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1 SEMINÁRIO ARQUIDIOCESANO DE SÃO JOSÉ FERNANDO HENRIQUE CARDOSO DA SILVA RIO DE JANEIRO DEZEMBRO/2014

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SEMINÁRIO ARQUIDIOCESANO DE SÃO JOSÉ

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO DA SILVA

RIO DE JANEIRO

DEZEMBRO/2014

Page 2: Introdução à Patrística

2

Sumário

1. INTRODUÇÃO AO PERÍODO PATRÍSTICO ......................................................... 3

1.2. O diálogo entre a filosofia grega e o cristianismo .................................................. 5

1.4. Apresentação dos períodos da patrística ................................................................. 7

3. PADRES APOLOGETAS ............................................................................................. 8

3.1. Apologetas gregos e latinos .................................................................................... 9

3.2. Santo Irineu de Lyon ............................................................................................. 10

3.3. A Escola de Alexandria ........................................................................................ 10

4. PERÍODO ÁUREO ...................................................................................................... 13

4.1. Gregório de Nissa (333 - 395) .............................................................................. 13

4.2. Agostinho de Hipona (354 – 430) ......................................................................... 14

4.3. Dionísio pseudo-areopagita (? Séc. VI) ................................................................ 15

4.4. Jerônimo (~340 - ~410) ........................................................................................ 16

4.5. Máximo o confessor (580 – 662) .......................................................................... 16

5. “DECADÊNCIA” E TRANSIÇÃO PARA O PERÍODO ESCOLÁSTICO ............... 17

5.1. Severino Boécio (475 – 525) ................................................................................ 18

5.2. Gregório Magno (~540 – 604) .............................................................................. 19

5.3. João Damasceno (~650 – 749) .............................................................................. 20

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 20

Page 3: Introdução à Patrística

3

HISTÓRIA DA FILOSOFIA PATRÍSTICA

1. INTRODUÇÃO AO PERÍODO PATRÍSTICO

1.1. O que é Patrística?

Podemos definir como Patrística o período existente entre a morte dos últimos dos

Apóstolos de Jesus Cristo (o Apóstolo João Evangelista, que faleceu cerca do ano 100 d.c.,

ou seja, em torno do século II) e o começo da Idade Média (aproximadamente a partir do

ano 750 d.c.). Neste período, percebemos a ocorrência das últimas manifestações da

filosofia antiga convivendo com as primeiras iniciativas filosóficas praticadas por

pensadores cristãos.

Embora vivendo durante certo tempo com os pensadores cristãos nascentes, a

filosofia pagã, todavia, teve data de fim: o ano de 529 d.c., ano em que o Imperador

Romano Justiniano proibiu aos pagãos qualquer ofício público e, portanto, também a

possibilidade de manter escolas e lecionar1.

Assim, a patrística compreende um período rico, no qual a novidade cristã soube

trazer grandes contribuições à filosofia, sendo considerada como o embrião da filosofia

cristã.

Já que abordamos o tema, vale a pena esclarecer a dois questionamentos

fundamentais:

a. O que é filosofia cristã?

b. O que os Padres da Igreja fizeram e pensaram pode ser considerado “filosofia”?

A busca por respostas a este questionamento fez surgir importantes debates entre

intelectuais, como o famoso ocorrido em 1927 na “Societé Francaise de Philosophie” entre

Bréhier e Gilson. Bréhier, imbuído do pensamento característico da modernidade e

contemporaneidade que chega até nós nos dias atuais, defendia a tese de que não existia

um filosofia tipicamente cristã, restringindo o labor teórico dos Padres e dos medievais ao

nível somente teológico, enquanto que Gilson defendia sim a existência de uma filosofia

cristã.

Assim, qual foi a saída de Gilson para esta problemática? Ele considerou que a

missão de um historiador não é julgar, mas sim buscar entender e respeitar o que os

1 REALE, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia: filosofia pagã antiga. 5ª ed. São Paulo: Paulus,

2011, v. 1, p. 367.

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filósofos anteriores pensavam sobre determinado conceito, pois, como vemos ocorrer em

diversos casos, as palavras podem adquirir sentidos diferentes com o passar dos séculos.

Com isso, Gilson busca justificar o porquê dos autores clássicos cristãos afirmarem que o

que eles faziam era sim filosofia. Quando, por exemplo, Agostinho usa o conceito de

“filosofia cristã”, ele se refere à “sabedoria cristã”, ou seja, a sabedoria dada por Deus pela

via da iluminação.

Assim, podemos dizer que a filosofia cristã é formalmente filosofia na medida em

que suas conclusões partem de premissas que são intrinsecamente racionais. E, ao mesmo

tempo, assumindo a revelação cristã como critério último das verdades filosóficas, pois, a

razão não deve contradizer a fé.

Deste modo, afirmar como Bréhier que todo o pensamento clássico só é teologia

seria “empobrecer” toda a riqueza presenciada pelos fatos históricos, tendo em vista que,

se a filosofia patrística e medieval não fosse nada mais do que teologia, deveríamos esperar

que os pensadores que aceitassem a mesma fé aceitassem automaticamente a mesma

filosofia, o que não e verdade, pois, ao observarmos homens como Duns Scotus, Santo

Tomás de Aquino, Guilherme de Ockham, São Boaventura, Santo Agostinho e muitos

outros que, embora fossem igualmente católicos, ou seja, tinham exatamente a mesma fé,

adotaram posturas filosóficas claramente distintas umas das outras, o que comprova a

presença do conhecimento filosófico no labor destes pensadores.

É importante, também, ressaltar que nem todo filósofo que professa a fé cristã faz

necessariamente uma filosofia cristã, como vemos, por exemplo, no caso de notórios

filósofos como Descartes, que, era católico praticante, contudo, seu pensamento não

coadunava com a filosofia cristã.

Assim, para responder mais objetivamente aos questionamentos levantados acima,

podemos definir a filosofia cristã como a busca em se chegar à verdade em si através de

premissas racionais, assumindo a Revelação bíblica como critério último para estas

mesmas verdades. É possível, também, vermos nos Padres da Igreja a presença sim de uma

filosofia, pois, buscavam sempre mais as argumentações racionais a fim de resolverem

problemas com a doutrina cristã e como suporte para a apologética.

Ao discursarmos acerca do período patrístico, nos colocamos em outra questão: qual

é a diferença entre patrística e patrologia? Por patrística, podemos definir como a filosofia

cristã dos primeiros séculos da era pós-cristã, que compreende o período histórico que vai

do século II ao século VII aproximadamente. Já por Patrologia, consiste no estudo dos

Padres da Igreja, grandes responsáveis por fundamentar a doutrina cristã.

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Afinal, embora tenhamos falado tanto deles, mas, quem são os Padres da Igreja e por

que recebem este título?

