introdução à política medieval

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SEMINÁRIO SÃO JOSÉ Introdução à Política Medieval Apostila Wagner Augusto Moraes dos Santos 15/12/2014 A proposta deste trabalho é abordar uma breve história das ideias políticas medievais até Santo Tomás de Aquino a partir da abordagem de Eric Voeglin.

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Page 1: Introdução à Política Medieval

SEMINÁRIO SÃO JOSÉ

Introdução à Política Medieval

Apostila

Wagner Augusto Moraes dos Santos

15/12/2014

A proposta deste trabalho é abordar uma breve história das ideias políticas medievais até Santo Tomás de Aquino a partir da abordagem de Eric Voeglin.

Page 2: Introdução à Política Medieval

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SUMÁRIO

AULA 1 (INTRODUÇÃO) ____________________________________________________ 4

JUSTIFICATIVA ______________________________________________________________ 4

A HERANÇA DA ANTIGUIDADE __________________________________________________ 7

O SACRO IMPÉRIO ___________________________________________________________ 10

O FEUDALISMO _____________________________________________________________ 11

PERGUNTAS ________________________________________________________________ 14

AULA 2 (A QUERELA DAS INVESTIDURAS) _________________________________ 15

AS REFORMAS MONÁSTICAS ___________________________________________________ 17

SÃO GREGÓRIO VII _________________________________________________________ 21

PREPARAÇÃO PARA GREGÓRIO VII ______________________________________________ 21

REFORMA PRÉ-GREGORIANA ___________________________________________________ 25

SÃO PEDRO DAMIÃO _________________________________________________________ 25

O PAPADO __________________________________________________________________ 28

PERÍODO PÓS-GREGÓRIO _____________________________________________________ 33

CARDEAL HUMBERTO (1010 - 1061) ________________________________________________ 34

TRATADOS DE YORK (1108) ____________________________________________________ 36

PERGUNTAS ________________________________________________________________ 39

AULA 3 (A NOVA ESTRUTURA DO SAECULUM) ______________________________ 40

CONTEXTO HISTÓRICO ___________________________________________________________ 40

NO ÂMBITO ESPIRITUAL _______________________________________________________ 40

NO ÂMBITO TEMPORAL _______________________________________________________ 46

JOÃO DE SALISBÚRIA (1115-1180) ______________________________________________ 50

JOAQUIM DE FIORE (1145 – 1202) ______________________________________________ 53

SÃO FRANCISCO (1182-1226) __________________________________________________ 57

PERGUNTAS ________________________________________________________________ 59

AULA 4 (O ‘INTRAMUNDANISMO’ E O ISLAMISMO) _________________________ 60

FREDERICO II (1215-1250) ____________________________________________________ 61

CONSTITUIÇÕES DE MELFI (1231) _______________________________________________ 63

O DIREITO ROMANO _________________________________________________________ 67

AS INFLUÊNCIAS ISLÂMICAS __________________________________________________ 71

O ARISTOTELISMO ___________________________________________________________ 71

SIGÉRIO DE BRABANTE (1240-1284) _____________________________________________ 73

PERGUNTAS ________________________________________________________________ 76

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3

AULA 5 – A DOUTRINA DE SANTO TOMÁS (1225-1274) _______________________ 78

APLICAÇÕES _______________________________________________________________ 78

POLÍTICA __________________________________________________________________ 81

DIREITO ___________________________________________________________________ 86

PERGUNTAS ________________________________________________________________ 90

BIBLIOGRAFIA ___________________________________________________________ 91

Page 4: Introdução à Política Medieval

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Aula 1 (Introdução)

Justificativa

O cristão é, pelo próprio nome, outro Cristo. Ao contrário do que se possa

pensar o cristão não é simplesmente alguém que aderiu a um conjunto de ideias, mas a

uma pessoa. Essa distinção é importantíssima para entender a diferença entre uma

escola filosófica e a Igreja. Observa-se que um membro de uma escola filosófica deve

seguir os ensinamentos do mestre para atingir os altos graus do conhecimento, mas não

precisa viver a vida do mestre, por exemplo, um kantiano pode seguir todos os

ensinamentos do mestre sem ter a pontualidade de Kant, sem andar como Kant, sem

falar como Kant etc. Por outro lado, o cristão tende viver a vida de Cristo, que é

Homem-Deus, ou seja, o cristão tem por meta a completa integridade entre a vida

humana e a vida divina, para que possa andar como Cristo, falar como Cristo etc.

É próprio da vida humana se alimentar, crescer, conhecer, trabalhar, relacionar-

se etc. Ou seja, tudo que engloba nosso dia-a-dia. É próprio da vida divina: a oração, os

sacramentos, o amadurecimento da fé, a caridade etc. É a plena integridade entre as

dimensões materiais (humanas) e espirituais (divinas) que realiza plenamente a vocação

cristã. O santo é exatamente aquele que conseguiu, durante a sua vida, integrar tão

perfeitamente quanto a sua natureza permite estas duas dimensões. O oposto disso é a

separação entre a vida espiritual e a vida material, origem de toda sorte de males.

Esta divisão ocorre de modo muito sutil quando se começa a acreditar que, uma

coisa são os pensamentos que se alimenta na Igreja e, outra coisa, são as ideias com as

quais se vive no dia-a-dia. Duas causas podem ser levantadas para isso: preguiça e

ignorância. A primeira delas é objeto para direção espiritual, logo não é a discussão para

agora. A segunda causa diz respeito a ignorância de que as verdades últimas do mundo

são as primeiras da fé. Em outras palavras, é fundamental ter um pensamento sólido que

possibilite tratar todas as situações da vida submetendo-as a vida espiritual. Isto quer

dizer que não basta conhecer os dogmas de fé, é fundamental conhecer as consequências

deles para as ideias que se tem na cabeça.

Este é o grande desafio do mundo de hoje, como fazer para ter um pensamento

sólido que integre a vida material e espiritual com as diversas novidades do tempo

presente? No âmbito material, sempre tem uma novidade científica, uma nova teoria

Page 5: Introdução à Política Medieval

5

política irreligiosa, alguma afronta aos princípios da religião etc. Enquanto, a vida

espiritual é perene, porque vem de Deus.

Ainda que todos estes problemas sejam individualmente importantes, há um

que salta os olhos: o problema das ideias políticas. Pois, a política é o símbolo próprio

da vida material, mas restaria saber: qual deve ser a atitude do cristão frente a sua vida

política? A resposta a esta pergunta pode se ter na Doutrina Social da Igreja. A Igreja

instrui os seus fiéis para que estes tenham uma vida cívica que fortaleça, igualmente, a

sua vida espiritual.

A Doutrina Social da Igreja não consiste em apenas um documento emitido

pela Igreja, mas sim em um conjunto deles que se iniciou com a encíclica rerum

novarum de Leão XIII. Em 2004, foi promulgado o Compêndio de Doutrina Social da

Igreja, pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz – o compêndio consiste em uma espécie

de compilação dos principais temas tratados da Doutrina Social. Neste compêndio, a

Pontifício Conselho declara que a Rerum novarum é considerada como a carta magna

da doutrina social1 além de ter desenvolvido um método para tratar a ‘questão operária’

que foi julgado como definitivo2. Ou seja, antes de pensar que ela consiste em um

ensinamento ultrapassado, ela deve ser considerada como um princípio fundamental de

onde os outros ensinamentos procedem. Esta declaração é bastante intrigante, sobretudo

por causa da orientação filosófica presente naquela carta.

Para que se possa entender, o papa Leão XIII foi aquele que escreveu a

encíclica Aeterni Patris que revigora o estudo do tomismo. Além disso, ele próprio era

considerado um tomista antes de chegar à cátedra de São Pedro. Em acréscimo a isto,

percebe-se na carta grande quantidade de citações, conceitos, expressões entre outras

coisas que identificariam, sem dificuldade, a enorme influência do pensamento de Santo

Tomás no escrito.

