licenciamento ambiental

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Paulo Procópio Burian DO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL À AVALIAÇÃO AMBIENTAL ESTRATÉGICA – AMBIVALÊNCIAS DO PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL DO SETOR ELÉTRICO Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Daniel Joseph Hogan Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida e aprovada em 22/02/2006, perante a Banca Examinadora. Banca Examinadora: Prof. Dr. Daniel Joseph Hogan Profa. Dra Leila da Costa Ferreira Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto Prof. Dr.Gilberto De Martino Jannuzzi Prof. Dr. Alfio Brandemburg Suplentes: Prof. Dr. Roberto Luiz do Carmo Prof. Dr. José Marcos Pinto da Cunha Profa. Dra. Lúcia da Costa Ferreira Campinas 2006 1

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Licenciamento Ambiental

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    Paulo Procpio Burian

    DO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL AVALIAO AMBIENTAL ESTRATGICA

    AMBIVALNCIAS DO PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL DO SETOR ELTRICO

    Tese de Doutorado em Cincias Sociais apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientao do Prof. Dr. Daniel Joseph Hogan

    Este exemplar corresponde verso final da Tese defendida e aprovada em 22/02/2006, perante a Banca Examinadora.

    Banca Examinadora: Prof. Dr. Daniel Joseph Hogan Profa. Dra Leila da Costa Ferreira Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto Prof. Dr.Gilberto De Martino Jannuzzi Prof. Dr. Alfio Brandemburg Suplentes: Prof. Dr. Roberto Luiz do Carmo Prof. Dr. Jos Marcos Pinto da Cunha Profa. Dra. Lcia da Costa Ferreira

    Campinas 2006

    1

  • FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

    Bibliotecrio: Helena Joana Flipsen CRB-8 / 5283

    Burian, Paulo Procpio. B916d Do estudo de impacto ambiental avaliao ambiental estratgica : ambivalncias do processo de licenciamento ambiental do setor eltrico / Paulo Procpio Burian. Campinas, SP : [s.n.], 2006. Orientador: Daniel Joseph Hogan. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. 1. Impacto ambiental. 2. Meio ambiente. 3. Energia eltrica - Conservao. I. Hogan, Daniel Joseph.

    II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

    Ttulo em ingls: From environmental impact assesment to strategic Environmental assessment. Palavras-chave em ingls (Keywords): Analysis of environmental impact, Environment, Electric power - Conservation. rea de concentrao: Titulao: Doutor em Cincias Sociais. Banca examinadora: Daniel Joseph Hogan, Leila da Costa Ferreira, Shiguenoli Miyamoto, Gilberto De Martino Jannuzzi, Alfio Brandemburg. Data da defesa: 22-02-2006.

  • Essa tese dedicada a minha querida av Oneide, meu

    maior exemplo de perseverana e dedicao.

    3

  • Agradecimentos

    Pronto. Nem acredito que cheguei na hora de fazer os agradecimentos. Confesso que

    nos ltimos meses tenho sonhado com esse momento, j que simboliza melhor do que

    qualquer outro o trmino desse trabalho.

    Tudo comeou em 2001 quando iniciei essa empreitada buscando aprimorar meu

    trabalho na rea de licenciamento ambiental de projetos de usinas hidreltricas. Nessa

    primeira etapa fui muito incentivado por diversas pessoas, dos quais posso destacar os

    amigos PQ e Andra, que passaram horas conversando sobre meu projeto inicial,

    quando as idias ainda estavam vagas na minha cabea, e Mateus e Tayne, que

    passaram anos escutando sobre a tese. Merece ainda meus agradecimentos os velhos

    amigos Yellow, Biro e Jorjo, contemporneos dessa fase que acompanharam de perto

    meus esforos inicial e final. De modo geral, todos os amigos foram fundamentais e

    seria injusto continuar citando, pois acabaria esquecendo de algum, mas preciso

    destacar a ajuda da Gabi, que alm dessa velha e boa amizade, me auxiliou muito na

    estruturao da tese com dicas preciosas e sugestes pertinentes em momentos

    cruciais.

    Dentro da Unicamp, sempre fui bem recebido e atendido pelos professores e

    funcionrios que cruzaram meu caminho. Dois professores, entretanto, merecem

    agradecimento especial: o meu orientador Daniel Hogan, por sempre acreditar que eu

    poderia finalizar o trabalho mesmo estando distante e envolvido plenamente em outras

    atividades, enriquecendo a tese com seus valiosos comentrios; e Leila da Costa

    Ferreira, cujas disciplinas e ensinamentos foram extremamente teis para subsidiar a

    parte terica.

    Com relao aos funcionrios da Ps-graduao, destaco Maria Rita e Gil, que sempre

    se prontificaram a prestar todos os esclarecimentos necessrios nessa caminhada.

    5

  • Agradeo ainda ao colega Benlson pelo apoio e comentrios pertinentes durante as

    disciplinas.

    Em Curitiba, devo agradecimentos aos professores Alfio Brandemburg, Dimas Floriani,

    cujas disciplinas foram importantes para o desenvolvimento terico do presente

    trabalho. Alm deles, agradeo ainda, de modo geral, aos funcionrios do curso de

    doutorado de Meio Ambiente e Desenvolvimento da UFPR, que disponibilizaram os

    computadores para que eu pudesse acessar os peridicos eletrnicos importantes para

    a concluso da tese.

    No teria sido possvel a elaborao dessa tese sem a sustentao financeira da

    SOMA, assim como a compreenso, apoio e amizade de todos os scios e

    colaboradores, que tornaram o ambiente agradvel para o exerccio dessa atividade. Ao

    Roni, vale um agradecimento especial pelas dicas acadmicas, Karin pela interrupo

    de suas frias para ajudar com o scanner e Taciana pela ajuda na elaborao de

    mapas para inserir nesse trabalho.

    Agradeo ao apoio incondicional de minhas irms Gabriela, Natlia e Mariana, assim

    como de suas respectivas famlias, incluindo meus sobrinhos to queridos, Marcela,

    Alice, Eduardo e Artur. minha me, que se mobilizou para ajudar em um dos

    momentos mais difceis para finalizar essa tese.

    Devo agradecimento ainda a meu pai, que sempre me incentivou nessa empreitada no

    s com palavras, mas, principalmente, com o prprio exemplo de vida. Devo tambm

    agradecer a sua esposa, Ana Cristina, to companheira dele, que tambm me ajudou.

    E para encerrar, no poderia deixar de agradecer Adriana, por todo amor e carinho ao

    longo dessa jornada.

    6

  • Segundo a perene e imutvel lei deste mundo, tudo criado, tudo

    desaparece, motivado por uma srie de causas e condies; tudo

    muda, nada permanece inaltervel. (A Doutrina de Buda)

    7

  • Resumo

    Nas ltimas dcadas, dois movimentos aparentemente antagnicos influenciaram

    diretamente a absoro da temtica socioambiental no nvel institucional. Se por um

    lado ocorreu o processo de globalizao com a integrao da economia mundial

    reduzindo a atuao do Estado nacional em setores estratgicos, por outro lado houve

    uma consolidao dos processos de licenciamento ambiental, conseqncia das

    presses exercidas tanto pelos movimentos sociais, quanto pelas agncias multilaterais

    de financiamento.

    Tomando como ponto de partida a confluncia desses dois aspectos distintos que se

    confrontam e dialogam, o presente estudo visa verificar at que ponto os processos de

    licenciamento tm desempenhado um papel importante para que as questes

    socioambientais sejam devidamente incorporadas no setor eltrico brasileiro. Embora

    esses processos tenham representado um passo importante em direo

    sustentabilidade, ainda precisam ser aprimorados de modo a incluir outros aspectos

    como a consulta pblica, que no se encontram plenamente equacionados.

    A partir da constatao, por meio de estudos de caso, de que os Estudos de Impacto

    Ambiental - EIAs - tm se mostrado insuficientes na medida em que so elaborados

    apenas na etapa de projeto, recentemente tem sido introduzida a Avaliao Ambiental

    Estratgica AAE, um novo instrumento que tem como objetivo inserir a varivel

    socioambiental na etapa de planejamento para influenciar no processo de tomada de

    deciso em seu estgio inicial. Embora reconhecidamente a introduo de AAE

    represente um avano, no pode ser considerada, de modo algum, como uma soluo

    definitiva para essa questo.

    Desse modo, sem ter a pretenso de dar respostas definitivas, este trabalho busca

    levantar diversos aspectos que permeiam a relao entre o setor eltrico e o meio

    ambiente, demonstrando como as incertezas da era ps-moderna tambm se refletem

    nos mecanismos de licenciamento ambiental. Trata-se, portanto, de um processo em

    permanente construo e fundamentalmente dependente do dilogo para seu

    aprimoramento.

    9

  • Abstract

    In the last decades, two movements apparently opposed have influenced the way of

    incorporation of environmental debates on the level of the institutions. On the one hand,

    there is the globalization process which conveys the integration of the capitalist world,

    weakening the power of the National State in strategic sectors. On the other hand, the

    license process has been consolidated, due to the pressure of social movements and

    multi-lateral agencies.

    Based on this particular context, the present study seeks to verify to which extent the

    license process has played an important role for the environmental debates to be

    incorporated in the Brazilian electric sector agenda. Yet the environmental license

    process is an important step in the direction of sustainability, it needs to be improved,

    even including issues like public consultation.

    Case studies about Environmental Impact Assessments - EIAs show that they are

    insufficient, for they are carried out only during the Project stage. Thats why the

    Strategic Environmental Assessment SEA has been recently developed. The objective

    of this new instrument is to incorporate the environmental issues in the Planning stage,

    then any important decision will be taken in the very beginning. Even though the

    introduction of SEA has been important, case studies prove that it cannot be considered

    a final solution to these problems.

    Yet this study does not bring definitive answers, it intends to identify several pertinent

    questions regarding the relationship between the electric sector and the environment,

    suggesting that the uncertainties of the post-modern age are also present in the

    environmental license instruments. Finally, this process is in permanent construction and

    it depends fundamentally on constant dialogue to be refined.