Padres da Igreja são os intelectuais cristãos dos primeiros séculos responsáveis por

estabelecer os fundamentos da fé cristã recebida através dos Apóstolos e do Evangelho de

Cristo. Sua importância na história do cristianismo e da filosofia cristã não deve ser

desconsiderada. Os Padres, embora tenham origens e pensamentos das mais diversas

ordens, devem possuir atributos em comum para obterem este “status”. Tais características

(ou exigências) são:

- Antiguidade (devem ter vivido no máximo até o século VIII d.c.)

- Santidade de vida

- Aprovação da Igreja

- Ortodoxia doutrinária

Atualmente não há uma lista uniforme contendo o nome de todos os Padres, contudo,

podemos notar a presença de figuras notórias como Irineu de Lião, Clemente de

Alexandria, Orígenes, Agostinho de Hipona, Gregório Magno, dentre outros.

Para a grande maioria dos Padres, o conhecimento da filosofia e da cultura grega

foram fundamentais para a elaboração do arcabouço teológico do cristianismo, pois, como

havíamos dito acima, a filosofia grega e a patrística conviveram juntas durante séculos,

sendo frequente o encontro e o diálogo entre elas, tema do próximo tópico.

1.2.O diálogo entre a filosofia grega e o cristianismo

Considerar o período que estudamos como Filosofia cristã já é, por si só, um convite

para percebermos o quão necessário é realizar pontes entre estas duas áreas, pois, como

sabemos, o contexto do cristianismo nascente já era o de uma sociedade helênica, onde a

presença da filosofia e da literatura grega era imprescindível.

A filosofia pagã passava, neste período, por uma etapa conhecida por sua

“decadência”, que foi o período helênico, onde, após o apogeu dos grandes filósofos como

Sócrates, Platão e Aristóteles parece não ter sido suficiente para a construção de uma

humanidade perfeita, começa a reinar um clima de insegurança nos grandes sistemas que

visavam uma “política” perfeita (tal clima era propiciado, sobretudo, com a tomada da

Grécia pelo Império Macedônio). Deste modo, no helenismo o foco do saber estava

centrado no indivíduo e não mais na pólis, como era em Atenas. Assim, a ética passa a

exercer um papel mais preponderante do que a política.

Movidos então pelos ideais de autarquia (autonomia, independência) e ataraxia

(ausência de perturbações na alma), surgiram uma série de escolas filosóficas que

buscavam a solução para a “crise” da realidade humana, como os cínicos, os epicuristas, os

estoicos, os céticos, e os neo-platônicos.

Page 6: Introdução à Patrística

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No meio destas correntes filosóficas que efervesciam a civilização ocidental, surge

algo que revolucionaria os rumos da humanidade, pois tratava a respeito exatamente da

busca de um sentido para a vida humana: o cristianismo. A mensagem de Jesus Cristo foi

responsável por uma verdadeira revolução nos valores morais e religiosos, pois a relação

com o transcendente, com o divino, tomara proporções singulares, tendo em vista que o

próprio Deus tornou-se homem por amor aos mesmos homens. Assim, com o testemunho

cada vez mais incisivo dos apóstolos e dos demais cristãos, que eram capazes até mesmo

de sacrificar suas vidas pelo evangelho, as escolas pagãs passaram a perder espaço para o

crescimento cada vez maior das comunidades cristãs. Assim, inúmeros foram aqueles que

outrora buscavam a resposta de seus questionamentos na filosofia e que, após entrarem em

contato com o cristianismo, converteram-se e viveram intensamente pelo evangelho.

Muitos Padres podem ser tido como exemplo, como é o caso de Justino, Panteno

(considerado por muitos o fundador da Escola Catequética de Alexandria), Pseudo-

Dionísio Areopagita, dentre outros.

Por serem então realidades tão influentes, helenismo e cristianismo eram realidades,

por vezes, indissociáveis. Podemos até mesmo afirmar que o cristianismo nascente só foi

tão amplamente divulgado graças ao contexto helênico que foi desenvolvido, tendo em

vista que muitos de seus elementos de evangelização e de apologética são recursos

tipicamente gregos. Tais sinais são claros: o fato de todo o novo testamento ter sido escrito

em grego e os escritos em forma de epístolas, que eram tipicamente gregos, são exemplos

de um claro diálogo existente entre o helenismo e o cristianismo.

1.3. A falsa e a verdadeira gnose

Um termo frequentemente usado no período patrístico é a “gnose”, que foi, ao longo

dos séculos, interpretado das mais diversas formas, abrangendo diversas correntes de

pensamentos de ordem filosófico-religiosas.

O referido termo significa literalmente “conhecimento”, “sabedoria”. Sua aplicação

foi utilizada com mais frequência para se referir a uma corrente de pensadores que

buscavam explicações filosóficas para a fé cristã nascente. A estes pensadores foram dados

o nome de “gnósticos”. Seus ensinamentos, todavia, foi considerada heterodoxa à tradição

da Igreja, não podendo ser admitidas na doutrina cristã.

No entanto, alguns estudiosos mais contemporâneos defendem que deve ser feita

uma distinção entre “gnose” e “gnosticismo”, ressaltando que o primeiro pode ser utilizado

para referir ao esforço louvável e correto dos Padres da Igreja em buscarem o suporte

racional da fé revelada, enquanto que o segundo designa propriamente as seitas gnósticas

consideradas hereges.

A respeito do movimento gnóstico, tal movimento propõe uma sabedoria humana

sobre Deus que independe da mediação eclesiástica e da graça. Assim, estes acreditam que

o homem pode ser salvo graças ao elemento divino que há nele, ou seja, a centelha divina

identificada ora com o espírito, ora com a razão.

É interessante notar que o gnosticismo não foi um movimento popular, mas

aristocrático, cultivado por pessoas refinadas e pertencentes a seletas camadas da

sociedade. Seus líderes, no entanto, buscaram, antes de qualquer coisa, uma apropriação do

cristianismo para proveito próprio. Era a pretensão de um grupo seleto em dar ao

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cristianismo uma forma filosófica, utilizando de termos que não eram comuns nas

pregações dos primeiros tempos. Todavia, seu teor de “mistério” e de seletivismo

aproximava-o mais do paganismo do que do cristianismo.

Dentre as mais diversas seitas gnósticas, podemos identificar as seguintes como

principais:

a. A gnose samaritana de Simão o mago

b. A gnose siríaca de Cerdão e Marcião

c. A gnose de Alexandria de Basílides

d. A gnose itálica de Valentim

e. A gnose persa de Manes

Embora, como vimos, cada movimento gnóstico apresente sua característica de

própria, podemos ressaltar pontos em comum a todas as correntes gnósticas:

I. Há um único Deus sumamente bom e transcendente a todo o universo

II. Há uma série de seres intermediários entre Deus e o universo criado

III. O mal no mundo é identificado ora com a matéria ora com a liberdade

IV. O homem é composto pelo menos de 2 elementos ou princípios: o corpo e o

espírito

V. Do ponto de vista moral o homem gnóstico é sempre virtuoso graças à sua

ascese

VI. Jesus, o Cristo, foi gnóstico e pela sua gnose nos mostrou o caminho de

salvação.

