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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE DEINAIR FERREIRA DE OLIVEIRA JUVENTUDES SITIADAS: COTIDIANOS DE VIOLÊNCIA E A INTERFACE COM AS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA FORTALEZA - CEARÁ 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

DEINAIR FERREIRA DE OLIVEIRA

JUVENTUDES SITIADAS: COTIDIANOS DE VIOLÊNCIA E A INTERFACE COM

AS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA

FORTALEZA - CEARÁ

2015

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DEINAIR FERREIRA DE OLIVEIRA

JUVENTUDES SITIADAS: COTIDIANOS DE VIOLÊNCIA E A INTERFACE COM AS

POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA E DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado

Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade

do Programa de Pós-Graduação em Políticas

Públicas e Sociedade do Centro de Ciências

Sociais Aplicadas (CESA), da Universidade

Estadual do Ceará como requisito parcial à

obtenção do título de mestre em Políticas

Públicas e Sociedade. Área de Concentração:

Políticas Públicas e Sociedade.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosemary de Oliveira

Almeida

FORTALEZA - CEARÁ

2015

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Para Caio Henrique

(In memoriam)

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AGRADECIMENTOS

À Deus, autor da minha existência, fonte de todo amor e cuidado. Por ser a força e o refúgio

sempre. À ele a glória, “porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas”.

À minha amada mãe Liduina, pelo amor sem medida e cuidado constante, que com ou sem

palavras me apoia, sendo na minha vida o maior estímulo a prosseguir. Ao meu pai Ismael,

meu irmão Isaac, minha cunhada Daniele e meu sobrinho Carlos Daniel.

À minha família, em nome das minhas tias Aldenora e Alda, pelo apoio e cuidado sempre. E

das minhas primas Denise, Emanuelli, Raquel, Wanessa e Gisele que enchem os meus dias de

cores, amor e alegria.

À minha amiga Danila, pela inestimável companhia, pelas alegrias e caminhos

compartilhados, por seu apoio e disponibilidade em ajudar sempre, assim como pela leitura

cuidadosa deste trabalho.

À minha amiga Ana Paula, pela parceria preciosa em tantos momentos de estudo e de vida, e

por compartilhar comigo as intempéries da pesquisa, tendo sempre um ombro amigo e um

ouvido atento.

Ao meu amigo Hilton, pelas intermináveis conversas e discussões, e por estar ao meu lado em

tantos momentos de alegrias e tristezas.

Ao meu amigo Airton, pela companhia maravilhosa, por estar sempre presente e disposto a

ajudar nas diversas situações, pelo carinho e leitura deste trabalho.

À minha amiga Andrea, pela alegria contagiante, companheirismo e por ser sempre tão

prestativa.

Às minhas amigas, Jaiane, por compartilharmos muitos cafés e viagens, assim como pelas

aventuras acadêmicas e parceria em tantos trabalhos. E Lidiane, pela amizade e por todos os

momentos divididos e, ainda, pelas contribuições para a escrita do trabalho.

À minha amiga Sabrina, presente especial do Mestrado, pela parceira em tantas aventuras,

pelo carinho e atenção.

Ao Gabriel, pelo carinho, apoio e conforto transmitido em suas palavras, sobretudo nos

momentos mais tensos de escrita deste trabalho.

À professora Rosemary Almeida, minha orientadora, pela confiança e por compartilhar seus

conhecimentos e experiências. Obrigada pelas contribuições valiosas à elaboração deste

trabalho.

Ao professor Gil, pelo carinho, por suas orientações preciosas e por conferir tanto encanto e

brilho na transferência do conhecimento.

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Ao professor Antonio Pinheiro, pela presença na Banca de Qualificação, assim como pelas

contribuições para este trabalho.

Ao professor Luiz Fábio, pelo carinho e alegria envolvente. Agradeço ainda, pelas

inestimáveis colaborações ao trabalho.

À professora Celecina Sales e à professora Gema Galgani, da graduação em Economia

Doméstica, que me possibilitaram enveredar pelos caminhos da pesquisa e da extensão,

deixando pegadas valiosas do conhecimento não só científico, mas de vida.

À Universidade Estadual do Ceará e ao Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e

Sociedade, pela estrutura física e humana.

Aos funcionários do Espaço Viva Gente, pela acolhida calorosa, e por compartilharem seus

conhecimentos e perspectivas comigo.

Às jovens e aos jovens, sujeitos dessa pesquisa, que sem elas e eles não teria sido possível a

realização. Por compartilharem suas vidas, sonhos e anseios, e por somarem tantos

aprendizados.

À CAPES, pelo auxílio financeiro à pesquisa.

E a todas as pessoas queridas que, presentes ou ausentes, de perto ou de longe, fazem parte da

minha vida, e de alguma forma contribuíram e torceram pelo alcance desta conquista.

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“Pessoas que sabem as soluções já dadas são

mendigos permanentes. Pessoas que aprendem

a inventar soluções novas são aquelas que

abrem portas até então fechadas e descobrem

novas trilhas. A questão não é saber uma

solução já dada, mas ser capaz de aprender

maneiras novas de sobreviver”.

(Rubem Alves)

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RESUMO

Nesta pesquisa tenho como objetivo analisar em que momento a Política de Segurança

Pública do Estado do Ceará se encontra com uma forma de política preventiva à violência que

ronda a juventude, mediante a experiência de um projeto social, tentando investigar como a

violência afeta a vida dos jovens participantes deste Projeto em seus contextos sociais. A

pesquisa foi desenvolvida no Espaço Viva Gente que se constitui um Projeto do Governo do

Estado do Ceará, sediado em um bairro da periferia de Fortaleza e atende pessoas nas idades

de 6 a 18 anos em situação de risco, que são contempladas com atividades socioeducativas,

artísticas, culturais, esportivas e de lazer, e iniciação profissional. Os sujeitos dessa pesquisa

são jovens, femininos e masculinos, de idades entre 12 e 18 anos. Trata-se de uma pesquisa

qualitativa com inspiração etnográfica realizada sob o molde da observação direta, com a

utilização de ferramentas metodológicas como grupo focal, realizado com os jovens e,

entrevistas, realizadas com funcionários do projeto. Os jovens reconhecem suas vivências em

um território perigoso com relação às influências ou mesmo a morte prematura, devido aos

conflitos pelos quais são marcados em relação ao convívio com a rua, o bairro, a cidade. No

entanto, mesmo dentre todas as circunstâncias contrárias, eles apontam para o direito de

escolher viver, e a inserção no Projeto Viva Gente representa estar protegido do contato com a

rua perigosa. E, nesse sentido, estar inserido neste Projeto, possibilita compreender um ponto

de encontro nas ações do Estado, entre a forma de fazer a Segurança Pública na rua, com base

na repressão, e uma tentativa de instituir ações de prevenção à violência, mesmo sem

caracterizar o projeto Viva Gente como tal. A Segurança Pública se faz presente pelo

movimento violento da atuação policial no espaço da rua, e os jovens percebem-na quando

saem dos muros do Viva Gente, enquanto a sensação de segurança ocorre como proteção

dentro deste espaço. A rua é apontada como um ambiente de risco, do qual aqueles que

objetivam “ser alguém” na vida devem evitar. Se estar na rua é perigoso, os jovens apontam a

necessidade de um lugar que possa ser utilizado em contraposição à ela para reforçar suas

experiências positivas, sem que percebam esta contradição como forte presença da punição

circunscrevendo seus corpos.

Palavras-chave: Violência. Juventudes. Política de Segurança Pública. Política de Prevenção

à Violência.

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ABSTRACT

In this research my aim is analyze how the public security politics act as a way of preventive

politic against the violence that menaces the youth, through social projects, trying to

investigate how the violence affects the lives of the young participants of this project in their

social context. The research was developed in the Espaço Viva Gente, that is a project of the

Ceará State's Government, located in a poor suburban neighborhood of Fortaleza city and that

attends to people at age from 6 to 18 years old, in risk situation that are contemplated with

professional initiation and educative, social, artistic, cultural, sportive and leisure activities.

The subjects of this research are young boys and girls, from 12 to 18 years old. It's a

qualitative research in an ethnographic way made by the direct observation's form, using

methods as focal groups, with the young people participation, field diary and interviews with

the project workers. The young ones recognize their experiences in a dangerous territory

towards the influences or even premature death, due to conflicts that mark them concerning to

the close association with the streets, district and city. However, even in all the contrary

circumstances, they point to the right to choose to live, and the insertion in the Viva Gente

Project represents a protection against the dangerous street. In this way, being inserted in this

project permits to understand a connection point in the Government's actions involving the

manner of doing the public security in the streets, based on repression, and a tentative of

create preventive actions against violence, even without characterize the Viva Gente Project

as such. The security is present through the police's violent work manner, in the street's space,

and the young ones see it when they are outside the Viva Gente. The security sensation

happens inside the project. The street is seen as a risk environment by the ones who are trying

to make themselves important in life, so they should avoid it. If being in the street is

dangerous, the young ones notice the need of a place that can be used in the opposite way to

reinforce their positive experiences without realize this contradiction as strong presence of

punishment circumscribing their bodies.

Keywords: Violence. Youths. Public Security Politic. Violence Prevention Politic.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 – Caminho entre o Horto..........................................................................................23

Figura 02 – Canteiro de Ixora...................................................................................................24

Figura 03 – Parte do muro entre ambos os espaços..................................................................31

Figura 04 – Parte do muro com guarita ao fundo.....................................................................32

Figura 05 – Canteiros de hortaliças do Horto...........................................................................35

Figura 06 – Canteiros de plantas medicinais do Horto.............................................................35

Figura 07 – Vista lateral do Campo de Futebol........................................................................36

Figura 08 – Vista lateral do Campo de Futebol........................................................................36

Figura 09 – Plateia no segundo dia do Festival de Música.......................................................43

Figura 10 – Plateia no terceiro dia do Festival de Música........................................................44

Figura 11 – Dinâmica de Integração.........................................................................................49

Figura 12 – Leitura em grupo (Grupo Focal Horto/Manhã).....................................................50

Figura 13 – Leitura em grupo (Grupo Focal Horto/Tarde).......................................................50

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CAPES Centro de Atenção Psicossocial

CNJ Conselho Nacional de Juventude

CRAS Centro de Referência da Assistência Social

CREAS Centro de Referência Especializado da Assistência Social

CUCA Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte

FIFA Federação Internacional de Futebol

FNSP Fundo Nacional de Segurança Pública

FUNASA Fundação Nacional de Saúde

LOAS Lei Orgânica da Assistência Social

MDS Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

PET Programa de Educação Tutorial

PIB Produto Interno Bruto

PNAS Política Nacional de Assistência Social

PRONASCI Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania

RAIO Ronda de Ações Intensivas e Ostensivas

SER Secretaria Executiva Regional

SNJ Secretaria Nacional de Juventude

STDS Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social

SUAS Sistema Único da Assistência Social

SUSP Sistema Único de Segurança Pública

TCC Trabalho de Conclusão de Curso

UFC Universidade Federal do Ceará

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................15

2 AS SINUOSIDADES E SURPRESAS DA TRILHA

METODOLÓGICA................................................................................................................19

2.1 A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA E A MINHA RELAÇÃO COM A PROBLEMÁTICA

...................................................................................................................................................19

2.2 TUDO JÁ ERA CAMPO! DOS CAMINHOS TRAÇADOS PARA CHEGAR AO

ESPAÇO VIVA GENTE..........................................................................................................20

2.3 O ESPAÇO VIVA GENTE: LOCUS DA PESQUISA ......................................................26

2.4 DOS PERCALÇOS NA TRAJETÓRIA DO CAMPO: A EXPERIMENTAÇÃO DO

“LADO DE FORA” DE UMA REBELIÃO.............................................................................29

2.5 COLEÇÃO DE MIUDEZAS: O DESAFIO DA INSERÇÃO NO CAMPO.....................33

2.6 FUTEBOL E MÚSICA NO ESPAÇO VIVA GENTE......................................................37

2.6.1 Um dia atípico no Espaço Viva Gente..........................................................................37

2.6.2 A emoção do Festival de Música...................................................................................43

2.7 APROFUNDANDO QUESTÕES DE VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: A

UTILIZAÇÃO DE ENTREVISTA E GRUPO FOCAL COMO TÉCNICAS DE PESQUISA

...................................................................................................................................................46

2.7.1 Entrevistas......................................................................................................................46

2.7.2 Os Grupos Focais...........................................................................................................47

2.8 DE POSSE DOS DADOS: O DESAFIO DE INTERPRETÁ-LOS...................................54

3 VIOLÊNCIA, SEGURANÇA PÚBLICA E JUVENTUDES: O ESPAÇO VIVA

GENTE COMO LOCUS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA............................................55

3.1 O CAMPO DA VIOLÊNCIA.............................................................................................55

3.2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA E

POLÍTICAS DE JUVENTUDE................................................................................................58

3.3 JUVENTUDES NO ESPAÇO VIVA GENTE: UMA EXPERIÊNCIA PONTUAL DE

OPOSIÇÃO A VIOLÊNCIA ...................................................................................................69

4 CAMINHOS DA VIOLÊNCIA: JUVENTUDES EM UM CONTEXTO DE

VULNERABILIDADES.........................................................................................................78

4.1 VIVER OU MORRER? A INSERÇÃO NA CRIMINALIDADE E A

RESPONSABILIDADE JUVENIL..........................................................................................78

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4.2 O MUNDO DA RUA: ESPAÇO DA VIOLÊNCIA OU DA

SOCIALIZAÇÃO?...................................................................................................................89

4.3 JUVENTUDES E ATUAÇÃO POLICIAL: O CORPO INCIRCUNSCRITO E A

NEGAÇÃO DOS DIREITOS...................................................................................................96

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................104

REFERÊNCIAS....................................................................................................................108

APÊNDICE............................................................................................................................112

APÊNDICE A - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E

ESCLARECIDO.....................................................................................................................113

ANEXOS................................................................................................................................115

ANEXO A - REPORTAGENS UTILIZADAS NOS GRUPOS

FOCAIS..................................................................................................................................116

ANEXO B - ARTIGOS PRODUZIDOS NOS CURSOS OFERTADOS NO ESPAÇO VIVA

GENTE....................................................................................................................................125

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1 INTRODUÇÃO

Nesta pesquisa tenho como objetivo analisar em que momento a Política de

Segurança Pública do Estado do Ceará se encontra com uma forma de política preventiva à

violência que ronda a juventude, mediante a experiência de um projeto social, tentando

investigar como a violência afeta a vida dos jovens participantes deste Projeto em seus

contextos sociais.

Para delinear esse objetivo foi necessário um árduo processo de estudo, leituras e

inserção em campo, uma profunda compreensão da vida de seres humanos jovens, pois como

diz Roberto DaMatta (1997), “é que não sou engenheiro civil, mas estudante das coisas

humanas” (p. 13). Assim, a pesquisa é permeada por ideias, interações, avanços e retrocesso

no trato com os sujeitos e a realidade que observamos e, portanto, não se constitui uma etapa

fácil de ser vivenciada.

A pesquisa foi desenvolvida no Espaço Viva Gente que é um dos projetos da

Proteção Social Básica da Assistência Social1, desenvolvido pela Secretaria do Trabalho e

Desenvolvimento Social (STDS) do Governo do Estado do Ceará. Sediado em um bairro da

periferia de Fortaleza, atende pessoas nas idades de 6 a 18 anos em situação de risco2, que são

contempladas com atividades socioeducativas, artísticas, culturais, esportivas e de lazer, e

iniciação profissional.

O Espaço Viva Gente atende um público de 600 pessoas. Consiste na unificação

de três projetos que deixaram de existir originando um único espaço, com consequente

redução no número de beneficiados. Antes de ocupar o atual endereço, o Espaço Viva Gente

era situado em um local que foi demandado para o funcionamento de um Centro de

Internamento Masculino, tendo em vista o cumprimento de medidas socioeducativas para

jovens em conflito com a lei.

1 O Sistema Único da Assistência Social instituído como modelo de gestão em consonância com a Política

Nacional de Assistência Social (PNAS), no ano de 2004, estabeleceu que os serviços socioassistenciais prestados

seriam nacionalmente organizados a partir das referências estabelecidas como: vigilância socioassistencial,

defesa social e institucional e proteção social. A Proteção Social por sua vez se divide como: Proteção Social

Básica, que objetiva o desenvolvimento de ações preventivas para famílias e indivíduos em situação de

vulnerabilidade, através de serviços prestados por programas e projetos e pelo Centro de Referência da

Assistência Social (CRAS); e Proteção Social Especial, que contempla os níveis de proteção de média e alta

complexidade com a oferta de atendimento especializado à famílias e indivíduos em situação de risco pessoal,

como em casos de rompimento dos laços familiares, cumprimentos de medidas socioeducativas, situação de rua,

dentre outras. 2 Utilizo a descrição apresentada no sítio eletrônico da Secretaria do Trabalho e do Desenvolvimento Social

(STDS) do Governo do Estado do Ceará: http://www.stds.ce.gov.br/index.php/protecao-social-basica/146-viva-

gente.

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Diante das contradições no desenvolvimento das Políticas de Prevenção à

Violência, de acordo com a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e a instituição do

Sistema Único da Assistência Social (SUAS) de 20043 como modelo de gestão, as ações de

Proteção Social Básica passam a ser responsabilidade dos municípios, cabendo aos Estados a

Proteção Social Especial. Com essa determinação, o Espaço Viva Gente, ainda na

competência do governo do Estado, tem um futuro de incertezas.

Ressalvadas as divisões de competências entre os entes federativos, Nação,

Estado, Município, as políticas preventivas sempre foram relegadas, sobretudo porque estas

ações que devem atuar no foco do problema têm seus efeitos aparentes em longo prazo e, por

isso, recebem pouca atenção do Estado.

Os sujeitos dessa pesquisa são jovens, femininos e masculinos, de idades entre 12

e 18 anos. Todas e todos frequentam o Espaço Viva Gente e são moradores de uma das áreas

do bairro Passaré que é dividido nos conjuntos Sumaré, Residencial Passaré, Jardim União,

Jardim Castelão, Barroso II, Novo Barroso e os loteamentos Santiago de Compostella e Novo

Passaré. Em suas realidades elas e eles têm a violência materializada no tráfico de drogas, nas

disputas territoriais entre traficantes e gangues rivais, nos constantes homicídios que ceifam a

vida de muitos que não chegam a completar dezoito anos.

Com relação a estimativas populacionais, no ano de 2011, o Brasil contava com

um contingente de 34,5 milhões de jovens nas idades de 15 a 24 anos, o que representava

18,0% do total de 192,3 milhões de habitantes, ritmo de crescimento que nas últimas décadas

vinha declinado progressivamente em número absoluto, uma vez que, em 1980 os jovens

representavam 21,1% da população. Entretanto, não obstante o encolhimento da base da

pirâmide populacional do país, os índices de mortalidade violenta da juventude cresceram em

ritmo diferente. Assim, enquanto a taxa total de mortalidade da população brasileira caiu de

631 por 100 mil habitantes em 1980 para 608 em 2011, as causas de mortes entre os jovens

que outrora se constituíam principalmente em epidemias e doenças infecciosas, foram sendo

progressivamente substituídas pelas denominadas causas externas4, sobretudo vítimas de

acidentes de trânsito e homicídios. Dessa forma, em 2011, dos 46.920 óbitos juvenis

registrados, 34.336, ou quase ¾ dessas mortes (73,2%), tiveram suas origens nessas causas

(WAISELFISZ, 2013).

3 Política Nacional de Assistência Social (PNAS), 2004. Norma Operacional Básica NOB/SUAS Brasília:

Novembro 2005. 4 Diferentemente das chamadas causas naturais, relacionadas a processos de deterioração da saúde por

consequência de enfermidade e/ou do envelhecimento, as causas externas remetem a fatores independentes do

organismo humano, que provocam lesões ou agravos à saúde culminando com à morte do indivíduo. Júlio

Jacobo Waiselfisz, no Mapa da Violência 2013: os jovens do Brasil.

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Ainda de acordo com Waiselfisz (2013), o que impressiona na evolução histórica

da mortalidade violenta no país são os quantitativos implicados, uma vez que dos anos de

1980 a 2011, apenas vítimas de homicídio, morreram 1.145.908 pessoas. Diante desses dados,

existe uma especificidade que é crucial para o meu trabalho: do total das mortes

contabilizadas, entre a população não jovem, os óbitos correspondem nas mortes por causas

externas a apenas 26,8%. Já entre os jovens da faixa etária de 15 a 24 anos, o total de óbitos

por causas externas é igual a 73,2%, sendo os homicídios responsáveis pela morte de 39,3%.

Em alguns Estados se constitui a causa de mais da metade do total de mortes juvenis.

Diante desse cenário os governos são levados a agir sobre as consequências da

violência, realizando altíssimos investimentos para reprimi-la. Nessa perspectiva, de acordo

com Rodrigues et al (2007), no ano de 2005, as despesas com Segurança Pública no Brasil

contabilizaram um valor de 28 bilhões, o que representava 1,45% do PIB. Já as despesas com

o sistema prisional, nesse mesmo ano, totalizaram 2,8 bilhões aos cofres públicos,

correspondendo a 0,15% do PIB. O estudo aponta ainda os custos estimados para o tratamento

de vítimas de causas externas, agressões e acidentes de transportes em um total de 3,8 bilhões,

206 milhões e 769 milhões, respectivamente, valores que poderiam ser significativamente

reduzidos se houvesse investimentos em políticas preventivas à violência que culminariam na

redução de acidentes e ou violências causadoras de óbitos e lesões. Dessa forma, o autor

afirma que ampliar o conhecimento das causas e possível prevenção ao crescimento da

violência é fundamental, pois a criminalidade resulta diretamente em perdas humanas, afeta

os gastos públicos com saúde, além de afastar investimentos e turismo, sendo, portanto, a

prevenção a principal e mais eficiente forma de controle da violência e criminalidade.

No entanto, mesmo com os elevados custos investidos no âmbito da Política de

Segurança Pública e do Sistema Prisional e sua comprovada baixa eficiência, visto que a

violência aumenta a cada dia, sobretudo em Fortaleza, que passou da sétima para a segunda

posição no ranking das cidades mais violentas do país5, no período de um ano, as políticas de

prevenção ocupam pouca atenção governamental.

Tendo em vista esses indicadores que nos levam a pensar sobre a estruturação das

políticas públicas no Brasil, sobretudo, no que diz respeito às Políticas de Segurança Pública e

de Juventude, busquei localizar um programa social que tivesse suas ações voltadas para o

5 De acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal no ano de

2013 a cidade de Fortaleza apresentou uma taxa de homicídio de 72,81% em proporção à população, tendo sido

registrados 4.462 assassinatos. Dados publicados em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2014/01/fortaleza-e-

setima-cidade-mais-violenta-do-mundo-diz-estudo.html e http://oglobo.globo.com/brasil/brasil-tem-11-das-30-

cidades-mais-violentas-do-mundo-diz-onu-12151395.

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atendimento a jovens, com o intuito de combater a chegada destes a esses dados lamentáveis.

E foi assim que cheguei ao Espaço Viva Gente. Dessa forma, trago como categorias centrais

de análise do meu trabalho: Violência, Juventudes, Política de Segurança Pública e Políticas

de Prevenção à Violência, que, à luz dos autores utilizados, serão fundamentais para a

problematização e compreensão do estudo.

A escolha pela metodologia remete a minha iniciação na pesquisa no período da

graduação. Nesse sentido, trata-se de uma pesquisa qualitativa com inspiração etnográfica,

pois busco apresentar as minúcias do campo, com os detalhes que a observação direta permite

visualizar. As informações aqui expostas foram coletadas nas observações que realizei nas

diversas atividades desenvolvidas no local como: acompanhamento das oficinas, reuniões

com os jovens, reuniões com os pais, festivais, contação de histórias, bazares, dentre outras

atividades. As visitas ocorreram nos dias úteis, nos turnos manhã e/ou tarde. Outras

ferramentas metodológicas utilizadas foram o grupo focal, realizado com os jovens e

entrevistas, realizadas com funcionários do Projeto.

O resultado de tudo isso, está exposto nessa Dissertação em três capítulos. No

primeiro, “As Sinuosidades e Surpresas da Trilha Metodológica” descrevo os caminhos

traçados para chegar ao meu objeto de pesquisa, o local, as experiências vivenciadas no

campo, a aproximação com os sujeitos, e os percalços enfrentados no desenvolvimento da

investigação, assim como os instrumentos metodológicos utilizados para a realização desta.

No segundo capítulo, “Violência, Segurança Pública e Juventudes: o Espaço Viva

Gente como locus de prevenção à violência”, enfoco as categorias fundamentais à

compreensão do estudo, tendo em vista um breve contexto histórico da Política de Segurança

Pública e a problemática da violência com a juventude, e sua relação com as ações

preventivas. A discussão é entrelaçada ao trabalho realizado pelo Espaço Viva Gente e a

atribuição que as vozes dos sujeitos da pesquisa dão a este ambiente, no sentido de prevenir

suas inserções em práticas criminosas.

No terceiro capítulo, “Caminhos da violência: Juventudes em um contexto de

vulnerabilidades”, apresento como a violência afeta a vida dos jovens participantes do Espaço

Viva Gente em suas conjunturas sociais, e como eles percebem os seus efeitos enfatizando as

perspectivas de vida destes e a influência do Espaço Viva Gente. A discussão é aprofundada

com a problematização da utilização do espaço da rua e do conceito de corpo incircunscrito de

Teresa Caldeira (2000).

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2 AS SINUOSIDADES E SURPRESAS DA TRILHA METODOLÓGICA

2.1 A TEMÁTICA DA VIOLÊNCIA E A MINHA RELAÇÃO COM A PROBLEMÁTICA

Escrever um capítulo metodológico é proporcionar ao leitor vivenciar cada passo

do investigador nos trâmites da pesquisa. Tais passos se iniciam antes da entrada no campo,

como espaço físico, delimitado e construído, pois perpassam a busca do objeto até que ele seja

explorado e delineado. Exige - tal qual o artista ao iniciar a pintura de uma paisagem precisa

decidir as cores que utilizará no seu desenho, e selecionar os pincéis adequados aos traços que

ele pretende criar - que o pesquisador apresente as ferramentas metodológicas utilizada na

construção do seu objeto investigativo.

Esse caminho paradoxal de ansiedades e encantamentos se fez prazeroso, mas não

fácil de percorrer. Não foram poucas as vezes que me senti angustiada diante dessa travessia,

que em muitos momentos pareceu tênue e sinuosa, marcada por indecisões, medos,

progressos, retrocessos e incertezas quanto às escolhas que deveriam ser realizadas.

Compartilho a ideia de Cora Coralina6 quando disse: “o que vale na vida não é o ponto de

partida e sim a caminhada”, e acredito que na pesquisa não é diferente. O desafio do

conhecimento no decurso de qualquer investigação depende do planejamento inicial do

pesquisador, mas é ao longo da caminhada que os métodos vão se fazendo indispensáveis ou

não e, então, os ajustes passam a ser necessários, uma vez que a realidade é complexa e

dinâmica.

Para a minha “pintura”, optei pela pesquisa qualitativa nos moldes da observação

direta. Utilizei como pincéis a entrevista e o grupo focal para colorir o desenho planejado. Fiz

um desenho que remonta a minha inserção na pesquisa no período da graduação. Cursando

Economia Doméstica na Universidade Federal do Ceará (UFC), tive a oportunidade de me

inserir em pesquisas relacionadas à Extensão Rural, Gênero, Juventude e Reforma Agrária.

Mas foi na ocasião do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que a temática da violência

surgiu, quando passei a ser bolsista voluntária do Programa de Educação Tutorial (PET) do

meu curso, através de um projeto intitulado “Dizer não a violência contra jovens, mulheres e

crianças se aprende na escola”, desenvolvido em uma escola pública de Fortaleza, com jovens

de 15 a 17 anos.

6 Poetisa e contista brasileira, nasceu em Goiás em 1889 e faleceu em 1985. Em 1983 foi a primeira mulher a

ganhar o Prêmio Juca Pato.

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Nasci em Fortaleza e tive a oportunidade de brincar na rua, demorei a ouvir falar

sobre drogas e assassinatos em massa. No entanto, as coisas foram mudando e a partir do ano

de 2011 a minha cidade começou a entrar no ranking das mais violentas, sendo rotina nos

programas policiais a exibição diária de inúmeras mortes de jovens, que normalmente têm

suas vidas ceifadas antes de completarem dezoito anos. Mas foi apenas quando comecei a ler

sobre o problema que ele passou a me inquietar e busquei compreendê-lo melhor, sobretudo a

relação entre violência e juventude.

Hoje a cidade de Fortaleza é destaque nos noticiários como referência da

violência. Diante desse contexto e considerando que “cidades das quais somos cidadãos são

cidades nas quais queremos intervir, que queremos construir, reformar, criticar e transformar.”

(CALDEIRA, 2000, p. 20), dar continuidade aos estudos sobre violência e juventude no

mestrado se fazia oportuno, se não para transformar, para pensar, refletir, compreender

criticamente.

Nessa perspectiva, descrevo neste capítulo o percurso metodológico percorrido

para chegar ao meu objeto de pesquisa, assim como as experiências vivenciadas no campo, os

desafios e surpresas e as ferramentas utilizadas durante esse processo.

2.2 TUDO JÁ ERA CAMPO! DOS CAMINHOS TRAÇADOS PARA CHEGAR AO

ESPAÇO VIVA GENTE

Tendo em vista a complexidade que é a violência, uma vez que se constitui em um

campo múltiplo de sentidos e significações, sempre tive muito bem definido o que queria

compreender como pesquisadora, com meu projeto de mestrado: como as políticas públicas se

relacionam com os altos índices de violência que vêm resultando em mortes de jovens do sexo

masculino. A partir dessa questão, restava definir quais seriam os objetivos e o campo no qual

se desenvolveria o projeto. É claro que os sujeitos seriam jovens, mas eles poderiam estar em

qualquer lugar, então restava para mim o desafio de encontrá-los.

Até então, estava cristalizada em minha mente a ideia de que estudaria algum

grupo de jovens de uma escola. Vinda da graduação com um TCC desenvolvido na

perspectiva de discutir a violência nesse espaço, não passava pela minha cabeça outro

ambiente no qual tivesse jovens para estudar, além da escola. Primeiro, porque havia um

apego emocional da minha parte com esse público e, segundo, pela própria falta de

conhecimento de outros locais que trabalhassem com jovens, principalmente de maneira mais

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direcionada ao que eu me propunha a pesquisar: as Políticas Públicas de Prevenção à

Violência.

Nessa perspectiva, o primeiro encontro com a professora orientadora foi

esclarecedor: precisava encontrar um espaço com urgência, mediante a busca de programas e

projetos sociais que utilizassem ou se aproximassem das Políticas Públicas de Juventude,

tendo em vista o desenvolvimento de ações preventivas à violência. Assim poderia delimitar

os sujeitos da pesquisa, não só porque o tempo passa rápido, mas também porque eu sentia a

necessidade de encontrar meu objeto, reconhecê-lo, estranhá-lo para abrir mão das minhas

convicções, que eram tantas, e então compreender o que ele me dizia. Agora chegara o

momento em que era necessário sair da zona de conforto e partir das investigações apenas

bibliográficas para começar essa busca na realidade. E sair da zona de conforto significava

deixar a escola como espaço idealizado e reconhecer outras possibilidades, outros públicos,

outros jovens.

Para tanto, realizei contato inicialmente com a assistente social do Centro de

Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), da Secretaria Executiva Regional

(SER IV), de Fortaleza-CE, eleita como minha primeira informante, na iminência de

encontrar naquele espaço o local para desenvolver minha pesquisa. Depois dos contatos

telefônicos, fui convidada a fazer uma visita à instituição para conhecer um pouco do trabalho

ali realizado, mas o meu anseio de encontrar naquele lugar um espaço repleto de jovens, do

qual eu já sairia com meu público definido, foi frustrado.