Ora, se a Doutrina Social da Igreja tem a Rerum Novarum como sua

constituição, então o arcabouço filosófico que está por trás dela é de suma importância

para uma compreensão mais profunda do texto. Em suma, é muito importante conhecer

a doutrina política de Santo Tomás para compreender com profundidade o ensinamento

da Igreja sobre este ponto.

1 Comp. DSI, 89

2 Comp. DSI, 90

Page 6: Introdução à Política Medieval

6

É exatamente neste ponto em que se encontra este curso. Quer-se entender

melhor essa doutrina política. De dois modos se pode fazer isso, o primeiro consiste em

aprofundar o que disse o próprio autor, o segundo em identificar quais eram as ideias

políticas que circulavam na Idade Média antes de Santo Tomás, de sorte a entender sua

doutrina sob o ponto de vista histórico. O curso seguirá a segunda via, por isso vão-se

discutir quais foram os elementos históricos que compuseram a doutrina de Santo

Tomás. O contexto histórico das ideias políticas de Santo Tomás pode ser resumido

pelo dito abaixo.

Santo Tomás nasceu em uma nobre família italiana no condado de Aquino, a

influência de sua família era tanta que atingia a corte do imperador Frederico II, através

do seu irmão mais velho, e os altos cargos eclesiásticos, através do seu tio (abade de

Monte Cassino). Landolfo de Aquino põe seu filho Tomás para estudar no mosteiro de

Monte Cassino aos cinco anos de idade para que, no futuro, viesse a substituir seu tio

como abade. Naquele período, os mosteiros dotavam de prestígio semelhante ao de um

feudo, portanto ser abade daquele mosteiro era praticamente se tornar um senhor feudal.

Estava a família de Santo Tomás amarrada com os dois supremos poderes do medievo,

o imperador e o papa.

Naquela época o papa era Honório III sucessor imediato de Inocêncio III, que

fora tutor de Frederico II e dera permissão de funcionamento às ordens mendicantes;

incluem-se nestas ordens os franciscanos e os dominicanos, que propunham um novo

modo de vida comunitária que atraía os jovens, entre estes o filho mais novo de

Landolfo de Aquino.

Estas ordens são fruto das deficientes estruturas eclesiásticas do século XI e

XII naquilo que tange a harmonia entre a vida espiritual e a vida material. Ou seja, o

espírito que movia o Aquinate advinha de uma crise na estrutura da sociedade que se

agravava com a chegada do pensamento islâmico (Sec. XIII). Crise que se tornara

evidente a partir da Controvérsia das Investiduras (Sec. XI), que, por sua vez, foi

causada pela guerra silenciosa entre a ampliação do regime feudal (Sec. X) e a reforma

do monaquismo (Sec. X). Ambos fenômenos causados pela cisão entre Oriente e

Ocidente centrado na coração de Carlos Magno (Sec. IX) como imperador do Sacro

Império Romano-Germânico. Cisão, essa, que não se deu sem um longo processo

histórico que começou com as Epístolas de São Gelásio I (Sec. V).

Page 7: Introdução à Política Medieval

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Assim, percebe-se que a síntese tomista acerca da política inclui certa união

entre as ideias políticas que perpassaram quase toda a Idade Média. Para que fique mais

clara a exposição se dará segundo a ordem temporal, por isso vai-se partir dos códigos

gelasianos até chegar as evocações políticas presentes na doutrina tomista.

A herança da antiguidade

A primeira disputa política a ser considera é aquela que versa sobre o exercício

do primado de Pedro nas questões temporais. Deve-se lembrar que a Sagrada Escritura

dá testemunho de que São Pedro seria um apóstolo diferente dos outros, pois ele foi o

único a quem o Cristo disse apascenta minhas ovelhas, confirma teus irmãos e tu és

pedra e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. O problema é discernir, como

ministério petrino deve ser exercido na vida diária da Igreja. Isto não foi imediatamente

esclarecido por Cristo, mas sim foi sendo compreendido com o passar do tempo até

chegar à concepção que se tem hoje.

A própria Sagrada Escritura dá testemunho das funções de Pedro no Concílio

de Jerusalém e na visita feita por Paulo. No Concílio de Jerusalém, a função de Pedro

foi dar a palavra final e, na visita de São Paulo, a função consistiu em confirmar a fé

daquele que a comunidade suspeitava. Essas duas ações resumem o ministério petrino

no início da Igreja, confirmar os concílios e julgar os acusados de heresia, em suma, o

papa era o juiz universal e a última instância a quem se poderia recorrer nos assuntos

referentes à fé.

Os ofícios do papa ficam mais complexos após a legalização do cristianismo

pelo Imperador Constantino. Pois, junto a legalização o imperador também deu aos

bispos poderes temporais e a privilégios. Entre os poderes recebidos está o poder

judicial e entre os privilégios a isenção de impostos. Naturalmente, o papa se torna uma

pessoa que tem um prestígio enorme no império, pois ele seria o único a ter jurisdição

sob todo o orbe cristão nos assuntos religiosos. Desta vez com o apoio imperial. Por

outro lado, o imperador recebe o título de Pontífex Maximus também tendo poderes para

legislar sobre assuntos religiosos, por exemplo, o Imperador Constantino proclama uma

lei que proíbe faltar missa aos domingos, manda fechar o fórum nos dias de domingo,

proclama feriado nos dias santos etc. Embora Constantino tenha facilitado bastante o

trabalho da Igreja, não será ele a declarar a Igreja religião oficial do império, mas sim o

imperador Teodósio.

Page 8: Introdução à Política Medieval

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Essa evocação de religião oficial do império praticamente institucionaliza a

mutua dependência entre o império e a religião. Neste primeiro momento, não parece ter

havido sequestro do poder de nenhuma das partes, o papa permanece juiz e o imperador

permanece gerindo a vida temporal da Igreja, defendendo-a dos inimigos e expandindo-

a pela espada, pois era comum um imperador acreditar ser um grande apóstolo por ter

convertido milhares de pessoas sob a prerrogativa da espada.

A situação começa a mudar com a morte do Imperador Teodósio e a divisão do

Império entre o Império Romano ocidental e o oriental. A partir de então o a capital do

Império passa a ser Bizâncio. Inicialmente, isso não gera muitos problemas para a vida

da Igreja, a não ser pelo fato de que, em 451, o Concílio de Éfeso proclama o

nestorianismo herético contra o desejo do imperador. Esse sancionou um documento

chamado Henoticon – que procurava unir a fórmula ortodoxa com a fórmula monofisita,

que o papa Leão Magno condenara. Eis um problema da estrutura da poder, pois, afinal,

quem deve julgar: o papa ou o imperador? O imperador pode dar uma ordem contrária

ao papa? Nesse contexto, são emitidos, em 492, Tratados IV e a Epístola XII3 de São

Gelásio (492-496) pela primeira vez, distinguindo os poderes entre temporal e

espiritual.

Estes tratados entendem que todo o poder procede do Juiz Supremo que é

Cristo. Nesta perspectiva, o poder do papa e o do imperador é entendido como uma

participação no poder de Cristo. Esse tem em si os dois poderes unidos, mas por causa

da fraqueza dos homens e para favorecer a humildade dividiu os poderes. A proposta é

que um corrige a soberba do outro de modo que o papa se perceba dependente do

imperador para a vida terrena e o imperador do papa para a vida eterna. Para justificar a

querela entre ele e o imperador, São Gelásio I retoma a vida de Davi e sua relação com

Natan, profeta do palácio. Ele faz menção aquela história em que Davi comete um

pecado e Natan o corrige levando-o a conversão. Isto ilustra o que São Gelásio I queria

com suas epístolas.