Não obstante presenciemos a existência destas seitas gnósticas cujos pensamentos

eram desvios à sã doutrina cristã, podemos observar também a existência de uma gnose

verdadeira, capaz de discernir autenticamente como a filosofia e a cultura pagã poderiam

servir de instrumental para a fé revelada, formando assim veículos para um importante

diálogo entre fé e razão. Clemente de Alexandria foi um dos Padres que mais buscou

ressaltar a importância do cristão gnóstico, ou seja, aquele capaz de unir o conhecimento

especulativo e racional com sua vivência de fé.

1.4. Apresentação dos períodos da patrística

É importante considerar que os períodos da patrísticas não podem ser separados de

maneira absolutamente sistemática, de forma que as separações fiquem absolutamente

definidas. Todavia, a título pedagógico, é possível nos referirmos ao período patrístico

através de quatro momentos: Padres apostólicos; Padres apologetas; Período áureo; e

“Decadência”.

Além da referida divisão, temos de levar em consideração que o saber teológico

deste período foi amplamente desenvolvido tanto no ocidente quanto no oriente, também

entre os denominados Padres gregos e Padres latinos.

Portanto, é a referida divisão que será a adotada neste curso. Ao acompanharmos

tais fases, perceberemos o quão maduro ira se tornar progressivamente o labor realizado

pelos Padres em elaborar uma verdadeira doutrina capaz de sintetizar a sabedoria grega

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com a novidade da mensagem evangélica, que é, em última análise, o grande motor destes

autores, que buscavam sempre a compreensão mais madura da Revelação divina.

2. PADRES APOSTÓLICOS

Logo no início do cristianismo, a mensagem de Cristo fora transmitida em larga

escala sob o patrocínio dos apóstolos, que arduamente dedicaram-se ao serviço da

evangelização. Neste contexto, podemos dizer que muito se converteram através do

contato direto com estes apóstolos e pessoas das mais diversas culturas e classes sociais.

Àqueles cristãos de maior cultura e que obtiveram o contato direto com os discípulos de

Cristo foram denominados Padres apostólicos.

Seus escritos são revestidos de auto teor exortativo e moral, pois buscavam a

manutenção da ortodoxia cristã nas comunidades primitivas, sendo assim, seus escritos

classificados como uma espécie de literatura pastoral. Aderiram a esta metodologia porque,

mesmo no cristianismo nascente, em torno dos séculos I e II d.c. já é possível ver também

o surgimento das primeiras heresias (como o ebionismo, o marcionismo e o gnosticismo),

onde o reconhecimento da humanidade e da divindade de Cristo parece ser o grande

divisor de águas neste período.

Dentre estes padres, podemos destacar figuras como Clemente Romano (que foi o

terceiro papa), Santo Inácio de Antioquia (que ao que nos conta foi discípulo de São João

evangelista, Policarpo de Esmirna, Pseudo-Barnabé, Hermas (autor do Pastor de Hermas) e

Papias de Hierápolis. Algumas obras notórias deste período, mas de autoria desconhecida,

como a Didaké (conhecida como o primeiro Catecismo da Igreja) e a Epístola de Barnabé

são de um valor extraordinário para os cristãos, sobretudo em seu valor catequético,

embora sejam pouco desprovidos de recursos filosóficos e teológicos especulativos.

3. PADRES APOLOGETAS

No decorrer dos séculos o embate entre cristãos ortodoxos e hereges intensificava-

se cada vez mais, bem como as perseguições realizadas pelos imperadores romanos,

resultando, assim, em um maior número de escrito por parte dos Padres com o objetivo de

refutar de forma mais veemente as heresias, com argumentos que, posteriormente, serão o

alicerce da Teologia cristã. Neste contexto, que inicia-se no século II d.c. surgem os

denominados Padres apologetas, caracterizados por serem homens de elevada cultura que,

admirados pelo evangelho e pelo testemunho da vida cristã, se converteram do paganismo

para o cristianismo. Desta forma, seus escritos também não tinham como público apenas os

cristãos das comunidades primitivas, mas também se destinava ao mundo exterior, à corte

imperial, buscando, assim, um diálogo com a cultura e a filosofia da época.

A literatura empregada pelos Padres deste período é em tom eminentemente

pedagógico e refutativo, com o intuito de mostrar claramente o pensamento herege com

seus respectivos erros para, posteriormente, mostrar a doutrina da Igreja. Outro intuito dos

Padres apologistas é buscar recursos para defender a fé cristã através de argumentos

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racionais contra a perseguição do Império Romano, que perseguiam os cristãos com o

pretexto de propagarem o ateísmo, a impiedade e a violência pública. Neste sentido, muitos

foram os esforços para se “obter dos imperadores romanos o reconhecimento do direito

legal dos cristãos à existência num império oficialmente pagão”2, ainda que muitos destes

Padres tenham sofrido diretamente com o martírio e outras formas de repreensão por parte

do Império. Apenas no ano de 313 com o Edito de Milão os cristãos obtiveram, enfim, a

liberdade de culto, propiciando, deste modo, maior desenvolvimento do pensamento

teológico. Todavia, tal liberdade só foi alcançada graças aos incessantes esforços dos

Padres dos primeiros séculos que, ainda sob a severa perseguição, zelaram por defenderem

arduamente a fé cristã.

3.1. Apologetas gregos e latinos

Neste contexto, podemos observar uma divisão dos Padres em dois principais

grupos: os Padres gregos e os Padres latinos. Dentre os gregos, temos figuras importantes

como São Justino, Taciano e Atenágoras e dentre os latinos podemos identificar Minúcio

Félix e Tertuliano. Um importante distinção entre estes Padres surgiu acerca da posição

destes diante da sabedoria mundana ( como a filosofia grega). Para os gregos, sobretudo

para Justino, a filosofia contém verdades que são consideradas como que “sementes” de

Cristo, portanto, ainda que incompleta e imperfeita, contém traços que podem ser

identificados com a doutrina cristã. Não obstante, para os Padres latinos, sobretudo para

Tertuliano, toda a sabedoria mundana é obra do pecado, é essencialmente má e deve ser

rejeitada por aquele que se converteu ao cristianismo. A relação entre fé e filosofia foi,

deste modo, uma das questões mais importantes surgidas neste período.

Dentre os gregos, São Justino foi, sem dúvida, o mais notório. Nascido em Flávia

Neápolis, na Palestina e de pais pagãos, Justino converteu-se ao cristianismo antes do ano

132 e foi martirizado em Roma, em torno de 165, sob o prefeito Junius Rusticus. Entre

seus escritos que chegaram até nós, destacam-se a Primeira Apologia, endereçada ao

imperador Adriano, e também uma Segunda Apologia, endereçada, desta vez, ao

imperador Marco Aurélio, além de seu Diálogo com Trífon.