Embora o objetivo de localizar um grupo não tivesse sido alcançado com essa

visita e isso me causasse tristeza, de certa forma, saí desse encontro com grandes perspectivas,

pois, durante a conversa, fui informada sobre uma série de projetos desenvolvidos pelos

governos municipal e estadual, com os quais eu poderia entrar em contato a fim de localizar o

que melhor me aprouvesse.

Eu nem sabia, mas isso já era campo. Dessa forma, continuei explorando o campo

da pesquisa e a partir de então, de maneira virtual, comecei a fazer um levantamento das

instituições que desenvolviam esses projetos, buscando contatos e endereços. Assim cheguei

ao sítio eletrônico da STDS. Lá, chamou-me a atenção o número de projetos, bem como o fato

de que grande parte dos que haviam sido citados pela assistente social fossem desenvolvidos

por este órgão. Considerei ser esta instituição governamental apropriada para a pesquisa,

tendo em vista que já buscava conhecer a Política de Segurança Pública do Ceará.

Esse achado me encheu de alegria e saltou aos meus olhos, como se agora eu

tivesse múltiplas oportunidades ao meu alcance, dentre as quais eu só precisava escolher.

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Percebi que esses projetos estavam agrupados como Proteção Social Básica e Proteção Social

Especial7 e, logo, a princípio, acreditei que poderia vir a pesquisar um determinado projeto,

que tinha como descrição o atendimento de jovens em situação de vulnerabilidade social, mas

que não era o Espaço Viva Gente.

A minha escolha por trabalhar com o público em condição de vulnerabilidade

social se justifica não com o objetivo de afirmar que a violência resulta da pobreza, mas de

investigar porque os dados apontam como principais vítimas de mortes por causas externas

jovens pobres, negros e do sexo masculino, tomando como ponto de partida para essa

investigação a existência de Políticas Públicas de Prevenção à Violência que competem com a

criminalidade, ou não, nas escolhas desses jovens. Pois, de acordo com Waiselfisz (2013), dos

anos de 1980 a 2011, apenas vítimas de homicídio, morreram 1.145.908 pessoas no país,

sendo que a maioria é formada de jovens.

Diante de todas as perspectivas que surgiram, restava agora entrar em contato

para, enfim, conhecer os espaços e ter certeza da minha escolha. Buscando os números

telefônicos percebi que em vários casos era sempre o mesmo, correspondendo, portanto, à

STDS e não ao local específico no qual era realizado cada projeto, o que aparentemente

denotava uma centralização das atividades. Assim, pensei que seria possível agendar uma

visita à Secretaria para conhecer mais especificamente os vários projetos e fazer uma escolha

dentre todos, a partir da apresentação pela própria coordenadora que constava no site.

Dessa forma, realizei contato telefônico com o local e, diferente do que eu

pensava, fui informada que a visita à STDS seria inviável, uma vez que os projetos se davam

em seus locais específicos e que a coordenadora não teria disponibilidade para me receber,

visto ser muito ocupada e, portanto, não havia o que eu fazer naquele lugar. Depois de

tamanha decepção e de eu ter explicado as razões do meu interesse em conhecer esses

projetos, a recepcionista me informou que, nesse caso, eu poderia procurar o Espaço Viva

Gente, que provavelmente seria um bom local para o que eu propunha.

Com essa informação busquei imediatamente pesquisar sobre o local e consegui

identificar o número do telefone. Entrei em contato e, depois da ligação ser transferida para

três pessoas diferentes, consegui falar com uma das assistentes sociais que atendeu minha

solicitação para realizar uma visita. Eis que uma luz surgia no fim do túnel!

7 Consoante com as previsões do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), o Ministério do

Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) promove o acesso à assistência social às famílias em

situação de vulnerabilidade. Sua estratégia de atuação consiste na hierarquização desses dois eixos, articulados

nas esferas municipal, estadual e federal: http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica.

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Tendo em vista todos os percalços enfrentados na trajetória de busca do objeto,

pensar tê-lo encontrado significava muito para mim, por isso a primeira visita ao local me

conferiu muita empolgação. O impacto inicial foi de um espaço cheio de vida, um lugar

alegre, onde diariamente muitos jovens encontravam oportunidades de realizar atividades

artísticas, culturais e cursos profissionalizantes. Esse foi o meu primeiro olhar.

A conversa com a assistente social foi longa, ela tinha anseio de apresentar o que

ocorria ali, de ver reconhecido o trabalho que ajudava a desenvolver. Percebi que ela falava

com a alma e, embora tenha me dito – quando perguntei sobre a possibilidade de localizar

alguns jovens para ter contato e realizar entrevistas – que eles não iam aceitar, convidou-me

para ficar, estudar o espaço e conhecer como sobrevivem às políticas de prevenção à

violência. Diante dessas considerações, levou-me a conhecer cada parte do espaço.

A forma como ela falou, como sobrevivem às políticas de prevenção à violência,

marcou-me profundamente. Passei a refletir sobre a palavra sobrevivência. Talvez já fosse um

dos meus primeiros achados: as políticas sobrevivem, pelo menos ali, no Espaço Viva Gente.

Seria resistir, restar ainda diante do que já se efetivou? Precisava descobrir.

O lugar é de pura natureza, com o verde natural das árvores e as flores disputando

espaço com as poucas salas onde ocorrem algumas oficinas. O resultado é um lugar de encher

os olhos! A visualização desde o lado de fora do portão já denuncia a beleza do lugar.

Figura 1 - Caminho entre o Horto

Fonte: Arquivo Pessoal

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Figura 2 – Canteiro de Ixora

Fonte: Arquivo Pessoal

Logo na entrada, o nome na parede feito de um trabalho minucioso com cerâmica

me impressionou de imediato. Da porta da secretaria vi ao fundo um estreito caminho de

pedrinhas que separava dois canteiros de plantas medicinais da oficina do Horto. Alguns

rapazes cuidavam do lugar, ignorando o sol ardente que parecia dar mais vitalidade às flores.

Fui conduzida pela assistente social a alguns espaços específicos como a sala dos espelhos e

uma pequena oficina, onde um dos instrutores produz xaropes com as plantas medicinais,

quando sobra algum recurso para a compra do material necessário.

A sala dos espelhos não é bem uma sala, é um alpendre no qual acontece a oficina

de Balé. Localizada à sombra de uma grande árvore, o que ameniza a temperatura do

ambiente, esse espaço serve ainda para reuniões, atividades artísticas e culturais. Logo em

seguida está localizada a cantina com o refeitório.

Embora com toda a problemática de disponibilização dos recursos para as ações

de prevenção da violência, aquele lugar parecia sobreviver, sobretudo com os esforços dos

profissionais que, segundo a assistente social, se empenhavam para desenvolver as atividades,

mesmo com os poucos recursos, utilizando como estratégias os patrocínios e a formação de

parcerias.

Durante a conversa com ela, fui tomada por uma mescla de sensações. Em alguns

momentos acreditava que podia ficar, que daria para explorar aquele lugar; em outros pensava

que seria melhor procurar outro espaço, talvez conhecer um dos projetos de Proteção Social

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Especial, trabalhar com jovens em cumprimento de medidas socioeducativas, ver o outro lado

da moeda. E essas incertezas me angustiavam.

Saí de lá sem certeza alguma. Não sabia se ia voltar, mas deixei a porta aberta.

Disse que ligaria e de novo voltaram às sensações. Ainda no percurso de volta para casa,

refletindo sobre o que tinha visto naquele local, percebi que aquele espaço reunia juventudes,

políticas públicas, sonhos, vida. Decidi ficar.

Enfim, havia encontrado um lugar para meu objeto de pesquisa. É claro que ainda

enfrentei algumas dificuldades, pois as decisões são muito centralizadas e o acesso não era

fácil, sempre quando telefonava, a ligação era transferida várias vezes até chegar à pessoa

certa para conferir a solicitação. Mas, depois de muitas idas e vindas, afinal tive a permissão

que tanto precisava e, assim, iniciei as visitas com a certeza que teria muita coisa para

investigar, vivenciar, descobrir.

As atividades que se davam ali, sim, eram ações de Políticas Públicas. Mas eram

desenvolvidas com foco na prevenção da violência? E, nesse contexto, essas ações são

pensadas de forma conjunta com a Política de Segurança Pública do Estado? Pretendem

contribuir para a redução das taxas de jovens envolvidos em práticas violentas? E a Política de

Juventude nesse contexto?

No ano de 2007 o Ministério da Justiça lançou o Programa Nacional de Segurança

Pública com Cidadania (PRONASCI), com o objetivo de promover a prevenção, controle e

repressão da criminalidade por intermédio da articulação de políticas sociais e de segurança

pública e de ações agregadas entre Municípios, Estados Distrito Federal e União.

Por outro lado, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), criada em 2004

já objetivava, mediante as ações da Proteção Social Básica, a prevenção de situações de risco

de populações em condição de vulnerabilidade social “decorrente da pobreza, privação

(ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e, ou,

fragilização de vínculos afetivos” (BRASIL, 2005, p. 33), por meio de serviços, programas,

projetos e benefícios desenvolvidos com as demais políticas “de forma a superar as condições

de vulnerabilidade e a prevenir as situações que indicam risco potencial.” (p. 35). No entanto,

esta mesma lei determinava a divisão de competência entre os entes federativos, passando a

ser responsabilidade do município as ações da Proteção Social Básica como o Espaço Viva

Gente que, até então é executado pela STDS, órgão do governo do Estado.

Especificidades como essas podem ser determinantes na execução das diversas

práticas governamentais. Sem pretender adentrar a discussão sobre a divisão de competência e

a burocracia que viabiliza ou não ações do Estado, foco nessa pesquisa o Espaço Viva Gente e

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as juventudes que dele se beneficiam, buscando compreender se, ou em que momento, as

Políticas Públicas direcionadas aos jovens se coadunam com as Políticas de Segurança

Pública, tendo em vista a prevenção da violência.

2.3 O ESPAÇO VIVA GENTE: LOCUS DA PESQUISA

O Espaço Viva Gente é sediado no bairro Passaré, em Fortaleza, atende crianças e

jovens em situação de risco, que são contempladas com atividades socioeducativas, artísticas,

culturais, esportivas e de lazer e iniciação profissional. De acordo com uma matéria publicada

no Jornal O Povo8, o bairro possui 37.369 moradores, distribuídos em uma extensão de 7,16

km². Dividido nos conjuntos Sumaré, Residencial Passaré, Jardim União, Jardim Castelão,

Barroso II, Novo Barroso e os loteamentos Santiago de Compostella e Novo Passaré, conta

com uma grande área verde, pois faz margem com um dos trechos do rio Cocó. Como

equipamentos sociais do bairro, merecem destaque o Horto Municipal Falconete Fialho e o

Zoológico Municipal Sargento Prata, que formam o Parque Ecológico do Passaré.

Para um observador pouco atento, o bairro Passaré parece apenas um lugar em

plena expansão imobiliária provocada pela Copa do Mundo de 20149, tendo em vista a

proximidade do bairro com o principal estádio de futebol da cidade, o Castelão, hoje

denominado Arena Castelão. No trajeto do ônibus até o Espaço Viva Gente é possível ver

muitos condomínios recém-construídos e ainda outros em construção. Esse “progresso”

realizado pela especulação imobiliária também resulta em investimentos nas vias de acesso a

esses locais que acompanham os percursos por onde passam, resultando em melhorias na

infraestrutura de ruas e avenidas. No entanto, tal progresso é pontual, pois privilegia rotas

específicas e segrega grupos localizados em espaços físicos próximos, mas que se utilizam de

áreas distintas.

Teresa Caldeira (2000), analisando a organização do espaço urbano em São Paulo

ao longo do século XX, discorre sobre três formas distintas de segregação. Iniciando-se no

final do século XIX, ela explica que a primeira forma se caracteriza pela ocupação dos grupos

sociais em pequenas áreas do espaço urbano, tendo como principal meio de distinção a

moradia habitada. Dos anos 1940 até os 80 ela observa que a cidade sofre um

8 Dados baseados em reportagem extraída do Jornal o Povo:

http://www.opovo.com.br/app/colunas/opovonosbairros/2013/04/11/noticiasopovonosbairros,3036928/passare-

o-bairro-com-cheiro-de-verde-e-brisa-no-meio-da-tarde.shtml 9 Evento Futebolístico realizado pela Fedération Internationale de Football Association (FIFA), disputado em

sua 20ª edição e pela segunda vez no Brasil no ano de 2014, por 32 seleções mundiais em 12 cidades-sede,

dentre as quais a cidade de Fortaleza.

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desenvolvimento centro-periférico, no qual os grupos sociais têm as grandes distâncias como

referência, uma vez que a classe média e alta se estabelece em bairros centrais e beneficiados

com obras estruturantes, enquanto as classes sociais menos favorecidas habitam as periferias

longínquas. Embora essa segunda forma ainda seja evidente nas cidades, a autora aponta uma

terceira que sinaliza para o uso de espaços físicos próximos por diferentes grupos sociais, mas

segregados pela utilização de muros e aparatos de segurança tecnológicos e pela não

utilização de áreas comuns para circulação ou interação, o que é explicado pelo medo da

violência.

Segregação que Caldeira (2000) diz ser uma característica peculiar das cidades, e

nesse sentido, observo que Fortaleza não se diferencia. Para a autora,

As regras que organizam o espaço urbano são basicamente padrões de diferenciação

social e de separação. Essas regras variam cultural e historicamente, revelam os

princípios que estruturam a vida pública e indicam como os grupos sociais se inter-

relacionam no espaço da cidade (p. 211).

Andar pelas ruas do bairro me causa essa impressão, e basta continuar adentrando

para perceber como a segregação é evidente. Os conjuntos compostos predominantemente por

pessoas de baixo poder aquisitivo, embora muito próximos das áreas atingidas pela

especulação imobiliária, continuam com as mesmas perspectivas e com a falta de muitos

serviços básicos, como pavimentação de ruas, saneamento e ausência de espaços de lazer,

dentre outros. As avenidas largas e pavimentadas começam a dar espaço para ruas estreitas,

compostas por casas bem pequenas. Nessa região também está localizada algumas

comunidades como Rosalina e Riacho Doce, conhecidas por serem apresentadas

constantemente nos programas policiais da cidade, dados os frequentes assassinatos e o tráfico

de drogas.

Outra particularidade do bairro é a existência de quatro centros de atendimento à

adolescentes do sexo masculino em conflito com a lei, são eles: Centro Educacional São

Francisco e Centro Educacional São Miguel, ambos de internação provisória; Centro

Educacional Dom Bosco, de internação; e o Centro Socioeducativo Passaré, para internação

de primários10

. Todos são localizados próximos ao Espaço Viva Gente. Esse fato é importante

porque mexe com a dinâmica do bairro, uma vez que é comum ocorrerem rebeliões e fugas

10

Todos integram o serviço de Proteção Social Especial da STDS. A Proteção Social Especial é destinada a

famílias e indivíduos que sofreram violação ou ameaça a seus direitos, tem natureza protetiva e atividades

diferenciadas de acordo com a complexidade: http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaoespecial.

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nesses Centros Educacionais. Essas fugas são facilitadas devido ao baixo número de policiais

que trabalham no local, estrutura precária e superlotação.

O Espaço Viva Gente era sediado no espaço que deu lugar ao Centro

Socioeducativo Passaré. Com a mudança do endereço físico, o Projeto, que antes atendia

1.370 pessoas, teve seu atendimento reduzido para um público de 600, pois o novo local conta

com menor infraestrutura e não ocorreu ampliação para recebê-lo.

O Projeto atende 79 crianças e jovens em atividades esportivas como capoeira,

caratê, atletismo, futebol; 84 em atividades artísticas, distribuídas nos cursos de choro, coral,

balé, dança, flauta, percussão, teclado, violão e técnica vocal; e 197 jovens com o Programa

de Capacitação Profissional, em cursos como artes decorativas, corte e costura, biscuit,

cabeleireiro, mosaico, horto e jardinagem, informática básica e serigrafia11

. As inscrições

ocorrem a cada quatro meses.

Os jovens atendidos têm acesso a uma refeição por dia. Eventualmente ocorrem

palestras sobre temas como violência, prevenção de drogas e primeiros socorros, dentre outras

temáticas, ministradas por convidados de instituições e voluntários. O projeto oferece ainda

bolsas12

para jovens de 14 a 18 anos incompletos que se destacam nas oficinas, a partir de

critérios como frequência, comportamento e participação.

Para os bolsistas são realizados encontros mensais nos quais são tratados temas de

interesses sociais. Também são realizadas oficinas com as mães dos jovens sobre temas de

relevância social. Outras atividades desenvolvidas pelo projeto são o atendimento individual e

à família, encaminhamento ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), hospitais, defensoria

pública, e promotoria de saúde.

11

Dados referentes ao período da realização da pesquisa (setembro de 2013 a outubro de 2014). 12

No período em que iniciei a pesquisa eram oferecidas 100 bolsas no valor de 80 reais, mas ao longo do tempo

a quantidade de bolsas disponibilizadas e os critérios na distribuição foram alterados devido à corte nas verbas

que viabilizavam o pagamento.

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2.4 DOS PERCALÇOS NA TRAJETÓRIA DO CAMPO: A EXPERIMENTAÇÃO DO

“LADO DE FORA” DE UMA REBELIÃO

Rebenta na FEBEM rebelião, um vem com um refém e

um facão, a mãe aflita grita logo: não! E gruda as mãos

na grade do portão.13

(Lenine e Carlos Reno)

O pesquisador quando entra em campo sabe que dele pode advir muitas surpresas,

desafios e experiências diversas, e em todo o meu percurso de imersão e pesquisa vivenciei

muitas imprevisibilidades. Mas nunca imaginei que em meu roteiro investigativo me

aguardasse o medo como parte do processo da trajetória do campo. Inicialmente porque se

tratava de um projeto da Proteção Social Básica, e segundo, embora cercada por Centros

Educacionais, não imaginava que por trás de muros tão altos e tristes fosse possível qualquer

ocorrência que repercutisse em algo mais grave.

Desde que cheguei ao Espaço Viva Gente ouvi falar de rebeliões e fugas que

aconteciam nos Centros Educacionais. Inclusive algumas vezes, enquanto acompanhava as

oficinas, ouvia um barulho que, segundo alguns funcionários, eram os portões do Centro

Educacional sendo chacoalhados pelos internos, sinalizando algum descontentamento, o que

poderia resultar em conflitos. Em outra visita fui informada que no dia anterior havia

ocorrido a fuga de alguns adolescentes. No entanto, todas as minhas idas ao espaço eram

marcadas por muita tranquilidade e por isso não via motivos para me preocupar.

Depois de muitas idas e vindas, combinei uma entrevista com uma funcionária.

Era quase meio-dia quando desci do ônibus. Fui me aproximando do portão e logo na entrada

o porteiro me avisou que as atividades haviam sido encerradas. Fiquei muito chateada, pois

havia telefonado, combinando o dia e horário e não estava entendendo a mudança de planos

que havia acontecido. Perguntei se a pessoa que eu ia encontrar estava lá e, quando tive a

confirmação que estava, entrei, mesmo percebendo que o porteiro não tinha aprovado muito a

minha decisão.

Logo quando cheguei à porta da secretaria vi que todos estavam prontos para sair.

Tentando me informar sobre o motivo pelo qual o expediente havia sido encerrado, conversei

com uma funcionária, que me disse que estava acontecendo uma rebelião no Centro

Educacional ao lado do Projeto e, por isso, não era seguro continuar as atividades.

13

Trecho da música “Ecos do Ão” de autoria dos compositores Lenine e Carlos Reno.

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Nesse momento, embora não estivesse vendo ou ouvindo os rumores da rebelião,

fiquei bastante apreensiva, mas ainda assim perguntei a funcionária se retomariam as

atividades no dia seguinte. Depois de alguns minutos de conversa, acompanhei algumas

funcionárias que estavam indo em direção à parada do ônibus. Senti-me aliviada quando este

veio e pude sair de lá.

Tomei essa experiência como um fato não muito agradável do campo, mas não

considerei tão importante com relação à segurança porque me pareceu algo pontual e de fácil

controle. Por precaução, embora a funcionária tivesse confirmado que o expediente seria

normal no dia seguinte, optei por não voltar imediatamente, esperar passar o final de semana e

retornar na segunda-feira. Desta forma procedi. Combinei com a pessoa que a entrevistaria na

segunda. Na ocasião também acertaria a realização de um grupo focal.

Na segunda-feira cheguei por volta das 14 horas. Entrei na secretaria e fiquei

aguardando o atendimento, pois a funcionária a ser entrevistada encontrava-se ocupada. A

rotina do Espaço estava como de costume e me transmitia a tranquilidade que eu sempre

sentia ali. Depois de ter tomado um chá de Erva Cidreira fui convidada a entrar e então

comecei a entrevista. Durante a conversa, perguntei sobre a rotina do Centro Educacional,

inclusive se já havia sido normalizada e me certifiquei que sim. A entrevista ocorreu como

planejada.

Já passava das 16 horas quando eu estava organizando meu material com a

intenção de procurar ainda dois funcionários do local. Estava sem pressa e conversava quando

ouvi uma funcionária comunicar que naquele momento haviam sido disparados alguns tiros.

Ouvi aquela frase, mas não relacionei a nada e continuei onde estava. Quando indagada pelo

motivo dos disparos, a funcionária explicou que se tratava de uma nova rebelião.

Ouvir essa palavra me fez imaginar o que estaria acontecendo, pois, embora

estivesse próxima, não havia ouvido os disparos, talvez por estar muito concentrada no que

estava fazendo. Nesse momento me levantei de onde estava e procurei mensurar o tamanho do

problema. Ao sair da sala percebi que do outro lado do muro, dentro do Centro Educacional,

subia uma fumaça preta, indicando que haviam colchões sendo queimados, e para mim,

embora nunca houvesse vivenciado algo parecido, isso indicou um tumulto já generalizado.

Nesse momento um instrutor que entrou na secretaria se mostrou muito

apreensivo e afirmou que a situação era preocupante, pois os jovens estavam no pátio e não

nas celas, o que facilitaria a potencialização do conflito, assim como uma fuga em massa. Isso

me deixou muito aflita e logo em seguida, ao ouvir um barulho, o mesmo instrutor explicou

que o telhado estava sendo apedrejado.

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O Espaço Viva Gente e o Centro Educacional Dom Bosco14

ocupam um

quarteirão e são separados apenas por um muro. A cerca cortante que cobre o muro é

desgastada, provavelmente devido às constantes rebeliões. Ao fundo existe uma guarita onde

deveria haver um policial, mas que, pelo menos durante o período em que frequentei o

espaço, sempre se encontrava vazia. Em caso de fuga é comum os jovens utilizarem o Espaço

Viva Gente como rota, talvez porque a lateral do Projeto não seja murada, o que facilita a

fuga.

Figura 3 - Parte do muro entre ambos os espaços

Cerca cortante sobre o muro apresentava-se desgastada ou ausente

Fonte: Arquivo Pessoal

14

Depois dessa rebelião que culminou com a interdição do local pela Justiça, de acordo com reportagem do

Jornal O Povo à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) do Estado do Ceará informou ter

assegurado um recurso no valor de 3 milhões e 700 mil reais para a reforma desse e mais dois outros Centros

Educacionais em Fortaleza. A reforma estava prevista para iniciar ainda no ano de 2014. O Centro Educacional

Dom Bosco tem capacidade para 60 internos e no período do ocorrido estava funcionando com 187. A

superlotação e falta de estrutura do prédio já haviam sido motivo de uma Ação Civil Pública para a interdição.

Embora o número ideal para funcionamento seja 60 adolescentes a determinação da Justiça determinou que o

espaço poderia atuar com o número máximo de 102 internos, tendo em vista a reforma prevista do local.

Informações baseadas em reportagens disponíveis no Jornal O Povo:

http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2014/09/09/noticiafortaleza,3311989/apos-principio-de-motim-no-

centro-educacional-dom-bosco-mpe-pede-inte.shtml.

http://www.opovo.com.br/app/fortaleza/2014/09/11/noticiafortaleza,3313236/justica-interdita-centro-

educacional-dom-bosco.shtml.

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Figura 4 - Parte do muro com guarita ao fundo

Fonte: Arquivo Pessoal

Isso confere aos profissionais do espaço uma preocupação, pois além do fluxo

intenso de jovens, pais e funcionários no local as oficinas Horto e Futebol ocorrem ao ar livre,

o que torna os jovens vulneráveis em caso de fuga. Além disso, o Espaço Viva Gente tem

pouca área construída, o que significa poucas opções de abrigo. Teoricamente, em ocasiões

assim, a alternativa mais sensata seria o esvaziamento do local.

Diante das circunstâncias, todos os funcionários que já haviam sido liberados se

aprontavam para ir embora, então me dirigi ao portão para sair. Ao chegar lá, percebi que na

rua havia uma grande movimentação de pessoas assustadas que pareciam não saber aonde ir,

tendo em vista o que estava acontecendo do outro lado. Nesse momento já se tinha a notícia

que um funcionário do Centro Educacional havia sido atingido por bala e estava sendo levado

ao hospital.

Considerando que estar dentro do Espaço Viva Gente não era seguro, ir para a rua

e esperar o ônibus era ainda pior. Então nesse momento não via escolha além de ficar ali

mesmo, ao ar livre, perto do portão sem cadeado, sem nenhuma proteção, e pedir a Deus para

que a fuga não se iniciasse imediatamente. Para mim, naquele momento, iniciavam-se alguns

minutos de horror, porque eu não sabia bem o que esperar e não via nenhuma alternativa para

sair de lá.

Dentre os mais diversificados barulhos que ouvia, a maioria vindo do Centro

Educacional, de repente começo a ouvir as sirenes dos carros da polícia, que chegavam e se

posicionavam por trás do Espaço Viva Gente, local que seria a possível rota da fuga. A

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chegada da polícia significou para mim mais insegurança, porque agora o Espaço Viva Gente

estava no meio do conflito armado, com os revoltosos de um lado e a polícia do outro.

Como se já não bastasse toda a apreensão, inicia-se dentro do Centro Educacional

mais uma sequência de disparos. Nesse momento, uma das funcionárias que estava perto de

mim, e até então aparentava tranquilidade, mostrou-se muito preocupada com a possibilidade

de uma bala perdida e procurou se abrigar, o que me levou a sentir mais medo. Passaram-se

ainda alguns minutos depois que cessaram os tiros, mas que a meu ver, foram longos demais,

até que alguém gritou uma palavra que naquele momento me pareceu mágica: “o

Parangaba”15

! O ônibus estava vindo e, por felicidade, o motorista parou ali em frente,

embora não fosse parada de ônibus, para alívio de todos que, como eu não sabia qual seria o

desfecho daquela situação.

Mesmo dentro do ônibus, demorei a me sentir segura, uma vez que em grande

parte do percurso via muitas viaturas da polícia e da perícia se dirigindo em alta velocidade ao

local da rebelião. De tão nervosa que eu estava precisei conferir no meu corpo se realmente

não havia sido atingida por nenhuma bala.

Depois de vivenciar o imponderável cabe ao pesquisador o desafio de voltar ao

campo. Mas de acordo com Geertz (2001), para um estudioso, não há tarefa melhor do que

destruir um medo. Nesse caso, a volta seria fundamental.

2.5 COLEÇÃO DE MIUDEZAS: O DESAFIO DA INSERÇÃO NO CAMPO

Mas não é apenas de rebeliões nos vizinhos que vive o Espaço Viva Gente! Logo

cedo os portões são abertos para um novo dia de atividades, e o dia a dia é marcado por boas

agitações e muitas atividades artístico-culturais. O espaço ganha vida nos estúdios com as

oficinas de percussão, violão e teclado; nos jardins onde os jovens que fazem o curso de Horto

regam suas sementes; no laboratório de informática... A pesquisa requeria que eu conhecesse

cada vez mais esse lugar, os processos que nele ocorriam, que eu buscasse vivenciá-lo e

entendê-lo, pois nele estava a matéria-prima do meu trabalho.

Para eu estar nesse lugar foi um desafio, porque eu ficava pensando no que

deveria olhar primeiro. Era um lugar cheio, mas ao mesmo tempo vazio, pois as oficinas e

cursos aconteciam em locais e horários específicos. Eu precisava ser convidada para entrar,

para observar, para vivenciar tudo aquilo. Claro que eu já tinha acesso ao projeto e era

15

Referência à linha de ônibus local 321 – Jardim União/Parangaba.

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conhecida por todos da coordenação, mas a aproximação com os instrutores e jovens iniciava

naquele momento. E eu precisava fazê-la acontecer.

Dessa forma, comecei pedindo a programação para iniciar as observações, mas

parecia que as pessoas ficavam confusas ao perceberem que eu queria acompanhar as

atividades apenas como uma observadora. É difícil para as pessoas entenderem a preciosidade

da observação para um pesquisador, e quando te veem em um local em silêncio, apenas

olhando a movimentação, logo perguntam se você precisa de alguma coisa, se quer falar com

alguém. No entanto, como salienta Silva (2009), o percurso do etnógrafo no campo deriva da

conjunção exitosa ou atritada entre a orientação que o pesquisador quer produzir em seus

trânsitos pela pesquisa e a permitida pelos interlocutores.

Assim, percorrer os espaços do Projeto Viva Gente parecia ser difícil. Pelo menos

para mim que sou tímida, uma vez que cada movimento meu requeria uma nova identificação

e explicação do motivo de estar ali. É claro que essas coisas se resolvem com o tempo, com a

imersão no campo, com a caminhada com os sujeitos. Mas é assim em cada início de

pesquisa, e creio que faz parte da vida do pesquisador essa ansiedade inicial, que anuncia e

denuncia a importância de adentrar ao campo e ser recebida por ele.

Portanto, comecei por acompanhar as oficinas. Iniciar a observação, ser conhecida

pelos jovens, estabelecer com eles uma relação de confiança, investigar a importância daquele

espaço para eles e posteriormente obter mais informações, era fundamental para mim. É óbvio

que o pesquisador imagina algo sobre os seus sujeitos, mas conforme Silva (2009, p. 176),

“nenhum etnógrafo vai ao campo senão movido por incertezas, dúvidas e perguntas. Há algo

no campo que ele não sabe e não conhece. Seu movimento até ali é um movimento que busca

saciar tal ignorância e desconhecimento”.

Eu precisava saber e conhecer, então comecei a observar, pois de acordo com

Cardoso (2004, p.103), “observar é contar, descrever e situar os fatos únicos e os cotidianos,

construindo cadeias de significação”. Assim, observava o vai e vem dos jovens pelos

corredores, os instrutores iniciando uma nova oficina, as meninas e meninos cantando,

dançando e tocando violão, pandeiro, teclado. E por que não dizer dando um show no III

Festival de Música16

que reuniu músicos, jurados, o público contemplado pelo projeto e a

comunidade numa festa linda à sombra dos cajueiros. E a medida que eu observava me

surpreendia e depois me surpreendia de novo por ter pensando que já tinha visto tudo.

16

Evento realizado pelo Espaço Viva Gente.

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Na tentativa de acompanhar o maior número de atividades desenvolvidas,

procurava ir em dias e horários diferentes, de forma que eu pudesse passar pelas diversas

oficinas. Certo dia falei com o instrutor de percussão, pedi autorização para acompanhar sua

aula e ele atendeu ao meu pedido de bom grado. No entanto, quando achei que tinha chegado

à sua sala, parei e não entendi que a sua sala era a seguinte; ele continuou e eu fiquei na sala

em que estava, com a turma de violão. O instrutor era muito tímido e ficou sem entender a

minha presença. Quando percebi o engano não sabia como reagir: se iria procurar a turma da

percussão ou se continuava ali diante do instrutor que parecia constrangido com a minha

presença, o que também me constrangia. Com o objetivo de resolver tal impasse, expliquei

para ele o meu objetivo, perguntei se poderia ficar ali e depois de um tempo acompanhando as

atividades comuniquei-o que iria realizar observações na outra sala, com o instrutor que eu

havia feito a solicitação. Fiquei aliviada!

