jean piaget - seis estudos de psicologia

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DUAS OBRAS FUNDAMENTAIS PARA UMA NOVA VISÃO DA FILOSOFIA E DA CIÊNCIA CONTEMPORÂNEAS ESTUDOS DE HISTÓRIA DO PENSAMENTO FILOSÓFICO e ESTUDOS DE HISTÓRIA DO PENSAMENTO CIENTÍFICO Alexandre Koyré Nestas obras, editadas no Brasil pelaEditoraFORENSEUNIVERSITÁRIA, leitor tomará conhecimento das pesquisas realizadas por Koyré sobre a história os grandes sistemas de conhecimentofilosóficoe científico e os seus efeitos obre a revoluçãofilosóficae científica do nosso tempo. Nos Estudos de História do Pensamento Filosófico, o notável pensador de rigem russa, naturalizado francês, aborda, com extrema originalidade, aspectos o pensamento de um grupo defilósofos,desde Zenão e os eliatas, até H e g t . e a enomenologia de Husserl e Heidegger, alcançando os fundadores do moderno ensamento lógico-matemático, como Russel. No campo da história da ciência, Koyré reúne, com extraordinária rofundidade, nos seus Estudos de História do Pensamento Científico, ensaios ríticos sobre as origens da ciência moderna, a partir dos trabalhos pioneiros de Copérnico, Newton, Descartes e Galileu, até o advento da era atómica e espacial, om Einstein e Bohr. Koyré sustenta que o pensamento científico não pode ser separado do ilosófico, como o demonstram seus estudos de filosofia e história das ciências, ue a FORENSE UNIVERSITÁRIA coloca ao alcance do público brasileiro. JEAN PIAGET 24- EDIÇÃO REVISTA f § 151, .4 P 5 7 9 s 04078758 FORENSE UVERSITÁRIA

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  • DUAS OBRAS FUNDAMENTAIS PARA UMA NOVA VISO DA FILOSOFIA

    E DA CINCIA CONTEMPORNEAS ESTUDOS DE HISTRIA DO PENSAMENTO FILOSFICO

    e ESTUDOS DE HISTRIA DO PENSAMENTO CIENTFICO

    Alexandre Koyr Nestas obras, editadas no Brasil pelaEditoraFORENSEUNIVERSITRIA,

    o leitor tomar conhecimento das pesquisas realizadas por Koyr sobre a histria dos grandes sistemas de conhecimento filosfico e cientfico e os seus efeitos sobre a revoluo filosfica e cientfica do nosso tempo.

    Nos Estudos de Histria do Pensamento Filosfico, o notvel pensador de origem russa, naturalizado francs, aborda, com extrema originalidade, aspectos do pensamento de um grupo de filsofos, desde Zeno e os eliatas, at Hegt. e a fenomenologia de Husserl e Heidegger, alcanando os fundadores do moderno pensamento lgico-matemtico, como Russel.

    No campo da histria da cincia, Koyr rene, com extraordinria profundidade, nos seus Estudos de Histria do Pensamento Cientfico, ensaios crticos sobre as origens da cincia moderna, a partir dos trabalhos pioneiros de Coprnico, Newton, Descartes e Galileu, at o advento da era atmica e espacial, com Einstein e Bohr.

    Koyr sustenta que o pensamento cientfico no pode ser separado do filosfico, como o demonstram seus estudos de filosofia e histria das cincias, que a FORENSE UNIVERSITRIA coloca ao alcance do pblico brasileiro.

    JEAN PIAGET

    24- EDIO REVISTA

    f

    151, .4 P5 7 9s

    04078758

    FORENSE UVERSITRIA

  • JEAN PIAGET

    SEIS ESTUDOS DE PSICOLOGIA

    24 EDIO REVISTA p 5 9^ ^Q}

    0

    PUCRS/BC

    0-407.875-8

    FORENSE UNIVERSITRIA

    PRESERVE SUA FONTE

  • 24! edio - 1999

    Copyright Editions Gonthier S. A. Genve

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de livros, RJ

    P42s Piaget, Jean, 1896-1950 24.ed. Seis estudos de psicologia/ Jean Piaget; traduo Maria Alice Magalhes D'Amorim e Paulo

    Srgio Lima Silva. - 24.ed. - Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1999.

    Traduo de: Six tudes de psychologie Contm dados biogrficos Inch bibliografia ISBN 85-218-0246-3

    1. Psicologia infantil. 2. Cognio nas crianas. I. Ttulo.

    99-1265. CDD 155.4 CDU 159.922.7

    Proibida a reproduo total ou pardaL bem como a reproduo de apostilas a partir deste livro, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrnico ou mecnico, inclusive atravs de processos xerogrficos, de fotocpia e de gravao, sem permisso expressado Editor (Lei n2 9.610, de 19.02.98).

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    PUC" 3 BlBL!0"i c/^^ ;ENTRAL

    DATA

    Reservados os direitos de propriedade desta edio peta EDITORA FORENSE UNIVERSITRIA

    Rio de Janeiro: Rua do Rosrio, 100 - 20041-002 - Tels: 509-3148/509-7395 SoPaulo: Largo de So Francisco, 20 - 01005-010 - Tels: 3104-2005/3104-0396 e-mail: [email protected] http: //www.editoras.coni/forenseuniversitria

    Impresso no Brasil Printed tn Brazil

    BIOGRAFIA DO AUTOR

    Jean Piaget nasceu em Neuchtel (Sua) em 1896. Desde os 16 anos, empreende com sucesso certo nmero de estudos

    sobre Zoologia, mostrando assim rara precocidade cientfica. Aos 21 anos, obtm o ttulo de licenciado em Cincias Naturais e, no

    ano seguinte, o de doutor em Cincias com tese dedicada diviso dos moluscos nos Alpes valesianos.

    Mas, logo o zoologista deveria ceder seu lugar ao psiclogo e episte-mologista de renome mundial.

    Sucessivamente, chefe de trabalhos no Instituto Rousseau e livre-do-cente na Faculdade de Cincias, da Universidade de Genebra, professor de Psicologia e Filosofia das Cincias na Universidade de Neuchtel, de Psico-logia Gentica na Universidade de Lausanne, de Sociologia e Psicologia Experimental na Universidade de Genebra, sendo finalmente nomeado pro-fessor titular de Psicologia Gentica da Sorbonne, em 1952.

    Atualmente, co-diretor do Instituto das Cincias da Educao em Genebra, ao mesmo tempo que professor de Psicologia Experimental na Faculdade de Cincias, Jean Piaget um inovador. Dedicou suas pesquisas, de uma originalidade e rigor excepcionais, descoberta sistemtica da evoluo mental da criana, assim como aos problemas epistemolgicos.

    Sua numerosa obra, traduzida em vrias lnguas, pode-se dizer, j clssica na literatura psicolgica.

    o fundador, em Genebra, do Centro de Epistemologia Gentica, que rene pesquisadores de todos os pases da Europa e do Mundo.

  • PREFCIO

    As pesquisas psicolgicas deJean Piaget gozam de renome mundial. Iniciadas h cerca de quarenta anos, no visam apenas conliecer melhor a criana e aperfeioar os mtodos pedaggicos ou educativos, mas, antes, compreender o homem.

    A ideia mestra de Piaget consiste, com efeito, n fato de permanecer indispensvel compreender a formao dos mecanismos mentais na criana para todos aqueles que desejarem entender sua natureza e seu funcionamento no adulto. Quer se trate, no plano da inteligncia, das operaes lgicas, das noes de nmero, de espao ou de tempo, ou, no plano da percepo, das constantes perceptivas, das iluses geomtricas, a nica interpretao psicolgica que possa ser dada a gentica, que se relaciona com a anlise de seu desenvolvimento.

    No limite, embora esforando-se por permanecer no terreno da cin-cia positiva e experimental, o que tenta a psicologia de Piaget , na verdade, uma epistemologia.

    A soma de experincias acumuladas pelo sbio e seus colaboradores, no entanto, bem como sua descrio e sua interpretao nas inmeras obras especializadas so, em primeiro lugar, difceis. Sua complexidade, sua tecnicidade, a importncia dos seus diversos desenvolvimentos, os conheci-mentos de ordem matemtica, biolgica, fsica que supem, tornam-nas, quase sempre, pouco acessveis ao grande pblico.

    Esta foi a razo por que julgamos til reunir os diversos artigos e conferncias que constituem o presente volume. Em uma primeira parte, apresentam o essencial das descobertas de Piaget no domnio da psicologia da criana. Em uma segunda parte, relacionam-se com certos problemas centrais - como os do pensamento, da linguagem, da afetividade - segundo uma dupla perspectiva gentica e estruturalista.

    Na forma em que os publicamos, estes Seis Estudos de Psicologia traam uma sntese precisa da obra de Piaget, da qual so a melhor e a mais rigorosa das introdues.

    O Editor.

  • NDICE

    PRIMEIRA PARTE

    1 - O desenvolvimento mental da criana 13 I -O recm-nascidoeo lactente 17 II - A primeira infncia: de dois a sete anos * . . . 24 III - A infncia de sete a doze anos 40 IV - A adolescncia 57

    SEGUNDA PARTE

    2 - O pensamento da criana 69 3 - A linguagem e o pensamento do ponto de vista gentico 77 4 - O papel da noo de equilbrio na explicao psicolgica 87 5 - Problemas de psicologia gentica 99 6 - Gnese e estrutura na psicologia da inteligncia 121

    Referncias 133 Bibliografia 135

  • PRIMEIRA PARTE

  • 1

    O DESENVOLVIMENTO MENTAL DA CRIANA

    O desenyj)lvjmavto psjquico. jue_comea quando nascemos e termina na idade adulta,. comparvel ao crescimento orgnico: como este, orienta-se, essencialmente, para o equilbrio. Da mesma maneira que um corpo est em evoluo at atingir um nvel relativamente estvel - caracterizado pela concluso do crescimento e pela maturidade dos rgos -, tambm a vida mental pode ser concebida como evoluindo na direo de uma forma de equilbrio final, repj^senjtaJajKdo esprito adulto. O desenvolvimento, por-tanto, uma equilibrao progressiva, uma passagem contnua de um estado de menor equilbrio para um estado de equilbrio superior. Assim, do ponto de vista da inteligncia, fcil se opor a instabilidade e incoerncia relativas das ideias infantis sistematizao de raciocnio do adulto. No campo da vida afetiva, notou-se, muitas vezes, quanto o equilbrio dos sentimentos aumenta com a idade. E, finalmente, tambm as relaes sociais obedecem mesma lei de estabilizao gradual.

    No entanto, respeitando o dinamismo inerente realidade espiritual, deve ser ressaltada uma diferena essencial entre a vida do corpo e a do esprito. A forma final de equilbrio atingida pelo crescimento orgnico mais esttica que aquela para a qual tende o desenvolvimento da mente, e sobretudo mais instvel, de tal modo que, concluda a evoluo ascendente, comea, logo em seguida, automaticamente uma evoluo regressiva que conduz- velhice. Certas funes psquicas que dependem, intimamente, do estado dos rgos, seguem uma curva anloga. A acuidade visual, por

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  • exemplo, atinge um mximo no fim da infncia, diminuindo em seguida; muitas comparaes perceptivas so tambm regidas por esta mesma lei. Ao contrrio, as funes superiores da inteligncia e da afetividade tendem a um "equilbrio mvel", isto , quanto mais estveis, majs_hayer mobilidade, pois, nasjdmas sadias^afiirtdoxrescimento no determina domado algum o comeo da decadncia, mas, sim, autoriza um progresso espiritual que nada possui de contraditrio com o equilbrio interior.