A vida de Justino foi uma constante busca pela verdade, na qual ele

incessantemente buscou. Por primeiro, recorreu à filosofia, tendo contato com o

estoicismo, o aristotelismo e o pitagorismo. Todavia, nenhuma destas escolas lhe deu as

respostas que tanto pesquisava. Recorreu, por último, ao platonismo, onde, por um

instante, pensou ter encontrando a grande verdade, através da contemplação das ideias,

contudo, aos poucos começou a perceber que estava sendo insensato ao tentar ver Deus

através da filosofia platônica, pois esta carecia da verdade.

Apenas ao entrar em contato com o Evangelho Justino encontrou a fonte que

saciara sua sede pelo verdadeiro saber, pois percebeu que é apenas em Cristo que a verdade

faz-se plena, tendo em vista que Ele é o Logos, ou seja, a “sabedoria” de Deus.

No que tange respeito aos padres latinos, existe uma característica em comum entre

boa parte deles: o pouco crédito e, por vezes, a hostilidade, para com a filosofia grega.

2GILSON, Étienne. A filosofia na idade média. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 2.

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Minúcio Félix, advogado romano convertido ao cristianismo, era categoricamente opositor

dos filósofos gregos, a tal ponto que, sobre eles escreve:

“Nós não sabemos o que fazer coma teoria dos filósofos; sabemos muito bem que são

mestres de corrupção, corruptos eles próprios, prepotentes e, além do mais, tão descarados

que estão sempre a clamar contra aqueles vícios nos quais eles próprios se afundaram3”.

Outro Padre latino, Tertuliano, também teve atitude negativa ante a filosofia grega.

Afirmou que “Atenas e Jerusalém nada têm em comum, como também a Academia e a

Igreja”. Deste modo, fé e razão jamais poderiam caminhar juntas.

Contudo, ainda que dentre os Padres latinos haja este repúdio à filosofia, é dentre

eles que sairá o maior dentre todos os filósofos cristãos do período patrístico: Agostinho de

Hipona, figura ápice do pensamento filosófico-cristão dos primeiros séculos e um dos

Padres mais influentes de sua posteridade.

3.2. Santo Irineu de Lyon

Irineu de Lyon, nascido na Ásia Menor por volta do ano de 140 e foi uma das

figuras mais influente dos apologistas dos primeiros séculos. Sua obra principal é o Contra

Heresias (Adversus haereses), que visava responder a todos os erros gnósticos, sobretudo

aos de Marcião e Valentim, e visava também expor positivamente a doutrina cristã,

realizando importantes apontamentos a respeito da relação entre fé e razão, como vemos

neste trecho de sua obra:

“O fato de que alguns, de acordo com a sua inteligência, possam saber mais ou menos, não

justifica que possam mudar o objeto da fé, inventando outro Deus diferente do artífice e

criador e mantenedor do Universo, como se Ele não bastasse; ou até mesmo inventando

outro Cristo ou outro Unigênito. A diferença (entre os que sabem mais e os que sabem

menos) é que (os primeiros) conseguem penetrar no que foi dito em parábolas, e relacioná-

las com o conteúdo da fé; mostrar, através das suas etapas, a ação e a economia de Deus

para com a humanidade; declarar como e por que esse Deus magnânimo (...) fez muitos

pactos com a humanidade; e ensinar qual é o caráter de cada um desses pactos.” (AH I, 10,

3)

Aqui, o que Irineu pretende defender é uma razão aliada e fundamentada na fé, que

vai contra aqueles que buscavam bases racionais autônomas e, por vezes, contradizem a

revelação. Assim, Irineu, decidindo guiar-se em direção oposta ao dos movimentos

gnósticos, que colocava a razão sobreposta a fé, defendeu que o uso da razão e louvável e

válido, contudo, deve ser limitado fundamentalmente a investigar os mistérios revelados

por Deus, sendo, deste modo, subserviente à fé.

3.3. A Escola de Alexandria

A cidade de Alexandria era conhecida nos primeiros séculos do cristianismo

como um importante ponto de encontro das mais diversas culturas, crenças e

filosofias dos países do Mediterrâneo, ou seja, egípcias, gregas e hebraicas. Lá,

nasceu um primeiro filósofo judeu, denominado Filon de Alexandria, o primeiro a

3 Reale, p. 72.

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11

aproximar o Timeu de Platão do Gênesis. Seus escritos, redigidos em gregos, eram

destinados não aos pagãos a fim de convertê-lo, mas sim, aos seus compatriotas

judeus de grande cultura.

Neste mesmo cenário, surgira também uma comunidade cristã, cuja origem

nos é desconhecida, mas, que parece ter sido fundada por um estoico siciliano

convertido ao cristianismo já em idade madura, denominado Panteno, que, contudo,

nada nos deixou por escrito. Seus ensinamentos, todavia, foram recolhidos e

preservados por um jovem discípulo que fora convertido graças a seu testemunho.

Tal jovem era Clemente de Alexandria que, após a morte de Panteno, sucedeu-lhe

na direção da Escola Catequética de Alexandria e traçou nela importantes

elementos para propiciar o mais enriquecimento intelectual e espiritual para os

membros da referida comunidade. Seu sucessor e discípulo, Orígenes, levou a

Escola Catequética a seu máximo esplendor, investindo prodigamente no ensino da

exegese alegórica das Escrituras. Assim, dentre as figuras pertencentes ao

cristianismo em Alexandria, vale a pena determos em Clemente e Orígenes.

Tito Flávio Clemente, ou Clemente de Alexandria, nascido no ano de 150

d.c. em Atenas, buscou incessantemente na filosofia o caminho para a verdade, que

encontrou apenas no cristianismo que lhe foi anunciado por meio de Panteno,

tornando-se, então, seu seguidor e sucessor. Todavia, viu-se obrigado a abandonar a

Escola devido às perseguições do Imperador Séptimo Severo, que o fez fugir para a

Capadócia e por lá falecer em torno do ano 215..

Deixou-nos alguns escritos, dentre os quais três são os principais: Ptrotrépico ou

Exortação aos gregos, O pedagogo e Strômatas. Nesta trilogia, Clemente pretende

mostrar que Deus, através de seu divino Logos (que é Cristo) educa os homens

pedagogicamente desde seu estado de ignorância até à maturidade na fé, através de

um processo que perpassa a exortação, a educação e o ensino, cujo maior objetivo é

fazer com que o cristão atinja um grau superior de conhecimento intelectual e

espiritual que lhe é denominado cristão gnose.

Seus escritos, assim, são basilares para a formação de uma filosofia e uma

pedagogia cristã, visto que observa de forma positiva o uso da filosofia como

propedêutica a fé, pois os filósofos perceberam, ainda que em feixes, sementes da

verdade, que é unicamente provinda do Logos. Deste modo, fé e filosofia não se

opõem, mas complementam-se mutuamente. Segundo Saranyana, Clemente

avançou mais do que Justino, na medida em que propôs que a filosofia era para o

gregos o que o Antigo Testamento foi para os judeus: propedêuticas para a

recepção da plena verdade a vir com Cristo, Logos encarnado.