Continuei o meu processo de inserção, cada grupo que eu observava era um

desafio novo. O ser estranho em um grupo é um fator normal na pesquisa, e o processo de

aceitação/interação ocorre de maneira diferente nos vários espaços, de acordo com as

características das pessoas que compõem o grupo. Isso para mim foi muito notório. Enquanto

em uma oficina a maioria se mostrava mais introspectiva ou simplesmente alheia à minha

presença, em outra, com um único contato, já me acolhia de forma bastante receptiva.

Isso se dava também com os instrutores. Alguns eram mais tímidos, o que

dificultava a interação; outros pareciam se sentir um pouco incomodados com a minha

presença, sobretudo aqueles cujas oficinas aconteciam nas salas, uma vez que estas são muito

pequenas, o que torna a presença de uma estranha ainda mais notável; e outros já

apresentavam total disponibilidade e interesse pelo meu objetivo de estudo, deixando claro

que se eu precisasse de algo poderia solicitar.

Esses detalhes fizeram com que eu me aproximasse mais de dois grupos: o do

Horto e o do Futebol, pois são atividades que acontecem ao ar livre.

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Figura 5 e 6 – Canteiros de hortaliças e plantas medicinais do Horto

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 7 e 8 – Vista lateral do Campo de Futebol

Fonte: Arquivo Pessoal

A minha presença, embora notada, ocorreu de forma menos constrangedora, uma

vez que em um espaço amplo a sensação de estar sendo observado é bem menos perceptível,

conferindo uma interação de forma mais natural. E assim, colecionando miudezas, trilhei os

caminhos da pesquisa entre os percalços e as contribuições do campo.

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2.6 FUTEBOL E MÚSICA NO ESPAÇO VIVA GENTE

Diante do jogo de forças originado das demandas de setores da população e

órgãos governamentais e não governamentais, o poder público, em relação ao enfrentamento

da violência, se depara com o desafio de propor ações que contribuam para a melhoria de vida

das populações imersas em realidades marcadas pelas desigualdades sociais. Nesse sentido,

têm-se entendido que as opções de enfrentamento da violência passam por ações diversas que

incluem, em maior medida, a repressão e a punição aos crimes e, ações que buscam a

prevenção à violência mediante projetos sociais, em especial para a juventude considerada

vulnerável. Dessa forma, para além de práticas repressivas, alguns programas e projetos têm

sido direcionados para a prevenção como alternativa para a problemática da violência.

Exemplo nos últimos anos foi o PRONASCI, que se apresentou como tentativa de transformar

a realidade a partir do desenvolvimento de ações integradas, diante das tentativas que vão

sendo elaboradas e que tomam como alvo a juventude (PINHEIRO, 2013).

Nesse sentido, “o esporte entre outras estratégias apresenta-se como um dado

importante para potencializar resultados na área da segurança pública.” (PINHEIRO, 2012, p.

98). Assim, em realidades marcadas pela violência, a execução de projetos relacionados à

educação, arte, cultura, lazer e, sobretudo ao esporte têm sido ferramentas cruciais utilizadas

por gestores públicos, que contribuem para disciplinamento de jovens oriundos de classes

populares, no sentido de tirá-los das ruas representadas como lugar do risco e da violência.

Também, tem se apresentado, de alguma forma, como espaço de possibilidades para os jovens

em termos de cultura, esporte, lazer, arte, educação e profissionalização. São experimentações

de estratégias de prevenção e proteção no âmbito de projetos sociais e da segurança pública.

O Espaço Viva Gente, utiliza-se dessas práticas.

2.6.1 Um dia atípico no Espaço Viva Gente

Mais um dia de futebol no Espaço Viva Gente, os garotos estavam bem animados.

É incrível como esse dia aparece nítido nas minhas lembranças, embora eu não tenha anotado

nada no momento, visto que os acontecimentos se davam em uma velocidade impressionante.

Como afirma Silva (2009, p. 176), “ver, diferente de olhar pura e simplesmente, sugere uma

organização do que foi olhado, espiado, espionado, entrevisto, reparado, notado, percebido”, e

o percurso etnográfico requer um olhar apurado, pois, segundo Oliveira (2006, p. 19), “talvez

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a primeira experiência do pesquisador de campo – ou no campo - esteja na domesticação

teórica de seu olhar”.

O instrutor não estava no momento da minha chegada e, para mim, a

movimentação pareceu mais intensa que normalmente. Por alguns instantes eu não sabia bem

o que estava acontecendo. Os jovens procuravam desordenadamente se organizar para fazer o

que tanto gostam. Havia dois times em campo, diferenciados por coletes de duas cores, e

muitos outros fora do campo aguardando ansiosamente por sua vez de jogar. E, a todo o

momento, chegavam mais jovens, à medida que saíam do refeitório. Os que chegaram

primeiro, que pareceu ser os que estavam dentro do campo, tinham feito isso com a intenção

de serem os primeiros a jogar.

Fiquei observando a agitação. Era muita gritaria. Eles se movimentavam

repetidamente tentando fechar os times, o que parecia ser algo difícil para o momento. Um

garoto com apito na boca apitava o tempo inteiro na tentativa de manter a ordem, enquanto

outros garotos entravam e saíam do campo em uma movimentação confusa: “Vai chamar o

Instrutor!”, ordenou um, “Vai tu!”, respondeu o outro. Por mais que tentassem se organizar

por si mesmos para não perder um minuto do futebol, naquele momento eles percebiam que

aquilo não era bem possível.

Visualizando aquele tumulto de fora do campo, entre crianças e adolescentes,

todos do sexo masculino, percebi um garoto bem perto. Aproveitei para conversar com ele.

Disse-me que nas sextas-feiras os jogos eram livres, o que significava que jovens de outras

turmas poderiam participar, e que a turma presente era composta em sua maioria por garotos

mais novos, diferente da turma da qual ele fazia parte nas terças e quintas, em que os garotos

eram mais velhos. Ele tinha dezesseis anos e estava no Espaço pelo menos há dois anos.

Participava das oficinas de violão e futebol. Segundo ele, era fundamental estar ali, porque

perseguia o exemplo do irmão mais velho que, inserido nas atividades do Espaço, havia

participado de várias oficinas e do Projeto Primeiro Passo17

, através do qual já estava

trabalhando. Olhando para a direção em que os meninos estavam jogando, disse que o Espaço

Viva Gente era importante para todos aqueles meninos, pois “se eles não estivessem aqui, em

que lugar eles estariam?”.

17

Projeto da STDS que objetiva inserir jovens de 16 a 24 anos incompletos, no mercado de trabalho. A iniciativa

visa à qualificação profissional a partir do ingresso em empresas públicas e privadas, na condição de estagiário,

bolsista ou jovem aprendiz. Para maiores informações ver: http://www.stds.ce.gov.br/index.php/noticias/40-

unidades-setoriais/117-projeto-primeiro-passo.

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Como afirma Silva (2007), cerca de oito milhões de jovens brasileiros estão em

lugar nenhum, ou seja, nem na escola, nem no trabalho. Por outro lado, 90% dos adolescentes

brasileiros internados em situação de conflito com a lei não completaram a oitava série, o que

representa um exército de jovens habitantes de “lugar nenhum”, formando vidas descartáveis,

postas à disposição do tráfico e do crime organizado.

Durante toda a minha inserção no campo, essa ideia do lugar onde a juventude

“deve estar” é muito presente na fala tanto dos funcionários do projeto quanto dos próprios

jovens. É como se todos aqueles que não chegaram ao crime soubessem qual é o lugar de

recrutamento deste, aquele no qual eles não podem adentrar se não quiserem ser as próximas

vítimas. Dessa forma, o Viva Gente é valorizado pelos jovens por ser esse espaço de oposição

ao lugar nenhum e à rua, apontada como cenário em potencial aos riscos da criminalidade e

das drogas.

Para Pinheiro (2013, p. 94), “questões como a inserção precoce no mundo do

crime, a participação em gangues, as execuções sumárias decorrentes do tráfico de drogas,

além é claro, do direito ao lazer, educação e trabalho”, são desafios que se apresentam às

diversas instâncias governamentais, exigindo a adoção de medidas que viabilizem a redução

dos custos da violência, especialmente relacionadas a jovens pobres que têm seus direitos

violados.

Enquanto eu conversava com o garoto, o instrutor chegou e novamente voltei

minha atenção ao campo. O jogo já havia começado, com a autonomia e a capacidade de

organização deles, da maneira que foi possível. Dentro de campo o jogo continuava a mil e a

interação parecia bem conflituosa. Logo começaram os palavrões, insultos e reclamações

contra o juiz. Fora de campo dois garotos começaram a “brincar” de machucar um ao outro,

até que um dos garotos jogou uma pedrinha no colega, que revidou com alguns pequenos

golpes, afirmando que o outro não sabia “brincar”, mas depois pareceu ficar tudo bem.

Conflitos como esses são comuns, ainda mais quando se trata de jogo, em que a rivalidade e

competitividade imperam, ou da “brincadeira” fora do campo. Conflito é algo inerente às

relações humanas, acontece, mas como tratá-lo?

Para Georg Simmel (1983), o conflito atua como produtor ou modificador de

grupos de interesse, visto que é impossível em uma união ou organização o imperativo de

uma harmonia absoluta. Segundo o autor, existem muitas causas que provocam a dissociação

em um grupo, levando-o ao conflito, que se estabelece como parte fundante dos grupos

sociais. Sentimentos como ódio, inveja e desejo podem estar associados aos processos

conflitivos. No entanto, esses conflitos precisam ser trabalhados, porque se a harmonia não se

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constitui em um processo vital nos grupos, as divergências unicamente não conduzem a

sociação. Ânimos alterados não é novidade no caso do futebol, visto que a adrenalina

provocada pelo jogo impõe aos garotos um ritmo frenético de disputa, já aguçado pela

competição, além da própria forma com que são acostumados a lidar com o outro,

normalmente com muito contato físico, xingamentos etc.

Nesse sentido, o futebol é um esporte que pode gerar conflitos, mas também

provoca coesão e unidade do grupo, e assim, como afirma Simmel (1983), a competição pode

levar ao processo de sociação. No caso do Viva Gente, parecia que os jovens precisavam

resolver as divergências que eram criadas ali mesmo, mas também eram ali resolvidas.

A troca de times foi outro momento conflituoso. Pela “legislação” vigente, troca-

se de times a cada dois gols marcados. O instrutor afirmou que apenas entrariam os times de

fora, sendo que vários que haviam acabado de jogar se preparavam para continuar em campo.

Enquanto os outros entravam, eles se misturavam na esperança de não serem percebidos, no

entanto, os que estavam fora apontavam aqueles que estavam tentando burlar a “lei”.

O “dono” de um time – aquele que por questões carismáticas ou por se destacar

como um bom jogador é definido como líder e tem o direito de escolher quem participará de

sua equipe – se chateou por não poder deixar os colegas que ele queria, pois achava que os

outros garotos eram “fracos”. Enquanto isso, os outros protestavam, apontando aqueles que

ousavam ficar, até que o instrutor falou que quem não saísse imediatamente seria convidado a

se retirar e perderia o direito de jogar naquele dia. Após isso, dois garotos que entravam no

campo trocaram empurrões e um deles bateu no rosto do outro. Quando eu vi aquele tapa

atingir o rosto do outro e a reação do atingido, fiquei realmente preocupada, pensando em um

desfecho horrível para a situação. A vítima imediatamente revidou com alguns chutes e uma

leve “voadora”.18

Isso aparentemente resolveu o problema e voltaram a jogar.

Percebi que o jovem vítima do tapa era o mesmo que, minutos antes, havia sido

questionado pelo instrutor sobre o motivo de estar dando trabalho a sua mãe. Ele se

posicionou dizendo que não era verdade. Tentando conversar, o instrutor perguntou o que

estava se passando em casa e ele disse não haver nada e que já tinha “saído fora”. O instrutor

então perguntou se ele havia saído de casa e onde estava, ele confirmou e disse que estava

morando com o pai.

Simmel (1983, p. 123) explicita que “todas as formas sociais aparecem sob nova

luz quando vistas pelo ângulo do caráter sociologicamente positivo do conflito”. Para Simmel,

18 Golpe das artes marciais que geralmente atinge a parte superior do tronco do oponente.

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o conflito é destinado a resolver divergências, por seu intermédio é possível chegar à unidade.

No entanto, esse caminho às vezes se dá através da aniquilação de uma das partes conflitantes,

porquanto se faz necessário o contato com forças unificadoras, haja vista que relações

conflitivas dependem de outras ações para produzirem estruturas sociais, necessárias à

constituição de grupos coesos e concretos.

De acordo com um funcionário, no Espaço Viva Gente o futebol tem um foco

educativo e não competitivo. Alguns jovens que se destacaram já foram levados a fazer testes

em algumas escolas de times da cidade, mas o foco é outro. O esforço do instrutor se dá na

tentativa de transmitir aos jovens regras básicas de convivência, demonstrar a importância do

respeito ao outro, do bom relacionamento, da família e da escola, dentre outros valores que,

segundo os funcionários, às vezes não são repassados em casa.

Diante das contribuições que o esporte pode oferecer como aliado à segurança

pública é perceptível a sua utilização como estratégia de disciplinamento, como explicita

Pinheiro (2012). Assim, é preocupação dos funcionários contribuir para uma efetiva

socialização dos jovens a partir da transmissão de valores e normas que parecem oportunas,

sobretudo tendo em vista a condição de jovens marginalizados e a conjuntura de laços sociais

fragilizados, detectados pelos funcionários que se sentem na responsabilidade de agir.

Voltando às observações sobre o jogo, faz parte do grupo um jovem que possui

Síndrome de Down. Este timidamente falou comigo quando fomos apresentados pelo

instrutor. Assim como os outros, ele também tinha seu time e participava de toda a disputa e o

“jogo” de força para entrar em campo. Na ansiedade de jogarem, era formada uma “fila”, na

qual cada um dizia o seu lugar, antes ou depois de fulano. Essa “ordem” mudava

frequentemente. Cada um persuadia os outros à sua maneira para ter o seu lugar na fila, e

então falavam ao instrutor a sua posição, que era confirmada ou negada pelos colegas.

Na tentativa do jovem não ser deixado para trás, o instrutor determinou que ele

entrasse com seu time. Logo depois de selecionar seu time, que já estava previamente eleito,

o jovem entrou em campo e, para minha surpresa, imediatamente foi apitado o final da

partida. Na verdade eu perdi os detalhes, uma vez que foi muito rápida e a todo o momento

havia jovens na minha frente, correndo por um lado e jogando bola de outro. Eu precisava

ficar esperta, tanto para não perder os detalhes da observação, como para não ser atingida pela

bola, o que não me impediu de levar duas “boladas” que quase me derrubaram do banco em

que estava sentada. Por sorte não foram na cabeça, porque aí sim, teriam me derrubado!

Na busca por entender o ocorrido, ouvi quando o instrutor falou com o juiz que

acabara de apitar o jogo, “Eu vi, tá? A sacanagem que você fez com o garoto!”, e então

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confirmei que de alguma maneira os jovens sabotavam a participação do garoto com síndrome

de Down. Porém não entendi a participação do seu time nesse contexto, se eles apoiavam ou

não essa atitude, uma vez que o time não é composto apenas por ele, mas sim por todos os

outros integrantes que também queriam jogar futebol.

Depois desse fato, que deixou o jovem chateado, o instrutor avisou que, devido ao

horário, as próximas partidas seriam de apenas um gol. Em seguida, depois da reclamação de

outro sobre a formação dos times, ele informou também que os jovens poderiam jogar com os

times de dentro, já que todos já haviam jogado, o que foi recebido com muita reclamação por

uns e aplausos por outros. Também mudou o juiz, que antes era um dos garotos e agora

passou a ser ele próprio.

O jogo continuava tenso, com muitas reclamações. Um jovem reclamava que

havia sido unhado nos braços pelo colega e ainda tivera o nariz machucado. Reclamavam do

juiz e pediam atenção, “Presta atenção no jogo”, afirmando que ele se desconcentrava, por

falar com algum jovem fora do campo ou até mesmo comigo, e perdia faltas cometidas em

campo, o que os deixava muito revoltados.

Diante desse contexto, o que me chamou a atenção foi a importância atribuída ao

juiz. Para os jovens, é inadmissível manter comportamento inadequado dentro de campo, no

papel de jogador de futebol, o que deve ser imediatamente punido, seja com cartão amarelo de

falta ou até mesmo com a expulsão, dependendo da gravidade da infração.

E voltavam a gritar, “Manda o fulano apitar o jogo!”, mas o instrutor afirmou que

continuaria a apitar. A rotatividade se tornou muito rápida com a proposta de apenas um gol.

Entravam e saiam times em poucos minutos, e mais uma vez chegou o momento do time do

jovem com síndrome de Down, mais uma vez assegurado pelo professor e novamente

sabotado. O jogo terminou quando muitos ainda queriam ficar.

Para um observador qualquer, aquele poderia ser apenas um dia comum de futebol

no Viva Gente, afinal as partidas ocorrem todos os dias e futebol pressupõe essa

animação/alteração dos ânimos, provocadas pela paixão ao futebol e aumento da adrenalina

que faz o sangue esquentar, assim como o calor de trinta graus de Fortaleza.

Alterados pelo futebol ou apenas expressando suas características na forma de

tratar o outro, de lidar com o diferente, de assegurar seu lugar, aqueles são jovens que

vivenciam as suas juventudes, que têm no futebol o lazer, a diversão, talvez a mudança, como

pressupõe o Projeto, a educação, ou ainda o sonho de chegar à seleção brasileira, de mudar de

vida, de “ser gente”, como sugere a sociedade.

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2.6.2 A emoção do Festival de Música

Embora no Espaço Viva Gente muitas oficinas ocorram em salas de aula, existem

também muitas atividades que fogem a esse formato, sobretudo programações artísticas e

culturais que envolvem todos os participantes em uma única festa. Nesse sentido, fui

informada que haveria um festival de Música. O primeiro dia do festival coincidiu com um

dia de aula no mestrado e por isso não pude comparecer. Já que o evento aconteceria em três

dias, restou-me mais dois.

O local escolhido para o palco do evento foi um espaço ao ar livre. Embaixo da

copa de grandes árvores foi montada uma estrutura de som que receberia o talento de crianças

e jovens frequentadores do local. As cadeiras distribuídas em filas foram poucas para acolher

o número de pessoas que veio abrilhantar a festa e prestigiar aqueles que enriqueceram aquela

tarde com música e simpatia. Quando cheguei já não havia mais cadeira vazia, fiquei em pé

em um local que me conferia uma visão privilegiada.

Figura 9 – Plateia no segundo dia do Festival de Música

Fonte: Arquivo Pessoal

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Figura 10 – Plateia no terceiro dia do Festival de Música

Fonte: Arquivo Pessoal

Com papel e lápis na mão, tentando ainda dar conta da bolsa e do celular para

registrar aquele momento, quase não percebia como a minha situação era incômoda. Queria

escrever, ver, viver, fotografar e guardar na memória aquele momento. Talvez quem olhasse

para mim daquela forma não entendesse porque aquela pessoa desconhecida pela maioria, que

provavelmente não estava ali para torcer por um familiar ou amigo, estivesse se desdobrando

para escrever em pé.

De acordo com Silva (2009), uma cena etnográfica só é confiável quando o

pesquisador se inclui na paisagem desenhada. Entretanto, é necessário que haja um ajuste

entre a expectativa traçada por si próprio e a paisagem em volta. Compete ajustar as

proporções entre o observador e o cenário observado, mediante as coisas e seres e o próprio

etnógrafo. Estar naquele lugar e vivenciar tudo aquilo exigia de mim fazer parte daquilo,

participar, acreditar, sonhar.

O público era composto por crianças, jovens, pais, mães, irmãos e primos de

beneficiários do projeto. Todos se apertavam para encontrar a melhor localização para

participar do evento. Formavam suas torcidas e vibravam. O evento organizado pela

professora de música do Projeto contava com o esforço de todos os instrutores de arte:

teclado, percussão, violão, coral e técnica vocal.

Todos os que se apresentaram no evento fizeram inscrição e participaram de

audição e ensaio. Somente aqueles que foram para o ensaio com os músicos podiam cantar e

os participantes cantavam acompanhados pelos músicos profissionais do projeto. Umas das

jovens participantes que cantou, também tocou violão.

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A dinâmica do evento propunha dois dias de apresentações com eliminações,

ficando os selecionados dos dois primeiros dias para disputar a final na sexta-feira. O último

dia do evento foi ainda mais especial. Para mim, que tinha achado o dia anterior cheio de

gente, esse tinha ainda mais pessoas e animação.

Era uma tarde de pouco sol, e o vento embaixo das árvores parecia ainda mais

agradável, embora o calor humano fosse contagiante. A festa ainda não tinha começado

quando consegui sentar em um local bem à frente. Mas quando a apresentadora pediu que

todos colocassem suas cadeiras um pouco mais à frente, logo percebi que não estava tão à

frente assim. A ideia era que fosse apenas um pouco mais, no entanto as pessoas avançaram o

quanto puderam, pois queriam registrar todos os detalhes daquele evento que parecia mágico.

Começava assim o último dia do Festival. A demora em começar aparentemente

incomodava a todos que aguardavam ansiosos por tudo que aconteceria ali. Mas era justo,

pois tudo devia sair perfeito. Depois de alguns minutos e com a mesa de jurados composta, foi

dado início ao último dia. Em poucos minutos seriam anunciados os três nomes vencedores

do festival.

E em meio a muitos aplausos, todos os vencedores da primeira eliminatória deram

o máximo de si para exibirem suas melhores performances e agradarem ao público. Como

havia grandes talentos ali! Todos, crianças e jovens, atuavam com um profissionalismo

impressionante. O último jovem a se apresentar causou comoção. Sua primeira apresentação

havia sido no dia em que eu havia faltado, e não entendi o motivo pelo qual quando ele pegou

o microfone todo o público fez absoluto silêncio. A reverência merecida foi justificada

quando ele começou a cantar. Fiquei arrepiada com o quão bonita foi a sua apresentação! Ele

foi o vencedor do festival.

Buscando mais informações sobre a realização do festival, fui informada que se

deu em tamanhas proporções graças à parceria firmada, que patrocinou toda a estrutura de

som e premiação. Quanto aos jurados profissionais, eram todos amigos de músicos

funcionários do Espaço, que foram convidados e participaram de forma voluntária. Os dois

festivais ocorridos em anos anteriores foram realizados na sala dos espelhos, apenas com os

instrumentos de som disponíveis no Espaço e um público bem reduzido.

Uma vez que o Espaço Viva Gente é cenário de arte e cultura como política

pública, considero que há condição de tornar esses eventos mais frequentes, à medida que

haja efetiva atuação do Estado. No entanto, o que fica notório na fala dos funcionários e pelo

que eu venho acompanhando na rotina do Projeto, é que não há recursos para esses eventos e,

portanto, a realização depende da vontade dos funcionários, sendo necessário que busquem

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arrecadar fundos para concretizá-los, seja por meios de patrocinadores ou mediante a venda

de produtos doados, dentre outras formas.

2.7 APROFUNDANDO QUESTÕES DE VIOLÊNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: A

UTILIZAÇÃO DE ENTREVISTA E GRUPO FOCAL COMO TÉCNICAS DE PESQUISA

2.7.1 Entrevistas

A entrevista é uma das estratégias mais usadas no trabalho de campo para a coleta

de informações. Definida como uma conversa que pode ser realizada entre dois ou mais

interlocutores, proporciona ao pesquisador obter dados sobre o objeto investigado ou de

relevância ao desenvolvimento da pesquisa (MINAYO, 2010).

Para o presente estudo realizei três entrevistas com funcionários do espaço. A

escolha desses profissionais se deu à medida que eu fui vivenciando o campo e necessitando

de maiores esclarecimentos acerca do funcionamento das atividades, objetivos do projeto e

desafios enfrentados. Outro critério importante foi a minha própria socialização, o momento

em que fui deixando de ser uma estranha e ganhando a confiança dos meus interlocutores,

pois como afirma Rosana Guber (2012), a relação social construída no processo de

socialização com os protagonistas da pesquisa influencia no desenvolvimento da entrevista, e

de acordo com Minayo (2012, p. 262), “está sujeita a mesma dinâmica das relações existentes

na própria sociedade”. Dessa forma, se faz necessário ao pesquisador a utilização de outros

elementos para a compreensão dos dados.

Para todas as entrevistas eu dispunha de um roteiro previamente semiestruturado.

Nas duas primeiras entrevistas que realizei, busquei responder as minhas inquietações iniciais

com base no que eu observava no campo e sentia necessidade de aprofundar ou esclarecer. A

escolha da modalidade de entrevista se justifica por me conferir um apoio nos

questionamentos com meus interlocutores, mas ao mesmo tempo possibilitar espaço para

novas informações que podiam surgir ao longo da entrevista. A terceira entrevista, que

também seguiu a mesma lógica, foi realizada no período de fechamento da pesquisa,

obedecendo a um roteiro no qual eu buscava sintetizar as minhas indagações sobre o campo.

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2.7.2 Os Grupos Focais

A dinâmica no Espaço Viva gente é intensa e a cada quatro meses ocorrem

inscrições para novatos. Os jovens que já participam do projeto são remanejados para outras

oficinas à medida que concluem as que participam, a partir de suas escolhas ou

disponibilidade de vagas. Alguns jovens estão no projeto há seis anos. Normalmente esses

com maior tempo passaram por várias oficinas, e a maioria saiu encaminhada para o mercado

de trabalho, por meio do Programa Primeiro Passo.

Com o objetivo de aprofundar a discussão com os jovens, optei por realizar o

grupo focal. Para tanto, inicialmente me dirigi à Assistente Social para solicitar a realização.

Embora desde o início tivesse ficado acordado que eu realizaria, precisava confirmar minha

intenção, solicitar uma data possível e apresentar minha proposta. Estava um pouco temerosa

antes da conversa, pois para mim ainda pesava um pouco a formalidade da “casa”. Dessa

forma, tinha em meus planos realizar o grupo focal apenas com os jovens das oficinas de

Horto e Futebol, grupos dos quais eu mais me aproximei e tive maior facilidade com os

instrutores. No entanto, minha proposta foi bem recebida e fui convidada a realizar o grupo

focal também com outras turmas. Diante da aceitação da minha proposta, conversei com o

instrutor do Horto, que seria a primeira turma19

, e já marcamos o dia. Realizaria com as

turmas de ambos os turnos, manhã e tarde, no mesmo dia.

Tinha combinado que seria embaixo das mangueiras, próximo aos canteiros do

horto, onde existem alguns bancos. O local é totalmente agradável, em contato com a natureza

e muito ventilado. Porém lembrei que precisaria gravar o encontro, a fim de registrar toda a

interação com os jovens, suas falas, seus anseios, suas perspectivas; o que seria inviável em

um espaço aberto como aquele, visto que a acústica do ambiente comprometeria a gravação.

Ao me dar conta disso, procurei a coordenação para reservar o auditório e prontamente fui

atendida em minha solicitação.

Era uma manhã de uma terça-feira, cheguei ao Espaço Viva Gente e me dirigi ao

Horto, na busca de encontrar meus sujeitos, mas o silêncio tomava conta do local, e não

encontrei o instrutor e nenhum dos jovens. Fui até as mangueiras na tentativa de encontrá-los

sentados nos bancos, mas ali ninguém estava. Comecei a me preocupar e fui à coordenação

perguntar pelos jovens. A assistente social foi procurá-los e disse que eu poderia ir para o

19

Com relação ao número de participantes, a minha intenção era trabalhar com grupos de 10 jovens, voluntários,

de cada turma. No entanto, os instrutores solicitaram que eu trabalhasse com toda a turma, e eu acatei a decisão.

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auditório, que eles me encontrariam lá. Enquanto isso, organizei o material, movida por um

sentimento inquietante. Encontrar aqueles jovens não era novidade para mim, eu era

conhecida por eles, chamavam-me pelo meu nome, o que significa muito para alguém que

tem um nome pouco comum. Havia certa afetividade, pois sempre estava presente nas

oficinas, acompanhando-os no cuidado com as plantas e atividades com os bolsistas. Porém,

esse encontro significava um passo adiante na minha pesquisa, seria uma interação mais

intensa e eu não sabia como iriam reagir, se seriam participativos, se estariam dispostos a

compartilhar seus sentimentos, impressões e significados tão próprias de suas realidades, de

suas vidas.

Também sentia uma responsabilidade imensa na forma como deveria conduzir as

discussões, pois para Minayo (2012), o grupo focal deve ser desenvolvido a partir da

elaboração de um roteiro “que vai do geral ao específico, em ambiente não diretivo, sob a

coordenação de um moderador capaz de conseguir a participação e o ponto de vista de todos e

de cada um.” (2012, p. 269). Desse modo, eu sabia que precisaria moderar o grupo, saber me

colocar para manter as discussões, no entanto não poderia intervir com minha opinião. Isso

tudo me causava certo frio na barriga. Os jovens foram chegando, alguns muito curiosos,

querendo saber o que se passaria. Com as cadeiras organizadas em círculo, todos se sentaram

e a assistente social fez uma fala inicial explicando o motivo de estarem ali, dizendo ainda

quem eu era e concluiu pedindo a participação e o bom comportamento de todos.

Quando se trata de juventude, essa questão do comportamento é algo muito

valorizado pelos adultos, sobretudo nas instituições. Ainda quando fui falar com o instrutor

sobre a data possível para realizar o grupo focal, ele explicou que, das duas turmas do Horto,

a do turno da tarde se destacava no comportamento e na participação, enquanto a da manhã

deixava muito a desejar. E, segundo ele, sempre incentivava os jovens a melhorarem,

utilizando o exemplo dos colegas.

Após a saída da assistente social, eu assumi a fala, me apresentei, falei sobre os

meus objetivos e informações pertinentes ao desenvolvimento das atividades. Tendo em vista

o comportamento ético, perguntei se eles me autorizavam a gravar suas falas, eles

concordaram e ficaram atentos para que nenhum colega fizesse brincadeiras ou falasse algo

“inapropriado”, que denotasse falta de educação da parte deles. Embora eu tenha notado que a

preocupação deles consistia apenas na imagem que estavam passando, expliquei que não se

preocupassem, que deviam agir naturalmente e não seriam identificados, visto que eu

utilizaria apenas o que fosse essencial para a pesquisa.

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Depois desse momento introdutório, realizei uma dinâmica com o objetivo de

integrar o grupo e prepará-lo para o debate. Para tanto, coloquei no chão várias gravuras com

temáticas diversas e pedi que cada um escolhesse a que mais lhe chamasse atenção. As

apresentações seriam iniciadas depois que todos fizessem suas escolhas. Cada um deveria

dizer o seu nome e idade e o motivo pelo qual havia escolhido a gravura. Logo que expliquei,

alguns imediatamente disseram que não participariam da dinâmica, justificando que eram

tímidos para apresentações como aquela. Na tentativa de convencê-los a participar, expliquei

que era bem simples e que estavam todos entre amigos.

Figura 11 – Dinâmica de Integração

Fonte: Arquivo Pessoal

Dado o tempo necessário para a escolha, começaram as apresentações. Perguntei

quem gostaria de começar e um participante se prontificou. Mesmo os que disseram não

querer apresentar-se, participaram. Um deles escolheu a gravura de uma moto e, antes de

dizer qualquer coisa, os colegas começaram a rir. Parecia que ia expressar o gosto por motos

ou o desejo de possuí-las. O sorriso dos colegas talvez quisesse indicar que ele não poderia

realizar tal sonho, quem sabe pelas condições financeiras atuais. Ele não justificou a sua

escolha.

Passado esse momento de socialização, o próximo passo consistia na divisão dos

jovens em grupos, para a leitura de algumas reportagens recentes relacionadas a situações de

violência em nossa cidade, publicadas em jornais locais de grande circulação. As matérias

foram selecionadas virtualmente, nos respectivos sítios eletrônicos dos jornais e levadas

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impressas para a realização da atividade. O objetivo foi fomentar a discussão sobre a temática

da violência, aprofundando outros pontos.