    10

  • SUMRIO INTRODUO 13

    PARTE I - BASES TERICAS E CONTEXTUALIZAO DA TEMTICA 27

    CAPTULO 1 - INCERTEZAS DA RELAO ENTRE MEIO AMBIENTE E SETOR ELTRICO NO BRASIL

    27

    1.1 Apresentao 27

    1.2 Da modernidade plena para a ps-modernidade: identificao das razes tericas do ambientalismo

    33

    1.2.1 Emergncia das questes ambientais nas cincias humanas 36

    1.2.2 Fases das sociologia ambiental 40

    1.3 Questo ambiental na ps-modernidade 53

    1.3.1 Sociedade de Risco e Modernizao Ecolgica 59

    1.4 Desafio no caso de pases em desenvolvimento 66

    CAPTULO 2 CONTEXTUALIZAO DA RELAO ENTRE AS QUESTES SOCIOAMBIENTAIS E O SETOR ELTRICO BRASILEIRO

    69

    PARTE II ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E AVALIAO AMBIENTAL ESTRATGICA ASPECTOS GERAIS E ESTUDOS DE CASO

    87

    CAPTULO 3 ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL INSTRUMENTO EFETIVO NA INCORPORAO DAS TEMTICAS AMBIENTAIS PELO SETOR ELTRICO?

    87

    3.1 A introduo de Estudo de Impacto Ambiental como instrumento de licenciamento ambiental no Brasil

    87

    3.2 Aspectos crticos de Estudos de Impacto Ambiental no Brasil 93

    3.2.1 Aspectos Legais 93

    3.2.2 Estudos de caso no Brasil 98

    11

  • 12

    3.2.3 Consideraes Finais a respeito dos Estudos de Impacto Ambiental avaliados

    134

    3.3 Cenrios e perspectivas globais da instituio de EIA 136

    CAPTULO 4 ANTECIPANDO QUESTES SOCIOAMBIENTAIS NO PROCESSO DECISRIO POR MEIO DA UTILIZAO DA AVALIAO AMBIENTAL ESTRATGICA

    153

    4.1 Emergncia da Avaliao Ambiental Estratgica no contexto nacional ocupando lacunas do Estudo de Impacto Ambiental

    153

    4.2 Estudos de caso: Taquari-Antas, Rio Grande do Sul e Chopim, Paran

    161

    4.2.1 Bacia do Taquari-Antas, Rio Grande do Sul 161

    4.2.2 Bacia do Chopim, Paran 176

    4.2.3 Aspectos pertinentes e comparativos entre as Avaliaes Ambientais Estratgicas avaliadas

    192

    4.3 Consideraes sobre a Avaliao Ambiental Estratgica como instrumento no processo de licenciamento ambiental

    194

    CONCLUSES 199

  • INTRODUO

    Em 1998, a BAESA - Energtica Barra Grande S.A., consrcio de empresas que detm

    a concesso da Usina Hidreltrica - UH - Barra Grande, protocolou no Instituto

    Brasileiro do Meio Ambiente IBAMA, os documentos necessrios para o processo de

    licenciamento ambiental da Usina Hidreltrica - UH - Barra Grande, ou seja, o Estudo

    de Impacto Ambiental EIA e o respectivo Relatrio de Impacto Ambiental RIMA

    referente a esse empreendimento localizado no rio Pelotas na divisa dos estados de

    Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que faz parte da bacia hidrogrfica do rio Uruguai.

    Com base nesses documentos, a Licena Prvia - LP - foi concedida pelo IBAMA em

    1999. Posteriormente, com a emisso da Licena de Instalao - LI, iniciou-se a

    construo da barragem da UH Barra Grande em julho de 2001.

    No incio de 2004, com a barragem praticamente concluda, foi necessrio realizar um

    inventrio florestal para a obteno da autorizao do desmate da rea a ser alagada

    pelo reservatrio. Com a realizao desse inventrio, constatou-se que o RIMA relativo

    a esse empreendimento omitiu a presena de mais de 2.000 hectares de florestas

    primrias de araucrias (Araucaria angustifolia) e outros 4.000 hectares de florestas em

    diferentes estados de regenerao (Prochnow, M. 2005).

    No RIMA, documento de maior acessibilidade ao pblico, omite-se a presena das

    matas com araucrias, referindo-se rea a ser diretamente afetada da seguinte forma:

    As matas marginais mostram-se pouco desenvolvidas, ou

    seja, constituem-se uma vegetao j impactada. Sua

    fisionomia repete, em sua maior parte, a observada nas

    encostas.

    Assim, a regio a ser diretamente impactada pelo

    13

  • empreendimento se caracteriza pelas reas cultivadas,

    silvicultura e matas remanescentes, essas ltimas

    impactadas por processos de extrao seletiva de madeira e

    distribuda em forma de fragmentos (ENGEVIX, 1998: 23).

    Percebe-se claramente, nesse processo, que houve uma omisso evidente, de

    aparente m f, em relao descrio da rea a ser afetada pelo reservatrio,

    agravada pela falha do IBAMA no processo de vistoria realizado na poca do

    licenciamento prvio. Com a construo autorizada tendo com bases documentos com

    graves falhas, criou-se um imbrglio de natureza jurdica e ambiental.

    Rendendo-se lgica do fato consumado com a barragem pronta, aps um longo

    perodo de brigas jurdicas, a justia federal autorizou a supresso da vegetao para a

    formao do reservatrio e o IBAMA, com base em um Termo de Ajustamento de

    Conduta, que entre outras condicionantes, estabeleceu a necessidade de elaborao

    de uma Avaliao Ambiental da bacia do rio Uruguai, emitiu a Licena de Operao

    LO em 4 de julho de 2005.

    Esse caso recente citado acima, referente ao processo de licenciamento ambiental da

    UH Barra Grande, foi inserido a ttulo de introduo pelo seu carter simblico, ao

    demonstrar que a instituio de processos de licenciamento de empreendimentos

    hidreltricos no Brasil em meados da dcada de 1980 no significou, de modo algum,

    que a questo socioambiental1 estivesse de maneira adequada plenamente incorporada

    pelo setor energtico brasileiro.

    1 Pela legislao pertinente, consideram-se os impactos sociais como parte dos impactos ambientais. Entretanto, h posicionamentos contrrios a essa formulao, pois isto significaria tirar da populao que

    14

  • Sem querer aprofundar o caso especfico da UH Barra Grande, no qual nitidamente

    evidenciaram-se graves falhas e omisses, o presente estudo visa verificar at que

    ponto os processos de licenciamento tm desempenhado um papel importante para que

    as questes socioambientais sejam devidamente incorporadas na rea de energia no

    Brasil, tomando como base o setor eltrico.

    Em que pese esse pssimo exemplo, o fato que somente por meio de processos de

    licenciamento introduzidos no contexto democrtico, que de modo algum se esgotam na

    elaborao de EIA e de RIMA, possvel identificar impactos e propor medidas e

    programas que podem vir a prevenir, minimizar e/ou compensar de modo satisfatrio os

    efeitos deletrios da implantao de empreendimentos hidreltricos que no eram

    adotados at meados de 1980.

    Entretanto, diante da constatao de que os instrumentos de licenciamento ambiental

    como EIA e RIMA so insuficientes para equacionar a questo socioambiental nos

    empreendimentos do setor eltrico, o presente estudo pretende analisar o modo como

    tem surgido a demanda por instrumentos que busquem antecipar a identificao dessas

    questes mais relevantes e ampliar a participao da sociedade civil no processo de

    licenciamento ambiental. Para atender essa reivindicao, no Brasil, assim como nos

    demais pases, tem sido gradualmente introduzidas a Avaliao Ambiental Estratgica -

    AAE.

    Tomando como base a introduo dos diversos mecanismos de licenciamento

    ambiental no setor de energia, sejam eles j consolidados (EIA, RIMA) ou no (AAE), a

    partir de estudos de casos no Brasil e comparados com exemplos em outros pases,

    so investigadas as nuances na complexa relao entre a emergncia e consolidao

    do ambientalismo, refletida no cumprimento, em maior ou menor grau de seriedade, de

    sofre o impacto o seu papel de agente, mantendo a mesma lgica do empreendedor de apropriao do

    territrio e controle de recursos (VAINER, 1993). No pretendo aprofundar esta discusso, optando por

    adotar o termo socioambiental.

    15

  • normas e exigncias ambientais, principalmente no tocante ao processo de

    licenciamento, diminuio do papel do Estado como agente de desenvolvimento e

    acelerao da globalizao, ocorrida principalmente a partir de meados da dcada de

    1980.

    De fato nas ltimas dcadas do sculo XX, esses dois movimentos aparentemente

    antagnicos influenciaram diretamente no processo de absoro da temtica ambiental

    pelo setor de energia. Como afirma Fuchs e Arentsen (2002: 525),

    em primeiro lugar, as polticas energticas tm sido

    associadas com a crescente preocupao na

    sustentabilidade. Em segundo, liberalizao, desregulao e

    privatizao tm trasformado a organizao visando o

    mercado de energia.2

    Nesse sentido, uma das principais questes abordadas refere-se verificao do modo

    como o processo de globalizao ocorrido a partir das ltimas dcadas do sculo XX

    estaria relacionado, no s retirada do Estado da esfera econmica e estratgica

    como o setor de energia (Sawyer apud Ferreira, 2003: 125), mas ao aparentemente

    contraditrio processo de estabelecimento de exigncias ambientais assim como a sua

    normatizao em nvel mundial. Ser que essa relao serve como um retrato fiel da

    chamada ps-modernidade3 com todas as suas contradies e complexidades

    presentes?

    Um dos objetivos especficos do presente estudo verificar se a obrigatoriedade de

    documentos como EIA ou AAE no processo de licenciamento, cujo escopo e

    2 Traduo do autor: first energy policy has been associated with a steadily growing focus on

    sustainability. Secondly, liberalization, deregulation and privatization have transformed the organization

    and outlook of the energy markets. 3 No captulo 1, esse conceito ser abordado de modo mais sistemtico.

    16

  • metodologia de cada um encontram semelhanas em diversos pases do mundo, pode

    servir como exemplo da aplicabilidade ou no da teoria da modernizao ecolgica ao

    contexto de pases em desenvolvimento como o Brasil, ou se, pelo contrrio,

    simbolizam atravs de exemplos como o citado anteriormente, a era da sociedade de

    risco.

    Visando dar conta dessa questo, a relao entre questes ambientais e setor de

    energia analisada com a precauo de no fazer nem uma anlise maniquesta nem

    tampouco de causa-efeito, evitando cair na armadilha da simplificao das questes em

    vigor que acabaria empobrecendo o debate, perdendo a chance de aprofundar

    questes realmente relevantes.

    Tendo como premissa essas questes, o presente trabalho divide-se em duas partes.

    Na primeira parte so apresentados os conceitos tericos abordados, assim como

    aspectos da questo ambiental dentro do setor eltrico no sentido de contextualiz-lo. A

    segunda parte dedicada a uma anlise dos instrumentos de licenciamento ambiental,

    incluindo por um lado os j consagrados EIAs e RIMAs e, por outro lado, as AAEs. Para

    encerrar, so feitas consideraes finais visando verificar at que ponto o processo de

    licenciamento ambiental serve como um retrato da ps-modernidade.