    , portanto, em termos de equilbrio que vamos descrever a evolu-o da criana e do adolescente. Deste ponto de vista, o desenvolvimento mental uma construo contnua, comparvel edificao de um grande prdio que,jj^edjidajme,3e acrescenta algo, ficar mais slido^ou mntagenTde um mecanismo delicado, cujas fases gradativas de ajusta-mento conduziriam a uma flexibilidade e uma mobilidade das peas tanto maiores quanto mais estvel se tornasse o equilbrio. Mas, preciso introduzir uma importante diferena entre dois aspectos complementares deste processo de equilibrao. Devem-se opor, desde logo, as estruturas variveis - definindo as formas ou estados sucessivos de equilbrio a um certo funcionamento constante que assegura a passagem de qualquer estado para o nvel seguinte.

    Comparando-se a criana ao adulto, ora se surpreendido pela identi-dade de reaes - fala-se ento de uma "pequena personalidade" para designar a criana que sabe bem o que quer e age, como ns, em funo de um interesse definido - ora se descobre um mundo de diferenas - nas brincadeiras, por exemplo, ou no modo de raciocinar, dizendo-se ento que "a criana no um pequeno adulto". As duas impresses so verdadeiras. Do ponto de vista funcional, isto , considerando as motivaes gerais da conduta e do pensamento, existem funes constantes e comuns a todas as idades. Em todos os nveis, a ao supe sempre um interesse que a desen-cadeia, podendo-se tratar de uma necessidade fisiolgica, afetiva ou intelec-tual (a necessidade aprescnta-se neste ltimo caso sob a forma de uma pergunta ou de um problema). _gp tnHr.s pS nveis^^-iateligncia procura ^nmprrpnrirr, fvpiir;)r pig ; s que se as funes do interesse, da explicao etc. so comuns a todos os estgios, isto , "invariveis" como funes, no menos verdade - que "os interesses" (em oposio ao "interesse") variam, consideravelmente, de um nvel mental a outro, e que as explicaes parti-culares (em oposio funo de explicar) assumem formas muito diferentes de acordo com o grau de desenvolvimento intelectual. Ao lado das funes - constantes, preciso distinguir as estruturas variveis, e precisamente a anlise dessas estruturas progressivas ou formas sucessivas de equilbrio que

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    marca as diferenas ou oposies de um nvel da conduta para outro, desde os comportamentos elementares do lactente at adolescncia.

    As estruturas variveis sero, ento, as formas de organizao da. atividade mrnta^ sob um duplo aspecto: motor ou intelectual, de uma parte, e afetivo, de outra, com suas duas dimenses individual e social (interindi-vidual). Distinguiremos, para maior clareza, seis estgios ou perodos do desenvolvimento, que marcam o aparecimento dessas estruturas sucessiva-mente construdas^ laj O estgio dos reflexos, ou mecanismos hereditrios, assim como tambm das primeiras tendncias instintivas (nutries) e das primeiras emoes. 2a) O estgio dos primeiros hbitos motores e das primeiras percepes organizadas, como tambm dos primeiros sentimentos diferenciados. 3; O estgio da inteligncia senso-motora ou prtica (anterior linguagem), das regulaes afetivas elementares e das primeiras fixaes exteriores da afetividade. Estes trs primeiros estgios constituem o perodo da lactncia (at por volta de um ano e meio a dois anos, isto , anterior ao desenvolvimento da linguagem e do pensamento), 4o. O estgio da intelign-cia intuitiva, dos sentimentos interindividuais espontneos e das relaes sociais de submisso ao adulto (de dois a sete anos, ou segunda parte da "primeira infncia")( 5a/ O estgio das operaes intelectuais concretas (comeo da lgica) e dos sentimentos morais e sociais de cooperao (de sete a onze-doze anos). 6o O estgio das operaes intelectuais abstratas, da formao da personalidade e da insero afetiva e intelectual na sociedade dos adultos (adolescncia).

    Caa estgio rarartpri7ado pela apario de estruturas oriflina js, cuja construo o distingue dos estgios anteriores. O essencial dessas constru-es sucessivas permanece no decorrer dos estgios ulteriores, como subes-truturas, sobre as quais se edificam as novas caractersticas. Segue-se que, no adulto, cada um dos estgios passados corresponde a um nvel mais ou menos elementar ou elevado da hierarquia das condutas. Mas a cada estgio correspondem tambm caractersticas momentneas e secundrias, que so modificadas pelo desenvolvimento ulterior, em funo da necessidade de melhor organizao. Cada estgio constitui ento, pelas estruturas que o definem, uma fornia particular de equilbrio, efetiiahdo-se a evlumental no sentido dc unia equilibrao sempre mais completa.

    Podemos agora compreender que so os mecanismos funcionais comuns a todos os estgios. Pode-se dizer de maneira geral (no comparando somente cada estgio ao seguinte, mas cada conduta, no interior de qualquer estgio, conduta seguinte) que toda ao - isto . todo iuovimento1 pensa mento ou sentimento - corresponde a uma necessidade. A criana, como o

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  • adulto, s executa^alguma ao exterior ou mesmo inteiramente interior quando impulsionada por um motivo e este se traduz sempre soba forma de uma necessidade (uma necessidade elementar ou um interesse, uma pergunta ^tejj Ora, como j bem mostrou Claparde.jmancccssidade sempre a maiwieste^ dejiin desequilbrio. Ela existe quando qualquer coisa, fora de ns ou em ns (no nosso organismo fsico ou mental) se modificou, tratan-do-se, ento, de um reajustamento da conduta em funo desta mudana.jar exemplo, a fnmpnn a faHiga prnvnrarftr a prnrnra do aljinentO OU do repouso. O encontro do objeto exterior desencadear a necessidade de manipul-lo; sua utilizao para fins prticos suscitar uma pergunta ou um problema terico. Uma palavra de algum excitar a necessidade de imitar, de simpa-tizar ou levar a reserva e oposio quando entra em conflito com as nossas tendncias. Inversamente, a ao se finda desde que haja satisfao das necessidades, isto , logo que o equilbrio - entre o fato novo, que desenca-deou a necessidade, e a nossa organizao mental, tal como se apresentava anteriormente - restabelecido.

    Comer ou dormir, brincar ou conseguir suas finalidades, responder a perguntas ou resolver problemas, ser bem-sucedido na imitao, estabelecer um lao afetivo, sustentar seu ponto de vista, so outras satisfaes que, nos exemplos precedentes, daro fim conduta especfica suscitada pela neces-sidade. A cada instante, pode-se dizer, a ao desequilibrada pelas trans-formaes que aparecem no mundo, exterior ou interior, e cada nova conduta vai funcionar no s para restabelecer o equilbrio, como tambm para tender a um equilbrio mais estvel que o do estgio anterior a esta perturbao.

    A ao humana consiste_neste movimento contnuo e perptuo de j^ajustamiejUojni^^ E porjstque, nas fases de consjnicp

    inicial, se pode considerar as estrutujaS-inentais-sucessivayTiue-produzem o desenvolvimento como formas de equilbrio, onde cada uma co^mum. progresso sobre as^ecedente.s-.Maslmbm precisocompreender que este mecanismo funcional, por mais geral que seja, no explica o contedo ou a estrutura das diferentes necessidades, pois cada uma dentre elas relativa organizao do nvel considerado. Por exemplo, a viso de um mesmo objeto suscitar diferentes perguntas em uma criana ainda incapaz de classificao e em uma maior, cujas ideias so mais amplas e mais sistemticas. Os interesses de uma criana dependem, portanto, a cada momento do conjunto de suas noes adquiridas e de suas disposies afetivas, j que estas tendem a complet-los em sentido de melhor equilbrio.

    Antes de examinarmos o desenvolvimento em detalhes, devemos precisar a forma geral das necessidades e interesses comuns a todas as idades.

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    Pode-se dizer que toda necessidade tende: Ia. a incorporar as coisas e pessoas atividade prpria do sujeito, isto , "assinalar" o mundo exterior s estru-turas j construdas, e 2a. a reajustar estas ltimas em funo das transforma-es ocorridas, ou seja, "acomod-las" aos objetos externos. Nesse ponto de vista, toda vida mental e orgnica tende a assimilar progressivamente o meio ambiente, realizando esta incorporao graas s estruturas ou rgos ps-quicos, cujo raio de ao se torna cada vez mais amplo. A percepo e movimentos elementares (preenso etc.) referem-se, primeiramente, aos objetos prximos nos seus estados momentneos, j que a memria e a inteligncia prtica permitem, ao mesmo tempo, reconstituir o estado ime-diatamente anterior e antecipar as transformaes prximas. O pensamento intuitivo refora, em seguida, estas duas capacidades. Esta evoluo culmina com a inteligncia lgica, sob a forma de operaes concretas e finalmente de deduo abstrata, tornando o sujeito senhor dos acontecimentos mais longnquos no espao e no tempo. Em cada um desses nveis, o esprito desempenha a mesma funo, isto , incorporar o universo a si prprio; a estrutura de assimilao, no entanto, vai variar desde as formas de incorpo-rao sucessivas da percepo e do movimento at s operaes superiores.

    Ora, assimilando assim os objetos, a ao e o pensamento so compe-lidos a se acomodarem a estes, isto , a se reajustarem por ocasio de cada variao exterior. Pode-se chamar "adaptao" ao equilbrio destas assimi-laes e acomodaes. Esta a forma geral de equilbrio psquico. O desenvolvimento mental aparecer, ento, em sua organizao progressiva como uma adaptao sempre mais precisa realidade. So as etapas desta adaptao que vamos agora estudar concretamente.

    I. O RECM-NASCIDO E O LACTENTE

    O perodo que vai do nascimento at a aquisio da linguagem marcado por extraordinrio desenvolvimento rn^n^--K44Mt vezes mal se suspeitou da importncia desse perodo; e isto porque ele no acompanhado de palavras que permitam seguir, passo a passo, o progresso da inteligncia e dos sentimentos, como mais tarde. Mas, na verdade, ^ tWUivp para tp^p o mrsn

  • um elemento ou um corpo entre os outros, em um universo que construiu pouco a pouco, e que sente depois como exterior a si prprio.

    Vamos descrever passo a passo as etapas desta revoluo coprnica, sob duplo aspecto: o da inteligncia e o da vida afetiva em formao. No primeiro destes dois pontos de vista podem-se; como j vimos atrs, distin-guir trs estgios entre o nascimento e o fim deste perodo: o dos reflexos, o da organizao das percepes e hbitos e o da inteligncia senso-motora propriamente dita.

    No recm-nascido, a vida mental se reduz ao exeriajdf aparelhos reflexos, isto , s coordenaes sensoriais e motoras defujndg_heeditria, que correspondem a tend^nclaTInstintivas, como a nutrio. A esse respeito nos limitamos a observar que estes reflexos, enquanto esto ligados s condutas que desempenharo um papel no desenvolvimento psquico ulte-rior, no tm nada desta passividade mecnica que se lhes atribui, mas manifestam desde o comeo uma atividade verdadeira que atesta, precisa-mente, a existncia de uma assimilao senso-motora precoce. Desde o incio, os reflexos da suco melhoram com o exerccio: um recm-nascido mama melhor depois de uma ou duas semanas que nos primeiros dias. Em seguida, esses reflexos conduzem a discriminaes ou reconhecimentos prticos fceis de serem notados. Enfim, eles do lugar, sobretudo, a uma espcie de generalizao da atividade: o lactente no se contenta_de_ sugar quando mama, sugando tambm no vazio, seus"3edos (quando os encontra) e qualquer objeto apresentado fortuitamente. Coordena os movimentos ds braos com a suco, at levar, sistematicamente - s vezes desde o segundo ms -, seu polegar boca. Em suma, assimila uma parte de seu universo suco, a ponto que se poderia exprimir seu comportamento inicial, dizen-do-se que, para ele, o mundo essencialmente uma realidade a sugar. verdade que, rapidamente, o mesmo universo se tornar tambm uma reali-dade para se olhar, Ouvir e, logo que os movimentos prprios lhe permitam, para manipular.

