo aprisionado, é

como se houvesse uma prisão é todo mundo querendo sair disso, sabe todo mundo

fala a mesma língua, da dificuldade. (M., Grupo 3).

A administração desses trâmites requer especialização e disponibilidade integral,

o que repercute na inclusão de novos serviços no escopo dos projetos, ocasionando um

“alargamento” nas propostas, com consequente oneração dos orçamentos finais. Novos

profissionais se agregam ao mercado da cultura para atender as solicitações. Hoje, faz parte da

rotina do produtor cultural, se cercar de redatores/projetistas, técnicos financeiros e assessores

jurídicos, além das outras atividades já tradicionalmente integrantes da cadeia produtiva da

Cultura.

Espera-se dos projetos aprovados por leis e editais algumas contrapartidas sociais,

na forma de ações que englobem acessibilidade, inclusão, cultura, educação ou

desenvolvimento. Essa demanda também exige além de investimento intelectual, uma

condição de maturação, planejamento, avaliação e construção gradativa. E é aqui que reside

outra das maiores tensões observadas no campo da cultura atualmente.

Esse complexo sistema de ações proposto pelas políticas públicas e pelo mercado,

movido pelo produtor cultural, em interface direta com os outros agentes do campo, pauta-se

no sistema de financiamento com base nas leis de incentivos e editais. No entanto, o sistema

não favorece a construção de ações de médio e longo prazo, uma vez que trabalha com

projetos de ação temporária definida, que precisam ser renovados permanentemente e ainda

garantir o interesse e a permanência do investidor privado e do poder público na iniciativa.

Sistema que faz com que os produtores, a cada edição, (re)iniciem todo o processo em busca

de captação para garantir a continuidade do mesmo, buscando conferir novos atributos e

adjetivos ao seu empreendimento, o que gera a inclusão de novos custos a seu projeto. Ou

seja, é preciso se mostrar maduro e sólido e ainda renovado constantemente.

Esse círculo se destaca pelo imenso paradoxo que traduz: a realização de inúmeras

iniciativas de qualidade artística, técnica, social e cultural relevante, que tem sido promovidas

no Brasil e movimentado o campo da cultura nacional, que não contam com uma base sólida

de sustentação e continuidade. Essa situação nos remete a metáfora de uma construção em

cima de dunas, sempre cambiantes, e sem a garantia de permanência.

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O sentimento é de que assim, todo ano, você começa tudo de novo, não adianta você

ter no Ceará, um projeto que tem um ano, ou que tenha 20 anos, a defesa de fazer esse projeto vai ser a mesma luta, a mesma briga, a mesma argumentação, e a

mesma possibilidade de não conseguir nada com isso, então assim, o patrimônio

que os projetos adquirem com a longevidade eles não tem peso para a política

pública no Ceará. (Fe., Grupo 2).

Você nunca sabe o amanhã, você não sabe nem quando você começa um projeto, se

você termina aquele projeto... Funciona tudo quanto é deveres para qual você tem

com o Estado, as obrigações, as datas, os cronogramas, tudo quanto é o contrato

por parte deles. Se você receberia um recurso em uma data e eles não liberam, você

vai ter que assumir pagamentos. Mas se você assumir os pagamentos, você não vai

ter como receber depois os recursos, ou seja, é um caos, uma loucura. Você não sabe se termina aquele projeto, se terminar, também não sabe o que faz com aquele

projeto, terminando esse projeto. Você não sabe se conseguirá viabilizar um

próximo projeto. Se você é uma estrutura, com empregados, com impostos, você

está ferrado, porque você terá que ter um capital para manter, inclusive toda aquela

estrutura durante fase... Então essa imprevisibilidade é total e absoluta. É uma

esquizofrenia! (C., Grupo 1).

Eu me sinto angustiado, profundamente angustiado, já me perturbou menos, mais

hoje está me perturbando mesmo ao ponto de atravessar o meu sono, é quando você

dorme pensando e acorda pensando. Não é saudável, do ponto de vista que você

não está pensando em uma coisa legal, e sim pensando que vou ter prejuízo, que

vou ficar sem receber, que vou deixar de pagar meus parceiros, mas eu tenho que produzir o evento. (M., Grupo 3).