Neste momento, faz-se mister chamar a atenção quanto a originalidade deste

ato, pois sucede que uma religião oficial do estado, estranhamente, não se deixa

confundir com uma religião estatal. Veja que na religião pagã da Roma pré-cristã os

3 Disponível em: https://archive.org/stream/epistolaeromano00unkngoog#page/n614/mode/2up ,

visitado em: 31 out 2014

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sacerdotes eram completamente submissos ao imperador e seria pouco provável que

qualquer um deles se arrogasse a limitar o poder do imperador sobre algum assunto,

quanto mais corrigi-lo em público como os tratados de São Gelásio I fazem. Isto ilustra

certa originalidade cristã naquilo que tange a união religião-sociedade. É interessante

ressaltar também que as Epístolae só consideram uma hierarquia entre estes poderes

quando o poder temporal incorre em levar a comunidade ao erro. Se isto não acontece

não se sabe qual deles é o mais importante. Em outras palavras, o sacerdócio é poder na

estrutura do império que não provem do imperador! Naturalmente, esta decisão do papa

alargou a crise entre Ocidente e Oriente.

Os tratados gelasianos foram considerados por alguns como a carta de alforria

da Igreja na Idade Média, pois formam a base de toda a discussão medieval entre a

relação entre Igreja e Império. Esses tratados poderiam ser considerados como a

primeira evocação política medieval.

A cisão se alarga depois do papado de São Gregório Magno (590 – 604); Após

a queda das tropas bizantinas em Roma, Constantinopla, praticamente, deixou de

influenciar a vida dos romanos. Assim, a única personalidade que ainda garantia o

prestígio de Roma era o papa que se tornara líder máximo daquele povo. Como se já

não bastasse o abandono de Constantinopla, a cidade ainda passava pelo terror das

invasões bárbaras que a qualquer momento poderiam chegar na cidade para saquear

tudo. É neste contexto histórico que São Gregório Magno tem uma intuição que vai

mudar profundamente a estrutura do ocidente. Ele intui que o pastoreio a que o bispo, e

o papa, são chamados a exercer inclui o cuidado da pessoa toda, ou seja, inclui o

cuidado tanto da parte material quanto da espiritual.

Devido esta percepção, São Gregório começa a tomar, em Roma, atitudes que

se referiam ao poder temporal, como usar as terras dos estados pontifícios para gerar

comida para o povo de Roma, cuidar dos pobres, fazer alianças políticas com os reinos

cristãos para que protegessem a cidade de Roma etc. Estas ações seriam próprias de um

príncipe temporal, mas acabou por ter de ser executada pelo líder religioso. Devido à a

esta cura das almas o papa ganhou um enorme prestígio na cidade de Roma, a ponto de

o próprio povo romano ser o protetor do papa – o que revela o enorme afastamento entre

o papa e Constantinopla. É interessante refletir sobre esta nova evocação política, pois

ela traz a tona à ideia de que o pastoreio do papa também incide na vida temporal do seu

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povo. Como se viu, os assuntos temporais incluem a segurança do povo que, naquele

tempo, era sinônimo de fazer acordo com principados, pois o papa não tem exército.

Ora, acordo com principados inclui decisões temporais que excedem a cidade de Roma,

ou seja, ações na ‘política internacional’4. A saída pensada por São Gregório vai

influenciar muitos papas até a completa cisão que se dará, em 800, com a fundação do

Sacro Império.

O sacro império

Aquela intuição de São Gregório Magno fez com que o povo romano,

praticamente, esquecesse-se de Constantinopla, pois aquilo que deveria ser função do

imperador estava sendo feito pelo papa. Essa situação poderia fazer pensar que uma

cisão seria questão de tempo, entretanto, não se deu deste modo ações efetivas de cisão

só começaram a ser feitas dois séculos depois com o papado de São Zacarias (741 –

752). A grande ação foi a deposição da dinastia merovíngia em favor da coroação de

Pepino, o breve, como rei dos francos. Esse é um ato pontifício bastante diferente

daquele previsto no código gelasiano, pois agora o papa arroga a si o poder de depor um

rei. A deposição é um ato de caráter temporal, a menos que se entenda que o rei seja um

déspota que esteja conduzindo o povo ao erro. É de se chamar a atenção que é a

primeira vez que se vê o poder espiritual, o papa, agir na deposição do poder temporal,

um rei.

Outra originalidade desta ação de São Zacarias é o abandono das ações

passivas no que diz respeito a política fora dos muros de Roma, pois até agora o papa

era consultado ou ia pedia ajuda para resolver um problema temporal na cidade de

Roma, agora ele está exercendo seu poder temporal fora de sua cidade. Em suma,

parece que o papa também tem poder temporal universal.

Essa era prerrogativa que faltava para que seja instaurado um novo império,

alguém com um poder temporal que se estenda a todos os principados. É com essa

prerrogativa que o papa Leão III coroa Carlos Magno como Imperador do sacro Império

Romano-Germânico, em 800. Essa coroação foi feita na Igreja de São Pedro, em Roma,

no dia de Natal. Nestes moldes, o papado fica responsável por coroar os reis e cuidar da

vida espiritual; cabe ao imperador proteger a Igreja, fundar paróquias, escolher bispos

4 Nomenclatura que só faz sentido se considerarmos os nossos tempos, pois a ideia de nação é do

período moderno, portanto quase 10 séculos depois do papado de São Gregório Magno.

Page 11: Introdução à Política Medieval

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que vão compor a máquina administrativa do Império etc. É fundamental perceber que

neste momento se retoma aos códigos gelasianos com a sutil diferença de que o poder

temporal vem de Deus através do papa. Assim, como está aludido nos livros do Antigo

Testamento, Samuel (profeta) unge Saul, pela unção Saul se torna rei e Samuel o seu

súdito, quando Saul começa a levar o povo para o erro, Deus manda Samuel ungir outro

rei. Do mesmo modo, o papa unge o imperador e torna súdito dele nas coisas materiais

até o momento em que o imperador leva o povo para o mal, nesta hora o papa o depõe.

Esta evocação entende a Igreja como sendo o Corpo Mistico de Cristo, em que

cada membro tem um carisma especial para a edificação da Igreja. Curiosamente, o

imperador entendeu que o carisma dele era edificar a Igreja sob o aspecto temporal.

Então, esta evocação consistia em ampliar o poderio econômico da Igreja, aumentar o

território em que a Igreja estivesse presente através da conversão dos bárbaros feita a

força das espadas e a ampliação do poder dos arcebispos nas coisas do Império. Neste

sistema é o imperador quem escolhe os arcebispos, pois eles eram uma espécie de

desembargadores nas suas províncias. Isto significa que os bispos deixaram de estar a

serviço do ministério espiritual da Igreja e passaram a ser servidores do Sacro Império.

É óbvio que esta estrutura pode dar problemas, pois, por um lado, o imperador

irá escolher para estes cargos pessoas que não comprometam seus objetivos, por outro

não são todas as pessoas que estão dispostas a seguir as normas eclesiásticas, sobretudo

aquelas que nunca quiseram pertencer ao clero exceto pela gratificação. O resultado

deste projeto de Igreja Territorial foi a degradação do clero. Para que se possam

entender as causas desta degradação, é importante compreender um pouco sobre mundo

feudal.

O feudalismo

Segundo LLORCA, B.; GARCIA VILLOSLADA, R. e MONTALBAN, F. J.,

Consistia o feudalismo em uma espécie de hierarquização dos poderes políticos e

sociais ou na desmembração da soberania real, de seus direitos e prerrogativas. Sua

base jurídica é o feudo, que vem a ser o contrato pelo qual os soberanos outorgavam

terras em usufruto aos grandes senhores e esses a outros de inferior categoria,

obrigando o feudatário a guardar a fidelidade de vassalo ao doador, prestar-lhe

Page 12: Introdução à Política Medieval

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serviço militar, ajudá-lo com seu conselho nas assembleias que o senhor convocava

e ajudá-lo com outros subsídios, segundo o que convinha no contrato.5

A pergunta aqui seria: como este sistema se formou? Como ele se vincula com

a degradação do clero? As respostas para estas perguntas passam pela lembrança de que

as Invasões Bárbaras, na antiguidade, alteraram completamente o estilo de vida do

Império. Um dos fatores foi o êxodo urbano, afinal os bárbaros saqueavam o comércio,

destruíam setores de serviço e geravam um clima de insegurança nas cidades.

