universidade estadual do cearÁ centro de ciÊncias...

109
? UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE JOÃO PAULO BANDEIRA DE SOUZA OS SEGREDOS DO MEDALHÃO: O IMAGINÁRIO DA ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL FORTALEZA 2012

Upload: others

Post on 12-Dec-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

?

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

JOÃO PAULO BANDEIRA DE SOUZA

OS SEGREDOS DO MEDALHÃO:

O IMAGINÁRIO DA ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL

FORTALEZA

2012

Page 2: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

JOÃO PAULO BANDEIRA DE SOUZA

OS SEGREDOS DO MEDALHÃO:

O IMAGINÁRIO DA ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL

Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Mestrado

Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade - MAPPS da

Universidade Estadual do Ceará - UECE, como requisito para

obtenção do grau de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade

Orientação: Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima

FORTALEZA

2012

Page 3: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Estadual do Ceará

Biblioteca Central Prof. Antônio Martins Filho

S729s Souza, João Paulo Bandeira de Os segredos do medalhão: o imaginário da arte de fazer

política no Brasil / João Paulo Bandeira de Souza. – 2012. 109 f. : il. color., enc. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual do

Ceará, Centro de Estudos Sociais Aplicados, Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas, Fortaleza, 2012.

Área de Concentração: Políticas Públicas Orientação: Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima 1. Imaginário. 2. Cultura política. 3. Machado de Assis. I.

Título.

CDD: 320.6

Page 4: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

JOÃO PAULO BANDEIRA DE SOUZA

OS SEGREDOS DO MEDALHÃO:

O IMAGINÁRIO DA ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL

Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Mestrado

Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade - MAPPS da

Universidade Estadual do Ceará-UECE, como requisito para

obtenção do grau de Mestre em Políticas Públicas e Sociedade

Orientação: Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima

Aprovada em: _____/_____/______

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Prof. Dr. Hermano Machado Ferreira Lima (Orientador)

Universidade Estadual do Ceará

________________________________________________

Prof. Dr. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes

Universidade Federal do Ceará

________________________________________________

Prof. Dr. Francisco Josênio Camelo Parente

Universidade Estadual do Ceará

Page 5: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

Deda a quem devo tudo! Sem ela nenhuma dessas páginas teria sido escrita.

Minha Mãe, Meu Pai, Fernanda, Roberta e Odenizio Filho meus exemplos, meus

amores.

Alexandra Arruda, amiga querida! (In Memoriam)

Page 6: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

AGRADECIMENTOS

À Deus, Jesus, Hermes, Iemanjá, Francisco de Assis e os outros deuses que sempre me

ajudaram nos momentos de incertezas.

À minha querida, boa e sábia fada madrinha Celeste Cordeiro por ter acreditado na

minha idéia de canário, mas principalmente pela amizade, companheirismo,

ensinamentos, conselhos, livros, carinho e atenção que sempre teve comigo. Como um

dia me falaram “-Nem parece Orientadora!”

Ao amigo, companheiro e orientador Hermano Machado Ferreira Lima, exemplo de

educador, pelos cafés, almoços, livros e principalmente por sempre ter me tratado com

dignidade e respeito, sempre cuidando de me ensinar algo novo e de me fazer olhar e

pensar as coisas por outros lados.

À minha amada Mírian e seu amor companheiro que sempre conseguem deixar a

realidade mais colorida, obrigado por não ter me deixado sozinho nesses tempos tão

conturbados.

Aos cearenses que financiaram a bolsa de estudos disponibilizada pela FUNCAP,

instituição fundamental para o desenvolvimento do Ceará, que hoje é administrada por

insensatos. Senhor governador Cid Gomes, apesar de sua inabilidade para tratar com

intelectuais amanhã há de ser outro dia!

Aos velhos amigos de uma vida inteira que sempre torcem por mim em especial aos

camaradas: Manuel Bandeira, João Paulo, Paulo Danilo, Luiz Doglas, Nilo, Wesley

Fernando José, Dudu, Túlio, Janice, Lissandra, Vanessa e a Yandra que um dia me

apresentou a obra Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio.

Aos professores do Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade e em

especial ao mestre e amigo Josênio Parente por tudo que me ensinou.

Ao amigo Francisco Moreira Ribeiro orientador e amigo desde os tempos da Unifor.

Ao Professor Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes por ter aceitado ler e debater essa

dissertação, fato que me valeu como uma condecoração.

À Tia Dadá, Dodó (In Memoriam), Didia, Vó Naninha (In Memoriam) , Tia Osair, Tia

Lúcia, Tia Rejane, Vó Bárbara, Maninha, Mário Porfírio, Graça, Zenir, Dona Rita que

contribuíram cada um ao seu modo com esse trabalho.

À Cristina e a Débora por nunca terem me deixado na mão muitas vezes fazendo muito

mais que suas obrigações.

Às companheiras (o) do MAPPS que tanto contribuíram na minha formação nesses

meses de convivência.

Page 7: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para

ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na

caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho

para ninguém. Onde me espetam, fico.

Contei esta história a um professor de melancolia, que me

disse, abanando a cabeça:

—Também eu tenho servido de agulha a muita linha

ordinária!

Machado de Assis

Page 8: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

RESUMO

O diálogo entre as ciências sociais e as artes se dá por meio da literatura que é lugar

privilegiado da permanência do imaginário, interseção de saberes humanos, campo fértil

para quem se propõe a olhar e entender os segredos de uma cultura política. As

comunicações vão dialogar com a cultura política brasileira a partir das lições dadas por

Machado de Assis no conto Teoria do Medalhão sobre os saberes guardados nos

segredos que envolvem a arte de fazer política no Brasil: o regime do aprumo e do

compasso, a difícil arte de pensar o pensado, usar a publicidade para se fazer

conhecido, usar jantares para fazer amigos influentes. O conto de 1881, republicado em

Papéis Avulsos (1884), é um diálogo entre um pai zeloso e seu filho bacharel, na noite

do aniversário de sua maioridade. Após sair o último convidado do jantar no silêncio da

noite o pai propõe ao filho uma conversa de portas fechadas de teor secreto e valioso,

onde ensina os meios e caminhos para conquistar poder, glória e prestígio no Brasil do

século XIX. Conselhos que segundo o pai guardadas as devidas proporções valem O

Príncipe de Maquiavel.

Palavras Chaves: Imaginário, Cultura Política, Machado de Assis

ABSTRACT

The dialogue between the science social and the arts is done through the literature which

is a privileged place where remains the imagination, intersection of humans knowledge,

fertile field for the ones who offer to look and understand the secrets of a political

culture. The communication will dialogue with the Brazilian political culture from the

lessons given by Machado de Assis in the story “Teoria do Medalhão” about the

knowledge kept in the secrets that involve the art of doing politics in Brazil: the regime

of the arrogance and of the bars, the difficult art of think about the thought, use the

publicity to make yourself known, take part of dinners to make influent friends. The

story from 1881, republished in Papéis Avulsos (1884), is a dialogue between a careful

father and his son bachelor, in the night of his majority. After the last guest had left the

dinner, in the silent night, the father proposes his son a secret and valuable conversation,

in which he teaches him the ways to conquer power, glory and prestige in Brazil in the

19th

century. Advices, according to his father, kept the proportions, can value “The

Prince, of Machiavel.

Keywords: Imaginary, Culture Politics, Machado de Assis

Page 9: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................10

1. UMA IDÉIA DE CANÁRIO: RELIGANDO OS SABERES PARA TECER

UMA PESQUISA BIODEGRADÁVEL......................................................................18

1.1 O Paradigma da Complexidade.............................................................................20

1.2 Imaginário, Vida Social e Literatura.....................................................................23

1.3 A mosca e o Canário................................................................................................33

2. HOMEM DO SEU TEMPO E DO SEU PAÍS........................................................39

2.1 O Homem e seus desejos.........................................................................................44

2.1.1 O desejo de ser Feliz e o desejo de morrer.............................................................45

2.1.2 O Desejo de ler e o desejo de escrever...................................................................53

2.2 Breves lições sobre a sociedade e a política brasileira nos tempos de Pedro II e

Machado de Assis...........................................................................................................63

2.3 Machado de Assis e a arte de escrever contos no Brasil......................................67

3. A ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL

NA TEORIA DO MEDALHÃO...................................................................................72

3.1 O regime do aprumo e do compasso......................................................................83

3.2 A arte de pensar o pensado.....................................................................................87

3.3 Compra um carneiro e dá-o aos amigos................................................................93

3.4 O medalhão-príncipe ou o príncipe medalhão?...................................................99

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................101

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................104

Page 10: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

10

INTRODUÇÃO

Leitura e interpretação são, em última análise ‗tradução‘

que dá vida, que empresta vida à obra gelada, morta.

Através da ‗tradução‘, a minha própria linguagem torna-

se una com a do criador. No entanto, cedo nos

apercebemos de que essa linguagem não é simples.

Pode fazer-se diversas ‗leituras‘ dela. (DURAND, 1996,

p.252)

Machado de Assis muito se esforçou para compreender seu tempo, seu país e seus

contemporâneos, ao exercitar sua arte e ao falar da vida cotidiana que ele conheceu acabou

por legar uma obra que muito ajuda ao pesquisador que se propõe a pensar a invenção da

cultura política brasileira pelos caminhos do pensamento complexo.

Nos contos de Machado de Assis temos uma ampla galeria de imagens que nos

remetem ao ainda tão próximo e já tão longínquo Brasil do século XIX. Entre algibeiras e

tílburis, se imitarmos o míope e aproximarmos o olhar com um pouco mais de acuidade,

poderemos ver a dança dos mitos, imagens e símbolos de nossa mitologia política. Da união

dessas pequenas jóias da literatura universal com a complexidade e os mitos poderemos

pensar outros meios de aprender e ensinar cultura política brasileira.

A dissertação que apresento gira em torno de uma compreensão política do Brasil

que não se limite à aparência de sua superfície institucional e formal, mas que se demore no

que seria a subjetividade que a sustenta. Permeando toda estrutura há valores e crenças que

não estão explicitados nos compêndios teóricos nem mortos e enterrados por nossas certezas

Modernas, mas vivem sutis nos provérbios, nas piadas, nas narrativas populares, na literatura.

Suas histórias, contadas dentro de uma determinada ambiência cultural, dão vida a

personagens e cenários que refletem os desejos e temores, certezas e incertezas, possibilidades

e limites da sociedade na qual são inventadas e vividas.

Há muito que ver sobre o Brasil e seu imaginário coletivo, na literatura, que não

será encontrado na vetusta historiografia, nos compêndios de direito e nos manuais de ciência

política e legislações. Não se trata de ignorar esses saberes, mas de religá-los aos saberes da

literatura para que possamos abrir outras possibilidades e formas de compreender e interpretar

a cultura política.

Page 11: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

11

Daí nosso desejo de pensar o imaginário político brasileiro a partir do século XIX

pelas lentes do grande Machado de Assis, pois é esse um período histórico marcante para as

inflexões da modernidade entre nós, em seu embate, muitas vezes conciliador, com toda a

tradição de sociabilidade que se desenvolve desde o primeiro encontro do índio com o

português em terras do novo mundo. Trataremos disso elegendo dois modos fundamentais de

dinamização intersubjetiva em nosso país: o favor e o contrato, representados e ironizados

numa imagem fundamental de nossa formação política e social, o mais vaidoso dos Deuses do

nosso Olimpo Político: o grave Medalhão.

Empreendemos uma interpretação hermenêutica em forma de espiral de caráter

transdisciplinar das dinâmicas e saberes guardados no imaginário brasileiro sobre os sentidos

sociais, políticos e culturais das tensões do que aqui chamamos de Mito do Medalhão, e a

influência de seus segredos, imagens e capitais simbólicos na formação da cultura política

brasileira. Propõe-se uma leitura feliz do conto Teoria do Medalhão por meio de um diálogo

com os saberes e segredos revelados/escondidos em outros contos de Machado de Assis sobre

as lições que o Pai, um não Medalhão, revela ao filho, futuro ―adjetivo da sociedade‖, na noite

de sua maioridade.

É certo que existe sempre um risco em ‗interpretar‘, mas a ‗leitura‘, que é

interpretação, constitui a felicidade da ‗leitura feliz‘ (G. Bachelard) e interpretar um

texto literário é (lê-lo!) como uma peça musical ou como a tela de um pintor

constitui um ‗belo risco a correr‘ (como dizia, num outro contexto), Sócrates. O ‗

sentido‘ de uma obra humana, de uma obra de arte, está sempre por descobrir, ele

não é automaticamente dado através de uma receita fastfood de análise. E é o ‗mito‘

que ‗descobre‘ a interpretação, o mito com as suas marcas de referência

metalépticas, as suas redundâncias diferenciais do ‗alguns‘, seja ele ‗mito pessoal‘,

seja mito de uma época, seja mito de uma cultura, seja mito eterno e universal...

(DURAND, 1996, p. 251)

Por meio de um exercício de mitocrítica e mitoanálise no conto, a pesquisa

proposta busca compreender a complexidade da relação entre a literatura, a vida social e os

mitos que envolvem as práticas e tensões políticas e culturais que medeiam e representam o

acesso e o não acesso aos capitais simbólicos que fazem no Brasil alguém ser considerado

bem sucedido, socialmente importante, digno da glória, da nomeada, de salamaleques e

honrarias, numa palavra, um Medalhão.

O Medalhão é aquele que não precisa perguntar ―você sabe com quem está

falando?” Pois todos sabem quem ele é, e quem são seus amigos, todos sabem do seu poder e

sabem que ele não hesitará em usar tal privilégio de forma violenta para se beneficiar ou

Page 12: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

12

ajudar um amigo; ele vai mexer seus pauzinhos e fará uso de sua influência e prestígio para

colocar alguém que fira seus caprichos no seu devido lugar.

Um Medalhão tem que ter movimentos cadenciados, como se sempre estivesse a

dançar com uma baronesa, num baile no Teatro Municipal. Sem arroubos, como se sempre

estivesse metido numa casaca preta, um exímio cultivador do ar sério caro aos bem nascidos e

ilustres. Mas sem esquecer-se de rir das piadas dos amigos, dos poderosos ou da miséria

alheia; deve ter um ou dois conceitos guardados na algibeira para os discursos de sobremesa

e claro, sorrir, ser simpático, distribuir uns tapinhas nas costas, e nunca, jamais, ser irônico,

questionador e criativo!

O verdadeiro medalhão sabe como usar a bajulação, a dissimulação, as

aparências, os salamaleques, a retórica, a malandragem para conseguir boas amizades. Sabe

cultivar o silêncio para simular circunspecção e na presença dos poderosos não provoca sua

ira com ideias que os desagradem ou que causem qualquer dissabor. Ao contrário sempre que

pode homenageia os ilustres, os bem nascidos, os grandes feitos, os grandes medalhões, ou

pelo menos sonha em homenageá-los, ser conhecido por eles para um dia ser um deles. Uma

vez medalhão:

Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter

contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o

adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o

prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o

principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica.

O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário. (ASSIS,

2008, Vol. II, p. 274)

O conto será lido a partir da inspiração da teoria da complexidade ensinada por

Edgar Morin e seguindo os caminhos mitodológicos da teoria do imaginário desenvolvida por

Gilbert Durand, num diálogo com Machado e a fortuna crítica que se criou ao seu redor nos

últimos cento e cinquenta anos. Para que tivéssemos uma melhor compreensão de como lidar

com um campo tão peculiar como a literatura incorporamos à pesquisa os ensinamentos da

sociologia e da crítica da literatura.

Mas como podemos, a partir de Machado de Assis, tentar compreender a

complexidade das relações políticas construídas na sociedade brasileira hoje? Quais os

limites, interfaces, fronteiras e possibilidades do diálogo entre a literatura e a as ciências

sociais? Como as pistas e caminhos presentes na obra machadiana nos trazem elementos,

Page 13: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

13

para refletirmos criticamente sobre os fundamentos e conexões das relações sociais

alicerçadas em nossa cultura política? Como um estudo de mitocrítica e mitoanálise pode

ajudar a trazer elementos que proporcionem uma reflexão sobre a vida no Brasil do século

XXI?

Essas questões vão ser respondidas ao longo da dissertação, mas é possível

antecipar que vamos navegar na confluência, no interstício, de duas grandes bacias semânticas

que desembarcam de caravela com os portugueses, seus espelhos e seu mundo doente, para

lembrar um poeta da minha geração: o Favor e o Contrato. E ganham força semântica com a

chegada da família Real em 1808 ao ponto de suas tensões envolverem a vida humana no

Brasil de pouco mais de 150 anos, tornado-se a fonte de verdades, padrões, ritos e mitos, o

software1, da vida brasileira.

O que chamamos de Favor, remete às relações clientelistas2, as trocas de favores,

que assumiram diferentes formas e sentidos na história humana e no Brasil tais relações foram

reforçadas pela cultura do patrimonialismo, do mandonismo, da Escravidão e da cordialidade

que como bem ensinou Sérgio Buarque de Holanda não significam ―[...]'boas maneiras',

civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e

transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em

mandamentos e sentenças. [...]‖ (HOLANDA, 1995, p. 146)

No Brasil o Contrato chegou pelo mar e trouxe junto com ele seus símbolos e

mitos influenciados pelo pensamento político e a teoria política desenvolvidos no Ocidente

desde Maquiavel. Têm como envoltório os grandes ideias modernas: a razão, a ciência, o

progresso e a evolução. Saber fundado nas categorias liberdade e igualdade que dominaram

as conversas dos contratualistas e seus herdeiros, onde a imanência tem lugar privilegiado,

para não dizer único nas páginas de nossos manuais de política: propriedade, governos, leis,

formas, técnicas, policy. Nesse ramo dos conhecimentos humanos o mercado é a fonte da

verdade, o mundo das trocas, suas práticas, crenças, valores e mitos envolvem as estratégias

de vida e de sociabilidade. O dinheiro é o Deus. Outros Mitos que pela força da ideologia

racionalista e das armas burguesas chamaram aos outros de mitos, mentiras, persuasões,

1 Para lembrar Gertz

2O clientelismo é definido como ―uma típica aliança vertical, onde ocorre um acordo entre duas pessoas que

possuem poder e recursos desiguais, sendo que cada uma julga conveniente possuir um aliado superior ou

inferior a si mesmo (GONÇALVES, 1988:8) Para além da troca de favores, o clientelismo tem uma dimensão

estrutural, estabelecendo solidariedade e funcionando como meio de interação social, como modo de

estruturação das desigualdades sociais. [...] (CORDEIRO, 2000, p.27)

Page 14: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

14

trevas e a si mesmo de única verdade, de luz dos homens. Em duas palavras, o que Rousseau

chamou de religião civil, tais Mitos influenciaram as narrativas e práticas sobre as relações

burguesas no Brasil do século XIX.

A tensão entre Favor e Contrato é pintada em grande estilo por Machado de Assis

em sua obra, ele foi observador agudo e genuíno intérprete da sociedade brasileira, que

segundo ele, sempre mudava para permanecer a mesma, pois, mudava de roupa sem trocar de

pele. O míope construiu artisticamente imagens que nos permitem especular sobre como a

sociedade imperial do século XIX vivia e recriava sua realidade complexa. Ao mesmo tempo

liberal e conservadora, nova e arcaica, moderna no discurso e colonial nas ações, onde

tínhamos um imperador poliglota e 90% de analfabetos, empresários promissores, baronatos

comprados, uma imensidão de escravos e uma população de dependentes e agregados.

Ler um conto machadiano é uma experiência social, histórica, cultural, política,

humana, que é ao mesmo tempo interseção da antropologia, sociologia, ciência política,

economia, história, arqueologia, direito. Cada frase entendida, interpretada, dá a sensação de

escavação da cultura brasileira. Bachelard demonstrou que a vida ―não é resultado de uma

série de raciocínios, mas a elaboração de uma função da mente (psíquica) que leva em conta

afetos e emoções.‖ (BACHELARD apud PITTA, 2005, p.16) Segundo o pensador ―a validade

do conhecimento é a mesma, seja ele adquirido pela experimentação ou poesia.‖

(BACHELARD apud PITTA, 2005. p.16) Assim, não é absurdo falar de um Machado de

Assis produtor de conhecimento sobre política mediante sua pena.

Machado de Assis nos leva a descobrir que ao falar sobre detalhes, situações,

casos aparentemente banais da vida cotidiana brasileira do século XIX, ele acaba explicando,

explicitando, contrapondo, descrevendo, analisando, dissimulando e enaltecendo, traços

essenciais da sociedade brasileira, bem como seus imaginários, dando ênfase às relações de

dependência, favor, mando e suas interseções e tensões com as ideias e formas do mundo

burguês ocidental europeu, suas ideias e práticas. A melhor forma de compreender Machado

de Assis é lendo Machado de Assis3, ele diz sem dizer e mais do que ler o que foi escrito, é

preciso aprender a ler o não dito, as pausas, as omissões, decifrar os enigmas e pistas

habilmente deixadas pelo caminho muitas vezes por um narrador dissimulado, irônico e digno

de desconfiança.

3 Antonio Candido

Page 15: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

15

Da vasta obra de Machado de Assis, escolhemos trabalhar mais de perto com seus

contos. Segundo John Gledson (2006, p. 59), nos contos, Machado de Assis lida com pessoas

e grupos sociais mais amplos, principalmente aqueles empobrecidos e marginalizados

(crianças, escravos, e agregados) que não teriam o tratamento merecido nos romances. Os

contos machadianos foram, na sua melhor parte, estudos sobre alguns temas, não narram

relações sociais estáticas, mas a vida humana envolta nos costumes desta sociedade, bem

como nos sentimentos e interesses individuais numa relação complexa entre, de um lado os

costumes e valores daquela sociedade e, de outro, os seres humanos, suas incertezas e desejos.

A obra machadiana é complementar tanto no sentido da narrativa histórica, como

na compreensão de alguns conceitos, tipos e formas. É impossível entender quem eram

Bentinho ou Cubas, sem termos em mãos a Teoria do Medalhão. Não entenderíamos muito

bem a importância política dos jantares para os ―pomadistas‖, do conto ―O segredo do

Bonzo‖, se não entendemos o amor da glória e a sede da nomeada. Sem todas as suas outras

obras, o genial Um Apólogo não nos revela todo seu brilho.

Assim intenciono desenvolver um estudo de mitodologia aplicada ao conto Teoria

do Medalhão buscando as nuances, os interditos, o que ainda está por ser interpretado a

respeito das estratégias e fundamentos sobre o que seria preciso ser feito para que um homem

pudesse ter honra e glória na vida social brasileira. Sociedade na qual a desigualdade é

cultuada e reinventada para manter velhos e novos privilégios e as relações entre as pessoas

são mediadas pelos princípios do mercado e do contrato e ao mesmo tempo pelas relações da

tríade: Origem Fidalga, Grossos Cabedais e Relações Pessoais (Chalhoub, 2000). Onde não

importa quem você é, quais seus sonhos, amores e dores, saiba que você tem que vestir a

farda do Alferes e tornar-se um Medalhão.

No conto vamos acompanhar como a tensão mítica já explicitada, assume várias

formas, e se caracteriza por ensinar as mesmas lições, ao mesmo tempo em que as esconde,

num jogo de desvelar e velar nuances que ajudam à interpretar nosso imaginário político, nos

colocando frente a frente com as mais coriáceas4 características da nossa cultura política.

4 [...] as sociedades não são ‗mortais‘ [...] Existe nelas um núcleo ‗coriáceo‘ que coincide justamente com o

corpus sagrado dos mitos. Tal como a história, as sociedades não têm um ‗fim‘ mais ou menos apocalíptico. Nas

piores situações, elas sobrevivem através das ‗congères‘ culturais ou através do ilhéus tenazes das línguas

naturais. Ora, as heranças de palavras são heranças de imagens. E mais, a este nível mais profundo das

imobilidades da história, o inconsciente social vai ao encontro do inconsciente específico. (DURAND, 1996,

p.136)

Page 16: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

16

No conto ―Teoria do Medalhão‖ temos uma passagem secreta para espiarmos os

ritos e os mitos da invenção da política e da sociedade no Brasil pelo viés da luta para ser

Medalhão, que no conto é exercida, ensaiada, ensinada, imposta e pensada para ser usada com

o fim dos fins: exercer o direito de contemplar a ponta do próprio nariz, segundo a velha

teoria de Cubas, ou de gozar das ―boas amizades‖ e ter acesso ao banquete do poder, ou pelo

menos suas sobras.

Essa caminhada também intenciona refletir a interpretação da pertinência e da

permanência do conto machadiano na compreensão da política na contemporaneidade,

dialogando com as interfaces entre a literatura e as Ciências Sociais para experimentar a

religação dos saberes e suas contribuições para uma melhor compreensão sobre a invenção da

democracia brasileira contemporânea, não suas formas e meios, mas suas sombras, suas

anedotas de folhetim.

Proponho compreender a tensão existente entre as ideologias e práticas

clientelistas e liberais, bem como a tensão entre o tradicional e o Moderno, para entender

como essa tensão influenciou a formação da sociedade brasileira e de seu imaginário no Brasil

imperial; assim como conhecer e compreender as dinâmicas, segredos, e ensinamentos do

Medalhão, suas interfaces com os outros mitos e ritos da vida brasileira, para melhor entender

as dinâmicas, perenidade, desgastes e derivações desse Mito na vida brasileira.

A outra linha desse trabalho buscou compreender a trajetória da formação de

Machado de Assis como escritor, suas relações com seu público, os outros artistas, o Estado,

seus amigos e críticos e os Mitos do seu tempo, para descobrir como um homem se faz Mito

ao mesmo tempo em que é o Hermes que nos conta o que lhes disseram os Mitos, com uma

ajudinha das ninfas, que segundo um crítico5, sempre beijavam Machado ao amanhecer o que

rendia bons filhos aos leitores do escritor.

A dissertação é dividida em três partes. O primeiro capítulo intitulado Uma ideia

de canário: Religando os saberes para tecer uma Pesquisa Biodegradável é um diálogo com

a teoria da complexidade, com a ―mitodologia‖ e com a sociologia da Arte e da Literatura.

No segundo capítulo, Homem do seu tempo e do seu país. Conheceremos um

pouco sobre quem foi esse menino pobre, mestiço, filho de uma lavadeira e de um pintor de

paredes, e como ele atravessou a sociedade de seu tempo, e foi jornalista e funcionário

5 Citação está na obra de Dau Bastos

Page 17: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

17

público exemplar, que pintou em cores vivas seus contemporâneos e seu cotidiano, tornando-

se um ―gênio da raça‖.

No terceiro capítulo a Arte de fazer política no Brasil na Teoria do Medalhão

temos minha interpretação do conto resultado da mitocrítica realizada no Teoria do Medalhão

e da mitoanálise a que ela me levou.

Ler Machado de Assis foi um prazer, atividade dialógica e retroativa que envolveu

leitor e o texto lido. Um processo de explicação-compreensão que foi para além das análises

mutiladoras, miméticas e reducionistas. O encontro de realidades distintas aparentemente

separadas pelos conceitos de tempo e espaço da física newtoniana cria um movimento de mão

dupla, que reconstruiu texto lido e leitor, me fazendo compreender a noção de tempo em

espiral que, da mesma forma que passa, permanece criando uma relação de ir e vir entre

realidades históricas, sociais, políticas e culturais que se complementam e divergem recriando

e significando os sujeitos dessa interação.

Enfim, ou melhor, em princípio é fato que a cultura política brasileira tem sido

revirada de cabeça para baixo por cientistas, escritores eruditos, políticos, artistas, músicos

populares, etc. Minha tentativa aqui não é propor uma nova interpretação do Brasil, trazer

uma inédita e grandiosa descoberta sobre a obra machadiana ou apresentar a verdade

definitiva sobre a Teoria do Medalhão, mas tão somente pensar um caminho para melhor

compreender a arte de fazer política no Brasil, tendo como campo a literatura, lugar do nosso

imaginário político, reservatório de nossos mitos e de suas relações com a vida cotidiana, na

elegante e agradável companhia de Machado de Assis, suas ideias, sua vida e seu tempo.

Page 18: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

18

CAPÍTULO I

UMA IDEIA DE CANÁRIO: RELIGANDO OS SABERES PARA TECER UMA

PESQUISA BIODEGRADÁVEL

Hoje, quando ele aí vai, de áloe e cardamomo

Na cabeça, com ar taful,

Dizem que ensandeceu, e que não sabe como

Perdeu a sua mosca azul.

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 579)

Morin diz que o grande desafio do século XXI é refazer a ligação dos

conhecimentos, outrora fragmentados pelo paradigma simplificador e afirma que o método

proposto para tal aventura não significa necessariamente uma metodologia. Pois, pesquisar é

como viver, sendo assim não existem receitas universais, certezas eternas, modos de fazer

padronizados que sejam suficientes para dar conta da multiplicidade da realidade caótica e

multidimensional da qual fazemos parte. Qualquer tentativa de padronização ou receitas passo

a passo de como fazer um objeto falar é por si mesma mutiladora e redutora, sendo assim

sujeito pesquisador e o objeto pesquisado, diante das incertezas e do acaso que regem a vida

devem estabelecer uma relação ―eu-eu‖ e não ―eu-coisa‖.

