o direito civil constitucional e os contratos

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O Direito Civil Constitucional e os contratos Edgard de Campos e Silva I – Considerações iniciais A expressão Direito Civil Constitucional vem freqüentando o discurso jurídico ultimamente, colocando-se como um referencial que, em face das expressões utilizadas na construção do conceito, traz uma idéia de que um tradicional ramo do Direito Privado, o Direito Civil, passa a ter um novo sentido, vinculado ao Direito Constitucional, demandando ao intérprete da expressão encontrar que significado essa nova complexa denominação comporta. Uma primeira e simples aproximação pode ser feita ao pensarmos que as matérias historicamente reguladas no âmbito do Direito Civil passaram a integrar o plano constitucional, solução que seria impensável no tempo anterior ao advento da Constituição Federal de 1988, em que a norma constitucional não tratava das relações entre particulares, mas apenas daquelas relativas à estruturação do ente estatal, ou no caso das liberdades clássicas, na defesa do cidadão perante aquele.

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Este artigo traz significados para o Direito Civil-Constitucional, buscando tecer comentários sobre os principais conceitos implicdos, para projetar referências na área contratual. O novo paradigma é um fruto do contexto contemporâneo, vinculado ao que também se denomina Constitucionalização do Direito Privado.

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O Direito Civil Constitucional e os contratosEdgard de Campos e Silva

I Consideraes iniciais

A expresso Direito Civil Constitucional vem freqentando o discurso jurdico ultimamente, colocando-se como um referencial que, em face das expresses utilizadas na construo do conceito, traz uma idia de que um tradicional ramo do Direito Privado, o Direito Civil, passa a ter um novo sentido, vinculado ao Direito Constitucional, demandando ao intrprete da expresso encontrar que significado essa nova complexa denominao comporta.

Uma primeira e simples aproximao pode ser feita ao pensarmos que as matrias historicamente reguladas no mbito do Direito Civil passaram a integrar o plano constitucional, soluo que seria impensvel no tempo anterior ao advento da Constituio Federal de 1988, em que a norma constitucional no tratava das relaes entre particulares, mas apenas daquelas relativas estruturao do ente estatal, ou no caso das liberdades clssicas, na defesa do cidado perante aquele.

Alguns exemplos na Lei Maior, nessa tica, podemos citar:a) A norma que traz nsita a proteo nos contratos entre fornecedor e consumidor (artigo 5, XXXII), a qual foi concretizada no Cdigo de Defesa do Consumidor.b) As previses relativas propriedade e sua funo social (art. 5, XXII e XXIII )c) As normas que regulam hipteses especiais de usucapio (art. 191)d) O capitulo constitucional que trata da famlia (artigos 226 a 230)e) As diversas normas da Ordem Econmica (artigo 170 e ss.)

Dentro dessa perspectiva, vejamos o que afirma GUSTAVO TEPEDINO[footnoteRef:1]: [1: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 2 Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 7.]

Os textos constitucionais, paulatinamente, definem princpios relacionados a temas antes reservados exclusivamente ao Cdigo Civil e ao imprio da vontade: a funo social da propriedade, os limites da atividades econmica, a organizao da famlia matrias tpicas de direito privado, passam a integrar uma nova ordem pblica constitucional. E este novo momento, com a previso de normas e princpios aplicveis ao Direito Civil no mbito constitucional, objetivada a construo de uma nova sociedade, como na lio deLEONARDO MATTIETTO,[footnoteRef:2] in verbis: [2: MATTIETTO, Leonardo de Andrade. O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. pp. 163-164]

A renovao do direito civil brasileiro tem no chamado direito civil constitucional o seu mais firme ponto de apoio. O reconhecimento dos valores e princpios constitucionais no direito civil reflete no apenas uma tendncia metodolgica, mas a preocupao com a construo de uma ordem jurdica mais sensvel aos problemas e desafios da sociedade contempornea, entre os quais est o de dispor de um direito contratual que, alm de estampar operaes econmicas, seja primordialmente voltado promoo da dignidade da pessoa humana.

Dentro da abordagem acima exposta, genrica para o Direito Privado, h meno especifica quanto ao contrato. E na perspectiva posta, teramos que a autonomia privada, que exercitada no campo econmico atravs do contrato, estaria sujeita aos ditames constitucionais, com significativos desdobramentos.