Analogamente, seria como se viesse um povo estranho e destruísse toda rede elétrica,

acabasse com o sistema de esgoto, distribuição de água, destruísse o comércio etc. Ora,

sem comércio não há como manter a vida na cidade. Por conseguinte, a terra se tornou a

única fonte segura de riqueza. Entretanto, surge um grande problema: as cidades

possuíam grandes fortificações, exércitos e vários instrumentos de defesa oferecidos

pelo governante; no campo, é o proprietário que tem de suster toda esta estrutura, por

isso neste período quase não se vê pequenas propriedades.

Esse processo de êxodo urbano ainda foi catalisado pela própria ação dos

bárbaros, que dividiam entre os chefes do exército as terras conquistadas de modo que

esses tenham jurisdição soberana sobre as terras que lhes cabe. Esse poder incluía

conferir terras a outros homens que lhes jurassem fidelidade através do ritual de

vassalagem. Esse ritual consistia na investidura do feudatário através da recepção do

báculo e do anel. Havia duas formas de fazer doações de terras por meio de juramento

de fidelidade, o primeiro deles é o modo dos merovíngios, que fazia uma doação

hereditária, o segundo o modo dos carolíngios, que fazia uma doação por contrato. Este

segundo foi o que ficou caracterizado como o regime feudal propriamente dito.

Como os senhores feudais e seus vassalos tinham autonomia nas propriedades

em que geriam, os reis não dispunham de um exército submetido diretamente a ele.

Portanto, para juntar um exército o imperador precisava de intermediários e a maneira

mais fácil de conseguir o apoio desses era oferecendo alguma vantagem. Duas

vantagens interessam muito neste momento, receber a hereditariedade dos feudos e a

isenção de impostos. A primeira garante a estabilidade do poder e segunda amplia as

riquezas – essa foi a moeda de troca usada no período carolíngio para conter as invasões

5 LLORCA, B.; GARCIA VILLOSLADA, R.; MONTALBAN, F. J. Historia de la Iglesia Católica, em

sus quatro grandes edades: Antiga, Media, Nueva, Moderna. Vol. 1. Madrid: B.A.C., 1958. p.177

(Tradução nossa)

Page 13: Introdução à Política Medieval

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Normandas. Naturalmente, isto gera um grande problema, pois a hereditariedade

implica na divisão dos feudos entre os filhos do feudatário. Ora, essa divisão acabaria

com o sistema, pois iria chegar o momento em que um senhor feudal não teria mais do

que um punhado de terra sem qualquer expressão. Foi, então, que se determinou a

herança ser dada apenas aos filhos mais velhos, deixando uma massa ociosa composta

pelos filhos mais novos.

É mais conveniente ao rei que os feudos não fossem hereditários, pois, com a

morte do feudatário, o rei recobra o pleno poder sobre suas. É exatamente neste

momento que os bispos entram na estrutura, pois os bispos seriam os senhores feudais

que nunca teriam herdeiros. Além disso, era fácil para o rei ou o imperador intervir nas

escolhas dos bispos, pois o imperador tinha poder de veto nas ordenações. Portanto, o

bispo era o vassalo ideal. Isto faz do episcopado o caminho mais fácil para obter um

feudo, o que era, sem dúvida, muito interessante para os filhos mais novos que não

tinham direito de herança.

Naquela época eram distintas a ordenação religiosa e a investidura, a primeira

conferia o caráter sacramental da ordenação e a segunda conferia o poder temporal ao

bispo. Este poder era dado por um senhor feudal, por meio do ritual de vassalagem que

inclui o bispo permanecer de joelhos diante do senhor, colocar as mãos nas mãos dele e

jurar fidelidade sobre os Evangelhos e sobre as relíquias dos santos. O senhor feudal

dava ao bispo, como sinal do seu poder, o báculo e o anel. Este juramento de fidelidade

que o bispo fazia ao senhor feudal recebendo dele a posse da sua ‘diocese’ ficou

conhecida como investidura laica. É interessante perceber que estes sinais permanecem

até hoje nos rituais de ordenação, entretanto foram revestidos de outros significados.

Enquanto os bispos estavam se tornavam vassalos de senhores feudais, havia

leigos querendo se tornar vassalos dos santos, especialmente São Pedro. Para os

medievais não havia nenhuma força protetora melhor que a intercessão dos santos, por

isso era muito comum que pessoas fizessem doações de terras e as deixasse sobre o

senhorio de São Pedro. Na prática, o papa é o vassalo de São Pedro, por isso ele é o

responsável por administrar estas doações, portanto responsável por protegê-la. Assim,

havia o sentido espiritual de ser vassalo de algum santo e o sentido material de ter a

proteção do papa. No meio de todas as doações feitas a São Pedro chama atenção a

doação de Guilherme de Aquitânia (sec. X), que doou um feudo a São Pedro para que

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ali se construísse um mosteiro em vista de restaurar a vivência da regra beneditina.

Neste feudo se instaurou o mosteiro de Cluny símbolo da primeira grande reforma

medieval: A Reforma Monástica.

Perguntas

1. Indique um motivo por que é importante estudar política medieval para um

católico e para um não católico

2. Cite os principais eventos históricos na política medieval que influenciaram a

doutrina de Santo Tomás.

3. Indique qual a relação de poder entre o papa e o imperador entre Constantino e

Teodósio I.

4. Quais foram os motivos para a promulgação das Epístolas Gelasianas?

5. Indique uma originalidade política no papado de São Gregório Magno.

6. Qual é a nova evocação política trazida por São Zacarias?

7. Reflita sobre a fundação do Sacro Império Romano-Germânico e suas

consequências para a vida eclesiástica.

8. Indique qual é a evocação política que é montada a partir da instituição do

sistema feudal.

Page 15: Introdução à Política Medieval

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Aula 2 (A querela das investiduras)

A instauração do Sacro Império como um reino teocrático tornou a religião

mais um instrumento civil entre os outros. Comparando com os dias atuais, seria como

se a Igreja fosse mais uma instituição como o é o Supremo Tribunal Federal. Um caso

interessante ocorreu na chamada capitular de 802 em que o juramento ao imperador se

confundia com a disposição ao serviço da Igreja, ou seja, a catolicidade vem junto com

‘cidadania’. Isso é um grande problema, pois se perde o sentido espiritual do serviço

que era feito para a Igreja. O cristão das primeiras comunidades se sentia obrigado a

cuidar bem das viúvas, ter hospitalidade, cuidar dos órfãos etc., mas o motivo pelo qual

fazia estas coisas era a fidelidade a Cristo a quem se vê unido espiritualmente, o cristão

do período carolíngio também se vê obrigado a fazer essas mesmas coisas, mas o

motivo é a obediência a um lei civil. Em outras palavras, o significado espiritual foi

acidentalmente esvaziado em detrimento da legislação. É exatamente contra

esvaziamento espiritual que nascem os movimentos reformadores.

Para que se possa entender a importância de uma renovação espiritual na Idade

Média é fundamental fazer um esforço para se colocar na posição do medieval. Em

primeiro lugar, deve-se lembrar que o medievo europeu é fruto da união e cristianização

de duas culturas: os romanos e os bárbaros. Lembrando que este segundo grupo não

compreende apenas uma cultura, mas sim uma variedade delas. Uma consequência

importante disso é que aqueles hábitos e evocações antigas ainda permanecem presentes

na vida do povo, sobretudo daqueles que estão afastados dos grandes centros urbanos.