Esta pesquisa é um resultado de uma interpretação-análise qualitativa que tem

como campo principal fontes bibliográficas, sua tessitura se dá através de uma pesquisa

bibliográfica, tendo como fonte primária o conto ―Teoria do Medalhão‖. Em nossas fontes

secundárias temos o restante da obra de Machado de Assis, romances, crônicas,

correspondência, crítica literária, poesia e a fortuna crítica produzidas por leitores atentos,

desde seus contemporâneos como José Veríssimo e Silvio Romero, passando por Mario de

Andrade, Antonio CANDIDO, até chegar aos nossos machadianos contemporâneos, aqui as

principais referências são Raymundo Faoro, Roberto Schwarz, Jonh Gledson e Sidney

Chalhoub6. Essas leituras permitiram entender, como ficção e realidade dialogam na obra

6 Desde a década de 1970 vêm surgindo importantes obras que lançaram um novo olhar sobre a obra e o

pensamento machadiano. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio de Raymundo Faoro; Ao vencedor as

batatas de Roberto Schwarz; na década de 80 aparecem os trabalhos de Jonh Gledson. Nos anos 90 temos Um

mestre na periferia do capitalismo e Duas meninas também de Schwarz. No início do século ocorre um ―boom‖

de produções sobre a obra de Machado em virtude de seu centenário de morte, em 2008: temos Sidney Chalhoub

seu rico Machado de Assis: historiador; Por um novo Machado de Assis de Gledson, Alfredo Bosi, entre tantos

outros.

Page 19: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

19

machadiana e nos preparou para identificar aí o movimento da história brasileira do século

XIX, bem como os movimentos das ideias, das éticas e das morais compartilhadas e deixadas

para trás, trocadas por novas.

Outro movimento da pesquisa foi em busca de consultar alguns intérpretes da

relação entre o Favor e o Contrato na formação da sociedade brasileira, estas leituras

ajudaram a apurar o olhar do pesquisador, sobre essa tensão o que permitiu melhor percebê-la

no texto machadiano. As nossas principais referências nesse campo são Sergio Buarque de

Holanda, Raymundo Faoro, Gilberto Freire e Darcy Ribeiro.

Também nos aventuramos pelos campos da sociologia da literatura e da arte, onde

temos como principais referências a obra de Antonio CANDIDO, as reflexões que Pierre

Bourdieu desenvolve em seu As regras da Arte e as lições dadas por Nobert Elias em seu

Mozart: Sociologia de um Gênio.

O presente capítulo visa, satisfazer uma necessidade inerente a qualquer pesquis,a

a de dizer como foi feita, gestada, criada, inventada, de explicitar por quais caminhos o

pesquisador se perdeu para se iludir na tentativa de desvendar, no emaranhado caótico da

realidade, algumas novas verdades biodegradáveis. ―[...] a concepção complexa que tentamos

elaborar pede e dá os meios da autocrítica. Ela pede num desenvolvimento natural o segundo

olhar epistemológico; ela traz verdades que são biodegradáveis, isto é, mortais, isto é, ao

mesmo tempo vivas.‖ (MORIN, 2007, p.48)

O ―como‖ de uma pesquisa é essencial na desconstrução das ilusões que poderiam

levar a pensar que o pesquisador é um gênio autônomo que escreve a partir do saber revelado,

da razão que tudo consegue explicar ou da inspiração das musas, que a pesquisa é um produto

autônomo exterior, estranho ao seu autor e sua vida envoltos no mundo material no qual é

produzido, visto tanto pelo vulgo como pelos arautos da ciência como saber sagrado.

Page 20: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

20

1.1 O Paradigma da Complexidade

Fomos formados por uma maneira de pensar que surge a partir do século XVII

com o advento do empirismo e do racionalismo; ele diz que nosso pensamento é conduzido

exclusivamente pela Razão, esse jeito de pensar que promove a ―racionalização que encerra o

real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral, e que não sabe que uma parte do

real é irracionalizável, nem que a racionalidade tem por missão dialogar com o

irracionalizável‖. (MORIN, 2001, p.14) Nessa forma de pensar tudo segue uma certeza

matemática, regida por ―leis‖ naturais, como pensaram Descartes e Newton, que se interessam

apenas pelo dado empírico que está sempre fora de si, do lado do observável e classificável.

Essa é a ciência parodiada no conto ―O Alienista‖, publicado em A Estação entre

1881 e 1882 e republicado em Papéis Avulsos. Na anedota de Itajaí, Machado de Assis

antecipa em quase um século a crítica aos limites da Racionalidade Instrumental, ao

transformar a razão da loucura na loucura da razão. O fazer científico de Simão Bacamarte

não tem interesse pela subjetividade dos seus ―pacientes‖ ou pela sua própria, é uma mera

atividade de descrição e classificação orientadas pela racionalidade exacerbada do

investigador e por uma visão de mundo compartimentada; tal visão coloca a vida e o

conhecimento como um todo constituído por partes mecanizadas, determinadas, onde cada

parte pode ser conhecida separadamente do todo. Suas principais características são:

simplificação, disjunção, redução, unidimensionalização; eliminação dos mitos, da

interpretação que cada ser tem do mundo de forma única e original, do preconceito e senso

comum, como elementos reveladores de conhecimentos ―válidos‖ sobre a vida humana, não

tendo então como compreender a complexidade da vida humana.

O ―pensamento complexo é um pensamento que busca distinguir, mas não

separar, ao mesmo tempo em que busca reunir.‖ (MORIN In: MENDES, 2003, p.71). ―Trata-

se de um pensamento capaz de reunir, contextualizar, globalizar, mas ao mesmo tempo de

reconhecer o singular, o individual, o concreto.‖ (MORIN In: MENDES, 2003, p.77), e

acrescenta Jérôme Bindé ―o ato de compreender certo número, ou um grande número de

coisas diferentes.‖ (BINDÉ, In: MENDES, 2003,12).

Ainda sobre o pensamento complexo, Morin diz: A um primeiro olhar, a

complexidade é um tecido complexus (o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas

Page 21: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

21

inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo

momento, a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações interações,

retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a

complexidade se apresenta com traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da

desordem, da ambiguidade, da incerteza... (MORIN, 2007, p.13)

Os novos saberes científicos do último século nos mostraram que tanto no

microcosmo como no macrocosmo não existe só o uno; tudo é complexo, unitas multiplex, o

uno e múltiplo ao mesmo tempo. A complexidade possui alguns princípios-guias

interdependentes e complementares, e que nos servem como instrumento de navegação pelas

águas do Imaginário brasileiro do século XIX e suas ressacas machadianas.

Em princípio apresento a compreensão do que Morin chama de ―dialógica‖, para

começarmos a entender como é possível a partir da literatura falar sobre política:

Ela une dois princípios ou noções em face de se excluírem um ao outro, mas que são

indissociáveis em uma mesma realidade. [...] Sob as mais diversas formas, a

dialógica entre ordem, a desordem e organização, por via de inumeráveis inter-

retroações, está constantemente em ação nos mundos físico, biológico e humano. A

dialógica permite-nos aceitar racionalmente a associação de noções contraditórias

para conceber um mesmo fenômeno complexo. [...] somos seres separados e

autônomos, ao mesmo tempo em que fazemos parte de duas continuidades

separadas, a espécie e a sociedade. Quando consideramos a espécie ou a sociedade,

o indivíduo desaparece, quando consideramos o indivíduo, a espécie e a sociedade

desaparecem. O pensamento complexo aceita dialogicamente os dois termos, que

tendem a se excluir um do outro. (MORIN In: MENDES, 2003, p. 74)

Para Morin existe outro princípio, que foi decisivo no modo como aqui foi lido

Machado de Assis é a reintrodução do conhecido em todo o conhecimento. Ele diz que “da

percepção à teoria científica, todo o conhecimento é uma reconstrução-tradução por um

espírito-inteligência em uma cultura e em um tempo determinados.‖ Ele tanto nos serve para

pensarmos a relação entre o escritor Machado de Assis sua sociedade, obras e público, assim

como, para entendermos a tensão entre os mitos no imaginário de seu tempo, e se aplica para

pensarmos a interpretação aqui exposta sobre essa tensão no conto machadiano.

Seria dar um tiro no pé desse pesquisador afirmar que a tensão aqui estudada está

fotografada na obra machadiana. O conto de Machado de Assis é um enigma a ser decifrado,

um sistema muito bem elaborado, que para ser mais bem compreendido, necessita de uma

leitura sistêmica:

Page 22: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

22

[...] que une o conhecimento das partes com o conhecimento do todo, conforme a

fórmula iniciada por Pascal, ―eu acredito ser impossível conhecer o todo sem

conhecer suas partes e de conhecer as partes sem conhecer o todo‖. A ideia

sistêmica, que se opõe à ideia reducionista, é a de que ―o todo é mais que a soma das

partes‖. [...] Acrescentamos que o todo é igualmente menos que a soma das partes

cujas qualidades são inibidas pela organização do conjunto. (MORIN, In: MENDES,

2003, p.73)

Como num holograma a leitura de Teoria do Medalhão nos proporciona uma

visão privilegiada do todo de uma construção de um padrão de sociabilidade, de um habitus,

de uma cultura política, tão brasileira como a mata branca da caatinga.

O princípio “hologramático”, inspirado no holograma, no qual cada ponto contém

quase que a totalidade de informações do objeto que ele representa, põe em

evidência esse paradoxo dos sistemas complexos, nos quais a parte não somente está

no todo, como o todo está inscrito na parte. Assim, cada célula é uma parte do todo –

o organismo global – mas o próprio todo está na parte: a totalidade do patrimônio

genético está presente em cada célula individual; a sociedade está presente em

cada indivíduo no que diz respeito ao todo, através da sua linguagem, da sua

cultura e de suas normas. [Grifos Meus] (MORIN In: MENDES, 2003, p. 72)

Retroativa e recorrentemente, o objeto indaga ao pesquisador e põe em dúvida a

validade de seu próprio conhecimento.

O princípio do ciclo retroativo, introduzido por Norbert Wiener, permite o

conhecimento dos processos auto-reguladores. Ele rompe com o princípio da

causalidade linear: a causa age sobre o efeito e o efeito age sobre a causa, [...] O

ciclo de retroação (ou feedback) permite, sob sua forma negativa, reduzir o erro e,

assim, estabilizar um sistema. Sob sua forma positiva, o feedback é um mecanismo

amplificador [...] Inflacionadoras ou estabilizadoras, as retroações são verificadas

em grande quantidade nos fenômenos econômicos, sociais, políticos ou

psicológicos. (MORIN In: MENDES, 2003, p. 72-73)

Essas ideias mediaram nossas leituras e na pesquisa tentamos desenvolver e

adotar o que Morin chamou de auto-ecoorganização7 (autonomia-dependência):

O princípio da auto-ecoorganização vale, evidentemente, de maneira específica para

os humanos, que desenvolvem sua autonomia dependentes da sua cultura, e para as

sociedades que dependem de um ambiente geológico. (MORIN In: MENDES, 2003,

p. 74)

7 Os seres vivos são seres auto-organizadores que se autoproduzem sem cessar e por isso gastam a energia para

salvaguardar sua autonomia. Como eles têm necessidade de retirar a energia, a informação e organização do seu

ambiente, sua autonomia é inseparável dessa dependência e, portanto, é necessário concebê-los como sendo

auto-ecoorganizadores. (MORIN, In: MENDES 2003, p.73)

Page 23: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

23

1.2 Imaginário, Vida Social e Literatura

A pergunta que mais me fizeram nesses dois anos de Mestrado se referia a questão

de ser ou não pertinente que essa pesquisa estivesse sendo desenvolvida no programa que

cursava – Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade – MAPPS/UECE. Uma vez

em reunião do colegiado certo núcleo hard chegou a defender que a literatura não teria lugar

nas discussões sobre gestão, planejamento e avaliação de políticas públicas e que meu

trabalho era um estranho no ninho.

Outras vezes ouvi as pessoas dizendo, mas seu trabalho é sobre literatura? Quando

alguém não perguntava: Machado de Assis escrevia sobre política? E até me acusaram de

cometer o pecado mortal de tentar dialogar com Machado a partir das teorias que aprendi em

sala aula, e para não ser leviano não posso deixar de afirmar quanto a velha sociologia e a

velha ciência política me foram úteis no esforço de tentar pensar um texto artístico como meio

para pensar a política.

O objetivo que fundamenta a presente seção é responder à questão que acima

mencionei e na tentativa de explicar e explicitar melhor nossos argumentos sobre a

possibilidade de entender a política brasileira a partir da literatura. Assim, apresento as

seguintes questões que ao longo da presente seção vão ser respondidas: Qual a relação entre a

literatura e a vida social e política? Qual a relação entre o imaginário e a vida social e

política? Qual a relação entre Literatura e Imaginário?

A literatura é uma forma humana de expressão que desde muito antes da invenção

da escrita nos conta as histórias dos homens e do seu tempo, que foi recriada com advento da

escrita, e revolucionada após a invenção da imprensa. É a arte de contar histórias em prosa e

verso, de dominar essa tecnologia humana ainda hoje em moda: a escrita. A definição sobre o

que é a arte e sobre o que é a literatura, e as definições do que seria ou não arte ou literatura,

mudaram tanto ao longo do tempo como mudaram os homens que as inventavam. Mas, é

possível, sem querer impor verdades, demonstrar quais as ideias que ajudaram à construção

do que entendemos por arte e literatura neste trabalho.

A peculiaridade das fantasias inovadoras na forma de obras de arte é que são

fantasias que podem ser despertadas por materiais acessíveis a muitas pessoas. Em

Page 24: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

24

uma palavra, são fantasias desprivatizadas. Parece simples, mas toda a dificuldade

da criação artística se revela quando alguém tenta cruzar esta ponte – a ponte da

desprivatização. Também pode ser chamada de ponte de sublimação. Para dar tal

passo, as pessoas precisam ser capazes de subordinar o poder da fantasia expresso

em seus sonhos ou devaneios às regularidades intrínsecas do material, de modo que

seus produtos estejam livres de todos os resíduos da experiência egóica. Em outras

palavras, além de sua relevância para o eu, elas devem dar a suas fantasias

relevância para o tu, o ele, o ela, o vós e o eles. É para satisfazer tal exigência que as

fantasias estão subordinadas a um material, seja de pedra, de cores, de palavras, de

sons ou qualquer outro. (Elias, 1995, p. 61)

Lembremos que em meados do século XX o crítico e sociólogo brasileiro

Antonio Candido nos dizia sobre o seu entendimento a respeito do que seria a arte, portanto,

também a literatura:

[...] é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal,

que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela

se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um

elemento de manipulação técnica indispensável à sua configuração, e implicando

uma atitude de gratuidade. Gratuidade tanto do criador, no momento de conceber e

executar, quanto do receptor, no momento de sentir e apreciar. [...] (CANDIDO,

1980, p. 53)

O homem não faz literatura simplesmente por que ele quer, mas por precisar, por

necessidade de comunicar aos outros, suas representações do mundo, das ideias, dos mitos e

deles mesmos. O próprio CANDIDO diz a respeito:

[...] as manifestações artísticas são coextensivas à própria vida social, não havendo

sociedade que não as manifeste como elemento necessário à sua sobrevivência, [...]

são uma das formas de atuação sobre o mundo e de equilíbrio coletivo e individual.

São portanto socialmente necessárias, traduzindo impulsos e necessidades de

expressão, de comunicação e de integração que não é possível reduzir a impulsos

marginais de natureza biológica. [...] O seu caráter mais peculiar, do ponto de vista

sociológico, com importantes consequências no terreno estético, consiste na

possibilidade que apresentam, mais que outros setores da cultura, de realização

individual. Isto permite ao mesmo tempo, uma ampla margem criadora e a

possibilidade de incorporá-la ao patrimônio comum, fazendo do artista um intérprete

de todos, através justamente do que tem de mais seu. [...](CANDIDO, 1980, p.70)

A obra de arte é uma generosidade em forma de exibição do artista, através dela

ele nos oferece caminhos para compreensão de suas ideias e de seu mundo. Mas, a obra não é

fixa, estéril, ela muda conforme mudam os leitores, surgem outras obras e outras leituras, o

leitor reconstrói a obra e a obra reconstrói o leitor. A passagem abaixo ajuda a explicar meu

argumento:

Page 25: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

25

A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os

leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a,

deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é

passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que

atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de

circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo.

(CANDIDO, 1980, p. 74)

Tempo que vai para além do tempo de uma vida humana, algumas obras de arte

atravessam as barreiras de tempo e espaço e ressoam em lugares e pessoas que o autor jamais

imaginou que pudessem existir.

[...] Uma das características mais significativas dos produtos humanos que

chamamos de ―obra de arte‖ é o fato de serem relativamente autônomos em relação

a seu produtor ou à sociedade do seu produtor. Muitas vezes uma obra de arte só é

percebida como obra-prima quando começa a tocar os sentimentos de pessoas de

uma geração posterior à do produtor. Que qualidades de uma obra, e que aspectos

estruturais da existência social e da sociedade de seu criador, fazem com que este

seja tido como ―grande‖ por gerações posteriores – algumas vezes a despeito da falta

de ressonância entre seus contemporâneos? É uma questão em aberto, e que hoje em

dia muitas vezes ainda se disfarça de mistério insolúvel. (ELIAS, 1995, p. 57)

Para além do seu valor estético, ―uma das funções da obra de arte é ser uma

maneira de a sociedade se exibir, como grupo e como uma série de indivíduos dentro do

grupo. [...]‖ (ELIAS, 1995, p. 49) Como intérprete de todos o artista tira da realidade

cotidiana, assim como o historiador, o sociólogo ou o antropólogo, suas histórias e

personagens, assim sendo, elas são influenciadas pelo grupo e sua cultura, ao mesmo tempo

em que influencia e interfere no grupo.

[...] a arte é social: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em

graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático,

modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento

dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de

consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte.

(CANDIDO, 1980, 20)

[...] não convém separar a repercussão da obra da sua feitura, pois, sociologicamente

ao menos, ela só está acabada no momento em que repercute e atua, por que,

sociologicamente, a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana, e

como tal interessa ao sociólogo. Ora, todo processo de comunicação pressupõe um

comunicante, no caso o artista; um comunicado, ou seja a obra; um comunicando,

que é o público a que se dirige; graças a isso define-se o quarto elemento do

processo, isto é, o seu efeito. (CANDIDO, 1980, p. 21)

Page 26: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

26

Vejamos o que disse Faoro a respeito:

A corte imaginária das personagens não se compõe de outro tecido, apesar de

expressas no papel, que os da legião de homens que frequentam as ruas. Todos são

filhos de igual teatro, comprometidos na mesma existência, quer a suscitada pelo

historiador, quer a evocada pelo romancista. Quem os veste, arrancando-os do

anonimato e do caos, será o olho organizador, classificador, o olho do biógrafo ou

do ficcionista. No fundo, a situação histórica e social lhes dá a densidade, retratando

as idiossincrasias de grupo: o homem que vê não está isolado, mas imerso no grupo,

performado pela conduta e pelo pensamento dos outros. O boneco de tinta cumpre

um papel social como o boneco de carne e sangue, representando ambos suas

frustrações, na fantasmagoria de um mundo criado coletivamente. (FAORO, 2001,

p. 526)

Mas existe de fato algum valor real nessa tentativa de pensar a obra de arte como

portadora de informações culturais, sociais, culturais e política? Quem seleciona o que vai ser

mostrado e escondido? A passagem é longa mas é útil e esclarecedora.

[...] O valor cultural relevante está presente na configuração seletiva do

historiador como na obra literária. No mundo real e no mundo imaginário, o

mundo supostamente real do historiador e do espectador, há estruturas homólogas,

capazes de projetar a esfera ideal, pela sua coerência e unidade, maior claridade na

própria elaboração da consciência coletiva. Coerência e unidade à realidade por via

dos tipos ideais, que simplificam, hipertrofiam e deformam os dados empíricos. A

verdade de um e a verdade do outro, o campo do imaginário e o real, encontram-se

na verdade total, que indica missões aos homens – personagens de papel ou

personagens vivas – na busca da plenitude cultural. Desta sorte, realizam-se no

campo poético, com maior densidade, funções sociais, que, com acento criador, são

as mesmas do mundo real. A visão de um momento cultural, derivada da apreciação

de valores, é sempre objetiva, mas não do objetivismo válido para todos,

cientificamente demonstrável por meio de leis. O renascimento, para um

historiador, que o desvenda com o subsídio da literatura e das artes, se forma

de muitos caminhos e direções, que, percorridos por outro, dariam lugar a

painel diverso, de diferente conteúdo. Risco inerente às objetividades possíveis e

várias, o das visões múltiplas, que assume quem, historiador ou romancistas, se

liberta das convenções artificiais. A lâmpada, que deforma a imagem no espelho,

arde em todos os altares. Negá-la seria esconder os pressupostos das ciências

sociais. Esforço inútil e estéril de escamoteamento, falsa arte que esfalfou os

positivistas e naturalistas, nem só do século passado, senão os de agora, montados

em outros dogmatismos. [...] O abandono da fórmula que reduz a criação artística ao

influxo da realidade exterior, fórmula revitalizada com os pontos de referência e

imputação da segunda sobre a primeira, não leva à identificação pura e simples de

uma à outra. O mundo cultural se articula numa ordenação valorativa, na arte e

na realidade, mas com intensidade diferente. A arte deforma a realidade, na

mimésis dialética, não raro intencionalmente, por obra de sua estrutura específica.

Na criação artística configura-se uma categoria própria de história, recolhida da

imagem quebrada e reconstruída, mediante simetria e desenho próprios. O processo

deformativo – na realidade, processo de transmutação -, superando as velhas

distinções entre forma e conteúdo, abrange o estilo e a própria realidade social.

[Grifos Meus] Meus (FAORO, 2001, p. 528-529)

Page 27: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

27

Em outra perspectiva, Durand vai pensar a literatura como meio de acesso ao

imaginário, como o lugar do Mito: ―As letras e as artes de todos os tempos haviam sido o

refúgio tolerado do imaginário. [...]‖ (DURAND, 1996, p.232), essa é a perspectiva que

adotaremos daqui em diante.

O mito seria, de algum modo o ―modelo‖ matricial de toda a narrativa, estruturado

pelos esquemas e arquétipos fundamentais psique do sapiens sapiens, a nossa. É,

portanto, necessário, procurar qual (ou quais) o mito mais ou menos explícito (ou

latente) que anima a expressão de uma ‗linguagem‘ segunda, não mítica. Porquê?

Porque uma obra, um autor, uma época ou, pelo menos, um ‗momento‘ de uma

época – está ‗obcecada‘ (Ch. Mauron) de forma explícita ou implícita por um (ou

mais que um) mito que dá conta de modo paradigmático, das suas aspirações, dos

seus desejos, dos seus receios e dos seus terrores. (DURAND, 1996, p.246)

O autor de Campos do Imaginário aponta para uma ―filosofia do homem‖ que não

é pautada ―nem no racionalismo reflexivo alienante por defeito, nem do irracionalismo

alienado de toda a hierarquia inteligível, tal como aquele que os filósofos da existência

reivindicam.‖ (DURAND, 1996, p.57) e pensa a partir de ―[...] um humanismo generalizado e

não como um humanismo egoisticamente regionalizado pelo solipsismo reflexivo dos

racionalistas ou pelo desamparo pré-reflexivo dos existencialistas. (DURAND, 1996, p. 57)

Em sua reflexão epistemológica ele nos propõe que as ciências humanas cada vez mais se

afastem da objetividade e se convertam de vez à subjetividade.

[...] É para uma objectivação do sujeito humano que contribuem a psicopatologia, a

etnologia, a sociologia e a estética. Ou, melhor dizendo, é para uma subjectivação

generalizada e não para uma objectividade limitada e limitante que contribuem as

disciplinas antropológicas. (DURAND, 1996, p.60)

Durand propõe três postulados desenvolvidos por Dumézil e adotados por ele para

melhor explicar essas relações: ―toda intenção histórica de uma sociedade se converte em

mito; toda sociedade repousa sobre um alicerce mítico diversificado; e todo o mito é, ele

próprio, um recital de mitemas dilemáticos‖ (DURAND, 1996, p.126).

Qualquer análise categorial do irracional tem, de algum modo, o imaginário como

material, visto que as duas extremidades do trajecto antropológico mergulham nas

entradas e nas saídas infrapsíquicas que são o biológico e o social. (DURAND,

1996, p.65)

Page 28: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

28

[...] os homens se podem compreender mutuamente através do tempo da história e

da distância das civilizações, se os mitos, as literaturas e, inclusivamente os poemas

podem ser universalmente traduzidos, é porque toda a espécie homo sapiens possui

um patrimônio inalienável e fraterno que constitui o império do imaginário

(DURAND, 1996, p. 68)

Ele nos lembra que ―o homem passa metade da sua vida a dormir... e a outra a

evocar imagens.‖ (DURAND, 1996, p. 56) assim temos que nossa área de investigação já não

é o ―dos dados imediatos da consciência, mas a dos dados imediatos do inconsciente

antropológico.‖ (DURAND, 1996, p. 56), abaixo nos esclarece sobre o objeto da antropologia

que ele desenvolve:

[...] o material da antropologia, o imaginário para o qual convergem os sectores mais

díspares da investigação antropológica, escapa ao arbitrário do signo formal, sendo

sempre simbólico, isto é, semântico e não semiológico. O objecto fundamental da

antropologia, como o já pressentia Durkheim, é realmente o símbolo e o projecto de

uma taxinomia do irracional é a realizado quando nos apercebemos de que é a

compreensão simbólica que dita os traços formais – estruturais – da explicação

taxinômica. (DURAND, 1996, p.68)

O imaginário é campo fértil àqueles que se dedicam à complexidade das relações

humanas numa dada cultura, em um dado tempo e lugar, ―[...] essência do espírito, à medida

que o ato de criação (tanto artístico, como o de tornar algo significativo), [...] impulso oriundo

do ser (individual ou coletivo) completo, [...] raiz de tudo que, para o homem existe.‖

(PITTA, 2005, p. 15) Lugar do entre saberes, se expressa dentro de algumas estruturas

universais, a partir da dominante postural, digestiva e copulativa, e tem duas entradas: o social

e o biológico, constituindo uma pulsão entre a subjetividade e o mundo da realidade objetiva

concreta, capacidade humana de dar significados, ao mundo, as coisas, a nós mesmos, ao que

pensamos e ao que fazemos e é dividido em um regime diurno e um regime noturno da

imagem, formando ―[...] um verdadeiro fantástico transcendente”. (DURAND, 1996, p.65).

Museu, reserva de museu, do conjunto de todas as imagens passadas e possíveis

produzidas pelo homo sapiens sapiens. O que implica um pluralismo das imagens e

uma estrutura sistêmica do conjunto dessas imagens infinitamente dispares, se não

mesmo divergentes... (DURAND, 1996, p.231)

Outra categoria fundamental para Durand é o que ele chama de trajeto

antropológico:

Page 29: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

29

[...] Denominamos trajecto antropológico a descrição indiferente, sociópeta ou

sociófuga – isto é, partindo quer do sujeito individual quer do sujeito social – da

actividade humana. Porque a compreensão das categorias não escapa, quando passa

ao enunciado didáctíco, à lei da explicação (explicare), à lei do discurso que tem um

fio, um começo e um fim, e cuja lógica linear perturba e falseia a globalidade do

objecto humano analisado. [...] A ‗dominante‘ não se encontra na premissa do

discurso; é a totalização das categorias arquétipas que torna um regime dominante e

não uma ordem linear pseudodedutiva. As categorias são realia, isto é, escapam à

ordem sintáctica que as enuncia. Dito por outras palavras, não é o sentido descritivo

do trajecto antropológico que define as categorias, mas sim cada uma das categorias

que suporta trajectos característicos. É a combinatória global que constitui as realia

e não a univocidade discursiva da sua descrição explicativa. O conceito de trajecto

antropológico é a afirmação simultânea da reversibilidade da globalidade do

fenômeno humano e da obrigação lógica de começar a descrição por uma ponta

categorial do quadro. À maneira de um clínico que comenta um caso, ao

começar, por exemplo, pelo sintoma febril, embora saiba bem que não é a febre

que constitui a doença específica que irá estudar, mas que a doença, na sua

realidade, é um conjunto que escapa à ordem do formulário descritivo. ([Grifos

Meus] Meus) (DURAND, 1996, p. 63)

Mas o que são os Mitos? Do que eles são feitos? Os mitos são sistemas dinâmicos

de símbolos, arquétipos e schémes, que tendem a se compor em relatos e narrativas que a cada

vez que são vividas, contadas e ouvidas, têm seus sentidos ressignificados, como uma música,

possui refrões, os ―mitemas‖, aquilo que se repete em várias narrativas.

[...] Sabemos, em primeiro lugar, que o profundo e o mítico coincidem. O mítico

seria como o inconsciente onde se formulam e tentam resolver-se em imagens as

grandes questões às quais o consciente nunca consegue dar respostas lógicas sem

antinomias, as grandes questões da condição humana [...] (DURAND, 1996,p. 133)

[,,,] Nunca um mito se apresenta ornamentado com todas as suas ‗lições‘ como é o

caso de uns artigos de um Dicionário ou de um Léxico! O corolário desta

‗especificação‘ de cada lição, é que não há nunca um mito-modelo de origem. O

mito é – como diz Thomas Mann – o ‗poço sem fundo do passado‘. Cada época,

cada momento cultural apenas guarda o grupo de lições que lhe convém.

(DURAND, 1996, p.255)

O mito é feito de a) símbolos, b) schémes ou esquemas e c) Arquétipos. Aqui

aceitamos a definição que Pitta, baseada no pensamento que Durand faz de símbolo:

É todo signo concreto evocando, por uma relação natural, algo ausente ou

impossível de ser percebido. É uma representação que faz ―aparecer‖ um sentido

secreto. Os símbolos são visíveis nos rituais, nos mitos, na literatura, nas artes

plásticas, etc.

Page 30: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

30

A definição de schémes ou esquemas e o seu lugar na construção da obra humana

é o ponto fundamental para entendermos o pensamento de Durand e suas diferenças em face

das outras correntes que estudam o irracional na área da psicanálise.