Numa aproximao maior, desenvolvendo as idias acima expostas, no seria despropositado adotar a soluo de arrolar vrias normas constitucionais que apresentam contedo que permitem a regulao das relaes privadas, cuja interpretao viabiliza trazer solues para o relacionamento entre as pessoas, algumas delas no campo contratual.Dentre elas seria significativo indicar:

a) O artigo 1 , inciso III da CF de 1988, que prev como um dos fundamentos da Repblica Federativa do Brasil a dignidade a pessoa humana b) A norma do inciso III do art. 3 da CF/88, prevendo que um dos objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidria c) No mesmo artigo, v-se no inciso III que objetiva-se erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais d) Optando por ser uma normatividade que percebe e visa regular as diversidades existentes na sociedade, consagra o legislador constitucional em seu art. 5 , inciso XXXII que o Estado promover na forma da lei, a defesa do consumidor.e) Ainda no art. 5, temos em seu inciso XXIII que a propriedade atender a sua funo social. f) De forma mais diretamente direcionada ao campo econmico, h previstas diversas normas na denominada Constituio Econmica , onde encontramos no artigo 170 diversas previses reguladoras das relaes econmicas, com destaque para os termos do caput assim redigido A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existncia digna, conforme os ditames da justia social, observados os seguintes princpios: III funo social da propriedade (art. 170, III)IV livre concorrncia (art. 170, IV)V defesa do consumidor (art. 170, V)Vi defesa do meio ambiente (art. 170, VI)

Nota-se no conjunto de princpios e normas elencadas a deciso fundamental que evidencia um estado que intervm nas relaes sociais, com comandos normativos especficos para o campo econmico, como aponta DANIEL SICA DA CUNHA[footnoteRef:3]: [3: CUNHA, Daniel Sica da. A nova fora obrigatria dos contratos. In: MARQUES, Claudia Lima (Org.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 251]

Nesse contexto, o contrato o instrumental jurdico por meio do qual se concretiza, em grande medida, a ordem pblica econmica, cujo fundamento axinormativo encontra-se nas disposies do art. 170 da CF,...

Dentro desta perspectiva, diversas so as possibilidade de incidncia das normas constitucionais acima referidas no campo contratual, o que vem sendo experimentado na jurisprudncia ptria em inmeros julgados

Por fim, face o forte carter principiolgico da Constituio Federal de 1988, canaliza-se as colocaes anteriores para uma perspectiva centrada na incidncia dos princpios e valores constitucionais nas relaes privadas, proposta que vem sendo trabalhada por diversos autores.

Podemos ousar neste momento a conceber que mais do que um Direito Civil Constitucional, tratar-se-ia de pensar-se em um Direito Constitucional Civil, na medida em que o marco constitucional concebido pelo constituinte originrio projeta a construo de uma determinada sociedade, com certos valores que se querem atualizados no seio daquela, os quais devero ser implementados nas diversas relaes sociais, sobretudo pela incidncia dos princpios na normatividade infraconstitucional, inclusive no plano do Direito Civil.

Nessa ordem de idias, diz-nos DANIEL SICA DA CUNHA[footnoteRef:4] que: [4: CUNHA, Daniel Sica da. A nova fora obrigatria dos contratos. In: MARQUES, Claudia Lima (Org.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 249]

A Constituio de 1988 inaugurou uma nova ordem pblica , fundamento axionormativo de orientao e ordenao de todo o sistema jurdico, estabelecendo os valores de justia fundamentais do ordenamento centrado na dignidade da pessoa humana, e protetivo de direitos fundamentais, do meio-ambiente, da famlia e da ordem econmica.

Ou seja, a normatividade infraconstitucional no poder desrespeitar os direitos fundamentais, o meio-ambiente, os valores de proteo famlia, os consagrados para a regulao da ordem econmica entre outros.