    A seguir, so apresentados o contedo e objetivo de cada parte e respectivos captulos.

    Parte I

    A Parte I dividida em dois captulos. O primeiro refere-se s incertezas e

    ambivalncias pertinentes teorizao da relao entre meio ambiente e setor eltrico,

    enquanto o segundo refere-se contextualizao dessa relao no cenrio nacional.

    Captulo 1

    Para dar conta da complexa relao entre desenvolvimento e meio ambiente, utilizado

    como marco referencial terico a ps-modernidade em seu sentido mais amplo, sem

    abrir mo de outros referenciais que tratam da relao entre desenvolvimento e meio

    17

  • ambiente, como a modernizao ecolgica utilizada por Buttel, Mol e Spargaaren e a

    sociedade de risco definida por Beck.

    A partir desses marcos tericos, verificado at que ponto o caso especfico da relao

    entre as questes socioambientais e o setor de energia em um pas em

    desenvolvimento como o Brasil pode ser compreendido dentro da tica da ps-

    modernidade, a partir de uma anlise sobre a natureza das potencialidades e das

    limitaes dos instrumentos de licenciamento ambiental.

    Nesse primeiro captulo alguns conceitos tericos utilizados no presente trabalho so

    enfatizados, visando situ-los no contexto nacional para identificar aspectos que podem

    servir como referencial ao longo do presente estudo, tendo como premissa o fato de

    que esse um pas onde ainda hoje a necessidade de desenvolvimento econmico

    constantemente colocada em contraposio ao ambientalismo.

    Estudo feito por Rinkevicius (2000) demonstra paradigmaticamente que essa

    contraposio entre crescimento econmico e conservao ambiental no se restringe

    ao Brasil. No caso da Litunia, analisado por Rinkevicius, trata-se de gerar energia

    barata por meio da fonte nuclear - j que aquele pas no dispe de recursos hdricos

    suficientes para gerao hidreltrica - em confronto com o risco que essa opo

    representa para toda sociedade europia. Aps realizar um inqurito investigativo com

    relao a tipos ideais de comportamentos relacionados capacidade de implantar

    medidas de melhorias ambientais, Rinkevicius conclui que as mudanas institucionais

    pelas quais a sociedade moderna tem passado podem ser explicadas dentro da lgica

    da teoria da modernizao ecolgica, inclusive em pases em desenvolvimento.

    Giddens, que reconhece que muitos aspectos da modernizao ecolgica fazem

    sentido, levanta relevantes questes sobre sua aplicabilidade em determinadas

    situaes, j que

    no realmente convincente supor que a proteo

    ambiental e desenvolvimento econmico se adaptem

    confortavelmente um est fadado a entrar por vezes em

    18

  • conflito com o outro (Giddens, 2001: 68).

    Essas observaes podem servir como pistas. Mas para verificar a viabilidade de se

    aplicar no Brasil uma teoria de essncia conciliatria, como a modernizao ecolgica,

    fundamental realizar um estudo mais aprofundado, no qual certamente devem aflorar

    questionamentos pertinentes.

    Desse modo, finalizando esse captulo, so identificados subsdios para responder s

    seguintes questes: ser que a modernizao ecolgica, teoria fundamentada a partir

    de estudos empricos em pases nitidamente avanados com relao percepo das

    temticas ambientais como a Alemanha e Holanda, tem validade no Brasil? Ou estamos

    mais enquadrados na sociedade de risco, em que na essncia questes ambientais

    estariam em contraposio com qualquer poltica desenvolvimentista, incluindo o setor

    eltrico que passou por profundas alteraes? Quais aspectos podem ser destacados

    em cada uma dessas vertentes tericas para o caso brasileiro?

    De qualquer modo, o pano de fundo para se analisar essa complexa relao no Brasil

    ser, de antemo, a tica da ps-modernidade, considerando que na fase atual as

    fronteiras anteriormente estabelecidas caram e a heterogeneidade, diversidade e

    outras caractersticas relacionadas chamada ps-modernidade se fazem presente.

    Nesse sentido, aspectos tcnicos, metodolgicos e demais instrumentos que

    predominaram durante sculos devem ser observados com reserva.

    Captulo 2

    Visando adotar o setor eltrico como parmetro para o estudo emprico, no segundo

    captulo, ainda na parte I, feito um breve histrico desse setor para contextualizar o

    caso aqui presente. Longe de elaborar um relato extremamente abrangente, so

    identificados os cenrios criados, as tendncias atuais e os atores principais que tm

    atuado ou ainda podem atuar no processo de incorporao ou no das temticas scio-

    ambientais por esse setor no Brasil. O objetivo especfico desse captulo o de

    19

  • identificar como se construiu o debate entre a viso mais desenvolvimentista que

    predominou durante muito tempo (quando as questes ambientais e sociais no tinham

    o menor espao) e a viso mais favorvel efetiva incorporao das questes

    socioambientais dentro do setor eltrico.

    No Brasil, o discurso que contrape desenvolvimento com o meio ambiente ainda tem

    encontrado respaldo nos ltimos anos, principalmente dentro do setor eltrico, quando

    em muitas ocasies a relativa demora de licenciar obras vista como um obstculo do

    meio ambiente ao desenvolvimento do pas (Santos, 2002).

    Para autores como Carlos Kawall L. Ferreira (apud Santos, 2002), cuja preocupao

    recai exclusivamente sobre o crescimento da gerao de energia hidreltrica no pas, o

    aumento das exigncias com relao a licenciamentos ambientais, entre os quais

    incluiria a obrigatoriedade de realizao de EIA e de RIMA, tem como resultado o

    aumento de custos, como os pagamentos aos proprietrios e municpios pelas terras

    inundadas, que oneram diversos projetos do setor energtico como as usinas

    hidreltricas. Obviamente, trata-se nesse caso de uma viso simplista demais da

    situao, mas reflete o pensamento de parte dos analistas brasileiros quando se

    debruam sobre a relao entre setor eltrico e meio ambiente. Ressalta-se que esse

    discurso apresentado no recente, pois se refere aos anos 1980, quando as primeiras

    demandas ambientais legais com relao ao licenciamento das grandes obras de infra-

    estrutura passaram a se fazer presente.

    Embora parte do setor eltrico atribua eventuais atrasos de implantao do parque

    gerador brasileiro ao processo de licenciamento ambiental, esse processo no pode ser

    analisado sem ser contextualizado com o perodo de polticas liberalizantes hegemnico

    no Brasil desde o final dos anos 1980. No bojo do que se costumou chamar de

    globalizao, o Estado nacional brasileiro reduziu-se drasticamente, retirando-se de

    setores considerados estratgicos, como o de energia, e promovendo uma profunda

    alterao na estrutura e no modo de funcionamento destas reas, com conseqncias

    para a rea de planejamento.

    20

  • Percebe-se que a globalizao econmica seguida pela implantao de polticas

    liberalizantes e pela reduo do papel do Estado nacional em setores estratgicos,

    ocorreu paralelamente ao processo de fortalecimento dos movimentos sociais, aumento

    das exigncias por parte das agncias multilaterais de financiamento e a conseqente

    consolidao de processos de licenciamento ambiental (cujo maior exemplo a

    instituio da obrigatoriedade dos EIAs e a instituio das Audincias Pblicas), que

    traduziram na emergncia da questo ambiental.

    O fato que, concomitantemente emergncia e implementao de licenciamentos

    ambientais, o setor eltrico passou por um processo de desregulamentao e

    privatizao quando os empreendimentos desse setor passaram, como qualquer outro

    da economia privada, a objetivar a gerao de lucro para os empreendedores.

    Essa confluncia de dois aspectos distintos que se confrontam e dialogam cria um

    cenrio paradoxal e levanta diversos questionamentos que demandam maior ateno.

    Parte II

    Na Parte II, est o cerne desse trabalho, pois onde se situam os captulos que

    aprofundam estudos de caso de dois diferentes documentos de licenciamento

    ambiental: os EIAs e os respectivos RIMAs em primeiro momento; e as AAEs mais

    recentemente.

    Captulo 3

    Desde a implantao da obrigatoriedade de EIAs pela Resoluo n 01 de 1986 do

    Conselho Nacional de Meio Ambiente CONAMA, perodo que o pas estava passando

    por um processo de redemocratizao, o chamado setor eltrico teve que minimamente

    absorver as temticas socioambientais que, at aquele momento, no eram sequer

    consideradas. Isso no quer dizer que essas temticas passaram a ter um peso

    21

  • realmente efetivo no processo de tomada de deciso, mas certamente representou um

    passo a frente nessa questo.

    Tomando como base o processo de licenciamento ambiental fundamentado nos EIAs e

    nos RIMAs, no terceiro captulo so verificados em que medida esse instrumento pode

    ou no representar avano no processo de incorporao das temticas socioambientais

    por parte do setor eltrico, a partir de um amplo levantamento de questes pertinentes a

    esses instrumentos existentes em diversas partes do mundo.

    Nesse sentido, so abordados casos especficos no estado do Paran para, ento,

    identificar as semelhanas e diferenas existentes entre a obrigatoriedade desses

    estudos no Brasil e em outros pases, cujos processos de licenciamento so muito

    semelhantes, seja nos desenvolvidos, seja nos pases em desenvolvimento.

    A opo por casos de aplicao de EIA em empreendimentos hidreltricos no estado do

    Paran decorre do fato de que o autor do presente estudo trabalhou durante anos na

    rea de gerao da empresa estatal de energia, a Companhia Paranaense de Energia

    COPEL, atuando diretamente com impactos socioambientais das usinas hidreltricas,

    desde a fase de estudo de inventrio de bacia hidrogrfica, quando se definem

    possveis locais de aproveitamento, at a implementao de programas sociais e

    ambientais recomendados pelos respectivos EIAs, com a gesto e implantao do

    Projeto Bsico Ambiental PBA.

    Essa experincia particular permitiu que fossem percebidos que, embora os EIAs

    possam ter contribudo em um primeiro momento para estreitar a relao dos projetos

    de desenvolvimento com as questes socioambientais, atualmente a utilizao desse

    instrumento por si s no serve como garantia de que o desenvolvimento do setor

    eltrico esteja ocorrendo em total harmonia com o meio ambiente e a populao local.

    Em muitos casos, tais como aquele citado na introduo, a elaborao do EIA tornou-se

    um processo burocrtico e no conseguiu obter resultados importantes seja em fases

    anteriores, de planejamento, seja em etapas posteriores, de implantao e operao,

    pois abordam apenas o perodo de projeto.