Porém, ao colocar o esquema na raiz da figuração simbólica, separo-me tanto da

teoria jungiana, que coloca em último lugar um reservatório de arquétipos

elaborados num inconsciente coletivo, como das reduções da figura simbólica, tanto

freudianas (redução ao sintoma de uma única libido obcecada pelo buraco, o

digestivo e o genital) como lacanianas (redução desta linguagem pré-linguistica às

sintaxes e aos jogos de palavras de uma língua natural). Como Mauss, acredito

firmemente que a primeira ‗linguagem‘, o ‗verbo‘, é a expressão corporal. [...] A

mímica, a dança, o gesto – aquilo que Hurssel apelida de ‗pré-reflexivo‘ – são

anteriores à palavra e, com mais razão ainda, a escrita. (DURAND, 1996, p.75-76)

Assim ele define esquema:

o ‗esquema‘ – que, metaforicamente denominei ‗verbal‘, uma vez que nas línguas

naturais o verbo é o que exprime a ação -, o mais imediato para a representação

figurativa, que se eleva directamente – graças as conexões reflexas no ‗grande

cérebro‘ humano – no inconsciente reflexo do corpo vivo. Os esquemas são o capital

referencial de todos os gestos possíveis da espécie homo sapiens. [...].(DURAND,

1996, p.75-76)

Sua definição de arquétipos também é bem diferente de seu sentido em Jung. As

passagens abaixo ajudam as compreender o sentido de arquétipos que Durand usa em sua

teoria.

[...] as categorias do irracional são dotadas das qualidades de arquétipo, não

atribuindo a este termo o seu sentido jungiano, isto é, insistindo no carácter

cronológico do radical ‗arque‘, mas simplesmente como o Sócrates do Filebo, o

sentido dos princípios, capazes de se comporem em termos cumulativos. As

categorias não são exclusivas, elas apelam, pelo contrário, a uma combinatória, de

um factor mais ou menos capaz de se integrar, se não numa equação, pelo menos

num conjunto de transformação. [...] (DURAND, 1996, p.62)

Os famosos ‗arquétipos‘ não são senão segundos. E essas ‗imagens primeiras e

universais à espécie‘ ainda, se dividem [...], em ‗epitéticas‘ e em ‗substantivas‘,

consoante se trata de qualidades sensíveis ou perceptíveis [...] ou então objectos

apreendidos e denominados substantivamente; [...] Os arquétipos são a via da

diferenciação preceptiva e da distanciação exógena. [...] particularizam-se ainda sob

a influência qualificadora de incidentes puramente exógenos: o clima, a tecnologia, a

área geográfica, a fauna, a situação cultural, etc. É o local do aparelho simbólico a

que se pode chamar ‗símbolo‘ stricto sensu. (DURAND, 1996, p. 76)

O mito é caracterizado pela redundância, pela repetição, pela metábole.

Page 31: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

31

[...] A redundância que caracteriza o mito, a ‗metábole‘, está bem inserida no

domínio da linguagem musical – ela é o ponto de referência quer de um certo

‗contínuo‘ (canção popular, chacóina...) por detrás das variações, quer de um certo

‗tema‘ através dos ‗desenvolvimentos‘ (forma sonata, minuete, rondo, refrão,

leitmotiv, etc.), quer ainda de um certo ‗modo‘ (a partir de J. S. Bach, o maior e o

menor) que colora o conjunto da peça. Modo musical, tema e contínuo ‗qualificam‘

o efeito produzido por uma peça musical, qualificam a sua compreensão.

(DURAND, 1996, p. 250)

Na integração semântica destes dados, o mito vai utilizar a metalinguagem dos

símbolos. O ritmo, para si, vai ser redundâncias simbólicas de preferência a

assonância fonética ou repetição métrica. Através de aproximações sucessivas, o

mito tende a criar uma espécie de persuasão iluminante, uma espécie de intuição.

[...] intuição que nunca é satisfeita pela expressão literária, expressão que ela desfaz

e refaz sem cessar a fim de que a imagem expulse a imagem em redundâncias

‗sincrônicas‘ cada vez mais adequadas. O mito vive dessa progressão semântica da

convicção e da iluminação [...] (DURAND, 1996, p.44-45)

As artes são o lugar de refúgio dos arquétipos, mitos e símbolos, depois que a

racionalização tentou bani-los para as profundezas do esquecimento. Esse pequeno estudo é

um exercício de religação da literatura aos estudos sobre cultura política brasileira, pois, para

além das leis, da burocracia e da luta pelo poder, a política é uma invenção cotidiana ao

mesmo tempo objetiva e subjetiva, simbólica. Acolhido pelas musas, o imaginário conservou-

se nas literaturas, museu privilegiado aberto àqueles que desejam compreender os homens e

sua ação, a partir de seus devaneios, incertezas e desejos.

O ―eu‖ de uma sociedade, é a sua encenação. O teatro, o cinema, a literatura, e

particularmente esse ―teatro de bolso‖ que é o romanesco, são a mostra por

excelência de uma sociedade. (DURAND, 1996, p.141)

Mas essa literatura necessita e sempre necessitará de novas interpretações e o

caminho proposto para essa interpretação é a mitocrítica, caminho de acesso ao sermo

mythicus da política brasileira, uma melhor forma de ouvir nossos deuses e heróis do nosso

Olimpo político:

Todo o pensamento humano que se ‗formula‘, ‗desenrola-se‘ no modo do sermo

mythicus (é nomeadamente, como é óbvio, qualquer narrativa ‗literaria‘, da

consciente ficção romanesca ou poética até ao mitologema inconsciente da narrativa

‗histórica‘, ou inclusivamente até aos preocessos do ‗raciocínio‘ científico [...]). É,

então, que a mitologia desce do Olimpo e, ao generalizar-se, ao banalizar-se, se

torna ‗mitocrítica‘.( DURAND, 1996, p. 154)

Page 32: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

32

A ―mitodologia‖ proposta leva a uma leitura transdiciplinar e será o instrumental

usado na pesquisa, onde a subjetivação é a meta primeira. A mitocrítica e a mitoanálise são

meios para acessarmos esses dados, para usar uma metáfora de nosso tempo. A mitocrítica é a

―caça ao mito‖, nessa busca identificamos quais são os mitos de um tempo e como eles

dialogam entre si. Fazer mitoanálise é buscar como as pessoas de um tempo, uma sociedade,

dialogavam com seus mitos, é saber como eles as influenciavam, saindo da obra e caindo na

sociedade e em outro sentido indo da sociedade para a obra, pois, não há mitocritica, sem

mitoanálise; uma leva à outra, numa relação dialógica.

A mitocrítica e mitoanálise são os instrumentais da mitodologia, uma proposta de

interpretação transdisciplinar, ampla, complexa que ensina como se deve proceder no

espinhoso terreno do imaginário.

A primeira mais estática, diz respeito, à delimitação dos nossos terrenos de caça e ao

espinhoso problema do levantamento dos vestígios, dos indícios da presença da caça

mítica. A segunda, mais dinâmica, será consagrada aos movimentos do mito: como é

que um mito se modifica, como é que a modificação se processa?‖(DURAND, 1996,

p. 246)

Um velho conselho me ajudará a concluir o tópico e o capítulo, ele nos

proporciona entender que compreender uma obra é juntar:

texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho

ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela

convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como

momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no

caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento

que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto,

interno.‖ (CANDIDO, 1980, p. 04)

Para nós o texto é o de Machado de Assis, o contexto é o Mito e o externo não é

apenas o social, mas o imaginário que o envolve e que é ao mesmo tempo externo e interno à

obra e seu processo de criação e recepção.

Page 33: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

33

1.3 A Mosca e o Canário

O jovem Machado de Assis, no livro de poesias Ocidentais, nos ensina com o

poema a Mosca Azul, que corremos um enorme risco em perder a beleza das coisas se ao

invés de nos entretermos com o fértil exercício de contemplá-las, senti-las e interpretá-las, nos

dermos à estéril tarefa de explicá-las, reduzi-las, dissecá-las. A sugestão do poema foi da

professora Danielle Rocha Pitta numa breve conversa que tivemos sobre Machado de Assis

durante o Ciclo do Imaginário por ela organizado na cidade do Recife em 2011. A aluna de

Durand afirma que a atitude diante do imaginário seja a oposta tomada pelo personagem do

poema.

No poema um homem encontra-se por acaso com uma Mosca Azul, e se encanta

com sua beleza, e logo se põe a tentar descobrir seus segredos e mistério; de forma tão

incisiva e cientifica ao ponto de a mosca morrer e perder o encanto que antes o atraia,

deixando-o louco e inconformado. Vejamos as estrofes finais do poema:

A Mosca Azul

[...]

Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,

Afeita a só carpintejar,

Com um gesto pegou na fulgurante mosca,

Curioso a examinar.

Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.

E, fechando-a na mão, sorriu

De contente, ao pensar que ali tinha um império,

E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece

Que se houve nessa ocupação

Miudamente, como um homem que quisesse

Dissecar a sua ilusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,

Rota, baça, nojenta, vil

Sucumbiu; e com isso esvaiu-se lhe aquela

Visão fantástica e sutil. (ASSIS, 2008, Vol. III, p.578-579)

Na disposição espacial não linear dos versos no papel, o poeta sugere o vôo da

mosca e ao mesmo tempo as idas e vindas do entendimento humano que na ilusão da não

ilusão, na ânsia de descobrir, de revelar e explicar acaba por perder o prazer da fantasia. O

poema mereceria uma seção inteira e pelo avançar dos prazos, que não permitem demorarmo-

nos em poesias, deixo o veneno pingado na boca do leitor, e mudarei de gênero e de forma

Page 34: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

34

para continuar falando do mesmo tema que reaparece em outra obra de Machado de Assis, no

conto Ideias de Canário, publicado pela primeira vez na Gazeta de Notícias no dia 15 de

novembro de 1895, e republicado em 1899 na coletânea Páginas Recolhidas.

É uma anedota sobre um encontro entre Macedo, um homem, rico e dado à

ornitologia, sem parentes próximos, que vivia em uma chácara confortável, na companhia de

dois criados, e um esperto canário tagarela. O narrador afirma que ouvira a história do

próprio ornitólogo. O homem lhe disse que por obra do acaso, após safar-se de um

atropelamento por um tílburi, entrara numa velha loja de Belchior, também chamado de casa

de Belchior, hoje chamamos de brechó.

A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas,

enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem

própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem

tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de

palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado,

um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dous

cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado

Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso

e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da

porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas.

[Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 567)

O narrador trata a desordem com desdém, o escritor faz arte com ela e enaltece

sua organização/desorganização. À banalidade sempre foi atribuída o não científico pelo

próprio paradigma científico moderno, excluindo, da construção do conhecimento humano

sobre ele mesmo, o senso comum, o cotidiano, o detalhe. Uma nova lida com mais calma na

citação acima nos dará a possibilidade de ver em vivas cores no meio desse cemitério do

consumismo desmedido do Império, nosso gosto pelo que é estrangeiro, o carnaval, a devoção

ao mercado, ao luxo, tentativas de refinamento em busca da admiração pública. O mundo das

coisas construído pelos homens para enfrentar a morte, reduzido às quinquilharias de um

homem tão reduzido à coisa como as próprias coisas que vendia. Atentemos para o desprezo

como o narrador trata o dono da loja:

Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro

esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele

nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe

sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas. [Grifos Meus]

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 567)

Page 35: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

35

Mas voltemos ao Macedo e dizia ele:

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter

o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia.

Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele

amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. [...] Logo que olhei para

ele, entrou a saltar mais abaixo e acima de poleiro em poleiro, como se quisesse

dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa

imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não

pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. [Grifos Meus] Meus

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 567-568)

Macedo pôs-se a murmurar com azedume questionamentos sobre o tipo de

pessoas que são os seus concidadãos, que tinham coragem de abandonar uma indefesa

criatura, como aquela, em troca de algum prazer efêmero. Era o assombro da elite imperial

com a nova ordem que se construía, embora timidamente, eram os novos tempos do mercado,

da competição, do contrato. Por outro lado, temos um homem que vivia num país

escravocrata, ele mesmo possuidor de escravos, se indignando com a maldade feita ao canário

e naturalizando a escravidão.

- Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele

por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse

companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para

ir jogar uma quiniela? (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 568)

Para espanto do homem, o canário ouviu e entendeu o que dissera. E trilou uma

advertência que o homem também entendeu, chamou-lhe de lunático, que nunca houvera um

dono ou um menino, e que o homem sentado ali era apenas seu criado, pois o mundo era

propriedade do canário. Espantado com a eloquência e a clareza das ideias do pequeno

pássaro, perguntou-lhe o que era o mundo. E assim respondeu canário:

— O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de

belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um

prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo

é ilusão e mentira. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 568)

Para o canário, o mundo era o que ele via, cego e ao mesmo tempo iludido de que

o que sabia era a verdade. Mas quem seria o maior iludido Macedo ou o Canário? Após breve

negociação, Macedo acabou por levar o canário, para estudá-lo.

Page 36: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

36

Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e

arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa,

donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até

poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por

alfabetar a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música,

os sentimentos estéticos do bicho, as suas ideias e reminiscências. Feita essa análise

filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem

deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha

conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as

notas, ele esperando, saltando, trilando. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p.

569)

O trecho acima poderia ter sido dito por qualquer cientista-medalhão da obra

machadiana. Mostra o uso da terminologia científica da época, com o intuito de atingir a

nomeada, a glória. Atentemos para atitude ―eu-coisa‖, própria da ciência cartesiana, entre o

pesquisador e o canário. Vejamos que a gaiola não é mais quadrada e acanhada é agora

circular; pomposa e rica, gaiola da ciência, e não mais a quadrada gaiola do senso comum.

Agora, diante do sujeito todo poderoso, o objeto poderia ser metodologicamente dissecado,

mutilado, decomposto em mínimas partes e recomposto como um todo. Mas o objeto

surpreendeu o observador:

—Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite,

passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler,

acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la

entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do

mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa,

pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio,

flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o

canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde

mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira. Também a linguagem sofreu

algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que

eram temerárias, Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao

Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque

faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-

las. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 569)

Aqui podemos perceber a mudança de opinião do canário devido à sua mudança

de vida. Muda o mundo, mudam-se as certezas. O exaustivo trabalho adoeceu o cientista que

teve que abandonar sua pesquisa por uns dias. Ao retornar da enfermidade, a gaiola estava

vazia.

Page 37: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

37

Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos

nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo

limpar a gaiola e por-lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se

soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o

serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

[Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 569)

O cientista obcecado por achar uma verdade para conseguir enviar para Europa e

assim conseguir a glória e o prestígio público, não se deu conta das outras interações que se

davam entre o canário e os outros sujeitos. O escravo, ao invés de prender o canário para

conhecê-lo, acabou talvez por libertá-lo para que este pudesse conhecer o mundo sozinho e

ser livre, coisa que o escravo também não podia fazer por si mesmo.

Num derradeiro encontro entre objeto e sujeito, pois, ao contrário da Mosca Azul o

objeto consegue escapar do sujeito, e ser feliz! Macedo, em passeio em uma chácara vizinha a

sua em companhia de um amigo, encontrou o passarinho.

— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe

disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam

cuidados de amigos?

Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele

nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular. . .

— Que jardim? que repuxo?

— O mundo, meu querido.

— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo,

concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora

uma loja de belchior. . . (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 570)

Num desfecho surpreendente Machado põe a dúvida metódica na boca do canário

que apenas aceitava o mundo e as questões do pesquisador sem questioná-los e deixa o

cientista e o leitor com as calças e as certezas nas mãos diante de um canarinho irônico que

lhe pergunta:

— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de

belchior? (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 570)

Aqui o canário lembra o corvo de Poe8, que significa o novo tempo da

sociabilidade moderna, o tempo do efêmero, que leva o passado e suas velhas tradições e

quinquilharias para o mundo do esquecimento, do imemorial e do mito. Esse exílio é apenas

8 Uso aqui a tradução de Machado de Assis.

Page 38: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

38

aparente, pois ao questionar a real existência do passado, acabamos por encontrar não o real,

mas um passado ressignificado pelo olhar contemporâneo, portanto um passado novo.

Esses são os canários, moscas e gaiolas que encontrei nesse caminho de tentar

pensar a política a partir da literatura, na próxima seção nos deteremos a pensar sobre essa

relação, amplamente possibilitada pelo exercício de pensar complexamente, que favoreceu o

desenvolvimento de uma mitodologia que possa se basear na mais sincera interpretação, sobre

o autor, sua época sua sociedade, seus leitores e campos de poderes de sua época e suas

formas simbólicas de mediação.

Page 39: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

39

CAPÍTULO II

HOMEM DO SEU TEMPO E DO SEU PAÍS

Queres saber o que fiz no domingo? Trabalhei e

estive em casa. Carta à Carolina em março de 1869

(ASSIS, 2008, Vol. III, p.1348)

Deixe-me dizer lhe: ao fim de uma vida de trabalho e

certo amor da arte que sempre me animou, vale

muito sentir que encontro eco em espíritos

ponderados e cultos. Carta a Afrânio Peixoto de julho

de 1908 (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1422)

Conhecer Machado de Assis, saber quem era ele, como foi sua vida, quais suas

opiniões políticas, quem eram seus amigos, inimigos, quais eram seus desejos, como era sua

vida pública e privada deram um novo sentido a esta pesquisa. A empreitada surgiu como

necessidade da própria pesquisa. O conhecimento sobre o autor, seu tempo, sua obra, seu

público, proporcionou melhores condições para o exercício da mitodologia que aqui

propomos. Diz Candido ―[...] a série autor-público-obra, junta-se outra: autor-obra-público.

Mas o autor, do seu lado, é intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige;

é o agente que desencadeia processo, definindo uma terceira série interativa: obra-autor-

público.‖ (CANDIDO, 1980, p. 38)

Assim, a primeira tarefa é investigar as influencias concretas exercidas pelos fatores

socioculturais. É difícil discriminá-los, na sua quantidade e variedade, mas pode-se

dizer que os mais decisivos se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às

técnicas de comunicação. O grau e a maneira por que influem estes três grupos de

fatores variam, conforme o aspecto considerado no processo artístico. Assim, os

primeiros se manifestam mais visivelmente na definição da posição social do artista,

ou na configuração de grupos receptores; os segundos, na forma e conteúdo da obra;

os terceiros, na sua fatura e transmissão. Eles marcam em todo caso, os quatro

momentos da produção, pois a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior,

orienta-o segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas

formas e d) a síntese resultante age sobre o meio. (CANDIDO, 1980, p. 21)

Aqui ainda falaremos do mito, mas do mito em movimento, numa espécie de

mitanálise, pois, falar da vida e do tempo de Machado de Assis é mergulhar nas águas míticas

do Favor e do Contrato, afinal era ele o homem do seu tempo e do seu país.

Page 40: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

40

Este capítulo foi ao mesmo tempo a mais prazerosa e gratificante e a mais difícil e

atemorizante etapa desta pesquisa. Explico-me. Prazerosa e gratificante porque pude

conhecer um homem admirável, mas cheio de contradições, artista respeitado e reverenciado

até pelos desafetos, pude conhecer a vida do mais imortal brasileiro do século XIX, e saber

que ele era um cidadão, correto, pacato, trabalhador que por esforços próprios e umas

ajudinhas de uns bons amigos, soube usar sua inteligência e talento privilegiados para

aproveitar como poucos as poucas oportunidades existentes em seu tempo para os

empobrecidos materialmente como ele.

Por outro lado, confesso que enquanto Machado de Assis era um nome dourado

numa capa de um livro, minha convivência com ele era bem indiferente e por isso tranquila,

porém ao passo que eu começava a conhecer sua trajetória de vida e as posições que ocupou

no campo cultural de seu tempo, as suas origens, esforços e ensinamentos, temi o momento de

falar sobre sua vida, pois realmente percebi que estava diante de um homem que merecia todo

cuidado e zelo ao falar de sua vida, um homem que se denominava o mais encolhido dos

caramujos, discreto e inimigo do arruído, da superexposição de sua vida, que escolheu a face

que queria mostrar para o mundo e deixou bem guardado aquilo que melhor lhe aprouvera

esconder.

Se o maior problema dos outros com minha pesquisa foi o que já disse no item

1.2, o meu maior problema com ela foi essa desconfiança que ainda tenho de saber até que

ponto é legítimo me intrometer ao ler as cartas de um homem aos seus amigos e amores, de

sair por aí bisbilhotando o que outros falaram sobre ele de forma apressada correndo o risco

de espalhar boatos sobre alguém que não tem como se defender e refutar interpretações que

não fazem justiça ao que ele pensava sobre si mesmo e o que ele queria que os outros

pensassem e soubessem ao seu respeito; mas não tive como fugir desse risco, pois, é quase um

axioma da sociologia da literatura e da arte o entendimento da relação autor-obra-sociedade

de outro modo vejamos como Nobert Elias explica a referida relação:

[...] a autonomia da obra de arte e o complexo de problemas a ela associados não nos

eximem da obrigação de investigar a conexão entre a experiência e o destino do

artista criador em sua sociedade, ou seja, entre esta sociedade e as obras produzidas

pelo artista. [...] O esclarecimento das conexões entre a experiência de um artista e

sua obra também é importante para uma compreensão de nós mesmos como seres

humanos.[...] (ELIAS, 1995, p. 57)

Page 41: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

41

Na década de cinquenta do século XX Antonio Candido nos ensinava como

deveria ser entendida a relação entre sociedade e literatura:

[...] levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que

permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma

sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo

historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudo no nível

explicativo e não ilustrativo. [...] Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da

sociologia, ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma

interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando

isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a

crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social se torna

um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos,

religiosos, linguísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o

ponto de referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para o

crítico, em fermento de que resultou a diversidade coesa do todo. [...] Está visto que,

segundo esta ordem de ideias, o ângulo sociológico adquire uma validade maior que

tinha. Em compensação, não pode mais ser imposto como critério único, ou mesmo

preferencial, pois a importância de cada fator depende do caso a ser analisado. Uma

crítica que se queira integral deixará de ser unilateralmente sociológica,

psicológica ou linguística, para utilizar livremente os elementos capazes de

conduzirem a uma interpretação coerente. Mas nada impede que cada crítico

ressalte o elemento da sua preferência, desde que o utilize como componente da

estruturação da obra. E nós verificamos que o que a crítica moderna superou não foi

a orientação sociológica, sempre possível e legítima, mas o sociologismo crítico, a

tendência devoradora de tudo explicar por meio dos fatores sociais. (CANDIDO,

1980, p.07)

Recentemente nos disse Pierre Bourdieu:

A ciência das obras culturais supõe três operações tão necessárias e necessariamente

ligadas quanto os três planos da realidade social que apreendem: primeiramente, a

análise da posição do campo literário (etc.) no seio do campo de poder, e de sua

evolução no decorrer do tempo; em segundo lugar, a análise da estrutura interna do

campo literário (etc.), universo que obedece às suas próprias leis de funcionamento e

de transformação, isto é, a estrutura das relações objetivas entre as posições que aí

ocupam os indivíduos ou grupos colocados em situação de concorrência pela

legitimidade; enfim, a análise da gênese dos habitus dos ocupantes dessas posições,

ou seja, os sistemas de disposições que, sendo o produto de uma trajetória social e

de uma posição no interior do campo literário (etc.), encontram nessa posição uma

oportunidade mais ou menos favorável de atualizar-se (a construção do campo é a

condição lógica prévia para a construção da trajetória social como série as posições

ocupadas sucessivamente nesse campo. (Bourdieu, 1996, p. 243)

Não é pretensão do presente capítulo um relato da biografia, tão pouco historiar

linearmente os fatos da vida de Machado de Assis, e muito menos apresentar um rol de

anedotas pitorescas de sua vida pública e privada reduzindo toda uma vida a uma exposição

Page 42: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

42

arbitrária de alguns clichês biográficos ou preconceitos mal intencionados. Mas então como

falar algo original sobre alguém que morreu a mais de cem anos, de quem já se disse quase

tudo? Como falar da vida de Machado de Assis sem ser leviano, repetitivo ou deselegante?

Eis uma resposta possível:

É preciso ser capaz de traçar um quadro claro das pressões sociais que agem sobre o

indivíduo. Tal estudo não é uma narrativa histórica, mas a elaboração de um modelo

teórico verificável da colaboração que uma pessoa - [...] – formava, em sua

interdependência com outras figuras sociais da época. (ELIAS, 1995, p. 18-19)

As ideias há pouco expostas me deram não apenas a possibilidade de obter dados

de que necessitava, mas também novos caminhos para pensarmos a vida, a obra e o tempo de

Machado de Assis.

A primeira que tive foi a de ler a correspondência de Machado de Assis, ideia que

primeiramente me pareceu supérflua logo e tornou-se fundamental na trajetória da pesquisa na

medida em que eu me demorava nas leituras das cartas. Na correspondência que começa em

1862 e termina em 1908 descobri o Machado amante, amigo, empregado, chefe, jovem, velho,

feliz, triste, amável e delicado com os amigos, generoso, presidente, enfim textos de um

homem, de um tempo de mudanças e incertezas, escrevendo aos amigos. Em tais cartas

encontrei um Joaquim Maria que a leitura dos contos, romances e da fortuna crítica escrita em

torno de Machado ainda não tinha me propiciado encontrar. A autorização para a leitura de

sua correspondência veio do próprio Machado de Assis, autorização em tom de desafio!

Poucos meses antes de morrer em abril de 1908 ele diz em tom desafiador a José Veríssimo:

Não me parece que de tantas cartas que escrevi a amigos e estranhos se possa apurar

nada interessante, salvo as recordações pessoais que conservarem para alguns. Uma

vez, porém, que é satisfazer o seu desejo, estou pronto a cumpri-lo, deixando-lhe a

autorização de recolher e a liberdade de reduzir as letras que lhe pareçam merecer

divulgação póstuma. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1419)

A outra ideia me veio do conselho que o Pai de Brás Cubas o ensina sobre o

valor da opinião alheia para a vida de um homem, dizia Pai Cubas que a melhor forma de

valer alguma coisa nesse mundo é valer pela opinião dos outros9, então decidi saber qual a

opinião dos outros sobre Machado de Assis? Como seus contemporâneos, e os que depois

9 Já diria o Pai de Cubas. VR

Page 43: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

43

dele vieram falaram de sua vida, sua obra e suas relações como os outros de seu tempo?

Assim me pus a ler biografias, artigos, cartas que me esclarecessem as questões há pouco

expressadas.

O resultado dessas leituras é o capítulo que estou iniciando, dividido em três

partes, a primeira delas, O homem e seus desejos, é uma apresentação do Machado que

conheci a partir das leituras que fiz de sua correspondência privada10

. Nosso segundo

momento, é feito de breves reflexões sobre o tabuleiro político e social do Brasil no século

XIX, Lições sobre a política brasileira nos tempos de Pedro II e Machado de Assis. Enfim,

termino o capítulo refletindo sobre Machado e o desenvolvimento da sua arte de contar

histórias curtas, Machado de Assis e a arte dos contos.

10

Utilizamos a correspondência que consta na Edição da Obra Completa de Machado de Assis da Editora nova

Aguilar Volume III. Diz a nota do editor sobre as cartas ― A seção correspondência é uma reprodução da que foi

preparada... (NOTA EDITORIALVol I, p. IV)

Page 44: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

44

2.1 O Homem e seus desejos

Por onde começar a falar de uma vida? Pelo começo ou pelo fim? Qualquer uma

das opções é arbitraria e não consegue dar conta das infinitas temporalidades que atravessam

uma vida. Assim escolhi seguir o que indica Nobert Elias, sociólogo que diz:

Para se compreender alguém, é preciso conhecer os anseios primordiais que este

deseja satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas, dependendo da medida

em que elas conseguem realizar tais aspirações. Mas os anseios não estão definidos

antes de todas as experiências. Desde os primeiros anos de vida, os desejos vão

evoluindo, através do convívio com outras pessoas, e vão sendo definidos,

gradualmente, ao longo dos anos, na forma determinada pelo curso da vida; algumas

vezes, porém, isto ocorre de repente, associado a uma experiência especialmente

grave. Sem dúvida alguma, é comum não se ter consciência do papel dominante e

determinante destes desejos. E nem sempre cabe à pessoa decidir se seus desejos

serão satisfeitos, ou até que ponto o serão, já que eles sempre estão dirigidos para

outros, para o meio social. Quase todos tem desejos claros, passiveis de ser

satisfeitos; quase todos têm alguns desejos mais profundos impossíveis de ser

satisfeitos, pelo menos no presente estágio do conhecimento. (ELIAS, 1995, p. 13)

Quais os anseios e desejos de Machado de Assis? O que dava sentido a sua vida?

Quais eram suas necessidades e possibilidades? Como ele pode na sociedade na qual viveu

conquistar seus sonhos? Como foi sua relação com os outros no curso de sua vida?

Responder a tais questões demandada uma nova dissertação, mas para não perder

a inspiração e aproveitar a leitura das correspondências e biografias que consultei nas fases

exploratórias da pesquisa, aliado aos conceitos que aprendi com Candido, Bourdieu e Elias

desenvolvi a seguinte forma para apresentar um pouco do que aprendi sobre o como de uma

vida. Tarefa que já digo sem resultados definitivos.

Proponho então que nos detenhamos em quatro desejos de Machado de Assis que

pude perceber na leitura de suas cartas, não os mais importantes ou os mais pitorescos, mas os

que eu penso que podem mostrar um pouco do homem do qual estamos falando: o desejo de

ser feliz, o desejo de morrer, o desejo de ler, o desejo de escrever. Das cartas que restaram li

todas e escolhi alguma para servir como leitmotiv nessa ousada, porém, despretensiosa

interpretação de uma vida inteira através de cartas e opiniões alheias.