Essa característica do nosso sistema de financiamento à Cultura possui ainda

outro efeito nefasto: o de desviar a atenção do produtor do trabalho criativo e intangível -

inerente ao campo da cultura - para concentrar sua atuação na gestão de processos

burocráticos, administrativos e mercadológicos da cultura. O inverso do que apregoa Heloísa

Buarque de Holanda, ao dizer que “o ambiente de inspiração tem que ser preguiçoso. Se não

for preguiçoso, não vai funcionar. É preciso não querer nada, não ter metas, não ter padrões e

ficar ali aberto para trocas”. (HOLANDA, 2010, p.32). Na verdade, parece-nos que essa

possibilidade está cada dia mais distante da realidade dos produtores culturais. As tensões a

que são expostos esses agentes se acentuam mais ainda e ganham maior complexidade quando

este se vê inteiramente inserido em um contexto onde atuam múltiplos aspectos que

transcendem o prazer estético e o entretenimento outrora atribuído à Arte e à Cultura. As

colocações de Yúdice deixam transparecer uma variedade de interesses em atuação no campo,

conforme assinala:

Hoje em dia é quase impossível encontrar declarações públicas que não

arregimentem a instrumentalização da arte e da cultura [...] A arte se dobrou

inteiramente a um conceito expandido de cultura que pode resolver problemas,

inclusive o de criação de empregos. Seu objetivo é auxiliar na redução de despesas

e, ao mesmo tempo, ajudar a manter o nível de intervenção estatal para a

estabilidade do capitalismo. Uma vez que todos os atores da esfera cultural se

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prenderam a essa estratégia, a cultura não é mais experimentada, valorizada ou

compreendida como transcendente[...] a arte e a cultura são vistas como

fundamentalmente interessadas. (YÚDICE, 2004, p.27).

Os novos contornos da economia mundial e da sociedade brasileira repercutem

diretamente nas diretrizes políticas que, por sua vez, reforçam o aspecto da conveniência no

âmbito da Cultura, conforme observado por Yúdice. As políticas públicas de cultura têm,

sistematicamente, transferidas para as iniciativas desenvolvidas pelos produtores, um número

cada vez maior de aspectos a serem contemplados em seus projetos, seja implícita ou

explicitamente. O atendimento a essas novas demandas serão observados na análise que suas

iniciativas sofrerão, tanto pelo Estado como pelo pela iniciativa privada, resultando na

aprovação ou não de seus projetos e, em última instância, na possibilidade de realização do

empreendimento cultural.

Nesse aspecto, a mudança que se operou no campo, do início da década de 70 para

cá, é significativa e suas repercussões na cultura e nas práticas criativas ainda não tem sido

devidamente observada. As exigências previstas na Lei 8.66661

, que regula os mecanismos de

contratação de serviços com base nos preceitos da eficiência e legalidade, cede ao campo da

Cultura o mesmo tratamento que é dado, por exemplo, a Engenharia Civil. A administração

desses dois aspectos distintos é também uma tarefa que cabe ao produtor tentar equacionar,

ainda que de forma precária e às vezes, angustiante, conforme o contundente desabafo de um

produtor ao relatar o exercício da administração da cultura inserida nas exigências e

formatações sistema de financiamento à Cultura no Brasil.

A pior de todas as distorções [a que estamos submetidos] é que estão tirando da

arte toda rebeldia, toda inquietude, todo o lado subversivo. Outra coisa terrível...

Você elabora mentiras em cima de mentiras, porque se faz de conta que é assim. O

outro diz que é geração de renda de emprego, de rentabilidade, de não sei o que

coisa e tal como se tudo virasse economia. Ou seja, a economia viria a reboque da

Arte. Então geramos uma arte anêmica, um cinema anêmico, um teatro anêmico, tudo anêmico. Claro que os movimentos surgem nas periferias, os movimentos

surgem como levantes, como surgiu no País inteiro o povo nas ruas, tocando fogo

em ônibus. A Arte teria que estar ligado a isso, a Arte teria que estar ligado a uma

pulsação de nação, a uma pulsação de inserção dessa nação, dentro de uma

contemporaneidade mundial, universal... O que está se passando? Um tédio, está

tudo muito tedioso, tudo ao mesmo tempo, o País passando por transformações

profundas, e nós não fazemos hoje uma arte que corresponda a inquietude da nação

brasileira. Eu não quero gerar renda, não quero emprego, não quero gerar nada.