    Mas estes diversos exerccios, reflexos que so o prenncio da assimi-lao mental, vo rapidamente se tornar mais complexos por integrao nos hbitos e percepes organizados, constituindo o ponto de partida de novas condutas, adquiridas com ajuda da experincia. A suco^^tgjatica jlo polegar pertence j a esjesegundo estgio, assimccoriojajnbm^^geilxisjle

    _virar a cabea na direo de um rudoTou djsiguir um objeto em movimento _^Do ponto de vista perceptivo, constatamos que, logo que a criana comea a sorrir (quinta semana em diante), reconhece certas pessoas em oposio a outras etc. (mas guardemo-nos de lhe atribuir, por isto, a noo

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    de pessoa ou mesmo de objeto: so aparies sensveis e animadas que ela reconhece, nessa fase, o que no prova nada quanto sua substancialidade, nem quanto dissociao do eu e do universo exterior). Entre trs e seisi meses (comumente por volta de quatro meses e meio), o lactente comea a* pegar o que v, e esta capacidade de preenso, depois de manipulao, aumenta seu poder de formar hbitos novos.

    Os conjuntos motores (hbitos) novos e os conjuntos perceptivos, no incio, formam apenas um sistema; a esse respeito, pode-se falar de "esque-mas senso-motores".jMas como se constroem estes conjuntos? Um ciclo reflexo sempre, no ponto de partida, mais um ciclo cujo exerccio, em lugar de se repetir, incorpora novos elementos, constituindo com eles totalidades organizadas mais amplas, por diferenciaes progressivas. A seguir, basta que os movimentos do lactente, quaisquer que sejam, atinjam um resultado interessante - interessante porque os movimentos so assimilveis a um esquema anterior - para que o sujeito reproduza logo esses novos movimen-tos. Esta "reao circular", como a chamaram, desempenha papel essencial no desenvolvimento senso-motor e representa forma mais evoluda de assi-milao.

    Mas, vamos ao terceiro estgio, que mais importante ainda para o curso do desenvolvimento: o da inteligncia prtica ou senso-motora._A_ inteligncia aparece, com efeito, bem antes da linguagem, isto , bem antes do pensamento interior que supe o emprego de signos verbais (da linguagem

    \ interiorizada). MasJ uma inteligncia totalmente prtica, que se refere ^ manipulao dos objetos e que s utiliza, em lugar de palavras e conceitos,

    percepes e movimentos j|jrganizados em "esquemas de ao". Pegar uma vareta, para puxar um objeto distante, assim um ato de inteligncia (e mesmo bastante tardio: por volta de dezoito meses). Neste ato, um meio, que um verdadeiro instrumento, coordenado a um objetivo previsto; no exemplo da vareta, preciso compreender, antecipadamente, a relao entre ela e o objetivo, para descobri-la como meio. Um ato de inteligncia mais precoce consistir em aproximar o objetivo, puxando a cobertura ou o suporte sobre o qual est colocado (por volta do fim do primeiro ano). Vrios outros exemplos poderiam ser citados.

    Investiguemos como se constroem estes atos de inteligncia. Pode-se falar de dois tipos de fatores. Primeiramente, as condutas precedentes se multiplicam e se diferenciam cada vez mais, at alcanar uma maleabilidade suficiente para registrar os resultados da experincia. assim que nas "reaes circulares" o beb no se contenta mais apenas em reproduzir os movimentos e gestos que conduziram a um efeito interessante, mas os varia

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  • intcncionahncntejara estudar os resujtados destas variaes, entregando-se a verdadeiras exploraes ou "experincias para ver". Todos puderam observar, por exemplo, o comportamento de crianas de doze meses, aproximadamente, que consistia em jogar objetos no cho, em uma ou outra direo, para analisar quedas e trajetrias. De outro lado, os "esque-mas" de ao, construdos desde o nvel do estgio precedente e multipli-cados graas a essas novas condutas experimentais, tornam-se suscetveis de se coordenarem entre si, por assimilao recproca, tal como faro mais tarde as noes ou conceitos do pensamento. Com efeito, uma ao apta a ser repetida e generalizada para situaes novas comparvel a uma espcie de conceito senso-motor. assim que, em presena de um novo 'objeto, ver-se- o beb incorpor-lo sucessivamente a cada um de seus esquemas de ao (agitar, esfregar ou balanar o objeto), como se se tratasse de compreend-lo atravs do uso|Sabe-se que, por volta de cinco a seis anos, as crianas ainda definem os conceitos comeando pelas palavras " para": uma mesa " para escrever em cima" etc. H, ento, a uina assimilao senso-motora comparvel quela que ser mais tarde a assimilao da realidade por meio das noes e do pensamento. E natural, portanto, que estes diversos esquemas de ao se assimilem entre si, isto , se coordenem de maneira que uns determinem fim ao total, enquan-to outros lhe sirvam de meios. E por esta coordenao, comparvel do estgio precedente, mais mvel e flexvel, que comea a inteligncia prtica propriamente dita.

    A finalidade deste desenvolvimento intelectual , como j dissemos acima, transformar a representao das coisas, a ponto de inverter comple-tamente a posio inicial do sujeito em relao a elas. No ponto de partida da evoluo mental, no existe, certamente, nenhuma diferenciao entre o eu e o mundo exterior, isto , as impresses vividas e percebidas no so relacionadas nem conscincia pessoal sentida como um "eu", nem a objetos concebidos como exteriores. So simplesmente dados em um bloco indisso-ciado, ou como que expostos sobre um mesmo plano, que no nem interno nem externo, mas meio caminho entre esses dois plos. Estes s se oporo um ao outro pouco a pouco. Ora, por causa desta indissociao primitiva, tudo que percebido centralizado sobre a prpria atividade. O eu, no incio, est no centro da realidade, porque inconsciente de si mesmo, e medida que se constri como uma realidade interna ou subjetiva o mundo exterior vai-se objetivando. Em outras palavras, a conscincia comea por um ego-centrismo inconsciente e integral, at que os progressos da inteligncia senso-motora levem construo de um universo objetivo, onde o prprio

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    corpo aparece como um elemento entre os outros, e ao qual se ope a vida interior, localizada neste corpo.

    Quatro processos fundamentais caracterizam esta revoluo intelec-tual realizada durante os dois primeiros anos de existncia: so as constru-es de categorias do objeto e do espao, da causalidade e do tempo, todas quatro naturalmente a ttulo de categorias prticas ou de ao pura e no ainda como noes do pensamento.

    O esquema prtico do objeto a permanncia substancial atri-buda aos quadros sensoriais. E, portanto, a crena segundo a qual uma figura percebida corresponde a "qualquer coisa" que continua a existir, mesmo quando no a percebemos mais. Ora, fcil mostrar que, ^durante os primeiros meses, q lactente no percebe objetos propria-mente ditos..Reconhece certos quadros sensoriais fajnjliajes^jnas o fato de reconhec-los quando presentes no equivale, de forma neunu-maa sj^u-los em qualquer parte urido_esto_fora do campo percep-tivo. Reconhece em particular as pessoas e sabe que, gritando, far retornar sua me, logo que ela desaparece. Mas isto no prova que ele lhe atribui um corpo existente no espao, quando no a v mais. De fato o lactente, quando comea a pegar o que v, no apresenta, de incio, nenhum comportamento no sentido de buscar os objetos dese-jados que esto cobertos com um leno, embora ele tenha seguido com os olhos tudo o que foi feito. Em seguida, procurar o objeto escondi-do, mas sem se dar conta dos deslocamentos sucessivos, como se cada objeto estivesse ligado a uma situao de conjunto e no constitusse um motivo independente. S por volta do fim do primeiro ano que os objetos so procurados depois que saem do campo da percepo, e sob este critrio que se pode reconhecer um comeo de exterioriza-o do mundo material. Resumindo, a ausncia inicial de objetos substanciais, depois a construo de objetos slidos e permanentes, um primeiro exemplo desta passagem do egocentrismo integral primi-tivo para a elaborao final de um universo exterior.

    A evoluo do espao prtico inteiramente solidria com a constru-o dos objetos. No comeo h tantos espaos, no coordenados entre si, quanto domnios sensoriais (espao bucal, visual, ttil etc.) e cada um deles est centralizado sobre movimentos e atividades prprias. O espao visual, em esnecial, no tem no comeo as mesmas profundidades que construir em seguida. No fim do segundo ano, ao contrrio, est concludo um espao geral que compreende todos os outros, caracterizando as relaes dos objetos entre si e os contendo na sua totalidade, inclusive o prprio corpo. Ora, a

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  • elaborao do espao devida essencialmente coordenao de movimen-tos, sentindo-sc aqui a estreita relao que une este desenvolvimento ao da inteligncia senso-motora.

    A causalidade , primeiramente, ligada atividade em seu egocentris-mo: a ligao que fica muito tempo fortuita para o sujeito, entre um resultado emprico e uma ao qualquer que o atraiu.

    assim que, puxando os cordes que pendem do alto de seu bero, o lactente descobre a agitao de todos os brinquedos suspensos na cobertura, unindo ento causalisticamente o puxar os cordes e o efeito geral desta agitao. Ele se servir logo deste esquema causal para agir distncia sobre qualquer coisa: ele puxar o cordo para continuar um balano que observa a dois metros de seu bero, para fazer durar um assovio ouvido do fundo de seu quarto etc. Esta espcie de causalidade mgica ou "mgico-fenomenista" mostra o egocentrismo causal primitivo. No curso do segundo ano, ao contrrio, a criana reconhece as relaes de causalidade dos objetos entre si, objetivando e espacializando, deste modo, as causas.

    A objetivao das sries temporais paralela causalidade. Em suma, em todos os domnios encontramos esta espcie de revoluo coprnica. Esta permite inteligncia senso-motora sair do seu egocentrismo inconsciente radical para se situar em um "universo", no importando quo prtico e pouco "reflexivo" este seja.

    A evoluo da afetividade durante os dois primeiros anos d lugar a um quadro que, no conjunto, corresponde, exatamente, quele estabelecido atravs do estudo das funes motoras e cognitivas. Existe, com efeito, um paralelo constante entre a vida afetiva e a intelectual. Demos a apenas um exemplo, mas veremos que esse paralelismo se seguir no curso de todo o desenvolvimento da infncia e adolescncia. Tal constatao s surpreende quando se reparte, de acordo com o senso comum, a vida do esprito em dois compartimentos estanques: o dos sentimentos e o do pensamento. Mas, nada mais falso e superficial. Na realidade, o elemento que preciso sempre focalizar, na anlise da vida mental, a "conduta" propriamente dita, conce-bida - como procuramos expor rapidamente na nossa introduo como um restabelecimento ou fortalecimento do equilbrio. Ora, toda conduta supe instrumentos ou uma tcnica: so os movimentos e a inteligncia. Mas, toda conduta implica tambm modificaes e valores finais (o valor dos fins): so os sentimentos. Afetividade e inteligncia so, assim, indissociveis e cons-tituem os dois aspectos complementares de toda conduta humana.