Esse dado não pode ser ignorado, pois a conversão destes povos não sucedeu

como um passe de mágica, mas sim através da gradual substituição dos símbolos pagãos

em símbolos cristãos. Por exemplo, acender velas em cemitérios era uma prática pagã

que fora proibida aos católicos no Concílio de Constança6, percebendo a

impossibilidade de extinguir a prática a Igreja atribui o significado cristão de que a vela

simbolizaria a luz da fé. Essa interpretação secundária dá novo sentido aos símbolos e

transforma um ato pagão em cristão sem retirar o poder evocativo que o símbolo traz as

pessoas. Isso indica que estava arraigado na vida dos povos antigos a percepção de que

há no mundo um poder superior aos homens. A originalidade da Igreja foi expor que há

um Deus que é detentor de todo poder e que o usa para a salvação dos homens pelos

méritos de Cristo que são dispensados no mundo através da ação da Igreja.

6 RIGUHETI, M., Historia de la liturgia. BAC, 1958

Page 16: Introdução à Política Medieval

16

Geralmente, essa evocação religiosa a que o medieval está mergulhado é

entendido como superstição ignorante, entretanto, guardadas as devidas proporções, o

relacionamento que um contemporâneo tem com a ciência não é muito diferente da

relação que um medieval tinha com a religião. Um exemplo bom disto é a guerra, para

um judeu do antigo Israel quem decidia as guerras era Deus, por isso que Israel perdia,

quando era infiel a lei, e ganhava, quando era fiel. Ou seja, a preparação para a guerra

era uma preparação moral-espiritual. Ocorre exatamente o contrário de agora, entende-

se que a decisão de uma guerra se faz a partir dos preparo técnico, das armas, da

tecnologia de que se dispõe etc. ou seja, a preparação para a guerra é técnico-científica.

As analogias não param por aí, o medieval tem presente com clareza em sua

mente a noção de céu e inferno, entendendo que a felicidade é o céu e a infelicidade é o

inferno. O homem moderno alimenta com mais frequência a noção de prazer-saúde e

dor-doença, hoje entende-se o binômio prazer-saúde como felicidade e o binômio dor-

doença como infelicidade. É como se o céu do contemporâneo fosse ter um vida

confortável e ter saúde e o inferno fosse ter uma doença dolorosa. Assim como no

mundo moderno se entende que uma vida confortável e saudável se obtém por meio da

obediência das ordens do médico que controla a alimentação, os exercícios físicos, o

modo de andar, falar etc., o medieval entendia que para obter o céu teria que seguir as

prescrições dos clérigos que versavam sobre a temperança, mortificações, postura etc.

Assim como a ciência através dos psicólogos, físicos, geógrafos, sociólogos etc.

moldam nosso modo de pensar e enxergar o mundo, a espiritualidade através dos

monges, padres, bispos etc. moldavam a forma medieval de pensar.

Essas analogias mostram que o homem contemporâneo substituiu a

espiritualidade pela ciência e a técnica pela moral. Não é o juízo acerca desta troca que

interessa agora saber, mas sim as implicações sociais geradas por estas evocações

quando elas sofrem alguma alteração substancial. Por exemplo, a descoberta da física

atômica foi uma revolução na ciência, essa revolução possibilitou a produção da bomba

atômica; a existência de um armamento que é capaz de destruir tudo, muda

completamente a forma de fazer guerra a ponto de ela ter de ficar fria. Ou seja, a

cosmovisão é capaz de alterar o modo de fazer política. Analogamente, uma reforma

espiritual na Idade Média seria, para a política daquele tempo, semelhante aquilo ao que

uma revolução científica é para o de hoje. Assim como descobertas científicas mudam a

Page 17: Introdução à Política Medieval

17

forma de fazer política no mundo contemporâneo, o renascimento espiritual muda a

forma de fazer política no mundo medieval.

O cientista é para o mundo contemporâneo o símbolo do saber certo, na idade

média quem é o símbolo da vida espiritual correta? O monge. Essa evocação foi gerada

por São Gregório Magno que explicitou os mosteiros serem modelo de comunidade

cristã. Assim, ocorre como o esperado que o grande renascimento espiritual ocorra no

meio daqueles que são o símbolo da espiritualidade. Entretanto, ficariam as perguntas:

como aconteceu esse renascimento espiritual? Quais foram seus efeitos para a vida

política?

As reformas monásticas

O século VI é marcado por algumas inovações que vão influenciar toda a Idade

Média, a primeira inovação é a promulgação da Regra de São Bento (547) e a segunda é

a concepção de pastoreio integral defendida por São Gregório Magno (590-604). Estas

inovações poderiam ser consideradas desconexas se São Gregório Magno não tivesse

sido monge no mosteiro de Monte Cassino, onde São Bento foi abade e para quem ele

direcionou a famosa Regra. Ou seja, São Gregório foi formado na Regra de São Bento.

Restaria saber: o que há de tão original nessa regra? A Regra é responsável pela união

de duas formas antagônicas de se viver o cristianismo. Por um lado haviam os

anacoretas, os pais do deserto, que viviam solitários em um rigor ascético heroico, por

outro existiam as comunidades urbanas, que tinham de coadunar a vida secular com a

espiritualidade.

Na sua Regra, São Bento acaba por determinar um lugar em que se vive

isolado do barulho da cidade que atrapalha a vida espiritual e, ao mesmo tempo, vive-se

em comunidade: o mosteiro. Para se manter afastado o mosteiro deveria residir no

campo, deveria ser murado, com extensão suficiente para dar conta das necessidades

materiais e espirituais de seus moradores. Ao olhar para as características do mosteiro se

identifica imediatamente a cidade perfeita projetada por Platão, entretanto a principal

diferença é que a polis platônica devia ficar isolada do resto do mundo e a polis ideal

cristã se vê como um membro do corpo místico de Cristo, que compreende muito mais

que o mosteiro.

Segundo Voegelin,

Page 18: Introdução à Política Medieval

18

A polis rural espiritual de São Bento, como parte do império Cristão, é o símbolo da

transição da antiga civilização mediterrânea para a civilização ocidental: da polis

para o império territorial (e, mais tarde para o estado territorial); da civilização

urbana para a civilização agrícola feudal; do mito pagão para o espírito de Cristo.7

A Regra de São Bento não ficou restrita ao mosteiro de Monte Cassino, mas

passou a ser usada em praticamente toda a Europa até chegar ao nível de ser estendida a

todos os mosteiros do Sacro Império a partir do século IX. O processo de consolidação

do monaquismo dura cerca de três séculos, oscilando entre altos e baixos. Cerca de

trinta anos após a promulgação de Regra, em 580, os lombardos invadem a Itália e

destroem Monte Cassino. Somente no século VIII é que começa o processo de

restauração de Monte Cassino. Em 717, a conselho do papa Gregório II, alguns monges

voltam as ruínas do antigo mosteiro para restaurar o modo de vida do século VI, a

comunidade cresceu e o papa Zacarias conseguiu restituir a comunidade a regra escrita

pelo fundador, bem como as relíquias de São Bento e Santa Escolástica. Em 747, São

Bonifácio manda um abade para a Itália a fim de que aprenda o modo de vida

cassinense e leve para o seu mosteiro em Fulda. Mosteiro esse que iria gerar pouco

tempo depois (784) dois santos para a Igreja, São Ludgero e São Adalardo – primo de

Carlos Magno – desejoso em expandir o ensinamento cassinense em outros mosteiros

alemãs. Curiosamente, em 787, a pedido de Carlos Magno a Regra de São Bento chega

aos mosteiros franceses. Em 800, Carlos Magno se torna imperador do Sacro Império

Romano-Germânico, devido ao seu desejo de unificar a vida espiritual do império

Carlos Magno tomou várias iniciativas entre elas as mais significativas são universalizar

o rito romano e a regra de Monte Cassino.