    22

  • Captulo 4

    Ciente das insuficincias que o EIA e o RIMA possuem para propor mudanas que

    remetessem ao nvel do planejamento, a presente anlise aborda ainda outro tipo de

    instrumento que no se encontra consagrado e, tampouco, regulamentado por leis ou

    decretos aqui no Brasil: a AAE, que em determinadas situaes recebe uma

    denominao mais especfica, como Avaliao Ambiental Integrada - AAI. Trata-se de

    um instrumento que tem como objetivo principal a antecipao de questes

    socioambientais mais relevantes para a etapa de planejamento, visando identificar

    regies como maiores ou menores restries para a insero futura de

    empreendimentos setoriais (tais como hidreltricos).

    O captulo 4 aborda, portanto, essa temtica para verificar at que ponto a AAE ou AAI

    pode ou no ser um instrumento no sentido de ampliar os canais de comunicao no

    difcil dilogo entre o setor eltrico e as questes socioambientais. Para exemplificar,

    so apresentadas algumas AAEs realizadas recentemente no Brasil como estudo de

    caso, assim como sua metodologia, sua aplicabilidade e demais aspectos relevantes,

    fazendo uma comparao com casos identificados em outros pases que j utilizam

    esse tipo de instrumento.

    Consideraes Finais

    Para encerrar so tecidas algumas importantes questes a guisa de consideraes

    finais visando, com base nos resultados apresentados, verificar at que ponto o caso

    brasileiro a partir de uma perspectiva emprica, pode ser compreendido a partir de

    conceitos ligados ps-modernidade, sem perder de vista o carter paradigmtico do

    debate que permeia esta questo, assim como as incertezas inerentes aos processos

    de avaliao ambiental.

    23

  • Finalizando esse estudo, so levantadas algumas questes que merecem maior

    ateno. Ser que mesmo introduzindo novos instrumentos metodolgicos como a

    AAE, haver um encurtamento das distncias entre a viso do setor eltrico e dos

    ambientalistas? possvel realizar de modo convincente essa ponte? Qual a base das

    contradies e ambivalncias existentes entre esses campos de atuao? Em que

    medida projetos de desenvolvimento podem ser adequadamente equacionados com o

    meio ambiente e a qualidade de vida?

    Sem ter a pretenso de dar respostas definitivas pretendo, a partir de estudos de caso e

    da experincia individual, iluminar diversos aspectos que permeiam todas essas

    questes demonstrando como a liquidez da sociedade ps-moderna (Bauman, 1999)

    tambm se reflete nas questes socioambientais e que, portanto, as principais

    respostas no podem ser encontradas facilmente a partir da adoo de determinada

    metodologia, pois passam necessariamente pela ampliao do debate e pela

    consolidao da sociedade democrtica.

    Mtodos

    Para realizar a presente empreitada, foi lanada mo basicamente dos seguintes

    procedimentos de pesquisa.

    Primeiramente, foram selecionados, a partir de diversos casos de licenciamento

    ambiental no estado do Paran, quatro exemplos de EIA e do respectivo RIMA para

    analis-los com maior profundidade, tendo em vista identificar principalmente aspectos

    relacionados sua metodologia e ao seu andamento do processo. O foco no foi

    verificar qualitativamente o contedo de cada um dos EIAs, mas sim observar dados

    gerais relacionados ao processo como um todo visando obter subsdios para uma

    posterior anlise comparativa.

    Alm de avaliar os EIAs e os RIMAs propriamente ditos, verifiquei junto ao rgo

    ambiental responsvel pela avaliao desses documentos, mais precisamente o

    24

  • Instituto Ambiental do Paran IAP, se cada um desses empreendimentos em questo

    foi ou no licenciado e qual a justificativa para determinada situao. Desse modo,

    focalizou-se o processo decorrente do licenciamento, e no o contedo em si desses

    documentos.

    Foram ainda realizadas viagens expeditas s regies dos empreendimentos para

    verificar se o contedo dos documentos pertinentes estava ou no abordando

    apropriadamente cada regio.

    Foi feito ainda um amplo levantamento de textos dos ltimos 10 anos que abordam

    estudos de licenciamento em diversos pases a partir de peridicos especializados,

    principalmente o Environmental Impact Assessment Review, onde foram encontrados

    estudos de caso em mais de 20 pases diferentes.

    Posteriormente, foram adotados os mesmos passos para anlise a respeito das AAEs,

    tendo como ponto de partida a seleo de dois casos a serem aprofundados. Nesse

    sentido, analisou o andamento dos processos da AAEs selecionadas, verificou-se seu

    contedo e foram feitas ainda viagens expeditas de reconhecimento a cada uma das

    bacias pertinentes.

    Tal como a anlise dos EIAs, para as AAEs tambm foi feito um profundo levantamento

    de textos pertinentes ao tema principalmente nos peridicos especializados e em

    organismos internacionais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de

    Desenvolvimento BID.

    25

  • PARTE I BASES TERICAS E CONTEXTUALIZAO DA TEMTICA

    CAPTULO 1 INCERTEZAS NA RELAO ENTRE MEIO AMBIENTE E SETOR

    ELTRICO NO BRASIL

    1.1 Apresentao

    O ambientalismo, tal como conhecido nos dias de hoje, surgiu e consolidou-se nas

    ltimas dcadas do sculo XX, quase paralelamente ao processo de globalizao. No

    Brasil em particular, esse movimento vem se fortalecendo desde meados da dcada de

    1980, na poca motivado principalmente pelo perodo de preparao para a Conferncia

    das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento - CNUMAD, realizada no

    Rio de Janeiro em 1992. Embora estivesse em pauta h quase 20 anos, decididamente foi

    a partir desse momento que a questo ambiental foi introduzida nos debates sobre

    poltica econmica, relaes internacionais e outros circuitos de difcil penetrao

    (Ferreira e Ferreira, 1992), deixando de ser uma questo marginal para assumir uma

    posio central no debate sobre modelo de desenvolvimento.

    O fato de que a emergncia e aparente consolidao das temticas ambientais ocorreram

    com maior intensidade somente a partir das ltimas dcadas do sculo XX suscita

    algumas questes relevantes que merecem destaque.

    A primeira questo refere-se busca das razes que levaram os problemas ambientais a

    permaneceram em uma aparente calmaria durante boa parte do sculo XX, s surgindo

    com fora no perodo mais recente, embora reconhecidamente o modelo de

    desenvolvimento intensivo e com maiores impactos sociais e ambientais teve suas razes

    ainda no final do sculo XIX (Floriani, 2004).

    primeira vista pode parecer contraditrio que uma preocupao ambiental com maior

    nfase no tenha se manifestado durante as dcadas de 1950 a 1970, quando a

    27

  • hegemonia dos racionalismos econmico e tecnolgico atingiu seu pice. Esse perodo

    ficou caracterizado como modernidade plena, quando os dois modelos de

    desenvolvimento, seja capitalista, seja socialista, tinham em comum a no preservao

    dos recursos naturais. Cabe enfatizar que, como bem reiteram Hawken, Lovins e Lovins

    (1999), esse processo iniciou-se bem antes, a partir de meados do sculo XVIII, com o

    advento da revoluo industrial, quando se destruiu mais a natureza do que em toda a

    histria anterior.

    Entretanto, mesmo diante desse cenrio alarmante, a questo ambiental permaneceu

    durante boa parte do sculo XX na marginalidade at mesmo dentro do universo

    acadmico, no merecendo ateno especial mesmo com evidncias de que o modelo de

    desenvolvimento hegemnico apresentava profundos impactos ambientais.

    A segunda questo a ser levantada refere-se busca pela identificao das razes da

    complexa relao entre o processo de acelerao da chamada globalizao e a

    consolidao do ambientalismo que tem ocorrido concomitantemente. Uma anlise

    simplista e reducionista poderia, de maneira equivocada, concluir que haveria uma relao

    causa-efeito entre esses dois movimentos, seja de motivao ativa ou reativa. Entretanto,

    essa relao tem se mostrado muito mais ambivalente.

    Essas duas questes aqui levantadas tm como objetivo no presente trabalho fornecer

    pistas para contextualizar o cenrio em que a incorporao ou no das questes

    socioambientais pelo setor de energia vem ocorrendo desde o final do sculo XX, perodo

    marcado por intensas e profundas alteraes institucionais e pela introduo de

    instrumentos de licenciamento ambiental.

    O Brasil, em particular, apresenta um cenrio propcio para analisar essas questes com

    maior rigor dentro do setor eltrico. Por um lado, trata-se de pas cuja maior preocupao

    nas esferas governamentais tem sido a implantao de um desenvolvimento que reflita

    em crescimento econmico constante como o caminho para reduzir o desemprego. Sem

    entrar no mrito da discusso sobre a pertinncia da poltica econmica que tem vigorado

    nos ltimos dez ou quinze anos, o fato que o processo de desenvolvimento nacional

    28

  • quase sempre se pautou na retrica de manuteno do crescimento econmico, aspecto

    que tem sido diretamente relacionado - em primeira instncia - necessidade de elevao

    da disponibilidade de energia eltrica. No Brasil, devido a sua matriz energtica, esse

    aumento da gerao de energia movido principalmente pelas usinas hidreltricas,

    responsveis, segundo dados da Agncia Nacional de Energia Eltrica (2005), por quase

    trs quartos da eletricidade gerada no pas.

    Qualquer fonte de gerao de energia em grande escala causa, necessariamente,

    impactos ambientais e sociais de diferentes magnitudes que, se no forem bem

    equacionados, podem causar prejuzos imensurveis no s para a atual, mas

    principalmente para as futuras geraes. No caso especfico das usinas hidreltricas

    construdas atravs de barragens, de acordo com a Comisso Mundial de Barragens

    CMB4, consenso que embora tenham prestado significativa contribuio ao

    desenvolvimento humano, muitas vezes o preo pago pelas populaes diretamente

    afetadas assim como pelos recursos naturais foi inaceitvel e isso s poder ser

    equacionado por meio de solues negociadas que eliminem projetos desfavorveis nos

    estgios iniciais (CMB, 2000).

    De fato, esse modelo de desenvolvimento baseado exclusivamente na racionalidade

    econmica, embora tenha sido levado s ltimas conseqncias em determinados pases

    com a poltica neo-liberal, teve suas razes em perodos histricos muito anteriores. No

    Brasil, em particular, a racionalidade tecno-econmica atingiu seu pice durante o regime

    militar das dcadas de 1960 e 1970, quando grandes projetos de desenvolvimento como

    Itaipu e Transamaznica foram levados a cabo sem maiores preocupaes com os

    impactos ambientais decorrentes dessas obras. Um marco desse perodo ocorreu na

    Conferncia das Naes Unidas sobre Ambiente Humano em 1972, quando o Brasil

    4 A Comisso Mundial de Barragens foi uma comisso independente constituda em 1998 por

    68 membros de instituies representativas de diversos personagens atuantes no setor eltrico

    que procurou analisar e discutir diversos estudos de caso para elaborar o documento

    Barragens e Desenvolvimento: um novo modelo para tomada de decises.