    Sendo assim, claro que ao primeiro estgio de tcnicas reflexas correspondero os impulsos instintivos elementares, ligados alimentao,

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    \

    assim como estas espcies de reflexos afetivos que so as emoes primrias. Mostrou-se, com efeito, recentemente, a proximidade das emoes com o sistema fisiolgico das atitudes ou posturas; os primeiros medos, por exem-plo, podem estar ligados perda de equilbrio ou a bruscos contrastes entre um acontecimento fortuito e a atitude anterior.

    Ao segundo estgio (percepes e hbitos), assim como ao comeo da inteligncia senso-motora, corresponde uma srie de sentimentos elementa-res ou afetos perceptivos ligados s modalidades da atividade prpria: o agradvel e o desagradvel, o prazer e a dor etc., assim como os primeiros sentimentos de sucesso e fracasso. Na medida em que estes estados afetivos dependem da prpria ao e no ainda da conscincia das relaes mantidas com as outras pessoas, este nvel da afetividade testemunha uma espcie de egocentrismo geral, e d a iluso, se atribumos falsamente ao beb uma conscincia de seu eu, de uma espcie de amor a si prprio e de uma atividade desse eu. De fato, o lactente comea por se interessar essencialmente por seu corpo, seus movimentos e pelos resultados destas aes. Os psicanalistas chamaram de "narcisismo" a este estgio elementar da afetividade, mas preciso compreender que um narcisismo sem Narciso, isto , sem a conscincia pessoal propriamente dita. j

    Ao contrrio, com o^esenyolvimento da inteligncia e com a conse-quente elaborao de um universo exterior, e principalmente com a constru-o do esquema do "objeto", aparece um terceiro nvel de afetividade: este caracterizado, retomando o vocabulrio da psicanlise, pela "escolha do objeto", isto , pela objetivao dos sentimentos e pela sua projeo sobre outras atividades que no apenas a do euJNote-se que com o progresso das condutas inteligentes, os sentimentos ligados prpria atividade se diferen-ciam e se multiplicam: alegrias e tristezas ligadas ao sucesso e ao fracasso dos atos intencionais, esforos e interesses ou fadigas e desinteresses etc. Mas estes estados afetivos permanecem muito tempo ligados apenas, como os afetos perceptivos, s aes do sujeito, sem delimitao precisa entre aquilo que lhe pertence especificamente e aquilo que pode ser atribudo ao mundo exterior, isto , a outras fontes possveis de atividades e de causali-dade. Por outro lado, quando do quadro global e indiferenciado das aes e percepes primitivas, destacam-se, cada vez mais ntidos, os "objetos" concebidos como exteriores ao eu e independentes dele, a situao se transforma completamente. De uma parte, encontramos a estreita correlao com a construo do objeto, a conscincia do "eu" comeando a se afirmar como plo interior da realidade, em oposio ao plo externo objetivo; mas, de outra parte, os objetos concebidos, em analogia a esse "eu", como ativos,

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  • vivos e conscientes. E isto acontece, em especial, com esses objetos, excepcionalmente imprevistos e interessantes, que so as pessoas. Os sentimentos elementares de alegria e tristeza, de sucessos e fracassos etc. sero ento experimentados em funo desta objetivao das coisas e das pessoas, originando-se da os sentimentos interindividuais. A "escolha (afetiva) do objeto", que a psicanlise ope ao narcisismo, corresponde construo intelectual do objeto, assim como o narcisismo correspondia indiferenciao entre o mundo exterior e o eu. Esta "escolha do objeto" refere-se, primeiramente, pessoa da me, depois (em negativa como positivo) pessoa do pai e dos prximos. Tal o comeo das simpatias e antipatias que se vo desenvolver to amplamente no curso do perodo seguinte.

    II. A PRIMEIRA INFNCIA: DE DOIS A SETE ANOS

    Com o aparecimento da linguagem, as condutas so profundamente modificadas no aspecto afetivo e no intelectual. Alm de todas as aes reais ou materiais que capaz de efetuar, como no curso do perodo precedente, a criana torna-se, graas linguagem, capaz de reconstituir suas aes passadas sob forma de narrativas, e de antecipar suas aes futuras pela representao verbal. Da resultam trs consequncias essenciais para o desenvolvimento mental: uma possvel troca entre os indivduos, ou seja, o incio da socializao da ao; uma interiorizao da palavra, isto , a apario do pensamento propriamente dito, que tem como base a linguagem interior e o sistema de signos, e, finalmente, uma interiorizao da ao como tal, que, puramente perceptiva e motora que era at ento, pode da em diante se reconstituir no plano intuitivo das imagens e das "experincias mentais". Do ponto de vista afetivo, sgue-se uma srie de transformaes paralelas, desenvolvimento de sentimentos interindividuais (simpatias e antipatias, respeito etc.) e de uma afetividade inferior organizando-se de maneira mais estvel do que no curso dos primeiros estgios. /

    Vamos primeiramente examinar essas trs modificaes gerais da conduta (socializao, pensamento e intuio), e depois suas repercusses afetivas. Mas, para se compreender em detalhes estas mltiplas manifesta-es novas, preciso insistir ainda sobre sua continuidade relativa com as condutas anteriores. No momento da apario da linguagem, a criana se acha s voltas, no apenas comojiniyjersQ-fsico como anteymas com dois mundos novos e intimamente solidrios: o mundo social e ojias_repre-sentaes interiores. LmT>rcmo-ns de queTTrespeitodbs objetos materiais ou corpos, o lactente comea por uma atitude egocntrica - na qual a

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    incorporao das coisas sua atividade predomina sobre a acomodao conseguindo, apenas gradativamente, situar-se em um universo objetivado (onde a assimilao ao sujeito e a acomodao ao real se harmonizam entre si). Da mesma maneira, ajeriana reagir primeiramente s relaes sociais

    e ao pensamento em formao com um egocentrismo inconsciente [que prolonga o do beb. Ela s se adaptar, progressivamente, obedecendo s leis de equilbrio anlogas s do beb, mas transpostas em funo destas novas realidades. por este motivo que se observa, durante toda a primeira infncia, uma repetio parcial, em planos novos, da evoluo j realizada pelo lactente no plano elementar das adaptaes prticas. Estas espcies de repetio, com defasagem de um plano inferior aos planos superiores, so extremamente reveladoras dos mecanismos ntimos da evoluo mental.

    A. A socializao da ao ' A troca e a comunicao entre os indivduos so a consequncia mais I evidente do aparecimento da linguagem. Sem dvida, estas relaes interin-dividuais existem em germe desde a segunda metade do primeiro ano, graas imitao, cujos progressos esto em ntima conexo com o desenvolvimen-to senso-motor. Sabe-se que o lactente aprende pouco a pouco a imitar, sem que exista uma tcnica hereditria da imitao. Primeiramente, simples excitao, pelos gestos anlogos do outro, movimentos visveis do corpo (sobretudo das mos) que a criana sabe executar espontaneamente; em seguida, a imitao senso-motora torna-se uma cpia cada vez mais precisa de movimentos que lembram os movimentos conhecidos; e, finalmente, a criana reproduz os movimentos novos mais complexos (os modelos mais difceis so os que interessam s partes no visveis do prprio corpo, como o rosto e a cabea). A imitao de sons tem uma evoluo semelhante. Quando os sons so associados a aes determinadas, a imitao prolonga-se como aquisio da linguagem (palavras-frases elementares, depois, substan-tivos e verbos diferenciados e, finalmente, frases propriamente ditas). En-quanto a linguagem se estabelece sob forma definida, as relaes interindi-viduais se limitam imitao de gestos corporais e exteriores, e a uma relao afetiva global sem comunicaes diferenciadas. Com a palavra, ao contrrio, a vida interior como tal, que posta em comum e, deve-se acrescentar, que se constri conscientemente, na medida em que pode ser comunicada.

    Ora, em que consistem as funes elementares da linguagem? interessante, a esse respeito, observar em crianas de dois a sete anos, tudo que dizem e fazem durante algumas horas, em intervalos regulares e analisar esta amostra de linguagem espontnea ou provocada, do ponto de vista das

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  • relaes sociais fundamentais. Trs grandes categorias de fatos podem, assim, ser postos em evidncia.

    Em primeiro lugar, existem os fatos de subordinao e as relaes de coao espiritual exercida pelo adulto sobre a criana. Com a linguagem, a criana descobre as riquezas insuspeitas de um mundo de realidades supe-riores a ela; seus pais e os adultos que a cercam lhe aparecem j como seres grandes e fortes, como fontes de atividades imprevistas e misteriosas. Mas agora esses mesmos seres revelam seus pensamentos e vontades, e este novo

    i universo comea a se impor com seduo e prestgio incomparveis. Um "eu ideal", como disse Baldwin, se prope ao eu da criana, e os exemplos vindos do alto sero modelos que a criana deve procurar copiar ou igualar. So dados ordens e avisos, sendo, como mostrou Bovet, o respeito do pequeno pelo grande que os torna aceitveis e obrigatrios para as crianas. Mas, mesmo fora destes ncleos de obedincia, desenvolvesse toda uma submis-so inconsciente, intelectual e afetiva, devida coao espiritual exercida pelo adulto.

    Em segundo lugar, existem todos os fatoresde troca, com o adulto ou com outras crianas. Essas intercomunicaes desempenham igualmente papel decisivo para os progressos da ao; na medida em que levam a formular a prpria ao e narrao das aes passadas, estas intercomunica-es transformam as condutas materiais em pensamento. Como disse Janet, a memria est ligada narrativa; a reflexo, discusso; a crena ao engajamento ou promessa e o pensamento linguagem exterior ou interior. Mas, sabe a criana comunicar inteiramente seu pensamento (e a se notam as defasagens de que falamos acima), e perceber o ponto de vista dos outros? Ou, melhor, uma aprendizagem da socializao necessria para alcanara cooperao real? neste ponto que se torna til a anlise das funes da linguagem espontnea. Com efeito, fcil constatar como as conversaes entre crianas so rudimentares e ligadas ao material propriamente dita.

    f Aproximadamente at sete anos, as crianas no sabem discutir entre elas e se limitam a apresentar suas afirmaes contrrias. Quando se procura dar

    \, umas s outras, conseguem com dificuldade se colocar do ponto [_ de vista daquela que ignora do que se trata, falando como que para si mesmas. . E sobretudo acontece-lhes, trabalhando em um mesmo quarto ou em uma

    i mesma mesa, de falar cada uma por si, acreditando que se escutam e se ^compreendem umas s outras. Esta espcie de "monlogo coletivo" consiste

    mais em mtua excitao ao do_que^emjrocaiJ|e_jjensajaejitQ5. reais. Notemos^enfimTqe as caractersticas desta linguagem entre crianas so encontradas nas brincadeiras coletivas de regra; em partidas de bolas de

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    gude, por exemplo, os grandes se submetem s mesmas regras e ajustam seus jogos individuais aos dos outros, enquanto que os pequenos jogam cada um por si, sem se ocuparem das regras do companheiro.

    r Da uma terceira categoria de fatos: a criana no fala somente s outras, fala-se a si prpria, sem cessar, em monlogos variados que acompa-nham seus jogos e sua atividade. Comparados ao que sero mais tarde, a linguagem interior contnua no adulto ou no adolescente, estes solilquios so diferentes, pelo fato de que so pronunciados em voz alta e pela caracterstica de auxiliares da ao imediata. Estes verdadeiros monlogos, como os coletivos, constituem mais de um tero da linguagem espontnea entre crianas de trs e quatro anos, diminuindo por volta dos sete anos.