Do mesmo modo que a decadência do Império Carolíngio gerou a decadência

no clero devido à estrutura do regime feudal, também geral decadência no monaquismo.

O primeiro motivo era a enorme capacidade que os mosteiros tinham de ser prósperos,

embora a principal função dos monges fosse a liturgia eles geriam com perfeição as

coisas da terra, eram muito respeitados na sociedade, recebiam muitas doações de terras

etc. Alguns abades chegavam a ter poderes de extensão semelhante a de um bispo. Esse

prestígio e poder dos mosteiros poderiam ser usados em favor dos senhores feudais,

pois era muito comum os mosteiros possuírem a chamada libertas romana, ou seja,

7 VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol.

2. São Paulo: É realizações, 2012. p.75

Page 19: Introdução à Política Medieval

19

isenção de impostos. Em uma linguagem contemporânea, dir-se-ia o mosteiro ser a terra

que rende muito sem nenhum imposto pagar.

Percebendo isso, alguns senhores passaram a escolher os abades dos mosteiros

que estavam sob seus domínios, violando a regra que dizia esta função ser exercida

pelos monges das comunidades. Essa violação chegou ao nível de que em uma abadia

chegaram a escolher um abade leigo que levou para o mosteiro esposa e filhos para

sobreviverem daquilo que os monges produziam deixando apenas o resto para a mesa

dos irmãos. Claramente, o mosteiro estava se tornando em mais um instrumento de

poder feudal e perdendo completamente o seu significado espiritual.

O movimento contrário, seguia Guilherme de Aquitânia que, influenciado por

um beneditino piedoso, doa o feudo de Cluny com tudo o que nele encerra aos apóstolos

Pedro e Paulo8, sem a submissão a qualquer autoridade eclesiástica, tendo, pois, o

mosteiro que se reportar diretamente ao papa. É interessante perceber que a doação não

é feita sequer a pessoa do papa, mas sim diretamente aos santos. Embora o texto de

Guilherme tenha longas exposições piedosas a sua doação é juridicamente precisa. Pois,

a causa da perversão dos mosteiros era a sua falta de autonomia frente os senhores

feudais que na sua época apareciam sob dois aspectos: o laical e o outro clerical. Assim,

era fundamental conservar a posse aos santos, afinal o clero também era um risco.

O fundador de Cluny também escolheu seu primeiro abade, Bernon (910-926),

que implantou a mais fiel e vigorosa observância beneditina. Os efeitos foram

imediatos, em poucos anos o mosteiro já gozava de grande prestígio a ponto de ser

considerado modelo que atraía para si um número grande de vocações de gente que

aspirava a santidade. Era comum que príncipes, senhores feudais, reis etc. que tinham

interesse em reformar os seus mosteiros ou fundar um pedisse ajuda ao abade de Cluny.

Isso fez com que vários mosteiros estivessem sujeitos a autoridade de Bernon. Por isso,

escolheu abades para todos os mosteiros que estavam pessoalmente sujeitos a ele,

inclusive o mosteiro de Cluny. Escolheu para esse último o seu discípulo mais fiel Santo

Odon que comandou o mosteiro entre 926 e 942.

8 Disponível em: http://www.documentacatholicaomnia.eu/02m/0910-

0910,_Willelmus_Arvernorum,_Testamentum_De_Constructione_Cluniacensi_Loci,_MLT.pdf acessado em: 25/11/14 às 23:40

Page 20: Introdução à Política Medieval

20

Santo Odon foi responsável pelo reconhecimento pontifício da carta de 910 em

que o papa João XI (em 931) dá à abadia a proteção apostólica e a imunidade para

escolher o abade. Além disso foi responsável pela reforma de inúmeros mosteiros na

Europa ao peregrinar de mosteiro em mosteiro anunciando a reforma, deixando a abade

que lhe sucederia uma rede monástica que chegava a várias regiões da Europa. Outro

sucessor importante foi São Mayolo (954-994) que, assim como Santo Odon, andava

pelos mosteiros anunciando a reforma. Outro dado interessante era a sua bondade e

erudição que acabou por dar a ele grande prestígio entre o papa e as grandes autoridades

da época, inclusive Oton I. Isso fez com a influência do espirito reformador cluniacense

chegasse em muitas partes da Europa. O Apogeu de Cluny ocorre com a regência de

Santo Odilon (994-1049) quando o costume cluniacense é posto por escrito e o mosteiro

já tem influência suficiente para fazer aquela evocação reformista que era propagada

exclusivamente pelos mosteiros começasse a também evocar uma reforma na Igreja.

A reforma espiritual de Cluny não teria apenas efeitos no número de santos a

aparecer no mundo, veja que entre os cinco primeiros abades de Cluny três deles são

santos. Além de terem influenciado a forma das grandes autoridades verem o mundo, o

mosteiro também teve grande importância política devido a sua forma de organização.

Vale ressaltar que a própria estrutura de Cluny passou a interessar muito a

Roma, pois esse mosteiro começou a fundar outros que estavam vinculados a uma

matriz. Os filiados tinham priores que se encontravam anualmente nos capítulos. Essa

organização aparece como algo original na Igreja, pois até então não havia centralização

nas mãos do papado, os bispos não eram para o papa o que os priores eram para o

abade; diversamente, Cluny aparece como uma instituição centralizada e hierárquica,

como ainda não se tinha visto na Idade Média. Esse aumento do poder de Cluny vai

gerar entre o monastério e a Igreja uma relação de mutualismo que eclode na querela

das investiduras, pois, por um lado, a Igreja entende que a administração de Cluny pode

ser usada a serviço da Igreja, por outro Cluny precisa de um papado forte para garantir a

segurança contra os ataques temporais e clericais.

A prosperidade de Cluny foi enorme a ponto de que noventa anos após a sua

fundação ele já era considerado o maior mosteiro do mundo. Acerca das ideias políticas

vale ressaltar que Cluny comporta em si autonomia e poder central. Ora, essa é a

evocação de um Estado Moderno, ou seja, aquele mosteiro medieval traz,

Page 21: Introdução à Política Medieval

21

acidentalmente, um terceiro poder que até então não se tinha sido visto. Esse mosteiro

se mostra muito a frente do seu tempo ao fazer isso e acaba por colher muito

rapidamente os frutos de tal originalidade: a riqueza. A grande vantagem de um poder

centralizado é exatamente a facilitação do acúmulo de riquezas e de influência política,

não é sem motivo que no século XI já se terá papas cluniacenses. O que sucede dessa

prosperidade material é o afastamento da proposta inicial de revigoramento do espírito,

daí, a partir do ano 1000 já se fazia necessário uma segunda fase da reforma monástica.

A segunda fase das reformas monásticas não ocorrem posterior a primeira, mas

sim juntas. No momento em que se atingia o apogeu de Cluny, renascia o espírito do

monaquismo anacoreta. Esse renascimento ocorreu prioritariamente na Itália onde havia

ainda grande influência oriental. Cabe dizer que esta proposta de retomada da vida

anacoreta não logrou o mesmo êxito que a primeira fase da reforma, pois acontecia que

os mosteiros começavam vazios, mas com o passar do tempo enchiam e não era

possível manter o mosteiro funcionando sem a determinação de uma Regra, que até

então era beneditina. Em outras palavras, aconteceu que grande parte destes mosteiros

anacoretas acabaram por se tornar mosteiros beneditinos depois. Entretanto, eles

possuem uma importância para as ideias políticas, pois mostram que é fundamental

encontrar um meio de conservar o sentido espiritual da reforma sem perder os

benefícios da organização trazida por Cluny. A união entre essas duas necessidades vai

ser feita na terceira fase da reforma no século XII, por São Bernardo de Claraval. Vai-se

mais, apropriadamente, tratar desta terceira fase quando se falar dos papas gregorianos.