Orígenes, sem dúvida, é a figura mais conhecida da Escola Alexandrina,

tendo em vista que dedicou inúmeros escritos ao estudo das Escrituras. Ao

contrário de Clemente e Panteno, não foi um convertido do paganismo, tendo em

vista que provinha de família cristã, sendo seu pai, inclusive, morto como mártir.

Neste sentido, a filosofia ocupou dentre seus escritos um local secundário, contudo,

não insignificante, tendo em vista que muito usou de conhecimentos filosóficos

para a apologética, além de ter assistido as aulas de Amônio Sacas, criador do

neoplatonismo e mestre de Plotino.

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12

Sua obra denominada Contra Celso é, sem dúvida, uma das maiores de

apologética cristã. Seu objetivo era refutar o Discurso verídico, do filósofo pagão

Celso, dirigido contra os cristãos.

No entanto, destacam-se outras obras de grande importância como as

Exaplas (obra que procura estabelecer os textos do AT em várias línguas, todavia,

encontra-se incompleta) e o Tratado sobre os princípios (coletânea acerca dos mais

diversos assuntos sobre a dogmática cristã, como a Trindade, a bondade e a justiça

divina, o fim dos tempos, a relação corpo e alma, dentre outros).

Orígenes não fizera questão de ser filósofo, ainda que soubesse usar com

maestria os mais diversos recursos provenientes da filosofia helênica. Não obstante,

sua prioridade foi a exegese bíblica, teme este no qual se debruçou profundamente,

resultando em preciosos escritos, derivados de uma hermenêutica de caráter

atropológico e eclesiológico. Queremos dizer, assim, que Orígenes realiza uma

exegese bíblica baseada em três momentos:

a. Leitura literal: limitada à letra, pertencente ao simples cristão, que aceita o

relato das Escrituras tendo por base as testemunhas.

b. Leitura Alegórico-psíquica: Mais voltada à alma, é pertencente ao cristão

gnóstico, que, das Escrituras, busca retirar ensinamentos para sua conduta de

vida, ou seja, lhe atribui valor moral

c. Leitura Alegórico-pneumática: pertencente à dimensão do espírito, é destinado

ao cristão perfeito, que consegue observar as Escrituras de maneira mais plena,

captando dela a verdade espiritual, ou seja, as verdades acerca da salvação

humana.

Um exemplo clássico de aplicação da leitura pneumática é a realizada por

Agostinho acerca da parábola do bom samaritano, na qual entendemos o homem

maltrapilho como sendo a figura do pecador, Cristo como sendo o samaritano que

quer ser próximo, a hospedaria é a Igreja, o atendente da hospedaria é a figura do

apóstolo e os dois denários são o duplo mandamento.

No que diz respeito à sua teologia, Orígenes nos deixa igualmente um

material vastíssimo, mas damos destaque à sua teoria do “Apocatástase”, na qual

ele defendia a salvação universal no fim dos tempos, inclusive a salvação do

demônio, tendo como premissa básica a infinita misericórdia divina. Todavia, é

uma teoria que incorre em erros, tendo em vista que a salvação só é possível tendo

em vista a liberdade por parte da pessoa, o que não ocorre com o demônio, cujas

suas decisões impossibilitam a abertura à misericórdia divina. Tal seria possível

apenas se forçada, o que contradiz o livre-arbítrio, bem como a justiça divina.

Todavia, ainda que esteja sujeito a interpretações duvidosas, o pensamento

de Orígenes muito influenciou e influencia a doutrina cristã, sendo importante todo

seu esforço filosófico e teológico como um precioso legado para a apologética

cristã.

Page 13: Introdução à Patrística

13

4. PERÍODO ÁUREO

Ao denominar este período de “Período áureo”, não estamos por

desconsiderar todos avanços e conquistas realizados pelos Padres predecessores,

mas sim, porque é marcada por uma época de grande labor filosófico-teológico.

Neste sentido, nos propusemos a destacar alguns pensadores que tornaram-se

notórios neste período, a saber: Gregório de Nissa, Agostinho de Hipona, Dionísio

pseudo-areopagita, Jerônimo e Máximo o confessor.

4.1. Gregório de Nissa (333 - 395)

A Gregório de Nissa pode ser atribuída a importância de realizar uma

verdadeira recuperação da herança grega com expressiva consistência e

consciência. Sendo parte dos Padres da Capadócia4, soube estabelecer, assim como

fizeram Clemente e Orígenes, uma feliz união entre helenismo e cristianismo, tendo

sempre, como se estabelece nos princípios da filosofia cristã, a Revelação como

critério último de verdade.

Sua grande obra teológica foi o Grande discurso catequético pois representa a

primeira síntese orgânica dos dogmas cristãos, amplamente fundamentada e muito

bem construída. Dentre os temas abordados por nosso autor, é importante ressaltar

três: sobre a realidade inteligível e o mundo sensível; sobre a doutrina do homem e

sobre a ascensão a Deus.

Sob inspiração platônica, Gregório distingue a realidade em mundo inteligível e

mundo sensível. Contudo, sob a ótica neoplatônica, o mundo sensível é quase

esvaziado de sua materialidade, sendo concebido como produto de qualidades e

forças incorpóreas, ou seja, a natureza corporal só é, pois procede da natureza

inteligível.

A respeito da natureza humana, Gregório faz uma observação interessante.

Critica a visão dos gregos de que o homem seria um “microcosmo”, pois, para ele,

esta é uma expressão insuficiente para expressar o que seria o homem. Para

Gregório o homem é muito mais do que isso, tendo em vista que, enquanto

microcosmo, ele ainda poderia se identificar com outros seres, tais como os animais

irracionais. Para nosso autor, a grandeza do homem consiste no fato de ser à

imagem e semelhança do Criador.

Também sob inspiração neoplatônica, Gregório vê na ascensão a Deus a

remoção de tudo aquilo que nos afasta do divino. Assim, a alma mais se aproxima

de Deus na medida em que se liberta da escravidão do pecado e se torna imune de

toda impureza. Deste modo, para o homem ascender à contemplação divina, faz-se

necessário a purificação da alma.

4 São Padres da Igreja que viveram em trono do século IV, marcados pelo estilo de vida monástico. Tais

Padres foram: Basílio de Cesareia, Gregório de Nissa e Pedro de Sebaste. Tais pensadores foram notórios

para a definição de dogmas trinitários finalizados no Primeiro Concílio de Constantinopla em 381.

Page 14: Introdução à Patrística

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4.2. Agostinho de Hipona (354 – 430)

Como vemos anteriormente, se Justino e Clemente de Alexandria deram os

primeiros passos para o diálogo para com a filosofia, Santo Agostinho, por fim,

estabeleceu o primeiro grande sistema de filosofia cristã. Tal esforço, no

entanto, é fruto direto de sua própria vida, que foi uma intensa busca pela

verdade.