Page 45: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

45

2.1.1 O desejo de ser Feliz e o desejo de morrer.

O homem deseja ser feliz, o jovem Machado de Assis também assim o desejava.

Escolhi duas cartas de dois de março de 1869, escritas por Machadinho à sua ainda noiva11

Carolina Augusta Xavier Novais, para ilustrar esse desejo de ser feliz. As cartas tratam de

coisas do coração e de negócios, assinadas por um apaixonado Machadinho, homem de trinta

anos, cansado da vida de solteiro, que via no casamento uma oportunidade para ser feliz e

viver bem, nesse tempo era já conhecido na cena jornalística e artística carioca, por suas peças

teatrais, poesias, crônicas e contos publicados nos jornais, e que ainda não tinha lançado

nenhum livro, trabalhador, esforçado e apaixonado pela portuguesa e irmã de seu amigo

Faustino Xavier.

Naquele dois de março, Machadinho respondia às duas cartas que lhe mandara

Carolina, que por culpa dos correios, chegaram com atraso de Nova Friburgo, onde ela estava

para acompanhar e ajudar nos cuidados com a saúde de seu irmão Faustino. O jovem era um

galanteador, apaixonado e dizia estar triste devido as saudades que sentia de sua amada e

aflito pela demora de notícias, mas se mostrava contente por estar próximo o fim de sua

separação pois o casamento seria em breve.

Nas cartas, ele dava explicações à moça sobre suas experiências amorosas e

tratava de deixá-la segura quanto a força de seu amor, vejamos o que dizia o galante

apaixonado:

A minha história passada do coração resume-se em dois capítulos: um amor, não

correspondido; outro correspondido. Do primeiro nada tenho que dizer; do outro não

me queixo; fui eu o primeiro a rompê-lo. [...] O que te afirmo é que dos dois o mais

amado foi o segundo. Mas nem o primeiro nem o segundo se parecem em nada com

o terceiro e último capítulo do meu coração. Diz a Staël que os primeiros amores

não são os mais fortes porque nascem simplesmente da necessidade de amar.

(ASSIS, 2008, Vol. III, p.1348)

Logo em seguida, temos outra linda declaração de amor à Carolina, na qual

podemos perceber a veneração e admiração que ele tinha por ela e a intensidade do amor de

Machado:

11

Machado de Assis e Carolina se casaram em 12 de novembro de 1869, no mesmo ano em agosto morreu

Faustino Xavier de Novais, poeta e jornalista, grande amigo de Machado de Assis e irmão de Carolina.

Page 46: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

46

[...] tu não te pareces nada com as mulheres vulgares que tenho conhecido. Espírito e

coração como os teus são prendas raras; alma tão boa e tão elevada, sensibilidade tão

melindrosa, razão tão reta não são bens que a natureza espalhasse de mão cheia pelo

teu sexo. Tu pertences ao número de mulheres que ainda sabem amar, sentir e

pensar. Como não te amaria eu? (ASSIS, 2008, Vol. III, p.1349)

Mas o que fazia de Carolina tão diferente das outras que ele conheceu? Quais seus

desejos e ambições para com ela? Na mesma carta, temos essas respostas, continua Machado:

Além disso tens para mim um dote que realça os mais: sofreste. É minha ambição

dizer à tua grande alma desanimada: ―levanta-te, crê e ama; aqui está uma alma que

te compreende e te ama também.‖/ A responsabilidade de fazer-te feliz é decerto

melindrosa; mas eu aceito-a com alegria, e estou que saberei desempenhar este

agradável encargo./ Olha, querida; também eu tenho pressentimento acerca da minha

felicidade; mas que é isto senão o justo receio de quem não foi ainda completamente

feliz? (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1349)

Aos trinta anos, ele considerava não ter sido feliz, mas por quê? Quais foram os

sofrimentos e dificuldades pelas quais passou e o fizeram tão sensível ao ponto de ver no

sofrimento de Carolina qualidades e virtudes?

A resposta mais óbvia que vem a nossa mente é a origem pobre de Joaquim Maria

Machado de Assis, rapaz de vida difícil, que desde muito cedo teve que sustentar uma

existência material com pouca diversão e muito trabalho. É lugar comum fazer referências ao

seu nascimento em 21 de junho de 1839, no morro do Livramento, no Rio de Janeiro. Seus

pais eram Francisco José de Assis, filho de pais forros, pintor de paredes, dourador, natural do

Rio de Janeiro e Maria Leopoldina Machado, lavadeira, portuguesa que era agregada na casa

da Madrinha de Machado. Após a Morte da mãe, seu pai casou-se novamente. A verdade é

que infância e adolescência de Machado de Assis são ainda pouco conhecidas por seus

biógrafos talvez por isso muitas coisas fossem criadas em torno de suas origens, para dar uma

cota de sofrimento e dramaticidade a sua vida, às vezes de forma exagerada12

.

A grande maioria de seus críticos, como lembra Candido, ―nunca deixaram de

inventariar e realçar as causas eventuais de tormento, social e individual: cor escura, origem

humilde, carreira difícil, humilhações, doença nervosa.‖ (CANDIDO In: ASSIS, Vol 1 p.113)

Um contemporâneo e amigo particular de Machado de Assis, José Veríssimo nos lembra que

o escritor:

12

Cf. Trípoli, p. 83

Page 47: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

47

[...] Por coisa alguma quisera que as humildes condições em que nascera servissem

para exalçar-lhe a situação que alcançara. Ao seu recatadíssimo orgulho repugnava,

como um expediente vulgar, fazer entrar no lustre que conquistara esse elemento de

estima. A sua biografia eram seus livros, a sua arte era sua prosápia. Não lhes quis

misturar nada que pudesse parecer um apelo à benevolência dos seus

contemporâneos em prol da exaltação do seu nome. Fazer reclamo da mesquinhez de

sua origens, como é tão vulgar, lhe era profundamente antipático. Só a incapacidade

de compreender natureza tão finamente aristocrática como Machado de Assis e a

esquisita nobreza destes sentimentos, poderia reprochar-lhos. (VERÍSSIMO, 1963 p.

304-305)

Ainda sobre esses sofrimentos originados da pobreza Antonio Candido nos diz:

Mas na verdade os seus sofrimentos não parecem ter excedido aos de toda gente,

nem sua vida foi particularmente árdua. Mestiços de origem humilde foram alguns

homens representativos no nosso Império liberal. Homens que sendo da sua cor e

tendo começado pobres, acabaram recebendo títulos de nobreza e carregando pastas

ministeriais. Não exageremos, portanto, o tema do gênio versus destino. Antes, pelo

contrário, conviria assinalar a normalidade exterior e a relativa facilidade da sua vida

pública. [...] A cor parece não ter sido motivo de desprestígio e talvez só tenha

servido de contratempo num momento brevemente superado, quando casou com

uma senhora portuguesa. E a sua condição social nunca impediu que fosse íntimo

desde moço dos filhos do conselheiro Nabuco, Sizenando e Joaquim, rapazes finos e

cheios de talentos. (CANDIDO In: ASSIS, p.113 VOL. I)

Sobre os primeiros anos de sua vida diz Dau Bastos: ―Pouco se sabe sobre a vida

de Machado até os quinze anos de idade. Sua modesta família não protagonizou proeza, tão

pouco acumulou patrimônio ou fez nome.‖ (BASTOS, 2008, p.15), e o empenho do escritor

em não falar sobre essas questões, ―Por sua vez, o escritor obscureceu as origens de modo a

criar de si a imagem que convinha expor ao mundo.‖ (BASTOS, 2008, p.15)

E o que era a felicidade para Machado de Assis? Na mesma carta ele diz:

―Depois... depois, querida, queimaremos o mundo, por que só é verdadeiramente senhor do

mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis.‖ Essa passagem

não era retórica de enamorado de acordo com Veríssimo:

Ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda a

espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava toda a

publicidade, toda a vulgarização que não fosse puramente a dos seus livros

publicados. Do seu mesmo trabalho literário, como de tudo o que lhe dizia respeito,

tinha um exagerado recato. Refugiara-se absolutamente às confidências tanto

pessoais como literárias. (VERÍSSIMO, 1963, p. 304)

Page 48: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

48

Machado sempre foi homem discreto e recatado, não queria ser um Medalhão, o

que não significa que ele não tenha exercido e reproduzido em sua vida as relações de favor

tão caras aos Medalhões como pedira favores para amigos e indicar pessoas próximas dele

para a ABL.

O casamento com Carolina deixa o jovem de trinta anos empolgado, na segunda

carta enviada diz ele:

Dizes que, quando lês um livro, ouves unicamente as minhas palavras, e que eu te

apareço em tudo e em toda a parte? É então certo que eu ocupo o teu pensamento e a

sua vida? Já mo disseste tanta vez, e eu sempre a perguntar-te a mesma coisa,

tamanha me parece está felicidade. Pois, olha; eu queria que lesses um livro que eu

acabei de ler há dias; intitulasse: A família. Hei de comprar um exemplar para

lermos em nossa casa como uma espécie de Bíblia Sagrada. É um livro sério,

elevado e profundo; a simples leitura dele da vontade de casar. (ASSIS, 2008, Vol.

III, p. 1350)

Casaram-se, foram morar na rua dos Andradas, 22 e depois com a ascensão social

do marido mudaram para o Cosme Velho, 18, casa que nunca compraram, mas lá viveram e

terminaram seus dias. Eles não tiveram filhos, sempre aos domingos visitavam e jantavam

com seus poucos, mas frequentes amigos, que sempre os visitavam também. As más línguas

dizem que houve uma traição e que ela soube o que teria lhe causado um imenso

ressentimento, mas na verdade é que, não existe comprovação dessa informação.

Carolina foi fundamental na vida de Machado de Assis, não vou entrar na

polêmica entre Lúcia Miguel e Magalhães Júnior sobre as influencias da mulher na obra do

marido, mas não há como deixar salientar que uma vez casado, Machado de Assis pode

dedicar-se aos talvez dois maiores anseios e desejos seus: ler e escrever e o mais importante

depois de muito tempo ele voltava a ter uma família, uma lar, alguém para quem voltar depois

da dura lida com a pena.

O amor das primeiras cartas é comprovado no poema ―Carolina‖, que veio ao

conhecimento público no livro Relíquias da Casa Velha, considerada como a melhor poesia

do poeta, que não aparecia em público já havia longos anos e que voltara aos braços das

musas para homenagear Carolina pela derradeira vez e presentear seus leitores com uma joia

da poesia em língua portuguesa. Assim escreveu o velho poeta:

A Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro.

Page 49: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

49

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda a humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores,- restos arrancados.

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 631)

A morte de Carolina, aos setenta anos, no dia 20 de Outubro de 1904, também foi

o inicio da morte do marido, que a despeito do longo período que perdurava a doença da

esposa, não esperava sua morte repentina. Desde 1896 ela começou a sentir os efeitos do

câncer no intestino que a acometeu, doença que a matava aos poucos e aos poucos consumia

Machado, um homem de 65 anos, maltratado pelo trabalho demasiado e pela epilepsia, que se

dedicou a acompanhar o definhamento de sua amada, deixou todas as obrigações que

dependiam dele, a literatura e as contribuições aos jornais, só saia de casa para ir ao trabalho

no ministério.

No dia 28 de Outubro do mesmo ano ele escreve ao amigo Salvador de

Mendonça, em bilhete de agradecimento pelos pêsames recebidos, ―[...] Eu, meu querido

amigo, estou ainda atordoado, pela imensidade do golpe, como pela injustiça que a feriu.

Após trinta e cinco anos de casado é um preparo para a morte‖ (ASSIS, 2008, Vol. III p.

1398) Um mês depois do falecimento de Carolina, Machado de Assis escrevia ao amigo

Nabuco:

[...] Foi-se a melhor parte da minha vida, e aqui estou só no mundo. Note que a

solidão não me é enfadonha, antes me é grata, porque é um modo de viver com ela,

ouvi-la, assistir, aos mil cuidados que essa companheira de trinta e cinco anos de

casados tinha comigo; mas não há imaginação que não acorde, e a vigília aumenta a

falta da pessoa amada. Éramos velhos, e eu contava morrer antes dela, o que seria

um grande favor; primeiro, porque não acharia ninguém que melhor me ajudasse a

morrer; segundo por que ela deixa alguns parentes que a consolariam das saudades,

eu não tenho nenhum. Os meus são os amigos, e verdadeiramente são os melhores;

mas a vida os dispersa, no espaço, nas preocupações do espírito e na própria carreira

que a cada um cabe. Aqui me fico, por ora na mesma casa, no mesmo aposento, com

os mesmos adornos seus. Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à

beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me

esperará. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1398)

Page 50: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

50

Sem Carolina, Machado como ele previa passou a contar com seus poucos amigos

para ajudá-lo a morrer. Em junho de 1906, em agradecimento a uma carta de felicitação por

seu sexagésimo sétimo aniversário, Machado disse a Belmiro Braga, ―[...] tal data não é de

alegrias para mim, depois que perdi a minha boa companheira de trinta e cinco anos. Estou

aqui um triste velho desamparado, contando alguns poucos amigos [...]‖ (ASSIS, 2008, Vol.

III, p. 1405)

Seu velho amigo Joaquim Nabuco por intermédio de Graça Aranha prestou ao

escritor uma grande homenagem em 1905, Machado de Assis ficou muito emocionado e feliz

com o gesto. Vejamos um trecho da carta de Nabuco ao Graça Aranha em abril de 1905,

informando que lhe enviava um ramo do carvalho de Tasso para ser oferecido ao presidente

da academia:

O que vai nessa caixa é um ramo do carvalho de Tasso, que lhe mando oferecer ao

Machado de Assis do modo que lhe parecer mais simbólico. O melhor é talvez que a

academia lho ofereça, mas quando e como são problemas para o senhor mesmo

resolver [...] Devemos tratá-lo com o carinho e a veneração com que no Oriente

tratam as caravanas a palmeira às vezes solitária do oásis. [...] (ASSIS, 2008, Vol.

III, p. 1402)

A entrega da relíquia e a seção solene da Academia ocorreram em 10 de agosto do

mesmo ano Machado de Assis ficou muito emocionado e feliz com o gesto, colocou o galho e

a carta ao Graça em sua sala abaixo de um retrato de Nabuco e escreveu ao amigo

agradecendo:

Escrevo algumas horas depois do seu ato de grande amigo. Em qualquer quadra da

minha vida ele me comoveria profundamente; nesta em que vou a comoção foi

muito maior. Você deu bem a entender, com a arte fina e substanciosa, a palmeira

solitária a que vinha o galho do poeta. O que a Academia, a seu conselho, me fez

ontem, basta de sobra a compensar os esforços da minha vida inteira; eu lhe

agradeço haver-se lembrando de mim tão longe e generosamente. [...] Velho Amigo/

M. de Assis 11 de Agosto de 1905 (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1402)

Na ocasião, Machado recebeu outra homenagem, vejamos como ele mesmo a

contou ao seu caro Nabuco, em carta escrita no fim de agosto de 1905:

Os nossos amigos da Academia, ao par daquela fineza, quiseram fazer-me outra, pôr

o meu retrato na sala das sessões, e confiaram obra ao pincel de Henrique

Bernardelli; está pronto, e vai primeiro à exposição da Escola Nacional de Belas-

Artes. O artista reproduziu o galho sobre uns livros que meteu na tela. Todos me têm

Page 51: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

51

acostumado à benevolência. Valha esta consolação à amargura da velhice. [...]

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1403)

Na mesma carta podemos perceber que não era só amargura que fazia companhia

ao velho escritor, as lembranças do tempo, das pessoas e do velho mundo que conheceu

sempre visitam sua velha alma:

[...] Ainda agora achei um bilhete seu convidando-me à reunião da rua da Princesa

para fundar a sociedade abolicionista; é de 6 de setembro de 1880. Quanta coisa

passada! Quanta gente morta! Sobrevivem corações que, como o seu, sabem amar e

merecem o amor. Adeus, meu caro Nabuco, não esqueça. O velho am.º, ad.mor e

companheiro. M. de Assis (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1403)

Apesar de desejar a morte nos últimos anos de sua vida, Machado não deixou de

produzir, ele ainda teve fôlego para escrever dois livros, Memorial de Aires e Relíquias da

Casa Velha. Além disso, cumpria suas obrigações no ministério, que só deixou bem perto da

morte, porque o ministro seu admirador o obrigou. Sobre o Memorial ele falava em junho de

1908 para Joaquim Nabuco

Acabo de receber a sua carta com seu abraço pelo livro, e venho agradecer-lha

cordialmente. Sabendo que foi sempre sincero comigo, senti-me pago do esforço

empregado; muito obrigado, meu amigo. O livro é o derradeiro; já não estou em

idade de folias literárias nem outras. O meu receio é que fizesse a alguém perguntar

por que não parara no anterior, mas se tal não é a impressão que ele deixa, melhor.

[...] (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1421-1422)

O mundo em que vivia não era mais o seu, as pessoas que conhecera e admirava

tinham morrido, viu morrer a maioria dos amigos dos velhos tempos de mocidade Paula Brito,

Manuel Antônio de Almeida, Faustino Xavier, Artur de Oliveira, Artur Barreiros, Henrique

César Muzzio, Ferreira de Meneses, Joaquim Serra, Pedro Luís e Sizenando Nabuco. Ele

tinha muitos amigos, prefaciava os livros dos moços, era generoso e usava sua influência para

ajudar os amigos:

[...] A morte levou-nos muitos daqueles que eram conosco outrora; possivelmente a

vida nos terá levado também alguns outros, é seu costume dela, mas chegando ao

fim da carreira é doce a voz que me alente seja a mesma voz antiga que nem a

morte nem a vida fizeram calar. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1426)

No fim da vida aproximou-se muito de Mário Alencar, filho de seu amigo José de

Alencar, a quem tratava como um filho, que não teve. Mario sempre visitava-o e assistia-o

Page 52: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

52

quando preciso, sempre estava interessado em saber sobre sua saúde e andamento das

doenças.

MA 20/07/1908 Muito obrigado também pelo que me diz do livro. Aguardo o seu

artigo amanhã; não escrevo mais por causa dos olhos, mas sempre há vista para

acrescentar que os seus carinhos me vão animando neste final de vida. (ASSIS,

2008, Vol. III, p. 1432)

MA 09/08/1908 Esta moléstia é lenta e custa a sair das costas; passei mal e o dia

pouco melhor; vou ver a noite que passo. Tomei os seus remédios (a calcarea –

principalmente) e outros, além dos bochechos. Desde ontem à tarde a minha

alimentação é puro leite.[...] (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1425)

Ele foi feliz, sofreu muito ao fim da vida, mas foi feliz, morreu sem ter

propriedades, com algumas economias juntas ao longo da vida, conheceu a fama, mas não se

perdeu por ela.

Page 53: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

53

2.1.2 O Desejo de ler e o desejo de escrever

Ser escritor é difícil em nosso tempo imaginem em meados do século XIX,

principalmente para um homem com poucos recursos financeiros, que precisava trabalhar

para sustentar a si e a esposa. Somente um homem movido por um forte desejo de tornar-se

escritor tomaria tal aventura como projeto de vida. E assim o fez Machado de Assis. Ele

escrevia desde muito jovem e morreu exercendo a atividade, através da escrita tornou-se

imortal.

É opinião comum entre seus biógrafos e críticos que ele conseguiu por méritos

próprios ascender socialmente e ser conhecido e reconhecido pelos seus contemporâneos

como o maior escritor brasileiro, sinônimo de intelectualidade e rebusco no uso da língua

portuguesa, líder máximo das letras brasileiras.

Era dos engenhos privilegiados que, sentindo fortemente a vocação literária, com a

clara consciência da necessidade de ajudá-la pela aplicação ao trabalho, a si mesmo

se educam. Fez-se ele próprio. Teria apenas frequentado a ínfima escola primária

da sua meninice, aprendido ao acaso das oportunidades algo mais do que ali lhe

ensinaram, e lido assídua e atentamente. [...] (VERÍSSIMO, 1963, p. 305)

Qual foi formação de Machado de Assis como leitor? Quais foram esses acasos da

oportunidade aos quais se referiu Veríssimo e ajudaram Machado de Assis a ser quem foi?

Como um menino de pouco estudo virou um escritor famoso? Será que é mesmo possível

alguém fazer-se sozinho? Seria o menino um gênio? Comecemos pensando essa ideia de

Gênio. Nobert Elias nos diz:

Com frequência nos deparamos com a ideia de que a maturação do talento de um

―gênio‖ é um processo autônomo, ―interior‖, que acontece de modo mais ou menos

isolado do destino humano do indivíduo em questão. Esta ideia está associada a

outra noção comum, a de que a criação de grandes obras de arte é independente da

existência social de seu criador, de seu desenvolvimento e experiência como ser

humano no meio de outros seres humanos. [...] Esta separação é artificial,

enganadora, desnecessária. [...] No presente estágio de civilização, a transfiguração

do elemento misterioso em gênio pode satisfazer uma necessidade profundamente

sentida. Ao mesmo tempo, é uma das muitas formas da deificação dos ―grandes‖

homens, cuja outra face é o desprezo pelas pessoas comuns. Ao elevar o primeiro

acima da medida humana, reduzem-se as outras a um nível abaixo dela. Nossa

compreensão das realizações de um artista e a alegria que se tem com suas obras não

diminui, mas se reforçam e aprofundam quando tentamos captar a conexão entre as

obras e o destino do artista na sociedade de seus semelhantes. (ELIAS, p. 53- 54)

Page 54: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

54

Ao criador de arte é atribuído um papel específico na sociedade [...] as forças

sociais condicionantes guiam o artista em grau maior ou menor. [...] determinando a ocasião

da obra ser produzida,[...] julgando da necessidade dela ser produzida; [...] se vai ou não se

tornar um bem coletivo. (CANDIDO, 1980, p. 25).

[...] o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de

exprimir a sua originalidade, (que o delimita e o especifica entre todos), mas alguém

desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo

profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A

matéria e a forma da sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades

profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo

entre criador e público. (CANDIDO, 1980, p. 74)

Os escritores dependem do seu público13

e das condições materiais existentes em

seu tempo:

O fato deste grupo configurar-se nitidamente ou permanecer virtual depende em boa

parte do segundo fator: as condições de existência que os seus membros, enquanto

tais, encontram na sociedade. Decorre ou não daí a profissionalização, que,

embrionária noutras épocas, é tendência no mundo moderno, mas não fator essencial

para estruturar um grupo de escritores. Com efeito, há diversas formas de remunerar

o trabalho de criação literária nas diferentes sociedades e épocas: mecenato,

incorporação ao corpo de servidores, atribuição de cargos, geralmente prebendas,

etc. (CANDIDO, 1980, p. 75)

Se a obra é mediadora entre autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra,

na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é

mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição do

autor, cujo esforço se perderia caso não lhe correspondesse uma reposta, que é

definição dele próprio. Quando se diz que escrever é imprescindível ao verdadeiro

escritor, quer isto dizer que ele é psiquicamente organizado de tal modo que a reação

do outro, necessária para a autoconsciência, é por ele motivada através da criação.

Escrever é propiciar a manifestação alheia, em que a nossa imagem se revela a nós

mesmos. (CANDIDO, 1980, p.75-76)

13 Para Von Wiese (a quem devemos a melhor caracterização sociológica desse fenômeno tão mal estudado

desde os primórdios da sociologia contemporânea), o público nunca é um grupo social, sendo sempre coleção

inorgânica de indivíduos, cujo denominador comum é o interesse por um fato. É a ―massa abstrata‖, ou ―virtual‖,

da sua terminologia. Entretanto, dentro dela podem diferenciar-se agrupamentos menores, mais coesos, à vezes

com tendência a organiza-se, como são os círculos de leitores e amadores entre os quais recrutam quase sempre

as elites, que pesarão mais diretamente na orientação do autor. (CÂNDIDO, 1980, p. 76-77)

Page 55: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

55

Ainda sobre essa relação temos

O desenvolvimento da capacidade de alguém como artista não depende apenas de

seu destino individual, é necessário entender as coerções (modelo das estruturas

sociais e diferença de poder) inevitáveis que agem sobre ele e como de comportou

diante delas, cedendo ou escapando das suas influencias em sua arte. (ELIAS, 1995,

p. 19)

Então como Machado de Assis tornou-se escritor? Para começar a responder essa

questão lembremos que:

[...] os padrões e métodos sociais pelos quais as pessoas constroem os controles dos

instintos em sua vida comunitária não são produzidos deliberadamente; evoluem por

longos períodos, cegamente e sem planos. Irregularidades e contradições nos

controles, imensas flutuações em sua severidade ou leniência [...] (ELIAS, 1995, p.

56)

[...] é preciso perguntar não como tal escritor chegou a ser o que foi – com o risco

de cair na ilusão retrospectiva de uma coerência reconstruída -, mas como, sendo

dadas a sua origem social e as propriedades socialmente constituídas que ele lhe

devia, pôde ocupar ou, em certos casos produzir as posições já feitas ou por fazer

oferecidas por um estado determinado do campo literário (etc.) e dar, assim, uma

expressão mais ou menos completa e coerente das tomadas de posição que estavam

inscritas em estado potencial nessas posições [...] (BOURDIEU, 1996, p. 244)

Talvez tenha sido devido a uma paixão que ele cultivou por toda a vida a paixão

pela leitura. Paixão que por obra do acaso deve ter tido se início em casa, pois, apesar de

pobre, Machado de Assis teve uma vantagem na vida nasceu numa família de leitores num

país onde apenas 30% dos eleitores sabiam ler.

Pouco se sabe de sua formação primária e sobre a ínfima escola a qual a citação

acima se refere, talvez, fosse muito parecida com a escola por ele descrita no conto Conto de

Escola, não existem registros seus nas escolas do Rio de Janeiro, mas muito indícios levam a

especular que foi mesmo em casa o início da paixão pelas letras. Em 1846-47, o pai de

Machado de Assis era assinante do Almanaque Laemmert, segundo Massa, citado por Viana,

o pai de Machado de Assis era ―um artista inteligente e de alguma leitura‖ e sua mãe também

sabia ler e escrever, e pode ter até chegado a desenvolver atividade de ensino, além de bordar,

Page 56: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

56

costurar e realizar outras atividades reservadas ao sexo feminino no século XIX. (Cf. Viana,

In Jobim, 2001, p.108)

Machado soube aproveitar essa vantagem. O maior contista brasileiro era um

voraz leitor, desde muito cedo frequentava o Gabinete Português de Leitura e tinha acesso aos

livros de amigos que deixavam o jovem ter acesso às suas bibliotecas particulares. Machado

preservou o hábito por toda a vida. Quando pode comprar livros, comprou-os e ao contrário

de nossa elite ilustrada não apenas para enfeitar as estantes, sua biblioteca particular era

vastíssima, muito se perdeu durante o tempo, atualmente o acervo está na ABL e é formado

por 674 volumes14

. Sobre o conteúdo das obras nos diz Viana:

[...] as literaturas ocupam aproximadamente 50% da biblioteca de Machado, já os

livros e revistas de história e geografia abarcam cerca de 25% do acervo, enquanto à

filosofia, à história e à crítica literárias ficam reservados 15% da coleção. Os 10%

dos volumes restantes podem ser distribuídos entre vários assuntos tais como

história natural, medicina, ciências sociais, memórias, correspondência etc. (Viana,

In Jobim, 2001, p.124)

Muitos foram os mestres de Machado de Assis para citarmos só alguns entre

outros tantos podemos lembrar Aristófanes, Aristóteles, Ésquilo, Heródoto, Homero, Luciano,

Platão, Plutarco, Sófocles, Catulo, Horácio, Tácito, Ovídio, Virgílio, Sade, Dante, Ariosto,

Leopardi, Ossian, Maquiavel, Cervantes, Calderon, Gil Vicente, Camões, Shakespeare,

Dickens, Thomas Moore, Shelley, Sterne, Darwin, Huxley, Poe, Goethe, Heine, Schiller,

Schopenhauer, Renan, Stendhal, Taine, Vitor Hugo, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de

Macedo, José de Alencar entre outros.

Destaquemos uma pequena curiosidade sobre um dos livros que faz parte do

acervo: a versão de O Príncipe de sua propriedade. Machado leu a obra em francês: Essai sur

lês oeuvres et la doctrine de Machiavel, avec La traduction littérale du Prince et de quelques

14

Estão escritos 383 em francês, destes 237 são originais e 146 são traduções, 43 do inglês, 36 do alemão, 24 do

latim, 22 do grego, 9 do italiano, 7 do espanhol, 2 do sânscrito, 1 do hindu, 1 do hebraico, 1 do polonês ; 166 em

português, destes 17 traduzidos do inglês e 2 traduzidos do alemão ; 88 em inglês; 27 em alemão; 8 em espanhol

e 2 em italiano. (Cf. Viana, In Jobim p. 125) Os livros foram presentes de muitas pessoas ou comprados por ele

mesmo, cerca de 50%, a maioria 156 volumes foram comprado na Rua do Ouvidor, 69, endereço da Livraria

Garnier,e na Livraria Lombaerts, na rua do Ourives 7/rua da Assembléia 77, onde Machado adquiriu 110

volumes. Ele também foi cliente da maioria das livrarias cariocas, a saber, Livraria Acadêmica de J.G. Azevedo

(21 volumes), Livraria Nicolau Alves (14 volumes), Livraria Laemmert & Co. (9 volumes) e outras 11 livrarias

do Rio de Janeiro, uma de Pelotas, uma de Berlim e uma de Pernambuco. (Cf. Viana, In Jobim p.127)

Page 57: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

57

fragments historiques et littéraires, o livro foi editado em volume único pela C. Reinwald no

ano 1867 em Paris e comprado na Livraria Garnier.