Eu quero quebrar, eu quero quebrar as estátuas, eu quero tocar fogo na catedral.

61 Lei de 21 de Junho de 1993, que orienta sobre procedimentos que devem ser efetuados com base nos

princípios definidos no Art.37 3 da Constituição Federal, a saber, a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a

publicidade e a eficiência, com o intuito de proporcionar à Administração a aquisição, a venda ou uma prestação

de serviço de forma vantajosa, ou seja, menos onerosa e com melhor qualidade possível e isonomia aos membros

da sociedade.

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Você deixa de ser um artista, você passa, primeiro você passa pelas garras

inquisitoriais de uma legalidade absurda, porque eles querem te tratar da mesma

forma como é a ponte da construção civil, da mesma forma como é um trator,

quando se trata de Arte, como você vai fazer uma licitação para escolher o teu

fotógrafo, vai ter três cartas de fotógrafos... E você tem que responder legalmente

diante de uma burocracia, por tudo isso, aí você se torna refém disso tudo. A vida

inteira é prestando contas, de não sei o quê, você se torna um burocrata e chega

momentos que você faz a pergunta... Burocrata tem alma? (C., Grupo 1).

Os produtores se queixam que cada vez mais passam a dispender a maior parte de seu

tempo e esforços na administração burocrática dos projetos, no cumprimento dos diversos

preceitos e exigências. No entanto, essa não é uma relação de submissão e consentimento. As

disputas acontecem no próprio campo, entre produtores e poder público, administrador dos

incentivos, numa intensa atividade relacional de dependência e desejo de autonomia. A cada

nova exigência, e a cada novo projeto, as estratégias se renovam assim como o desejo de

resistência.

É a minha “esquizofrenia” [conciliar Arte e Produção]... Depois que o Gil

começou a falar em liberar um pouco mais as coisas, a gente começou a também a

ter mais coragem de fazer as coisas diferentes. Pois não dá para propor coisas

diferentes, pois o Ministério só queria aquilo. Se você tivesse a cartilhinha estava

certo, se não tivesse a cartilhinha estava fora... O que está escrito no papel nem sempre é o que ocorre. O que nós vamos fazer é o que a gente quer fazer entendeu?

Nós queremos o dinheiro para fazer o que quisermos fazer se você precisar que eu

te diga outra coisa eu te digo, mas quando o dinheiro chegar eu vou fazer o que eu

quero com ele entendeu? O que a gente acha que deve. (F., Grupo 2).

Eu fico muito insatisfeito às vezes com projetos que eu mesmo faço e que são

selecionados, porque às vezes tenho projetos aprovados, mas eles não representam,

do ponto de vista da elaboração, da concepção aquilo que eu acho que é necessário.

Ele representa o que é necessário para eu conseguir ganhar o edital. Mas não

representa o que é necessário para ter a transformação que eu preciso, ou para

produzir um espetáculo que é sensacional, ou para fazer aquela ação cultural que vai ter uma repercussão importante. A gente se limita muito pela concorrência, pelo

medo, pelas dificuldades que a gente tem no mercado e pela incapacidade de quem

está avaliando, que se não encontrar as palavrinhas mágicas“inclusão,

democratização...” (B., Grupo 3).

No entanto, a despeito de uma atuação pretensamente pautada por regularidades,

padrões e trâmites previstos nas políticas públicas, observa-se ainda que o prestígio, as

relações sociais dos produtores e as afinidades pessoais daqueles que detém o poder de

seleção de projetos por determinadas linguagens artísticas ainda podem beneficiar algumas

iniciativas em detrimentos de outros. Por vezes, esses aspectos também se manifestam nas

diferentes gestões governamentais que, alternam prioridades, de acordo com a sensibilidade

cultural do gestor de plantão. Assim, o produtor cultural se equilibra precariamente entre

inúmeras exigências contemporâneas de uma administração “legal e racional” em um campo

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ainda afetado por afinidades pessoais e relações de “apadrinhamento” e troca de favores,

assimilando e acumulando os dois tipos de procedimentos a fim de viabilizar suas iniciativas.

Constatamos que no campo da produção cultural no estado do Ceará, a despeito

do cumprimento das exigências administrativas e burocráticas, ainda é muito presente a

necessidade de relações sociais e políticas e uma postura de não enfrentamento explícito para

que os projetos sejam aprovados e o produtor possa ter seus pleitos atendidos a contento,

como deveria ser, uma vez que se cumprissem os trâmites exigidos. Aqui também, os agentes

do campo ocupam posições distintas, de acordo com seu grau de adesão, silêncio e inserção

nas esferas de poder político e econômico local.