    Em suma, o exame da linguagem espontnea entre crianas, como o do comportamento dos pequenos nos jogos coletivos, mostra que as primei-ras condutas sociais permanecem ainda a meio caminho da verdadeira socializao. Em lugar de sair de seu prprio ponto de vista para coorden-lo com o dos outros, o indivduo permanece inconscientemente centralizado em si mesmo; este egocentrismo face ao grupo social reproduz e prolonga o que notamos no lactente face ao universo fsico. Nos dois casos, h uma indife-renciao entre o eu e a realidade exterior, aqui representada pelos outros indivduos e no mais pelos objetos isolados; este tipo de confuso inicial estabelece a primazia do prprio ponto de vista. Quanto s relaes entre a criana e o adulto, evidente que a coao espiritual (e a fortiori material) exercida pelo segundo sobre o primeiro no exclui em nada este egocentris-mo. Quando se submete ao adulto e o coloca muito acima de si, a criana vai reduzi-lo, muitas vezes, sua escala, como certos crentes ingnuos a respeito da sua divindade, chegando mais a um meio-term.o entre o ponto de vista superior e o seu prprio, do que a uma coordenao bem diferenciada.

    B. A gnese do pensamento

    Em funo destas modificaes gerais da ao, assiste-se durante a primeiraTnlancia a uma transformao da inteligncia que, de apenas senso-motora ou prtica que no incio, se prolonga doravante como pensamento propriamente dito sob a dupla influncia da linguagem e da socializao. A linguagem, permitindo ao sujeito contar suas aes, fornece de uma s vez a capacidade de reconstituir o passado, portanto, de evoc-lo na ausncia de objetos sobre os quais se referiram as condutas anteriores, de antecipar as aes futuras, ainda no executadas, e at substitu-las, s vezes, pela palavra isolada, sem nunca realiz-las. Este o ponto de partida do pensamento. Mas, a, deve-se acrescentar que a linguagem conduz socializao das aes;

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  • | estas do lugar, graas a ela, a atos de pensamento que no pertencem exclusivamente ao eu que os concebe, mas, sim, a um plano de comunicao que lhes multiplica a importncia. A linguagem um veculo de conceitos e noes que pertence a todos e refora o pensamento individual com um vasto sistema de pensamento coletivo. Neste, a criana mergulha logo que maneja a palavra.

    Mas acontece com o pensamento o que acontece com a conduta global. Em vez de se adaptar logo s realidades novas que descobre e que constri pouco a pouco, o sujeito deve comear por uma incorporao laboriosa dos dados ao seu eu e sua atividade; esta assimilao egocntrica caracteriza tanto o incio do pensamento da criana como o da socializao. Para ser mais exato, preciso dizer que, durante as idades de dois a sete anos, encontram-se todas as transies entre duas formas extremas de pensamento, representadas em cada uma das etapas percorridas durante este perodo, sendo que a segunda domina pouco a pouco a primeira. A primeira destas formas a do pensamento por incorporao ou assimilao puras, cujo egocentrismo exclui, por consequncia, toda objetividade. A segunda destas formas a do pensamento adaptado aos outros e ao real, que prepara, assim, o pensamento lgico. Entre os dois se encontra a grande maioria dos atos do pensamento infantil que oscila entre estas direes contrrias.

    O pensamento egocntrico puro aparece nesta espcie de jogo, quese pode chamar de jogo simblico. Sabe-se que o jogo constitui a forma de atividade inicial de quase toda tendncia, ou pelo menos um exerccio funcional desta tendncia que o ativa ao lado da aprendizagem propriamente dita, e que, agindo sobre este, o refora. Observa-se ento, bem antes da linguagem, um jogo de funes senso-motoras que um jogo de puro exerccio, sem interveno do pensamento nem da vida social, pois s ativa movimentos e percepes. No nvel da vida coletiva (de sete a doze anos), ao contrrio, v-se constituir nas crianas jogos caracterizados por certas obrigaes comuns, isto , as regras do jogo. Entre duas crianas, aparece uma forma diferente de jogo, muito caracterstica da primeira infncia e que sofre interveno do pensamento, mas um pensamento individual quase puro com minimum de elementos coletivos: o jogo simblico ou jogo de imaginao e imitao. Os exemplos so abundantes: jogo de boneca, brincar de comidinha. fcil dar-se conta de que estes jogos simblicos constituem uma atividade real do pensamento, embora essencialmente egocntrica, ou melhor, duplamente egocntrica. Sua funo consiste em satisfazer o eu por meio de uma transformao do real em funo dos desejos: a criana que brinca de boneca refaz sua prpria vida, corrigindo-a sua maneira, e revive

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    todos os prazeres ou conflitos, resolvendo-os, compensando-os, ou seja, completando a realidade atravs da fico. Em suma: o jogo simblico no um esforo de submisso do sujeito ao real, mas, ao contrrio, uma assimilao deformada da realidade ao eu. De outro lado, a linguagem intervm nesta espcie de pensamento imaginativo, tendo como instrumento a imagem ou smbolo. Ora, o smbolo um signo - como a palavra ou signo verbal - mas um signo individual elaborado sem o recurso dos outros e muitas vezes compreendido pelo indivduo, j que a imagem se refere a lembranas e estados ntimos e pessoais. , portanto, neste duplo sentido que o jogo simblico constitui o plo egocntrico do pensamento. Pode-se dizer, mesmo, que ele o pensamento egocntrico em estado quase puro, s ultrapassado pela fantasia e pelo sonho.

    No outro extremo, encontra-se a forma de pensamento mais adaptada ao real que a criana conhece, e que se pode chamar de pensamento intuitivo. , em certo sentido, a experincia e a coordenao senso-motoras, mas reconstitudas e antecipadas, graas representao. Voltaremos a ela (na parte C), pois a intuio , sob certo aspecto, a lgica da primeira infncia.

    Entre estes dois tipos extremos se encontra uma forma de pensamento simplesmente verbal, sria em oposio ao jogo, porm mais distante do real do que a prpria intuio: o pensamento corrente da criana de dois a sete anos. muito interessante constatar o quanto ele prolonga os mecanismos de assimilao e a construo do real, prprias ao perodo pr-verbal.

    Para saber-se como a criana pensa espontaneamente, no h mtodo mais eficiente que o de pesquisar e analisar as perguntas que faz, abundantes s vezes, quase ao mesmo tempo em que fala. Entre estas perguntas, as mais primitivas tendem simplesmente a saber "onde" se encontram os objetos desejados e como se chamam as coisas pouco conhecidas: "o que ?" Mas desde trs anos, e muitas vezes antes, aparece uma forma bsica de pergunta que se multiplica at os sete anos: so os famosos "porqus" das crianas, aos quais o adulto tantas vezes tem dificuldade em responder. Qual o sentido geral dessa palavra? No adulto pode ter dois significados distintos: a finali-dade ("por que voc vai por este caminho?") ou a causa eficiente ("por que os corpos caem?"). Tudo se passa, ao contrrio, como se os "porqus" da primeira infncia apresentassem um significado indiferenciado, meio cami-nho entre o fim e a causa, implicando, no entanto, um e outro ao mesmo tempo. "Por que que est rolando?", pergunta, por exemplo, um menino de seis anos pessoa que toma conta dele. Refere-se a uma bola de gude que, em um terrao levemente inclinado, dirige-se pessoa situada na parte mais baixa; como resposta dir-se-: "Porque inclinado", o que "uma explicao

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  • puramente causal; mas a criana, no satisfeita, pergunta novamente: "Ela sabe que voc est embaixo?" Seguramente, no se deve tomar ao p da letra esta reao: a criana no empresta bola de gude uma conscincia humana. Se bem que exista, como veremos, uma espcie de "animismo" infantil, no se poderia interpret-lo como um antropomorfismo to grosseiro. Todavia, a explicao mecnica no satisfaz criana, porque ela entende um movi-mento como necessariamente orientado para um fim e, em consequncia, como intencional e dirigido. Portanto, a causa e o fim do movimento da bola de gude que esta criana queria conhecer, e por isto que este exemplo to representativo dos "porqus" iniciais.

    Um dos motivos que torna os "porqus" infantis to obscuros para a conscincia adulta e que explica as dificuldades que sentimos para responder s crianas, que uma grande parte destas perguntas se relaciona a fenme-nos ou acontecimentos que no comportam precisamente "porqus", j que ocorrem ao acaso. Assim, que o mesmo menino de seis anos, cuja reao ao movimento acabamos de descrever, espanta-se que haja em Genebra dois Salve, enquanto que no h dois Cervin em Zermatt: "Por que existem dois Salve?" Outro dia pergunta: "Por que o lago de Genebra no vai at Berna?" No sabendo como interpretar estas perguntas estranhas, resolve-mos prop-las a outras crianas da mesma idade, perguntando-lhes o que teriam respondido a seu companheiro. A resposta para eles no apresentou nenhuma dificuldade: h um Grande Salve para os grandes passeios e adultos, e um Pequeno Salve para os pequenos passeios e para as crianas, e o lago de Genebra no chega at Berna porque cada cidade deve ter o seu lago. Em outras palavras, no h acaso na natureza, porque tudo "feito para" os homens e crianas, segundo um plano sbio e estabelecido, no qual o ser humano o centro. , portanto, a "razo de ser" das coisas que procura o "porqu", isto , uma razo causal e finalstica, e exatamente porque preciso que haja uma razo para tudo que a criana fracassa nos fenmenos fortuitos e faz perguntas sobre eles.

    Ein suma, a anlise da maneira como a criana faz suas perguntas coloca em evidncia o carter ainda egocntrico de seu pensamento, neste novo campo da representao do mundo, em oposio ao da organizao do universo prtico. Tudo se passa, ento, como se os esquemas prticos fossem transferidos para o novo plano e a se prolongassem, no apenas em finalis-mo, como acabamos de ver, mas, ainda, sob as formas seguintes.