Machado também lia os jornais e revistas brasileiras, bem como as inglesas e as

francesas que sempre eram enviados por seus amigos que moravam na Europa, Nabuco

sempre lhe enviava recortes e revistas como o Temps.

Machado leu até quando pôde, um mês antes de morrer ainda lia e ruminava a

leitura, disse ao amigo Mario Alencar:

Agora, ao levantar-me, apesar do cansaço de ontem, meti-me a reler algumas

páginas do Prometeu de Ésquilo, através de Leconte de Lisle, ontem entretive-me

com o Phedon de Platão, também de manhã,; veja como ando grego, meu amigo.

Oxalá possa chegar a ver, parte que seja desse seu trabalho. E folgo muito que ponha

nele a paciência da obra perfeita. [...] De mim, vou bem, apenas com os achaques da

velhice, mas suportando sem novidade o pecado original, deixe-me chamar-lhe

assim. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1416)

[...] Meu querido amigo, hoje a tarde, reli uma página da biografia do Flaubert; achei

a mesma solidão e tristeza e até o mesmo mal, como sabe, o outro... 29/08/1908

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1425)

Desde muito jovem convivia com escritores e intelectuais do seu tempo na livraria

de Paula Brito, para termos uma ideia do mercado livreiro na época, além de livros a loja

vendia outras mercadorias como fumo de rolo, chá, remédio, pregos. Frequentavam a livraria

figuras como Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo, Manuel

Antonio de Almeida e José de Alencar.

Com Paula Brito, Machado começou a trabalhar como caixeiro, depois passou a

trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, mas não obteve êxito, o

adolescente sempre fugia do trabalho para ler, e a permanência por dois anos no trabalho foi

devido a proteção que o diretor da Imprensa Nacional, Manuel Antônio de Almeida, a ele

dispensava.

No mesmo período, continuava produzindo e colaborando não mais apenas na

Marmota Fluminense, mas também no Diário do Rio de Janeiro, dirigido por José de

Alencar. Trocou o ofício de tipógrafo, pelo de revisor, que se iniciou ainda na empresa de

Paula Brito e logo em seguida foi continuado no Correio Mercantil. Aliado aos vultosos e

cansativos trabalhos como revisor, aos poucos ele foi aumentando suas colaborações nos

Page 58: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

58

jornais, A Marmota Fluminense, Paraíba, Espelho e Correio Mercantil, enfim tinha decidido

viver da pena.

Os apertos foram muitos, mas o emprego como redator do Diário do Rio de

Janeiro15

, em 1860 deu lhe certa estabilidade. ―O salário não era alto e nem sempre esteve em

dia, porém reduziu a incerteza de depender de bicos feitos para vários periódicos ao mesmo

tempo.‖ (BASTOS, p. 39) Abaixo vemos quão difícil era sua situação, a carta é de 19/11/69 e

destinada a Francisco Ramos Paz:

Eu contava com aquele adiantamento e a tua carta anulou todas as minhas

esperanças. Não imaginas o que me foi preciso fazer desde segunda-feira à noite até

sexta feira de manhã. De ordinário é sempre de rosas o período que antecede o

noivado; para mim foi de espinhos. Felizmente o meu esforço esteve na altura de

minha responsabilidade, e eu pude obter por outros meios os recursos necessários na

ocasião. Ainda assim não pude ir além disso; de maneira que, agora mesmo, estou

trabalhando para as necessidades do dia, visto que só começo do mês em diante

poderei regularizar a minha vida. Tais são as coisas pelas quais não pude continuar o

nosso trabalho; continuá-lo-ei desde que tiver folga para isso. Ele me será

necessário, e tu sabe que eu não poupo esforços. Espero porém que me desculpes se

neste momento estou curando da solução de dificuldades que não previa nem

esperava.(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1350)

Poucos meses depois em maio de 1870, a situação ainda era complicada. Em carta

ao mesmo Ramos Paz suplicava o jovem:

Sei que tens andado ocupado, e temo importunar-te com estes pedidos; mas como te

disse, não tenho outro recurso, e desejava concluir o negócio o mais cedo que fosse

possível. Não insisto sobre a importância capital do serviço que me estás prestando;

tu bem o compreendes, e sabes além disso qual é a minha situação. Não pude

arranjar a coisa só por mim, vê se consegues isso, e repara que os dias vão correndo.

Ajuda-me, Paz; eu não tenho ninguém que o faça. Conselhos, sim; serviço, nada. (

ASSIS, 2008, Vol. III p. 1351)

Mas, as coisas começaram a melhorar e os serviços aumentaram, ao ponto de

Machado começar a recusar trabalho:

Sobreveio, porém uma circunstância que me obriga a modificar aquela resolução, e

dizer a vossa excelência que não posso continuar a traduzir o folhetim, como até

agora fazia. Não querendo pôr embaraços ao Jornal da Tarde, continuarei a tradução

até sábado. Não me demorarei em dizer a vossa excelência, com que pesar sou

15

―[...] fundado em 1821, fora o primeiro cotidiano a funcionar em nossa pátria. Depois de algum tempo fora de

circulação, voltava a ser impresso, tendo agora como redator-chefe Quintino Bocaiúva, que contratou Machado

como braço direito. (BASTOS, 2008, p.40)

Page 59: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

59

obrigado a interromper este trabalho que eu fazia com maior vontade que aptidão;

temo que se possa confundir um sentimento verdadeiro como fórmula de ocasião.

IGNORADO 14/06/70 (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1352)

Porém, foi na década de 70, que as coisas mudaram. Machado foi admitido no

Ministério da Agricultura. Ele era um funcionário público exemplar, logo se destacou no

serviço público e passou a desenvolver as duas atividades em paralelo.

[...] Muitos dos nossos maiores escritores, - inclusive Gonçalves Dias e Machado de

Assis – foram homens ajustados à superestrutura administrativa. A condição de

escritor funcionou muitas vezes como justificativa de prebenda ou de sinecura; e

para o público, como reconhecimento do direito a ambas, - num Estado

patrimonialista como era o nosso. [...] (CANDIDO, 1980, p. 84)

O imperador era um amante das Artes e colocou sob sua proteção escritores e

artistas, uma forma muito inteligente de garantir a ilustração e as fundações culturais que a

nação necessitava, era uma forma sutil de exercer o controle ideológico sobre a liberdade de

imprensa que havia no país.

[...] a atitude paternal do Governo, numa sociedade em que o escritor esperava

acomodar-se nas carreiras paralelas e respeitáveis, que lhe permitiam viver com

aprovação pública, redimindo ou compensando a originalidade e a rebeldia. Por isso

mesmo, talvez tenha sido uma felicidade a morte de tantos escritores de talento antes

da servidão burocrática. (CANDIDO, 1980, p. 84)

Essa ajuda do Estado de acordo com Candido levou nossa literatura a:

[...] certo conformismo de forma e fundo, apesar das exceções [...] Ele se liga ao

caráter, não raro assumido pelo escritor, de apêndice da vida social, pronto para

submeter sua criação a uma tonalidade média, enquadrando a expressão numa certa

bitola de gosto. [...] O Estado e os grupos dirigentes não funcionavam, porém,

apenas como patrono, mas como sucedâneo do público; público vicariante,

poderíamos dizer. Com efeito, na ausência de público amplos e conscientes, o apoio

ou pelo menos o reconhecimento oficial valeram como estímulo, apreciação e

retribuição da obra, colocando-se ante o autor como ponto de referência.

(CANDIDO, 1980, p. 84)

Page 60: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

60

Machado de Assis conhecia muito bem como funcionava o campo literário

brasileiro, tinha muita consciência de que escrevia para poucos, ele dizia em carta ao crítico

José Veríssimo em 1883, quando tratavam sobre fundação da Revista Amazônica:

Há alguns dias, escrevendo de um livro, e referindo-me à Revista Brasileira tão

malograda, disse esta verdade de La Palisse: ―que não há revista sem leitores, sem

um público de revistas‖. Tal é o caso do Brasil. Não temos ainda a massa de leitores

necessária para essa espécie de publicação. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1359)

Essa escassez de público levou nossos escritores a produzirem:

[...] para públicos simpáticos, mas restritos, e a contar com a aprovação dos grupos

dirigentes, igualmente reduzidos. Ora, esta circunstância, ligada à esmagadora

maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o país, nunca lhe permitiu diálogo

efetivo com a massa, ou com um público de leitores suficientemente vasto para

substituir o apoio e o estímulo das pequenas elites. Ao mesmo tempo, a pobreza

cultural destas nunca permitiu a formação de uma literatura complexa, de qualidade

rara, salvo as devidas exceções. Elite literária no Brasil, significou até bem pouco

tempo, não refinamento de gosto, mas apenas capacidade de interessar-se pelas

letras. (CANDIDO, 1980, p. 85-86)

Machado contava com a leitura dos amigos aos quais ele sempre mandava suas

obras para apreciação. Vejamos o mesmo gesto em quatro diferentes momentos de sua vida:

SM 13/11/1876 Vai por este vapor um exemplar de Helena, romance que publiquei

no Globo. Dizem que dos meus livros é o menos mau; não sei, lá verás.Faço o que

posso e quando posso. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1355)

Remeto-te um exemplar das minhas Americanas. Publiquei-as há poucos dias, e

creio que agradaram algum tanto. Vê lá o que isso vale; se tiveres tempo, escreve-

me as tuas impressões. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1353) SM

JV 19/03/1900 Esta carta leva-lhe um grande abraço pelo seu artigo de hoje. Dom

Casmurro agradece-lhe comigo a bondade da crítica, a análise simpática e o exame

comparativo. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1375)

JN 01/08/1908 Lá vai o meu Memorial de Aires. Você me dirá o que lhe parece.

Insisto em dizer que é o meu último livro; além de fraco e enfermo, vou adiantado

em anos, entrei na casa dos setenta, meu querido amigo. [...] Acabei. Uma vez que o

livro não desagradou, basta como ponto final. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1424)

Mas, não só os amigos próximos eram leitores em carta a Belmiro Braga

Machado afagava ao leitor:

Page 61: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

61

[...] Não tendo o gosto de conhecer-vos, mais tocante me foi a vossa lembrança. Pelo

que me dizeis em vossa bela e afetuosa carta, foram os meus escritos que vos deram

a simpatia que manifestais a meu respeito. Há desses amigos, que um escritor tem a

fortuna de ganhar sem conhecer, e são dos melhores. É doce ao espírito saber que

um eco responde ao que ele pensou, e mais ainda se o pensamento, trasladado ao

papel, é guardado entre as coisas mais queridas de alguém. (ASSIS, 2008, Vol. III,

p. 1361)

Ao falar sobre a relação entre publico e obra nos ensina Bourdieu:

O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção

enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao

produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe

enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja,

socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e

competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência

das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a

produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra.

(BOURDIEU, 1996, p. 259)

Felizes os escritores que morriam livres da enfadonha e dura vida dos gabinetes;

na década de 1880, temos Machado de Assis, cheio de trabalho, dizendo a um colega:

São tais porém os meus trabalhos e apoquentações, que espero me desculpe a

demora. Entretanto. Não retardei a resposta a ponto de não poder me aproveitar dela

no domingo próximo. Ou no próximo, ou em qualquer outro, achar-me-á em casa,

porque eu raramente saio nesses dias, exceto de noite, em que vou sempre a alguma

visita. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1356)

Vemos aqui novamente o hábito cultivado desde os tempo de moço, não sair de

casa aos domingos. Entre 1880 e 1881, ele escreveu Memórias Póstumas de Brás Cubas e

uma grande quantidade de contos, ―Teoria do Medalhão‖ foi escrito nesse período, além de

sua atividade no ministério e sua vida social que se em resumo era frequentar o Clube

Beethoven, jogar Xadrez por correspondência, visitar amigos, ir ao teatro, frequentar as

livrarias e os grêmios literários de que fazia parte.

Ao contrário do que foi por um período um dogma sobre Machado, a sua suposta

indiferenças e frieza, a vida pública de Machado sempre foi bem intensa, tinha muitos amigos,

mas poucos íntimos, e participou de agremiações e grupos por toda a vida, mas essa vida

ficou muito prejudicada nos anos de 1880 e 1881, no período os trabalhos foram tão intensos

Page 62: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

62

que ele precisou de um descanso mais prolongado. Sobre suas férias ele comunicou a Joaquim

Nabuco: ―Escrevo esta carta prestes a sair da corte por uns dois meses, a fim de restaurar as

forças perdidas no trabalho extraordinário que tive em 1880 e 1881.‖ (ASSIS, 2008, Vol. III,

p. 1357). Machado era um servidor público aplicado, ele fazia questão de ser o que chamamos

de Caxias; o serviço burocrático o consumia e o afastava da convivência com os amigos. O

volume de trabalho não diminuiu ao longo da vida do escritor, já como funcionário na

República ele dizia a Veríssimo: ―Hoje estou aqui preso pelo trabalho. Mas, assim como os

pilhei de assalto um dia, assim os pilharei outro. [...]‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p.1367). O

trabalho não diminuiu com o novo século; nos primeiro dias de 1901, falava ao mesmo José

Veríssimo: ―[...] o Gabinete está cheio de gente e a mesa de papel.‖ (ASSIS, 2008, Vol. III, p.

)

E quase no fim da vida, o trabalho tornou-se terapia para esquecer a dor pela

ausência de Carolina, confessava a Mario Alencar em dezembro de 1906:

MA 26/12/1906 [...] Agora estou bastante cansado, particularmente do pescoço, que

me dói, visto que ontem gastei todo o dia curvado a trabalhar em casa. Para quem já

havia trabalhado todo o domingo (nos outros dias tenho a interrupção das tardes), foi

realmente demasiado. Mas eu não me corrijo. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1405)

Page 63: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

63

2.2 Lições sobre a sociedade e a política brasileira nos tempos de Pedro II e Machado de

Assis

Não espero nem tento nomeação do governo, porque

naturalmente os nomes estão escolhidos. Mais tarde é

possível talvez. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1353)

[...] Quanto ao século, os médicos que estão presentes

ao parto reconhecem que este é difícil, crendo uns que o

que aparece é a cabeça do XX, e outros que são os pés

do XIX. Eu sou pela cabeça, como sabe, (ASSIS, 2008,

Vol. III, p. 1374)

Nos tempos do Imperador, o Brasil ocupava um lugar periférico na geopolítica e

no capitalismo mundial do século XIX, num mundo sob o domínio da hegemonia econômica

e bélica inglesa e cultural francesa, éramos atores totalmente dependentes das formas de

internacionalização do capital financeiro, ocupávamos o mesmo lugar de produtor e

exportador de matérias primas e bens primários.

Economia herdada do antigo modelo de plantation dos tempos que ainda éramos

colônia portuguesa. ―O império era o café e o café era o escravo‖, essa era a fórmula bem

sucedida da economia imperial. Café plantado por mãos escravas, compradas com dinheiro

emprestado de bancos ingleses, que dominavam o mercado financeiro e comercial brasileiro

desde a chegada de D. João VI, nos quais os barões do café conseguiam crédito para financiar

e manter sua economia de base agrícola.

Ao redor dessa Herança Rural, como a chamou Buarque de Holanda, surgiu uma

sociedade de, como ele mesmo afirmou, ―desterrados em nossa terra‖, que devido sua origem

peculiar, o encontro de velhas ideias como uma realidade geográfica e humana nova, para os

europeus, no nosso caso os portugueses criou uma forma de vida social e política ainda não

vivida, diz Buarque: ―[...] o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça

parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima de outra paisagem.‖

(HOLANDA,1995, p. 31) No trecho de abaixo de uma carta enviada a Salvador de

Mendonça, Machado de Assis expõe essa tensão (a carta é de 1876):

Nós amamos e casamos aqui no Brasil, como se ama e se casa na Europa; nesse país

parece que as coisas são uma espécie de compromisso entre o romanesco e o

patriarcal. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1354)

Page 64: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

64

Não havia indústrias, dependíamos totalmente de produtos importados da Europa, a

produção de alimentos era escassa e seus preços muito altos, nas fazendas, nos sobrados e nas

casas de classe média criavam-se animais e plantava-se o que desse para garantir a

alimentação cotidiana. O comércio era incipiente, mas glamoroso no Rio de Janeiro e todo

ele se concentrava na famosa rua do Ouvidor; nas capitais das províncias, o comércio era

bem menos desenvolvido, devido as péssimas condições das estradas e até a inexistência

delas, mas principalmente pela ausência de um mercado consumidor.

A escravidão estava em total acordo com os interesses do capital financeiro

inglês, até o momento que eles entenderam que seria melhor incentivar a mão o trabalho livre,

com o intuito de criar uma massa de assalariados que serviria de mercado consumidor das

maravilhas da grande indústria moderna.

A forma política era a Monarquia parlamentarista, vivíamos num Império liberal,

governado por um imperador poliglota, ilustrado, lido que mantinha sua força apoiado pelas

elites agrárias provinciais, que sempre eram agradadas com baronatos e comendas, uma das

formas usadas D. Pedro II para garantir a paz interna e evitar oposição.

SALVADOR DE MENDONÇA 24/12/1875 Por aqui não há novidade importante.

Calor e pasmaceira, duas coisas que talvez não tenhas por lá em tanta dose. Aí, ao

menos, anda-se depressa, conforme me dizes na tua carta, e na correspondência que

li no Globo. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1353)

No cenário externo, o Brasil tinha paz. O país sempre foi considerado nas

relações internacionais como pacífico, apesar da Guerra do Paraguai, único conflito

internacional de grandes proporções de que o Império participou.

A constituição era muito sofisticada, tanto nas garantias dos Direitos do Homem,

pois, repetia em seu texto a declaração de 1789, como na forma política e burocrática, nosso

sistema de governo era o parlamentarismo muito bem copiado dos ingleses, seguindo o

sistema da tripartição do exercício do poder, mas com uma inovação, o poder Moderador, que

dava ao Imperador a prerrogativa de poder estar acima dos outros poderes e da própria

Constituição, colocando nosso parlamentarismo às avessas.

O Poder legislativo era bicameral, havia um senado vitalício e uma assembléia de

deputados ocupada pelas elites provinciais ou seus apadrinhados, eleitos por um sistema

eleitoral pouco confiável, sempre fraudado, que tinha como eleitores uns poucos que

Page 65: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

65

possuíam a renda necessária para exercer o direito de votar. No famoso conto A Sereníssima

República, Machado de Assis apresenta uma critica muito rica sobre o sistema eleitoral do

império.

Os partidos políticos não passavam de adorno de grupos rivais que lutavam não

por programas e ideias, mas por cargos, prestígio e favores do Imperador. Claro que a frase

conhecida que dizia serem iguais Luzias e Saquaremas não é verdadeira, pois, muitas eram

suas diferenças programáticas e de ideias, o que não impediu, por exemplo, de ter sido um

gabinete conservador o responsável pela instituição da pedra fundamental do inicio do

crepúsculo do Império, a lei do ventre livre.

Escravidão e ideias modernas conviviam em aparente harmonia no Império liberal

governado pelo ilustrado, lido e culto Pedro II. Ficou célebre a expressão cunhada por

Schwarz, de que no Brasil as ideias estavam foram do lugar. No seu Ao vencedor as batatas

ele diz:

Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo

da vida ideológica. A chave dessa era diversa. Para descrevê-la é preciso retomar o

país como um todo. Esquematizando, pode-se dizer que a colonização produziu,

com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o

escravo, e o ‗homem livre‘, na verdade dependente.[...] seu acesso à vida social e a

seus bens depende materialmente do favor [...] mecanismo através do qual se

reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos

que têm. [...] com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no conjunto a

existência nacional‖ [Grifos Meus] (Schwarz, 2000,p.16)

Faoro nos diz que a Sociedade brasileira é formada por duas estruturas que se

sobrepõe. A classe e o Estamento, a primeira é regida pelos princípios do dinheiro e da

competição, e o segundo pelos princípios do favor e das convenções sociais. Tínhamos a

classe de proprietários, os escravos e os dependentes, que precisavam do favor alheio, para

garantir sua sobrevivência material.

Não bastava ter dinheiro para ser aceito, o novo rico precisava das benesses,

prebendas e títulos imperiais para poder frequentar o paço e ser considerado um medalhão.

Essa prebendas eram fundamentais para a manutenção do jogo político imperial, por meio de

postos na Guarda Nacional, títulos nobiliárquicos, Pedro II garantia sua influencia e

apaziguava os conflitos. O imperador era o grande sustentáculo político e social do Império.

Page 66: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

66

Machado como ele mesmo disse: não frequentava o paço, mas gostava do

Imperador. Era Monarquista, dizem que mais por comodismo que por convicção. Na

juventude, foi ligado aos liberais, mas logo ficou acima das lutas partidárias. Nesta fase da

vida chegou a escrever um soneto para o imperador e sempre se referia a ele de forma

carinhosa e com admiração.

O imperador também gostava dele, agraciou-o com a Ordem da Rosa e quase o

fez conselheiro da mesma Ordem, o que só não ocorreu porque a república foi instaurada.

Machado chegou a dizer que com fim do império apareceria no Brasil a mais sanguinária

oligarquia que o mundo já viu. Não era nem Luzia e muito menos Saquarema, estava acima

de tudo isso. O que não significa que era um indiferente, o contrário acompanhava a política

atentamente. Machado, na sua experiência como jornalista, cobriu o parlamento o que apurou

o seu olhar e a sua pena para esse aspecto da vida social, conheceu de perto os Medalhões do

império e sua arte.

O Rio de Janeiro era uma cidade atrasada em processo de modernização. Quase

no fim do século, em 1897, ele dizia a José Veríssimo em carta:

JV 22/06/1897 [...] Eu sou um peco fruto da capital, onde nasci, vivo e creio que hei

de morrer, não indo ao interior senão por acaso e de relâmpago, mas compreendo

que prefira um campo a esse misto de roça e cidade (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1364)

Machado amava o Rio de Janeiro, sua história e assim como os de sua geração

não acompanharam, ou melhor não se acostumaram como as mudanças tão rápidas que

arrastaram seu mundo e as pessoas que nele viviam.

SM 22/09/1895 Tens razão; compreendo que ao ver tanta gente nova, em 1891, toda

ela te parece intrusa por nada saber dos nossos bons tempos nem dos homens e

coisas que lá vão. Alguns intrusos vingam-se em rir do que passou, datando o

mundo em si,e crendo que o Rio de Janeiro começou depois da Guerra do Paraguai.

Os que não riem e respeitam a cidade que não conheceram, não têm a sensação

direta e viva; é o mesmo que lessem um quadro antigo que só intelectualmente nos

transporta ao lugar da cidade. Este Rio de Janeiro de hoje é tão outro do que era, que

parece antes, salvo o número de pessoas, uma cidade de exposição universal.

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1361)

Page 67: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

67

2.3 Machado de Assis e a arte de escrever contos no Brasil

Machado de Assis seguiu em sua obra o programa que ele mesmo propôs em

artigo publicado em 24 de março de 1873, na revista O Novo Mundo. A revista era editada em

Nova Iorque e o artigo consta na revista número trinta. Eis o célebre trecho:

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve

principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não

estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que deve se exigir do

escritor, antes de tudo, é certo sentimento intimo, que o torne homem do seu

tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no

espaço. (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1205)

A seção, que ora se inicia, vai se ater ao Machado de Assis contista. Talvez o meu

maior interesse nos contos seja pelas qualidades que o próprio Machado designa aos contos na

advertência que abre o coletânea Várias Histórias de 1895, Diz o contista: ―[...] O tamanho

não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma

qualidade nos contos, que os trona superiores aos grandes romances, se uns e outros são

medíocres: é serem curtos‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 446) Na mesma advertência, Machado

nos mostra seu apreço pelos contos, principalmente por contistas do quilate de Diderot,

Mérimée e Poe, os únicos citados por ele. Um pensamento de Diderot vem como epígrafe da

coletânea, ―Moneu mi, faisons toujours des contes... Le temps se passe, et Le conte de La vie

s´achvé, sans qu´no s´en aperçoive.‖ (DIDEROT, apud, (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 446), a

citação é o mote usado para explicar o motivo que o levava a escrever tantos contos.

É um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do filósofo. Não

são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de

obras-primas, e colocam os de Poe entre o primeiros escritos da América. (ASSIS,

2008, Vol. II, p. 446)

Essa referencia a Diderot e sua paixão pelos contos já haviam aparecido treze anos

antes na advertência da coletânea Papéis Avulsos de 1882:

Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos, e alguns

deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também. E eis a razão

do enciclopedista: é que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo

Page 68: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

68

escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente dar por isso. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.

236)

Machado de Assis escrevia contos desde os dezenove anos e continuou a escrevê-

los por toda sua vida de escritor, entre 1858 e 1907. O primeiro conto que Machado de Assis

publicou foi ―Três tesouros perdidos‖, na Marmota Fluminense em 1858 e os últimos foram

escritos para coletânea Relíquias da Casa Velha.

De acordo com Gledson, ―os contos de Machado não são levados tão a sério

quanto mereceriam.‖ (GLEDSON, 2006, p.35), que ―boa parte do sabor desses contos provém

de sua íntima relação com o Brasil, e em particular com o Rio de Janeiro.‖ (GLEDSON, 2006,

p.36) e ―que eles ainda contêm surpresas para quem souber lê-los com o espírito do autor‖

(GLEDSON, 2006, p.37)

Os contistas do século XIX tinham como veículo de publicação de suas histórias

as revistas e os jornais16

, com Machado de Assis não foi diferente. Ele publicou

principalmente no Jornal das Famílias, 70 contos, entre 1864 e 1878; na revista A Estação,

37 contos, de 1879 a 1898, na Gazeta de Notícias entre 1881 e 1897 foram 56 contos,

publicou também em O Cruzeiro (Cf. GLEDSON, 2006, p.35-36) Vamos enfatizar a Gazeta

de Notícias onde foi publicado ―Teoria do Medalhão‖.

A Gazeta de Notícias, onde Machado publicou muito de seus contos mais

memoráveis, [...] foi fundada em 1874. Foi uma novidade entre os jornais

brasileiros, pois era vendida nas ruas, e não apenas para assinantes. Era um jornal

liberal no melhor sentido da palavra, politicamente independente, vivo e empenhado

em apoiar boas produções literárias. (GLEDSON, 2006, p.37)

Das sete coletâneas de contos que Machado publicou em vida, uma é a mais

significativas a já citada Papéis Avulsos de 1882. Um ano depois de Memórias póstumas de

Brás Cubas, na qual ―Teoria do Medalhão‖‘ foi republicado.

16Como traço importante, devido ao desenvolvimento social do Segundo Reinado, mencionemos o papel das

revistas e jornais familiares, que habituaram os autores a escrever para um público de mulheres, ou para os

serões onde se lia em voz alta. Daí um amaneiramento bastante acentuado que pegou em muito estilo; um tom de

crônica, de fácil humorismo, de pieguice, que está em Macedo, Alencar e até Machado de Assis. Poucas

literaturas terão sofrido, tanto quanto a nossa, em seus melhores níveis, esta influência caseira e dengosa, que

leva o escritor a prefigurar um público feminino e a ele se ajustar. (CANDIDO, 1980, p. 85)

Page 69: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

69

[...] é a mais notável coletânea de Machado, a mais original e radical, [...] tem uma

unidade peculiar, muito difícil de definir, [...] Entre essas histórias as melhores têm

também uma força peculiar [...]. Machado conseguiu encarnar uma espécie de força

mítica [...] (GLEDSON, 2006, p.45)

É preciso dizer, desde já, que acredito que aqui, mais do que nunca, as especulações

de Machado se centram na questão da identidade nacional que tão frequentemente

tem preocupado os intelectuais latino-americanos desde a independência.

(GLEDSON, 2006, p.72)

Papéis Avulsos ―representa para o Machado de Assis contista o que as Memórias

póstumas de Brás Cubas representaram para o Machado romancista.‖ (GLEDSON, 2006,

p.51) Ambos marcam o início do que se convencionou chamar de segunda fase da obra

machadiana, período da ―crise dos quarenta anos‖, em que o capricho e a volubilidade do

senhor dominante e todas as suas excludentes redes de relações sociais, políticas e culturais

deixam de ser assunto dos romances e passam a ser a voz ativa da narrativa animada pela

ironia.

Mudanças que ―quase sempre implicam não levar as coisas a sério, tratando-as

com desrespeito bem-humorado ou sarcástico [...] Isso é algo que não se pode conseguir sem

a ironia‖ (GLEDSON, 2006, p.46).

Roberto Schwarz nos mostrou uma parte crucial da dinâmica desse processo no

contexto dos romances [...] Simplificando seu argumento: Machado já não podia

retratar uma sociedade baseada na escravidão e privilégios em termos que fossem ao

mesmo tempo diretos e conformistas; assim, teve de recorrer a uma narração indireta

que não era somente irônica, mas de uma ironia total e radical, narrando tudo do

ponto de vista de Brás Cubas [...] (GLEDSON, 2006, p.44)

Em Papéis Avulsos o tom é sempre irônico, as circunstâncias do contos ―estão

envoltas em ironias, que simplesmente abre espaço para outras ironias‖ (GLEDSON, 2006,

p.46). Na ―Teoria do Medalhão‖, temos uma definição de ironia ―esse movimento ao canto da

boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano,

transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados.‖ (ASSIS, 2008,

Vol. II p. 275) Essa nova forma de criar sua prosa dá-lhe ―[...] intensidade e confiança

inéditas‖.