Cria-se assim, outra situação de dilema entre o enfrentamento e constrangimento,

segundo depoimento dos produtores.

Um constrangimento que também me incomoda muito e que eu vejo que a gente

acaba silenciando bastante para você não prejudicar o seu trabalho. Porque você

não vai sair batendo na gestão do governador, você não vai ficar batendo na gestão

de um Secretário, porque a gente sabe que existe isso, existe essa perseguição.

Então todo mundo tem que se calar, a gente não pode reclamar nada. Às vezes eu

vejo alguma coisa que inclusive não tem nada a ver com cultura, algum problema

de serviço público mesmo dentro da cidade, que a vontade que eu tenho é de sair

protestando, de fotografar, enfim fazer um certo barulho, mas ao mesmo tempo eu

tenho que me calar. Aí você fica sempre nessa “nóia”, de que não pode reclamar

tem que ficar calado, e daí acaba sendo um constrangimento, não só um constrangimento profissional, mas um constrangimento em relação a sua vida como

cidadão. (S., Grupo 3).

É evidente que quando eu tinha boas relações, eu conseguia mais... Conheço gente

que não recebe nada, porque é marcado mesmo, principalmente com Facebook

aberto. Os “caras” tomam café da manhã olhando o Facebook marcando [as

pessoas que fazem críticas]... Adeus Brasil, temos que começar tudo de novo! (L.,

Grupo 1).

A verdade hoje no estado do Ceará é que para você conseguir algum recurso, você

tem que correr atrás dos políticos, a realidade é essa, hoje no ano de 2013. Você não vê um projeto apoiado pela sua competência, pelo bom projeto, você vê o

projeto pela parte politica do estado do Ceará. Se você vai para a mídia, você parte

para denunciar tudo isso aí, você fica marcado. Eu canso de receber ligações de

jornalistas para eu denunciar e eu digo que não, eu prefiro não falar, é melhor ficar

calado. Eu estou isolado. (L., Grupo 2).

A nossa profissão está ligada ao lobby, diretamente ao lobby, ou seja, aqui em

Recife, Rio, São Paulo, etc. Ela se sustenta porque eu tenho que estar lá coçando

um ou outro, massageando o ego de um, massageando o ego de outro. Ou seja, não

existe uma escala, um nível mensurável disso, de você ter um projeto bom,

impactante, que os profissionais que realizam são competentes. Isso não serve, o que serve é se você estar no jogo, aí você consegue trabalhar. Se você não está,

você consegue trabalhar, mas de forma precária. (M., Grupo 3).

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No âmbito das políticas federais, não se observa essa percepção de

constrangimento ou cerceamento por parte do Ministério da Cultura. O órgão tem feito

diversos investimentos e melhorias na gestão dos processos apresentados, junto ao PRONAC,

que são aprovados sem a gerência política ou necessidade de contatos pessoais.

No entanto, a despeito da facilidade de aprovação dos projetos juntos ao

mecanismo federal, o sentimento de desprestígio no campo se dá de outras formas. Na falta de

acesso às empresas investidoras e na dificuldade de participação dos produtores culturais nas

relações sociais nacionais, que possibilite o acesso as cifras que circulam no Brasil para a

cultura, majoritariamente alocadas na região Sudeste. No caso, a exclusão se dá pela própria

falta de acesso aos interlocutores, ao networking da cultura e da política nacional. O recurso

encontrado, por alguns produtores, é minimizar essa ausência por meio da atuação de algum

político que atua como intermediador, intercedendo pelos projetos junto às estatais e grandes

empresas nacionais.

Todas essas questões fazem parte da complexidade que está presente no campo da

produção cultural hoje no Ceará. Um campo, que em pouco tempo, tem conseguido interferir

socialmente, realizando diversas iniciativas – internacionais ou em universos microcosmos –

de grande relevância cultural, social e até econômica em alguns territórios. O produtor

cultural, como já foi dito, é um elo fundamental no sistema da Cultura, por atuar na ponta,

como importante agente de desenvolvimento onde o Estado não chega.