    O animismo infantil a tendncia a conceber as coisas como vivas e dotadas de inteno. No incio, ser vivo todo objeto que exera uma atividade, sendo esta essencialmente relacionada com a sua utilidade para o

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    homem; a lmpada que acende, o forno que esquenta, a lua que d claridade. Depois, a vida estar destinada aos agentes e corpos que parecem-se mover por si prprios, como os astros e o vento. De outro lado, vida acrescentada a conscincia; no uma conscincia idntica dos homens, mas uma que tem o minimum de saber e intencionalidade, suficientes para as coisas realizarem sua aes e, sobretudo, para se moverem ou dirigirem para fins que lhes so determinados. Assim que as nuvens sabem que se deslocam, pois levam a chuva e, sobretudo, a noite (a noite uma grande nuvem negra que cobre o cu na hora de dormir). Mais tarde, s o movimento espontneo ser dotado de conscincia. Por exemplo, as nuvens no sabem mais "porque o vento as empurra"; mas o vento no sabe as coisas "porque no uma pessoa" como ns, mas "sabe que sopra, porque ele quem sopra". Os astros so especial-mente inteligentes: a lua nos segue em nossos passeios e reaparece quando voltamos para casa. Um surdo-mudo, estudado por W. James, pensava, mesmo, que a lua o denunciava quando ele roubava noite e desenvolveu este tipo de reflexes at se perguntar se ela no tinha relao com sua prpria me, enterrada pouco antes. Quanto s crianas normais, elas so quase unnimes em se acreditarem acompanhadas por ela; este egocentrismo as impede de pensar no que faria a lua diante de pessoas viajando em sentido oposto uma da outra. Depois de sete anos, ao contrrio, esta pergunta suficiente para conduzi-las opinio de que os movimentos da lua so simplesmente aparentes quando seu disco nos segue.

    evidente que tal animismo provm de uma assimilao das coisas prpria atividade, como o finalismo examinado acima. Mas, da mesma maneira que o egocentrismo senso-motor do lactente resulta de uma indife-renciao entre o eu e o mundo exterior, e no de uma hipertrofia narcsica da conscincia do eu, do mesmo modo o animismo e o finalismo exprimem uma confuso ou indissociao entre o mundo interior e o subjetivo e o universo fsico, e no um primado da realidade psquica interna. O pensa-mento para a criana - j que esta anima os corpos inertes e materializa a vida da alma - uma voz, voz essa que est na boca ou "uma pequena voz que est por trs", e esta voz "do vento" (termos antigos anima, psique, rouch etc). Os sonhos so imagens, em geral, um pouco terrveis, enviadas pelas luzes noturnas (a lua, as lmpadas) ou pelo prprio ar, que vm encher o quarto. Ou, um pouco mais tarde, so concebidos como vindo de ns, mas como imagens que esto na cabea quando se est acordado e que saem para se colocar sobre a cama ou no quarto, logo que se dorme. Quando algum se v a si prprio no sonho, porque est duplo; a pessoa est na cama olhando o sonho, mas tambm "no sonho", como duplicata imaterial ou imagem. Na

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  • nossa opinio, no acreditamos que estas possveis semelhanas entre o pensamento da criana e o dos primitivos (veremos mais longe com a fsica grega) sejam devidos a uma hereditariedade qualquer. A permanncia das leis do desenvolvimento mental so suficientes para explicar estas conver-gncias, e como todos os homens, incluindo os "primitivos", comearam sendo crianas, o pensamento infantil precede o de nossos longnquos antepassados, do mesmo modo que precede o nosso.

    Ao finalismo e ao animismo pode-se acrescentar o artificialismo ou a crena de que as coisas foram construdas pelo homem ou por uma atividade divina operando do mesmo modo que a fabricao humana. Para as crianas, isto no tem nada de contraditrio com o animismo, j que, segundo elas, os prprios bebs so ao mesmo tempo construdos e vivos. Todo o universo feito assim: as montanhas "crescem" porque se plantaram pedrinhas depois de t-las fabricado, os lagos foram escavados, e at bem tarde, a criana imagina que as cidades existiam antes de seus lagos etc.

    Em suma, toda a causalidade, desenvolvida na primeira infncia, participa das mesmas caractersticas de: indiferenciao entre o psquico e o fsico e egocentrismo intelectual. As leis naturais acessveis criana so confundidas com as leis morais e o determinismo com a obrigao: os barcos flutuam porque devem flutuar e a lua ilumina somente noite "porque no ela quem manda". O movimento concebido como um estado de transio tendente a uma finalidade que o completa: os riachos correm porque tm um impulso que os conduz para os lagos, impulso esse que no lhes permite voltar para as montanhas. A noo de fora, em especial, d lugar a curiosas constataes; ativa e substancial, isto , ligada a cada corpo e intransmissvel, ela explica, como na fsica de Aristteles, o movimento dos corpos pela unio de um acionamento externo e de uma fora interior, ambos necessrios. Por exemplo: as nuvens so empurradas pelo vento, mas elas prprias produzem um vento quando avanam. Esta explicao, que lembra o clebre esquema peripattico do movimento dos projteis, ampliada pela criana para incluir estes ltimos. Se uma bola no cai imediatamente na terra depois de lanada por uma mo, porque ela impulsionada pelo ar que a mo faz quando se movimenta e pelo ar que a prpria bola faz refluir atrs de si quando se movimenta. Da mesma forma, os riachos so movidos pelo impulso que tomam no conta to com pedrinhas sobre as quais devem passar etc

    No conjunto, v-se o quanto as diversas manifestaes deste pensa-mento em formao so coerentes entre si, no seu pr-logismo. Consistem todas em uma assimilao deformada da realidade prpria atividade. Os movimentos so dirigidos para um fim, porque os prprios movimentos so

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    orientados assim; a fora ativa e substancial, porque tal a fora muscular; a realidade animada e viva; as leis naturais tm obedincia, em suma, tudo modelado sobre o esquema do prprio eu. Estes esquemas de assimilao egocntrica, que se expandem no jogo simblico e dominam assim o pensa-mento verbal, no sero suscetveis de acomodaes mais precisas em certas situaes experimentais? o que veremos, agora, a propsito do desenvol-vimento dos mecanismos intuitivos.

    C. A intuio

    H uma coisa que surpreende no pensamento da criana: o sujeito afirma todo o tempo, sem nunca demonstrar. Note-se, alis, que esta carncia de provas decorre das caractersticas sociais da conduta nesta idade, isto , do egocentrismo concebido como indiferenciao entre o ponto de vista prprio e o dos outros. Na verdade, quando se est frente aos outros que se procuram provas, pois a confiana em si prprio existe antes que os outros tenham ensinado a discutir as objees e antes que se tenha interiorizado tal conduta sob forma desta discusso interior, a que se chama reflexo. Quando fazemos perguntas a crianas de menos de sete anos, sempre nos surpreen-demos pela pobreza das suas provas, pela incapacidade de motivar as afirmaes e at pela dificuldade que sentem em achar por retrospeco a maneira como se conduziram. Do mesmo modo, a criana de quatro a sete anos no sabe definir os conceitos que emprega e se limita a designar os objetos correspondentes ou a definir pelo uso (" para...") sob a dupla influncia do finalismo e da dificuldade de justificao.

    Pode-se objetar, sem dvida, que a criana desta idade no possui ainda um domnio verbal acentuado, como j o possui na ao e manipulao. Isto verdade, mas mesmo neste terreno ser ela mais "lgica"? Distinguiremos dois casos: o da inteligncia propriamente prtica e o do pensamento tenden-do ao conhecimento no campo experimental.

    Existe uma "inteligncia prtica" que desempenha um importante papel entre dois e sete anos, prolongando, de um lado, a inteligncia senso-motora do perodo pr-verbal e preparando, de outro lado, as noes tcnicas que se desenvolvero at a idade adulta. Estudou-se bastante esta inteligncia prtica em formao, por meio de engenhosos dispositivos (alcanar objeti-vos por intermdio de instrumentos variados; varetas, ganchos, interruptores etc.) e efetivamente se constatou que a criana era muito mais adiantada nas aes do que nas palavras. Mas, mesmo neste terreno prtico, encontraram-se todos os tipos de comportamento primitivo, que lembram em termos de ao as condutas pr-lgicas observadas no pensamento do mesmo nvel (A. Rey).

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  • Voltando ao pensamento prprio deste perodo do desenvolvimento, procuraremos analis-lo sob perspectiva no mais verbal, mas sim experi-mental. Como se vai comportar a criana em presena de experincias precisas, com a manipulao de um material, de tal modo que cada afirmao possa ser controlada por um contato direto com os fatos? Raciocinar logicamente ou os esquemas de assimilao vo conservar parte de seu egocentrismo, acomodando-se, tanto quanto so capazes, experincia em curso? A anlise de grande nmero de fatos mostrou-se definitiva. At cerca de sete anos a criana permanece pr-Igica e suplementa a lgica pelo mecanismo da intuio; uma simples interiorizao das percepes e dos movimentos sob a forma de imagens representativas e de "experincias mentais" que prolongam, assim, os esquemas senso-motores sem coordena-o propriamente racional.

    Partamos de um exemplo concreto. Apresenta-se aos sujeitos seis a oito fichas azuis enfileiradas com pequenos intervalos, e pede-se-lhes para pegar outras fichas vermelhas que podero tirar de um monte disposio. Por volta de quatro a cinco anos em mdia, as crianas construiro uma fileira de fichas vermelhas de mesmo tamanho que a das azuis, mas sem se preocuparem com o nmero de elementos nem com a correspondncia termo a termo de cada ficha vermelha com a azul. H, a, uma forma primitiva de intuio, que consiste em avaliar a quantidade somente pelo espao ocupado, isto , pelas qualidades perceptivas globais da coleo focalizada, sem se importar com a anlise das relaes. Por volta de cinco a seis anos, por outro lado, observa-se uma reao muito interessante: a criana coloca uma ficha vermelha em frente a cada ficha azul, concluindo, desta correspondncia termo a termo, uma igualdade das duas colees. No entanto, se afastarmos um pouco as fichas extremas da fileira das vermelhas, de modo a que no fiquem exatamente debaixo das azuis, um pouco ao lado, a criana que viu que no se tirou nem acrescentou nada, avalia que as duas colees no so iguais e afirma que a fileira mais longa contm "mais fichas". Colocando-se, simplesmente, uma das fileiras em um pacote sem tocar na outra, a equiva-lncia das duas colees perde mais ainda. Em suma, h equivalncia enquanto existe correspondncia visual ou tica. A igualdade no se conserva por correspondncia lgica, no havendo, portanto, uma operao racional, mas sim uma simples intuio. Esta articulada e no mais global, perma-necendo ainda intuitiva, isto , submetida ao primado da percepo.

    Em que consistem tais intuies? Dois outros exemplos nos faro compreend-las. 1". Tomam-se trs bolas de cores diferentes A, B e C, que circulam em um tubo. Vendo-as partir na ordem ABC, as crianas esperam

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    encontr-las no outro extremo do tubo na mesma ordem ABC. A intuio , portanto, exata. Mas se se inclina o tubo no sentido de volta? Os mais jovens no prevem a ordem CBA e ficam surpresos ao constatarem-na. Quando conseguem prev-la por uma intuio articulada, imprime-se ento ao tubo um movimento de semi-rotao. Trata-se agora de compreender que a ida dar, da por diante, CBA, e a volta, ABC. Mas eles no entendem, e, alm disso, constatando que ora A, ora C, sai na frente, esperam que aparea depois em primeiro lugar a bola intermediria B. 2". Dois mveis seguem o mesmo trajeto na mesma direo, um ultrapassando o outro. Em qualquer idade, a criana conclui que "vai mais depressa". Mas, se o primeiro percorre no mesmo tempo um caminho mais longo sem alcanar o segundo, ou se andam em sentido inverso, ou ainda, se seguem um em frente do outro duas pistas circulares concntricas, a criana no compreende mais essa desigualdade de rapidez, mesmo se as diferenas dadas entre os caminhos percorridos so bem grandes. A intuio de rapidez reduz-se, ento, da ultrapassagem efetiva e no chega relao do tempo e do espao transpostos.

    Em que consistem, ento, estas intuies elementares da correspon-dncia espacial ou tica, da ordem direta ABC ou ultrapassagem? Elas so apenas esquemas perceptivos ou esquemas de ao, esquemas senso-moto-res, portanto, mas transpostos ou interiorizados como representaes. So imagens ou imitaes da realidade, a meio caminho entre a experincia efetiva e a "experincia mental", no se constituindo ainda em operaes lgicas passveis de serem generalizadas e combinadas entre si.