    29

  • liderou o bloco dos pases que se opunham a qualquer restrio ambiental que poderia

    obstruir ou retardar o processo de desenvolvimento pretendido. Representando a

    pensamento predominante das polticas nacionais, Costa Cavalcanti, ministro das Minas e

    Energia naquela poca, chegou a declarar que um pas que no alcanou o nvel

    satisfatrio mnimo para prover o essencial no est em condies de desviar recursos

    considerveis para proteo do meio ambiente (Marcovitch, 2000).

    Desconsiderando o fato de que o regime ditatorial impedia que houvesse maiores

    contestaes, o fato que mesmo em perodos mais democrticos antes do regime militar

    pouco ou nada se encontrava de questionamento ambiental em relao ao modelo de

    desenvolvimento adotado. O meio ambiente tornou-se efetivamente uma questo

    somente a partir de meados da dcada de 1980, quer seja dentro das cincias sociais,

    quer seja na sociedade de modo geral.

    Dessa forma, sem ter a pretenso de dar respostas definitivas a essas questes e

    contando com auxlio de autores como Buttel, Mol, Spaargaren, Giddens, e Beck, o

    presente captulo busca encontrar as motivaes ou resistncias que o ambientalismo

    enfrentou e as razes de s ter se manifestado com maior intensidade no final do sculo

    XX, visando identificar qual a linha terica que pode servir como parmetro para

    compreenso do modo de equacionamento da relao entre o setor eltrico e as questes

    socioambientais.

    Para cumprir essa tarefa, em um primeiro momento so abordados aspectos histricos do

    ambientalismo para, na seqncia, identificar abordagens tericas pertinentes ao perodo

    conhecido como ps-modernidade, passando desde conceitos mais crticos como

    ecologia humana e a sociedade de risco, at a modernizao ecolgica, que tem um

    carter eminentemente conciliatrio entre meio ambiente e desenvolvimento.

    Com base nos casos analisados, h indcios de que a emergncia e consolidao das

    temticas socioambientais ocorridas no final do sculo XX, que resultou no

    estabelecimento de processos de licenciamento ambientais baseados, a princpio, nos

    Estudos de Impacto Ambiental EIAs, esto diretamente ligados percepo de que os

    30

  • grandes paradigmas predominantes at ento tm se mostrado insuficientes para dar

    respostas satisfatrias aos impactos ambientais decorrentes de grandes projetos. Ou seja,

    pensamentos totalizantes, estruturalistas, deterministas e fundamentados na hegemonia

    das macroestruturas, todos constituintes da chamada modernidade plena, apresentavam

    cada vez mais sinais de fraqueza.

    A compreenso desse processo dentro das cincias sociais est ligada ao fato de que a

    antiga pretenso dessas cincias em dar previsibilidade s aes humanas estava

    equivocada, j que no davam conta das ambivalncias da sociedade. Segundo Bauman

    (1999), um dos autores que se debruou sobre esse tema, a tentativa de identificar,

    classificar e separar mostrar-se-ia uma tarefa das mais inglrias, na medida em que para

    cada classificao sempre haveria um elemento incerto, uma contingncia inerente,

    demonstrando que as bases sobre as quais a modernidade plena se baseou estavam

    inexoravelmente equivocadas.

    Nesse sentido, a fixao de metas cartesianamente estabelecidas est fadada ao

    fracasso, j que, por mais que a sociedade caminhe em direo a um horizonte pr-

    definido, o momento de atingi-lo jamais seria alcanado. Melhor dizendo, um projeto de

    desenvolvimento sempre traz consigo reflexos no imaginados, principalmente no tocante

    s questes socioambientais, que podem resultar em impactos de grande magnitude no

    previstos pela engenharia de antemo. Compreende-se que o horizonte, ou seja, o

    objetivo final, o pleno desenvolvimento no caso, permaneceria inalcanvel pelo simples

    fato de que o mesmo estaria permanentemente sujeito s incertezas que, por sua vez,

    sempre provocam profundas alteraes, modificando as metas pr-estabelecidas.

    Incertezas, desintegraes, rearranjos compem o cenrio ao qual chamamos

    genericamente de ps-modernidade.

    O cenrio ps-moderno tornou-se o terreno frtil para prosperar questes que estavam

    adormecidas como a ambiental. A ps-modernidade surge como vis terico fundamental

    a partir do momento que grandes desastres ambientais passaram a ocupar um espao

    cada vez maior na mdia nas ltimas dcadas do sculo XX, como, por exemplo, o caso

    emblemtico do processo de ocupao territorial de Cubato (Hogan, 1993), que trouxe

    31

  • tona toda fragilidade do processo de desenvolvimento baseado na modernidade plena. As

    relaes entre sociedade e natureza no podiam mais ser entendidas sobre a lgica da

    previsibilidade, do total controle dos recursos naturais e da submisso da natureza

    (Bauman,1999).

    O fato de que a tentativa de impor a racionalidade puramente econmica ou tecnicista nas

    relaes entre a sociedade e os recursos naturais acabou gerando sucessivos insucessos

    tambm se aplica ao setor eltrico. Um setor que no Brasil sempre se pautou pelo

    planejamento a longo prazo passou a se defrontar, a partir das ltimas dcadas do sculo

    XX, com incertezas geradas tanto pelas questes socioambientais, que anteriormente no

    estava sequer colocadas, quanto pelo novo cenrio institucional do setor, com a retirada

    do Estado nacional da ao em polticas estratgicas.

    De fato, ao analisar o histrico da relao entre o setor eltrico e o meio socioambiental,

    depara-se efetivamente com uma srie de ambivalncias e de contingncias que no

    poderiam ser compreendidas dentro de uma perspectiva da racionalidade e previsibilidade

    que pautaram a chamada modernidade plena. As respostas aos problemas enfrentados

    pela sociedade moderna no podem mais ser encontradas dentro de uma perspectiva

    tecnocrtica. A tentativa de resolver problemas cientificamente, por meio de mtodos e

    tcnicas previamente aprovados, acabou gerando novos problemas que at ento no

    eram sequer imaginados. Diante desse contexto, preciso recorrer a vertentes tericas

    mais flexveis, como aquelas advindas da ps-modernidade, para entender esse novo

    momento.

    A busca pelo equacionamento das questes entre o setor eltrico e o meio ambiente

    atravs dos processos de licenciamento ambiental no Brasil ou nos demais pases

    evidencia esse contexto. De acordo com Bauman (1999)

    A maioria dos problemas que hoje enfrentam os

    administradores das ordens locais produto da atividade

    para resoluo de problemas. (...). Os problemas so criados

    pela resoluo de problemas, novas reas de caos so

    32

  • geradas pela atividade ordenadora. O progresso consiste

    antes e, sobretudo, na obsolescncia das solues de ontem

    (Bauman, 1999: 22).

    Desse modo, por meio dos processos de licenciamento ambiental relacionados ao setor

    eltrico brasileiro, o presente captulo busca demonstrar que a procura incessante por

    respostas concretas s questes socioambientais, em particular na sua relao com um

    setor ligado a projetos de desenvolvimento, est fadada a ser inglria, pois nesse contexto

    no h respostas prontas e acabadas. A relao entre meio ambiente e setor eltrico,

    representada por meio dos diversos processos de licenciamento, um retrato fiel de toda

    a incerteza que fundamenta a ps-modernidade.

    1.2 Da modernidade plena para a ps-modernidade: identificao das razes tericas do ambientalismo

    No final do sculo XX, concomitantemente com a acelerao do processo de globalizao,

    tornou-se cada vez mais perceptvel a emergncia e posterior fortalecimento das questes

    ambientais no s no Brasil, como no mundo todo. Esse cenrio foi bem sintetizado por

    Ferreira (2003), ao afirmar que em menos de vinte anos a poltica de proteo ambiental

    transformou-se de uma no-questo em uma das mais significativas preocupaes de

    nosso tempo.

    O reconhecimento e incorporao das temticas ambientais em polticas, planos,

    programas e projetos refletiu diretamente na configurao das instituies

    governamentais. Entretanto, no nvel institucional no h uma viso homognea quanto a

    esse processo, pois enquanto as preocupaes ambientais reconhecidamente tm

    crescido com a presso cada vez maior dos movimentos sociais nessa questo,

    resultados concretos em termos de polticas pblicas so ainda discutveis. De qualquer

    modo, um dos objetivos do presente trabalho justamente aprofundar a anlise sobre o

    nvel institucional, tendo como estudo de caso o processo de insero das questes

    ambientais no setor eltrico brasileiro. Sobre essa temtica, os captulos 3 e 4 do nfase

    33

  • especial na medida em que feita uma anlise sobre a incorporao das temticas

    ambientais pelos chamados projetos de desenvolvimento atravs dos processos de

    licenciamento ambiental no mbito tanto de projetos com os Estudos de Impacto

    Ambiental - EIAs quanto, mais recentemente, de planos e programas com as Avaliaes

    Ambientais Estratgicas - AAEs.

    Embora a questo ambiental tenha efetivamente emergido com mais fora a ponto de

    causar mudanas institucionais (como a introduo de processos de licenciamento)

    apenas nas ltimas dcadas, levantamentos cuidadosos indicam que suas origens

    histricas podem ser encontradas em uma poca muito mais remota. Segundo Branwell,

    (apud Castells, 2002: 155), o desenvolvimento das chamadas idias verdes estaria

    relacionado ao perodo do final do sculo XIX atravs de uma espcie de revolta das

    cincias contra a prpria metodologia cientfica, indicando a ambigidade existente na

    relao entre cincia e tecnologia.

    No Brasil, particularmente, tambm h fortes indcios de que esse processo tambm tenha

    suas razes em um perodo histrico mais remoto, ainda na poca escravista, quando a

    preocupao ambiental j demandava alguma ateno durante o processo da formao

    da intelectualidade brasileira sob influncia de pensadores europeus do final do sculo

    XVIII (Pdua, 2002). Entretanto, naquele perodo, a crtica ambiental no tinha elementos

    altrustas de respeito vida ou at mesmo de contracultura, to bem apontados como

    uma das principais vertentes do movimento ambientalista predominante no final do sculo

    XX por Castells (2002). A preocupao era em relao ao uso racional do solo e

    preservao dos recursos naturais, cuja finalidade maior residiria na necessidade de

    mant-los como reserva para que a nao pudesse utilizar para seu desenvolvimento no

    futuro, tratando-se da construo da identidade da nao brasileira, cujo processo

    demandaria o uso mais racional dos seus recursos naturais. O modo como se colocava a

    crtica ambiental na poca escravista no tinha nada, ou quase nada, dos enfoques

    alternativos centrados na necessidade de preservar a natureza devido ao seu valor

    intrnseco, ou ento uma postura mais crtica quanto ao paradigma ocidental de progresso

    econmico. Elementos deste tipo de crtica estaro presentes aqui e ali, mas o vis

    34

  • desenvolvimentista ser amplamente dominante (Pdua, 2002: 18).