Nascido em Tagaste, no norte da África, no ano de 354, de pai pagão e mãe

cristã, além de possuidor de uma singular inteligência, iniciou seus estudos em

retórica deixou-se influenciar em um primeiro momento por Cícero e

interpretava as Escrituras sob a influência do dualismo maniqueísta, ou seja, da

existência de dois princípios supremos: Deus e o mal, que travam tenazmente

uma luta pelo domínio do universo. Tal explicação era sua justificativa para a

existência do mal no mundo.

Com o passar dos tempos, procurou adquirir melhor formação cultural e

filosófica, debruçando-se, assim, nos estudos de autores clássicos latinos e

gregos, o que levou-o a, gradativamente, afastar-se do maniqueísmo e da

hostilidade ao cristianismo, embora, acabou por cair em um ceticismo.

Todavia, tal ceticismo foi superado graças ao seu contato com as obras de

Plotino, o que o fez encaminhar-se para a linha neoplatônica e,

providencialmente, nesta mesma fase de sua vida conheceu o notório bispo

Ambrósio de Milão, conhecido pela fama de seus sermões e, deixando-se

envolver pelo seu discurso, começou a compreender corretamente aquilo que

ele entendera erroneamente pelos maniqueus, percebendo, por exemplo, que a

causa do mal não se dá no mundo por um princípio dualista, mas sim, pelo mau

uso da liberdade.

Desta forma, através das catequeses de Santo Ambrósio, Agostinho

finalmente se convertera à fé cristã, sobretudo devido a um acontecimento

místico narrado por ele próprio nas suas Confissões, denominado de Tole lege

(Toma e lê). Assim, aceitou receber o batismo aos 33 anos de idade.

Boa parte de suas obras de maior teor filosófico são de seu período inicial

de sua conversão, ou seja, de seu período de catecumenato até sua ordenação

sacerdotal. Dentre suas obras deste período, destacam-se: Contra os

acadêmicos (refutação ao ceticismo); Vida Feliz (abordagem cristã do tema

platônico da felicidade); Livre-arbítrio (sobre a liberdade e a origem do mal),

dentre outras. Quatro anos após sua ordenação sacerdotal, foi sagrado bispo de

Hipona e, a partir de então, suas obras passaram a conter um teor mais

teológico, e, neste período, surgem obras de suma importância para o estudo de

nosso autor, como: Confissões, Sobre a Santíssima Trindade, A cidade de Deus.

Agostinho veio a falecer em Hipona, no ano de 430.

Sem dúvida alguma, muito tem de se falar acerca do pensamento filosófico

e teológico de Santo Agostinho, todavia, o que desejamos ressaltar é o lugar

central que ocupa não apenas no período patrístico como também em toda a

Page 15: Introdução à Patrística

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história da filosofia cristã. Sua influência foi tão grande que dele derivou toda

uma corrente de pensamento, denominada agostinismo, que engloba os mais

diversos movimentos doutrinais, tanto de inspiração cristã, como de caráter

imanentista. Algumas ideias comuns dentre os agostinistas são: o voluntarismo,

a teoria da iluminação, o hilemorfismo universal, a união da filosofia e da

teologia em uma única sabedoria, dentre outras. Todavia, é de grande

importância ressaltar que nem todas as teorias ditas “agostinistas” procedem

diretamente do pensamento de Agostinho, mas sim, de uma nova forma de

olhar de pensadores leitores do Doutor da Graça. Alguns pensadores

importantes de corrente agostinista foram: São Boaventura, Duns Scotus,

Guilherme de Ockham, Jansênio, Antônio Rosmini, dentre outros, uns mais

fiéis, outros menos fiéis a autêntica doutrina cristã.

4.3. Dionísio pseudo-areopagita (? Séc. VI)

Entre os séculos V e VI viveu um autor que se denominava Pseudo-Dionísio

Areopagita, que muitos acreditavam ser o mesmo Dionísio que São Paulo

converteu com seu discurso no Areópago. Sob seu nome, chegou-nos uma

variedade de escritos (como a Hierarquia celeste, Hierarqia eclesiástica,

Nomes divinos, Teologia mística e cartas) que teve grande repercussão na Idade

Média, influenciando o pensamento e o imaginário de grandes autores como

Dante Alighieri, sobretudo em sua estrutura hierárquica do Paraíso em sua

Divina Comédia.

O que Dionísio propunha era a releitura do neoplatonismo em termos

cristãos, sobretudo o platonismo tal como se configurara na formulação de

Proclo5, contudo, um ponto-chave de seu pensamento é a formulação da

denominada “teologia apofática” ou “teologia negativa”, que afirma que Deus,

Princípio primeiro e supremo do Uno está acima de tudo, absolutamente

transcendente e separado de todas as outras realidades que dele derivam. Isso

implica que qualquer nome que se possa atribuir a Deus é fortemente

inadequado: é muito melhor dizer aquilo que Deus não é do que aquilo que Ele

5 Proclo Lício de Constantinopla (412-485) foi filósofo e matemático nascido em Constantinopla,

considerado a última voz original da antigüidade pagã, ou seja, o último grande representante do platonismo

e neoplatonismo pagão. Estudou em Alexandria com o peripatético Olimpiodoro, emigrou para Atenas, onde

foi discípulo de Siriano de Alexandria e onde se tornou chefe da escola neoplatônica e finalmente escolarca

da Academia passando a ser conhecido como Diadocos, que significa sucessor, no caso, de Platão na

liderança da Academia. Foi posterior a Agostinho e contemporâneo mais velho de Boécio, ambos estes

cristãos neoplatônicos. Embora mais filósofo que matemático seus escritos são de importância fundamental

para o conhecimento histórico da geometria grega. Sua mais notável criação foi Comentário sobre o Livro I

de Os elementos de Euclides, que se tornou a principal fonte escrita da afirmação de Pitágoras de Samos

(580-497 a. C.) e de Tales de Mileto (624-548 a. C.) como matemáticos. Publicou também um grande

numero de pequenos tratados e comentários, estes sobre os mais diversos temos, inclusive contra os cristãos,

os quais reunidos importaram em um grosso volume. Por ser notoriamente sistemático, foi cognominado o

escolástico do helenismo, prenunciando mesmo a escolástica medieval. Entre esses vários outros escritos:

Teologia Platônica e Elementos da teologia. A sua filosofia teosófica foi a principal fonte de inspiração para

Dionísio, o Areopagita (480-540), ao qual freqüentemente se refere como Pseudo-Dionísio, um neoplatônico

cristão cujos escritos tornaram-se a decisiva importância para a teologia, bem como para o pensamento e

cultura européia posterior. (Cf. <http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/ProclusD.html >)

Page 16: Introdução à Patrística

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é. Assim, é mais correto dar a Deus atributos negativos (não-gerado,

incorruptível, imóvel, não-causado) do que atributos positivos (bom, santo,

justo).