Figura 12 – Leitura em Grupo (Grupo Focal Horto/Manhã)

Fonte: Arquivo Pessoal

Figura 13 – Leitura em Grupo (Grupo Focal Horto/Tarde)

Fonte: Arquivo Pessoal

Foram quatro notícias selecionadas, com os seguintes títulos: “Mais de mil

adolescentes já foram apreendidos no Ceará em 2014”, “O porquê de tantos homicídios”,

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“Latrocínios: sete casos em 21 dias” e “Passamos dos mil homicídios” (Ver anexo A). O

intuito da formação de grupos era facilitar a leitura e estimular a discussão, levando-os a

refletir sobre as notícias para em seguida trazerem suas colaborações para o grupo maior.

Tendo em vista orientar a discussão com base nos objetivos do meu trabalho,

entreguei a cada grupo um roteiro para discussão no qual constava as seguintes indagações:

O que é violência?

Como eu percebo a violência no meu bairro?

A violência afeta a minha vida/minha família?

Como você compreende a relação entre a juventude e as notícias de

violência?

Que ações ou programas existem ou existiram no meu bairro que ajudam a

prevenir a violência?

De que forma o Estado desenvolve as ações de combate à violência?

Qual o significado do Espaço Viva Gente para você?

Que medidas você acha que poderiam ser usadas para evitar que os jovens

entrem no mundo da violência?

Expliquei que eles poderiam tomar esses questionamentos como base da

discussão, considerá-los a partir de sua leitura do mundo e vivências, mas que estavam livres

para falar o que julgassem conveniente.

Sugerir a leitura de um texto pode ser complicado quando se trabalha com jovens,

ainda mais quando se trata de algo sem gravuras, como era o caso. Foi notório o desinteresse

de alguns quando perceberam que precisariam ler, por isso tentei estimulá-los informando que

o texto parecia grande devido aos espaçamentos e tamanho da fonte, mas que na verdade não

era. Em dois grupos alguns jovens não participaram da leitura em conjunto, esperaram uns

terminarem para somente depois começar. Pelo menos um dos jovens não leu.

À medida que percebia que os grupos terminavam a leitura, entregava o roteiro.

Como percebi que ficavam dúvidas, expliquei novamente o objetivo da leitura do texto e li

todas as questões para o debate em todos os grupos. Quando todos haviam concluído esta

etapa, solicitei que voltassem ao círculo para iniciarmos a discussão. Depois de realizada a

discussão, cada jovem foi convidado a sortear uma frase, a qual eles deveriam completar a

ideia. As frases diziam respeito a perspectivas de vida, participação no Espaço Viva Gente e

violência. Tendo em vista a acalorada discussão anterior a essa atividade, os jovens

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participaram de forma produtiva, o que me levou a avaliar a experiência do grupo focal como

preciosa para a pesquisa, pois se constituía em um momento que eu tinha a oportunidade de

aprofundar as informações captadas no processo da observação.

Portanto, estava certa que realizaria ainda outros dois grupos focais, um com a

turma do Futebol e outro com a turma do Balé. Quando tracei a metodologia, optei por fazer o

grupo focal com quatro turmas, sendo duas do horto e duas do futebol, que eram justamente

dos turnos manhã e tarde. No entanto, uma das funcionárias do espaço sugeriu que eu

incluísse a turma do Balé, e eu acatei a ideia, tendo em vista a sua empolgação. Todavia,

devido às constantes rebeliões no Centro Educacional, optei por realizar apenas um último

grupo focal com uma das turmas do futebol, a do turno manhã.

Depois de executados os dois primeiros grupos focais, realizei uma avaliação para

analisar o que tinha sido positivo na metodologia delineada e o que precisava mudar,

considerando o bom aproveitamento da atividade com os jovens. A turma do futebol me

causava preocupação, porque pelo que acompanhava das oficinas, os jovens estavam sempre

muito inquietos, mas ao mesmo tempo pareciam muito tímidos com relação a mim, que

embora sempre presente, ainda era estranha a eles. Essas questões aumentavam ainda mais a

minha responsabilidade na condução do grupo focal.

Durante a realização do grupo focal com as duas primeiras turmas percebi que a

leitura do texto era algo pouco eficiente, visto que ler não pareceu uma atividade atrativa e

tomava muito tempo. Optei então por utilizar ainda os textos, mas de maneira diferente.

Iniciei com a minha apresentação, mas não disse qual o tema que seria tratado. Outrora,

durante a qualificação do meu trabalho no Mestrado, já havia sido discutida sobre a

importância de eu saber o que significava violência para os jovens. Com esse objetivo eu

expliquei o motivo de estar ali e em seguida entreguei os mesmos textos utilizados com as

turmas anteriores, que abordavam o cenário de violência vivido na capital cearense, mas pedi

que eles me dissessem de que assunto tratavam aquelas notícias apenas a partir do título. Essa

atividade possibilitou traçar um panorama da compreensão dos jovens sobre a temática da

violência.

Depois desse momento, coloquei sobre a mesa seis cartazes, cada um com um

tema para a discussão: Violência, Dia a dia, Espaço Viva Gente, Segurança, Vida no bairro e

Juventude. Solicitei que os jovens lessem e trouxessem suas contribuições sobre cada um dos

temas levantados. A discussão demorou a surgir, até que se iniciou com considerações

simples com relação ao assunto abordado e também em meio a muitos risos e brincadeiras,

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pois as falas de alguns eram tidas como engraçadas, consideradas sem sentido para outros, o

que levava a constantes conflitos e discussões.

Embora eles se mostrassem como se não soubessem o que dizer quando instigados

a participar do debate, a discussão aflorou quando alguns jovens falaram sobre as situações

que vivenciavam no dia a dia, às quais eram submetidos e os causava revolta. Nesses

momentos é impossível conter as falas, o debate torna-se acalorado, com muitas falas

simultâneas, o que exige da pesquisadora muita agilidade para não “cortar a empolgação”, por

correr o risco de fazer com que seus interlocutores percam o fio da meada, mas por outro lado,

manter muitos falando ao mesmo tempo pode levar a uma difícil compreensão ou mesmo

perda total do que está sendo dito.

Para Minayo (2010):

O que torna o trabalho interacional um instrumento privilegiado de coleta de

informações para as Ciências Sociais é a possibilidade que tem a fala de ser

reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos

(sendo ela mesma um deles) e, ao mesmo tempo, ter a magia de transmitir, por meio

de um porta-voz, as representações grupais, em condições históricas,

socioeconômicas e culturais específicas (p. 204).

Procurei absorver o máximo do que eles diziam, mas também respeitei quando

eles demonstraram não querer mais falar. A discussão não foi muito demorada, pois eles

tinham pressa em voltar para o campo de futebol. Como eu já tinha previsto que não daria

para fazer muitas atividades, conclui agradecendo pela contribuição e eles saíram correndo.

Se a fala constitui um importante instrumento de coleta de dados, como proceder

quando os interlocutores falam pouco? Esses são alguns dos desafios do campo que o

pesquisador deve estar atento, pois como afirma Guber (2004, p. 47), o real se apresenta não

somente nos fenômenos observáveis, mas “en él se integran practicas y nociones, conductas y

representaciones”. Cada jovem traz consigo uma história de vida, uma forma de ver o mundo

e de se relacionar com ele, e as suas escolhas podem estar pautadas nisso. O garoto que

escolheu o futebol talvez goste de “extravasar no gol”, mas não se sinta muito à vontade para

falar, mas isso não impede que outro se sinta à vontade para falar no gramado e fora dele.

Porém, se as palavras transmitem informações, o silêncio também. Cabe ao pesquisador estar

atento para perceber todas as formas observáveis que o campo apresenta, seja falada, seja

representada ou ainda, sentida.

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2.8 De posse dos dados: o desafio de interpretá-los

De acordo com Rosana Guber (2004), desde o momento em que o pesquisador

adentra o campo de pesquisa, ele toma posse de uma infinidade de informações que se

apresentam como parte de uma realidade a qual ele se propõe estudar. Este campo é composto

de instâncias naturais e sociais, mas que abrange mais que um espaço geográfico,

compreendendo as experiências de vida que os grupos humanos vivenciam.

Assim, como explicita Cardoso (2004), p. 101, “a coleta de material não é apenas

um momento de acumulação de informações, mas se combina com a reformulação de

hipóteses, com a descoberta de pistas novas que são elaboradas em novas entrevistas.”.

Portanto, campo de pesquisa não se constitui apenas em um espaço físico, se

caracteriza por uma decisão do investigador que abrange espaços e atores, pois: “el campo es

una cierta conjunción entre un ámbito físico, actores y actividades” (GUBER, 2004, p. 47), e

é ainda o “ continente de la materia prima, la información que el investigador transforma en

material utilizable para la investigación.” (p. 47).

Construído na relação entre investigador e informantes, o meu campo de pesquisa

suscitou muita matéria prima, informações coletadas nas entrevistas formais e nos grupos

focais, mas ainda no dia a dia, quando acompanhei as atividades, nas falas informais com os

jovens e funcionários, nos olhares percebidos ou despercebidos. Depois de documentadas e

sistematizadas essas informações, surgiu para mim a importante tarefa de interpretar os dados,

pois interpretá-los perpassa o olhar da pesquisadora, que vem de uma realidade específica e,

como explicita Guber (2004, p. 48), esse olhar “non es neutro ni contemplativo”. Dessa

forma, a ideia é prosseguir com as análises tendo em vista compreender as experiências do

campo, inicialmente com a leitura e releitura dos dados coletados, para posteriormente partir

para a interpretação pautada na discussão teórica.

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3 VIOLÊNCIA, SEGURANÇA PÚBLICA E JUVENTUDES: O ESPAÇO VIVA GENTE

COMO LOCUS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA

“Que a importância de uma coisa não se mede com fita

métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a

importância de uma coisa há que ser medida pelo

encantamento que a coisa produza em nós”.

(Manoel de Barros)20

Se a entrada no campo me causou estranheza, trouxe surpresas e rumos diversos

para a pesquisa, foi também nessa caminhada que me deparei com o encantamento, que como

bem expressou o poeta Manoel de Barros, não dá para ser medido por meios físicos, mas

pressupõe a descoberta, o conhecimento, a desconstrução de certezas e o tanto que essas

sensações produzidas passam a adquirir importância para nós.

Pintar esse encantamento me fez necessário recorrer a muitas questões que eu

pretendia conhecer, explicar, compreender. A primeira delas dizia respeito a minha intenção

de investigar políticas que tivessem como foco a prevenção à violência. Para isso, eu

precisava adentrar ao emaranhado de significações do que seriam políticas públicas, políticas

de segurança pública, políticas de juventude, política de prevenção à violência. Parecia tudo

tão misturado, mas ao mesmo tempo tão diverso. E de que forma o Espaço Viva Gente se

encaixava nesse contexto? Como essas questões se relacionavam com os jovens sujeitos dessa

pesquisa? Era o que eu precisava descobrir.

Nesse sentido, nesse capítulo discuto em que momento a Política de Segurança

Pública se encontra com as Políticas de Prevenção à Violência, tomando como exemplo o

Espaço Viva Gente, e os jovens que se beneficiam desse espaço com o objetivo de encontrar

nele um opositor da violência e da criminalidade vivenciada em seus contextos sociais.

3.1 O CAMPO DA VIOLÊNCIA

Nos últimos anos a sensação de medo e insegurança provocados pela violência e o

crime parece ter ficado mais evidente entre cidadãos das diversas esferas sociais, que se

sentem constantemente ameaçados com relação à perda dos seus bens, e, sobretudo com suas

próprias vidas (ADORNO, 1999).

Dessa forma, a violência tem se configurado como aspecto representativo e

problemático da organização da vida social, mais consideravelmente nos grandes centros

20

Manoel de Barros, Memórias Inventadas: A segunda Infância. São Paulo: Planeta, 2006.

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urbanos, se convertendo em uma das principais preocupações, não somente no Brasil, mas em

todo o mundo, fenômeno que parece caracterizar nossa época (WAISELFISZ, 2011).

No entanto, se a violência é uma questão que causa preocupação em nossos dias,

Muchembled (2012) explica que isso sempre ocorreu e a estuda desde o século XIII quando

surgiu em francês a palavra “violência”. Provinda do latim vis, refere-se à “força” ou o

“vigor” e ainda à ação colérica expressada por uma atitude brutal de um ser humano, em uma

situação persuasiva que ocasiona constrangimento. Para o autor, inicialmente, ela “designa os

crimes contra as pessoas, dos quais fazem parte o homicídio, os golpes e ferimentos, os

estupros etc.” (p. 7).

Em uma concepção que visa abranger as diversas significações sobre a violência,

Waiselfisz (2011) explica que, esta ocorre quando, em uma situação de influência mútua, um

ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, provocando danos a uma ou a mais

pessoas em graus variáveis, podendo atingir a integridade física ou moral dos indivíduos, e

ainda compreender danos com relação às posses, ou em ações simbólicas e culturais.

Diante dessas definições pretendo deixar claro que a compreensão de violência

que utilizo nesse estudo se refere àquela praticada nos atos que vitimam muitas vidas, seja na

exposição ao medo, ao uso e tráfico de drogas, especialmente na sua expressão máxima, como

é o caso dos homicídios responsáveis pela execução de um número significativo de pessoas

todos os anos, com evidência para jovens do sexo masculino. Também esclareço que os

jovens sujeitos dessa pesquisa não têm um perfil criminoso e suas relações com a violência

são decorrentes da realidade onde vivem, da vida no bairro marcada pela criminalidade e por

seus efeitos avassaladores.

Em seus estudos, Muchembled (2012) observou que a violência apresenta

variação na forma como pode ser expressa, de acordo com a época e o país em que ocorre.

Com relação ao perfil dos envolvidos em atos violentos um fato relevante pode ser notado.

Embora o tipo dos culpados apresente alteração ao longo dos anos, em dados analisados desde

o século XIII o autor observou que a violência era majoritariamente praticada por homens,

sendo, portanto, muito reduzidas às estatísticas que as mulheres aparecem. Dentre os homens,

o destaque é para jovens com idades entre 20 a 29 anos.

Nos nossos dias, a centralidade desse perfil em dados relacionados à violência

ainda predomina. No entanto, compreendo que essa discussão não está dada nos índices

publicados, ressaltada pelas discussões que se fazem correntes a cada novo caso que provoca

comoção ou indignação social, nem tampouco nos abusivos programas policiais com suas

investidas em discutir segurança pública. Nesses e em muitos momentos de fervorosos

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debates acerca da violência, a juventude ganha foco negativo, pouco problematizado e

pautado em falas carregadas de estereótipos.

Os números que apontam os crescentes índices de homicídios, sobretudo entre os

jovens do sexo masculino, nos chamam a atenção talvez porque em realidades democráticas

como a nossa, tenhamos aprendido a compreender, como explica Caldeira (2000), que a

violência “é uma experiência de violação de direitos individuais ou civis” (p. 343), e atua

como empecilho à cidadania no Brasil. Nesse sentido ela se relaciona com a insuficiência,

fragmentação ou ausência de políticas públicas e exige para sua compreensão a análise das

muitas facetas sociais, sobretudo com relação à estruturação das políticas de segurança

pública e de ações preventivas.

No tocante as juventudes da contemporaneidade que sofrem os ditames da

violência de forma exacerbada, observa-se a segurança pública adentrando o paradoxo da

situação da juventude, ora como vítima, ora como agressora, permanecendo bem mais em

sistemas meramente punitivos, sem que avance muito em seus propósitos de dar segurança à

população. Assim,

Os jovens ocupam uma situação ambígua no âmbito das políticas de segurança no

Brasil. Por um lado, aparecem quase sempre como ameaça à ordem pública, como

categoria particularmente inquietante, como potenciais agressores e criminosos, caso

não sejam contidos por medidas moralizadoras ou punitivas. Por outro lado,

efetivamente, os jovens são as maiores vítimas da violência no país, a categoria mais

vulnerável diante do ambiente de insegurança que envolve ainda a maior parte da

sociedade brasileira. (ALVAREZ, 2013, p. 6).

Não obstante a luta pela consolidação dos direitos sociais, a violência é um

problema social que fere em especial o direito à vida e a liberdade individual e coletiva.

Portanto carece ser pensada no âmbito de uma política pública ampla e consolidada no campo

da segurança pública, tanto na dimensão do controle da violência, como no da prevenção,

desde que integrada a outras políticas públicas direcionadas a proteção dos direitos e dos

deveres da cidadania.

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3.2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA E

POLÍTICAS DE JUVENTUDE

“Segurança? Fizeram foi dizer que vai aumentar os

policial e num aumenta. Aí é ruim, né?”

(Jovem integrante da pesquisa21

)

Introduzo a discussão sobre Segurança Pública com a fala emblemática desse

jovem. Ela expressa a noção cristalizada de parte da sociedade que, geralmente, ao se ver

diante de circunstâncias de práticas violentas, e quando indagada sobre a intervenção

necessária, de imediato associa às práticas repressivas, sobretudo com o aumento do

contingente de policiais disponíveis nas ruas, reafirmando a autoridade legítima do Estado

para conter a sensação de insegurança.

Para Caldeira (2000), desde os anos 80 o aumento do crime violento tem sido uma

preocupação na sociedade brasileira, tanto nas grandes cidades, como em suas regiões

metropolitanas. Diante desse fato, somavam-se as problemáticas já evidentes no Brasil

relacionadas à inflação, desemprego e todo o processo que o país experimentava causando

profundas transformações na elaboração do poder e no acesso aos direitos. Nesse sentido,

“discussões sobre o medo do crime revelam a angústia que se gera quando as relações sociais

não mais podem ser decodificadas e controladas de acordo com antigos critérios.” (p. 55).

Dessa forma, ao longo dos anos, ora aproximando, ora distanciando, a Política de

Segurança Pública no país passou por intensas tentativas de mudanças que vão desde a

reorganização das instituições, o combate à corrupção e as práticas ilegais no exercício da

ordem, até a observância dos princípios democráticos e dos direitos humanos.

Como aponta Barreira (2004), em 1985 iniciava-se no Brasil o período de

redemocratização, fato que foi marcado pela tentativa de consolidação e renovação das

instituições. No âmbito da Política de Segurança Pública “as crises de abuso de autoridade

policial, o aumento da insegurança e do medo nas grandes metrópoles, a violação dos direitos

humanos e o desrespeito à cidadania” (p. 77), compunham o cenário de desafios a serem

enfrentados, tendo em vista uma nova estruturação de “implantação da lei e da ordem” (p.

77). Somadas a essas questões, as crises internas que esses órgãos vivenciavam culminaram

em uma série de denúncias do trabalho policial a partir de relatos de incoerências no uso das

atribuições, sobretudo com relação a práticas corruptas e ilegais no exercício da profissão.

21

Fala de um jovem do sexo masculino (Turma Futebol), durante a realização do grupo focal.

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Nesse contexto de desafios e incongruências que se encontrava a Segurança

Pública no Brasil, Barreira (2004) explicita que os governos, com o objetivo de melhor

estruturar o perfil das ações de implementação da ordem no país, se deparam com um longo

caminho a ser trilhado, tendo em vista romper com as práticas abusivas, resquícios do período

ditatorial, assim como das dinâmicas peculiares das trajetórias políticas, e no caso específico

do Ceará, o coronelismo.

O Ceará, assim como os demais Estados brasileiros, trazendo consigo as marcas

da vigência dos 21 anos do regime autoritário encontra uma herança dolorosa a ser vencida no

processo de instauração de um Estado de Direito. Fato que demonstra ser a redemocratização

de um regime um processo lento e gradual, perpassando as intempéries que passaram a se

constituir o foco das instituições no uso de suas atribuições, e requerem um complexo

processo de recondução à efetivação dos direitos que passam a reger a perspectiva do Estado

(BARREIRA, 2004).

Corroborando com essa ideia Caldeira (2000) salienta que,

Embora haja certamente muitos aspectos positivos na desintegração de velhas

relações de autoridade e poder no Brasil, fica claro que muitos grupos sociais

reagiram negativamente à ampliação da arena política e à expansão dos direitos.

Esses grupos encontraram no problema do crime uma forma de articular sua

oposição (p. 55).

Nesse sentido, podemos observar que a efetivação dos direitos que se fazia vital

na reestruturação da Política de Segurança Pública remetia a uma nova mentalidade social, no

sentido de serem pensadas ações de combate à criminalidade, sem, no entanto associar tais

mecanismos a práticas autoritárias e de desrespeito ao Estado democrático que surgia.

Foi nesse contexto que urgia por mudança no qual foi eleito o primeiro governo

do Ceará após o regime militar, Tasso Jereissati. De acordo com Barreira (2004), mobilizado

pela necessidade de transição no âmbito das instituições, o período que ganhou destaque por

tentar se enquadrar como o governo das mudanças e da racionalidade, enfrenta resistências

em todas as esferas, tendo em vista o legado autoritário que enrijeceu as práticas de atuação

policial, resultando no uso indiscriminado da violência como práticas corriqueiras dos setores

repressivos.

Se o cenário político precisava conviver com a herança ditatorial, contribuía com

esse fato, resquícios de um período histórico que tinha como método de governo a prática

coronelista que corroborava com a execução e naturalizava práticas ilegais, sendo a ruptura

com tais métodos o ponto de partida do governo eleito. Cabia a este estabelecer novas

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diretrizes que pusesse em prática ações oposicionistas as práticas autoritárias que legitimavam

o uso da violência aplicada pelos órgãos de segurança pública, sobretudo a serviço das classes

dominantes. Assim, o desafio das políticas de segurança dizia respeito a vencer o atraso

representado por tais posturas, sendo a busca pelo moderno em detrimento do antigo, o

racional pelo irracional, o caminho a ser percorrido nesse processo (BARREIRA, 2004).

Com esse objetivo o governo Tasso Jereissati, que se intitulou como o das

mudanças, como forma de se legitimar e garantir a governança percebeu a lógica da

necessidade de se encaixar a procedimentos modernos e democráticos na corporação policial,

uma vez que a população expressava desconfiança com relação a atuação das instituições.

Assim, submeteu aos órgãos da segurança pública uma avaliação interna, sobretudo a polícia

civil. O desfecho dessa iniciativa resultou em tentativas de mudanças com relação ao combate

de procedimentos corruptos e na busca pela recuperação de “princípios da disciplina, da

hierarquia e da moralidade, isolando o lado considerado “podre” dos órgãos de segurança”

(BARREIRA, 2004, p. 79), com o intuito de reestabelecer a ética como norteadora das

relações entre superiores e subalternos.

Nesse sentido, dentre os métodos utilizados para contornar essa conjuntura foi

realizada a mudança da cúpula diretora mediante a escolha de profissionais de fora do Estado,

tendo sido nomeado o delegado gaúcho Moroni Torgan como Secretário da Segurança

Pública, dentre outros, o que originou muitos embates e questionamentos. Se a cúpula

administrativa exigia mudanças, esse processo de renovação pelo qual passava a Segurança

Pública do Estado acompanhava o âmbito do aparato policial. Nesse sentido, originou-se um

discurso da racionalidade e da modernidade, divulgando-se a necessidade de uma

reestruturação que fosse capaz de acompanhar a evolução pela qual passava as práticas

criminosas, conferindo ao Estado o status de moderno e bem equipado, e, portanto, capaz de

apresentar a sua legitimidade perante o controle do crime (BARREIRA, 2004).

Outro fator relevante nesse processo de renovação se caracterizava pelo

enfrentamento a pistolagem no Estado do Ceará. Com esse objetivo, a campanha que foi

iniciada em 1987 previa abolir essa prática que trazia em sua essência um simbolismo político

e social do período do corenelismo, pautado na ilegalidade das ações, sobrepostas à lei do

Estado. Dessa forma, extinguir tais resquícios do atraso e da negação dos direitos

conquistados, ratificava como expressa Barreira (2004), “Um novo momento quando o Estado

passou a ter o controle sobre o crime, negando a existência de um “poder paralelo” mantido,

em parte, pelos grandes proprietários de terra conjugados com “políticos tradicionais”.” (p.

79).

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No ano de 1997 passa a integrar o Projeto de Segurança Pública do Estado a

criação de nove distritos-modelo em Fortaleza, contemplando as nove áreas militares da

cidade. A iniciativa visava à unificação das ações das Polícias Militar e Civil, com vistas a

racionalização e integração do trabalho de ambas, de forma a favorecer o combate da

criminalidade. Tal iniciativa culminou posteriormente na criação dos Conselhos Comunitários

que objetivavam a parceria entre lideranças populares e as Instituições Policiais e Corpo de

Bombeiros, vislumbrando estabelecer uma polícia comunitária (BARREIRA, 2004).

Em âmbito nacional, no ano de 2003, foi criado o Sistema Único de Segurança

Pública (SUSP), de competência da união, que previa ações que possibilitassem a reforma das

instituições de segurança “seja com relação às questões de modernização das forças policiais,

incentivo à participação da sociedade e no combate às práticas de corrupção e violação dos

direitos humanos” (p. 3). Tais objetivos deveriam desencadear em perspectivas da paz e do

respeito aos direitos humanos (LOPES E BRASIL, 2008).

Nesse sentido, como explicita Silveira (2008), desde 2003 o governo federal

propõe uma política nacional de segurança pública que prevê na agenda a prevenção à

violência e a criminalidade como uma das áreas previstas de atuação. Dentre outras questões,

as ações de prevenção ganharam importância a partir da reformulação da Lei do Fundo

Nacional de Segurança Pública, que permitiu a ampliação da possibilidade de financiamento

de ações municipais de prevenção à criminalidade.

Diante de todos os esforços empreendidos no âmbito da segurança pública no

processo de redemocratização, ainda eram muitas as problemáticas que permeavam esse

campo. Ainda no ano de 2003, Pinheiro (2012) esclarece que algumas mudanças culminaram

com a redução da violência homicida que chamava a atenção pelo crescimento dos índices

desde 1980. No entanto, essas medidas não foram suficientes para contribuir com a redução

das taxas que fazem do Brasil um país com números de homicídios bastante elevados,

sobretudo quando comparado a outros países e com relação à percepção de segurança

experimentada pela população.

No ano de 2007 foi aprovado o Plano Nacional de Segurança Pública com

Cidadania (PRONASCI), proposto como um programa de ação continuada com vistas à

prevenção da violência, especialmente no resgate de jovens expostos a circunstâncias de

vulnerabilidade. Pautado em ações inovadoras objetivava compreender o crime em sua

relação com o cotidiano e tinha suas ações arroladas em investimentos na modernização das

instituições da segurança pública, valorização dos profissionais e no enfrentamento de

práticas corruptas e organizações criminosas, dentre outras (PINHEIRO, 2012).

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Em nível local, nesse mesmo ano, foi lançado no Ceará pelo então governador Cid

Gomes, o Programa Ronda do Quarteirão que consistia em uma estratégia de policiamento

orientada por diretrizes que privilegiavam ações preventivas e integradas à sociedade civil.

Para o programa, que foi expandido gradativamente entre os bairros de Fortaleza e

posteriormente para o interior do Estado, foi realizado um intenso investimento em

equipamentos, sobretudo para a compra de viaturas da marca Toyota Hilux SW46. Essa

proposta de policiamento provocou muitas expectativas e questionamentos nos diversos

setores sociais, inclusive na própria corporação militar. Tendo em vista as condições

diferenciadas de trabalho e da conceitualização de Segurança Pública que surgia, a Polícia

Militar agora significava o antigo, e tinha uma atuação de caráter repressivo ostensivo,

enquanto o novo modelo de policiamento propunha estratégias diferenciadas (BRASIL E

SOUSA, 2010).

Entretanto, este esforço do novo com base no Programa Ronda do Quarteirão,

direcionado a práticas de visitas às comunidades, tratamento diferenciado com a população

baseado no diálogo e outras atitudes de prevenção, com o tempo, se integrou ao velho modelo

de fazer segurança pública, estreitando os laços com as mesmas práticas históricas da polícia

militar, baseadas na violência direcionadas seletivamente sobre residentes de bairros da

periferia pobre das cidades, jovens e negros. Os governos democráticos não conseguiram

levar adiante a proposta inovadora do policiamento comunitário, nem tampouco, a população

se adequou a esta prática, haja vista os constantes pedidos de punição e prisão, reivindicando

uma polícia continuada na ação meramente repressiva e punitiva. Não estamos preparados

para atitudes de diálogo como metas da prevenção à violência.

Diante dessa rápida apresentação da Segurança Pública no Brasil e no Ceará

observo que, ao longo dos anos, mesmo com as contradições, muitos foram os esforços no

sentido de viabilizar ações que culminassem na redução das práticas da criminalidade. Dentre

ações repressivas e preventivas os esforços têm sido intensificados no intuito de reduzir os

índices de violência, mas, no entanto, a violência parece desafiar os programas e projetos

implementados.

No ano de 2013 a cidade de Fortaleza apareceu nas estatísticas como a sétima

cidade mais violenta do país. Tendo em vista esse dado, em dezembro do mesmo ano, foi

anunciado pelo governador do Ceará à época, uma política de metas e premiações para

policiais. O projeto que posteriormente foi denominado “Em Defesa da Vida”, de acordo com

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uma reportagem do Jornal O Povo22

culminou em: “redução no número de assaltos

registrados pela polícia e aumento na quantidade de assassinatos (foram 1.281 mortes no

primeiro trimestre do ano no Ceará, uma média de 14 por dia)”. Mesmo diante de tal

iniciativa, no ano de 2014 a cidade aparece como a segunda mais violenta.

De acordo com Barreira (2004), os governos democráticos enfrentam o desafio de

implementar uma política de segurança pública capaz de prevenir e combater a criminalidade

e a manutenção da ordem, tendo como contraposição os princípios do Estado de Direito. Ora

agregando Políticas de Segurança Pública à Políticas de Prevenção à Violência, ora

distanciando, o que fica claro, é que ainda temos um longo caminho a percorrer, no sentido de

as políticas delineadas contribuírem, significativamente, para evitar a chegada de muitos,

sobretudo jovens, à criminalidade, assim como combater a violência.

Diante dessas circunstâncias, o colunista do Jornal O Povo, Tiago Braga, escreveu

em uma de suas reportagens:

No último dia 10, durante solenidade de premiação aos policiais que cumpriram

metas de redução de crimes, o governador Cid Gomes classificou a violência como

“o maior incômodo do Ceará”. Cid disse não conseguir entender por que o número

de homicídios continua a aumentar, apesar dos investimentos crescentes na área de

segurança pública. “O que seria, então, o causador, o responsável pela elevação dos

índices de criminalidade no nosso Estado? Essa é uma pergunta que me faço todo

dia”, declarou o governador, na ocasião. Em seguida, indicou ser o fenômeno do

crack “a resposta mais verossímil” (21/04/2014).

Tendo em vista a pergunta que afligia o então governador Cid Gomes na vigência

da solenidade de premiação dos policiais, eu não tenho a resposta. No entanto, diante da

minha inserção no Espaço Viva Gente, pude observar nas falas dos jovens e das jovens que,

para eles, espaços como aquele apresentam resultados favoráveis para o afastamento do

perigo da violência da rua, portanto, a meu ver, na prevenção da criminalidade.

O Espaço Viva Gente a princípio não se caracteriza como uma Política de

Prevenção à Violência, e muito menos se concentra no campo da Segurança Pública. No

entanto, os resultados que ele apresenta contribuem para minimizar, ou dificultar a entrada de

jovens na criminalidade, e nesse sentido, prevenir. Na entrevista com um funcionário da

instituição obtive a seguinte resposta:

22

http://www.opovo.com.br/app/colunas/segurancapublica/2014/04/21/noticiassegurancapublica,3239256/o-

porque-de-tantos-homicidios.shtml

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D: O Espaço Viva Gente é um projeto do governo do Estado para pessoas em

condição de vulnerabilidade social. Nesse sentido pode se dizer que se encaixa como

um projeto de prevenção à violência ou como ação mais ampla?

F: Sim, também de prevenção a violência, mas a ação do espaço viva gente é

inclusão social.