    Como a crtica ambiental daquele perodo no Brasil tinha um vis desenvolvimentista

    muito arraigado, retratando um debate poltico que no tem relao com a questo

    ambiental mais recente, optou-se por enfatizar o processo mais recente que se

    fundamenta justamente na crtica ao processo de desenvolvimento baseado no binmio

    capitalismo/industrializao e no uso intenso e predatrio dos recursos naturais (Castells,

    2002: 142-143).

    Portanto, a consolidao da crtica ambiental ao processo de desenvolvimento nesse

    perodo mais recente est vinculada prioritariamente ao desmoronamento e descrena em

    relao ao racionalismo economicista predominante at ento e identificado como espao

    de fluxos incontrolveis (Castells, 2002), que constitui a base da ps-modernidade. Foi

    preciso romper com as fronteiras at ento intransponveis entre as cincias naturais,

    exatas e humanas para que a questo ambiental pudesse emergir e abrir espaos para

    um saber fundamentalmente interdisciplinar, base de toda a crtica ambiental ao processo

    de desenvolvimento e que norteia os documentos pertinentes a processos de

    licenciamento estabelecidos no perodo mais recente.

    As ltimas dcadas tm sido efetivamente marcadas por essa profunda mudana

    paradigmtica ligada ao rompimento com uma viso cientificista e determinista que

    enfatizava as macro-estruturas em detrimento s relaes cotidianas e s conexes entre

    pequenos atores e dos mesmos com a natureza. Processo esse fundamental para

    estabelecer novos vnculos entre diferentes disciplinas que anteriormente no se

    comunicavam, dando as condies bsicas para que as questes ambientais

    prosperassem.

    Mas onde esto as origens dessa alterao ora em andamento? Para dar respostas a

    essa questo, procuro identificar as fases de desenvolvimento do ambientalismo nas

    ltimas dcadas do sculo XX, perodo em que efetivamente as questes ambientais

    passaram a desempenhar um papel relevante nas cincias humanas.

    35

  • 1.2.1 Emergncia das questes ambientais nas cincias humanas

    O desenvolvimento da crtica ambiental dentro da sociologia, portanto, est diretamente

    relacionado ao recente cenrio que deu as condies para a emergncia de

    ambivalncias e contradies.

    Diante dessa constatao, preciso resgatar o processo de embate entre a sociologia

    mais cientificista, desenvolvida desde o final do sculo XIX, com a sociologia mais

    heterodoxa, que surgiu nas ltimas dcadas do sculo XX. Embate esse que surgiu a

    partir do momento em que se percebeu que a sociologia tal como definida por Durkheim

    no criava espao para novas temticas como a ambiental.

    Paradoxalmente, os obstculos existentes dentro da sociologia para se aproximar da

    questo ambiental e aprofundar sua relao com o ser humano podem ser parcialmente

    atribudos tentativa de Durkheim de justamente demarcar o territrio da sociologia como

    uma cincia natural da sociedade que, apesar das diferenas entre conduta humana e

    ocorrncias da natureza, envolveria esquemas explicativos da mesma lgica que os

    estabelecidos nas cincias naturais (Giddens, 1981). Ou seja, a preocupao em justificar

    a sociologia como cincia no sculo XIX, tal como uma cincia natural, acabou

    contribuindo para que a fronteira entre ambas se tornasse mais rgida, a ponto de dificultar

    a aproximao entre elas posteriormente.

    A desconsiderao das cincias sociais pelas questes ambientais tambm decorre do

    fato de que a prpria noo de ambiente considerava essencialmente os aspectos fsicos

    e biolgicos, sem abordar as questes socioculturais e econmicas (Leff, 2000). Ou seja,

    no abordavam as questes ambientais no s por razes prprias, mas tambm devido

    inexistncia de trilhas disponveis entre ambos. Tambm pelo lado das cincias

    biolgicas no havia espao disponvel para a construo desse caminho.

    Durante a era industrial, as disciplinas foram se subdividindo, gerando vrias

    especialidades. Diante disso, a interdisciplinaridade, ou seja, a relao estabelecida

    intencionalmente entre diferentes disciplinas, permaneceu em total repouso durante boa

    parte do sculo XX (Coimbra, 2000).

    36

  • Alm da excessiva especializao disciplinar, a era industrial caracterizou-se tambm pela

    crena de que por meio de aes racionais e previsveis qualquer rudo, confuso,

    imprevisibilidade e risco poderiam ser minimizados e at mesmo eliminados. Tratava-se

    do culto racionalidade, alicerce da modernidade plena (Bauman, 1999). A crena cega

    nos avanos tecnolgicos e no desenvolvimento econmico ofuscou os impactos que

    esse modelo estava causando sobre os recursos naturais, dificultando as avaliaes

    sobre as relaes entre sociedade e meio ambiente. Esse modelo de desenvolvimento foi

    levado s ltimas conseqncias pelos regimes socialistas em vigor na segunda metade

    do sculo XX, com resultados desastrosos para a natureza.

    A questo ambiental era um assunto marginal, um rudo ao processo de desenvolvimento

    que se planejou. E dentro da lgica da modernidade, o rudo, o inesperado poderiam ser

    extirpados da sociedade. O limite ltimo da guerra contra o rudo um mundo de vida

    totalmente controlado e a completa heteronomia do indivduo um indivduo localizado

    sem ambigidade na ponta receptora do fluxo de informao e tendo suas opes

    seguramente encerradas numa moldura estritamente definida pela autoridade

    especializada Bauman (1999).

    Percebe-se que Bauman se refere a um indivduo localizado sem ambigidade, aspecto

    fundamental para manter a previsibilidade das aes sociais. Nesse sentido, a atividade

    pessoal, as relaes cotidianas e os estudos de comportamentos humanos e suas

    conexes com a natureza ficaram relegados, quando muito, ao plano secundrio.

    Inserida no contexto da modernidade, a consolidao da sociologia como uma cincia

    dependia da sua capacidade de agir cientificamente, estabelecendo barreiras fixas e

    intransponveis com relao s demais disciplinas. Mas esse caminho tornou-se uma via

    de mo dupla. Fortaleceu a sociologia no seu momento de afirmao, mas posteriormente

    esse cientificismo tornou-se um obstculo compreenso mais ampla sobre as mudanas

    efetivas com as quais a sociedade passou a se defrontar nas ltimas dcadas.

    Embora durante grande parte do sculo XX o pensamento das cincias sociais tenha sido

    marcado por esse vis estruturalista, pelo predomnio da estrutura social sobre o

    37

  • indivduo e do macro sobre o micro, um olhar mais atento percebe que mesmo nesse

    perodo existiam autores que tentavam romper essas barreiras interdisciplinaridade,

    como Norbert Elias. Em O Processo Civilizador, Elias (1993) antecipa-se, no final da

    dcada de 1930, a algumas crticas feitas posteriormente noo durkheimniana de que

    a sociedade representaria um objeto de reflexo terica, regida por fatos sociais que

    independeriam da vontade pessoal de cada indivduo.

    Procurando compreender o modo como se processam as mudanas comportamentais e

    como as sociedades vo tornando-se mais civilizadas com o passar das dcadas5, Elias

    lana mo de um extenso e profundo estudo das mudanas sociais ocorridas ao longo

    dos tempos, principalmente no perodo do feudalismo, para associar fenmenos

    aparentemente distintos, como o estabelecimento do monoplio do uso da fora e a

    centralizao dos impostos dentro de um mesmo territrio, com as mudanas

    comportamentais e a sua racionalizao, verificando que h uma interdependncia na

    relao entre indivduo e sociedade.

    Enquanto para Durkheim o constrangimento a que submetido um indivduo isolado

    quando age contra o padro vigente resultado da coero social a qual esse indivduo

    est inserido (mesmo que no seja claramente percebido), para Elias esse mesmo

    fenmeno adquire uma tica diferenciada. O processo de estabilizao da sociedade por

    meio do monoplio do uso da fora vem acompanhado de uma regulao que afeta toda a

    vida instintiva e emocional. O controle, que originalmente exercido atravs de outro (ou

    outros), transforma-se gradualmente em autocontrole, onde as atividades mais

    animalescas so progressivamente excludas do palco da vida comunal e investidas de

    um sentimento de vergonha (Elias, 1993: 202).

    Uma das premissas fundamentais que perpassa ao longo do trabalho de Elias para

    determinar o curso das mudanas histricas refere-se compreenso da sociedade e dos

    5 O termo civilizadas aparece entre aspas no texto original de Elias, ciente do juzo de valor

    contido com o qual esse autor no compartilha.

    38

  • indivduos como algo dinmico, dotado de mecanismos prprios de remodelagem e

    constante adaptao. Este tecido bsico, resultante de muitos planos e aes isolados,

    pode dar origem a mudanas e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou.

    Desta interdependncia de pessoas surge uma ordem sui generis, uma ordem mais

    irresistvel e mais forte do que a vontade e a razo das pessoas isoladas que a compem

    (Elias, 1993). Desse modo Elias antecipou em algumas dcadas os alicerces da crtica ao

    determinismo, semeando as condies para prosperarem questes heterodoxas, como a

    ambiental, que vieram a emergir definitivamente apenas no final do sculo.

    Portanto, Elias j antev algumas questes que dcadas depois tornaram-se

    fundamentais para romper com as barreiras anteriormente fixadas entre as disciplinas e

    abrir as portas da interdisciplinariedade. No final do sculo XX, houve o reconhecimento

    dentro das cincias sociais de que as relaes entre homens, sociedade e natureza so

    muito mais complexas e as preocupaes ambientais passaram a ser uma questo de

    reconhecida importncia e com conseqncias institucionais, perodo relacionado com a

    emergncia da chamada ps-modernidade.

    Embora recente, o trabalho desenvolvido pelos socilogos ambientais j constituiu um

    acervo respeitvel, estabelecendo as bases para que as preocupaes ambientais

    deixassem o status de no questo para migrarem para uma posio de destaque,

    estabelecendo um marco paradigmtico fundamental no perodo mais recente (Ferreira,

    2001).