Em sintonia com o pensamento acima exposto, registre-se o entendimento do insigne Procurador de Justia do Ministrio Pblico de Minas Gerais, NELSON ROSENVALD[footnoteRef:5], para quem Os princpios constitucionais consubstanciam as premissas bsicas de dada ordem jurdica, irradiando-se por todo o sistema. [5: ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-f no cdigo civil. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 188]

Ou seja, h diversos valores protegidos pela CF/88, que o so atravs de princpios, os quais tambm repercutiro em relao ao direito privado, como est nitidamente posto nas palavras de DANIEL SICA DA CUNHA:[footnoteRef:6] [6: CUNHA, Daniel Sica da. Op. Cit., pp. 249-250]

Sob tal perspectiva, estamos diante de um novo direito privado, cujos institutos foram funcionalizados em razo dos princpios solidaristas consagrados pela ordem constitucional, que estabelece como objetivo fundamental da Repblica a construo de uma sociedade livre, justa e solidria (art. 3, I) e como fundamento de todo o ordenamento jurdico a dignidade da pessoa humana (art. 1, III)

E sem prejuzo para outras abordagens, nos parece que as idias por ltimo expostas podem ser apontadas como a melhor soluo para o tema do presente artigo. E a concepo ora adotada parte da filosofia da supremacia hierrquica da norma constitucional, qual esto sujeitas todas as demais no plano infraconstitucional, dentre as quais as que regulam relaes privadas, e da proposta de realizao de uma determinada sociedade, com o prestigio de certos valores consagrados pelos princpios da Lei Maior.

E a melhor apropriao, para os fins ora objetivados, decorrente da hermenutica constitucional, pode ser sediada em ter-se em mente que a constituio tem, em meio ao complexo e extenso programa normativo constitudo a partir de 1988, um conjunto de princpios de forte e determinante contedo valorativo, apontando que optou por esposar um conjunto de valores que quer ver prestigiados na conformao da sociedade, que refletiro na rea privada, e em especial, no que nos interessa, no mbito contratual.

No prximo item, com a finalidade de apontar caminhos, trazemos alguns reflexos da posio tomada, apontando casos de princpios constitucionais que devem incidir no mbito contratual.

II - Possibilidades de incidncia dos princpios constitucionais no mbito dos contratos

Na perspectiva de incidncia dos princpios e valores constitucionais no plano dos contratos, sem prejuzo para as diversas possibilidades que o texto constitucional permite, cabe apontar algumas significativas hipteses, como a seguir expostas. A primeira delas funda-se no principio da dignidade da pessoa humana.

Assim, uma vez que a Lei Maior ocupa o papel central do ordenamento jurdico, a colocao em seu prtico, como principio fundamental, do principio da dignidade da pessoa humana, implica a sua aplicao em todas as normas infraconstitucionais, incidindo no campo contratual como um referencial de anlise das relaes sociais de carter patrimonial, as quais no podem desrespeitar os valores consagrados pelo constituinte, sobretudo quanto dignidade humana. Nesta linha, discorrendo a propsito da ascenso das normas de Direito Civil para o plano constitucional, com foco na dignidade humana, encontramos expressiva lio nas seguintes passagens da obra de NELSON ROSENVALD:

O personalismo enfatiza o valor absoluto da pessoa e seus laos de solidariedade com as outras pessoas, em oposio ao coletivismo (que tende a ver na pessoa nada mais que uma unidade numrica) e ao individualismo (que tende a enfraquecer os laos de solidariedade entre as pessoas). [footnoteRef:7] [7: ROSENVALD, Nelson. Op, cit., p. 26]

Vislumbramos a ascenso de situaes subjetivas existenciais em detrimento das meramente patrimoniais na gide de um Estado Democrtico de Direito. [footnoteRef:8] [8: Idem, p. XI]

E a projeo do principio da dignidade da pessoa humana no mbito privado, ainda na lio de ROSENVALD,[footnoteRef:9] representa uma renovao do direito civil, : [9: ROSENVALD, Nelson. Op. Cit., p. 178]

Consiste o chamado direito civil-constitucional justamente na reconstruo do direito privado mediante envio dos valores aos princpios constitucionais e, posteriormente, do ingresso desses princpios no Cdigo Civil atravs da janela das clusulas gerais. Esse dilogo permite que o principio cardeal da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da CF) possa ingressar no direito civil por vias diversas. (grifou-se)