D: Inclusão.

F: Que é exatamente o que eu falei pra você. Quando a gente encontra pessoas que

estão em vulnerabilidade social. Vulnerabilidade social não é só estar numa área de

risco, não é só tá em uma situação de violência.

D: Sim...

F: Esse caso da pessoa precisar de uma consulta médica, de um exame médico e não

ter acesso é uma vulnerabilidade social e aí nós fazemos esse trabalho de

encaminhar para toda a rede socioassistencial e da saúde, e da educação, quando

precisa, né?! Por exemplo, uma criança que está sem estudar porque não tem vaga

na escola. Aí a gente liga pra direção do colégio mais próximo porque na lei, né? A

criança tem que estudar no colégio mais próximo da sua residência, né? Então, ai...

Não, não tem vaga nessa, não sei o que... Ai, encaminha pro conselho tutelar, faz

um relatoriozinho. O conselho tutelar vai à escola e resolve a situação. Aí se alguma

coisa acontecer que não resolver a gente entra em contato, encaminha pra regional,

pra secretaria de educação, pra ouvidoria do município. De um jeito ou de outro a

gente tenta resolver a situação de vulnerabilidade daquela pessoa. Da criança, do

adolescente, do jovem, do adulto, do idoso e da família como um todo.

(Entrevista – Funcionário 01)

Essa fala suscitou em mim muitos questionamentos, pois se pensarmos as ações

de prevenção à violência apenas no âmbito da Política de Segurança Pública, provavelmente

os resultados serão insuficientes, tendo em vista a complexidade de relações a que estão

submetidos os indivíduos. Isso aponta então, para a necessidade das políticas públicas serem

concebidas de forma integrada, educação, saúde, assistência social e outras, de forma ampla,

sobretudo no que se refere à garantia da segurança, em realidades como a da cidade de

Fortaleza, mediante os crescentes índices de violência e sua relação com a juventude. Embora

espaços como o Viva Gente expressem a busca de inclusão social de jovens na rede de

proteção e assistência, o que se verifica ainda são ações pontuais que previnem, em certa

medida, alguns de entrarem e se perderem na criminalidade. Porém, o contingente de

violências, e graves, como homicídio, é superior a tudo isso e está muito forte nas narrativas

dos jovens desta pesquisa:

D: Mas qual o tipo de violência que vocês presenciam?

J: Morte, mais morte toda hora, pelo menos dois por semana eu acho. Que semana

passada morreu um lá na minha rua e eu tava assistindo o jogo, aí eu ouvi pá, pá,

pá23

. Pensei que fosse até gol do Fortaleza24

!

D: Então realmente esses dados que a gente vê lá no jornal eles acontecem perto das

nossas casas? E normalmente quem morre? Como é o perfil?

J: Principalmente os jovens por influências do tráfico.

J: Eu vou dar um exemplo, é quem se envolve com pedra25

, não paga, aí morre.

23

O jovem utiliza a repetição da sílaba “pa” para referi-se ao som emitido pelo disparo de arma de fogo. 24

Fortaleza é um time de Futebol da capital cearense. 25

O jovem refere-se ao Crack que é conhecido popularmente como pedra.

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Eles usam isso pra servir de exemplo pra outros que devem.

J: Qualquer dia, qualquer hora, na hora do almoço nós comendo, pá. O melhor

tempo pra matar gente é no final do ano!26

(Grupo Focal, Horto/Tarde)

Como observado nesse diálogo, os jovens estão inseridos em realidades

complexas que se impõem como empecilhos às vivências de suas juventudes em seus

cotidianos. Tais problemáticas e necessidades juvenis foram ao longo dos anos sendo

discutidas e tomadas como pauta de reivindicações dos grupos sociais, no sentido de buscar a

atenção governamental para os problemas que se colocavam como desafios à juventude.

Nesse contexto, a violência, sempre se destacou a partir de enfoques que apontavam os jovens

como risco para a sociedade, sem, todavia, serem problematizados os contextos em que tais

situações se davam, e a condição de vitimização juvenil.

Dessa forma, Carrano (2011) expressa que,

A literatura sobre a relação dos jovens com as políticas públicas, não apenas no

Brasil, relata a maneira como a preocupação com a juventude se deu pela via do

jovem como eixo problemático para a sociedade. Os jovens foram vistos como

possibilidades de corrupção dos costumes (juventude transviada na década de 1950),

como focos de agitação social e subversão da ordem pública (anos de 1960 e 1970),

como promotores e também como sujeitos vulneráveis diante do desemprego, da

desocupação e da perda de vínculos institucionais. Neste último aspecto, cabe

destacar a maior atenção dada ao fenômeno do desemprego de homens jovens,

muito frequentemente associado ao risco potencial de geração de jovens para o

crime (p. 240).

Nesse sentido, como afirma Bango (2008), os governos democráticos que

começaram a reinstalar-se a partir dos anos 1980 enfrentaram os desafios da transição política

somado com o esforço em dar conta da enorme quantidade de demandas sociais que haviam

sido postergadas. Para tanto, foram adotadas algumas estratégias políticas que resultaram em

diversos programas de combate a pobreza, sendo os setores juvenis já enquadrados como

beneficiados, a partir de um perfil de condutas delinquentes, enfoque que até hoje prevalece

no imaginário social. Contudo não foram realizadas ações efetivas, sobretudo com relação à

educação, sendo essas medidas efetivadas apenas para conter estouros sociais e dar um marco

de estabilidade política. Carecem de amplitude e integração com políticas públicas amplas e,

no caso de nosso estudo, muito mais, carecem de políticas preventivas menos pontuais dentro

do campo da política de segurança pública. Mas, é possível observar tentativas no Brasil de

alcançar políticas de juventude.

26

Segundo o jovem, o período do final do ano se constitui o melhor período para a prática de homicídios, pois o

baralho do disparo da arma de fogo se confunde com o dos fogos de artifícios que são comuns nessa época.

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No sentido de ampliação e atendimento das demandas sociais, mediante as

intensas mobilizações, no ano de 2005, foi criada a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ), a

partir do Conselho Nacional de Juventude (CNJ), com o objetivo de desenvolver programas

específicos para o público juvenil. Nessa perspectiva, a juventude passava a ser

problematizada com relação à efetivação dos seus direitos, como base para o cumprimento de

ações compensatórias de suas demandas. Para Pinheiro (2012):

A implantação de uma Política Nacional de Juventude partiu da prerrogativa de que

em contextos fragilizados pelo uso da violência, exclusão e desrespeito aos direitos

humanos, caberia ao poder público estabelecer metas para vencer os desafios em

termos de políticas preventivas. O ponto inicial dos programas e projetos da Política

Nacional de Juventude centrou suas ações na falta de oportunidades relacionadas a

inclusão de jovens moradores das periferias como cidadãos. Apesar da efetivação de

políticas públicas, assiste-se a um quadro não muito animador em relação aos jovens

brasileiros. A inserção no mundo das drogas, seja no comércio ou no consumo, tem

dissipado vidas “inocentes” (p. 38).

Segundo Diógenes e Sá (2011), as circunstâncias de violência apresentadas

insistentemente pela mídia que relacionam o jovem como principal protagonista,

reverberaram ainda mais a partir da criação da Secretaria Nacional de Juventude. Nesse

sentido, o desafio se constitui estabelecer um debate público sobre as reais necessidades

juvenis que devem ser contempladas pelas políticas de juventude, sem, no entanto, associarem

as representações juvenis à problemática da violência.

Não podemos negar que o medo provocado pela insegurança vivenciada nos

diferentes espaços se constitui elemento necessário na discussão das problemáticas que

envolvem a juventude. Dessa forma, a violência precisa ser incluída nas demandas das

políticas públicas, uma vez que tem se tornado inerente às práticas sociais de jovens,

sobretudo das classes populares. No entanto, o esforço necessário se refere ao cuidado de

contemplar a questão da violência no âmbito da política pública sem, contudo promover “uma

associação inócua entre violência, juventude e pobreza, debate que precisa ser superado.”

(BRASIL ET AL, 2010, p. 158).

Diógenes e Sá (2011) explicam que,

Obviamente o objetivo de definição de uma política pública deve balizar-se, em

geral pela necessidade de transposição de situações de violação de direitos e de

promoção de oportunidades que sejam mediadas por um menor grau de

vulnerabilidade e apresentem maior vetor de segurança. O que está em jogo é a

projeção de uma estratégia, e de metas advindas dessa estratégia, sem que elas se

voltem para as táticas de mobilização e construção dos códigos de linguagem e de

sociabilidade juvenil. Se a sedução do risco, a necessidade de “adrenalizar” o

cotidiano com experiências de liminaridade são elementos centrais da sociabilidade

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juvenil, como oportunizar direitos já se afirmando de antemão a necessidade de

segurança? Pode-se perceber que os parâmetros e visões das PPJ acerca das práticas

de violência juvenil, e sobre a violência propriamente dita, revelam, até então,

resistências na construção de uma política de segurança pública na interface com a

juventude, “concreta” e “real” (p. 143).

Juventudes reais como a que utiliza o Espaço Viva Gente enfrentam situações de

violação de direitos quando são submetidos ao convívio constante com as ações da

criminalidade, que as impedem de vivenciarem suas vidas com segurança, seja na rua, no

bairro e na sociedade como pode ser percebido na fala dessa jovem: “as pessoas já sai com

medo de casa, medo de ser assaltado ou acabar sendo morto até por uma coisa que ele nem

mesmo fez. Quando eu saio dizem: vá e volte logo viu, toma cuidado!”. Por sua vez, o Espaço

Viva Gente em sua atuação com o desenvolvimento de atividades socioeducativas, artísticas,

culturais, esportivas e de lazer, e iniciação profissional possibilita aos jovens amenizar sua

condição de vulnerabilidade com vistas o exercício da cidadania, embora ainda, de forma bem

pontual. Não há muitos espaços Viva Gente na Cidade.

De acordo com Teles e Freitas (2008), os programas sociais relativos à juventude

estão majoritariamente concentrados nos Ministérios da Educação e da Justiça, e se

constituem em uma lista heterogênea de ações. Mediante a promoção e a reconquista da

cidadania, grande parte dos programas desenvolvidos para a juventude é pensada como

pagamento da dívida social a populações em condição de pobreza, tendo em vista contemplar

a juventude excluída e não cidadã para, a partir de políticas compensatórias, amenizar as

situações econômicas, sociais e culturais que a subcategoriza.

Na perspectiva de contribuir para a superação das desigualdades sociais as

políticas de juventude são voltadas, principalmente, para a qualificação e renda, e para a

promoção dos direitos fundamentais, sendo enfatizados programas de obtenção de equidade,

igualdade de oportunidade e de ações de realização dos direitos fundamentais, dirigida,

sobretudo, aos jovens econômica e socialmente desprovidos. Os jovens de classe social mais

favorecida também podem ser beneficiados por alguma lei ou programa. No entanto, o

esforço governamental se apresenta com um viés de classe, tendo em vista uma discriminação

positiva, ao buscar contemplar aqueles que tiveram mais distanciados do acesso aos direitos

fundamentais (TELES E FREITAS, 2008).

No Espaço Viva Gente as atividades seguem essa perspectiva de superação das

desigualdades através do acesso à arte, cultura, esporte, qualificação. Sobre o público

atendido a funcionária explica que “a assistência social é pra quem dela necessita, pra quem

procura. Eu não posso te dizer: ah, porque tu tem um carro tu não pode fazer um curso de

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violão aqui de graça”. Ou seja, o critério renda não é determinante. No entanto, dentre os

atendidos predominam jovens de baixa renda, como explicado na entrevista:

E quando a gente faz a entrevista é que a gente descobre né? Por exemplo, a mãe

com os filhos. Ela tem o bolsa família aí tem duas faxinas. Faxina, sei lá a R$ 120

por semana, R$ 480 aí junta com o bolsa família de R$ 137, mas é pouco. Nunca só

são duas pessoas, nunca é só um filho ou dois filhos. Geralmente é mais. Aí sempre

fica acochado. E não é só a alimentação.

[...]

É, agora melhorou muito. Antes era muito pior. Eu digo depois que o bolsa família

entrou a realidade... do Brasil mudou com certeza. Daqui nós observamos, é fato,

muitas famílias saíram da miséria. Estão na pobreza, mas da miséria saíram. A gente

fazia visitas em muitas pessoas que não tinham nada, nada, nada para comer.

Naquele dia ou dois dias, três dias não tinha nada. E hoje tem o bolsa família que

pouco, mas dá pra comprar o alimento. Dá não, né? Ajuda a compra do alimento...

(Entrevista – Funcionário 01)

Como explicado na entrevista acima, as políticas sociais de transferência de renda,

nesse caso específico, o Programa Bolsa Família, se constituíram uma importante ferramenta

para a melhoria de vida de muitas famílias, favorecendo diretamente a vida dos jovens. No

entanto, no âmbito das Políticas Públicas, ainda persistem muitos desafios à expansão das

conquistas sociais.

Sobre as políticas para a juventude Carrano (2011) aponta que, na última década,

Foram criadas institucionalidades políticas (secretarias, coordenações, assessorias e

conselhos) de juventude nos diferentes níveis de governo que expressam a maior

sensibilidade para a urgência de se coordenar ações específicas para os jovens no

Brasil. É possível dizer, contudo, que a fragilidade institucional das PPJ é evidente.

Destaco a fragmentação, a superposição das ações públicas e descontinuidade

administrativa, a inconsistência do marco legal, a insuficiência de orçamentos, de

recursos humanos e materiais, a despreocupação com as pesquisas de caráter

nacional e a não construção de indicadores sociais sólidos, nacionais e comparáveis

ao longo do tempo. Essas ainda são marcas indeléveis na gestão das políticas e ações

públicas destinadas aos jovens no Brasil (p. 238).

Como salienta Macedo (2011), para cumprir o seu objetivo as políticas de

juventude carecem estar articuladas de forma sistemática com as diferentes áreas de governo e

os seguimentos sociais, no intuito de “repensar e fortalecer um pacto pela juventude, que parta

da Secretaria Nacional de Juventude e consiga chegar até onde o jovem está, no município, no

bairro, e o conecte com o governo federal” (p. 231). Nessa perspectiva, “considerar o local, o

território, com suas referências e diferenças, é um dos grandes desafios da política pública de

juventude” (p. 231).

Dessa forma, para compreender as juventudes em suas especificidades as políticas

ainda têm um longo caminho a ser percorrido. Mais que programas e projetos sem

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continuidade os jovens precisam de políticas concretas que deem conta do problema da

violência, mas não apenas. Que possibilite aos diversos segmentos juvenis se contrapor as

múltiplas situações de vulnerabilidade que vivenciam, e como vislumbra Carrano (2011),

possibilite aos jovens, tanto do Espaço Viva Gente como os de outros locais, se tornarem

“‘autoridades’ diretoras de seus próprios destinos e escolhas biográficas” (p. 241).

3.3 JUVENTUDES NO ESPAÇO VIVA GENTE: UMA EXPERIÊNCIA PONTUAL DE

OPOSIÇÃO À VIOLÊNCIA

De acordo com Esteves e Abramovay (2007), a juventude é uma construção social

originada a partir das variadas formas que uma sociedade elabora para designar os jovens.

Tais concepções podem ser fundamentadas “entre outros fatores, estereótipos, momentos

históricos, múltiplas referências, além de diferentes e diversificadas situações de classe,

gênero, etnia, grupo etc” (p. 21).

Nesse sentido, é possível perceber que esta não é única, pois como demonstra a

realidade social, os grupos juvenis enfrentam diferentes perspectivas de oportunidades,

acessos e vivências, o que aponta para um conjunto heterogêneo de necessidades e formas de

vivenciar a juventude nos diversos espaços sociais (ESTEVES E ABRAMOVAY, 2007).

Compreender os jovens do Espaço Viva Gente exigia de mim, na condição de

pesquisadora, adentrar as peculiaridades daquela juventude que vinha de uma realidade

específica e, portanto, tinha sua forma de ver e ser pautada nas suas realidades. Elas e eles têm

entre 12 e 18 anos. São moradoras/es das diversas áreas do bairro Passaré. Normalmente

chegam ao Projeto por interesse próprio “Foi escolha minha” (Feminino, Horto/Tarde), “Foi

minha própria vontade” (Masculino, Horto/Tarde), e gostam de frequentar o local.

D: Vocês veem pro Espaço Viva Gente toda manhã?

J: Claro, tia! Melhor que ficar em casa dormindo.

D: Terça e quinta. Tem gente que vem mais do que dois dias na semana?

J: Eu venho é todo dia de manhã e de tarde.

(Grupo Focal, Futebol)

Alguns entram com doze anos e permanecem até completar dezoito, e nesse

período participam de vários cursos e oficinas, sendo remanejados à medida que concluem os

que estão participando, como o exemplo desse jovem do Horto/Tarde: “Eu to aqui há seis

anos, fazia caratê quando eu era menor, aí eu tinha parado e voltei agora, e foi uma escolha

minha mesmo, eu tinha parado e resolvi voltar; eu acho legais as atividades”.

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Quando já estão há muito tempo no Projeto eles passam por muitos cursos e

oficinas e às vezes até repetem algum que já tenham concluído “Ah, só no horto duas vezes

no horto” (Masculino, Horto/Tarde). Por esse motivo, alguns jovens explicaram que nem

sempre estão em um curso porque tenham habilidades com a atividade “Não é todos que não

gosta, uns sim e outros não” (Masculino, Horto/Tarde), mas para continuar frequentando o

espaço por motivos que vão além da inserção em uma atividade ou o acesso a um curso ou

oficina, como demonstrado nas falas seguintes:

J: Ocupa nossa cabeça

J: Tem comida, a bolsa, certificado, tem futebol, o vôlei também.

J: Tem livro pra gente ler aqui, tem filme pra gente assistir...

J: Tem frutas, tia, aqui!

D: Então vocês participam mais de uma atividade aqui?

J: É tem horto, futebol, faz vôlei...

J: Dia de sexta-feira é o vôlei, [...] aí tem o futebol...

J: Aí uma vez no mês a gente vai no Concerto27

...

(Grupo Focal, Horto/Tarde)

Com relação ao processo seletivo os jovens que já frequentam o espaço têm

garantida a permanência, como explica essa funcionária:

Bom, primeiro quando é curso de capacitação profissional, né? O curso termina.

Antes de terminar o curso, quem já está aqui, nós passamos na sala perguntando se

deseja fazer outro curso. Que nós chamamos de remanejamento. A gente remaneja o

aluno. Terminou costura, aí eu quero fazer artes decorativas pra juntar ao curso de

costura. Então, faz o remanejamento desse jovem para artes decorativas. E o restante

das vagas, a gente faz divulgação e abre pra comunidade e fecha um prazo pra fazer

as inscrições. (Entrevista Funcionário 02)

Durante a minha inserção no campo eu convivi com jovens de diversas oficinas,

mas os jovens que participaram do grupo focal eram participantes das oficinas de Horto e

Futebol. Na oficina de Horto eles e elas aprendem o manuseio com plantas medicinais, sua

utilidade, técnicas de plantio e irrigação. De acordo com a definição desse jovem as atividades

do Horto são “capinar, podar, plantar, jogar bola” (Masculino, Horto/Tarde). A carga horária

é intensa, eles estão no Projeto de segunda a sexta, nos seus respectivos turnos. Faz parte da

proposta do curso algumas aulas teóricas. E no final são submetidos à realização de uma

avaliação escrita para garantir o certificado.

Os jovens que frequentam o Futebol têm o compromisso de vir duas vezes por

semana. No entanto, o campo de futebol parece ser o espaço preferido para alguns que mesmo

não estando no seu dia ou horário de jogar procuram ficar sempre por perto, observando os

27

Periodicamente são oferecidas atividades culturais fora do Espaço Viva Gente.

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demais e buscando uma oportunidade para adentrar ao campo. Em algumas situações vi

jovens chegarem ao campo de futebol, ainda com a farda da escola, aproveitando os minutos

da aula que acabara mais cedo para usufruir do espaço.

Segundo um funcionário o bairro não oferece muitas opções de lazer e mesmo os

campos de futebol que poderiam ser utilizados pelos jovens para jogos no final da tarde ou em

qualquer outro horário, são normalmente utilizados como pontos de venda de drogas.

Também a utilização desses espaços fica comprometida pelos riscos da criminalidade como

expressado na fala desse jovem: “Foi numa pracinha aqui. Fui rachar28

uma vez e um cara

chegou pra meter bala no outro” (Masculino, Futebol). E, portanto, há comprometimento pela

influência negativa que pode exercer sobre eles: “É importante pra não ficar na rua. [...] para

não ser influenciado pelos amigos lá de fora” (Masculino, Futebol).

Alguns têm no esporte, sobretudo o futebol, sua principal diversão. Além da

diversão, alguns deles esperam no futuro se destacarem como profissionais:

D: Por que é importante [estar no Viva Gente]?

J: Tudo! O futebol.

(Grupo Focal Futebol)

D: O que tem no projeto que você gosta?

J: Eu só faço uma coisa, futebol. Pronto!

[Risos]

D: Mas você escolheu futebol porque gosta mesmo?

J: É bom demais

D: Vocês têm planos para serem profissionais no futebol?

J: Se Deus quiser.

(Grupo Focal Futebol)

É uma exigência do Projeto que os jovens estejam matriculados na escola como

explicado por esse funcionário: “A gente exige que eles estejam matriculados, né?”. No

entanto, se por alguma situação um jovem deixar de frequentar a escola, este não é desligado

do Projeto, mas incentivado a voltar a estudar: “tem uma jovem [...] que eu estou

conversando, estou orientando e que ela parou no sexto ano, aí eu digo todas as orientações:

olha, você não deve parar de estudar [...] a gente sempre faz esse trabalho. Incentiva a voltar

pra escola.”

É requisito do Espaço o cumprimento das normas como cumprir os horários de

chegada e saída, participar das atividades extras que tratam sobre temas de cidadania, assim

como os pais são incentivados a participarem de reuniões que debatem temas de cidadania e

outros assuntos relevantes. Alguns jovens se mostram muito participativos nos encontros,

28

Jogar bola.

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conseguem discutir as questões que são apontadas, formular questionamentos. Outros têm

dificuldade de falar, ficam tímidos em dinâmicas de grupo, preferem as atividades

relacionadas aos cursos e oficinas dos quais fazem parte.

Alguns locais são distantes, mas mesmo o sol ardente não os impedem de

chegarem até ao local. Muitos desses locais são marcados pelo tráfico e alguns já vivenciaram

situações de disputas territoriais entre traficantes rivais, dentre outras questões.

De acordo com Brasil et al (2010) na pesquisa “Cartografia da Criminalidade e da

Violência na Cidade de Fortaleza”, a capital cearense apresentou nos últimos anos um

expressivo crescimento de sua população, passando de 2.141.402 habitantes em 2000 para

2.442.409 habitantes no ano de 2010, quando passou a ocupar a quinta posição entre as

capitais mais numerosas do país, sobretudo na região nordeste, ficando atrás apenas de São

Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Brasília. No entanto:

Este crescimento vertiginoso trouxe à cidade problemas comuns às demais cidades

brasileiras, destacando-se na problemática da criminalidade e da violência. Seguindo

uma tendência nacional, Fortaleza também possui um elevado número de

adolescentes/jovens na faixa etária de 15 a 29 anos. [...] Ao se tomar o parâmetro

nacional, é no segmento populacional jovem que se concentra a maior parte dos

homicídios (BRASIL ET AL 2010, p. 37).

Diante dessas constatações observo que as juventudes, mesmo com algumas

conquistas no âmbito das políticas públicas, se encontram, em algumas realidades, como alvo

preferido nas práticas violentas, especialmente nos casos de homicídios, pois de acordo com a

fala de um dos jovens da pesquisa: “Hoje em dia quem passar dos dezoito anos tem que fazer

uma festazona medonha, viu menino, porque tá difícil!” (Masculino, Horto/Manhã).

Como explicado nessa fala, a morte prematura tem se tornado comum para muitos

jovens moradores das áreas periféricas das grandes cidades, que sequer chegam a fase adulta,

se constituindo uma preocupação entre os jovens da pesquisa. Nessa e em outras falas, alguns

jovens destacavam que entre os seus vizinhos e conhecidos vítimas de homicídios, a morte

como “recompensa” prevista para todos os que adentram ao uso e ao tráfico de drogas, tem a

idade máxima de dezoito anos.

Em pesquisa realizada, entre os anos de 2007 a 2009, o bairro Passaré foi listado

como um dos vinte bairros com maior número de homicídio da cidade. O mesmo integra a

Secretaria Executiva Regional VI (SER VI). De acordo com Brasil et al (2010), os homicídios

praticados nessa regional nesse período apresentavam um perfil:

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na faixa etária de 15 a 39 anos, mais de 90% são do sexo masculino, enquanto as

vítimas do sexo feminino não chegam a 10% delas. A maioria absoluta desses

homicídios foi resultado do uso de armas de fogo. Em 2007, 82% dos homicídios na

SER VI foram praticados à bala, em 2008, 85% e em 2009, 90% (p. 153).

Nesse contexto, dentre estratégias mais repressivas e algumas pontuais ações

preventivas, as ações têm sido implementadas com o intuito de reduzir os índices em todo o

país e, sobretudo na cidade de Fortaleza que se destaca nos principais rankings de violência.

Entretanto, diante dos esforços empreendidos, em especial aqueles que envolvem a repressão

policial, os dados muitas vezes contrariam os resultados esperados, pois,

A literatura brasileira sobre a temática da segurança pública tem mostrado a pouca

eficácia das forças policiais e das estratégias de policiamento (sem desconsiderar

experiências locais exitosas em alguns municípios), frente o avanço da

criminalidade e da violência urbana, além da multiplicação dos problemas que

envolvem as instituições policiais. De fato, com frequência, vê-se o envolvimento de

policiais em denúncias de violência, abuso de autoridade, tortura, corrupção, entre

outras. Cada vez menos, os policiais se mostram capazes de garantir a ordem pública

e os direitos humanos na sociedade (SOUSA, 2008, p. 22).

No que se refere ao conceito de prevenção no âmbito das políticas públicas, como

expressa Silveira (2008), advém do campo da saúde e remete a década de 1950 com as

teorizações de Leavell e Clark. Tais teóricos pautaram suas ideias na elaboração de medidas

que deveriam ser tomadas antecipadamente ao aparecimento de doenças e agravos à saúde.

Nesse sentido, pensar a prevenção como estratégia para as políticas públicas

exige um esforço na iniciação de providências previamente estabelecidas, que minimize ou

interrompam as chances desencadeadas pelos muitos processos que podem ser caracterizados

como fatores de risco, sobretudo a criminalidade. Para tanto, a operacionalização da

prevenção deve ser pautada na identificação de situações determinantes ao agravo, a partir da

elaboração de fatores de proteção fundamentais à prática antecipatória em que se constitui as

ações preventivas (SILVEIRA, 2008).

Durante as observações em campo e nas conversas que tive com os jovens e

funcionários, estes apontavam que uma vez envolvidos com a criminalidade, a inserção em

programas e projetos como o Viva Gente se constitui mais difícil, o que reforça ainda mais a

importância de providências prévias:

D: E esses jovens que usam drogas, eles conseguem se inserir em algum programa,

eles participam?

J: Alguns.

J: Alguns. Quando entram, passam uma semana e saem que não conseguem ficar.

E às vezes entram, vão mais pra bagunçar, começa a fazer coisa errada...

(Grupo Focal, Horto/Tarde)

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D: Normalmente quem adentrou ao uso das drogas nem procura um espaço como

esse, não é?

F: É mais complicado.

F: Normalmente os que procuram são os que vivem num contexto de violência

porque o bairro tem essa história.

F: E que também estudam, né?

D: Mas que normalmente são meninos que ainda não têm adentrado?

F: Mas nós já atendemos mais casos que eram mesmo... Que eram traficantes e tudo

e a gente ia fazendo trabalho até que chegou um ponto em que ele viu que ele não

podia trabalhar aqui dentro, entendeu?

D: Então, normalmente, assim, mesmo quando vêm não consegue ficar?

F: Não consegue mais ter esse retorno, voltar e superar e pra mudar um pouco de

vida, né?

F: Mas a gente tenta, sempre tenta.

(Entrevista – Funcionário 03)

Nessa perspectiva, o Espaço Viva Gente se apresenta como um local onde práticas

preventivas à violência são desenvolvidas, mediante atividades que visam oferecer

perspectivas diferenciadas daquelas que se relacionam com as ações da criminalidade, as

quais muitos jovens frequentadores do espaço estão expostos em seus cotidianos. No entanto,

atinge alguns jovens, enquanto outros, em especial, aqueles já diretamente envolvidos com

drogas e outros crimes não têm acesso garantido. O alcance das políticas não chega até eles.

Veja-se, então, a limitação das políticas provenientes de Projetos Sociais. Enquanto isto,

muitos jovens continuam o desafio de viver na corda bamba entre a violência e a busca por

driblá-la.

Dessa forma, a realidade brasileira como enfoca Sales (2001), expõe a juventude a

desafios diários que precisam ser vencidos, desde a inserção no mercado de trabalho a direitos

básicos de sobrevivência. Sendo o futuro recheado de incertezas, no qual a sobrevivência diz

respeito aos inúmeros papeis que os jovens precisam realizar para serem aceitos.

Embora se constituam em um segmento populacional relevante, os jovens têm

suas necessidades, práticas coletivas e políticas destinadas, ainda pouco consideradas. Ao

mesmo tempo em que as circunstâncias de violência envolvendo a juventude se destacam de

forma significativa nos noticiários, auferindo a atenção social, por outro lado, tais menções

não refletem a demanda real de análise da vida juvenil na sociedade (DAYRELL E

CARRANO, 2003).

Os jovens do Espaço Viva Gente estão imersos em uma realidade de violência e

precisam estruturar suas vidas e seus sonhos de modo a superar essas questões. Por estarem

inseridos nesse contexto de exposição às ações de traficantes, uso de drogas, assassinatos, é

recorrente nas falas dos funcionários a preocupação com tais problemáticas. Nas entrevistas

que realizei eles procuravam deixar claro que as atividades oferecidas são planejadas para

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promover mais que formação profissional, artística e/ou esportiva, tendo como principal

objetivo favorecer a formação humana. Nesse sentido, esse funcionário explica:

Normalmente o esporte ele é voltado pra competição, aqui não, a gente procura

trabalhar o esporte educativo, a gente procura trabalhar com a formação do cidadão,

para o adolescente, que é uma coisa complicada aqui pra gente, porque a gente

tentando fazer e o traficante desmanchando do lado e a família também que ajuda a

desmanchar o trabalho [muitas famílias desestruturadas]. É meio que dá murro em

ponta de faca, aí, dessa forma a gente vai tentando, vai tentando, vai tentando, vai

num jogo de cintura, de uma forma ou de outra.

(Entrevista – Funcionário 02).

Não obstante o comprovado êxito de tais ações, ainda existem muitos empecilhos

à execução da prevenção. No caso específico do Espaço Viva Gente houve um recuo na

prestação de serviços, sobretudo com a divisão de competências ocorrida nos últimos anos

entre as esferas governamentais (municipal e estadual), a qual definiu o atual Projeto como

não mais responsabilidade do governo do Estado. De acordo com funcionários do local, o que

hoje atende 600 pessoas foi um dia quatro Projetos diferentes em locais distintos. No entanto,

houve a junção destes em um único local, reduzindo o atendimento para 1.370 pessoas.

Porém, como a estrutura física que sediava o Espaço era ampla e bem equipada, houve uma

demanda para a construção de um Centro de Internamento para jovens em conflito com a lei,

ocorrendo, mais uma vez, à transferência para um local menor, o que resultou na redução do

atendimento em mais de cinquenta por cento do total.

J: Eles fazem esses programas, mas não é eficiente em nada, eles fazem e deixam se

acabar, quebrar tudo e acaba que eles não vão constituindo, eles sabem que aquilo é

bom, mas eles não estão dispostos a gastar dinheiro com isso

[...]