Muitas mudanças tem se operado no campo da produção cultural nas últimas

décadas, onde novos atores ingressam a cada ano, em uma atividade de grande relevância

cultural e com bases de sustentação ainda tão frágeis e não resolvidas. Onde sobra

criatividade, coragem e resultados, faltam recursos, formação, compreensão do campo,

diálogo e tempo para maturação do que já está sendo feito.

Para que as conquistas se consolidem e o campo continue a crescer, abrigando

toda a diversidade e criatividade que são inerentes à Cultura, faz-se necessário uma maior

visibilidade de suas problemáticas e tensões, a reflexão sobre suas especificidades, a revisão

de alguns marcos legais, o aumento e diversificação de recursos e, principalmente, a ativação

do sistema cultural em sua integralidade.

Todas essas condições são necessárias para que os produtores ultrapassem a

barreira que os prendem a uma luta pela condição da sobrevivência, que só lhes permite

enxergar o hoje. É preciso alterar as formas de fazer e as formas de pensar a produção

cultural, como relata um jovem produtor, que acena para o novo que precisa emergir.

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Hoje a gente tem um grande problema, de que todo mundo age isoladamente. A

gente tem que pensar em rede, não adianta a gente pensar isolado. Eu tenho uma visão muito crítica em relação a isso, eu acho que a gente continua pensando hoje

em resolver o problema de captar o recurso para o projeto acontecer pra gente

pagar nossas contas. E o problema de público, hoje, é o nosso maior problema que

enfim interfere diretamente na produção artística. Se não tem público, o recurso que

continua tendo é o recurso público e a produção é frágil. Se não tem público, os

grupos não produzem produto de qualidade de excelência, se não tem produto a

excelência não tem circulação, então se não tem circulação você não existe nem no

seu lugar, imagine em outros lugares. O que a gente precisa mudar é o problema do

apreciador, que é problema da produção de qualidade, o problema da formação de

nossos artistas, o problema da formação dos nossos profissionais de produção. O

edital só resolve o problema de existência. (V., Grupo 3).

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa é fruto de uma necessidade e tem um sentido de emergência.

Necessidade que foi crescendo, à medida que vivenciamos como produtores culturais no

Ceará, todos os processos, tensões e paradoxos descritos neste trabalho. Emergência por se

fazer imprescindível e urgente a compreensão de uma trajetória pessoal e coletiva.

Como integrante do grupo de produtores/empreendedores, pudemos acompanhar

de perto os esforços de criação dessa atividade profissional e as alterações que foram se dando

no campo. À medida que as políticas eram instituídas, novos valores apregoados e múltiplas

exigências eram demandadas, o campo se tornava mais complexo e crescia também o

sentimento de isolamento, invisibilidade e angústia.

Isolamento por não contar com suportes que assegurem uma estabilidade

profissional, nem tampouco a continuidade do trabalho construído. Invisibilidade por não nos

sentirmos percebidos como ator no campo, muito menos compreendidos no exercício da

atividade. E angústia pela necessidade, cada vez mais crescente, de conciliação de elementos

paradoxais que faz parte da rotina daqueles que vivenciam o dia a dia da produção cultural.

Com o passar do tempo e as multiplicidade das exigências, sentíamo-nos contínua

e crescentemente enredados em uma teia complexa que nos mantinha “pesados” e cada vez

com maior dificuldade para efetuar os procedimentos necessários. A falta de perspectiva de

mudanças nesse quadro, somados ao isolamento e incompreensão do campo, sinalizavam para

um esgotamento iminente de forças e uma descrença em novas possibilidades de atuação. Por

isso querer compreender quem somos, em qual âmbito estamos inseridos, o que fazemos e

para onde pretendemos ir se tornou tão necessário como o próprio oxigênio que se respira.

Precisávamos de respostas e razões para permanecer partícipes e atuantes no campo.

Foi preciso então, interromper um ciclo, sair da imersão que nos afundava,

distanciar-se, compreender o percurso e, principalmente, fazer um esforço de apreensão e

tradução do campo da produção cultural para que se pudesse iniciar um novo processo. Sob o

ponto de vista do produtor, era necessário ouvir, falar e ser visto. Esse foi o sentimento que

nos moveu durante todo o trabalho: a procura por novos caminhos, por motivos e pelo próprio

sentido de sermos produtores culturais. Sobrepondo-se a tudo isso, tornou-se concreta a

necessidade de tornar inteligível o próprio campo da produção cultural no Ceará por meio da

percepção de suas conformações, configurações e paradoxos.