Efetivamente, dentre os princpios com reflexo nos contratos, de se apontar primordialmente o principio da dignidade da pessoa humana (art.1 da CF/88), clusula geral que traz comando, cujo desenvolvimento pelos seus intrpretes vem conformando as suas diversas possibilidades. Dele se apropria, verbi gratia, TEREZA NEGREIROS, que na obra Teoria do contrato: novos paradigmas, aborda em inovador enfoque o principio constitucional da pessoa humana no campo contratual, defendendo que o regime jurdico dos contratos, naqueles em cujo objeto tenha repercusso para a dignidade da pessoa humana, seja observada normatividade que resulte no maior prestgio dessa ltima, como a seguir:

luz do denominado paradigma da essencialidade, prope-se que a utilidade existencial do bem contratado passe a ser um critrio juridicamente relevante no exame das questes contratuais. [footnoteRef:10] [10: NEGREIROS, Tereza. Teoria dos contratos: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 380]

No menos significativo para a abordagem proposta neste artigo, o previsto no art. 3 da CF/1988, que consagra valores que se quer promovidos na sociedade brasileira, cujo texto est assim estruturado:

Constituem objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil:I construir uma sociedade livre, justa e solidria.

Inmeras possibilidades interpretativas a norma acima transcrita abre para os intrpretes da constituio, o que na rea do Direito Contratual pode representar diversas e valiosas solues para a atualizao deste ramo civilstico, na perspectiva valorativa, como vem sendo experimentado na doutrina e na jurisprudncia ptrias.

Sem prejuzo para toda a construo hermenutica que vem sendo efetivada, podemos deixar por ora registrado que os valores que a norma quer sejam alcanados na sociedade brasileira comandam que nos contratos haja justia contratual e tambm conduta colaborativa, solidria com o interesse da outra parte.

De fato, na medida em que o constituinte quer uma sociedade justa, necessariamente as relaes entre os seus componentes devem guardar de forma adequada a justia, portanto, nos contratos, pode-se projetar a incidncia do valor equilbrio, o que permite ver na norma superior a base para o principio da justia contratual, devendo as normas infraconstitucionais, inclusive aquelas estabelecidas nos contratos pelo exerccio da autonomia privada, buscar preservar na melhor intensidade possvel a conservao da justia contratual.

Significativo ainda que nas relaes contratuais haja cooperao, para atingir-se os objetivos visados pela economia contratual, tendo cada parte conduta que atente para os interesses da outra, uma vez que a norma constitucional projetou uma sociedade que realize a solidariedade como valor a ser atualizado em seu seio.

A idia delineada no pargrafo anterior remete para o principio constitucional do solidarismo (art. 3, I da CF/1988), em que as pessoas devem preocupar-se com o interesse do prximo, mantendo relaes de cooperao, o que permite colocar em evidncia o principio da boa-f objetiva (art.422 do Cdigo Civil), que consagra deveres entre os contratantes no intento de proteger os respectivos interesses. Neste vis, veja-se a lio de ROSENVALD[footnoteRef:11]: [11: ROSENVALD, Nelson. Op. Cit., p. 179]

Essa imprescindvel relao de cooperao no apenas exprime uma postura tica de cuidado com o prximo, como se harmoniza com o dever jurdico de interao humana promovido pelo principio da solidariedade.

No ensinamento do autor, este principio pode ser compreendido de outra forma, consistente na superao do individualismo (sem desbordar para o coletivismo), na medida em que se comanda a solidariedade entre as pessoas, como instrumento para o pleno desenvolvimento da personalidade humana, consagrada como valor maior.

E o insigne jurista, quanto incidncia do principio em questo nas relaes sociais, aponta que ele submete o direito subjetivo (de forte matriz tradicional e individualista) s exigncias desse novo momento do Direito, nestes termos:

Em uma sociedade solidria, todo e qualquer direito subjetivo funcionalizado para o atendimento de objetivos maiores do ordenamento. O sistema apenas legtima a satisfao de interesses particulares medida que o ser exerccio seja preenchido por uma valorao socialmente til. [footnoteRef:12] [12: Idem, p. 174]

E ainda de ROSENVALD a idia de que o atendimento pauta de valores no plano das relaes contratuais concretizada da seguinte forma:

Transportando o principio da solidariedade para as relaes obrigacionais e, ainda, hauridos dos ensinamentos de Perlingieri, temos que o ordenamento apenas reconhecer a titularidade de um crdito enquanto este interesse atender s razes de natureza coletiva, garantidas mediante os limites internos das clusulas gerais, sobremaneira s de diligncia e boa-f, .... [footnoteRef:13] [13: ROSENVALD, Nelson. Op. Cit., p. 175]

A idia acima desenvolvida no sentido de no poder o contrato ser elemento para atendimento apenas do egostico interesse individual, pois a legtima busca deste ltimo tem que acontecer em harmonia com o bem comum, na perspectiva de equilbrio com a proteo ao interesses da outra parte e tambm aqueles que afetam a todos, tais como a proteo ao meio ambiente, construo de uma sociedade solidria, justa etc.