J: É tem gente que quer ir, mas não dá, tem pouco espaço.

[...]

J: Se a gente tivesse mais espaço como esse aqui, a molecada ia tá menos na rua pra

se envolver. Não tem, aí a galera fica na rua.

(Grupo Focal, Horto/Tarde)

Como apontado nas falas acima, espaços como o Viva Gente são poucos na

cidade, e por vezes funcionam com estrutura precária. O atual espaço recebeu algumas

intervenções, porém muitas das atividades que eram desenvolvidas no antigo local foram

impossibilitadas, uma vez que falta espaço. A estrutura carece de melhorias, sobretudo as

instalações esportivas, pois falta quadra coberta, o que é fundamental para as atividades

ocorrerem em todos os horários, uma vez que a temperatura da cidade é alta o ano inteiro, e o

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único campo de futebol existente foi cedido por um morador. De acordo com um dos

funcionários:

Quando nós tínhamos lá o outro espaço, aí é que era diversificado, aí era como eu

gostava, como eu acho que deveria ser, porque nos tínhamos futebol feminino, nós

tínhamos futsal, vôlei, handebol feminino e masculino, nós tínhamos basquete, vôlei

de areia, ou seja, a gente dava oportunidade

(Entrevista - Funcionário 02).

Com a responsabilização social da juventude pelo aumento da criminalidade nos

últimos anos, em vez de ações preventivas e de atendimento de jovens em espaços sócio-

esportivos e culturais, o apelo que vem sendo feito pelos diversos segmentos da sociedade é

para que sejam efetivadas ações como a redução da idade penal, ou seja, aumento da punição.

Nesse sentido, os investimentos para as ações preventivas tendem a ser escassos, uma vez que

se faz necessário o investimento de recursos para as políticas de atendimento a jovens em

cumprimento de penas, sobretudo para a construção de Centro de Internamentos, em

detrimento de ações como o Espaço Viva Gente, dentre outras.

De acordo com Diógenes e Sá (2011), uma das responsabilidades mais

importantes das instituições na atualidade,

seria a de contribuir para que os jovens pudessem realizar escolhas conscientes sobre

suas trajetórias pessoais e constituir os seus próprios acervos de valores e

conhecimentos que já não são impostos como heranças familiares ou institucionais.

O peso da tradição encontra-se diluído e os caminhos a seguir são mais incertos. Os

jovens fazem seus trânsitos para aquilo que chamamos de “vida adulta” no contexto

de sociedades produtoras de risco - muitos deles experimentados de forma inédita,

tal como o da ameaça ambiental, do medo da morte precoce e das violências que se

multiplicaram em áreas urbanas e rurais (p. 242).

Nessa perspectiva, o Espaço Viva Gente se apresenta como um local onde práticas

preventivas à violência são desenvolvidas a partir de atividades que visam oferecer

perspectivas diferenciadas daquelas que se relacionam com as ações da criminalidade, as

quais muitos jovens que frequentam o Espaço estão expostos em seus cotidianos. Dessa

forma, ao oferecer aos jovens a inserção em atividades artísticas, culturais e socioeducativas,

colabora com as ações da Segurança Pública à medida que possibilita oportunidades

diferenciadas daquelas que cercam o cotidiano dos jovens. São elas, as oficinas, que

possibilitam a prática de esporte como o Futebol, Capoeira, Caratê; o desenvolvimento de

habilidades relacionadas à musicalidade; os cursos, como Horto, Biscuit, Artes Decorativas,

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favorecendo o empreendedorismo; a formação profissional, com a possibilidade da primeira

experiência no mercado de trabalho com o Programa Primeiro Passo, dentre outras.

Entretanto, é um espaço pontual, isolado, prenhe de dissipar-se diante de outras

ações referentes ao enfrentamento da violência baseadas em atitudes punitivas e não

preventivas. É um espaço “sem dono”, mesmo sendo ainda de responsabilidade do Estado,

exatamente por não pertence às políticas de juventudes baseadas em projetos sociais que,

hoje, devem ser geridas pelo Município.

Os jovens, por sua vez, reconhecem suas vivências em um território perigoso com

relação às influências ou mesmo à morte prematura, devido aos conflitos pelos quais são

marcados a rua, o bairro, a cidade. Neste sentido, eles apontam para o direito de escolher

viver, mesmo dentre todas as circunstâncias contrárias. Assim, estar inserido no Espaço Viva

Gente evidencia o momento em que o Estado, mesmo sem maior investimento, pontualmente,

aproxima-se da promoção de uma relação entre a sua política de segurança pública voltada

para a repressão e punição, mediante atuação policial e operacionalização de Centros

Educacionais de internamento, e um programa social com fundamento em ações que suscitam

uma política de prevenção à violência, mesmo sem caracterizar o projeto como tal. Resta-nos

observar até quando, ou até que ponto, tal experimentação de ações preventivas sobreviverão

ao crescente zelo por ações repressivas e punitivas direcionadas, hoje, em especial a

adolescentes categorizados como criminosos em potencial, diante de um quadro de súplicas

por mais punição, a exemplo da ampla propaganda pela redução da maioridade penal.

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4 CAMINHOS DA VIOLÊNCIA: JUVENTUDES EM UM CONTEXTO DE

VULNERABILIDADES

O liame é muito tênue – os jovens tanto representam

atores sociais que podem ser classificados como vítimas

preferenciais nos circuitos de sujeição criminal ou

facilmente identificados como atores principais de

práticas de violência29

.

Durante a pesquisa pude acompanhar pelas falas dos jovens um pouco das

circunstâncias de violência que marcam seus contextos sociais. Não obstante a inserção em

um espaço de ações preventivas, os jovens estão sitiados pela violência no bairro em que

residem, podendo observar que o que existe lá fora é o crime desenfreado e a repressão

policial, diferenciando completamente do que experienciam dentro do Projeto. Sinalizam,

portanto, a contradição do Estado democrático de direito entre a prevenção e a repressão, e

adentram no imaginário social punitivo que responsabiliza os jovens por sua inserção na

criminalidade.

Assim, nesse capítulo busco apresentar como a violência afeta a vida dos jovens

participantes do Espaço Viva Gente em seus contextos sociais, a partir das suas vivências no

bairro, na rua, em suas relações com a polícia, e como eles compreendem tais situações.

4.1 VIVER OU MORRER? A INSERÇÃO NA CRIMINALIDADE E A

RESPONSABILIDADE JUVENIL

Os jovens sujeitos dessa pesquisa se reconhecem em um ambiente de disputa da

violência e delineiam suas vidas entre o desafio de escolher viver ou morrer, como se

dependesse apenas deles essa escolha, como destaca esse jovem: “Não, ali só entra quem

quer!” (Masculino, Horto/Tarde).

Ao assimilarem esses discursos, alguns jovens integrantes da pesquisa

relacionavam a problemática da violência a uma má escolha realizada por aqueles que

adentram a criminalidade, como expressa esse jovem: “A pessoa só entra no mundo das

drogas se quiser, né?” (Masculino, Horto/Manhã). Nesse sentido, eles compreendem que

podem não fazer parte das estatísticas se optarem por outras perspectivas de vida, pois, como

concluiu esse outro jovem, a violência somente “Interfere se o cara deixar!” (Masculino,

Futebol).

29

Diógenes e Sá, 2011, p.152.

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Mas será que, de fato, a violência somente atinge a vida daqueles que permitem

sua interferência? Tudo se trata mesmo de uma escolha na qual os jovens são os principais

responsáveis por fazerem ou não parte das estatísticas?

D: E vocês acham que ser jovem é ser vulnerável? Tá muito vulnerável a essas

coisas?

J: Só quem quer.

J: É.

D: E, assim, na vizinhança essas ofertas aparecem? De querer recrutar jovens como

vocês para o crime?

J: Demais.

D: Chegam a chamar alguém?

J: Chegam. Dizem: ei má30

vai deixar isso daqui pra mim que eu te dou dinheiro.

D: Ah, é?

J: É.

J: Oferecem moto pra ficar fazendo entrega.

D: Moto?

J: Sim, ficar fazendo entrega.

D: Ficar fazendo entrega de droga em moto, né?

J: Aviãozinho.

D: Então, mesmo vocês estando em casa, ali por perto, pode aparecer uma pessoa

pra fazer esse tipo de proposta. Então o negócio mesmo é resistir?

J: Ser forte.

(Grupo Focal, Futebol)

Diante dessas falas podemos observar que por serem classificados como vítimas

ou atores preferenciais da violência, alguns jovens tomam para si a responsabilização com

relação a sua capacidade de escolha, diante das circunstâncias de violência. Nesse sentido,

não querer, ser forte, fugir, resistir, escolher, são ações que adquirem conotações

fundamentais, tendo em vista os contextos sociais em que estão inseridos.

Em contraposição ao explicitado nas falas dos colegas sobre a interferência da

violência com relação à juventude, essa jovem, acredita que a violência: “pode afetar muitos

jovens porque dizem que nessa época eles usam muito o que eles aprendem, e eles vendo

aquilo ali, eles acabam querendo praticar e até mesmo querendo provar o que eles ouvem

falar” (Feminino, Horto/Tarde).

Nessa perspectiva, ela reconhece que o contexto de violência e criminalidade em

que muitos jovens estão inseridos pode influenciar em suas escolhas, à medida que tais

práticas passam a concorrer com as referências que possuem. É interessante notar que, quando

fala, a jovem se retira do exemplo ao explicar “eles usam”, talvez porque compreenda que a

violência seja “coisa de homem”, por serem os jovens do sexo masculino os principais

destacados nos noticiários e mesmo nos casos que acompanha no bairro onde mora. Dessa

30

A sílaba faz referência a “macho”, e se constitui em um tratamento comum entre jovens do sexo masculino no

Ceará.

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forma, ela não se reconhece enquadrada como alguém que estaria propícia a ser influenciada

pela violência, mesmo inserida em um contexto de vulnerabilidade.

Ao mesmo tempo, quando afirma “nessa época”, ela se utiliza de uma

compreensão que Carrano e Martins (2007) afirmam ser homogênea sobre a juventude como

fase vulnerável à prática da violência. Essa estreita relação entre juventude e violência

culmina com o que a jovem explica ser essa fase da vida estigmatizada socialmente, como o

momento da experimentação, da irresponsabilidade, da tendência ao comportamento violento.

Assim, “eles” querem usar o que aprendem, o que veem, o que ouvem falar. Mas o que eles

aprendem? Que tipo de experiências e aprendizados estão expostos em suas realidades que

competem significativamente com as escolhas que eles podem tomar? Percebe-se que muito

de seus discursos desse tipo estão relacionados às drogas.

D: E sobre a questão do uso das drogas, como se dá? É visível?

J: É que nem vender bombom, tia.

J: Cada esquina tem um.

J: Aqui na pracinha de noite, aí, que é a esquadrilha da fumaça [risos]. Tem até o

time, agora.

D: As pessoas vão pra usar drogas?

J: É a Sucam [risos].31

(Grupo Focal, Futebol)

J: Lá na minha rua tem aviãozinho. Menino menor que ele [fazendo referência ao

tamanho de um dos jovem que estava na sala], do tamanho do meu irmão já tá com

uma pistola na mão.

D: Ele é aviãozinho?

J: É, desde pequeno.

D: Qual é a idade dele?

J: Treze [anos]. [...] Acho que ele nem consegue segurar a pistola. Sei que ele anda

com uma pistola nas calças.

(Grupo Focal, Futebol)

Complementando as afirmações da jovem sobre o que tem sido “ensinado” em

seus contextos sociais, as falas acima nos orientam sobre as informações que estão sendo

transmitidas a estes. A venda e uso generalizado de drogas e o recrutamento para o tráfico são

referências que os jovens “vendo aquilo ali, eles acabam querendo praticar e até mesmo

querendo provar”. Dessa forma, “eles”, são justamente os que a mídia apresenta como

“responsáveis pela violência”, mas são também “eles” que em sua rotina no bairro, ela

observa enfrentarem muitos desafios. Nesse sentido, diante dos discursos que apontam o lugar

da juventude no que se refere às violências, mesmo não sendo decisiva, a violência pode

interferir em suas escolhas.

31 O jovem utiliza o termo SUCAM, hoje extinta e unificada a outras ações da Fundação Nacional de

Saúde/FUNASA, do Ministério da Saúde, para fazer referência a fumaça do carro que passa no bairro para

combater mosquitos da dengue, em comparação a fumaça provocada pelo uso de drogas.

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Tendo em vista as situações adversas que estão submetidos muitos jovens,

Diógenes e Sá (2011) explicitam que a implementação das políticas de juventude representou

algumas conquistas. No entanto, a juventude ainda convive com muitas limitações, sobretudo

com relação à dicotomia estabelecida nos discursos sobre Segurança Pública e na mídia que

classifica os jovens com relação à violência como atores ou vítimas, discursos esses muitas

vezes assimilados pelos próprios jovens, o que pode ser percebido nas falas a seguir:

D: E por que vocês acham que se dar isso principalmente na juventude? Por que

principalmente os jovens estão envolvidos nisso [em casos de violência]?

J: Por que não ajudam eles.

J: Eu acho que são os das comunidades carente que não têm capacidade assim de

ganhar dinheiro, aí faz isso pra ganhar a boca ou então alguma coisa...

J: Não tem boa educação, escola boa...

D: Vocês acham que isso faz falta, que isso pode contribuir?

J: Pode, pode!

J: Eu acho que não porque escola em todo canto tem, escola que tem vaga em todo

canto tem, aí a pessoa não quer ir, tem tanta escola por aí, tem tanto aluno dentro da

escola, tem tanto que saiu da escola pra roubar, pra matar...

D: E quem pensa diferente?

J: Mais segurança!

J: É botar policial dentro das escolas.

J: A lei!

(Grupo Focal Horto/Tarde)

Nas falas acima podemos observar algumas questões importantes. A primeira fala

sinaliza a falta de “ajuda” para os jovens, que pode ser entendida como a insuficiência ou

distanciamento que ainda caracterizam as políticas públicas para “eles”, mesmo com a criação

das políticas de juventude. Na segunda, a jovem, distingue os jovens que praticam crimes

daqueles que não praticam como “os das comunidades carente”, mesmo ela sendo moradora

de um bairro caracterizado como de baixa renda. Diante dessa afirmação o que fica

perceptível é a forma pela qual o discurso que promove a associação da criminalidade à

pobreza é difundido socialmente e assimilado, inclusive por aqueles que enfrentam tal

estigmatização.

Na sequência, os jovens levantam um questionamento sobre a influência da

educação com relação à inserção da juventude na violência. Enquanto um aponta a baixa

qualidade da educação e a necessidade de melhores escolas como um fator de combate a

criminalidade, outro retoma a responsabilização dos jovens nas práticas de violência como

uma escolha quando afirma que “a pessoa não quer ir” mesmo tendo “tanta escola por aí”,

optando pelas práticas ilegais em detrimento de ações educativas. Nesse sentido, em

concordância com Diógenes e Sá (2011), observo que os intensivos discursos midiáticos que

evidenciam os jovens como inseridos em práticas violentas tornam “a análise do campo de

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violências e inseguranças uma atividade minada pelo risco do reforço da criminalização já

efetuada pelos discursos sociais hegemônicos sobre jovens” (p.152), inclusive por eles

próprios, como nesse caso.

Ainda no sentido da responsabilização da juventude pela violência, nessas falas os

jovens reforçam o discurso oficial e da mídia ao afirmarem que, nesse contexto, o que se faz

necessário é estabelecer “mais segurança”, sobretudo com policiamento “dentro das escolas”

e a mudança na “lei”, tendo em vista o entendimento do aspecto punitivo como crucial no

combate aos casos de violência. Nessa perspectiva, reflito em que medida as ações

preventivas do Espaço Viva Gente podem ou não levar à compreensão sobre segurança

preventiva para além da segurança punitiva.

Diante de todas essas falas o que fica nítido é que os jovens do Espaço Viva

Gente, embora se apresentem como suscetíveis a ações arbitrárias e estigmatização pela

própria condição juvenil e pelo bairro em que moram, em suas falas, procuram se distanciar

daqueles que julgam se enquadrar em um perfil problemático com relação à violência. E,

portanto, para estes, que não são eles, se faz necessário a ajuda, a educação, a segurança, a

polícia, a lei, com o objetivo de exercer ações com vistas ao controle da violência. É provável

que isso se deva a inserção destes no Espaço Viva Gente, o que para eles se constitui em um

diferencial de oportunidades e valores sobre as referências que estão sendo construídas com

relação ao uso da rua, da importância de fazer “boas” escolhas, de não adentrarem aos índices

da criminalidade. Dessa forma, lá é o lugar da segurança, quem lá estiver está seguro diante

das mazelas do bairro e quem permanece na rua escolhe a violência.

No entanto, algo parece contraditório. Por que os mesmos jovens que vivenciam

situações adversas de exposição à violência e reconhecem ser um desafio atingir a

maioridade, uma vez que a morte precoce se faz rotina em suas realidades, aderem ao discurso

dos órgãos de segurança pública de culpabilização da juventude pela violência? E isso,

quando estão inseridos em um Projeto que concentra suas atividades no âmbito preventivo?

De acordo com Diógenes e Sá (2011), “é esse o imbróglio que torna a criminalização da

juventude um terreno pantanoso e estratégico para os pesquisadores da atualidade” (p.152),

sobretudo em circunstâncias que rótulos e estigmas são constantemente utilizados, nos

discursos da criminalização, inclusive entre os próprios jovens que vivenciam esses dilemas.

Jovens estes que convivem em suas comunidades com a violência materializada

nas redes do tráfico, nos constantes assassinatos, nas disputas territoriais:

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D: Mas com relação à violência em si, é complicado andar no bairro? Vocês falaram

da questão das disputas de território. Como é que é? Tem casos em que vocês não

podem passar de um lugar pra outro?

J: Tem. Quem mora num bairro não pode ir para outro porque tem rixa um com o

outro.

J: Tem treta32

, sim.

J: Chega aí no Barroso I e diz que é daqui pra tu ver!

D: Aí o que é que ocorre? É violência física, batem?

J: É de todo jeito.

J: Eles metem bala.

J: Pegam bala, pau, pedra.

D: Como é? Bala mesmo?

J: Correria.

J: Metem bala mesmo.

D: Só porque você é de outro bairro, de outra área?

J: É sim.

D: Mas tem a ver com o tráfico de drogas?

J: Claro, tia!

J: Morte.

J: É questão de dinheiro.

(Grupo Focal Futebol)

J: É, existe uma forma assim, vertical, né, capitalizada.

D: O que é vertical?

J: É essa rua ali! [Aponta com o braço para a direção da rua].

J: É esse bairro aí, oh, uma favelazinha que tem aí!

D: É o quê?

J: Era treta, tia, não podia ninguém andar ali não que morria...

J: Mesma coisa do São Miguel, Coqueirim...

D: E agora, ainda continua essa disputa?

J: Se aliaram

J: Não.

D: Então, se uniram?

J: Foi.

(Grupo Focal Horto/Manhã)

De acordo com essas falas, a vida no bairro é marcada por disputas territoriais que

comprometem a livre circulação. Normalmente tais práticas estão relacionadas a áreas

disputadas pelo tráfico de drogas e são conduzidas por traficantes, embora em alguns casos

sejam justificados por outras circunstâncias. Ao mesmo tempo em que a criação dessas

barreiras restringe a circulação da população no bairro a partir da comunidade a qual pertence,

dentro daquela “circunscrição” a “paz” é “garantida”, uma vez que ataques de rivais e roubos,

por exemplos, executados por criminosos de “fora” da área protegida, não são permitidos

como exposto na fala dessa jovem: “Não, no bairro onde eu moro não tem muito roubo não

porque eles [traficantes] não aceitam roubar lá” (Feminino, Horto/Tarde). De fato, é comum a

punição com a morte. No entanto, como também observado, quando é conveniente, pode

ocorrer de duas comunidades rivais se aliarem para somar forças e interesses comuns.

32

Se refere à briga, confusão.

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Tendo em vista essas questões que modelam o cotidiano a partir da criminalidade,

os discursos dos jovens por vezes se voltam para o aspecto punitivo, “A respeito da lei, né, da

violência, a primeira coisa que tem que ver é a nossa lei” (Masculino, Horto/Manhã),

relacionando os índices de violência à impunidade: “O policial chega, o cara mata um,

prendeu, com um mês o cara tá solto, mata outro” (Masculino, Horto/Manhã).

Dessa forma, segundo Adorno (2000), o aumento dos índices do crime violento

nos espaços urbanos leva à avaliação da eficiência dos órgãos responsáveis pela manutenção

da ordem, com relação à capacidade de apresentarem respostas que inibam a reprodução da

violência, que parece ser mais acelerada que a habilidade do Estado em gerir tais situações.

Como resultado disso, a baixa capacidade da justiça em proporcionar resultados apreciáveis

no que diz respeito à condenação de autores de delitos, provoca um sentimento de impunidade

que a sociedade coletivamente evidencia: “os crimes crescem, se tornam mais violentos e não

chegam a ser punidos” (p.140).

No entanto, sobre o Estado, enquanto detentor legal da violência, a relação da

juventude com os dispositivos de manutenção da ordem se estabelece em uma relação

conflituosa, sobretudo com a polícia, que se constitui no aparato do Estado mais presente nas

comunidades da periferia. É fato que alguns jovens nos grupos focais compartilhavam a ideia

da necessidade da polícia e de leis mais rígidas: “É, porque tem adolescente que rouba e diz

que vai pra engorda. Sabe que não pode ser preso, faz o que quer.” (Masculino,

Horto/Manhã), enfocando a punição como um elemento inibidor das práticas criminosas.

Contudo, observei um paradoxo nos discursos do grupo focal. Mesmo

sobressaindo a ideia de punição aos jovens por intermédio da força policial e de leis mais

rígidas, por outro lado, alguns repudiavam a ação policial, julgando-a arbitrária. Quando

indagados sobre o assunto “abordagem policial”, reagiram com revolta em relação às

experiências que vivenciam na rua, ou que têm conhecimento sobre os seus pares: “Eu

conheço dois caras que eles foram abordados e os policiais fizeram eles pegar na merda”

(Masculino, Futebol); ou mesmo nos noticiários: “Passou na televisão, o policial matou o

menino pensando que ele era o ladrão” (Masculino, Futebol).

Quero deixar claro que não é minha intenção demonizar a instituição policial nem

estabelecer ideias generalizadas sobre a atuação da polícia, sobretudo em sua relação com a

juventude e em bairros periféricos, pois compreendo que esta tem um papel importante no

enfrentamento da violência. O que trago aqui são situações vivenciadas pelos jovens, sujeitos

dessa pesquisa, em seus cotidianos, objetivando problematizar as inúmeras circunstâncias que

ainda experienciamos na sociedade e que apontam para o longo caminho a ser percorrido com

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relação à efetivação dos direitos, especialmente daqueles que se encontram em condição de

vulnerabilidade.

Sobre a atuação arbitrária das instituições policiais Barreira (2004) explica que

essas questões se relacionam com:

a formação do policial com lacunas profundas no campo dos direitos humanos e no

respeito à cidadania. O uso da tortura nas batidas policiais e nos interrogatórios

aparece como marca de continuidade de práticas habitualmente empregadas. A

tortura, que no regime autoritário era uma prática recorrente nos interrogatórios dos

presos políticos, passou a ser um exercício frequente nas detenções e nos inquéritos

envolvendo pessoas pobres, negros e desempregados. Se estas práticas aparecem

como um legado do regime autoritário, os governos democráticos enfrentam o

desafio de implementar uma política de segurança pública capaz de prevenir e

combater a criminalidade e de manter a ordem tendo como referência os princípios

do Estado de Direito (p. 78).

Nessa perspectiva, as ações da Segurança Pública que têm como principal meio a

atuação policial, embora percebidas como cruciais por alguns jovens nos grupos focais na

medida em que ela representa a lei e a possibilidade de inibir a atuação de criminosos,

também é vista com descrédito por outros:

D: O governo tem desenvolvido política de combate à violência?

J: Tem.

J: Polícia.

J: Mas polícia não dá jeito.

(Grupo Focal, Horto/Manhã)

Neste sentido, alguns jovens do Projeto vivenciam esta contradição do desejo da

punição pela polícia, ao pensarem naqueles jovens “que não querem nada”, e da desconfiança

e percepção de que “polícia não dá jeito”, tendo em vista suas realidades marcadas pelo

desrespeito e por atuações arbitrárias. Tal contradição se vivifica neste cotidiano da rua. A

pergunta que faço, nesta pesquisa, é por que esta percepção também se constitui em um

Projeto que visa à prevenção da violência? Por que os jovens do Viva Gente replicam as

representações oficiais da punição quando vivenciam no próprio bairro as histórias de arbítrio

policial, ao mesmo tempo que participam de atividades de prevenção à violência?

Uma questão relevante relacionada a esta contradição, é a substituição da

autoridade policial pela autoridade do traficante nas percepções destes jovens. O traficante é

apontado como mais confiável que a instituição policial:

J: Eu confio no traficante, mas não confio na polícia. Eu confio nos traficantes tudim

que mora lá perto de casa, mas não confio em nenhum policial, não.

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J: Lá no pedaço, né, de madrugada, [...] tem um pessoal aí do ronda33

[...], quem eles

pegar na rua fora de hora, se eles não matar é sorte.

D: Por que você disse que confia mais nos traficantes que na polícia?

J: Porque eles [traficantes] resolvem alguma coisa, tipo essa coisa que vieram

pessoal de outra comunidade, que fizeram coisa errada lá, eles não deixam,

entendeu? Tipo, por aqui, tipo assim, os traficantes protegem mais a comunidade do

que os policiais.

J: Quem eles [policiais] pegam aqui no meio da rua, quem estiver fazendo

abordagem, pega, mete a peia34

no meio da rua aqui. Os traficantes não, eles passam,

falam com a população, ajudam a população, protegem a comunidade...

(Grupo Focal, Horto/Manhã)

O que me chama a atenção nessas falas é que os jovens veem os traficantes como

aqueles que protegem de gangues vizinhas, que cumprimentam os moradores, que oferecem

inclusive auxílio financeiro em determinadas situações. Assim, enquanto o policial bate, o

traficante cumprimenta, “falam com a população, ajudam a população, protegem a

comunidade”. Mas, por que ações tão simples desencadeiam a referência de confiança na

figura do traficante, sobretudo quando os conflitos que eles “resolvem” proporcionando a

sensação de “proteção”, são provavelmente criados por eles mesmos ao demarcarem

territórios e estabelecerem disputas com gangues rivais? Seria o simples fato de conversar

com a população o que ocasiona essa credibilidade?

Percebe-se que o uso do diálogo é representativo aqui por meio da relação com o

traficante. Sabe-se que é a base para a confiança, para a proposta de um tipo de relação da

polícia com a comunidade, mediante policiamento comunitário. Estas experiências não

cresceram no Ceará, mas crescem o tráfico e o traficante que utiliza o diálogo como

ferramenta de confiança. Não é um paradoxo?

O Estado por intermédio dos aparatos da segurança pública é responsabilizado por

responder às necessidades de segurança da sociedade. No entanto, em alguns casos, a polícia,

que deveria chegar nas comunidades para inibir ações criminosas e proteger aqueles que se

encontram sob tais ações, incide diretamente sobre estes. Mediante o tratamento que é dado a

determinadas parcelas da população como os jovens da pesquisa, esta tem a sua capacidade de

aproximação das comunidades e o seu intuito de favorecer a segurança comprometido.

Nesse sentido, usar como referência de confiança o traficante é acima de tudo

demonstrar a pouca credibilidade que as instituições da segurança pública encontram na

sociedade, sobretudo entre os jovens que se apresentam como os principais atingidos por

práticas abusivas, pois enquanto o policial “pega, mete a peia no meio da rua”, os traficantes

“resolvem alguma coisa”. Parece pouco, mas para populações que vivem marginalizadas e em

33

Ronda do Quarteirão. 34

Ação de bater, surrar.

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contextos marcados pela exclusão, mesmo quando os jovens que falam são os que estão

inseridos em uma instituição do Estado com vistas à inclusão como o Viva Gente, tais atitudes

do traficante, em contraposição a dos policiais, se apresentam como suficientes para a

elaboração de um olhar negativo sobre um e positivo sobre o outro.

Sobre o Estado Adorno (2000) salienta que, ao longo dos séculos, as sociedades

experimentaram intensas transformações que originaram os Estados democráticos, com a

expansão dos direitos. Nesse contexto, um fato fundamental se refere ao seu papel como

pacificador da sociedade, constituindo-se como detentor do monopólio, tanto da soberania

jurídico-política, assim como da violência física legítima.

No entanto, de acordo com Rolim (2008):

Na realidade brasileira, o problema da violência policial não deve ser subestimado,

nem tratado – como costumam fazer as autoridades políticas e os gestores do

sistema – como “fatos isolados”. Nossa tradição policial está profundamente

marcada pela violência e apesar dos esforços de todos aqueles que, dentro ou fora

das corporações, têm lutado para que as atividades de policiamento sejam

respeitadoras da lei, estamos longe de conquistar uma realidade minimamente

aceitável (p. 46).

Diante das muitas questões que observei, especialmente nas falas dos jovens, por

vezes, a atuação que deveria viabilizar segurança às populações, sobretudo àquelas situadas

em regiões pobres da cidade, resultam em arbitrariedades que incidem justamente sobre os

que deveriam proteger, pois como afirma Gil (2000), “as práticas de violência transcendem os

espaços privados e se institucionalizam nos próprios órgãos encarregados da segurança

pública” (p. 121).

Ao lado deste sentido do Estado em relação ao modo de enfrentamento da

violência sem resultados significativos na interação com a população, observa-se que o

crescimento da violência com a expansão do medo vem se constituindo nas duas últimas

décadas como uma das principais preocupações da sociedade brasileira. Diante desse fato,

algumas demandas passam a ganhar o aval das populações, seja em bairros nobres ou

periféricos, sobretudo com relação a práticas rígidas de repressão representadas como meios

utilizados pela polícia para o cumprimento da ordem. Há, assim, a disseminação da repressão,

a sugestão da inclusão da pena de morte na legislação brasileira, dentre outras formas que

afirmam a repressão e punição pela prisão em regime fechado como modelos de solução da

violência. Sem falar na forma “justiça com as próprias mãos”, quando alguns entendem que o

Estado não pune suficientemente. Todas estas formas têm um paradigma comum: a seleção de

quem é alvo da repressão, pobres, negros e jovens, em maioria, escolhidos pelo estigma que

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associa pobreza à criminalidade. Neste sentido, muitos outros processos são desencadeados no

âmbito do Judiciário, tendo como consequência:

Aumento da seletividade dos casos a serem investigados com o consequente

aumento do arbítrio e da corrupção; excesso de formalismos contribuindo para

acentuar a morosidade judicial e processual; elevado número de casos arquivados

por impossibilidade de investigá-los. Ao mesmo tempo, aumento do número de

prisões, sobretudo nos postos e delegacias policiais, tornando a situação carcerária

do país cada vez mais explosiva, pelo menos em algumas regiões, mais

particularmente nas prisões de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

(ADORNO, 2000, p.140).

Diante das alternativas que vêm sendo pensadas pelo Estado como resposta à

problemática da violência, percebe-se o afastamento gradual de ações preventivas. Àquele

ponto de encontro que refletia no capítulo anterior entre políticas de segurança e políticas de

prevenção parece alargar-se. Encontrei este ponto de encontro no Espaço Viva Gente, de

forma pontual, por ser um projeto de inclusão com ações próprias de prevenção à inserção de

jovens no mundo do crime e da violência, desencadeando, portanto, em ação de Segurança,

por ser um Projeto do Estado. No entanto, a imersão e difusão no imaginário social da

contradição entre desejar a polícia e odiá-la, ao mesmo tempo do desejo de punição, resultam

das contradições de um Estado ainda envolto em ações meramente repressivas no campo da

segurança pública, com poucos resultados e pouca inserção no âmbito preventivo e sem

nenhuma divulgação desta forma de fazer segurança.