    Esse olhar sobre si mesmo dos socilogos ambientais decorrente da busca pelos

    motivos da incorporao das temticas ambientais ter acontecido tardiamente na

    sociologia em comparao com demais cincias. Visando dar conta minimamente dessa

    questo, alguns autores se debruam sobre o histrico do pensamento sociolgico

    ambiental. Embora haja diferenas entre os histricos traados, pode-se perceber que, em

    linhas gerais, h uma concordncia no sentido de identificar basicamente trs diferentes

    fases, apresentadas a seguir.

    39

  • 1.2.2 Fases da Sociologia Ambiental

    Para Dunlap (1997), um dos primeiros autores a se debruar sobre o histrico do

    pensamento ambiental, ainda que sob o olhar particular no caso dos Estados Unidos, h

    trs perodos distintos do desenvolvimento da sociologia ambiental.

    O primeiro perodo seria o da emergncia da sociologia ambiental ainda nos anos 1970,

    influenciados diretamente pela publicao de Limites do Crescimento, de Meadows et al.,

    em 1972, e ainda pela crise do petrleo de 1973. A publicao de Limites do Crescimento

    trouxe para a ordem do dia a perspectiva neomalthusiana que identificava no crescimento

    populacional dos pases pobres um dos principais problemas globais. Com a crise do

    petrleo, emergiu o fato de que o modelo de desenvolvimento fortemente embasado

    nesse recurso no renovvel apresentava claros sinais de insustentabilidade. Sob o

    impacto da escassez de recursos, a sociologia ambiental comeava ento, ainda que

    timidamente, a se firmar como uma importante vertente sociolgica, procurando delinear

    um elo entre as cincias sociais e a ecologia.

    Neste perodo inicial, de acordo com Dunlap (1997), houve uma srie de barreiras a

    serem ultrapassadas dentro da sociologia. Assim como qualquer novo paradigma, o fato

    da sociologia ambiental no se fixar sobre os alicerces da tradio durkheimniana

    acabaria criando obstculos internos ao seu desenvolvimento inicial.

    Para Buttel (1997), uma das principais vertentes tericas resultantes desse perodo inicial

    a ecologia humana. Fortemente influenciada pelos movimentos sociais que eclodiram no

    final da dcada de 1960, essa escola, que dependendo do autor recebia outra

    denominao, valorizou o meio ambiente, condenando a forma de apropriao dos

    recursos naturais por parte da sociedade e contrapondo-se radicalmente sociedade de

    consumo e com posturas mais extremadas. A sociologia ambiental como uma sub-

    disciplina da sociologia foi essencialmente fundada como conseqncia imediata da

    mobilizao dos movimentos sociais modernos (Buttel, 1997).

    A influncia dos movimentos sociais no surgimento da sociologia ambiental tambm

    compartilhada na anlise sobre o mesmo tema feita por Dunlap (1997). Entretanto, o real

    40

  • peso desta influncia muito mais difcil de precisar para ambos.

    O foco principal do ambientalismo desse perodo recai sobre a degradao ambiental no

    seu sentido mais biolgico, sem maiores consideraes aos aspectos humanos

    envolvidos (Mol, 1997). Nesse perodo, ainda havia uma separao claramente definida

    entre o que pertencia ao domnio do ambiente e o que estava na esfera social. Nesse

    cenrio, a crtica emergente com relao ao modelo de desenvolvimento estava

    fundamentada na compreenso da natureza como algo externo ao sistema social, como

    se houvesse uma fronteira intransponvel nessas esferas (Mol, 2000).

    Apesar do reconhecimento do papel que a ecologia humana teve na afirmao da

    temtica ambiental, Spaargaren e Mol criticam essa escola de pensamento pelo fato de

    que a ecologia humana no considerava que os padres sociais e os eventos, tais como

    conhecidos, so necessariamente mediados socialmente. Para Spaargarem, Mol e Buttel

    (2000), todos tericos ligados modernizao ecolgica6, dentro da ecologia humana

    havia um biologismo exagerado que pregava o predomnio da racionalidade ambiental

    sobre a econmica, poltica ou cultural, ao invs de simplesmente buscar a sua

    equiparao. Apesar das discordncias entre as perspectivas, quase unnime a nfase

    na importncia dos movimentos sociais nesse primeiro perodo, assim como os mesmo

    continuam tendo ainda hoje.

    Spaargaren (2000) compartilha da separao histrica do ambientalismo em trs perodos

    distintos desde a dcada de 1970, enfatizando a importncia de alguns pensadores da

    poca para a emergncia dessa temtica. Para este autor, esse primeiro perodo foi

    fortemente influenciado por autores como Otto Ullrich (Alemanha), Ivan Illich (Frana),

    Fritz Schumacher (Reino Unido), Andr Gorz (Frana), Barry Commoner (EUA), Hans

    Achterhuis (Holanda) e outros tericos da contra-produtividade7, todos muito influentes

    6 Modernizao ecolgica uma vertente terica com forte vis conciliatrio entre

    desenvolvimento e meio ambiente que ser aprofundado posteriormente.

    7 A traduo do termo original counter-productive, utilizado por Spaargaren.

    41

  • entre os movimentos ambientais da poca. Embora muitos desses autores tenham suas

    razes no neo-marxismo, eles convergiam na crtica tanto ao marxismo quanto ao

    capitalismo-industrial que enxergavam o desenvolvimento das tecnologias como um

    processo neutro, sem considerar os impactos que as mesmas tinham tanto entre as

    pessoas, como no meio ambiente. Alm desses autores citados por Spaargaren (2000),

    outros tambm desempenharam importante papel nesse perodo, tais como Dupuy (1980)

    e Olphus (1977).

    Sem querer realizar no presente estudo uma ampla e profunda avaliao sobre a

    contribuio de cada autor no pensamento ambiental, de modo geral, todos chamavam a

    ateno para o fato de que o processo de produo tinha que considerar os seus

    impactos sobre o meio ambiente dentro dos custos reais de produo, ou seja,

    enfatizavam a necessidade de internalizao dos custos ambientais nos processos

    produtivos. Para eles, as mesmas foras produtivas que tinham garantido uma fase de

    prosperidade material e bem estar numa etapa inicial, em determinado momento do

    processo de desenvolvimento chegaram ao ponto-crtico para a sociedade.

    Quando esse ponto crtico ultrapassado, os ganhos do

    crescimento sustentado na dimenso material so

    utrapassados pelos custos na dimenso socioambiental, e

    nesse caso dito que a tecnologia ou a indstria `contra-

    produtiva`8 (Spaargaren, 2000: 43).

    Encontra-se, portanto, nesses autores, a origem da preocupao referente necessidade

    de valorar a questo ambiental no processo produtivo, um dos principais elementos

    norteadores da institucionalizao de instrumentos como estudos de avaliao ambiental

    e outros referentes ao pro de licenciamento. Debates recentes sobre percentuais de

    8 Traduo do autor: When this critical point is passed over, the rewards of sustained growth in the material dimension are outweighed by costs in socio environmental dimension, in which case the

    technology or industry is said to be counter-productive

    42

  • valores a serem aplicados como medidas compensatrias de empreendimento

    demonstram como, ainda hoje, a questo de valorao fundamental na abordagem

    entre projetos de desenvolvimento e meio ambiente. Entretanto, a forma como diferentes

    autores abordam a necessidade de internalizar a questo ambiental difere de modo

    estratgico. Enquanto economistas ambientais como Hueting (Holanda) procuram

    melhorar o sistema de produo e consumo com a incluso de aspectos ambientais,

    internalizando seus custos, a maioria dos tericos da contra-produtividade acredita que

    seria necessrio romper completamente com o modo de produo industrial, pois a raiz do

    problema estaria na sua essncia. Assim como uma das principais crticas que surgiram

    nesse perodo foi a no-internalizao dos custos ambientais nos processos produtivos,

    pode-se encontrar claros sinais de que a forma como diferentes vertentes iriam abordar

    essa questo seria um divisor de guas entre aqueles que defendem a melhoria ambiental

    pela incorporao dessas temticas pelas instituies vigentes e aqueles que defendem

    uma total reestruturao da sociedade para, ento, resolverem problemas relacionados ao

    meio ambiente no seu mago, debate esse que perdura at hoje. Durante as discusses a

    respeito dos documentos utilizados nos processos de licenciamento, o mago dessa

    discusso permanece, como visto nos captulos subseqentes.

    O processo de institucionalizao da questo ambiental que vem ocorrendo desde ento,

    ilustrados pelos processos de licenciamentos ambientais dos chamados projetos de

    desenvolvimento, seguem a lgica da internalizao dos custos sem questionar o modo

    de produo na sua essncia. O debate internalizao x reestruturao representa

    efetivamente um divisor de guas na relao entre a questo ambiental e o

    desenvolvimento e constitui-se em um dos alicerces dos debates existentes sobre a

    natureza dos instrumentos de licenciamento ambiental.

    Embora os tericos da contra-produtividade tenham desempenhado um papel

    fundamental nesse perodo, influenciando tanto o Programa do Partido Verde Alemo

    quanto os principais movimentos ambientais que eclodiram nesse perodo (Spaargaren,

    2000: 44), o fato que o processo de incorporao das temticas ambientais no processo

    de desenvolvimento de grandes projetos vem seguindo nitidamente o processo de

    43

  • internalizao - bem ou mal - das questes ambientais por meio da definio de

    programas e medidas mitigadoras e compensatrias cujos valores so, muitas vezes,

    diretamente proporcionais ao valor de empreendimento em questo.

    Percebe-se que a predominncia da necessidade de internalizao dos custos ambientais

    paradoxal, pois o fato dos tericos da contra-produtividade terem conexo direta com

    os movimentos sociais acabou, ainda que indiretamente, contribuindo decisivamente para

    que ocorressem alteraes institucionais fundamentais, como a incorporao posterior

    dessas temticas em polticas, planos, programas e projetos de organismos oficiais.

    Mais do que simplesmente reconhecer a validade das questes ambientais como um

    paradigma fundamental, tornou-se imperativo, naquela poca, romper com o pensamento

    sociolgico mais determinista predominante at ento.

    Embora esse movimento de aproximao entre ambiente e sociedade tenha ocorrido

    principalmente no incio dos anos 1990, suas bases foram estabelecidas pelo menos dez

    anos antes, quando as barreiras fixadas anteriormente entre as cincias naturais e sociais

    foram derrubadas e os limites tornaram-se tnues (Giddens, 1996).