Diante de tais princpios, podemos entender com LUCIANA ANTONINI RIBEIRO que[footnoteRef:14]: [14: RIBEIRO, Luciana Antoni. A nova pluralidade de sujeitos e vnculos contratuais: contratos conexos e grupos contratuais. In: MARQUES, Claudia Lima (Org.). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 435]

O contrato no mais pode ser observado como fenmeno autnomo e independente, de interesse e impactos somente em relao s partes contratantes. Considerando-se haver uma solidariedade orgnica entre os membros da sociedade, compreende-se que a viso de contrato no pode ser individualista, devendo considerar-se os reflexos de cada contrato na sociedade, na vida econmica da comunidade.

Similarmente s situaes acima delineadas, outras expressivas hipteses podem ser exploradas pelos intrpretes a Lei Maior, na perspectiva de incidncia de princpios nas relaes privadas. Seja, verbi gratia, a que decorre da proteo maior dada ao consumidor, seja pelos desdobramentos contidos no conjunto de princpios presentes na Constituio Econmica. E o continuo processo de atualizao valorativa da norma constitucional, seja pela doutrina, seja pela jurisprudncia, revelar a cada instante as ricas e valiosas solues que a Lex legum permite.

Por ora, registre-se que j se vislumbram hipteses de a aplicao dos princpios constitucionais no campo privatstico, em especial quanto s relaes contratuais, o que pode ser observada em alguns casos elencados pela doutrina e pela jurisprudncia, dentre os quais relacionamos alguns expressivos exemplos no prximo item.

III Alguns exemplos de possvel reflexo da concepo exposta no mbito dos contratos

Um primeiro exemplo de aplicao da principiologia constitucional no campo contratual consiste, como j acima registrado, na previso do Cdigo Civil referente ao principio da boa-f objetiva (art. 422), que vem relativizar o principio da autonomia privada (primordial na concepo clssica).

Nessa perspectiva, caso em um contrato constasse uma clusula que se direcionasse contra a boa-f, ou mesmo contra a sua incidncia na relao contratual, no poderia prevalecer, por ir contra a principiologia constitucional.

De fato, a boa-f significa, dentre outras possibilidades, a ateno com o interesse da outra parte. Uma previso contratual contrria aos seus ditames, ou sua incidncia feriria o principio constitucional que comanda a construo de uma sociedade solidria (art. 3, inciso I da CF/88), no podendo ter validade, por desatender valor constitucional prestigiado na Lei Maior, como ensina ROSENVALD na obra j citada s pginas 176. Neste direcionamento registre-se o previsto no art. 2035 do novo Cdigo Civil, para consagrar como sendo de ordem pblica a funo social que o contrato deve atender, no podendo esta ltima ser afastada pela via da autonomia privada.

Na rea jurisprudencial, o STJ apresenta-nos expressivo julgado, quando o Ministro Relator Ruy Rosado concedeu habeas corpus denegando priso civil em contrato de alienao fiduciria por violao ao princpio da dignidade da pessoa humana, in verbis:

Principio constitucional da dignidade da pessoa humana. Direitos fundamentais de igualdade e liberdade. Clusula geral dos bons costumes e regra de interpretao da lei segundo seus fins sociais. Decreto de priso civil de devedora que deixou de pagar dvida bancria assumida com a compra de um taxi, que elevou, em menos de 24 meses, de R$18.700,00 para R$86.858,24, a exigir que o total da remunerao da devedora, pelo resto do tempo provvel da vida, seja consumidor com o pagamento dos juros. (STJ< HC 12.547, Rel. Min. Ruy Rosado, 1.6.2000, DJ, 12-2-2001)

Significativo trazermos como exemplo a incidncia de proteo aos mais fracos, em especial em relaes assimtricas, em que o poder social de uma parte perante a outra propicia uma situao de obter vantagens que firam ao principio da justia contratual, como nas relaes de consumo.