Desta maneira, a teoria de Dionísio torna-se radical ao não admitir nenhum

nome que tente classificar a Deus, ou dizer aquilo que ele é, pois, tais tentativas

serão sempre insuficientes ao referir-se a Deus, tendo em vista que as palavras

estão apenas na dimensão do que é sensível, mas as faculdades divinas serão

sempre transcendentes.

4.4. Jerônimo (~340 - ~410)

Foi, sem dúvida, o mais douto dos Padres da Igreja latina, tendo em vista

que conhecia fluentemente o latim, o grego e o hebraico. Seu saber era tão

reconhecido que o Papa Dâmaso lhe confiou a missão de rever as mais diversas

traduções latinas da Bíblia que circulavam até então, tendo em vista que elas

apresentavam certas discordâncias entre si. Todavia, ao iniciar seus trabalhos,

Jerônimo percebeu que uma revisão não bastava, mas sim, retornar de forma

sistemática às fontes gregas e hebraicas. Assim, Jerônimo empreendeu, no período

de 391 a 406, toda a tradução das Escrituras, que recebeu o nome de Vulgata e

passou a ser a tradução latina oficial da Igreja.

Além deste notório feito, Jerônimo foi o autor de grandes obras exegéticas

do Antigo e do Novo Testamento, de escritos de caráter dogmático e polêmico, de

homilias e de rico epistolário muito apreciado por toda a Idade Média.

De temperamento forte, Jerônimo teve desentendimentos doutrinários para

com outros teólogos de sua época, como o monge Rufino (340 – 410). Outrora

amigos, eles tiveram certos desenvolvimentos com relação a postura deles para com

o pensamento de Orígenes. A Rufino deve-se a importância de ter chegado até nós

o Tratado sobre os princípios de Orígenes, além do fato de Rufino ter mencionado

no prefácio de sua tradução que Jerônimo fora um grande admirador da doutrina

origenista, além de o ter acusado de traduzir as obras de Orígenes com

modificações nas expressões doutrinárias ambíguas. Tal declaração irritou

Jerônimo, extremamente zeloso para com a ortodoxia doutrinária, o que o fez cortar

de vez relações com Rufino.

4.5. Máximo o confessor (580 – 662)

Máximo viveu entre 579 e 662 e pode ser considerado como o último

grande representante da Patrística grega. Sua importância se dá tanto pelo

aspecto filosófico, tendo em vista que ele segue uma tendência neoplatonista

repensada em função da teologia cristã, quanto pelo aspecto místico-ascético,

sobretudo no que diz respeito à sua cristologia, pois foi um ardoroso defensor

do dogma cristológico sancionado pelo Concílio de Calcedônia (a presença da

natureza humana e divina em Cristo). Combateu, assim, uma heresia surgida em

sua época denominada de monotelismo, que defendia que, em Cristo, há de ter

Page 17: Introdução à Patrística

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apenas uma vontade, sendo que é a vontade divina que absorve e anula sua

vontade humana. Máximo, ao contrário, afirmou que em Cristo há duas

atividades e duas vontades: a divina e a humana. Assim, conseguiu sair

vitorioso na tese de Cristo como “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”,

conforme inscrito no credo niceno-constantinopolitano.

Todavia, ainda que tenha saído vitorioso desta disputa dogmática, padeceu

severas consequências e perseguições e, por esse motivo, é chamado de o

“confessor , ou seja, por ter sido testemunha da verdadeira fé em Cristo.

Em uma de suas obras, denominada Ambigua, Máximo apresentou cinco

distinções fundamentais da realidade: Deus-criatura; mundo inteligível-mundo

sensível; céu-terra; paraíso-mundo habitado; homem-mulher. A partir da

posição central do homem, que é imagem de Deus e, ao mesmo tempo, é um

microcosmo (um privilegiado anel de conjunção de todos os seres), Máximo

concluiu que a tarefa de unificação universal (reminiscência do “uno”

neoplatônico), confiada por Deus ao homem e que foi prejudicada devido a

queda deste no pecado original, foi plenamente realizada no Verbo, em que a

natureza divina e humana se uniram, sem mistura.

Desta sua original formulação filosófica e teológica, eminentemente

cristocêntrica, surgiram grandes estudiosos modernos de seu pensamento, como

Hans Urs von Balthasar, que associou a existência humana ao ato litúrgico.

Ainda sobre Máximo, dentre suas obras principais, podemos destacar o já

mencionado Ambigua, como também Pensamentos sobre o amor, pensamentos

sobre o conhecimento de Deus e sobre Cristo, Livro ascético, Interpretação do

pai-nosso, Discussão com Pirro, dentre outras.

5. “DECADÊNCIA” E TRANSIÇÃO PARA O PERÍODO ESCOLÁSTICO

Quando nos referimos a este último período do período patrístico como

“decadência” não estamos dizendo que representa um período de enfraquecimento

intelectual, mas sim, numa mudança de cenário da cristandade. Uma das

características marcantes deste período foi o fim das Escolas catequéticas e o

preparar de um novo tipo de estrutura, que séculos posteriores dariam lugar às

escolas urbanas.

Um outro fator importante deste período é a Queda do Império Romano do

Ocidente em 476, com a tomada do Império pelos bárbaros. Neste cenário de crise,

a Igreja atuou expressivamente no processo de educação destes bárbaros e desta

nova civilização, cuja atuação dos monges foi imprescindível. Neste sentido, os

teólogos desta época priorizavam assuntos de ordem mais “prática” ou “pastoral”

ao invés das defesas acerca da dogmática católica, que prevaleceram durante o

apogeu da patrística.

Page 18: Introdução à Patrística

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Neste momento, veremos autores que representam a transição entre o período

patrístico e o medieval, onde o método escolástico tem seus primeiros passos e

começa a ser, ainda que em germe, elaborado. Tais autores foram responsáveis por

conservar o legado heleno-romano para a posteridade medieval. Deste modo,

estudaremos três principais autores que poderíamos dizer que representa o fim do

período patrístico: Boécio, Gregório Magno e João Damasceno.

5.1. Severino Boécio (475 – 525)

Nascido em Roma por volta do ano de 475, Boécio exerceu importantes

ofícios de ordem política, chegando a ser Senador romano, todavia, por

investida de seus inimigos, fora acusado de corrupção e ficara preso durante

um tempo, mas, ainda que sofrendo tais perseguições políticas, dedicou-se

intensamente aos estudos filosóficos e teológicos.

Foi o tradutor de importantes autores, tendo sito o primeiro a traduzir a

Lógica de Aristóteles do grego para o latim e também traduziu o Isagoge de

Porfírio (é uma espécie de introdução às Categorias de Aristóteles). Assim

como estas, buscou traduzir outras várias obras de lógica, moral e física de

Aristóteles, bem como traduziu também várias obras de Platão, para depois

elaborar uma concordância substancial entre os dois filósofos. Suas traduções e

comentários aos autores clássicos influenciaram, assim, a vários autores

posteriores. Sua influência também se estende pelo seu método de trabalho

intelectual (denominado lectio); pelo modo de condensar em fórmulas precisas

o pensamento (sententiae); e especialmente por sua hierarquização das ciências,

que é, eminentemente, a distinção entre filosofia prática (que engloba a moral e

a política) e filosofia teórica (que engloba metafísica, psicologia e física).