São Gregório VII

Preparação para Gregório VII

Por um lado, o século X marca a ascensão de Cluny, por outro marca o período

mais tenebroso da história eclesiástica. Esse século foi tão problemático que alguns

autores o chamaram de saeculum ferreum obscurum. Esse século começa antes de 900 e

termina depois do ano 1000. O marco histórico desse período é a queda do Império

carolíngio com a deposição de Carlos, o gordo, em 888. A queda do Império unificado

como no período de Carlos Magno era um verdadeiro desastre para a Igreja, pois

devemos lembrar que nenhum papa poderia ser eleito sem o consentimento do

imperador, logo o enfraquecimento do Império torna a escolha do papa um assunto para

as nobres famílias italianas.

Page 22: Introdução à Política Medieval

22

O período em que as famílias italianas mandariam no papado foi muito bem

anunciado pelo sucedido com o papa Formoso, em 891. Segundo LLORCA, o papa

Formoso teria sido homem de ascese diferenciada, e que teria feito de tudo para

conservar a decisão de não compactuar com o erro que teria acontecido em Bizancio,

em que um leigo teria sido feito bispo e depois patriarca do oriente em seis dias

contrariando todas as normas canônicas.

Além disso, esse patriarca teria deposto o verdadeiro patriarca de

Constantinopla, Ignácio. Esse problema foi agravado pelo fato de que Focio, para

alargar as diferenças entre Bizâncio e Roma resolveu trazer a tona série de problemas

teológicos para fundamentar a separação. Um dos problemas foi o famoso problema do

filioque. Esses problemas teológicos atrapalharam a diplomacia a ponto de gerar o

famoso religioso cisma do Oriente, que era o cisma que faltava, pois o cisma político já

tinha sido feito no ano 800 com a eleição de Carlos Magno. O que sucedeu é que Roma

condenou a postura de Focio e deu a ordem de que todos os que haviam sido ordenados

por Focio deveriam ser excomungados e depostos de suas funções. Formoso se manteve

rigoroso nas prescrições do seu predecessor João VIII. Isso teria sido uma atitude

simples se, em Roma, não houvesse cidades que ainda eram dominadas por Bizâncio.

Como o Império Carolíngio estava enfraquecido o papa perdeu a proteção e teve de se

defender por seus próprios meios, o que naturalmente seria um problema. O primeiro

deles foi o caso de uma comitiva que tentava invadir o palácio de Latrão quando

Fomoso morreu, em 896, essa comitiva elegeu o novo papa, Estevão VI, que foi o

responsável pelo famoso concílio cadavérico que visava tratar Formoso como um

antipapa, revogar todas as suas decisões, e despojá-lo de todas as dignidades próprias de

um papa. Assim se fez, julgaram o papa e revogaram todas as suas decisões. Depois

disso não demorou muito para alguém do partido de Formoso invadir o palácio

pontifício e estrangular Estevão VI.

Essa briga de partidos não iria permanecer por um longo tempo, entretanto é

interessante ressaltar que entre aqueles que eram contra Fomoso se encontrava Sérgio

III (904 – 911). A sua importância espiritual é nenhuma, mas tem a importância de ter

chegado ao papado através da influência da família Teofilacto que será muito

importante até meados do século XI. O curioso nesse caso é que existem alguns indícios

de que Sérgio III teria tido um filho com Marozia, filha dos Teofilacto. Isso já seria

Page 23: Introdução à Política Medieval

23

bastante escandaloso se 40 anos depois Marozia não estivesse vendo o seu neto chegar a

Sé de Pedro assumindo do nome de João XII (955 – 964).

Esse papa é bastante importante, porque é no seu pontificado que começa a

chamada restauração otoniana que vai se prolongar até praticamente o século XI. Essa

reforma começa quando Oton I, rei da Alemanha, invade a Itália, em 951. Depois

invade Roma e a retira do poder do pai de João XII e coloca nas mãos de seu irmão,

Adalberto. Não obstante, em 960, os próprios italianos pediam para que Oton reinasse

sobre eles para se livrarem dos desmandos do então governante. Assim, em 961, Oton

tem o poder da Itália. A figura de Oton é impactante, tanto pela virtude da guerra tanto

pela santidade que o circunda, entorno deles estão Santa Adelaida (esposa), São Bruno I

(irmão) e Santa Matilde (sua mãe). Além disso, posteriormente iria entrar no cânon um

de seus filhos. Todas essas virtudes de Oton e a saudade dos tempos do Império faz com

que, em 962, o papa João XII coroe Oton I como Imperador do Sacro Império, dessa

vez segundo o rito romano, diferente de Carlos Magno.

A administração imperial de Oton inicialmente pretende restituir o que fora

perdido do Império carolíngio. O Império Otoniano era mais universal e católico que o

de Carlos Magno, dava mais poder aos eclesiásticos, ainda que sua soberania efetiva

sobre os territórios da Europa era mais restrita. Por norma, os reis alemães tinham de ter

a aprovação do papa para serem imperadores, por outro lado os imperadores deveriam

ter por prerrogativa a manutenção da ordem do povo cristão pela obediência as normas

papais e a proteção da Igreja. Ao contrário do que se imagina hoje acerca de um

imperador, é bom lembrar que a soberania do imperador estava restrita as soluções dos

problemas eclesiásticos, não interferia na gestão dos príncipes. O imperador nesse

período tem mais um significado de um cargo eclesiástico do que propriamente dito

poder civil.

O acordo era basicamente o seguinte, os imperadores garantem o poder

temporal da Igreja, e os romanos fazem juramento de fidelidade ao Imperador, esse

juramento inclui a renúncia do direito escolher o papa. É fundamental lembrar que o

juramento de fidelidade medieval quer apenas dizer que não se atentará contra os

interesses do imperador, não significa que se concede ao imperador direito de gerir

todas as dimensões da vida, como se costumam pensar nos dias de hoje. A imagem de

Page 24: Introdução à Política Medieval

24

um governante que coordene todas as dimensões da vida é uma imagem do período

moderno, não uma ideia medieval.

Uma das modificações da estrutura otoniana foi exigir que os arcebispos

recebessem o anel e o báculo das mãos do monarca. Ou seja, é o monarca quem dá as

investiduras e quem escolhe os bispos. Aqui se percebe a diferença, pois agora os

senhores feudais até podem doar as terras, mas quem escolhe o bispo é o monarca, ou

seja, aquele poder que vinha da Igreja para a sua proteção ganha força temporal a

medida que os bispos, senhores feudais, tornam-se diretamente vinculados ao

imperador. O mais interessante disso é que essa ideia de Oton gerou muito pouca

objeção, pois escolhia os bispos segundo os conselhos de seu irmão, quer era um grande

diplomata e tinha fama de santidade. A consequência desse sistema montado por Oton é

o fortalecimento interno do poder do imperador através do episcopado.

É exatamente essa ideia política de usar a influência da Igreja para aumentar o

poder temporal que vai gerar problemas quando se tiver imperadores que não possuem

tantos santos a disposição para consultarem acerca do que devem fazer. Essa

superestrutura de poder imperial fundada na estrutura eclesiástica gera duas coisas: o

fortalecimento do império e a secularização do clero. O primeiro é evidente, o

imperador que só tinha influência passa a ter poder por causa das ordenações episcopais.

A segunda se refere ao fato de que os cargos eclesiásticos se tornaram o caminho mais

fácil para se atingir os pontos mais altos da corte.