    Esse ambiente de contestao dos paradigmas predominantes dessa fase foi fundamental

    para que as questes ambientais, anteriormente marginalizadas, encontrassem terreno

    frtil para se desenvolver e se fixar definitivamente na pauta do pensamento sociolgico.

    O papel da sociologia de simplesmente subsidiar os tomadores de deciso, ao invs de

    identificar criticamente novas questes, passava a ser cada vez mais questionado.

    Entretanto, apesar deste questionamento cada vez mais enftico em relao sociologia

    durkheimniana, a viso ambiental dentro dessa disciplina nos anos 1970 permanecia

    como uma orientao minoritria. Nesse contexto, esse perodo inicial acabou marcado

    pelo alto grau de politizao da temtica.

    No nvel poltico-institucional, uma das mais importantes conseqncias dessa primeira

    fase foi o estabelecimento de unidade de proteo a maioria Unidades de Proteo

    Integral, restritiva s atividades humanas - como resposta para o processo de degradao

    44

  • decorrente da acelerada urbanizao que a sociedade ocidental assistia (Mol, 1997: 138).

    Outra herana desse perodo foi a instituio de EIAs nos EUA, assunto abordado no

    captulo 3.

    O estabelecimento de unidades de conservao como poltica ambiental um sinal claro

    de que nesse primeiro perodo havia uma separao muito bem delimitada entre o meio

    fsico-biolgico e o meio social, sendo que a aprovao da Lei do Sistema Nacional de

    Unidades de Conservao SNUC em 2002 serve como um retrato fiel dessa ciso. Do

    mesmo modo, o processo de estruturao dos EIAs divididos metodologicamente entre

    meios fsico, bitico e socioeconmico serve como sinal inequvoco dessa diviso,

    herana que perdura at hoje e que mesmo os novos instrumentos como AAE

    aparentemente no vo conseguir romper.

    A crtica emergente com relao ao modelo de desenvolvimento ainda estava

    fundamentada na compreenso dos recursos naturais como algo externo ao sistema

    social, como se houvesse uma fronteira to ntida quanto aquela existente entre pases,

    que definisse o que estava dentro do que estava fora (Mol, 2000).

    Na primeira metade da dcada de 1980, essa nova tendncia entrou em declnio e a

    sociologia ambiental ingressou no seu segundo perodo. Para Dunlap (1997), a idia de

    que a sociedade teria limites de crescimento no era palatvel para uma sociedade

    altamente consumista como a dos EUA e isso refletiu diretamente numa reao da

    sociedade crtica ambiental do primeiro perodo. Esse movimento de reao resultou na

    eleio de Reagan para a Presidncia, com a conseqente implantao de sua diretriz

    poltica neo-liberal, resultando na diminuio do interesse da sociologia norte-americana

    pela questo ambiental em comparao com a sua efervescncia na dcada de 1970.

    Desse modo, apesar dos avanos iniciais no pensamento sociolgico ambiental na

    dcada anterior, no incio dos anos 1980 a conjuntura poltica desfavorvel acabou

    influenciando tambm o pensamento ambiental nos EUA (Dunlap,1997).

    Para Buttel (1997), esse segundo momento da sociologia ambiental acabou sendo

    fundamental como reforo terico. No momento em que a sociologia ambiental j estava

    45

  • mais consolidada como um novo paradigma, a chamada ecologia humana que emergiu na

    dcada anterior, com carter eminentemente contestador do modelo de desenvolvimento,

    passou a ter maior influncia sobre outras vertentes das cincias sociais. Enfim, esse

    novo perodo acabou se caracterizando pela superao do carter puramente poltico-

    ideolgico para avanar na teorizao desta questo.

    No nvel institucional, Mol (1997) ressalta que a implantao e fortalecimento das agncias

    ambientais governamentais em muitos pases ocidentais representaram um importante

    legado deste perodo. Concomitantemente com as agncias ambientais, destacam-se

    nesse perodo a expanso da legislao ambiental e um rpido crescimento do nmero de

    participantes de organizaes no-governamentais ambientais. Todo o processo de

    licenciamento ambiental no Brasil teve incio nesse perodo, quando se estabeleceram as

    primeiras leis e agncias ambientais.

    O perodo compreendido entre meados dos anos 1980 e incio dos 1990 definitivamente

    marcado por um processo de institucionalizao da questo ambiental, seja por meio de

    uma legislao ambiental cada vez mais rgida por um lado, seja por meio da

    consolidao de agncias ambientais responsveis pelos processos de licenciamento por

    outro.

    Ao observarmos este processo no Brasil, percebe-se que, de fato, na dcada de 1980

    ocorreu um grande avano com relao institucionalizao das questes ambientais.

    Entre os diversos aspectos legais estabelecidos nessa dcada relacionados questo

    ambiental, pode-se citar a Lei n 6.938 de 1981 que dispe sobre a Poltica Nacional de

    Meio Ambiente; a Resoluo do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA n. 01

    de 1986 que estabelece a obrigatoriedade de avaliao de impacto ambiental para

    determinados empreendimentos; a Resoluo CONAMA n. 09 de 1987 que regulamenta

    as audincias pblicas; e principalmente, a Constituio Federal de 1988, que destina um

    captulo inteiro (Captulo VI) sobre Meio Ambiente. Em seu Captulo II, Artigo 20, Inciso XI,

    Pargrafo 1, esta tratou de assegurar a necessidade de internalizar custos ambientais ao

    afirmar que

    46

  • assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito

    Federal e aos Municpios, bem como a rgos da

    administrao direta da Unio, participao no resultado da

    explorao de petrleo ou gs natural, de recursos hdricos

    para fins de gerao de energia eltrica, ou compensao

    financeira por essa explorao.

    De modo geral, a poltica nacional de meio ambiente foi sendo implantada no pas atravs

    de Resolues do CONAMA, aceitas como se tivessem fora de Lei (Leite, 1997).

    Percebe-se que os processos de licenciamento ambiental institudos no Brasil a partir dos

    anos 1980 retrataram o processo de internalizao das questes ambientais e da

    incorporao dos seus custos como forma de se adequar ao chamado desenvolvimento

    sustentvel que, embora seja muito vago para que seja utilizado conceitualmente

    (Bonalume, 2001), estava em evidncia nesse perodo. Para Spaargaren (2000), esse

    perodo de debate em torno do termo desenvolvimento sustentvel estaria diretamente

    ligado teoria da modernizao ecolgica, esse sim um conceito propriamente dito. No

    processo de conceituao de modernizao ecolgica, dois autores com vises distintas

    em relao ao papel do Estado foram fundamentais: Jnicke e Huber.

    Para Jnicke, a crise ambiental deveria gerar uma nova ao racional do Estado que teria

    que reassumir seu papel como ator principal nesse processo atravs de novas formas de

    interveno poltica. Segundo Jnicke (in Spaargaren, 2000: 46) sem a interveno do

    Estado, o esverdeamento da produo e do consumo uma impossibilidade. O processo

    de modernizao ecolgica deve ser ativamente sustentado pelo Estado atravs de uma

    Poltica industrial verde9.

    9 Traduo do autor: Without state-intervention, the greening of production and consumption is

    an impossibility. The ecological modernization process must be actively supported by the state

    in form of green industry policy.

    47

  • Huber, por outro lado, entende que as questes ambientais levam naturalmente a um

    processo de racionalizao da produo e consumo, independente de uma ao mais

    contundente do Estado. As transformaes institucionais rpidas e profundas ocorridas a

    partir de meados da dcada de 1980 seriam um sinal inequvoco dessa tendncia. Por

    outro lado, percebe-se que a efetiva incorporao das temticas ambientais s ocorreu

    quando o Estado passou a exigir de alguma forma, seja atravs de processos de

    licenciamento, seja por Leis mais rigorosas para punir crimes ambientais.

    Embora tenham vises diferentes com relao ao papel do Estado, ambos compartilham a

    opinio de que a inovao tecnolgica e o desenvolvimento econmico tm uma funo

    central na modernizao ecolgica e no podem ser descartados (Hajer, 1995).

    O mago da chamada modernizao ecolgica defendida por Huber e Spaargaren

    consiste no processo mtuo de ecologizao da economia e economizao da ecologia

    que a sociedade nos tempos atuais estaria atravessando. A ecologizao da economia

    refere-se ao processo de internalizao de custos ambientais nos aspectos de produo e

    consumo, tal como tem ocorrido nos processos de licenciamento ambiental de

    empreendimentos. J a economizao da ecologia refere-se perda da inocncia da

    ecologia, com uma profissionalizao da mesma visando adquirir consistncia para afetar

    o mundo racional de negcios e comrcio (Spaargaren, 2000: 50-51). De certo modo,

    percebe-se que a forma como tem ocorrido a incorporao das temticas ambientais

    dentro das sociedades capitalistas, incluindo o Brasil, tem muitas caractersticas desse

    modo de internalizao dos custos ambientais, seja a economizao da ecologia, seja a

    ecologizao da economia.

    Embora adeptos da modernizao ecolgica, assim como do chamado capitalismo

    natural, assumam a necessidade de valorao dos recursos naturais como um

    instrumento importante, ambos reconhecem que essa no suficiente por trs motivos:

    em primeiro lugar porque no h substitutos para os sistemas vivos; em segundo lugar

    porque avaliar o capital natural um exerccio difcil e impreciso; e para finalizar porque as

    inovaes tecnolgicas no tm como substituir o capital humano, a inteligncia (Hawken,

    Lovins e Lovins, 1999).

    48

  • Por outro lado, mesmo reconhecendo que a valorao no suficiente e que apresenta

    diversos desafios, a no valorao foi exatamente o que levou a sociedade s portas do

    desastre (Hawken, Lovins e Lovins, 1999).

    Certamente, essa interpretao de que as solues das questes ambientais podem ser

    encontradas dentro do prprio capitalismo, numa espcie de capitalismo natural tal como

    termo cunhado por Hawken, Lovins e Lovins, tem encontrado fortes resistncias,

    principalmente entre os herdeiros da ecologia humana. Martell (1994), por exemplo,

    entende que capitalismo e produo e consumo sustentvel so impossveis de conciliar e

    que a interveno coletivista necessria para assegurar a sustentabilidade.

    De fato, o processo de desenvolvimento em curso at incio da dcada de 1990 j havia

    dado provas suficientes de que incompatvel com a sustentabilidade ambiental. Dentro

    dessa lgica, os instrumentos para preservao dos recursos ambientais no poderiam

    ser encontrados dentro do mesmo modelo de desenvolvimento que havia causado todos

    os impactos. Particularmente no Brasil, Hogan (1993) destaca o caso de Cubato, quando

    esse municpio ocupou os noticirios do mundo inteiro ostentando o ttulo de