O desafio que se apresenta é que as ações corroborem para uma efetiva expansão

dos direitos, especialmente daqueles que se encontram em condições mais vulneráveis. Que

contribuam para amenizar a situação de vitimazação a que estão submetidos muitos

indivíduos e não para reforçá-la. Que compreenda o jovem, não apenas em seu potencial risco

à segurança pública, mas observe-o em sua plenitude, como sujeito que planeja o seu futuro

frente às adversidades. Que os projetos que desenvolvem ações preventivas não reproduzam

aos seus sujeitos o discurso simples da punição, mas que possibilite a estes questionarem as

situações que vivenciam em suas realidades de forma crítica.

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4.2 O MUNDO DA RUA: ESPAÇO DA VIOLÊNCIA OU DA SOCIALIZAÇÃO?

Vapor barato, um mero serviçal do narcotráfico, foi

encontrado na ruína de uma escola em construção, aqui

tudo parece que é ainda construção e já é ruína, tudo é

menino e menina no olho da rua, o asfalto, a ponte, o

viaduto, ganindo pra lua, nada continua, e o cano da

pistola que as crianças mordem, reflete todas as cores da

paisagem da cidade que é muito mais bonita, e muito

mais intensa do que no cartão-postal35

.

(Caetano Veloso)

Não fazia parte dos meus objetivos problematizar a rua e a sua relação com a

violência e a socialização. No entanto, à medida que fui convivendo com os jovens e as

jovens, o discurso da rua enquanto lugar fomentador do crime e da violência apareceu de

modo expressivo, e em todos os grupos focais que realizei observei que se repetia a

compreensão de que é necessário, àqueles que têm algum objetivo na vida, fugir da rua, uma

vez que ela representa a má influência e o recrutamento ao crime, como expressado por esse

jovem: “no meio da rua só dá duas coisas: cemitério ou cadeia” (Masculino/Futebol).

Por sua vez, nas falas dos funcionários do projeto, isso também se confirmava

reforçado pela importância da utilização de espaços como o Viva Gente em contraposição ao

lugar da rua, que devia ser evitado, tendo em vista o perigo eminente. É fato que a

preocupação, tanto dos jovens como dos funcionários, é coerente, sobretudo quando

observamos os relatos apontados como rotineiros que caracterizam a vida no bairro e as

vivências juvenis em suas respectivas realidades:

D: E como é a questão da violência no bairro?

J: Grande!

J: É diária, tia.

D: E principalmente, o que se vê no bairro?

J: Morte!

J: Drogas.

(Grupo Focal, Futebol)

No entanto, conforme fui buscando compreender e analisar essa questão percebi

que a problemática era bem mais ampla e se relacionava com muitas questões que precisavam

ser mais bem refletidas36

. Ora, se a rua se apresenta como espaço fomentador do crime, tirar o

35

Trecho da música “Fora da ordem” de Caetano Veloso, 1991. 36

Comecei a refletir sobre a problemática do espaço da rua mediante as falas dos jovens e funcionários do

Espaço Viva Gente na pesquisa de campo. Mas foi no Seminário “Pela Vida da Juventude: Discutindo o Mapa

da Violência 2014 com Júlio Jacobo”, realizada no Centro Urbano de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (CUCA)

do Mondubim, em Fortaleza, que comecei a observar outras faces dessa problemática. Nas discussões levantadas

durante o seminário foi realizado um debate sobre como é ser jovem na periferia, sendo problematizados os

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jovem da rua se constitui uma solução lógica para o problema. Mas até que ponto ela é

eficiente, especialmente se levarmos em consideração a quantidade de espaços que poderão

absorver esse jovem? E como não utilizar o espaço da rua, sobretudo em uma cidade como

Fortaleza, que apresenta poucos espaços públicos de socialização nos bairros da periferia?

Seria a casa/escola/projeto, o local ideal para o jovem estar? Por que em vez de tirar o jovem

da rua, não fazer dela o espaço da paz, da amizade, do lazer?

Roberto DaMatta (1997) em seu livro “A casa e a rua” problematiza o espaço da

rua e de como ela é concebida na sociedade brasileira a partir da sua interlocução com a casa

que, segundo o autor, é o seu espaço gêmeo. No entanto, embora apresentem um caráter

complementar, ambas se constituem em espaços de oposição, sendo a casa o local da

familiaridade e da hospitalidade, enquanto a rua se apresenta como o seu oposto: “Terra que

pertence ao “governo” ou ao “povo” e que está sempre repleta de fluidez e movimento. A rua

é um local perigoso.” (p. 57).

Essa ideia do perigo que predomina no imaginário de jovens e adultos alerta para

o cuidado que deve ser tomado no uso da rua, pois na medida em que esta se constitui em um

espaço de todos, as experiências dela advindas podem expressar riscos com relação à

utilização do seu espaço: “Lá na rua, todo mundo fuma maconha. É tudo misturado”

(Masculino, Horto/Manhã).

Ao me deparar com a fala desse jovem me vem à lembrança a preocupação de

outro que interrogou: “se eles não estivessem aqui, em que lugar eles estariam?”, pois diante

de suas vivências ele pode concluir que, principalmente o jovem, precisa de um lugar com

regras diferenciadas daquelas da rua, tendo em vista a não realização de práticas

irresponsáveis que podem gerar inconveniências para eles.

De acordo com DaMatta (1997) estar na rua ou na casa remete à regras de

comportamento diferenciadas. Todavia, essa oposição ocorre de maneira complexa e

dinâmica, pois, se a casa é notoriamente o lugar da moradia, a rua, em determinadas situações

também pode se tornar esse espaço, assim como muitos outros:

Não preciso acentuar que é na rua que devem viver os malandros, os meliantes, os

pilantras e os marginais em geral - ainda que esses mesmos personagens em casa

possam ser seres humanos decentes e até mesmo bons pais de família. Do mesmo

modo, a rua é local de individualização, de luta e de malandragem. Zona onde cada

um deve zelar por si enquanto Deus olha por todos, conforme diz o ditado tantas

vezes citado em situações onde não se pode mais dar sentido por meio de uma

ideologia da casa e da família; contextos, repito, onde não se pode mais utilizar

discursos que apresentam a rua como o lugar do medo e do recrutamento da criminalidade, o que aponta para a

necessidade de tirar o jovem da rua. Esse debate foi fundamental para as análises que elaboro aqui.

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como moldura moral a vertente relacional e hierarquizante de nossa constelação de

valores (p. 55).

Embora como ressalta o autor, a rua possa ser, inclusive o espaço da luta, ela é

tida popularmente em nossa sociedade, e isso pude observar na fala dos sujeitos da pesquisa,

como o espaço da “malandragem”, no qual aqueles que nela sobrevivem experimentam seus

dramas individualmente, sem o apoio da família, cabendo a cada um a sua própria existência.

Partindo do contexto que os jovens do Espaço Viva Gente destacam e da

compreensão de DaMatta (1997), podemos entender porque a rua se apresenta como esse

local da violência visível, materializada:

D: Como vocês percebem a violência no bairro de vocês?

J: Visível, até de mais.

J: É naturalmente!

J: No meio da rua.

D: O que vocês veem no meio da rua?

J: Tráfico, drogas.

J: Uso de drogas, armas.

J: Venda de drogas.

J: Fumando maconha.

J: Um matando o outro...

(Grupo Focal, Horto/Manhã)

Dessa forma, estar na rua significa para eles, assim como para os funcionários do

Espaço Viva Gente, abrir mão do controle exercido. Tal controle resulta em certa sensação de

segurança, que é percebida quando pertencem a algum espaço como o referido Projeto.

De acordo com DaMatta (1997), estar na casa ou na rua expressa mais que

cenários diferenciados ou esferas de sentido. Revelam diferentes visões de mundo

constituídas de éticas particulares nas quais cada realidade distingue e moraliza os

comportamentos esperados, seja ele no âmbito da casa ou na rua. Para o autor, embora muitos

brasileiros apresentem um mesmo procedimento nos diferentes espaços frequentados, a

atitude mais esperada se refere a “mudanças de atitudes, gestos, roupas, assuntos, papeis

sociais” (p. 48), a partir da esfera social em que estes se encontram: “O pessoal vê assim no

meio da roda: olha o vagabundo ali, o filho de fulano no meio da roda, que é santinho na

frente da mãe e no meio da rua é desse jeito! Sabe nem como é que a pessoa é, e fica falando”

(Masculino, Horto/Manhã).

Nesse relato o jovem explica que a forma como a abordagem policial é realizada

contribui para a imagem que os vizinhos e conhecidos passam a elaborar sobre eles, pois as

insinuações efetuadas pelos policiais com relação a estarem envolvidos em assaltos, ou

mesmo sobre o uso de drogas são, por vezes, tomadas como verdade, conferindo a estes uma

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imagem negativa. Isso leva os vizinhos a afirmarem que, diferente do que os pais pensam,

aqueles jovens não apresentam um bom comportamento na rua, uma vez que estão sendo

abordados pela polícia. Neste sentido, mais uma vez, a rua é sinônimo do mal ou das

maledicências vindas do outro.

Ressalto aqui que a casa neste estudo é simbolizada pela “casa” Espaço Viva

Gente, lugar da proteção em oposição à rua, lugar da maconha, da morte, das drogas e das

armas. O Projeto é, então, a representação da segurança e da sobrevivência aos males da rua,

pelo menos nos sentidos expostos pelos jovens e funcionários da instituição. Mas, a ideia da

casa também pode ser a família em si, como lugar de apoio e símbolo de segurança, em

especial, como forma de defesa da polícia. Estar na rua é, para esta instituição, sinônimo de

ser vagabundo37

.

DaMatta (1997) salienta que a compreensão da utilização da rua como espaço

constituído para a malandragem é antiga e remonta os tempos coloniais. No entanto, o autor

observa que até os dias de hoje:

A sociedade parece fiel a sua visão interna do espaço da rua como algo

movimentado, propício a desgraças e roubos, local onde as pessoas podem ser

confundidas com indigentes e tomadas pelo que não são. Nada pior para cada um de

nós do que ser tratado como “gente comum”, como “zé-povinho sem eira nem

beira”, nada mais dramático para alguém de “boa família” do que ser tomado como

um “moleque de rua” (p. 58-59).

Nessa perspectiva, como observado nas narrativas dos jovens, podemos perceber

nitidamente essa relação bem definida do comportamento esperado em ambos os espaços. O

comportamento do jovem na rua segundo aqueles que os observam, difere do exercido na

frente dos pais em casa, e sob o controle dos educadores e funcionários do Projeto. Ao mesmo

tempo, para os jovens, é angustiante ser tratado como aquele que tem um comportamento

próprio da rua, uma vez que é visto como pejorativo e divergente das práticas esperadas

socialmente.

Em outra concepção da rua, Caldeira (2000) aponta que a sua utilização para

circulação de pessoas e veículos se apresenta como uma das imagens mais nítidas das cidades

modernas, e mesmo diante das contradições da modernidade, nas cidades ocidentais:

37

Esclareço que não trabalhei a relação dos jovens com a família especificamente, para ter mais dados sobre a

ideia da casa como lugar de apoio, de segurança, de amor da família. Mas, foi possível verificar também este

aspecto nas entrevistas e grupos focais realizados, em especial quando a fala é sobre a abordagem policial. Neste

sentido, a casa da família é o lugar de salvação do título de vagabundo.

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há um grande consenso a respeito de quais são os elementos básicos da experiência

moderna de vida pública urbana: a primazia e a abertura de ruas; a circulação livre;

os encontros impessoais e anônimos de pedestres; o uso público e espontâneo de

ruas e praças; e a presença de pessoas de diferentes grupos sociais passeando e

observando os outros que passam, olhando vitrines, fazendo compras, sentando nos

cafés, participando de manifestações políticas, apropriando as ruas para seus

festivais e comemorações, ou usando os espaços especialmente designados para o

lazer das massas (parques, estádios, locais de exposição) (p. 302).

Essa descrição da rua como espaço coletivo, que vai da ideia de circulação, de

consumo, passando pelas imagens de pessoas conversando livremente até a concepção de

lugar de manifestações políticas e de puro lazer, ronda ainda o imaginário social. Entretanto,

se esvanece muitas vezes diante da imagem do perigo, do medo da violência que gera a

vitimização e a fuga da rua. E, quando o passeio ou as compras na rua se deparam com

imagens de adolescentes também utilizando o espaço desta, vê-se a contradição aflorar mais

ainda entre o desejo e o medo da rua.

Não obstante as esferas da casa e da rua como locus de variadas representações,

observo que, a partir dessa designação contraditória e das tramas conflituosas que envolvem

muitos jovens na condição de violentos ou vítimas da rua, não se faz necessário que estes

exerçam um comportamento típico da rua, mas somente o fato de nela estar, o seu

comportamento é questionado. Todavia, não é apenas o estar na rua que o torna suspeito pelo

policial ou pelos conhecidos e desconhecidos, mas, também, a suspeição seletiva diante das

características já discutidas como ser jovem, pobre, negro, e ainda, em que rua está, ou seja,

se é localizada na periferia ou na área nobre da cidade, pois como afirma Caldeira (2000) “as

cidades modernas foram sempre marcadas por desigualdades sociais e segregação espacial, e

seus espaços são apropriados de maneiras bastante diferentes por diversos grupos,

dependendo de sua posição social e poder” (p. 303).

Nesse sentido, como afirma DaMatta (1997), alguns espaços são notoriamente

concebidos “como eternos e transitórios, legais e mágicos, individualizados e coletivos” (p.

43), enquanto outros “nem sempre são marcados pela eternidade” (p. 45). Dessa forma, os

espaços relacionados ao paradoxo, ao conflito ou à contradição são considerados transitórios e

problemáticos e, portanto usufruem de um tratamento diferenciado. Exemplo disso são as

áreas pobres das cidades que, vistas preconceituosamente, são mantidas em suas

peculiaridades.

Dessa forma, as ruas dos bairros periféricos que são notadamente reconhecidas

pela criminalidade, uso e tráfico de drogas, repetidas vezes comentadas pelos jovens dessa

pesquisa, se apresentam como espaços da violência, nas quais a circulação é comprometida

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pela presença de transgressores do espaço coletivo, àqueles envolvidos com drogas e assaltos,

e, em especial, jovens que cometem atos infracionais ou mesmo que recebem este rótulo

diante dos estereótipos construídos. Pelas entrevistas, foi unânime a ideia que quem objetiva

se esquivar de tais comportamentos e rótulos, deve evitá-las mesmo sendo o espaço mais

próximo de suas casas.

Diante dessas constatações parece que o caminho mais prático é evitar a rua para

livra-se de seus perigos. E por ser este ambiente que confere o mal, é muito recorrente na fala

dos jovens a importância de ter um lugar que se contraponha a ela para que eles possam estar:

“Aqui eu tô aprendendo muita coisa, eu poderia tá na rua fazendo coisa errada nas esquinas,

mas não, eu resolvi vim pra cá aprender” (Feminino, Horto/Tarde).

Como observado na fala acima, a casa que, para os jovens desta pesquisa,

representa o lugar da fuga das drogas e da “coisa errada”, pode, de fato, ser o Projeto Viva

Gente, onde aprendem “muita coisa”. Tendo em vista a compreensão dos sujeitos da pesquisa,

de novo a fala do jovem se faz sugestiva: “se eles não estivessem aqui, em que lugar eles

estariam?”.

Observo que estes jovens recebem do Projeto um processo socializador de

oposição à rua ao oferecer atividades esportivas e culturais como forma de mantê-los distantes

das drogas e criminalidade. A tarefa de prevenção se faz clara utilizando a ideia de oposição

casa x rua. Fica evidente na medida em que os jovens passam a evidenciá-lo como lugar de

orientação, de oposição e de educação que se faz fundamental, sobretudo se a família e a rua,

como espaço coletivo, não oferecem as condições necessárias para a formação “adequada”.

Nesse caso, os jovens encontram nesse espaço a acolhida protetiva contra a

violência. Por conseguinte, é como se o Projeto Viva Gente incorporasse as características da

casa, se constituindo em um espaço acolhedor para os jovens, pois aparece como um projeto

que visa “tirar os jovens da rua”.

Neste momento, volto à pergunta do jovem em relação aos seus colegas sobre se

eles não estivessem no Projeto, onde estariam que, a meu ver, vem recheada de negatividade

em relação à rua. Então, pensei em como o Projeto ressiginifica o imaginário destes jovens.

No entanto, também me reporto ao imaginário social da rua como espaço por excelência do

público, do encontro, do desenvolvimento da observação da vida social e, em especial, onde

os jovens desenvolvem laços de amizade e de lazer como processo de socialização com outros

jovens:

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O espaço da rua fornece afirmação da cultura juvenil e possibilidades de lazer, onde

se tem espaço livre, o que não pode ser encontrado nas instituições particulares. O

lazer, também, assume forma de ocuparem o tempo e de não estarem ociosos, e

assim não se envolverem com coisas indevidas, como drogas (DAMASCENO,

2013, p. 59).

Para a autora, a rua aparece como o principal meio dos jovens se expressarem

como categoria social. “Como exemplo, temos a praça, que ainda representa o espaço onde os

jovens podem namorar, dançar, praticar algum esporte, conversar e reunir o grupo, trocarem

ideias” (DAMASCENO, 2013, p. 59).

Parece contraditório! A rua da violência e do medo e a rua da cultura e do lazer. A

concepção de que a rua é o espaço da violência, do conflito, do perigo, se materializa nos

jovens por meio da “fala do medo”, que pode ser uma ferramenta de proteção e contenção de

alguns jovens. Inclusive meio de prevenção. Considero, assim, que espaços como o Projeto

Viva Gente dimensionam essas características como instrumentos efetivos de manutenção de

jovens longe das atividades das drogas e outros crimes. E tentam efetivamente proteger seus

jovens!

Entretanto, sabe-se que são paliativos da prevenção à criminalidade que

compreende jovens representados pelas políticas públicas como em situação de

vulnerabilidade social. Aqueles que residem nos bairros da periferia da cidade, em especial.

São paliativos diante da exigência de um sistema de segurança pública amplo e voltado para

toda a população de uma metrópole como Fortaleza, que se constitua ao lado de uma política

pública direcionada à diversidade das necessidades gerais da população, em educação, saúde,

trabalho, cultura, lazer, bem como direcionada efetivamente para a prevenção e não repressão

de sujeitos estereotipados, como os jovens da periferia. Assim, não é a rua a vilã, mas a

ausência de políticas públicas na cidade, ou a pouca existência delas, principalmente nos

bairros periféricos, tendo que também sobreviver conforme o imaginário do medo. A meu ver,

uma política de segurança com prevenção assinala para o uso do espaço público também

como movimento de enfrentamento da violência. Ainda sobre a ideia de paliativo, sabe-se que

não é possível segurar por muito tempo os jovens sob a proteção da instituição, ou pelo tempo

que flui, é rápido para os jovens, ou pela própria dimensão contraditória da rua. Faz parte, é

inerente a vida coletiva. É fato que precisarão dela mais cedo ou mais tarde, tanto pela

necessidade material quanto pelo simbolismo da liberdade, entre outras motivações. De

qualquer forma, podendo ou não se apropriar da rua, os jovens, se utilizam desse espaço,

como nessa fala já apresentada no capítulo anterior, “Foi numa pracinha aqui. Fui rachar uma

vez e um cara chegou pra meter bala no outro” (Masculino, Futebol), buscam ultrapassar

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essas barreiras e ressignificar esses espaços, utilizando as praças e ruas principais para

marcarem presença no cenário social. Jogar futebol no Projeto é bom, mas também é bom

jogar com amigos nos campos do bairro, jogar conversa fora nas calçadas... E assim

caminham os jovens que se encontram em projetos sociais, uns nas instituições protetivas,

outros nas repressivas ou, mesmo, nas duas, mesmo que se depare com sua vida circunscrita

no script da contradição da rua e da casa.

4.3 JUVENTUDES E ATUAÇÃO POLICIAL: O CORPO INCIRCUNSCRITO E A

NEGAÇÃO DOS DIREITOS

“Sinto no meu corpo a dor que angustia, a lei ao meu

redor, a lei que eu não queria. [...] Estado Violência,

deixem-me querer, Estado Violência, deixem-me

pensar, Estado Violência, deixem-me sentir, Estado

violência, deixem-me em paz.”

(Charles Gavin, Estado Violência).38

Enfim chego à última seção desse estudo. Durante todo o período de inserção no

campo e no decorrer do processo de análise dos dados e escrita da dissertação me deparei com

muitas questões referentes às vivências dos jovens, que me causaram muitas emoções e até

revolta. Sem querer cair nas armadilhas dos discursos prontos sobre a relação juventude pobre

e violência, percebi que vivenciar a juventude em uma realidade de periferia é estar exposto a

uma complexidade de fatos que interferem diretamente na vida dos jovens.

Refletindo sobre as muitas vivências que os jovens do Espaço Viva Gente

experimentam, e que me relataram nos grupos focais, como o caso da contradição entre a casa

e a rua, minha atenção se voltou em especial para a questão da abordagem policial, fato

exaustivamente comentado pelos jovens ao se referirem à ideia da rua como espaço violento.

Quando se trata do tema violência os jovens ganham muita visibilidade, sobretudo em bairros

da periferia da cidade, onde há a suspeita cotidiana de que muitos deles sejam autores de

crimes. Nesse sentido, é comum nos diversos bairros o policiamento ser realizado com foco

na abordagem de pessoas que apresentam características consideradas socialmente como de

prováveis criminosos, mediante estereótipos relacionados ao modo de se vestir e usar o

cabelo, trejeitos etc. Isto é cotidianamente observado nas descrições de noticiários de crimes

que envolvem jovens, e também nas narrativas dos jovens do Viva Gente:

38

Trecho da música Estado Violência de composição de Charles Gavin. Gravada pelo grupo Titãs no álbum

“Cabeça Dinossauro ao vivo”, em 2012.

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Os policiais eles têm medo de invadir algumas favelas. Os policiais vão pra campo

naqueles carros do Ronda39

fingindo alguma coisa, porque não resolve nada, aí tem

aquela ruma40

de gente com aqueles cabelos, aquelas kenner, aquelas roupas, o

policial já fica suspeitando.

(Grupo Focal, Horto/Manhã)

Além das características citadas pelo jovem na fala acima, outro fator relevante

para a suspeita do policial é a cor da pele. Se algumas juventudes experimentam situações de

estigmatização, Guimarães (2011) explica que quando se trata das expressões juvenis negras e

moradoras da periferia ocorre mais rapidamente a criminalização de sua existência, a restrição

da liberdade e dos espaços de circulação, a dominação dos corpos, dentre outras questões que

fazem da violência o elemento mais presente. Nesse sentido, as expressões que representam a

cultura negra e popular desde muitas décadas são reprimidas por diferentes setores sociais,

elites, famílias e comunidades diversas, independente de classe, instituições socializadoras,

muitos cooptados pelo imaginário estigmatizador do preconceito racial, inclusive a partir da

contribuição da escola, com a proibição do boné, da calça larga, do vocabulário. No que se

refere aos aparatos de segurança do Estado, ocorre a vitimização “pela cor, pelo estilo da

roupa, pelo lugar de residência, por estar ou não pilotando uma moto.” (p. 313), como

apontado nessa fala: “O raio41

né, aqueles da moto [...] ele chega bem pertinho, bota logo a

arma no motoqueiro!” (Masculino, Horto/Manhã).

Na rotina das abordagens, um fato que me pareceu impressionante e que tomo

como objeto de compreensão desta seção de estudo, é a forma como o corpo é tratado:

D: Como é essa abordagem, qual o tipo de abordagem que eles fazem?

J: E quando eles pegam maldade assim com o cara, eles ficam logo com o cara, quer

dar lapada42

, aí manda ir pra parede e abrir a perna, aí quando eles não gosta do jeito

que nós estamos, dá chute na perna, aperta a mão, entorta a pessoa toda, fala bem

altão bem pertinho, faz nós passar vergonha no meio da rua...

(Grupo Focal, Horto/Manhã)

Como observado na fala acima, o corpo do jovem no momento da abordagem,

encontra-se totalmente vulnerável a ação do policial que, em um ato arbitrário no uso de sua

autoridade e desrespeito aos direitos, submete aos abordados a imposição da força,

ressaltando a sua característica de dominado, mesmo que aquele jovem não apresente provas

de envolvimento em crimes.

39

Referência aos carros Hylux do Ronda do Quarteirão. 40

Muita, bastante. 41

Batalhão de Ronda de Ações Intensivas e Ostensivas (RAIO) é o grupo de elite de motos da Polícia Militar do

Ceará. 42

Expressão utilizada para se referir a tapas e murros.

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Como é já sabido, a utilização da violência como instrumento de manutenção da

ordem remete ao período colonial e “esse forte resquício da sociedade escravocrata desnuda a

natureza ideológica da classe dominante brasileira” (p. 313). Nesse contexto, o controle dos

corpos se apresenta como uma eficiente forma de dominação de um grupo considerado

inferior, geralmente pela sua classificação social ou racial. Para esse controle, a violência

predomina como método eficaz de disciplinamento (GUIMARÃES, 2011).

Nesse sentido, elaboro minhas análises na discussão trazida por Teresa Caldeira

(2000), sobre o corpo incircunscrito. Esse conceito se relaciona com outro, elaborado pela

própria autora e por James Holston, democracia disjuntiva, e que, de igual modo, nos ajuda a

compreender a incircunscrição do corpo como elemento da cultura brasileira e, ainda, como se

relaciona com a negação dos direitos, fato que ocorre no Brasil, mesmo com a instituição da

democracia no país, a qual, via de regra, representaria o exercício efetivo de direitos.

Para Teresa Caldeira (2000) a forma naturalizada pela qual os brasileiros

conferem a submissão da dor a outrem com o objetivo de promover ações corretivas, coaduna

com outras percepções elaboradas sobre o corpo no imaginário social. Nessa compreensão, as

intervenções e manipulações efetuadas, seja no corpo de outras pessoas ou no próprio corpo,

que podem ser violentas ou não, são avaliadas em uma perspectiva natural e, em alguns casos,

são inclusive desejáveis na cultura estabelecida. No entanto, tais intervenções revelam o corpo

enquanto elemento incircunscrito:

Por um lado, o corpo incircunscrito não tem barreiras claras de separação ou

evitação; é um corpo permeável, aberto à intervenção, no qual as manipulações de

outros não são consideradas problemáticas. Por outro lado, o corpo incircunscrito é

desprotegido por direitos individuais e, na verdade, resulta historicamente da sua

ausência. No Brasil, onde o sistema judiciário é publicamente desacreditado, o corpo

(e a pessoa) em geral são desprotegidos por um conjunto de direitos que o

circunscreveriam, no sentido de estabelecer barreiras e limites à interferência ou

abuso de outros (CALDEIRA, 2000, p. 370).

Em muitas falas ouvi alguns jovens relacionarem a problemática da violência à

necessidade do aumento do contingente de policiais, ou mesmo à avaliação que realizavam

das leis, apontando-as como contribuintes para a multiplicação das ações criminosas, tendo

em vista a sensação de impunidade que ronda a sociedade, ressaltada diariamente pelos

programas policiais que sugerem, todos os dias, a necessidade de penalidades mais rígidas

para os criminosos.

No entanto, alguns jovens divergiam dessa opinião, principalmente quando

relatavam a relação conflituosa com a polícia, sobretudo nas abordagens policiais como

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explicado por esses jovens: “Tem policial que chega: bora logo, cadê as armas? Aí pergunta:

vocês que estão roubando aqui, é? Não cidadão, ninguém rouba não!” (Masculino,

Horto/Manhã); “O problema é covardia, eles acham que são as lei, querem humilhar quem é

de bem.” (Masculino, Horto/Manhã).

Caldeira (2000) salienta que no Brasil o corpo “é concebido como um locus de

punição, justiça e exemplo” (p. 370). Nesse sentido, muitas pessoas acreditam ser o lugar

conveniente para o exercício da autoridade exercida através da promoção da dor. De acordo

com a autora:

Nos corpos dos dominados – aqueles em posição de autoridade marcam seu poder

procurando, por meio da inflição da dor, purificar as almas de suas vítimas, corrigir

seu caráter, melhorar seu comportamento e produzir submissão. Para entender como

essas concepções e suas consequências podem ser aceitas como naturais na vida

cotidiana, não é suficiente simplesmente desvendar as associações de dor e verdade,

dor e desenvolvimento moral ou mesmo dor e um certo tipo de autoridade. Essas

concepções de punição e castigo estão associadas a outras noções que legitimaram

intervenções no corpo e a falta de respeito aos direitos humanos (CALDEIRA, 2000,

p. 370).

Nessa perspectiva, as práticas violentas realizadas nos corpos dos jovens são

realizadas naturalmente e algumas vezes até compreendidas na sociedade como ação com

vistas à correção e ao disciplinamento e, por isso, justificada:

J: Aí eles simplesmente pegam os meninos, né, os rapazes e... Se eles quiserem

pegar qualquer um... Se eles quiserem bater, eles batem. Se eles não quiserem...

D: E é comum esse tipo de comportamento?

J: Tem um que é bonzinho. Só dá uma mãozada43

.

D: Vocês normalmente são revistados? São parados pela polícia?

J: Isso a gente nem sente.

Nessa fala fica perceptível como as agressões realizadas pela polícia são

internalizadas. Ou seja, o corpo do jovem que se encontra incircunscrito tende a acostumar-se

com as ações repressivas que passam a ser percebidas como naturais, e dessa forma não são

mais sentidas, tendo em vista a rotina em que tais práticas acontecem.

Ser jovem do sexo masculino, sobretudo de um determinado tipo físico e morador

de áreas com histórico de violência como no caso dos jovens da pesquisa, favorece a

realização de ações punitivas no corpo, mesmo que o jovem não apresente envolvimento com

a criminalidade. Dessa forma, tais práticas não são consideradas problemáticas em nossa

sociedade, uma vez que o corpo dos jovens da periferia, na condição de incircunscrito, é

43

Expressão utilizada para se referir a uma tapa ou murro.

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privado de direitos individuais, pois o conjunto de direitos que funcionariam como barreiras

de circunscrição ao corpo no sentido de impermeabilizá-lo contra os abusos e interferências

realizadas sobre ele, não são efetivamente viabilizados.

Nessa perspectiva, os jovens que utilizam o Espaço Viva Gente embora se

reconheçam como diferenciados daqueles jovens que “optaram” pelas práticas da

criminalidade e teoricamente estejam circunscritos pelo Projeto, não têm a garantia de que

seus corpos estarão protegidos. E mesmo quando ocorre, o que fica perceptível é que se trata

de uma circunscrição momentânea, como demonstrado na fala dessa funcionária:

E as fotos nós pedimos pra identificação realmente e pra fazermos o crachá. Porque

é questão de segurança, mesmo, da comunidade. Segurança interna, né, dos jovens

entrarem com o crachá pra gente ver que faz parte do projeto. Inclusive, alguns antes

referiam que quando os policiais do ronda abordavam, que viam que estavam com o

crachazinho do projeto e a fardinha, eles não faziam nada porque sabiam que faziam

parte do Espaço Viva Gente. Tinham saído daqui ou tavam vindo pra cá e não tavam

fazendo coisa errada, né? Entendeu?

(Entrevista – Funcionário 01)

Nesse sentido, o corpo incircunscrito é o corpo desprotegido, como o dos jovens

da pesquisa, que mesmo não estando exercendo nenhuma prática delituosa tem o seu corpo

exposto a interferências externas, sobretudo da polícia, que diante da sociedade tem

legitimada a sua autoridade como mantenedora da ordem, sendo a manipulação dos corpos

observada como prática legítima de controle, especialmente quando diz respeito aos jovens de

áreas periféricas. Assim, se em seu percurso de deslocamento para o Projeto o jovem está com

a farda da instituição, isso indica que o corpo dele está circunscrito e, portanto, não cabe

intervenção porque “não tavam fazendo coisa errada”. Porém, em outras trajetórias que ele

precisa realizar sem a farda ou o crachá, este não apresenta mais nenhuma barreira que o

circunscreva e limite interferências abusivas sobre o seu corpo.