[...] É como se, de fato, tivesse dominado uma série de efeitos novos, uma música

nova. [...] É como se ele tivesse que criar uma forma própria para cada conto:

Page 70: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

70

diálogo, pastiche, sátira, contos longos, médios, curtos. A prosa de torna

multidimensional, em grande parte por conta do humor. (GLEDSON, 2006, p.47)

Vejamos:

Uma parte fascinante desse processo é que esse novo poder inclui uma notável

dimensão histórica específica, local: com efeitos, os enredos, de alguns dos contos

adquirem significados adicionais, por conta da presença de certos detalhes

aparentemente supérfluos, mas que, vistos em conjunto, constroem uma espécie de

história nacional bastante cética e original, e para qual não há precedentes na

produção anterior às Memórias póstumas de Brás Cubas (GLEDSON, 2006, p.47-

48)

Em Papéis Avulsos e Brás Cubas, a energia é, acima de tudo, satírica: o Machado

bem-comportado dos romances da década anterior, que só tinha mostrado o seu lado

mais perigoso em contos ―A parasita azul‖ (1872) ou nas estranhas ―fantasias‖

publicadas em O Cruzeiro, em 1878, revela-se, finalmente, em pé de igualdade com

os grande temas de um Erasmo ou um Swift. (GLEDSON, 2006, p. 71)

Voltemos a advertência.

Este título de Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa unidade; faz crer que o

autor coligiu vários escritos de ordem diversa para o fim de os não perder. A

verdade é essa, sem ser bem essa. Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como

passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só

família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa. Quanto ao gênero deles,

não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos do leitor. Direi somente,

que se há aqui páginas que parecem meros contos, e outras que o não são, defendo-

me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum

interesse, e das primeiras defendo-me com São João e Diderot. O evangelista,

descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): "E aqui há sentido,

que tem sabedoria." Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra.[...] (ASSIS,

2008, Vol. II, p. 236)

Gledson nos lembra que a precisão das datas não é algo comum na escrita

machadiana, por isso quando aparece, merece um pouco mais de nossa atenção por revelar

detalhes escondidos17

. Sobre o lugar da história e das datas na obra de Machado nos esclarece

Chalhoub:

Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do

Brasil no século XIX. Essa hipótese vem sendo defendida, a meu ver de forma

17

Cf. Gledson 91-102, 2008

Page 71: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

71

bastante convincente, por críticos literários como Roberto Schwarz e John Gledson,

e tem se revelado importante para desvendar e potencializar significados nos textos

machadianos. Na ótica de Schwarz, a obra de Machado é interpretada como um

comentário ―estrutural‖, por assim dizer, sobre a sociedade brasileira do século XIX:

o romancista expressa e analisa aspectos essenciais ao funcionamento e reprodução

da estrutura de autoridade e exploração vigentes no período. Schwarz procura

mesmo explicar a trajetória da obra machadiana como um processo de

experimentação e busca de um ―dispositivo literário‖ que ―capta e dramatiza a

estrutura do país, transformada em regra escrita. Gledson, por outro lado, está mais

preocupado em perseguir o movimento da história nos escritos de Machado: o

crítico demonstra, num procedimento sistemático de decifração de alusões e

alegorias, que o romancista comentou intensamente as transformações sociais e

políticas de seu tempo. Se a pena de Gledson revela um Machado empenhado em

interpretar o sentido da história, também mostra que tal esforço é acompanhado de

um processo não menos intenso de dissimulação e despistamento do leitor, que não

raro vê o seu esforço solenemente enviados para as calendas gregas. (CHALHOUB,

2003, p. 17-18)

Na última seção de seu Machado de Assis: ficção e história, nos esclarece

Gledson:

Claro que Machado nunca escreveu um livro, um artigo que fosse, de ―pura‖

história, mas nas suas obras de ficção, e nas suas crônicas, há uma profusão de

referências a história brasileira que nos dão acesso a um pensamento complexo,

sutil, mutável, e que sabia acomodar dúvidas e ironias. (GLEDSON, 2003, p. 293)

Mas para nós não só o tempo histórico importa, estamos no terreno do imaginário.

[...] a história social é feita do eterno retorno e do eterno eclipse de mitos que

emerge lentamente do inconsciente colectivo, pactuam e enganam os mitologemas,

das instituições e numa longa duração fagocitam, mitema atrás de mitema, os

magistérios racionalizados, os seus códigos e as suas instituições. O verdadeiro

‘contrato social’ é o do amálgama das contradições, das inflexões das maiorias,

das concessões sistêmicas no lento bailado da história. E isto de uma forma tanto

mais complexa quando a sociedade não possui um ‗isto‘ obsessivo e único, é ela

própria um nexo de subconjuntos, nexo mecânico, ou orgânico, tanto faz, tendo ele

próprios a sua própria singularidade e a sua mitologia fundadora particular. É um

imenso polipeiro hierárquico, mas onde a hierarquia não é mais do que o principio

generalizado do ‗querer estar junto, e persistir nesse ser‘. Imenso polipeiro onde a

arqueologia descobre por vezes atóis, imputrescíveis, corais coriáceos que não há

maré nem tempestade que destrua. [Grifos Meus] meus( DURAND, 1996, p. 139-

140)

Page 72: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

72

CAPÍTULO III

A ARTE DE FAZER POLÍTICA NO BRASIL NA TEORIA DO MEDALHÃO

- Nenhuma filosofia?

- Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na

realidade nada. [...] proíbo-te que chegues a outras

conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge

a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc.,

etc. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 275)

Publicado pela primeira vez em 1881, na Gazeta de Notícias e republicado no

livro Papéis Avulsos em 1882, ―Teoria do Medalhão‖ é uma aula sobre a política brasileira:

[...] se consome numa única cena, mostrada em tempo real, ou seja, fazendo

coincidir o tempo do discurso com o da história: uma conversa entre pai e filho. A

ação, que não extrapola o nível verbal, é claramente persuasiva. (CINTRA, In:

MARIANO & OLIVEIRA, 2003, p.160)

Esse conto é uma chave para entender os outros Medalhões que Machado de Assis

criou em sua obra. O escritor nos deixou uma galeria de grandes medalhões, magníficos

estudos sobre esse Mito da vida política brasileira. Muitos são os Medalhões Machadianos.

Eles aparecem em toda sua obra como tema, assunto ou personagens como o Estácio, de

Helena ou o Simão Bacamarte de O Alienista, outras vezes como narrador da própria história

como Brás Cubas, Bentinho e Aires.

A teoria do medalhão é, pois, a fórmula indicada para obtenção do sucesso num

mundo social dominado pelo convencionalismo, pela ortodoxia das teorias e

doutrinas, pela rigidez das práticas jurídicas, pelo modismo e conformismo que

impedem as soluções originais e profundas; numa palavra pelo sistema

hierarquizado que coloca tudo em seus lugares, sempre acha o lugar de todas as

inovações, detesta examinar-se e, por meio de suas próprias forças e dinamismo,

mudar o lugar das coisas que nele existem. (DA MATTA, 1997, p. 203)

O conto é uma obra-prima do ―estilo satírico da maturidade‖18

de Machado de

Assis em poucas páginas temos em essência ―A fórmula do discurso de Brás Cubas‖19

, um

18

(SCHWARZ, 1990, p.53) 19

(FAORO, 2001, p.189)

Page 73: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

73

manual sobre a melhor forma de agradar aos poderosos, uma miscelânea de conselhos,

mentiras, verdades e segredos que podem fazer um homem bem sucedido ou não, próximo ou

não das barbas do Imperador.

Crítica mordaz à sociedade que ao mesmo tempo em que sonhava com o

progresso, fazia questão de reproduzir e recriar o Medalhão, dizendo o mesmo de outro modo,

uma sociedade que embora o mercado e o contrato começassem a produzir, mesmo que

timidamente seus efeitos na vida cotidiana da corte brasileira, o culto ao Medalhão ao invés

de fenecer, foi reforçado e resignificado mantendo-se inabalado.

O medalhão é um vaidoso. Ele tem amigos importantes e parentes de fina estirpe,

tem o poder de tudo subordinar a ponta do próprio Nariz e reduzir os outros, sua autonomia e

desejos ao seu capricho pessoal, vive a buscar algo que lhe garanta ―uma superioridade

qualquer‖ 20

. Superioridade que pode ser a roupa, a fama, o dinheiro, os amigos, as mulheres,

a retórica, enfim, qualquer coisa que o faça parecer fazer parte dos que merecem o aplauso e

as reverências.

Um dos seus méritos é, a meu ver, a possibilidade de clarificar a relação entre o

nosso sistema de classificar pessoas e, como consequência, o rito autoritário do

―sabe com quem está falando?‖ Pois essa fórmula só deve ou pode operar

funcionalmente numa sociedade de gentes, de pessoas que se lavam, de brancos, de

boa gente, de medalhões, em oposição às gentinhas, ao zé-povinho, à arraia miúda, à

gentalha, à massa; numa palavra aos impulsos em geral. (DA MATTA, 1997, p.

204)

O Medalhão não está apenas entre os ricos, entre os políticos, o conto em questão

tem como personagem um quase-Medalhão e um protótipo de Medalhão, ambos da classe

média carioca.

[...] O medalhão, como uma cristalização pessoal de qualidades morais de

determinado domínio social, pode surgir onde quer que haja um grupo. Temos

medalhões entre os pobres e os ricos, entre os fracos e os fortes. Trata-se, parece-me,

de um modo de estabelecer diferenças e hierarquias em todos os grupos, em todas as

categorias, em todas as situações; sobretudo, entre pessoas iguais. Embora exista

uma tendência a equacionar o medalhão com a classe dominante, essa ligação é

simples demais. De fato, existem medalhões em todos os domínios da vida social

brasileira: na favela e no Congresso; na arte e na política; na universidade e no

futebol; entre policiais e ladrões. São pessoas que podem ser chamadas de

―homens‖, ―cobras‖, ―figuras‖, ―personagens‖ etc. e que ocorrem em qualquer

campo. São os que já transcenderam as regras que constrangem as pessoas comuns

20

Ver SCHWARZ, 1990

Page 74: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

74

daquela esfera social. É alguém que não precisa mais ser apresentado e com quem se

deve primeiro falar (e/ou ―se entender‖). (DA MATTA, 1997, p.205)

Não começo por explicar o título, pois concordo com o que diz Machado de Assis

na advertência de Historia Sem Data21

―o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisa de

explicação.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 346 ) E Teoria do Medalhão é um dos melhores títulos

da extensa galeria de títulos célebres da obra machadiana, interpretá-lo é interpretar o próprio

conto.

O subtítulo é o primeiro piparote dado no leitor: Diálogo. O subtítulo funciona

―[...] como signo de verossimilhança, induzindo o leitor desde o início a crer na veracidade do

relato, serve como guia para localizá-lo a propósito do formato escolhido.‖ (CINTRA In:

MARIANO & OLIVEIRA, 2003, p.159). Para além do formato essa é primeira grande ilusão

do conto: a aparente ausência do narrador, que opta por se esconder totalmente da narrativa,

um narrador que se esconde por trás de ironias ao contar um diálogo entre Pai e Filho.

Não esqueçamos que o conto foi escrito no mesmo período de Memórias

póstumas, em que temos o defunto autor como narrador e personagem, narrador que faz

questão de aparecer e mostrar que a história é feita a partir de seu ponto de vista.

Outra ilusão criada pela forma de um descontraído diálogo é sugestão de liberdade

e igualdade entre os interlocutores, num diálogo cada um diz o que quer, mas o conto logo se

transforma num monólogo autoritário, persuasivo, amável e violento.

Embora aparente a descontração da conversa dialogada, da doação de conselho,

tende ao monólogo pelo tom autoritário adotado na postura linguística da figura

paterna, para caracterizar o protótipo do medalhão, ironicamente referido como

aspiração máxima para selar a marcar de vencedor perante a sociedade. (CINTRA,

In: MARIANO & OLIVEIRA, 2003, p.160)

As relações entre Pai e Filho eram o modelo da desigualdade daquela sociedade,

nas quais o poder do Pai era quase de um Deus, que mandava na morte e na vida dos seus

subordinados, filhos, crianças, mulheres, escravos e dependentes.

Em Sobrados e Mocambos, Gylberto Freire dedica um capítulo inteiro a essas

relações. Relações que quase inexistem na infância, pois as crianças logo eram entregues para

21

Coletânea de Contos de 1884

Page 75: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

75

educação. Educação rígida, dura e violenta. Ou dengos e mimos. Lembremos a deseducação

de Brás que quebrava a cabeça das escravas, montava em Prudêncio e na juventude gastava

todo o dinheiro que tinha com Marcela. E o que faz o Pai de Brás? Manda-o à Europa para

que os ares de Coimbra fizessem - no um homem ilustrado.

Os segredos que vão ser proferidos pelo Pai ao mancebo Janjão exigem a máxima

atenção, pois, são espertezas que devem ser muito bem apreendidas, e para isso é preciso estar

bem acordado, enquanto os outros dormem. Atentemos para o avançado da hora, e para o

detalhe que onze era o número de amigos que acompanharam o enterro do Medalhão Brás

Cubas, uma quantidade inglória ao homem que buscou em sua vida a nomeada e a

imortalidade.

Para amenizar o calor da noite carioca, o pai deixa a janela aberta, talvez tenha

sido por ela que alguém ao passar tenha ouvido essa conversa secreta. Janela, que o escritor

nos abre de forma hábil, como se nos induzisse a bisbilhotar e a esconder-nos junto a ele para

ouvir atentamente os sussurros vindos da alcova.

Janela aberta, que também pode significar que o ofício de Medalhão é forjado nas

ruas e não em casa, lugar do ostracismo e do esquecimento, logo podemos lembrar da

indistinção entre o privado e o público na vida brasileira, pois é dentro de casa que o filho terá

as lições de como se comportar da vida pública. E continua o Pai:

- Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste

aos teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu

à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros...

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)

A história ocorre após um jantar, guardemos essa informação, pois, voltarei a ela

mais adiante. Concentremo-nos nas outras duas: a data e a definição que o pai faz da

trajetória do filho. Já vimos que as relações entre pais e filhos no Brasil eram mediadas pelo

poder, indiferenças e mimos. De forma doce o Pai reduz o filho e sua vida até ali a uma frase

e só se apercebe que o pirralho de nada cresceu pelos bigodes e namoradas. Nada estranho

para a relação de distanciamento entre pais poderosos e filhos com pouco valor, voz e direitos,

desde cedo ensinados que o que valia era vontade do Pai, suas leis, regras e caprichos.

A data que aparece na citação acima é uma das chaves para entendermos as

tensões políticas da época do conto. O capítulo 2, seção 2.3, já debateu como a história é

Page 76: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

76

importante na obra de Machado de Assis. O dia do nascimento de Janjão é 5 de agosto de

1854. A explicação a seguir é sobre Helena, mas nos serve para entendermos o panorama das

ideias e tensões em jogo, durante o ―tempo saquarema‖, diz Chalhoub:

Estamos na década de 1850, período que na memória política construída no século

XIX configurou-se como o apogeu do Segundo Reinado. A supressão das revoltas

provinciais que haviam marcado o período regencial e a década de 1840, o

arrefecimento das disputas políticas com a formação dos gabinetes de conciliação

dos partidos, o afastamento do perigo de intervenção inglesa com o fim do tráfico

negreiro, tudo isso serviu para construir a imagem de paz e prosperidade das décadas

de 1850 e 1860 (―o tempo saquarema‖), ao menos até o advento da Guerra do

Paraguai e das primeiras escaramuças parlamentares sobre a ―questão servil‖ – para

usar um eufemismo da época. (CHALHOUB, 2003, p. 65)

O ano em que Janjão nasceu é o ano que se inicia o período de domínio do

partido conservador, ou saquaremas, no gabinete imperial, auge do domínio senhorial no

império, da manutenção da escravidão, da década de cinqüenta é também a criação da Lei de

Terras, que legitimou e consolidou os poderes dos grandes latifundiários em detrimento da

usurpação das terras dos mais pobres. Nesse período se passa o romance Helena, que de

acordo com Chalhoub:

[...] é a descrição do período de hegemonia inconteste da classe senhorial-escravista,

cuja crise profunda o romancista vivenciaria entre 1866 e 1871, e cujo desmanchar

ele assistia com olhar investigativo no decorrer da década de 1870. Ao escrever

Helena, Machado não tinha mais ilusões quanto à continuidade das estruturas

tradicionais de poder. (CHALHOUB, 2003, p. 41)

Acontecimentos fundamentais para o entendimento da vida brasileira no século

XIX ocorrem em 1854, Janjão veio à luz no mesmo ano da inauguração da iluminação a gás

nas principais ruas cidade do Rio de Janeiro em 25 de março. No mesmo ano, Manuel

Antônio de Almeida publica o fundamental, Memórias de um sargento de milícias em

volume22

, outra luz para iluminar os brasileiros. As luzes não param por aí.

Em abril, é criada a Faculdade de Direito do Império e em setembro tiveram início as obras da

Estrada de Ferro D. Pedro II. Era o progresso chegando. Sobre a importância do progresso na

obra de Machado veja o que anota Faoro:

22

Cf. Candido – Dialética da Malandragem

Page 77: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

77

O século XIX está bem presente na ficção do escritor e se expande no mito mais

caro ao tempo. Há, sempre que os fatos o demonstram, a manifesta alegria no

progresso de uma forma nova sobre uma velha: o bonde de eletricidade sobre o

bonde de burros, a influência do jornal (Misc., O jornal e o livro). A ideia de

progresso – o mito do progresso – penetra na ficção de Machado de Assis por meio

de uma inovação particular, que o simboliza e o expressa. Não o sensibiliza, senão

incidentalmente, o industrialismo, ou a revolução industrial. O progresso, para o

brasileiro no Segundo Reinado, ainda não se traduz em fábricas e usinas, em

siderurgia e estaleiros. Ele vive nas suas manifestações exteriores, acabadas: a

iluminação, o bonde, os serviços públicos. Trata-se de um progresso importado,

sobreposto a um país agrícola – resultado e não processo. [...] (FAORO, 2001,

p.191)

Mas 21 anos depois, em 5 de agosto de 1875, temos um Conservador ensinando

ao filho uma velha ideologia que ainda soa como nova, pois ainda era fundamental para a

construção do devir de sucesso a pouco menos de quinze anos antes da República. Temos

aqui outra pista, o jantar é na década setenta, o período é fundamental na obra machadiana,

quando ele acompanhou como funcionário público as tentativas de fazer valer a lei de 1871.

E claro o desrespeito a ela. Nesse período de vida do mancebo ainda temos os

acontecimentos de 1869, que abalaram o Império. A data do nascimento de Janjão nos remete

a outras duas datas, muitos tempos e várias historicidades, tempos dos homens, do conto, do

mito, do instante. Temos a data de publicação do conto 18 de Dezembro de 1881. Em 1881

completava dez anos da lei do ventre livre.

O filho é o que as moças casadouras chamavam de bom partido: advogado, com

algumas poses e posses que lhe serviam como senha para entrada no mundo dos amigos

influentes e importantes. Isso vale muito numa sociedade onde melhor que ser Imperador é ser

amigo do Imperador, ou de qualquer um que gravite ao redor desse grande sol.

O Pai logo deixa claro ao filho que a conversa não mais será entre o pai e filho,

mas entre iguais ou quase iguais, pertencentes ao mesmo estamento, a mesma classe, aos

mesmos códigos, aos mesmos embustes ideológicos, mas, como vimos, a igualdade é apenas

aparente:

- Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela

porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos. Vinte e um anos,

algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na

imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas

carreiras diante de ti. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)

Page 78: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

78

A necessidade de fechar a porta da sala é sinal de que agora serão revelados

segredos que só podem ser revelados a poucos privilegiados. Segredos sobre a rua cujas

pessoas não podem ouvir. Velha estratégia brasileira de manter o outro incapaz de ter

condições de refletir sobre sua própria realidade.

Imediatamente após mandar fechar a porta, o Pai começa a elencar os atributos do

filho que facilitarão para ele as portas sempre abertas: apólices e diploma. A ausência de um

dos dois dificultaria mais o projeto que está por ser exposto. Entre nós, como lembra Sérgio

Buarque de Holanda, o diploma substituiu os títulos de nobreza:

Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem

largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e

alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel,

podem equivaler a autênticos brasões de nobreza.(HOLANDA, 1995, p.83)

Uma vez endinheirado e diplomado no Brasil, você pode ocupar qualquer cargo

público, prefeito, deputado, dono de ONG, cantor... Aqui um indivíduo pode ser o que quiser

desde é claro que ele tenha amigos poderosos e algo para trocar com eles. É preciosa a

interpretação de Buarque de Holanda sobre o assunto. O historiador paulista nos diz:

...as atividades profissionais são, aqui, meros acidentes na vida dos indivíduos, ao

oposto do que sucede entre outros povos, onde as próprias palavras que indicam

semelhantes atividades podem adquirir acento quase religioso. Ainda hoje são raros,

no Brasil, os médicos, advogados,engenheiros, jornalistas, professores, funcionários,

que se limitem a ser homens de sua profissão.(HOLANDA, 1995, p.83)

Ao citar modelo de homem para o filho, diz o pai: ―Vinte e um anos, meu rapaz,

formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. Os mesmos Pitt e Napoleão, apesar de

precoces, não foram tudo aos vinte e um anos.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)

A citação do inglês e do francês não espanta numa sociedade que negava sua

história recente e seu passado colonial. Uma sociedade que ainda valorizava os seus heróis e

quase não os reconhecia, não tínhamos o amor por nossos bandeirantes como os americanos

do Norte tinham por seus pioneiros. O Imperador que tinha o poder desde a adolescência

chegara ao trono devido um golpe político. O dever ser de Janjão não deveria ter como meta

heróis brasileiros, mas heróis do velho mundo, o que mais uma vez explicita aquilo que

Roberto Schwarz chamou de ideias fora do lugar, o uso de ideologias, formas que aqui

Page 79: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

79

chamamos de Contrato por uma sociedade que em sua essência negava a liberdade e a

igualdade. A forma do herói é importada, sua essência nacional!

Ao Pai não importava a profissão que o filho escolhesse, desde que ele

conseguisse torna-se ―grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da

obscuridade comum.‖. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270) O pai diferencia o grande e o ilustre dos

notáveis, ambos jogam o mesmo jogo, mas nele brilham de forma diferente. Os primeiros

frequentam o paço, estão nas notícias, não vão ser esquecidos; os outros têm fama, mas

passageira, não passam despercebidos na rua e nas festas, os olhares e os cochichos os

acompanham, mas vão ser esquecidos. O mesmo conselho é dado por Bento Cubas ao filho

Brás:

Teme a obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por

diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros

homens. Não estragues as vantagens da tua posição, os teus meios... (ASSIS, 2008,

Vol. I, p. 662)

As vantagens da posição e os meios de Cubas, filho da elite, senhor proprietário,

não eram os mesmos de Janjão, bacharel, mas que fazia parte da classe média carioca. Cubas

sonhou em ser ministro, o pai de Janjão se contentaria com a notabilidade, o que limita os

sonhos de cada um são as diferentes e desiguais formas de acessos aos meios disponíveis de

subir na vida, disponíveis e compatíveis com a posição de um deles na vida social. Nas

relações clientelistas que pudessem estabelecer com outros em suas vidas Brás Cubas seria o

Senhor e o Janjão o Dependente, que combina a subserviência aos superiores na hierarquia

social e o autoritarismo com os pobres e dependentes.

A opinião dos outros vale mais que qualquer coisa e viver pela opinião dos outros

é renunciar a si mesmo para desenvolver a arte que diz que o importante não é o que você é,

mas o que você aparenta ser. Essa fórmula foi caracterizada por Buarque de Holanda como

um ―certo viver nos outros‖, que embora pareça que seja uma forma de aproximação é na

verdade um meio de criar barreiras entre as pessoas, pois, o outro incomoda tanto que é

preciso criar uma armadura de proteção, uma ―alma exterior‖, que ao mesmo que tempo que

isola as pessoas uns dos outros permitindo o exercício da indiferença social serve para fazer a

―alma interior‖ valer alguma coisa por meio de uma falsa aproximação e preocupação com a

opinião dos outros homens, só interessa a opinião de certos homens, os padrinhos e os

bajuladores, não de todos eles.

Page 80: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

80

Essa teoria aparece no conto, O espelho que narra a história de Jacobina cuja farda

de alferes, sua ―alma exterior‖, o seu lado inequivocamente social, aparece como o vencedor

da ―alma interior‖, em que residiria primeiro o ―homem‖, antes de ser dominado pelo

interesse de subir na vida e destacar-se dos demais. A mensagem da história é que ―o alferes

elimina o homem‖, mas a farda sem uma sociedade que a admire, sem seus bajuladores não

passava de uma moldura carcomida sem valor algum.

O Pai garante ao filho que melhor atitude na sua sociedade é não questionar e não

criticar a posição dos estamentos e das classes, é útil ser conservador e exercitar o não

questionamento, para não correr o risco de desagradar àqueles a quem não interessa a

interrupção da ―ordem‖ das coisas, pois, o ―rasgo peculiar do medalhão‖ é ―uma certa atitude

de deus Término‖, o Deus da imobilidade, da conservação, da não mudança. Na citação

abaixo, temos uma comparação entre a vida e a loteria, que isenta os homens de qualquer

culpa sobre sua realidade, ao mesmo tempo acaso e destino são usados como explicação para

aceitar a vida de forma passiva sem questionamentos, criticas e autocríticas.

- A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados

inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de

outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas

integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.

[Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)

Se a sociedade era escravocrata e a libertação dos escravos representa perigo ao

lucro dos Senhores, não existiriam motivos razoáveis para arriscar a estabilidade de uma

ordem que sustentava as elites desde as priscas eras coloniais, afinal nossa Escravidão era

doce, como diziam os defensores dessa imprescindível instituição do Brasil Imperial. Ou para

questionar o poder de nossos Senhores se era tão boa nossa elite ao ponto de acolher parentes

e dependentes pobres em seus sobrados e fazendas. Cada um cuide de seus percalços no

caminho da glória deixando que os outros arquem seus ônus sem incomodar.

Não basta ter dinheiro para torna-se Medalhão, mas sem dinheiro é quase

impossível que alguém consiga chegar a ser um, o Pai lembra ao filho: ―que é de boa

economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um

ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da

nossa ambição.‖ A forma concisa que importância de guardar dinheiro para velhice aparece

no conto resume com muito desdém o que em outro célebre conselho Benjamin Franklin leva

Page 81: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

81

alguns parágrafos para dizer.23

Lembrando que o planejamento não fazia mesmo parte da

forma como os brasileiros viviam sua vida, somos os Aventureiros como nos chamou Sergio

Buarque.

Ambição do Pai é imposta ao filho como forma de remediar sua frustração por ele

mesmo não ser Medalhão, nem mesmo teve a experiência de ser um notável, assim atentemos

para o detalhe que aquilo está sendo ensinado não é fruto de sua experiência pessoal, da sua

vivência cotidiana, mas fruto de como ele compreendeu o Medalhão a partir de suas

impressões, do seu convívio próximo ou não de alguns Graves que ele conheceu e

principalmente daquilo que ele ―ouviu dizer‖, nas ruas, nos bailes, nas anedotas, enfim no

imaginário social dominante.

Antes de avançarmos nos segredos, observemos que a escolha da maioridade para

revelação desses segredos pode ser uma alusão a própria maioridade do Imperador, antecipada

por um golpe, mas que na verdade entrou para história oficial e para o imaginário coletivo

como uma obediência ao direito e a maturidade do Imperador de assumir o poder com a

famosa frase: ―Quero já!‖. O diálogo entre pai e filho é um tipo de rito de passagem do

mancebo ao homem da polis, e por aqui ter sucesso na Ágora significa ser Medalhão.

A alusão ao Imperador também reaparece na referência a idade ideal para se

tornar um completo Medalhão: quarenta e cinco anos.

- É verdade, por que quarenta e cinco anos?

- Não é, como podes supor, um limite arbitrário, filho do puro capricho; é a data

normal do fenômeno. Geralmente, o verdadeiro medalhão começa a manifestar-se

entre os quarenta e cinco e cinquenta anos, conquanto alguns exemplos se dêem

entre os cinquenta e cinco e os sessenta; mas estes são raros. Há-os também de

quarenta anos, e outros mais precoces, de trinta e cinco e de trinta; não são, todavia,

vulgares. Não falo dos de vinte e cinco anos: esse madrugar é privilégio do gênio.

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271)

Uma hipótese para a idade ideal de um Medalhão ser quarenta e cinco anos é o

fato que foi por volta dessa idade que a barba de D. Pedro II começou a embranquecer,

herança de família, pois, os Bragança ficavam grisalhos bem jovens. Mas essa passagem da

idade guarda outra coisa bem interessante, o Pai faz questão de deixar claro o que ele diz

sobre a idade não tem como fundamento o puro capricho. Será mesmo que não? Afinal, a

23

Conselho de Benjamin Franklin citado por Weber na Ética Protestante.

Page 82: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

82

própria conversa não é um capricho do Pai? A advertência também vale para pensarmos

quantas vezes esse Pai já impôs ao filho suas verdades vindas do capricho?

Afinal de contas entre nós o capricho e a vontade do mais forte na relação de

poder sempre valem mais que até mesmo a vida do outro. Lembremos os caprichos de Brás

Cubas, aliás, o Brás que Schwarz nos apresentou é um sujeito caprichoso e volúvel que por

força da sua condição de senhor impõe aos outros suas vontades e os fazem dançar ao som da

música que ele tocar.