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Assim, a tentativa de tradução do campo da produção cultural no Ceará

configurou-se muito além de um exercício intelectual: passou a ser como uma releitura do

próprio trajeto vivenciado e da busca de compreensão dos sentidos de seus percursos e efeitos.

Jornada esta que não foi vivenciada de forma isolada, pois à medida que contatávamos os

produtores, sentíamos a mesma angústia e o mesmo desejo de sermos visto e compreendidos

em nossas singularidades. A cada entrevista, aumentava a polifonia de vozes, informações e

dados em um amálgama que teceu o constructo que, por hora, transparece nesta pesquisa.

Este exercício se traduziu em três possibilidades de leituras diferenciadas e

complementares: retratar a formação da atividade da produção cultural no Ceará nas décadas

recentes e sua relação com as políticas públicas, dar mais visibilidade a própria atividade em

si e apresentar uma análise das relações e tensões que se configuram no campo.

Ao alcançarmos a conclusão deste trabalho, consideramos que a tarefa está

parcialmente cumprida, tendo cabido o primeiro passo à confecção desta investigação. Muito

mais do que retratar toda a amplitude do campo da produção cultural no Ceará, conseguimos

sinalizar uma reflexão para a existência dessa categoria, apresentar algumas de suas

conformações e singularidades, repensar acerca do seu lugar no sistema da Cultura e

identificar algumas tensões a que tem sido imposta a categoria.

O trabalho possibilitou também o registro das configurações do campo da

produção cultural do Ceará no momento da pesquisa e, mais ainda, a captação das mudanças

que estão se processando no contexto atual. Acreditamos que o campo da produção cultural,

que tem sua base de captação de recursos no atual sistema de financiamento à Cultura, está

em processo de crise e esgotamento, o que por si já exige a necessidade de mudanças que

favorecerão novas formas de configuração da atividade.

Acreditamos que esse trabalho tenha cumprido sua função ao mostrar os fios

dessa complexa trama, que posteriormente poderão servir como condutores em uma imersão

mais aprofundada e integral nessa rica tessitura. Ao apresentarmos algumas questões

essenciais, fornecemos caminhos para que outros possam identificar e aprofundar outras

relações que se dão no interior do campo que, por vezes, continuam insondáveis até aos

próprios produtores. Facilitará, ainda, a identificação dos novos processos que continuarão a

se suceder no campo da produção cultural.

No entanto, a realização deste trabalho, já aponta para algumas questões se

colocam como urgente e que precisam ser tratadas no âmbito das políticas públicas, dentre as

quais merece ser realçada a necessidade de uma melhor compreensão da atividade e da

promoção de melhorias nas condições de trabalho na produção cultural no Brasil e no Ceará.

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A despeito de suas próprias incertezas e indefinições, o produtor cultural segue

possibilitando importantes contribuições ao sistema cultural no Brasil. Longe de serem

agentes passivos nesse trajeto histórico, são atores fundamentais para a ativação das políticas

públicas e, em grande parte, responsáveis pela qualidade e quantidade do que se tem

produzido e consumido culturalmente neste País nas últimas décadas.

É imperativo que a atividade obtenha uma condição diferenciada de percepção e

que passe a ser compreendida como uma função importante e necessária. O produtor cultural

precisa se fazer considerar e ser considerado como aliado na ativação das políticas públicas.

Precisa conquistar e receber um olhar mais atento, receptivo e solidário do Estado e da

sociedade. Para isso, urge modificar sua própria percepção da atividade e conquistar uma

nova forma de inserção no campo com mais espaço político e reconhecimento social.

Outra questão que se impõe é a promoção da melhoria das condições de

desenvolvimento da atividade. É nocivo, ao próprio sistema da Cultura, que na sociedade

brasileira contemporânea a produção cultural ainda não seja reconhecida como categoria

profissional, sem merecer tratamento adequado das políticas culturais, trabalhistas e

securitárias.

Faz-se necessário uma política pública mais atenta às especificidades do campo,

as quais só poderão ser identificadas e devidamente tratadas quando o Estado, a sociedade e

os produtores culturais se reconhecerem como partes integrantes de um mesmo processo e

passarem a dialogar e trabalhar juntos em prol de um ideal comum. É preciso ainda que seja

conhecida e aprofundada a função que cada um destes agentes deve ocupar em uma gestão,

que pretenda promover a cultura como bem social.