O Brasil, assim como outros países que apresentam histórias diferentes, mas,

sobretudo aqueles que têm em sua trajetória o peso de um passado colonial apresentando

como herança, ainda nos dias atuais, uma democracia disjuntiva, levam segundo a autora, a

pôr em discussão, a dissociação dos elementos que compõem a história com consequente

questionamento da sua sequência. Nesse sentido, ela afirma que: “eles nos forçam a ver a

possibilidade de cidadania política sem o controle da violência, de um estado de direito

coexistindo com abusos da polícia e de democracias eleitorais sem direitos civis ou sem um

sistema judiciário legitimado.” (CALDEIRA, 2000, p. 374).

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Para Caldeira (2000), o conceito de democracia disjuntiva, se refere aos processos

incongruentes que combinam a expansão dos direitos e a fragilidade com que são executados

na sociedade. Segundo a autora, a vigência da cidadania política no Brasil, não foi suficiente

para legitimar a cidadania civil aos cidadãos. Embora esse processo seja contraditório, ele é

claramente explicado, pois:

De um lado, houve uma expansão real da cidadania política, expressa nas eleições

livres e regulamentares, livre organização de partido, nova liderança política e

funcionamento regular do legislativo em todos os níveis, associados à liberdade de

expressão e fim da censura aos meios de comunicação. De outro, no entanto, há o

universo do crime e um dos mais intrigantes fatos da consolidação democrática

brasileira: o de que a violência, tanto civil quanto de aparatos do Estado, aumentou

consideravelmente desde o fim do regime militar (CALDEIRA, 2000, p. 55).

Esse aumento no crime e na violência está associado à falência da política de

segurança e do sistema judiciário, a privatização da justiça, aos abusos da polícia, a

fortificação das cidades e a destruição dos espaços públicos. Em outras palavras, no Brasil, a

democracia não trouxe consigo o respeito pelos direitos, pela justiça e pela vida humana, mas

sim, exatamente os seus opostos. Nesse contexto, o crime não só expressa e articula outros

processos negativos de mudança, mas também representa os limites e desafios do processo de

democratização brasileiro (CALDEIRA, 2000).

Dessa forma, o caráter disjuntivo da democracia no país, aparece no universo do

crime inicialmente, porque o crescimento da violência por si mesmo ocasiona a inviabilização

dos direitos dos cidadãos, e também, porque origina “um campo o qual as reações a violência

tornam-se não apenas violentas e desrespeitadoras dos direitos, mas ajudam a desestabilizar o

estado de direitos” CALDEIRA, 2000, p. 56): “Eu acho que falta muito é preparo pra eles

porque nem todo mundo é vagabundo pra eles chegarem dizendo: mão na cabeça, vagabundo!

Não é verdade!” (Masculino, Futebol).

Essa fala aponta para outra noção na aplicação dos direitos humanos. Existe um

diferencial tênue entre aqueles que podem, ou não, ter seus corpos expostos aos maus tratos.

O jovem que foi abordado com violência por apresentar um tipo físico ou vestimenta que

“justifica” a sua posição de dominado e, portanto, a realização de intervenções dolorosas no

seu corpo, reivindica a sua posição social: a de ser cidadão e não vagabundo.

Ao descreverem as situações vivenciadas, os jovens buscavam evidenciar

justamente o oposto do que os policiais utilizavam como forma de justificar a abordagem

ilegal, que é chamando de vagabundo, “É, chama logo de vagabundo!” (Masculino,

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Horto/Manhã), pois, parece que no corpo do “vagabundo” é justificado o uso da agressão e da

negação dos direitos.

Esse fato aponta para uma problemática bem mais ampla: se o policial, como

reflexo de uma formação precária, ainda pautada em ideais militarizados age com desrespeito

aos direitos individuais resultando em práticas abusivas, pelo menos parte da população

compartilha desse pensamento, desde que ele seja realizado no corpo do “vagabundo” que é

aquele que de fato comete delitos, e por isso, a punição realizada nos corpos se caracteriza

como ato coerente.

Exemplo disso são as muitas manifestações realizadas, sobretudo quando apoiadas

em exemplos dramáticos de violência que se destacam na mídia, levando a discussões sobre

linchamentos, justiceiros, grupos de extermínios e pena de morte, sendo por muitas vezes os

direitos humanos defendidos para indivíduos em conflito com a lei considerados como

“privilégios de bandidos”.

Os jovens dessa pesquisa se reconhecem com um perfil diferenciado daqueles

seus vizinhos que “escolheram” a criminalidade e por isso têm um futuro de incertezas, sendo

a morte prematura o caminho mais provável. Estar no Espaço Viva Gente significa ter seus

corpos circunscritos pelo Estado. No entanto, essa circunscrição é pontual e localizada, e na

maior parte de suas vidas eles se encontram incircunscritos, pois quando ocupam os espaços

da rua, do bairro e outros equipamentos sociais eles passam a ser percebidos pelo seu tipo

físico, pela classe social a qual pertencem, pelo bairro que moram e, portanto, o que

predomina não é mais a proteção de uma instituição que em determinados momentos se

apresenta como a “casa”, mas são os estigmas juvenis que os definem como potenciais

criminosos ou “vagabundos”, como normalmente são tratados nas abordagens policiais,

mesmo tendo optado por outras escolhas.

O Espaço Viva Gente como ponto de encontro entre as Políticas de Segurança

Pública e Prevenção à Violência, prevê em suas ações viabilizar aos jovens condições de

vivenciarem suas juventudes longe da criminalidade. No entanto, é uma ação pontual, e,

portanto, de pouca abrangência para se constituir esse ponto de encontro. Além disso, sua

existência tropeça em muitos empecilhos que fazem da sua execução uma experiência fadada

a não acontecer como política de segurança com base na prevenção, tendo em vista o contexto

de violência que os jovens vivenciam, a arbitrariedade policial, o clamor social por punição,

inclusive assimilado pelos jovens, a negação dos direitos e a incircunscrição dos corpos,

somados à fragilidade das políticas públicas.

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O que fica para a reflexão é que o Espaço Viva Gente, como problematizei

considerando ser o momento em que as políticas de Segurança Pública se encontram com as

Políticas de Prevenção à Violência, viabiliza para aqueles jovens inseridos em sua política

construírem perspectivas diferenciadas para as suas vidas. No entanto, isso é pouco para a

complexidade de situações que os jovens estão submetidos em seus contextos sociais

exigindo, portanto ações ampliadas no âmbito das políticas públicas que garantam a proteção

não apenas nos seus corpos, mas dos seus sonhos, das suas vidas.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Ando devagar porque já tive pressa, levo esse sorriso

porque já chorei demais. Hoje me sinto mais forte, mais

feliz quem sabe, só levo a certeza de que muito pouco

eu sei”. 44

(Almir Sater e Renato Teixeira)

Depois de um longo caminho percorrido chego a uma etapa que pressupõe muitas

coisas terem sido absorvidas no percurso: conhecimentos, experiências, alegrias, afetos.

Algumas dúvidas foram extintas, outras geradas, a maioria das certezas desconstruídas.

É certo que são muitos os estudos sobre violência e não é novidade afirmar que

esta se constitui uma problemática que exige atenção, sobretudo quando se aponta para os

casos que vitimam as juventudes nos diferentes locais desse país.

Cheguei ao Espaço Viva Gente na tentativa de compreender a forma pela qual

projetos como este atuam de maneira a evitar a chegada de jovens na criminalidade mediante

a estratégia preventiva. Em realidades marcadas por ações criminosas e tráfico de drogas,

espaços de oposição a estas experiências parecem fundamentais, visto a necessidade de

referências positivas para os jovens que buscam vivenciar suas juventudes de modo

diferenciado daquele apresentado nos diversos locais, sobretudo na mídia, que relaciona ao

fato de ser jovem o protagonismo de violências.

Confesso que iniciei a pesquisa com muita pressa de analisar questões que me

inquietavam. Mas como expressa a música que inicio essa seção, dos compositores Almir

Sater e Renato Teixeira, em determinados momentos, se faz necessário diminuir o passo, e no

caso da minha experiência enquanto pesquisadora se constituiu fundamental para coletar as

preciosidades do campo e as muitas tessituras que ele apresenta.

Como é sabido, à medida que adentramos no campo da pesquisa ele nos oferece

muitos dados que o reduzido período do mestrado impossibilita observar. Nesse sentido, o

desafio é captar as informações relevantes, sem, contudo perder de vista os objetivos

propostos na investigação.

Minha experiência nessa pesquisa foi permeada por muitas angústias, dúvidas,

mas também por muitas alegrias pela interação com os sujeitos. Na vivência com os jovens do

Espaço Viva Gente, pude captar as agruras e os dissabores que os cercam, porém ainda os

sonhos, as esperanças, a crença no futuro e em uma realidade melhor.

44

Trecho da música Tocando em Frente. Composição de Almir Sater e Renato Teixeira.

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Os jovens sujeitos dessa pesquisa se reconhecem em uma realidade complexa na

qual a violência se apresenta naturalizada nos constantes assassinatos que ceifam a vida de

muitos, especialmente jovens. Nesse sentido, a chegada aos dezoito anos de idade nas

realidades descritas parece representar não apenas uma etapa natural do ciclo da vida, mas

uma conquista a ser celebrada, tendo em vista o número de jovens mortos em idades

inferiores, por ocasião da criminalidade.

Diante da realidade de violência apresentada pelos dados e reconhecida como

peculiar das vivências dos jovens, no âmbito da Segurança Pública, os esforços têm sido

intensificados, sobretudo na cidade de Fortaleza. No entanto, isso não impede que a cidade

ocupe uma posição de destaque nos noticiários com relação ao aumento da criminalidade, o

que denota a fragilidade das ações repressivas se não forem praticadas em conjunto com ações

de antecipação aos agravos.

O Espaço Viva Gente, com o objetivo de oferecer aos jovens a inserção em

atividades artísticas, culturais e socioeducativas, colabora com as ações da Segurança Pública

à medida que oferece oportunidades diferenciadas daquelas que cercam o cotidiano dos

jovens que o frequentam. São elas, as oficinas, que possibilitam aos jovens a prática de

esporte como o Futebol, Capoeira, Caratê; o desenvolvimento de habilidades relacionadas à

musicalidade; os cursos, como Horto, Biscuit, Artes Decorativas, favorecendo o

empreendedorismo; a formação profissional, com a possibilidade da primeira experiência no

mercado de trabalho com o Programa Primeiro Passo, dentre outras.

A vivência em um território perigoso leva os jovens a reconhecerem a morte

prematura como uma ameaça à juventude, e as circunstâncias da criminalidade caracterizam a

rua, o bairro, a cidade. Ainda assim, os jovens enfatizam o direito de escolher viver, e o

Espaço Viva Gente contribui para a efetivação desse intuito, uma vez que nesse espaço eles

estão protegidos da violência, parecendo fazer encontrar a segurança no âmbito da prevenção.

No entanto, embora seja uma experiência que favoreça a prevenção dentro da

política de segurança do Estado, o Espaço Viva Gente é muito pouco, muito pontual para ser

esse ponto de encontro. E, portanto, não aquece a política de prevenção, nem eleva o discurso

sobre ela, pois, os jovens, mesmo contradizendo, também aderem ao imaginário da repressão

e punição, embora sejam também alvos desta repressão.

Dessa forma, percebo que o Estado está longe de ir além de práticas repressivas

para a manutenção da ordem, e da devida utilização de estratégias preventivas que podem ser

empregadas como reforço significativo para redução dos índices de violência. A vida no

bairro marcada pelas intempéries do risco da rua traz a relação conflituosa com a polícia. Em

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realidades estigmatizadas pela violência, a condição de juventude por vezes, desperta a

suspeita policial, culminando em atuações arbitrárias na ocasião das abordagens.

Seja pela influência negativa ou pela atuação policial violenta, o espaço da rua é

apontado como um ambiente de risco, do qual aqueles que objetivam “ser alguém” na vida

devem evitar. Se estar na rua é perigoso, os jovens apontam a necessidade de um lugar que

possa ser utilizado em contraposição à ela para reforçar suas experiências positivas.

Nessa perspectiva a rua é notoriamente o espaço de recrutamento do crime, não

apenas pelas afirmações naturalizadas, mas pelas situações vivenciadas pelos jovens em suas

realidades. Dessa forma, o seu usufruto representa um risco que eles preferem não correr,

mesmo afirmando que adentrar a criminalidade representa uma escolha pessoal.

Diante dessas circunstâncias a importância do Espaço Viva Gente é reforçada

pelos jovens. No entanto essa questão se relaciona com uma problemática bem mais ampla,

pois se a rua se constitui local de práticas não moralizadas e perigo como problematiza

Roberto DaMatta (1997), a luta pela sua utilização enquanto espaço no qual os jovens

poderiam vivenciar o lazer, a amizade, os laços de solidariedade e de vizinhança deveria

predominar, em vez do discurso de tirar o jovem da rua, por conferir o mal.

Embora questione a forma naturalizada com que a rua é notadamente o lugar a ser

evitado, compreendo ser coerente a preocupação, tendo em vista a forma na qual as ações

criminosas se manifestam. No entanto, essa observação requer uma análise crítica e, nesse

sentido, as políticas públicas têm ainda um longo caminho a percorrer no intuito de serem

pensadas formas de reduzir os índices de violência, promover a paz e possibilitar aos jovens a

apropriação de espaços públicos para vivenciar suas juventudes.

Em contextos de vulnerabilidade o corpo do jovem adquire um caráter

incircunscrito, conceito apresentado por Teresa Caldeira (2000), que evidencia a característica

que o corpo toma na sociedade brasileira como locus de punição, sobretudo nos casos

correntes de atuações arbitrárias nas abordagens policiais. Em democracias disjuntivas, como

a que vivemos no Brasil, os direitos foram conquistados e estabelecidos por lei, mas

enfrentam muitas fragilidades em sua execução, uma vez que a constituição da democracia

não foi decisiva para o respeito aos direitos, a justiça e a vida humana.

Nesse sentido, as juventudes, sobretudo do sexo masculino, de um determinado

tipo físico e de áreas com histórico de violência, mesmo quando não apresentam

envolvimento com a criminalidade, podem sofrer ações punitivas em seus corpos. Tais

práticas são problematizadas por Caldeira (2000), uma vez que, na sociedade brasileira, o

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corpo adquire a condição de incircunscrito ao ser privado de direitos que o impermeabilizaria

contra abusos e interferências realizadas sobre ele.

O Espaço Viva Gente, como problematizei considerando ser o momento em que a

Política de Segurança Pública se encontra com a Política de Prevenção à Violência, embora

viabilize aos jovens experiências no âmbito preventivo sua existência enfrenta muitos

desafios. Tendo em vista o seu caráter pontual carece ser ampliado como política de

segurança com base na prevenção, para quiçá, contribuir de forma efetiva na redução dos

índices de criminalidade.

Mais uma vez utilizando o trecho da música afirmo que “hoje me sinto mais forte,

mais feliz quem sabe”, pois à medida que pude acompanhar o cotidiano dos jovens

protagonistas dessa pesquisa em suas vivências no Espaço Viva Gente, assim como ouvi-los

compartilhar seus relatos de vida, fui levada a refletir sobre muitas questões e até ousei

concluir algumas análises.

Porém, ao mesmo tempo “só levo a certeza de que muito pouco sei”, pois,

retomando a fala de Roberto DaMatta (1997), que apresentei na introdução desse trabalho “é

que não sou engenheiro civil, mas estudante das coisas humanas” (p. 13). Logo o

conhecimento não se faz pronto e acabado, mas merece o olhar atento e contínuo do

pesquisador nas constantes interações sociais a que está submetido.

Assim, desta dissertação, ficam os múltiplos aprendizados que a experiência no

campo da pesquisa me proporcionou, mas ainda os intensos questionamentos que carregarei

para os trabalhos futuros.

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APÊNDICE

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APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

MESTRADO ACADÊMICO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu,______________________________________________________________,

RG___________________________, declaro, por meio deste termo, que concordei que

minha/meu filha (o)_____________________________________________________,

nascida em ___/___/________, participe da pesquisa referente ao projeto intitulado “Políticas

Públicas de Prevenção à Violência: uma investigação sob o olhar da juventude”, desenvolvida

pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual

do Ceará. Fui informado (a), ainda, de que a pesquisa será realizada pela pesquisadora Deinair

Ferreira de Oliveira e orientada pela professora Doutora Rosemary de Oliveira Almeida, a

quem poderei contatar a qualquer momento que julgar necessário, através do telefone número

(85) 88256730 ou pelo email [email protected] e pelo email

[email protected], respectivamente.

Aceitei que minha/meu filha (o) participe da pesquisa por minha própria vontade,

sem receber qualquer incentivo financeiro e com a finalidade exclusiva de colaborar para o

sucesso da pesquisa. Fui informado (a) do objetivo estritamente acadêmico do estudo, que, em

linhas gerais é investigar como sobrevivem as políticas de prevenção à violência a partir do

Espaço Viva Gente.

Fui também esclarecido (a) de que os usos das informações oferecidas por minha

filha (o) estão submetidos às normas éticas destinadas à pesquisa envolvendo seres humanos,

da Comissão Ética de Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará (CEP/UECE).

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Estou ciente de que a colaboração da minha/meu filha (o) se fará de forma

anônima, por meio de entrevistas e/ou grupos focais a serem gravadas a partir da assinatura

desta autorização. O acesso e a análise dos dados coletados se farão apenas pela pesquisadora

e pela orientadora.

Estou ciente também de que, caso tenha dúvida ou me sinta prejudicado (a), ou

que minha/meu filha (o) esteja sendo prejudicada (o), poderei contatar a pesquisadora

responsável ou sua orientadora ou ainda o Comitê de Ética em Pesquisa CEP/UECE.

A pesquisadora principal do estudo me ofertou uma cópia assinada deste Termo

de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme recomendações da Comissão de Ética em

Pesquisa.

Fui ainda informado (a) de que minha/meu filha (o) pode se retirar dessa pesquisa

a qualquer momento, sem nenhum prejuízo para mim ou para ela e sem sofrer quaisquer

sanções ou constrangimentos.

Fortaleza, _____/______/________.

___________________________________________________________________________

Assinatura do (a) responsável pela participante

___________________________________________________________________________

Assinatura da Pesquisadora

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ANEXOS

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ANEXO A – REPORTAGENS UTILIZADAS NOS GRUPOS FOCAIS

Mais de mil adolescentes já foram apreendidos no Ceará em 2014

Somente em janeiro e fevereiro de 2014, foram apreendidos 1.013 meninos com idade até 18

anos

O número de apreensões de crianças e adolescentes no Ceará neste ano já ultrapassou a

barreira de mil. Somente em janeiro e fevereiro de 2014, foram apreendidos 1.013 meninos

com idade até 18 anos. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social

(SSPDS).

Se comparado ao mesmo período do ano passado, o total de 2014 é superior em 195 casos.

Além disso, amédia de apreensões por mês em 2014 é de 506. Já em 2013, é de 438. O que

mostra maior atuação de crianças e adolescentes no mundo do crime ou ação policial mais

precisa.

Motivação

Além disso, ainda de acordo com os dados da secretaria, o principal tipo de infração cometida

por esses jovens é o crime violento contra o patrimônio (24,73%), como roubos. Em seguida,

aparece o tráfico lícito de drogas, que somado ao consumo de drogas, são os delitos cometidos

por 20,24% das apreensões.

“Não se pode responsabilizar somente as drogas por esse resultado [número de apreensões].

Há uma série de deficiências no que se refere às políticas voltadas para a juventude, isso sem

falar no contexto de vulnerabilidade social em que muitos jovens e adolescentes vivem”,

pondera Ricardo Moura, que é pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV).

Aliado a isso, as escolas não conseguem ser um espaço atrativo e acolhedor para esse público.

“Temos então uma série de condições que propiciam o ingresso desse jovem e adolescente em

redes criminosas que se alimentam do comércio ilegal de armas de fogo e drogas. E, o mais

preocupante, é que esse recrutamento para o mundo do crime ocorre cada vez mais cedo”.

Solução?

Em um período em que o estado e, principalmente, Fortaleza passam por uma forte onda de

violência, medidas devem ser adotadas para minimizar os números e reverter o quadro. “O

primeiro passo é encarar a nossa juventude como uma fonte potencial de riquezas e não

apenas como um problema social”.

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Já o segundo passo, seria reformular os centros educacionais para cumprir realmente o que

determina o Estatuto da Criança e do Adolescente. Superlotados e sem as condições

necessárias, essas unidades dificilmente conseguirão oferecer uma possibilidade real de

mudança de vida aos adolescentes internados.

Disponível em:

<http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/ceara/mais-de-mil-adolescentes-ja-foram-

apreendidos-no-ceara-em-2014/>.

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O porquê de tantos homicídios

No último dia 10, durante solenidade de premiação aos policiais que cumpriram metas de

redução de crimes, o governador Cid Gomes classificou a violência como “o maior incômodo

do Ceará”. Cid disse não conseguir entender por que o número de homicídios continua a

aumentar, apesar dos investimentos crescentes na área de segurança pública.

“O que seria, então, o causador, o responsável pela elevação dos índices de criminalidade no

nosso Estado? Essa é uma pergunta que me faço todo dia”, declarou o governador, na ocasião.

Em seguida, indicou ser o fenômeno do crack “a resposta mais verossímil”.

Não há dúvidas de que a disputa pelo controle do tráfico de drogas em alguns territórios de

Fortaleza tem causado várias mortes. Matéria do O POVO, publicada em fevereiro último,

mostrou que 16 bairros da Capital têm a rotina marcada pelo confronto de grupos rivais. Em

meio ao conflito, morrem líderes do tráfico, adolescentes que trabalham como “aviõezinhos”,

usuários em dívida com traficantes e moradores vítimas de bala perdida.

Mas não se pode generalizar e colocar a culpa da epidemia de homicídios somente no crack.

Se os traficantes estão controlando uma região, é porque os governos foram omissos. A

ausência do poder público (faltam boas escolas, hospitais, áreas de lazer, entre outros

serviços) deixa brechas para que os grupos rivais disputem o domínio do lugar.

Estabelecer metas de redução da criminalidade e premiar com dinheiro os policiais que

cumpri-las pode ser uma boa estratégia, mas precisa ser acompanhada de outras políticas. A

violência é um fenômeno complexo e multifatorial, que exige ações em diversas frentes.

A política de metas e premiações foi anunciada pelo Governo do Estado no dia 17 de

dezembro do ano passado. Quase quatro meses depois, houve o lançamento oficial do projeto,

batizado de Em Defesa da Vida. Na ocasião, foram divulgados valores das premiações e as

estatísticas criminais. No geral, houve redução no número de assaltos registrados pela Polícia

e aumento na quantidade de assassinatos (foram 1.281 mortes no primeiro trimestre do ano no

Ceará, uma média de 14 por dia).

A meu ver, o Governo perdeu uma oportunidade de ampliar o programa. Seria interessante se

tivesse sido anunciado também um pacote que contemplasse outras ações, como recuperação

de praças e áreas de lazer; melhorias na iluminação pública (Fortaleza está com vários pontos

escuros); programas de prevenção e combate ao tráfico de drogas; projetos para controle da

desordem urbana. Questões que contribuem muito para a disseminação da violência.

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Não se podem negar os investimentos que o governador fez em segurança pública, ao longo

de sua gestão. Houve aumento significativo no efetivo policial e foram criadas, por exemplo,

a Academia Estadual de Segurança Pública, a Perícia Forense do Ceará (que contam com uma

boa estrutura e equipamentos modernos) e uma Controladoria de Disciplina autônoma. Os

avanços são importantes, mas ainda esbarram em problemas como recursos humanos

insuficientes.

Em qualquer ação na segurança pública, é preciso planejamento e trabalho integrado. Um

exemplo positivo pode ser a ocupação de áreas da Capital pela PM, que teve início, na semana

passada, no Conjunto São Miguel (Messejana) e nos bairros Genibaú e Vicente Pinzón. O

projeto, que faz parte do programa do Governo Federal “Crack, é possível vencer”, pode

apresentar resultados positivos se vier acompanhado da oferta de melhores serviços públicos e

de um trabalho de inteligência, conforme prometido pelos gestores. Vamos acompanhar.

"Mortes

Não há dúvidas de que a disputa pelo controle do tráfico de drogas em alguns territórios de

Fortaleza tem causado várias mortes"

Disponível em:

<http://www.opovo.com.br/app/colunas/segurancapublica/2014/04/21/noticiassegurancapubli

ca,3239256/o-porque-de-tantos-homicidios.shtml>.

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Latrocínios: sete casos em 21 dias

"O que está acontecendo em Fortaleza é muito grave. A população não pode aceitar e o poder

público precisa agir".

Em um intervalo de 21 dias, entre 17 de março e 6 de abril, sete pessoas foram mortas

durante assaltos em Fortaleza. O caso mais recente foi no último sábado, quando uma mulher

de 26 anos, grávida de três meses, foi baleada por assaltantes em uma rua no bairro

Messejana.

Completam a lista de vítimas um delegado do Piauí de 33 anos; quatro estudantes

universitários, com idades entre 19 e 32 anos; e um vendedor de 51 anos. Esse último teve a

casa invadida por dois assaltantes, no bairro Parque Araxá, no último dia 21. Ao reagir, o

comerciante foi imobilizado pela dupla e enforcado com um fio. Um dos acusados foi preso,

confessou o crime e contou à Polícia que roubou R$ 5 para comprar uma pedra de crack.

O que está acontecendo em Fortaleza é muito grave. A população não pode aceitar e o poder

público precisa agir. Trabalho desde 2009 na cobertura de segurança pública e não me recordo

de terem ocorrido tantos casos de mortes durante assaltos como agora. O risco é esse tipo de

crime se banalizar.

Casos mais antigos como o da empresária Marcela Montenegro, baleada durante assalto em

2010, e o do padre Elvis Marcelino, morto por assaltantes em julho do ano passado, causaram

comoção e repercutiram na imprensa por meses. Nesses últimos dias, foram tantas ocorrências

perto uma da outra que algumas das vítimas viraram apenas mais um número nas estatísticas.

Segundo dados divulgados no site da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social

(SSPDS), foram registrados pelo menos 20 latrocínios (roubos seguidos de morte) no Ceará

nos três primeiros meses do ano. No mesmo período de 2013, foram oito. O aumento é de

150%.

Nos relatórios da Secretaria, os casos dos estudantes universitários e do delegado do Piauí que

reagiu a assalto na Washington Soares aparecem como homicídio doloso (quando há intenção

de matar) e não como latrocínio. Não sei se por uma questão técnica - os roubos acabaram não

se concretizando - ou se porque os dados ainda são preliminares, conforme aviso no site.

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O fato é que, somando esses casos, já são 26 pessoas mortas durante assaltos no Ceará este

ano (até o dia 6 de abril). Apenas uma das vítimas é mulher. Nove são jovens (entre 19 e 29

anos) e 21 foram assassinadas a bala. Fortaleza concentra a maioria das ocorrências, 17. Na

Capital, somente a Área Integrada de Segurança (AIS) 6, que abrange exclusivamente a faixa

litorânea de Fortaleza (da Barra do Ceará ao Caça e Pesca), não registrou casos.

Não sei responder por que estamos tendo tantos latrocínios. São os assaltantes que agem sob

efeito do crack? Os bandidos que não temem mais a Polícia e se confiam na impunidade? São

as vítimas que estão reagindo mais?

Estamos vivendo em um estado de barbárie. Não é normal alguém matar uma pessoa para

roubar R$ 5. Ou um estado registrar 1.238 assassinatos em três meses. Não defendo que se

implante um clima de terror ou que as pessoas deixem de usufruir da cidade. Mas, diante

dessa situação, também não é correto ficar omisso. Indignar-se e cobrar soluções é o mínimo

que se pode fazer.

É ruim você ter sua liberdade cerceada pela violência. Ter que evitar alguns lugares, andar

sem objetos de valor, dirigir com o vidro do carro fechado, observar o entorno antes de abrir o

portão da garagem... Mas, diante da situação atual, são cuidados necessários. Assim como é

importante não reagir a assalto. Por mais difícil que seja, o mais prudente é mesmo manter a

calma.

Disponível em:

<http://www.opovo.com.br/app/colunas/segurancapublica/2014/04/07/noticiassegurancapubli

ca,3232380/latrocinios-sete-casos-em-21-dias.shtml>.

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Passamos dos mil homicídios

Ainda nem terminamos o primeiro trimestre deste ano e o número de assassinatos no Ceará já

passou dos mil. Segundo dados preliminares da Secretaria da Segurança Pública e Defesa

Social (SSPDS), foram registrados, até o dia 19 de março, 1.061 Crimes Violentos Letais

Intencionais (CVLIs), que incluem homicídio, latrocínio e lesão corporal seguida de morte. A

média é de 13 ocorrências por dia ou de um assassinato a cada uma hora e 45 minutos.

A última semana foi trágica. Foram quatro casos de latrocínio (roubo seguido de morte) em

sete dias. Assaltantes mataram um delegado de 32 anos, na avenida Washington Soares; um

comerciante de 76 anos, em Caucaia; um estudante de Direito de 19 anos, no bairro Henrique

Jorge; e um estudante de

Engenharia de 22 anos, em Messejana.

Casos de latrocínio costumam ter maior repercussão. É mesmo terrível alguém matar uma

pessoa para roubar. Mas é também quando o crime de homicídio fica mais visível para as

classes média e alta. O delegado saía de uma lanchonete na Washington Soares e os

estudantes de Direito e de Engenharia dirigiam seu carro quando foram mortos. A vítima

poderia ter sido qualquer um de nós. A violência fica mais próxima e gera protestos como o

do grupo Fortaleza Apavorada, que tem pedido para a população colocar bandeiras e lençóis

brancos nas janelas dos apartamentos e das casas.

É importante a população protestar e pressionar o poder público. Mas a indignação tem que se

estender também para o que acontece na periferia. Todo dia tem gente sendo assassinada em

Fortaleza. E a maioria é jovem, com idade entre 15 e 29 anos, como mostrou levantamento

feito pelo repórter Bruno de Castro, publicado no O POVO da última segunda-feira.

Se continuar do jeito que está, é provável que 2014 supere os 4.462 assassinatos registrados

no Ceará no ano passado. Fevereiro deste ano teve 90 mortes a mais do que o de 2013. Em

janeiro, o acréscimo foi de 43 ocorrências. Números preocupantes para o Governo do Estado,

que anunciou, no fim do ano passado, uma nova política para a segurança pública, que inclui

metas de redução da criminalidade e premiações em dinheiro a policiais que ajudarem a

cumpri-las.

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Estamos chegando ao fim de março e os percentuais e valores envolvidos no novo modelo de

gestão ainda não foram divulgados. O Governo do Estado tem optado pelo silêncio e a

sociedade fica sem respostas. Não é fácil falar de um tema que tem gerado tantas críticas,

ainda mais em ano eleitoral. Mas silenciar pode ser pior.

A violência em Fortaleza ganhou destaque nacional com reportagem publicada ontem no

Fantástico, na Rede Globo. O assunto também mobilizou a Ordem dos Advogados do Brasil

no Ceará (OAB-CE), que cria hoje o Fórum Permanente de Debates e Propostas contra a

Violência. O poder público tem recebido ainda cobranças de setores do comércio. A pressão é

grande e o Governo precisa dar alguma resposta.

Disponível em:

<http://www.opovo.com.br/app/colunas/segurancapublica/2014/03/24/noticiassegurancapubli

ca,3224965/passamos-dos-mil-homicidios.shtml>.

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ANEXO B – ARTIGOS PRODUZIDOS NOS CURSOS OFERTADOS PELO ESPAÇO

VIVA GENTE

Produtos expostos à venda em Feira realizada na instituição

Fonte: Arquivo Pessoal

Fonte: Arquivo Pessoal