    E que falta a estas intuies para se tornarem operatrias e se transfor-marem, assim, em sistema lgico? Simplesmente, prolongar a ao j conhe-cida do sujeito nos dois sentidos, de maneira a tornar estas intuies mveis e reversveis. A caracterstica das intuies primrias a rigidez e a irre-versibilidade; elas so comparveis a esquemas perceptivos e a atos habituais globais que no podem ser revertidos. Todo hbito, na verdade, irreversvel: escreve-se da esquerda para a direita, por exemplo, e seria preciso toda uma nova aprendizagem para se conseguir bom resultado da direita para a esquerda (e vice-versa, para os rabes). O mesmo acontece com as percep-es, que seguem o curso das coisas e com os atos da inteligncia senso-mo-tora, que tendem, tambm eles, para um fim e no voltam atrs (a no ser em certos casos especiais). Portanto, normal que o pensamento da criana comece por ser irreversvel, e especialmente, quando ela interioriza percep-es e movimentos sob forma de experincias mentais, estes permanecem pouco mveis e pouco reversveis. A intuio primria apenas um esquema senso-motor transposto como ato do pensamento, herdando-lhe, naturalmen-

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  • te, as caractersticas. Mas estas constituem uma aquisio positiva, bastando prolongar esta ao interiorizada, no sentido da mobilidade reversvel, para transform-la em "operao".

    A intuio articulada avana nesta direo. Enquanto que a intuio primria apenas uma ao global, a intuio articulada a ultrapassa na dupla direo de uma antecipao das consequncias desta ao e de uma reconstitui-o dos estados anteriores. Sem dvida, ela permanece ainda irreversvel. Basta alterar uma correspondncia tica para que a criana no possa arranjar os elementos na sua ordem primitiva no pensamento. suficiente dar meia-volta ao tubo para que a ordem inversa escape ao sujeito etc Mas o incio desta antecipao e reconstituio prepara a reversibilidade, constituindo uma regula-o das intuies iniciais; esta regulao prenuncia as operaes. A intuio articulada , portanto, suscetvel de atingir um nvel de equilbrio mais estvel e mais mvel ao mesmo tempo do que a ao senso-motora sozinha, residindo a o grande progresso do pensamento prprio deste estgio sobre a inteligncia que precede a linguagem. Comparada lgica, a intuio, do ponto de vista do equilbrio, menos estvel, dada a ausncia de reversibilidade; mas, em relao aos atos pr-verbais, representa uma autntica conquista.

    D. A vida afetiva

    f As transformaes da ao provenientes do incio da socializao no tm importncia apenas para a inteligncia e para o pensamento, mas repercutem tambm profundamente na vida afetiva. Como j entrevimos, desde o perodo pr-verbal, existe um estreito paralelismo entre o desenvol-vimento da afetividade e o das funes intelectuais, j que estes so dois aspectos indissociveis de cada ao. Em toda conduta, as motivaes e o dinamismo energtico provm da afetividade, enquanto que as tcnicas e o ajustamento dos meios empregados constituem o aspecto cognitivo (senso-motor ou raciona 1)*N unca h ao puramente intelectual (sentimen-tos mltiplos intervm, por exemplo: na soluo de um problema matemti-co, interesses, valores, impresso de harmonia etc), assim como tambm no h atos que sejam puramente afetivos (o amor supe a compreenso). Sempre e em todo lugar, nas condutas relacionadas tanto a objetos como a pessoas, os dois elementos intervm, porque se implicam um ao outro. Existem apenas espritos que se interessam mais pelas pessoas do que pelas coisas ou abstraes, enquanto que com outros se d o inverso. Isto faz com que os primeiros paream mais sentimentais e os outros mais secos, mas trata-se, apenas, de condutas e sentimentos que implicam necessariamente ao mesmo tempo a inteligncia e a afetividade.

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    No nvel de desenvolvimento que consideramos agora, as trs novida-des afetivas essenciais so o desenvolvimento dos sentimentos* interindivi-duais (afeies, simpatias e antipatias) ligados socializao das aes, a apario de sentimentos morais intuitivos, provenientes das relaes entre adultos e crianas, e as regularizaes de interesses e valores, ligadas s do pensamento intuitivo em geral.

    Comecemos por este terceiro aspecto, que p mais elementar. O interesse o prolongamento das necessidades. a relao entre um objeto e uma necessidade, pois um objeto torna-se interessante na medida em que corresponde a uma necessidade. Assim sendo, o interesse a orientao prpria a todo ato de assimilao mental. Assimilar, mentalmente, incor-porar um objeto atividade do sujeito, e esta relao de incorporao entre o objeto e o eu no outra que o interesse no sentido mais direto do termo ("inter-esse"). Assim sendo, o interesse comea com a vida psquica, pro-priamente dita, e desempenha, em particular, papel essencial no desenvolvi-mento da inteligncia senso-motora. Mas, com o desenvolvimento do pen-samento intuitivo, os interesses se multiplicam e se diferenciam, dando lugar a uma dissociao progressiva entre os mecanismos energticos, que o interesse implica, e os prprios valores que este produz.

    O interesse apresenta-se, como se sabe, sob dois aspectos complemen-tares. De um lado, regulador de energia, como mostrou Claparde. Sua interveno mobiliza as reservas internas de fora, bastando que um trabalho interesse para parecer fcil e para que a fadiga diminua. por isto que, por exemplo, os escolares alcanam um rendimento infinitamente melhor quan-do se apela para seus interesses e quando os conhecimentos propostos correspondem s suas necessidades. Mas, por outro lado, o interesse implica um sistema de valores, que a linguagem corrente designa por "interesses" (em oposio a "interesse") e que se diferenciam, precisamente, no decurso do desenvolvimento mental, determinando finalidades sempre mais comple-xas para a ao. Ora, estes valores dependem de um outro sistema de regulaes, que comanda as regulaes das energias interiores sem delas depender diretamente e que tende a assegurar ou restabelecer o equilbrio do eu, completando sem cessar a atividade pela incorporao de novas foras ou de novos elementos exteriores. assim que, durante a primeira infncia, se notam interesses atravs das palavras, do desenho, das imagens, dos ritmos, de certos exerccios fsicos etc. Todas estas realidades adquirem valor para o sujeito na medida de suas necessidades, estas dependendo do equil-brio mental momentneo e sobretudo das novas incorporaes necessrias sua manuteno.

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    L

  • Aos interesses ou valores relativos prpria atividade, esto ligados de perto os sentimentos de autovalorizao: os famosos "sentimentos de inferioridade ou de superioridade". Todos os sucessos e fracassos da ativida-de se registram em uma espcie de escala permanente de valores, os primeiros elevando as pretenses do sujeito e os segundos abaixando-as com respeito s aes futuras. Da resulta um julgamento de si mesmo para o qual o indivduo conduzido pouco a pouco e que pode ter grandes repercusses sobre todo o desenvolvimento. Certas ansiedades, em particular, resultam de fracassos reais e, sobretudo, imaginrios.

    Mas o sistema constitudo por estes mltiplos valores condiciona sobretudo as relaes afetivas interindividuais. Do mesmo modo que o pensamento intuitivo ou representativo est ligado, graas linguagem e existncia dos signos verbais, s trocas intelectuais entre os indivduos, tambm os sentimentos espontneos de pessoa para pessoa nascem de uma troca, cada vez mais rica, de valores. Desde que se torna possvel a comuni-cao entre a criana e o seu ambiente, um jogo sutil de simpatias e antipatias vai-se desenvolver, completando e diferenciando indefinidamente os senti-mentos elementares j observados no decorrer do estgio precedente. Como regra geral, haver simpatia em relao s pessoas que respondem aos interesses do sujeito e que o valorizam. A simpatia, ento, de um lado supe uma valorizao mtua e, de outro, uma escala de valores comum que permita as trocas. o que a linguagem exprime, dizendo que as pessoas se gostam: "concordam entre si", "tm os mesmos gostos" etc. , portanto, com base nesta escala comum que se efetuam as valorizaes mtuas. Inversa-mente, a antipatia nasce da ausncia de gostos comuns e da escala de valores comuns. Basta observar a criana na escolha de seus primeiros companheiros ou na reao a adultos estranhos famlia, para se poder seguir o desenvol-vimento das valorizaes interindividuais. Quanto ao amor da criana por seus pais, os laos de sangue esto longe de poder explic-lo, se no se considerar esta ntima comunidade de valorizao que faz com que todos os valores das crianas sejam moldados imagem de seu pai e de sua me. Ora, entre os valores interindividuais assim constitudos, existem alguns especial-mente importantes; so os que a criana reserva para aqueles que julga como superiores a si, algumas pessoas mais velhas e seus pais. Um sentimento especial corresponde a estas valorizaes unilaterais: o respeito, que um composto de afeio e temor, estabelecendo este segundo a desigualdade que intervm em tal relao afetiva. O respeito, como Bovet j mostrou, est na origem dos primeiros sentimentos morais. Com efeito, suficiente que os seres respeitados dem aos que os respeitam ordens e sobretudo avisos, para

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    que estas sejam sentidas como obrigatrias e produzam assim o sentimento do dever. A primeira moral da criana a da obedincia e o primeiro critrio do bem durante muito tempo, para os pequenos, a vontade dos pais.1 Ento, os valores morais assim concebidos so valores normativos, no sentido que no so mais determinados por simples regulaes espontneas como as simpatias ou antipatias, mas graas ao respeito, por regras propriamente ditas. Mas, deve-se concluir que, desde a primeira infncia, os sentimentos interindividuais so suscetveis de alcanar o nvel daquilo que chamaremos a seguir de operaes afetivas em comparao com as operaes lgicas? Ou, melhor, os sistemas de valores morais se implicam um ao outro, racio-nalmente, como o caso em uma conscincia moral autnoma? No parece, pois os primeiros sentimentos morais da criana permanecem intuitivos, maneira do pensamento prprio a todo este perodo do desenvolvimento. A moral da primeira infncia fica, com efeito, essencialmente heternoma, isto , dependente de uma vontade exterior, que a dos seres respeitados ou dos pais. interessante, a esse respeito, analisar as valorizaes da criana em um campo moral bem definido, como o caso da mentira. Graas ao mecanismo do respeito unilateral, a criana aceita e reconhece a regra de conduta que impe a veracidade antes de compreender, por si s, o valor da verdade, assim como a natureza da mentira. Por seus hbitos de jogo e imaginao e por toda atitude espontnea de seu pensamento, que afirma sem provas e assimila o real prpria atividade sem se importar com a verdadeira objetividade, a criana levada a deformar a realidade e submet-la a seus desejos. Acontece-lhe, assim, deturpar uma verdade sem se aperceber, constituindo o que se chama a "pseudomentira" das crianas (o Scheinliige de Stern). No entanto, ela aceita a regra de veracidade e reconhece como legtimo que a repreendam ou punam por suas prprias mentiras. Mas, como ela avalia as ltimas? Primeiramente, as crianas afirmam que a mentira no tem nada de "ruim" quando dirigida a companheiros, o que s repreensvel quando em relao aos adultos, j que so estes que a probem. Mas, era seguida, e sobretudo, imaginam que uma mentira tanto pior quando a afirmao falsa se distancia mais da realidade, e isto inde-pendentemente das intenes em jogo. Pede-se, por exemplo, criana para comparar duas mentiras: contar sua me que tirou boa nota na escola quando, na verdade, no havia prestado exames, ou contar, aps ter sido amedrontada por um cachorro, que este era grande como uma vaca. As

    1 Isto i verdadeiro, mesmo se a criana no obedece, de fato, como acontece durante este perodo de resistncia que se observa, muitas vezes, por volta de trs a quatro anos e que os autores alemes designaram por Trotzalter.