Constatamos, ao fim deste trabalho, que o produtor cultural tem vivido em uma

espécie de “círculo vicioso”, que nos remete à analogia do coelho correndo atrás de uma

cenoura amarrada em seu próprio rabo, despendendo a quase totalidade dos seus esforços para

garantir o que um entrevistado chamou de “problema da existência”. Ou seja, seu trabalho é

direcionado para garantir a sua sobrevivência e a de seus próprios projetos, em um cenário

onde sobreviver significa o mesmo que existir como categoria.

Só superando a cultura da sobrevivência é que esse produtor poderá atingir outros

patamares de atuação e reflexão, potencializando sua participação na construção da política

cultural no Brasil, de forma a assumir o lugar de agente reflexivo, propositor e político. Para

que essa superação seja possível, dois aspectos são fundamentais. Um deles é o investimento

em formação especializada, permanente e de qualidade para a atuação na área. Essa formação

passa pela compreensão da atividade, pela elaboração de uma grade curricular adequada com

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geração de conteúdos específicos, pela oferta regular e em diferentes níveis (Técnico,

Superior e Pós-Graduação), pela regulamentação e por melhores condições de atuação da

profissão.

Outro aspecto a ser considerado é a necessidade de fazer mudanças profundas no

sistema de financiamento à Cultura no País. É preciso alterar a própria concepção de

desenvolvimento da atividade que se pauta por “projetos” finitos e datados, repercutindo não

só no que se realiza, mas também no que se pensa como intervenção cultural. Governo e

produtores têm exaurido esforços para viabilizar a produção de iniciativas temporais e

esporádicas, que precisam incessantemente ser recriadas e renovadas, antes mesmo de serem

consolidadas.

Esse aspecto gera um enorme desperdício de esforços e de capital intelectual,

cultural e potencial criativo em atividades rotineiras e reincidentes. E não favorece a

maturação do sistema, a avaliação adequada do que é realizado e o fortalecimento do sistema

cultural, que em última instância repercute na formação de um País onde se amplie as

possibilidades de educação e consumo da Cultura.

É preciso superar a promoção de uma cultura pautada em projetos, procedimentos

e resultados, onde a burocracia e a perda do potencial criativo e espontâneo da Arte se

apresentam como efeitos colaterais incômodos a serem administrados. Juntos, produtores,

sociedade e Estado precisam encontrar novos espaços e possibilidades de atuação onde seja

possível conciliar os interesses sem o risco de “engessamento” do campo. Há de se criar uma

maior delicadeza na administração da cultura.

Junto com a necessidade dessa gestão diferenciada, a agenda do produtor e do

Estado precisa ser renovada por meio de um processo que também pede políticas consolidadas

e soluções conjuntas. Muito mais do que projetos pontuais, precisamos compartilhar

caminhos e responsabilidades. Construir um sistema de financiamento múltiplo e

diversificado, que minimize a dependência excessiva do Estado, favorecendo a participação

de novos agentes financiadores e a realização e continuidade das boas iniciativas culturais,

seja elas pontuais ou permanentes.

Muito mais do que um mero “proponente” ou executor, o produtor cultural pode e

deve assumir um lugar de destaque no sistema da cultura como importante conector, tradutor

e, como foi dito, agente de desenvolvimento e ativação da Cultura em todos os “cantos e

recantos” do Brasil. É preciso transcender o papel de “fazedor” de eventos e mero proponente

de projetos, em uma busca interminável por recursos. Para isso, seu potencial cultural e sua

expertise precisam ser considerados e, mais ainda, ser estimulados. É imprescindível que esse

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agente seja compreendido como um elemento fundamental no sistema da Cultura e passe a

atuar como planejador, propositor, formulador, realizador e corresponsável pela dinâmica

cultural que se estabelece no País.

Só assim, ao superar o dilema da existência, o produtor poderá contribuir com

capital intelectual e sua capacidade operativa para o desenvolvimento de uma cultura viva,

diversa e pulsante no Brasil, ocupando seu lugar como interlocutor qualificado e necessário

no processo de amadurecimento da institucionalização da cultura brasileira. Esperamos, com

esse trabalho, ter dado nossa contribuição para que esse processo se realize.

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