Uma importante questão levantada por Boécio, a partir da leitura de

Porfírio, e que perpassou por toda a escolástica, foi a questão dos universais.

Boécio encontrou, nesta temática, três questões fundamentais:

1. Existem ou nãos os universais?

2. Os universais são ou não são corpóreos?

3. Caso sejam incorpóreos, estão unidas ou não às coisas sensíveis?

Porfírio levantou tais questões, contudo, não estabeleceu soluções. Já

Boécio, concebeu respostas que podem ser consideradas de vertente realista-

moderada. O universal só existe enquanto universal no intelecto e, por isso, são

incorpóreos. É através da abstração que se obtêm os universais.

Sua obra mais famosa foi A consolação da filosofia, obra de expressiva

influência filosófica e espiritual. Foi escrita por Boécio enquanto estava na

prisão. Um dos temas abordados em seu livro é a natureza do bem, que não se

encontra nas riquezas ou nos prazeres, que são vis e ilusórias, mas sim e tão

somente em Deus, pois, nos dizeres de nosso autor, “tanto a felicidade como

Deus são o sumo bem”, assim, sob uma inspiração de caráter neoplatônico,

Boécio afirma que Uno, Bem e Deus são a mesma coisa.

Page 19: Introdução à Patrística

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Outro problema enfrentado por Boécio é acerca da existência do mal, tendo

em vista que a filosofia nos diz que os maus se tornam desonestos,

embrutecidos e infelizes, no entanto, Boécio observa que existem pessoas boas

são, por vezes injustiçados e os maus não são devidamente condenados.

Todavia, Boécio encontra a resposta na Providência, que é a ordem expressa

pelo Criador e que dispõe estavelmente todas as coisas, ainda que cause a

incompreensão por parte dos homens. Deste modo, até mesmo os atos maus,

aos serem praticados, visam o bem, mas, dele são desviados por um

despercebido erro de avaliação.

Não obstante, a Providência também não fere a liberdade do homem, na

medida em que, embora este tenha o livre-arbítrio para a escolha de seus atos,

em Deus estão presentes todos os acontecimentos futuros em todas as suas

possibilidades. Assim, Deus conhece todos os nossos atos no contexto da

eternidade.

Em temas relacionados à metafísica e à antropologia, Boécio também possui

posturas originais. Algo interessante proveniente de sua antropologia é sua

definição de pessoa: “Pessoa é substância individual de natureza racional”. Tal

definição tornou-se clássica para a antropologia, sendo utilizada pelos mais

diversos autores que o sucederam, como Tomás de Aquino.

5.2. Gregório Magno (~540 – 604)6

Neste período final da patrística, Gregório Magno ocupa um papel

importante, visto que pode ser considerado como o último Padre latino,

marcando, assim, o final do período patrístico no Ocidente. Seu legado não foi

o de ter trazido algum pensamento filosófico original, mas sim, pelo seu

empreendimento pastoral e teológico, obteve relevante notoriedade dentre os

teólogos cristãos.

Nascido em Roma e de família senatorial e cristã, destacou-se desde sua

jovem pela sua capacidade intelectual e provavelmente estudara Direito,

tornando-se, posteriormente prefeito da cidade. Todavia, exercera tal cargo por

aproximadamente dois anos, pois decidiu abandoná-lo para seguir uma vida

monástica. Neste período, escreveu obras de notório valor, como o Comentário

ao livro de Jó. Em 590, Gregório fora aclamado Papa e, mesmo resistindo, foi

sagrado bispo de Roma em 3 de setembro de 590.

Enquanto pontífice empenhou-se na reestruturação das instituições

religiosas, que ressentiam da dilaceração e da decadência, e estendeu essa

reestruturação ao sócio-político. Na liturgia, incrementou o canto, reorganizou o

Sacramentário, ampliou o Antifonário, formentou as celebrações dos mártires e

6 Cf. GREGÓRIO, Santo. Regra Pastoral. Trad. Sandra Pascoalato. São Paulo: Paulus, 2010.

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as ocorrências importantes do ano litúrgico e, por este motivo, até mesmo certos

estilos musicais aplicados na liturgia levaram seu nome, sendo conhecidos

como cantos gregorianos, graças às reformas implementadas por Gregório.

Conhecedor das necessidades materiais e espirituais de seu rebanho,

Gregório mostrou-se como um verdadeiro pastor e, por esta sua virtude, lhe foi

acrescentado o título de “magno”. Suas homilias e cartas apontam quão atento

era a seus interlocutores, a seus fiéis, com os quais mantinha contato direto. Por

este motivo, Gregório cunhou a Regra Pastoral, obra transbordante de acurado

e perspicaz zelo para com a cura das almas. Dividida em 4 partes, onde a

primeira, a segunda e a quarta partes tratam do pastor em si, e a terceira, não

desconexa das anteriores, de suas atividades. Não se trata, assim, de um livro

que seja apenas expressão de um conjunto de normas ou preceitos que devem

ser seguidos pelos pastores, mas sim ordem (tendo em vista que o termo

“Regula” tem o significado de “ordem” para os medievais), ou seja, tem como

objetivo a descrição do dinamismo entre o ser e o agir do pastor, a quem foi

destinada.

Sua obra adquiriu grandes proporções durante toda a Idade Média e até hoje

é uma leitura recomendada não apenas para os ministros ordenados, mas para

todos os envolvidos em atividades pastorais, a fim de mostrar como o cristão

deve assemelhar-se a Cristo Bom Pastor.

5.3. João Damasceno (~650 – 749)

João Damasceno pode ser considerado como a última expressão da patrística

grega (ou oriental). Deve-se lhe dar o mérito de ter sido um grande

sistematizador. Sua obra chamada Fonte do conhecimento, dividida em três

partes: filosófica; história das heresias; teológico-doutrinária, foi, por muito

tempo, um referencial de estudo. A terceira parte, sobretudo, tornou-se modelo

para as sistematizações escolásticas. Ao contrário de boa parte dos Padres

gregos, que tinham predileção pelo platonismo, João Damasceno apoiou-se na

filosofia aristotélica. Desta forma, adquiriu no oriente tamanho prestígio e

autoridade similar ao concedido a Tomás de Aquino no Ocidente.

BIBLIOGRAFIA

GILSON, Étienne. A filosofia na idade média. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins

Fontes, 1998.

REALE, Giovanni, Antiseri, Dario. História da filosofia: patrística e escolástica. 5ª ed. São

Paulo: Paulus, 2011, v. 1.

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SARANYANA, Josep-Ignasi. A Filosofia Medieval: Das origens patrísticas à escolástica

barroca. Trad. Fernando Salles. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência

“Raimundo Lúlio”, 2006.