Num clima de imposição açucarada o Pai continua incutindo no filho várias ideias

e dicas de como ir galgando seu caminho para longe da obscuridade, para que pudéssemos

trabalhar com tantas informações de forma mais segura propomos três pacotes de imagens que

vamos chamar de os três Segredos do Medalhão, são eles: a) O regime do aprumo e do

compasso b) A arte de pensar o pensado c) Compra um carneiro e da-o aos amigos. Vamos a

cada um deles isoladamente, mas fazendo a ressalva que eles só podem ser entendidos de

forma complexa, sistêmica e dialógica.

Page 83: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

83

3.1 O regime do aprumo e do compasso

Se fizermos uma enquete rápida com pessoas nas ruas de Fortaleza sobre que

imagem lhe vem à cabeça quando lhe pedimos para falarem sobre os ocupantes dos cargos

públicos no Brasil, não seria espantoso se muitos se referissem aos paletós, aos gestos

perfilados, aos tapinhas nas costas; alguém até poderia dizer que quem já viu um deputado já

viu todos, pois, parecem que todos seguem o mesmo figurino, o mesmo compasso, a mesma

coreografia. Coreografia que tem na gravidade seu ponto de equilíbrio, que Machado de Assis

nos apresenta como o regime do aprumo e do compasso. O medalhão é antes de tudo um

grave e esse será o tema da presente seção.

O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do

Medalhão. Não confundas essa gravidade com aquela outra que, embora resida no

aspecto, é um puro reflexo ou emanação do espírito; essa é do corpo, tão-somente do

corpo, um sinal da natureza ou um jeito da vida. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 270)24

O regime do aprumo e do compasso é a máscara do Medalhão, a ―bandeira dos

neutros em tempo de guerra: salva do exame a carga que cobre.‖ (Bodas de Luiz Duarte); é o

cultivo do ar pesadão, na busca por decorar as composturas e posturas sociais. Ser um grave é

compreender a linguagem corporal da ―cordialidade‖, é saber encenar o como olhar; falar;

calar; vestir-se com esmero à moda europeia e abandonar modos e hábitos não condizentes

com os manuais de etiqueta ingleses e franceses habilmente imitados pelas elites do Brasile de

então.

Um grave sabe ficar calado para simular circunspecção; comportar-se nos

jantares, na presença dos poderosos e não importuná-los; sabe arquear os braços com graça ao

usar imagens gregas num discurso seja ele no parlamento, ao piano, no Alcazar Lírico, nos

velórios ou na União dos Cabeleireiros.

24 O sábio citado pelo pai é o moralista francês Duque de La Rochefoucauld (1613-1680), autor do livro

Reflexões ou sentenças e máximas morais, de 1664.

Page 84: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

84

Faoro nos explica a função dessa gravidade na vida brasileira e como Machado

consegue perceber como ela aparece diluída por toda sociedade, como uma segunda verdade,

que serve ao mesmo tempo como escudo e estandarte no jogo social das aparências:

[...] nos seus trajes e na sua elegância, dão nota da pretensiosa classe média do

tempo. Casa arrumada, vacuidade intelectual, gravidade artificial de maneiras, estão

aí para caracterizar toda uma espécie. A gravidade do corpo – não o ―puro reflexo ou

emanação do espírito‖[...] – servirá de adorno a uma reputação sem alcance. [...]

requisito primeiro para a nomeada pública. [...] Instrumento único para duas

funções: o acatamento incolor das reuniões caseiras e a projeção maquiavélica no

alto mundo. O escritor percebe o fundo comum e o acentua sutilmente. Ambos os

círculos ostentam, na sua segunda verdade, na verdade para uso exterior e moeda de

troca, a falsidade íntima de toda a sociedade, seu pecado secreto. O moralismo põe,

em todas as ocasiões, no sarcasmo e na aparente seriedade, as garras de fora. Todos

são vítimas, atores e autores, do pomadismo (P.A O segredo do bonzo), teoria que

modela a vida social e espreita as consciências, com o riso torto nos lábios, no

retrato caricatural das personagens e na correção da casaca. [Grifos Meus] do autor

(FAORO, 2001, p.298)

Ao jogar luz sobre o grave, o moralista denuncia a artificialidade das maneiras e

das formas sociais importadas denuncia uma sociedade que está sempre fingido ser algo que

não é, que busca o ouro, mas se contenta com o dourado, criando um jogo onde a casaca

esconde as intenções secretas dos interesses dos homens por baixo dos títulos e comendas.

Agora é Machado de Assis que nos explica melhor a gravidade. A passagem é do

conto as Bodas de Luiz Duarte, de 1873 e republicado no Histórias da Meia Noite, temos aqui

uma cena que expõe esse modo de coreografia social a que Faoro se referiu:

José Lemos correu a abraçar o Dr. Valença; mas este que era homem formalista e

cerimonioso, repeliu brandamente o amigo, dizendo-lhe ao ouvido que naquele dia

toda a gravidade era pouca.

Era ele homem de seus cinquenta anos, nem gordo nem magro, mas dotado de um

largo peito e um largo abdômen que lhe davam maior gravidade ao rosto e às

maneiras. O abdômen é a expressão mais positiva da gravidade humana; um homem

magro tem necessariamente os movimentos rápidos; ao passo que para ser

completamente grave precisa ter os movimentos tardos e medidos. Um homem

verdadeiramente grave não pode gastar menos de dois minutos em tirar o lenço e

assoar-se. O Dr. Valença gastava três quando estava com defluxo e quatro no estado

normal. Era um homem gravíssimo. Insisto neste ponto porque é a maior prova da

inteligência do Dr. Valença. Compreendeu este advogado, logo que saiu da

academia, que a primeira condição para merecer a consideração dos outros era ser

grave; [...] Podia-se dar uma boa gratificação a quem descobrisse uma ruga na

casaca do Dr. Valença. O colete tinha apenas três botões e abria-se até ao pescoço

em forma de coração. Um elegante claque completava a toilette do Dr. Valença.

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 178-179)

Page 85: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

85

Temos no trecho um retrato do Grave com seus gestos lentos, indumentária

impecável e largo abdômen. A casaca e os vestidos de festa eram a alma exterior do Medalhão

e de sua Consorte, a atenção ao detalhe da não existência de uma só ruga na roupa mostra

como o cuidado com a elegância é fundamental para as convenções sociais. No conto

―Ernesto de Tal‖, o personagem deixar de participar de um evento social por não possuir uma

casaca o cúmulo do constrangimento social numa sociedade na qual os ministros tinham

fardões ricamente confeccionados.

No conto ―Visita de Alcebíades‖, temos uma completa descrição da moda

masculina no século XIX, no conto um homem narra que foi obrigado a vestir-se para ir a um

baile tendo como espectador o grego Alcebíades que com muita ironia analisava e desdenhava

da sua indumentária. O visitante da Antiguidade chamou-lhes as calças de canudos pretos e

achara o preto uma cor feia para usar em roupas. ―— Feia, mas séria, disse-lhe. Olha,

entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e

trabalhado com muita perfeição.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p.332)

No Brasil, os sapatos sempre foram símbolo de poder e glamour, lembremos que

os escravos não usavam sapatos, seu uso era privilégio dos homens livres, artigo de luxo que

brilhava nas vitrines da rua do Ouvidor, quanto mais caros os sapatos mais respeitados eram

os homens diz Machado: ―Mais de um não olha para suas ideias com a mesma satisfação com

que olha para suas botas. [...] a bota é a metade da circunspecção, todo caso é a base da

sociedade civil...‖( ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1245)

O narrador do conto continuou a vestir-se, atou a gravata, colocou a casaca e

ouviu do visitante grego que disse-lhe consternado:

— Por Afrodite! exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na

morte. Estás todo cor da noite — uma noite com três estrelas apenas —

continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar

imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste.

Nós éramos mais alegres; vivíamos... (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 332)

A melancolia é um dos traços, segundo um pensamento hegemônico no século

XIX, que fazia parte da formação dos brasileiros, uma característica da nossa ―raça‖ híbrida,

mas que na verdade era originário dessa formação social na qual não existia condições de

objetivas e subjetivas que garantissem a felicidade e o bem estar da maioria da população. O

Page 86: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

86

conto termina com Alcebíades desmaiando quando o homem completa sua armadura social ao

colocar o chapéu uma última ironia sobre os trajes do tempo:

— Oh! venha alguma coisa que possa corrigir o resto! tornou Alcibíades com voz

suplicante. Venha, venha. Assim pois, toda a elegância que vos legamos está

reduzida a um par de canudos fechados e outro par de canudos abertos (e dizia isto

levantando-me as abas da casaca), e tudo dessa cor enfadonha e negativa? Não, não

posso crê-lo! Venha alguma coisa que corrija isso. O que é que, falta, dizes tu?

— O chapéu.

— Põe o que te falta, meu caro, põe o que te falta.

Obedeci; fui dali ao cabide, despendurei o chapéu, e pu-lo na cabeça. Alcibíades

olhou para mim, cambaleou e caiu. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 333)

Um texto de 1878 publicado na revista O Cruzeiro, por Machado de Assis, usando

o pseudônimo de Eleazar nos traz uma última ilustração da importância dessa elegância na

vida social e sobre o que ele representava. O texto se chama Filosofia de um par de botas, um

homem ao digerir seu almoço na praia acaba por presencia um par de botas velho filosofava

sobre sua vida na beira da praia. Elas diziam que o melhor período de suas vidas foi quando

foram compradas pelo Dr. Crispim um homem que não andava muito a pé, não dançava e

passava boa parte do dia jogando o voltarete, sempre andava de carro e trocava de sapatos

sempre. À medida que iam envelhecendo, iam sendo dadas a alguém mais pobre que o dono

anterior até terminarem abandonadas na praia e depois apanhadas por um mendigo que por ali

passava descalço. Mas antes de serem apanhadas elas são portadoras de uma verdade:

Bota esquerda – Não reparaste que, à medida que íamos envelhecendo, éramos

menos cumprimentadas?

Bota Direita – Talvez.

Bota Esquerda – Éramos, e o chapéu não de engana. O chapéu fareja a bota...

(ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1245)

Page 87: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

87

3.2 A arte de pensar o pensado

Alguns costumam renovar o sabor de uma citação

intercalando-a numa frase nova, original e bela, mas não

te aconselho esse artifício: seria desnaturar-lhe as graças

vetustas. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 272)

Pensar o pensado é arte mais cara ao Medalhão, aquele que a domina e sabe usá-la

evita muitos dissabores em sua vida, pois, protege do perigoso ato de ter ideias próprias, que

leva ao risco de criar novas relações e possibilidades de vida que podem chocar e se chocar

contra o que é socialmente legitimado.

- Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas

ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter

absolutamente; coisa que entenderás bem, imaginando, por exemplo, um ator

defraudado do uso de um braço. Ele pode, por um milagre de artifício, dissimular o

defeito aos olhos da platéia; mas era muito melhor dispor dos dois. O mesmo se dá

com as ideias; pode-se, com violência, abafá-las, escondê-las até à morte; mas nem

essa habilidade é comum, nem tão constante esforço conviria ao exercício da vida.

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271)

As ideias uma vez nascidas devem ser abafadas, mas o melhor é cuidar para que

não apareçam, ou seja, quanto menos a reflexão for exercitada, mais fácil será o ofício. O

homem deve gastar suas opiniões e sua capacidade de reflexão com sapatos, casacas e

chapéus, sempre de forma eloquente e elegante.

A retórica e a eloquência que aos gregos servia como meio para buscar a

imortalidade para os medalhões são armas para enganar, ludibriar, convencer aos outros que

uma ideia que beneficia unicamente a quem a defende é de interesse público. É a aplicação de

uma fórmula criada por um velho Bonzo que diz: ―se uma coisa pode existir na opinião, sem

existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é que das duas

existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas

conveniente.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 303) A retórica praticada como a arte da enganação é

o fundamento dessa doutrina e seus adornos são velhas fórmulas consagradas pelo imaginário

coletivo.

Janjão é portador da inópia mental necessária ao desenvolvimento da arte por sua

habilidade de repetir sem refletir numa sala as ideias ouvidas numa esquina e vice versa, mas

pela forma como discorria verborragicamente e perfilado sobre futilidades e coisas inúteis.

Page 88: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

88

- Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental,

conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que

repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato,

posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição

da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender

francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das

dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma

eloquente, eis aí uma esperança, (ASSIS, 2008, Vol. II, p.271)

O vulgo sabe distinguir o Medalhão completo do incompleto por essa capacidade

que o Medalhão tem de dizer sempre as mesmas coisas, de falar de futilidades e frivolidades

como tamanha circunspecção e garbo que as faz parecer importantes e dignas de um discurso

tão bem elaborado. Mas o que fazer para não ter ideias?

O pai sugere que o filho siga um ―regime debilitante‖ lendo compêndios de

retórica, ouvindo certos discursos, jogando o voltarete, o dominó, o whist e o bilhar ou

caminhando pelas de ruas de recreio e parada, em resumo sempre buscar a companhia de

outros, não por pretender que eles lhe acrescentem algo novo, mas com o fim de evitar a

solidão que é oficina de ideias.

Porém, duas dessas atividades tem melhor resultado, elas estão diretamente

relacionadas ao oficio de Medalhão: ―O whist tem até a rara vantagem de acostumar ao

silêncio, que é a forma mais acentuada da circunspecção.‖ e o bilhar, pois, ―as estatísticas

mais escrupulosas mostram que três quartas partes dos habituados do taco partilham as

opiniões do mesmo taco.‖ (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 271)

Outra forma de exercitar o pensar o pensado é não ler, mas sempre tendo o

cuidado de ir às livrarias para ser visto, catar uma ou duas ideias lançadas ou simplesmente

para:

[...] falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma

calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar

diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; setenta e cinco por

cento desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal

monotonia é grandemente saudável. [...] Não trato do vocabulário, porque ele está

subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado,

sem notas vermelhas, sem cores de clarim... (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 272)

Hoje em tempos de games, redes sociais, BBB, esportes ao vivo na TV, indústria

cultural ficou bem mais fácil reduzir o intelecto, acostumar-se ao silêncio e ao mesmo tempo

compartilhar milhões de futilidades e opiniões dos amigos. Como ficou mais fácil encontrar

frases prontas, ideias alheias e dizer que elas são suas e de forma tão rápida e eficiente que

poucos vão mesmo atrás de saber se você leu o livro todo ou resumo no Google. Frequentar

Page 89: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

89

livrarias para ser visto, conversar amenidades ou ouvir opiniões sobre coisas que não levem a

reflexão das contradições cotidianas, tudo é válido na busca pela saudável monotonia.

Monotonia que se estendia à vida política e social no Brasil. Numa crônica de 29

de maio de 1892 mostra os resultados dessa falta de ideias, dessa aversão ao debate:

Ora, é certo que nós não damos para reuniões. Não me repliquem com teatros

nem bailes; a gente pode ir ou não a eles, e se vai é porque quer, e quando

quer sair, sai. Há os ajuntamentos de rua, quando alguém mostra um assovio

de dois sopros, ou um frango de quatro cristas. Uma facada reúne gente em

torno do ferido, para ouvir a narração do crime, como foi que a vítima vinha

andando, como recebeu o empurrão, e se sentiu logo o golpe. Quando algum

bonde pisa uma pessoa, só não acode o cocheiro, porque tem de evadir-se;

mas todos cercam a vítima. Há dias, na Rua do Ouvidor, um gatuno agarrou

os pulsos de uma senhora, abriu-lhe as pulseiras, meteu-as em si, e fez como,

os cocheiros. Mas não faltaram pessoas que rodeassem a senhora, apitando

muito.

Tudo por quê? Porque são atos voluntários, não há calendários, nem relógio,

nem ordem do dia; não há regimentos. O que não podemos tolerar é a

obrigação. Obrigação é eufemismo de cativeiro: tanto que os antigos escravos

diziam sempre que iam à sua obrigação, para significar que iam à casa dos

senhores. Nós fazemos tudo por vontade, por escolha, por gosto; e, de duas

uma: ou isto é a perfeição final do homem, ou não passa das primeiras

verduras. Não é preciso desenvolver a primeira hipótese; é clara de si mesma.

A segunda é a nossa virgindade, e, quando menos em matéria de amofinações

políticas ou municipais, é preciso aceitar a teoria de Rousseau: o homem

nasce puro. Para que corromper-nos? (ASSIS, 2008, Vol. IV, p. 892)

A comparação da ausência da prática da política na vida cotidiana no Rio de

Janeiro ao estado de Natureza de Rousseau no qual o homem ainda não tinha sido corrompido

e, portanto não precisava preocupar-se com política, estratégias de defesa e conflitos pela

propriedade é desconcertante pela intensidade e sofisticação do argumento. O cronista é tão

zombeteiro e sarcástico quanto o contista. A fuga do cocheiro do bonde que como o ladrão

erra e foge mostra que a indiferença é diluída na sociedade que é por si mesma totalmente

corrompida. Em 1901, Machado de Assis contava ao amigo Veríssimo a seguinte anedota que

ilustra bem nosso argumento

[...] Foi no tempo da Constituinte, que se reunia no palácio de São Cristovão. Uma

vez, indo eu para lá, encontrei no bonde um membro daquela assembléia, que me

falou queixoso, aborrecido, zangado com a estafa e morto por que acabasse a

Constituição e voltassem as câmaras para baixo. Eu refleti comigo que, se para

fundar um regime, não havia da parte de alguns paciência bastante, pouca haverá

para outras obras menos relevantes. [...] (ASSIS, 2008, Vol. III, p. 1380)

Se não há paciência para pensar e refletir a política e reinventar a vida o que resta

ao Medalhão? As frases feitas, as fórmulas consagradas, as mesmas ideias já pensadas para

Page 90: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

90

uso em discursos à mesa, ao túmulo, para agradecer ou felicitar: ―de fórmulas consagradas

pelos anos, incrustadas na memória individual e pública. Essas fórmulas têm a vantagem de

não obrigar os outros a um esforço inútil.‖ Melhor do que fazer um grande esforço para mudar

uma lei éter que discutir, analisar, refletir o Pai aconselha ao filho a simplesmente dizer por

piedade aos seus semelhantes ―Antes das leis, reformemos os costumes! - E esta frase

sintética, transparente, límpida, tirada ao pecúlio comum, resolve mais depressa o problema,

entra pelos espíritos como um jorro súbito de sol.‖

De todas as imagens gregas e latinas que poderia usar Machado de Assis escolheu

quatro para ilustrar a fala do pai ―A hidra de Lerna, a cabeça de Medusa, o tonel das

Danaides, as asas de Ícaro, [...]‖Ao analisar essas citações mitológicas escolhidas por

Machado, Montesini aponta para o fato o qual elas possuem um mitema comum e guardam

uma lição preciosa:

A nosso ver, a reunião das citações mitológicas no parágrafo do texto machadiano

induz a uma reflexão sobre os conselhos do pai de Janjão, pois foi mostrado pelos

mitos, por um lado, que a sabedoria e a inteligência vencem. Por exemplo, apesar de

Hércules ser muito forte, é pela inteligência que ele vence a Hidra de Lerna; o

mesmo acontece com Perseu, que somente derrotou Medusa pelo estratagema

ensinado pelos deuses. Outra forma de ironia consiste na seleção de personagens

mitológicos que perderam a cabeça. Acreditamos que seja um emprego irônico, pois

o pai de Janjão o aconselha a agir de forma a ―vencer na vida‖, mas tornando-se uma

pessoa sem vontade, sem inteligência, sem vocabulário, como ficaram a Hidra, a

Medusa, e os maridos das Danaides que tiveram as cabeças decepadas. Ícaro, por

sua vez, não teve juízo ou, popularmente falando, não teve ―cabeça‖ e acabou

perdendo a vida por isso. (MONTESINI, 2003 p.334)

A autora nos sugere outra interessante interpretação sobre o significado do Mito

de Ícaro para esse conto:

Preste atenção, Ícaro. Quando você se lançar ao ar, Não voe muito baixo, ou a água

molhará as penas desta asa e elas pesarão e você cairá. E não voe muito alto, ou o

calor do sol as queimará. Fique sempre no meio termo. E mais uma coisa, Não se

iluda pensando que é uma estrela ou constelação, Siga a minha orientação!

(OVÍDIO apud MONTESINI, 2003 p.334)

A prudência é outra arma numa sociedade onde o poder pessoal e os caprichos

ditam as normas todos os cuidados são pouco para não desagradar, lembremos Capitu que

sabia que a melhor forma de uma pessoa como ela vencer na vida era aos saltinhos. Quem

tenta quebrar as distâncias sociais de forma abrupta tem o mesmo destino de Ícaro que

esqueceu os conselhos do pai e voou tão alto que os raios do sol amoleceram a cera mantinha

as penas de suas asas unidas e elas se dissolveram, levando Ícaro a cair e morrer afogado. O

Page 91: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

91

grande Medalhão sabe manter-se no limite da invejável vulgaridade, sabe apropriar-se da

denominação das terminologias Modernas, mas cuidando de não tentar meditá-las e jamais

aplicá-las. O filho pergunta ao pai:

- Vejo por aí que vosmecê condena toda e qualquer aplicação de processos

modernos.

- Entendamo-nos. Condeno a aplicação, louvo a denominação. O mesmo direi de

toda a recente terminologia científica; deves decorá-la. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.273)

Janjão é bacharel, sendo assim conhecia o pensamento Moderno que reforçado

pelo conselho do pai continuou ser mero instrumento de construção de uma falsa imagem de

homem Moderno, cidadão, participante de um contrato entre iguais, pensamos igualdade

como a pensou Tocqueville, como condições iguais de exercício das liberdades. Os valores do

mercado, do contrato e seus arautos não passam de nomes dourados para enfeitar a sala e

impressionar as visitas, servem ao Medalhão meramente para ser metido num debate sobre

frivolidades ou questões sociais desde que deixe nos ouvintes um pontinha de inveja por tanta

sabedoria. O uso dessa terminologia deve ser comedida e com esperteza como a costureira

esperta e afreguesada que: ―Quanto mais pano tem, mais poupa o corte, Menos monte

alardeia de retalhos; e este fenômeno, tratando-se de um medalhão, é que não seria científico.‖

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 273)

A costura dessas ideias importadas, de todo o nosso arsenal de verdades vindas de

uma realidade tão distantes e diferentes das nossas com a nossa colonial cultura e estrutura

patriarcal causavam um complexo desconcerto ideológico e social que para Schwarz é o fio

de Ariadne que pode nos conduzir nesse labirinto que é a obra de Machado de Assis.

Embora as ideias fora do lugar permeiem todos os espaços da vida brasileira nos

limites que acabamos de explicar o campo privilegiado para acompanharmos seu desenrolar é

a vida política. O medalhão não deve ter convicções e paixões partidárias, deve usar o partido

como o scibboleth bíblico, uma senha que lhe garanta o acesso ao convívio com os poderosos.

Não importa ser liberal, conservador ou republicano desde que essas palavras sejam simples

meios de gozar da atenção pública.

O mesmo ocorre quanto aos discursos eles devem ser pensados, como forma de

chamar a atenção, provocar os apartes, as réplicas e tréplicas. Os discursos podem ser sobre

os negócios miúdos ou metafísica política

[...] Os negócios miúdos, força é confessá-lo, não desdizem daquela chateza de bom-

tom, própria de um medalhão acabado; mas, se puderes, adota a metafísica; - é mais

fácil e mais atraente. Supõe que desejas saber por que motivo a 7ª companhia de

Page 92: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

92

infantaria foi transferida de Uruguaiana para Canguçu; serás ouvido tão-somente

pelo ministro da guerra, que te explicará em dez minutos as razões desse ato. Não

assim a metafísica. Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os

partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obriga a pensar e

descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos humanos tudo está achado, formulado,

rotulado, encaixotado; é só prover os alforjes da memória.(ASSIS, 2008, Vol. II p.

275)

Faoro nos explica melhor sobre a aplicação do pensar o pensado aos discursos no

parlamento, o mais impressionante na passagem é que a crítica ainda faz muito sentindo se a

aplicarmos a boa parte dos discursos que ouvimos nas tribunas contemporâneas.

[...] Os oradores ocupam a tribuna, com solenidade e circunspecção, para dizer

coisas triviais ou para vôos que o autor qualifica metafísicos. Há os dois extremos e

os dois estilos: o terra-a-terra, que discute o orçamento e as nomeações, e a águia,

que não se preocupa com as moscas. João Brás (H.S.D.) ‗fez discursos bons, não

brilhantes, mas sólidos, cheios de fatos refletidos‖, [...] Do mesmo estofo era a

oratória de Lobo Neves, agarrada ao orçamento e aos fatos, preocupada com os

cabos eleitorais e os chefes políticos de paróquia (M.P. CXXVIII e LVIII). Brás

Cubas está no outro lado: parte do fato miúdo para se erguer à filosofia e à literatura.

Até aos cinquenta anos cortejava a cobiçada pasta ministerial, com o jogo sem

brilho: ―rapapés, chás, comissões e votos‖. Apoderava-se da tribuna para fazer o

nome consagrado, e elege, a propósito da barretina da Guarda Nacional, o debate

alto, intangível aos rasteiros cuidados dos cortejadores do fardão ministerial, os de

passo miúdo e cauteloso (M.P. CXXXVII). O trivial e o sublime se misturam,

confundindo os dois gêneros de oratória do tempo, com o predomínio do estilo dito

filosófico. [...] O conteúdo trescala liberalismo, em forma de sátira, a tese verdadeira

do discurso, armado sobre um problema ínfimo. A miniatura inchada, a citação sem

propósito, o enxerto literário e filosófico a propósito de quase nada – esta a crítica

oratória parlamentar. (FAORO, 2001, p.188-189)

Ainda analisando o tema Faoro diz que ao contrário do que pensa o Pai de Janjão

os negócios miúdos também põem fogo no parlamento e inflamam as paixões a tal ponto que

de uma simples demissão de coletores de impostos pode gerar monções que derrubam

ministérios. (Cf. FAORO, 2001, p.190) Assim concluímos essa seção com a sensação de que

apesar das mudanças dos temas a forma dos discursos pouco mudou nos últimos cento e

cinquenta anos pintando em novas cores a velha invejável vulgaridade.

Page 93: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

93

3.3 Compra um carneiro e dá-o aos amigos

[...] Dessa maneira o nome fica ligado à pessoa; os que

houverem lido o teu recente discurso (suponhamos) na

sessão inaugural da União dos Cabeleireiros,

reconhecerão na compostura das feições o autor dessa

obra grave, em que a "alavanca do progresso" e o "suor

do trabalho" vencem as "fauces hiantes" da miséria.

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 274)

Se compararmos o medalhão a um ator, podemos dizer que a gravidade é sua

expressão corporal, a casaca seu figurino, a arte de pensar o pensado seu texto e qual seria o

seu cenário, o seu palco? O parlamento, as livrarias, os bares, as esquinas servem muito bem,

mas não há palco melhor e mais propício para um medalhão do que um jantar.

Os jantares, os bailes, os saraus, as festas sempre aparecem na obra de Machado

de Assis como lugar de encontros dos que compartilham ou fingem compartilhar das mesmas

ideias refinadas e gostos europeus, lugar para fazer alianças, casamentos, homenagear ilustres

ou a si mesmos, numa linguagem mais atual para conseguir aumentar seu networking de

favores.

Nos jantares é possível combinar a gravidade, a elegância, a retórica e a

publicidade. De acordo como Pai quase medalhão a publicidade é ―uma dona loureira e

senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas

miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição.‖

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 273)

A constância ao invés do atrevimento relembra o conselho do Dédalo a Ícaro de

que todo cuidado é pouco para não infringir as distâncias pré-estabelecidas, de não parecer

ambicioso, numa linguagem mais coloquial como dizem no interior do Ceará, de não ―querer

ser o que não pode‖. O melhor alvitre é bajular, mimar, esperar a hora certa. A glória não cai

do céu, o Medalhão tem que lutar para fugir da obscuridade e ser lembrando, convidado,

consultado, não por ações heróicas, mas por outros caminhos:

Que D. Quixote solicite os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um

sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política.

Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um

carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser

Page 94: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

94

indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe

o teu nome ante os olhos do mundo. (ASSIS, 2008, Vol. II, p. 273)

Na ―tribo‖ dos Medalhões um jantar para os amigos é melhor caminho que as

ideias científicas à glória e a nomeada, o medalhão ganha sustento, se legitima socialmente e

torna-se fórmula de sucesso público.

[...] Por motivo de casamento, aniversário, batizado, sem nenhum motivo, o

funcionário aposentado, o militar reformado, o pequeno comerciante promovem

festas e jantares. A nota expressiva dos encontros cabe às pessoas, nos seus trajes e

na sua solenidade, e às ideias, extravasadas em tom oratório, a pretexto de brindes.

As pessoas e as ideias formam a classe média, com suas esperanças ingênuas e sua

cultura de terceira mão, enfeitada de mau gosto. (FAORO, 2001, p.302)

A política do Medalhão não se faz pela cabeça, mas pelo estômago, afinal em

boca fechada não entra mosca e nada melhor que uma mesa farta para manter as bocas

ocupadas com algo menos perigoso que ideias. Em um país onde a fome da maioria da sua

população é um dado quase estrutural, onde a produção de alimentos não era feita em massa e

os preços dos insumos eram muito altos, a mesa farta era sinal de riqueza.

As mesas de jantar dos sobrados como não eram tão grandes quanto as mesas das

Casas Grandes e bem maiores talvez do que a que ocorreu o jantar de Janjão, o tamanho da

mesa define o prestígio do dono da casa. Uma mesa grande que possa receber uma seleta, mas

não pequena sociedade é o lugar onde o Medalhão brilha. Na digestão o pensamento fica mais

lento e tudo que alguém escuta vira obra prima, uma boa compota adoça o mais amargo

discurso.