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  • crianas compreendem bem que a primeira destas mentiras destinada a obter, indevidamente, uma recompensa, enquanto que a segunda apenas um simples exagero. No entanto, a primeira parece "menos ruim", porque acontece que ela tem boas notas e, sobretudo, porque, a afirmao sendo verossmil, a prpria me poderia ter-se enganado. A segunda "mentira", ao contrrio, pior, e merece castigo mais exemplar, porque "nunca acontece que um cachorro seja to grande". Estas reaes, que parecem to gerais (foram, particularmente, confirmadas h pouco em estudo realizado na Universidade de Louvain), so muito importantes. Mostram o quanto os primeiros valores morais so moldados na regra recebida, graas ao respeito unilateral, e que esta regra tomada ao p da letra e no em sua essncia. Para que os mesmos valores se organizem em um sistema coerente e geral, ser preciso que os sentimentos morais consigam uma certa autonomia, sendo, ento, necessrio que o respeito cesse de ser unilateral e se torne mtuo. em particular quando este sentimento se desenvolve entre compa-nheiros ou iguais, que a mentira a um amigo ser sentida tambm como to "ruim" ou pior ainda que a da criana para o adulto.

    Em suma, interesses, autovalorizaes, valores interindividuais espon-tneos e valores intuitivos parecem ser as principais cristalizaes da vida afetiva prpria a este nvel do desenvolvimento.

    III. A INFNCIA DE SETE A DOZE ANOS

    A idade mdia de sete anos, que coincide com o comeo da escolari-dade da criana, propriamente dita, marca uma modificao decisiva no desenvolvimento mental. Em cada um dos aspectos complexos da vida psquica, quer se trate da inteligncia ou da vida afetiva, das relaes sociais ou da atividade propriamente individual, observa-se o aparecimento de formas de organizaes novas, que completam as construes esboadas no decorrer do perodo precedente, assegurando-lhes um equilbrio mais estvel e que tambm inauguram uma srie ininterrupta de novas construes.

    Seguiremos, para nos guiar neste labirinto, a mesma marcha que anteriormente, partindo da ao global tanto individual como social, anali-sando, em seguida, os aspectos intelectuais e depois afetivos deste desenvol-vimento.

    A. Os progressos da conduta e da socializao

    Quando se visitam as diversas classes em um colgio "ativo", onde dada s crianas a liberdade de trabalhar tanto em grupos como isoladamente e de falar durante o trabalho, fica-se surpreso com a diferena entre os meios

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    escolares superiores a sete anos e as classes inferiores. Nos pequenos, no se consegue distinguir com nitidez a atividade privada da feita em colaborao. As_crianas falam, mas no podemos saber se se escutam. Acontece que vrios sc dediquem ao mesmo trabalho, mas no sabemos se realmente existe ajuda mtua. Observando os maiores, em seguida, fica-se surpreendido por um duplo progresso: concentrao individual, quando o sujeito trabalha sozinho, e colaborao efetiva quando h vida comum. Ora, estes dois aspectos da atividade jnjejejniciam por volta de sete anos so, naverdade, complementares e resultam das mesmas causas. So de tal modo solidrios que, primeira vista, difcil dizer se porque a criana se tornou capaz de uma certa reflexo que consegue coordenar suas aes com as dos outros, ou se o progresso da socializao que faz com que o pensamento seja reforado por interiorizao.

    Do ponto de vista das relaes interindividuais, a criana, depois dos sete anos, torna-se capaz de cooperar, porque no confunde mais seu prprio ponto de vista com o dos outros, dissociando-os mesmo para coorden-los. Isto visvel na linguagem entre crianas. As discusses tornam-se possveis, porque comportam compreenso a respeito dos pontos de vista do^adyersrio e procura de justificaes ou provas para a afirmao prpria. As explicaes mtuas entre crianas se desenvolvem no plano do pensamento e no somente no da ao materialj A linguagem "egocntricaj1 desaparece quase totalmente e os propsitos espontneos da criana testemunham^eTFj^pTia estrutura gramatic^j-a-aecessidade de conexo entre as ideias e de justifica^ o lgica.

    Quanto ao comportamento coletivo das crianas, constata-se depois dos sete anos notvel mudana nas atitudes sociais como, por exemplo, no caso dos jogos com regra. Sabe se uma brincadeira coletiva, como a das bolas de gude, supe um grande e variado nmero de regras, sobre o modo de jogar as bolas, as localizaes, a ordem sucessiva dos lanamentos, os direitos de apropriao no caso de ganhar etc. Ora, trata-se de um jogo que, no nosso pas pelo menos, permanece exclusivamente infantil e termina no fim da escola primria. Todo este corpo de regras, com a jurisprudncia necessria sua aplicao, constitui uma instituio prpria s crianas, mas que se transmite de gerao em gerao com uma fora de conservao surpreen-dente. Na primeira infncia, os jogadores de quatro a seis anos procuram imitar os exemplos dos mais velhos e observam mesmo algumas regras; mas cada um s conhece uma parte delas e durante o jogo no se importa com as regras do vizinho, quando este da mesma idade. Na verdade, cada qual joga sua maneira, sem coordenao nenhuma. Quando se pergunta aos pequenos

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  • quem ganhou no Gm da partida, ficara bastante surpreendidos, pois todo mundo ganha e ganhar significa ter-se divertido bastante. Ao contrrio, os jogadores a partir de sete anos apresentam um duplo progresso. Sem conhecer ainda de coFtodas as regras do jogo asseguram-se, ao menos, da unidade das regras admitidas durante uma mesma partida e se controlam uns aos outros, de modo a manter a igualdade frente a uma lei nica. For outro lado, o termo "ganhar" assume sentido coletivo: ser bem-sucedido depois de uma competio com regras. claro que o reconhecimento da vitria de um jogador sobre os outros, assim como o direito de ganhar as bolas de gude como recompensa, supem discusses, bem orientadas e definitivas.

    Em estreita conexo com os progressos sociais, assiste-se a trans-formaes de ao individual, em que causa e efeitos se confundem. O essencial que a criana se torna suscetvel a um comeo de reflexo. Em vez das condutas impulsivas da primeira infncia, acompanhadas da crena imediata e do egocentrismo intelectual, a criana, a partir de sete ou de oito anos, pensa antes de agir, comeando, assim, a conquista deste processo difcil que a reflexo. Mas uma reflexo apenas uma delibe-rao interior, isto , uma discusso que se tem consigo mesmo, do modo como se agiria com interlocutores ou opositores reais e exteriores. Pode-se ento, por um lado, dizer que a reflexo uma conduta social de discusso interiorizada (como o pensamento que supe uma linguagem interior, portanto interiorizada), de acordo com a lei geral, segundo a qual se acabam por aplicar a si prprio as condutas adquiridas em funo de outros, ou, por outro lado, que a discusso socializada apenas uma reflexo exteriorizada. Na realidade, tal problema, como todos os anlo-gos, leva questo qual nasceu primeiro: a galinha ou o ovo, j que toda conduta humana ao mesmo tempo social e individual.

    O essencial destas constataes que, sob este duplo aspecto, a criana de sete anos comea a^se liberar de seuj^ocertfsrnr^ social e intelectual, tornando-se, ento, capaz de novas coordenaes, que sero da maior impojr-Jncja^ tanto para a inteligncia quanto para a afetividade. Para a inteligncia, trata-se do incio da construo lgica, que constitui, precisamente, o sistema de relaes que permite a coordenao dos pontos de vista entre si. Estes pontos de vista so tanto aqueles que correspondem a indivduos diferentes, como aqueles correspondentes a percepes ou intuies sucessivas do mesmo indivduo. Para a afetividade, o mesmo sistema de coordenaes sociais e individuais produz uma moral de cooperao e de autonomia pessoal, em oposio moral intuitiva de heteronomia caracterstica das

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    crianas. Ora, este novo sistema de valores representa, no campo afetivo, o equivalente da lgica para a inteligncia. Os instrumentos mentais que vo permitir esta dupla coordenao, lgica e moral, so constitudos pela operao, no tocante inteligncia, e pela vontade, no plano afetivo. Como veremos, so duas realidades novas, muito prximas uma da outra, j que resultam de uma mesma inverso ou converso do egocentrismo primitivo.

    B. Os progressos do pensamento

    Quando as formas egocntricas de causalidade e de representao do mundo, ou seja, aquelas moldadas na prpria atividade, comeam a declinar sob a influncia dos fatores que acabamos de ver, aparecem novas formas de explicao, procedentes, em certo sentido, das anteriores, embora corrigin-do-as. surpreendente constatar que, entre as primeiras a aparecer, h algumas semelhantes quelas adoradas pelos gregos, exatamente na poca do declnio das explicaes mitolgicas.

    Uma das formas mais simples destas relaes racionais de causa e efeito a explicao por identificao. Lembremo-nos do animismo e artificialismo misturados, do perodo precedente. No caso da origem dos astros (pergunta estranha de se fazer a uma criana, embora acontea que elas prprias a faam muitas vezes, espontaneamente), estes tipos primitivos de causalidade levam a dizer, por exemplo, que "o sol nasceu porque ns nascemos", e que "ele cresce porque ns crescemos". Ora, com a diminuio deste egocentrismo grosseiro, a criana, embora mantenha a ideia do cresci-mento dos astros, no os considera mais como uma construo humana ou antropomrfica, e, sim, como corpos naturais, cuja formao parece mais clara, primeira vista. Assim que o sol e a lua saram das nuvens, so pedacinhos de nuvem incandescentes que se desenvolveram (e "as luas" se desenvolvem claramente aos nossos olhos!). As prprias nuvens provm da fumaa ou do ar. As pedras so formadas de terra, e esta da gua etc. Finalmente, quando estes corpos no tm mais um crescimento semelhana dos seres vivos, estas filiaes aparecem para a criana no mais como processo de ordem biolgica, mas como transmutaes propriamente ditas. Nota-se, com frequncia, a relao entre estes fatos e a explicao por reduo das matrias umas s outras, em voga na escola de Mileto (embora a "natureza" ouphysis das coisas fosse, para estes filsofos, uma espcie de crescimento, e o seu "hilozosmo" no estivesse longe do animismo infantil).

    Em que consistem estes primeiros tipos de explicao? Devemos admitir que, nas crianas, o animismo d lugar a uma espcie de causalidade, fundada no princpio de identidade, como se este clebre princpio lgico

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  • dominasse a razo, como certos filsofos nos quiseram fazer acreditar? Certamente, h nesses desenvolvimentos a prova de que a assimilao egocntrica (princpio do animismo, finalismo e artificialismo) est em vias de se transformar em assimilao racional, isto , em estruturao da reali-dade pela prpria razo, sendo esta assimilao racional bem mais complexa que uma identificao pura e simples.

    Mas se, em vez de seguir as crianas nas suas perguntas a respeito destas realidades afastadas ou impossveis de manipular, como os astros, as montanhas ou as guas, sobre as quais o pensamento s pode permanecer verbal, se lhe perguntarmos sobre fatos tangveis e palpveis, maiores surpresas nos esto reservadas. Descobre-se que, desde os sete anos, a criana se torna capaz de construir explicaes atomsticas, isto na poca em que comea a saber contar. Continuando com a nossa comparao inicial, lem-bremo-nos de que os gregos inventaram o atomismo, logo depois de terem especulado sobre a transmutao das substncias. Observemos, sobretudo, que o primeiro dos atomistas foi sem dvida Pitgoras, que acreditava na composio dos corpos na base de nmeros