Nesta perspectiva, a previso do artigo do CDC, em seu inciso, que veda a clusula de decaimento, que pelo antigo sistema da autonomia da vontade e do pacta sunt servanda, uma vez que um promitente comprador de um apartamento deixasse de pagar as prestaes e incidisse a resoluo do contrato, perderia todas as prestaes pagas, em gritante locupletamento para uma das partes (geralmente uma empresa do ramo imobilirio), com grave leso para o outro contratante ( o promitente comprador, parte mais fraca).

Outro exemplo de incidncia da principiologia constitucional no mbito contratual seria a projeo corretiva principio de proteo ao meio ambiente, no caso de uma clusula contratual em que dois empresrios contratassem a explorao de uma rea rural, com fins agropecurios, em que, pelos termos daquela, fosse infringida a proteo ao bem difuso protegido, valor constitucional a que todos esto sujeitos, no podendo o contrato, que cria norma de eficcia entre os particulares, ir contra os ditames da Lei Maior, sobretudo com vistas s pautas de valores protegidos.

Ainda na perspectiva de incidncia dos valores constitucionais, pode ser apontada a hiptese de reviso de contrato em que se perceba de inicio, ou mesmo posteriormente, uma ofensa ao equilbrio contratual (equilbrio das prestaes), uma vez que a norma constitucional, em seu artigo 3, inciso I, elenca como um objetivo fundamental da Repblica a construo de uma sociedade justa, o que exige que nas relaes sociais haja justia entre os delas participantes. Nesta direo podem ser apontados os artigos 155 (Leso), 317 (Impreviso) e 478 (onerosidade excessiva).

Coaduna-se com a linha de raciocnio trazer colao o comando do art. 391 do Cdigo Civil, em que est previsto que o devedor responde pela obrigao com todos os seus bens. Esta norma no pode prevalecer com a extenso que a literalidade parece indicar, pois o patrimnio mnimo do devedor (mnimo existencial) h de ser preservado. De fato, deve-se entender como abrangido como impenhorvel aqueles bens que a interpretao do principio da dignidade da pessoa humana recomende no devam ser tocados, sem atingir a essncia mnima necessria para uma vida digna.

Nesta perspectiva, aponte-se o julgamento em que o Tribunal de Alada do Estado do Rio Grande do Sul assentou a impossibilidade de penhora de linha telefnica de pessoa portadora de AIDS em estado terminal, que em virtude de tal situao, acha-se impedida de trabalhar e necessita do bem em face de eventuais emergncias. (TACRS, 2 Cam. Cvel, AgIn 196039044, rel. Joo Pedro Pires Freire, j. 15.05.1996)

Ainda como projeo do principio da solidariedade, lembre-se a denominada tutela externa do crdito, que impe aos contratantes respeitar os interesses de terceiros, mesmo que no haja a eficcia real, desde que a situao seja previamente conhecida, como no caso de distribuidora que vem a contratar com um posto em prejuzo de outra distribuidora que j tenha interesse acertado como o referido posto.Concluso

Em face do advento do denominado Direito Civil Constitucional, passou o Direito Privado a ter novos referenciais que superam a viso centrada no patrimonialismo individualista, atravs da consagrao na Constituio Federal de valores que os princpios constitucionais querem ver realizados na sociedade, com foco primordial na valorizao da pessoa humana (personalismo) e de sua realizao em vnculos de solidariedade com as demais pessoas (solidarismo)

O objetivo de construo de sociedade mais justa e solidria vem ancorado em um conjunto de princpios consagradores de valores, os quais esto permeando a Lei Maior em vrias de seus captulos, em que se percebe diversas normas nitidamente direcionadas s relaes privadas.

Em suma, face extensa normatividade principiolgica da Constituio Federal de 1988, inmeros sero os desdobramentos, na rea contratual, da concretizao dos valores conformativos da sociedade que o poder constituinte projetou, o que a doutrina e a jurisprudncia vm desenvolvendo no exame e aplicao da Lei Maior, permitindo apontar que a opo adotada conformar um novo direito contratual, reconstrudo a partir da perspectiva humanstica, com respeito aos diversos valores que buscam atualizao na complexa sociedade hodierna.