Com os ouvintes empapuçados de peru, as fórmulas feitas ganham ar de

genialidade e penetram pelos ouvidos daqueles que as repetirão no jantar do dia seguinte ou

da próxima semana. Medalhões verdadeiros têm sempre a agenda cheia de convites e sempre

gozam da presença de outros notáveis em sua mesa.

O prato escolhido pelo Pai para o jantar foi o carneiro, que pode ser servido

cozido com legumes. Para Da Matta, o cozido é um prato sagrado na culinária brasileira,

opinião que partilhamos, nele ―[...] temos o alimento que junta vegetais, legumes e carnes

variadas num prato que tem peso social muito importante, pois que inventa a sua própria

ocasião social. Quando se come um cozido, não se come um prato qualquer‖.(MATTA, 1986,

p.54) O antropólogo afirma que os brasileiros têm preferência por pratos cozidos:

Page 95: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

95

[...] Do cozido à peixada e à feijoada. Da farofa ao pirão e aos molhos, guisados e

mexidos, às dobradinhas e papas. Parece que temos especial predileção pelo

alimento que fica entre o líquido e sólido, evitando — nessas grandes refeições onde

se celebram as amizades . — o assado, alimento que não permite a mistura. [...]

Assim, entre o sólido (que caracteriza o prato principal das comidas européias e

americanas) e o líquido, preferimos uma forma intermediária. O cozido é sólido e

líquido. Entre a carne e a verdura — que entram nos pratos europeus como comidas

principais e secundárias —, somos muito mais dados a uma ligação entre os dois.

[...] Temos, então, uma culinária relacional que expressa de modo privilegiado uma

sociedade igualmente relacional. Isto é, um sistema onde as relações são mais que

mero resultado de ações, desejos e encontros individuais; pois aqui entre nós elas se

constituem, em muitas ocasiões, em verdadeiros sujeitos das situações, trazendo

para elas o seu ponto de vista. Um ponto de vista, claro está, que sintetiza sempre as

posições de quem está engajado na própria relação. [...] Temos, então, na nossa

cozinha, na nossa comida e no nosso modo de comer, uma obsessão pelo código

culinário relacional e intermediário. Um código marcado pela ligação. [...] (

MATTA, 1986 p. 63)

E por que um carneiro? Talvez por ser uma carne de preço mais acessível ao Pai

de Janjão, anfitrião da festa, mas também podemos pensar que a imagem ilustra que no jantar

de medalhões, os mansos e inocentes são devorados pelos lobos e suas artimanhas. O carneiro

é qualquer um que não seja um Medalhão, qualquer um que sofra com as injustiças e falta de

oportunidades geradas pelo autoritarismo e indiferença das elites que comandam o país.

Muitos são os jantares famosos que saíram da pena machadiana escolhemos dois

deles para que tenhamos uma melhor compreensão do evento: o primeiro que lembro é o

jantar que o pai de Bento Cubas promove por ocasião da queda de Napoleão. A descrição do

jantar é exemplar para fundamentar nosso argumento.

Não se contentou a minha família em ter um quinhão anônimo no regozijo público;

entendeu oportuno e indispensável celebrar a destituição do imperador com um

jantar, e tal jantar que o ruído das aclamações chegasse aos ouvidos de Sua Alteza,

ou quando menos, de seus ministros. Dito e feito. Veio abaixo toda a velha prataria,

herdada do meu avô Luís Cubas; vieram as toalhas de Flandres, as grandes jarras da

Índia; matou-se um capado; encomendaram-se às madres de Ajuda as compotas e

marmeladas; lavaram-se, arearam-se, poliram-se as salas, escadas, castiçais,

arandelas, as vastas mangas de vidro, todos os aparelhos do luxo clássico. Dada a

hora, achou-se reunida uma sociedade seleta, o juiz de fora, três ou quatro oficiais

militares, alguns comerciantes e letrados, vários funcionários da administração, uns

com suas mulheres e filhas, outros sem elas, mas todos comungando no desejo de

atolar a memória de Bonaparte no papo de um peru. [Grifos Meus] (ASSIS, 2008,

Vol. I, p. 641)

Ansioso pela sobremesa o garoto Cubas que fitava o pai e as compotas sabia que o

velho Cubas não lhe dava mínima só se importava com o sucesso de seu jantar e a satisfação

de seus convivas, e aproveitando o momento para admirar a ponta de seu nariz e ver apenas a

si mesmo em pleno gozo da glória e da nomeada.

Page 96: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

96

Meu pai, à cabeceira, saboreava a goles extensos a alegria dos convivas, mirava-se

todo nos carões alegres, nos pratos, nas flores, deliciava-se com a familiaridade

travada entre os mais distantes espíritos, influxo de um bom jantar. Eu via isso,

porque arrastava os olhos da compota para ele e dele para a compota, como a pedir-

lhe que ma servisse; mas fazia-o em vão. Ele não via nada; via-se a si mesmo.

[Grifos Meus] (ASSIS, 2008, Vol. I, p. 642)

No conto Dona Benedita, temos outro jantar famoso:

São seis horas da tarde; a mesa da família está ladeada de parentes e amigos, em

número de vinte ou vinte e cinco pessoas. Muitas dessas estiveram no jantar de

1868, no de 1867 e no de 1866, e ouviram sempre aludir francamente à idade da

dona da casa. A alegria dos convivas, a excelência do jantar, certas negociações

matrimoniais incumbidas ao cônego Roxo, aqui presente, e das quais se falará mais

abaixo, as boas qualidades da dona da casa, tudo isso dá à festa um caráter íntimo e

feliz. O cônego levanta-se para trinchar o peru. D. Benedita acatava esse uso

nacional das casas modestas de confiar o peru a um dos convivas, em vez de o fazer

retalhar fora da mesa por mãos servis, e o cônego era o pianista daquelas ocasiões

solenes. Ninguém conhecia melhor a anatomia do animal, nem sabia operar com

mais presteza. Talvez, — e este fenômeno fica para os entendidos, — talvez a

circunstância do canonicato aumentasse ao trinchante, no espírito dos convivas, uma

certa soma de prestígio, que ele não teria, por exemplo, se fosse um simples

estudante de matemáticas, ou um amanuense de secretaria. Mas, por outro lado, um

estudante ou um amanuense, sem a lição do longo uso, poderia dispor da arte

consumada do cônego? É outra questão importante. O cônego, pela sua parte, com o

fim de apagar a lembrança do incidente, procurou generalizar a conversa, dando-lhe

por assunto a eleição do melhor doce. Os pareceres divergiram muito. Uns acharam

que era o de coco, outros o de caju, alguns o de laranja, etc. (ASSIS, 2008, Vol. II,

p. 289)

As duas cenas que nos ajudam a consolidar o argumento aqui desenvolvido de que

é nos jantares que os laços da cordialidade são tecidos numa mesa com amigos chegados

saboreando discursos e a si mesmos. Mas, nem só de pão vive o homem, e para ser aquele que

―corta o peru‖ existem outros modos de alcançar a publicidade que segundo o Pai de Janjão

pode ser de dois modos: uma ―publicidade constante, barata, fácil, de todos os dias

publicidade‖ que pode ser conseguida através das seguintes estratégias:

Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro,

têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam

mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de

pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua

pessoa. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.273)

A outra publicidade é a mais importante e mais duradoura, é a publicidade dos

bem nascidos:

Page 97: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

97

[...] Qualquer que seja a teoria das artes, é fora de dúvida que o sentimento da

família, a amizade pessoal e a estima pública instigam à reprodução das feições de

um homem amado ou benemérito. Nada obsta a que sejas objeto de uma tal

distinção, principalmente se a sagacidade dos amigos não achar em ti repugnância.

Em semelhante caso, não só as regras da mais vulgar polidez mandam aceitar o

retrato ou o busto, como seria desazado impedir que os amigos o expusessem em

qualquer casa pública. [...] No caso de que uma comissão te leve a casa o retrato,

deves agradecer-lhe o obséquio com um discurso cheio de gratidão e um copo

d'água: é uso antigo, razoável e honesto. (ASSIS, 2008, Vol. II, p.273)

Dependendo do sobrenome de alguém ou dos seus padrinhos suas forças e

recursos no xadrez de medalhões podem aumentar ou diminuir. Não esqueçamos que quando

menino Brás Cubas aprendeu de cor no nome do padrinho, expertise que deixava seu pai

cheio de orgulho. Por isso a publicidade da família é mais importante uma vez nascido numa

família de Medalhões a caminho da glória e da nomeada fica menos árido. As relações entre

os ricos sempre envolveram as decisões públicas mais importantes da vida social no Brasil, as

elites brasileiras ainda permanecem indiferentes as dores da maioria da população repetindo a

mesma estratégia de manter a pobreza em níveis que garantam a estabilidade social e suas

vidas de barões.

Algo que constata isso é a quantidade de jovens que foram eleitos, nas últimas

três eleições para deputado federal, estadual e vereadores no Ceará, pelo simples fato de

serem filhos de homens ricos que ocupam atualmente lugares no governo do estado, ao ponto

do deputado federal mais votado no Ceará em 2010 ser um ilustre desconhecido de 24 anos

que tem como cabo eleitoral o dinheiro do pai Medalhão. Sem esquecer todos tantos outros

filhos de políticos que não conseguiram ser eleitos, mas conseguiram um bom emprego em

algum órgão público.

Ainda demorando um pouco mais na última citação lembremos que para

conseguir que os amigos lhe façam homenagens um Medalhão precisa merece-lhes, mas como

vimos por não ter afeição ao heroísmo o meio que o lhe resta é ser benemérito, em outras

palavras sustentar uma vasta parentela, agregados, empregados, assessores uma corte de

bajuladores que quanto maior for maior será o cortejo nos dias de homenagens. E homenagens

devem ser sempre insufladas, realimentadas, se és objeto de uma não só agradeça, mas

retribua com a mesma benevolência aqueles que não cansam de agradecer a sua bondade. Que

não deve ser feita as escondias, mas anunciadas aos quatro ventos. Caridosos tudo bem, mas a

mão esquerda, deve sempre saber o que faz a direita. Vale lembrar que no fim da vida

Machado de Assis foi homenageado pelos seus pares da ABL com um retrato que antes se

ocupar o lugar que até hoje ocupa no salão nobre da academia à exposição no Museu

Page 98: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

98

Nacional de Belas Artes ironias da vida! No Brasil quem se destaca mesmo sem querer tem a

si atribuído o afago social de ser considerado ―ornamento indispensável, de figura obrigada,

de rótulo‖! Não podemos é claro confundir a justa homenagem a quem por merecimento de

seus esforços alcança a verdadeira glória da imortalidade, com as bajulações aos ricos e

poderosos referida no conto.

Medalhões são amigos de Medalhões e inimigo de amigo é inimigo mesmo que

por justiça não seja o amigo aquele que realmente mereceria o apoio devido, o que hoje

chamamos de tráfico de influências nada mais é que arte do medalhão sendo exercida, para

amigos tudo, para os inimigos a lei.

Convidarás então os melhores amigos, os parentes, e, se for possível, uma ou duas

pessoas de representação. Mais. Se esse dia é um dia de glória ou regozijo, não vejo

que possas, decentemente, recusar um lugar à mesa aos repórteres dos jornais. Em

todo o caso, se as obrigações desses cidadãos os retiverem noutra parte, podes ajudá-

los de certa maneira, redigindo tu mesmo a notícia da festa; e, dado que por um tal

ou qual escrúpulo, aliás desculpável, não queiras com a própria mão anexar ao teu

nome os qualificativos dignos dele, incumbe a notícia a algum amigo ou parente.

(ASSIS, 2008, Vol. II, p. 273) [Grifos Meus] Nossos

As colunas sociais cada vez mais têm seus espaços aumentados nos jornais da

capital cearense, mas em temos de Facebook, Twitter cada vez mais as pessoas usam essas

redes para se noticiar, falar de suas festas, viagens, conquistas pessoais e prêmios recebidos,

os medalhões contemporâneos têm milhares de seguidores, além do que os próprios repórteres

são eles mesmos candidatos a Medalhões, ou melhor, pensam que são, pois, já sabemos que

apesar de indispensáveis a casaca e as ideias pensadas sozinhas não fazem um medalhão.

Page 99: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

99

3.4 O Medalhão-Príncipe ou o Príncipe-Medalhão?

O final do conto guarda talvez as mais irônicas passagens escritas por Machado de

Assis. Por três aspectos, o primeiro é o fato de que exatamente no conto sobre o Medalhão

aparece a melhor definição saída da pena do escritor: ―[...] a ironia, esse movimento ao canto

da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano,

transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados.‖ Ora, o conto como

falamos ironiza o leitor e a sua sociedade em cada uma de suas linhas, a frase funciona como

advertência e faz o leitor retornar ao texto desconfiando das lições dadas pelo pai, sem saber

se deve ou não confiar naquelas lições, que parecem tão reais, mas logo deixam de ser, pois,

muitas leituras depois o leitor vai para as calendas gregas ao descobrir que foi enganado por

que ao invés de ensinamentos dignificantes o texto o lido não passa na verdade de uma grande

lição de charlatanismo em tom grave.

O segundo aspecto é o pai dizer ao filho para não ser irônico ao mesmo tempo

que a própria situação de um não medalhão ensinando o ofício é por si só irônica. Como

ensinar algo que não se sabe? Isso não é problema na sociedade que pensa o pensado. O pai

ordena ao filho que prefira a chalaça “- Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga,

gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala

como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios.‖

O grande mestre do humour sabe que a piada é o recurso do tolo, ao contrário do

sarcasmo inteligente do escritor que provoca no leitor ruminante o tal sorriso de canto de boca

discreto e mortal. O melhor é gargalhar, manter boca e mente ocupadas com piadas amenas,

anedotas e causos das vidas alheias, aliás, a prática de rir dos outros, de sua limitações e

dissabores é uso muito apreciado nas rodinhas entre os canapés e o capão.

O terceiro e último aspecto se refere à frase final do conto que diz ―Rumina bem o

que te disse meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de

Machiavelli. Vamos dormir. (ASSIS, 2008, Vol. II p. 270)‖ Ruminando tantas vezes a lições

do pai acabei chegando a seguintes questões: A conversa entre eles vale o Príncipe de

Maquiavel? A Teoria do Medalhão vale o Príncipe?

A conversa entre pai e filho vale e não vale a obra-prima do pensador florentino,

em primeiro lugar não vale por ser um absurdo que uma conversa que não durou nem uma

Page 100: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

100

hora completa valha os ensinamentos de uma obra tão complexa como é O Príncipe, mas não

só por isso.

O que Maquiavel pretendia com o livro além de conseguir um bom emprego, que,

aliás, não conseguiu, era ensinar aos príncipes e ao povo como disse Rousseau, como

funciona a política numa sociedade na qual a ética liberal é a ética hegemônica e princípios do

mercado a igualdade e a liberdade já contaminavam as relações sociais.

A virtú e a fortuna em nada se comparam ao arruído e a artificialidade das glórias

estéreis e fofas dos sonhos dos Medalhões brasileiros, nem a essa a habilidade de enfiar

citações entre a sobremesa e o café com vistas a agradar o benemérito que oferece o jantar

com vistas a conseguir que um dia ele caso seja preciso ele tenha a vontade de retribuir a

gentileza facilitando um contrato ou mediando uma aprovação em concursos.

O bem comum é central na construção da teoria política desenvolvida no Príncipe

em sentido oposto é a conversa do Pai de Janjão, para eles o que interessa é que o filho

consiga se dar bem na vida. O livro não é um manual para mentirosos, embora o Príncipe

tenha a prerrogativa de não cumprir suas promessas, ou parecer ser ao invés do ser, só devem

ser usada como forma de evitar a desestabilização do seu poder e não por pura malandragem.

O Príncipe não é o malandro, mas o Medalhão é! Afinal embora o Pai diga que

está ensinado como andar num caminho difícil na realidade, ele está ensinado como conseguir

por caminhos mais fáceis dissimular os valores tão caros a elite imperial. O velho segredo do

Bonzo. Honra, glória, imortalidade de pervertem em paixão a publicidade fácil, convites a

jantares e capacidade de conseguir empregos para parentes e amigos.

Chegamos ao cabo do capítulo respondendo ao segundo questionamento que

fizemos sobre se o conto de Machado vale o livro de Maquiavel. Vale é claro que vale, mas o

melhor é ler os dois, pois, só assim é possível ter um retrato mais amplo do que seria a

imagem do homem público brasileiro em nosso imaginário essa espécie de Principe-

Medalhão ou Medalhão-Príncipe caprichoso, sorridente, falando bonito e dizendo nada e

pouco confiável que anda muito distante de ser superada.

Page 101: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

101

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo o pensador contemporâneo, Josênio Parente, a sensação de igualdade e

liberdade proporcionada pela sociedade de mercado somente agora ao chegar às massas

conseguiu contaminar as relações sociais ao ponto de que a ética liberal já tenha contaminado

completamente a vida social cotidiana.

Para o professor, a ética cristã, o medo de Deus e o respeito ao Capricho do

Senhor e do Coronel enfim foram substituídos pela ética do Mercado, o Medo do Estado e o

respeito à lei. Enfim, está completa nossa revolução burguesa e, quem diria feita pelas mãos

de um operário! Eis outra ironia de nossa formação política, irmã mais nova de outra ironia, o

fato de ter sido um Gabinete Conservador o responsável por redigir a lei do ventre livre em

1871. O pensador tem mesmo razão, mas, como vimos o imaginário é coriáceo, nele os mitos

permanecem e assim apesar já estarmos quase acostumados com a igualdade e a liberdade não

abandonamos o culto ao Medalhão.

Assim, o debate sobre as políticas públicas no século XXI no Brasil deve passar

pela discussão de nossa cultura política. A construção da cidadania é necessariamente a

desconstrução do Medalhão, de suas práticas e dos seus favores que fazem: incompetentes

gestores, políticas e programas copiados e reproduzidos. Ações que resultam em intervenções

estatais, paliativas e desastrosas, que pouco contribuem para a efetiva melhora da vida

individual e coletiva.

Não é mais possível que os saberes das políticas públicas não se religuem às

tentativas de compreensão da cultura política brasileira por meio das artes, da literatura, da

música, lugar dos movimentos retroativos dos mitos que estruturam o imaginário político

brasileiro. Negar tal religação é correr o risco de continuar pensando o pensado.

A pesquisa sobre a compreensão das tensões que fazem a cultura política

brasileira tendo o imaginário como campo de estudos e Machado de Assis e parte da sua obra

como informante privilegiado, para usar um termo caro aos antropólogos, mostrou que o

núcleo hard que muitas vezes disse que o MAPPS não era o melhor lugar para meu trabalho

por ele não tratar de planejamento, avaliação e gestão de políticas públicas estava equivocado.

Page 102: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

102

O contato com a literatura me levou a possibilidades e caminhos até então não

vislumbrados, pensar a política com Machado de Assis e não por ele me ajudou a

compreender que o Mito é muito mais decisivo que qualquer política social ou econômica e

que cada vez mais devemos radicalizar rumo ao caminho sem volta ao regime noturno do

imaginário.

Na terra dos Medalhões o desenvolvimento da cidadania sempre foi lento e por

muitas vezes impedido de acontecer, pois, as lições ouvidas por Janjão atravessaram a

Colônia, o Império, a República e ainda permanecem vivas no imaginário político brasileiro

envolvendo e mediando as práticas e os discursos políticos contemporâneos.

No Brasil quem não quer ser Medalhão? Quem não quer poder usar da vantagem

de ser amigo do porteiro de um hospital público para furar a fila? Beneficiar-se numa seleção

de emprego por ser amigo do dono da empresa? Ou ter um programa de televisão como

trampolim para um assento no legislativo? Ocupar um cargo de confiança na administração

pública? Ser escolhido para ser gestor de uma política pública? Talvez o leitor não deseje, e

assumo que eu também não, embora confessemos que canto da sereia é deslumbrante. Mas, há

certamente aqueles que não vão ler a ―Teoria do Medalhão‖ e mesmo assim concordarão em

seguir os conselhos a risca para tentar vencer no jogo de ser dar bem no Brasil.

Nunca antes na história desse país foi tão fácil ser Medalhão, todos agora se

arvoram ao direito de ser Medalhão, de usar as conquistas sociais construídas contra o mito

do Medalhão para potencializar o caminho para ser medalhão, um modo de usar a igualdade e

a liberdade como armas na luta para tornarmo-nos desiguais, melhor que ao outros, pelo

menos na opinião dos outros.

Nunca pensar o pensado foi exercitado com tanta intensidade e louvado como

hoje o é, muitas são as formas de exibir a invejável vulgaridade que para além dos

parlamentos se faz também presente nas universidades, nas televisões, nas redes sociais, nas

escolas, nas esquinas e bares.

Se ficarmos atentos aos debates mais atuais sobre os rumos das políticas públicas

no Brasil e principalmente aos homens que o fazem, logo identificaremos os filhotes de

Janjão, mesmo que alguns nunca tenham lido Machado de Assis. Os desafios são novos: o

combate ao Crack, a questão ambiental, o fim da pobreza, a Copa do Mundo de Futebol –

FIFA 2014 e as Olimpíadas de 2016. Os homens e seus discursos também são tão novos

Page 103: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

103

quanto os desafios, mas suas práticas e ações por muitas vezes são as mesmas do Medalhão. E

continuamos mudando para permanecer os mesmos.

Duvida? Pois me diga, o que o palhaço Tiririca, os jogadores Romário e Ronaldo,

e um jovem de 25 anos do interior do Ceará, filho de pai rico têm em comum? Eles

alimentam, e recriam o culto ao Medalhão, com discursos contemporâneos montados por

assessorias bem pagas, continuando a iludir e reproduzir o mais do mesmo, a mesma pele com

outras roupas.

Hoje me sinto como o canário que ao ver a janela da gaiola aberta voou pelo

infinito azul celeste e acabou por descobrir uma possibilidade jamais vislumbrada. A obra de

Machado é o azul celeste de onde pude enxergar essa interessante possibilidade de conhecer o

mundo, pensado em sua complexidade e não sua separação, ao religar o que eu já tinha

aprendido sobre ciência política aos saberes da literatura e tudo o que gira ao seu redor, me

encantei com o imaginário.

Não matei minha Mosca Azul, ela continua com o mesmo brilho que me

encantou. Ler Machado de Assis é diversão para uma vida inteira e não há como dar conta de

tudo que obra oferece ao leitor que estiver realmente disposto a se perder nesse labirinto tão

bem arquitetado. Termino essa pesquisa com muitas inquietações, bem mais do que tinha

quando a iniciei e se bem entendi a complexidade e teoria do imaginário, fico com a sensação

de dever cumprindo e uma certeza: em terra de medalhão é muito difícil ser cidadão!

O grande desafio não é a sustentabilidade, nem a educação, nem a saúde, nem a

tecnologia, pois, essas e outras boas ideias e novos conceitos já foram tocadas pelo nosso

Medalhão, que é o Midas às avessas, por ter a capacidade de transformar grandes ideias

humanas e seu brilho libertador em douradas fórmulas para fingir uma capacidade falsa e

conseguir uma vantagem qualquer para si e para os seus protegidos. O grande esforço público

seria uma cruzada contra o Medalhão e todas as forças que mantém o Mito vivo, ainda tão

jovem e cheio de potencial. Quem será o nosso Hércules que ousará desafiar o Deus? O que

consterna e desola é saber que os deuses sempre vencem, mas depois me empolgo ao lembrar

que até Zeus feneceu e hoje não manda mais em muita coisa! Matemos o Medalhão em nome

do cidadão!

Page 104: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

104

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Obra completa. Vols. 1-4. Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 2008

ARAÚJO, Emanuel. O Teatro dos Vícios: (transgressão e transigência na sociedade urbana

colonial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

AVELAR, Lúcia e CINTRA, Antônio Octávio. Sistema Político Brasileiro: uma introdução.

São Paulo: UNESP, 2004.

BASTOS, Dau Machado de Assis: num recanto, um mundo inteiro. Rio de Janeiro:

Garamond, 2008

BERND, Zilá.(Org.) Dicionário de figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre:

Tomo Editorial/Editora da Universidade, 2007

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970.

_________. Machado de Assis: O Enigma do Olhar. São Paulo: Ática, 1999.

BOTELHO, Isaura. Romance de Formação: Funarte e política cultural 1976-1990. Rio de

Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa. 2000.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. 2. ed. 1. reimp.

São Paulo: Companhia das letras, 1996.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: USP, 1975.

Page 105: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

105

__________________. Literatura e Sociedade: estudos de teoria literária. 6. ed. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1980.

__________________. Dialética da malandragem, Revista do Instituto de Estudos

Brasileiros. São Paulo: 1970, nº 8

CARVALHO, José Murilo de – ―O Motivo Edênico no Imaginário Social Brasileiro‖, Rev.

bras. Ci. Soc. vol. 13 n. 38, São Paulo, Oct. 1998.

CARVALHO, José Murilo de. ―As Duas Repúblicas‖, em Machado de Assis e Joaquim

Nabuco: Correspondência. Rio de Janeiro: Topbooks / Academia Brasileira de Letras, 3. ed.,

2003.

CARVALHO, Jose Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil.

São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

CHAUÍ, Marilena Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo,

2000.

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis historiador. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil (mito, história e etnicidade). São

Paulo, Brasiliense, 1987.

CALDEIRA, Jorge. A Nação Mercantilista. São Paulo, Ed. 43, 1999.

CORDEIRO, Celeste – ―Vicissitudes da Democracia no Brasil: o patrimonialismo como

cultura‖ in Revista Síntese, Ano 5, Brasília, 2000.

COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e Sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas.

Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.

Page 106: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

106

MATTA, Roberto da. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco: 1986.

__________________. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema

brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1997.

___________________. A Casa & A Rua (espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil).

Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1991.

DERRIDA, Jacques. Sociedade e Discurso Ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

________________. Tal Brasil, Qual Romance? Uma Ideologia Estética e sua História: O

Naturalismo. Rio da Janeiro: Achiamé, 1984.

DUPAS, Gilberto. O Mito do Progresso. São Paulo: UNESP, 2006.

DURAND, Gilbert O Imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio

de Janeiro: Difel, 1998.

_______________Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. São

Paulo: Globo, 1991.

_________________ Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio. São Paulo: Cia. Editora

Nacional, 2001

ELIAS, Nobert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1991.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1992.

Page 107: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

107

________________Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1995.

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4 ed. 9ª. reimpr. São Paulo:

Atlas, 2007.

GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2 ed. rev. São Paulo: Paz e Terra,

2003.

_____________. Por um novo Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ed. Companhia das

Letras, 2006.

GRANJA, Lúcia. Machado de Assis, Escritor em Formação (à roda dos jornais). São

Paulo: Fapesp / Mercado de Letras, 2001.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,

1995.

JUNG, Carl G.Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2007.

JOBIM, José Luís e outros A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Topbooks,

2001

MARIANO, Ana Salles, OLIVEIRA Maria Rosa Duarte de. (Orgs.) Recortes Machadianos.

São Paulo: EDUC, 2003.

MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classe Dirigente no Brasil (1920-1945), São Paulo/Rio de

Janeiro: Difel, 1979.

MOOG, Vianna. Bandeirantes e Pioneiros: paralelo entre duas culturas. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 1985.

MENDES, Candido (org.) Representação e Complexidade. Rio de Janeiro: Garamond,

2003.

Page 108: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

108

MASSOUD MOISÉS. Machado de Assis: Utopia e Ficção. São Paulo: Cultrix, 2000.

MONTESINI, Cláudia de Fátima A Paidéia inversa: ―teoria do medalhão‖, de Machado de

Assis In: Anais II Colóquio da Pós-Graduação em Letras-UNESP – ISSN: 2178-3683,

2003

MORIN, Edgard O Desafio do Século XXI (religar os conhecimentos). Lisboa: Instituto

Piaget, 2001.

______________ Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2007.

______________. O Método. Vols. 1-6 Porto Alegre: Sulina, 2008

NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.

PITTA, Danielle Perin Rocha(org.). Ritmos do Imaginário. Recife: Ed. Universitária da

UFPE, 2005.

PENNA, José Oswaldo de Meira. O Dinossauro: uma pesquisa sobre o Estado, o

patrimonialismo selvagem e a nova classe de intelectuais e burocratas. São Paulo: T. A.

Queiroz, 1988.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro; a formação e o sentido do Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1996.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na

Primeira República. São Paulo: Cia das Letras, 2003

SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Brasília: Editora da UNB,

1982.

SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes,

1999.

Page 109: UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIAS …uece.br/politicasuece/dmdocuments/joao_paulo_bandeira.pdf · 2012. 4. 30. · Machado de Assis muito se esforçou para compreender

109

SCHWARTZ, Lílian Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca dos

trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

SANTOS, Mariza e MADEIRA, Angélica. Leituras Brasileiras: itinerários no pensamento

social e na literatura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica Da Razão Indolente: Contra o desperdício da

experiência. São Paulo: Cortez, 2000.

SANTOS, Joel Rufino dos. Espúrias do Social: como podem os intelectuais trabalhar para os

pobres. São Paulo: Global, 2004.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios

do romance brasileiro. São Paulo, Duas Cidades, 1992.

______________. Duas meninas. São Paulo, Brasil : Companhia das Letras, 1997.

_______________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo:

Livraria Duas Cidades, 1990.

SKIDMORE, Thomas E. – ―Criadores de Mitos: os arquitetos da identidade nacional

brasileira‖ in O Brasil visto de fora, Paz e Terra: SP, 1994.

SANTOS, Mariza e MADEIRA, Angélica. Leituras Brasileiras: itinerários no pensamento

social e na literatura. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1999.

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira a Machado de

Assis. 4ªed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963.