Exatamente, a estrutura feudal adicionada a ambição humana que gerou um

verdadeiro sistema de corrupção centrado no nicolaísmo e na simonia. O primeiro deles

devido à completa falta de preparo da parte dos sacerdotes que eram ordenados,

enviados a uma paróquia de interior sem instrução efetiva e sem vocação, pois naquela

época não seria muito difícil confundir o sacerdócio como uma função a ser exercida na

sociedade, assim a união com uma mulher não lhe seria impedimento para bem exercer

seu ofício. No fundo, o nicolaísmo era defendido por alguns como sendo um mandato

bíblico, pois São Paulo diz que aqueles que se abrasam é melhor que se casem, os

sacerdotes acreditavam isso dizer respeito a eles e, então, juntavam-se e constituíam

família.

A simonia constituía um sistema mais complexo ainda. Pois, para ser bispo é

necessário uma indicação, que pode ser adquirida comprando-a de alguém. Entretanto,

Page 25: Introdução à Política Medieval

25

quem vende essa influência não vende por pouco, logo era comum que os bispos

ficassem devendo aos senhores feudais pela indicação ao episcopado. O bispo por sua

vez, vendia as ordenações inferiores às dele: presbiterato e diaconato. Esses acabavam

por ficarem devendo seus bispos, para conseguirem o dinheiro necessário vendiam

todas as coisas sagradas que podiam, relíquias, indulgências, bênçãos etc. Isso mostra

que o problema dessa sociedade é sistemático, por isso somente é possível resolvê-lo

com uma solução igualmente sistemática. É com esse mundo que começa a reforma pre-

gregoriana.

Reforma pré-gregoriana

Se fosse possível resumir o século X, poder-se-ia fazê-lo através da ascensão

do poder temporal do papado, dado que o enfraquecimento do Império Carolíngio

tornou o papa o principal defensor de Roma, e através da ascensão da reforma espiritual

proposta por Cluny. A primeira trata o papado como fonte de poder temporal, a segundo

como fonte de poder espiritual, a primeira entende os bispos como altos funcionários da

administração imperial e a segunda como pastores de almas. As diferenças entre as

evocações espirituais e temporais são tão grandes que seria esperado que um conflito

acontecesse, sobretudo quando os representantes do poder espiritual obtivessem o poder

temporal o que aconteceu quando Leao IX (1049-1054) chegou ao papado. O aumento

do poder temporal daqueles que prezavam pela reforma espiritual sem dúvida seria

causa de conflito, pois agora aqueles que reclamavam da estrutura tem o poder para

mudá-la.

Aquela análise que se mostrou aqui acerca da estrutura de corrupção montada

pelo sistema feudal foi percebida primeiramente por dois cardeais reformadores: São

Pedro Damião e o cardeal Humberto (fl. 1057). Esses dois entendiam que o motivo da

crise no clero era o excesso de intromissão leiga nas coisas eclesiásticas. Essa

descoberta é fundamental para que se inicie um processo de reforma que eclode em São

Gregório VII (Sec. XI) e termina em Inocêncio III (Sec. XIII).

São Pedro Damião

São Pedro Damião faz parte de um movimento italiano que poderia ser

considerado como a segunda fase da reforma monástica, que é a reforma anacoreta.

Essa reforma pretendia revigorar a ascética dos padres do deserto, isso explica o caráter

duro com que ele fala sobre a simonia e o nicolaísmo. É interessante perceber que a

reforma espiritual traz para o campo da política uma coisa que estaria presa ao campo

Page 26: Introdução à Política Medieval

26

dos mosteiros, a necessidade de soluções teóricas. Se se reparar tudo o que foi dito até

aqui, ver-se-á que as decisões dos papas e os imperadores geralmente estavam pautadas

na vida prática, ainda que essa prática fosse a religiosa. A partir de agora, não basta

pautar as decisões na prática, é importante que se reconheça naquela decisão a

fidelidade a vida espiritual, ou seja, a reforma espiritual acaba exigindo justificativas

intelectuais para as ações. Não é sem motivo que as punições dos bispos simoníacos

viesse junto com a pergunta acerca da validade das ordenações compradas.

Essa pergunta é fundamental, pois muitos bispos haviam tido a sua ordenação

comprada além de que a invalidade da ordenação de um bispo torna inválida a

ordenação dos padres e, por conseguinte, inválidos todos os sacramentos administrados

por eles. Em outras palavras, invalidar a ordenação dos bispos simoníacos era o mesmo

que invalidar a vida sacramental da Igreja. Ora, a fonte da vida espiritual são os

sacramentos, ou seja, invalidar as ordenações é o mesmo que invalidar a própria

reforma a que São Pedro Damião e o cardeal Humberto estavam comprometidos. Por

isso a punição dada aos bispos simoníacos foi a proibição de ordenar, a partir da data da

promulgação da lei, e aos sacerdotes que foram ordenados por aqueles bispos eximiram

de penitência. Mas ainda restaria a dúvida: essa decisão versa sobre o poder que Cristo

deu a Igreja ou sobre uma estratégia política conveniente?

O Liber gratissimus (ca. 1052) de São Pedro Damião é exatamente para

resolver esse problema. Resumindo a obra, Veogelin afirma:

Apoiado pela autoridade de Santo Agostinho, ele coloca a Igreja no centro

de sua discussão e decisão. A vida espiritual da Igreja emana diretamente de

Cristo, cabeça do corpo místico. O carisma sacramental é sempre puro,

mesmo que seja indigna a mão que o administra. O sacramento é

administrado somente pelo sacerdote; a substância não é afetada por suas

qualidades pessoais. Para tornar o carisma do sacramento eficaz, o receptor

tem que se encontrar em estado de graça, mas não está em poder do ministro

exercer um poder mágico compulsivo sobre Deus, convertendo-se em pessoa

digna ou indigna como mediador do dom de Deus ao homem.9

A doutrina sacramental de São Pedro Damião foi tão importante que essa é a

doutrina sacramental transformada em dogma no Concílio de Trento, isso faz dessa

doutrina importante sob o ponto de vista da história da Igreja. Entretanto, sob o ponto de

vista das ideias políticas essa doutrina também é muito importante, pois resolve vários

9 VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.97

Page 27: Introdução à Política Medieval

27

problemas em um momento em que se está falando em reforma espiritual. O principal

deles é o sectarismo eclesiástico que implicaria em um sectarismo imperial. Afinal, se

alguns bispos santos ordenam validamente e os simoníacos não, então deve-se fundar

uma Igreja para os santos e uma para os pecadores.

Essa evocação de que há uma Igreja dos santos que vivem o Evangelho e outra

para os pecadores vai inundar o século XII, transformando as reformas espirituais do

século X e XI em rebeldias violentas. O que aconteceu é que graças ao trabalho de São

Pedro Damião esse sectarismo não foi institucionalizado na doutrina da Igreja. Acerca

da unidade do Império é importante se lembrar que a fé era a evocação que unia o

Império, pois imperadores iam e vinham, mas a fé permanecia; dividir a Igreja era

dividir o império. A maior prova da influência política dessas evocações sectaristas é a

revolta da pataria, cuja originalidade consiste no fato de ter sido uma revolta popular

contra os bispos simoníacos na arquidiocese de Milão. Era a primeira vez, que o povo

manifestava seu descontentamento contra os bispos simoníacos. Mas esse movimento

chegou ao século XII com características heréticas e de caráter anticlerical.

Além disso, o trabalho de São Pedro Damião vai ser muito importante no

sínodo de 1059, pois nesse momento Nicolás II vai proclamar fortes punições aos

padres que viviam em concubinato proibindo-os de celebrar a missa, impondo várias

penas e censuras. Não somente nisso, mas nesse concílio, pela primeira vez, estabelece-

se o critério de eleição do papa fundado nos cardeais bispos. Segundo esse concílio, o

processo seria: primeiro os cardeais bispos, seguindo o clero e o povo. A sugestão do

imperador só deveria ser considerada quando fosse relevante.

O importante aqui é que, pela primeira vez em séculos, a Igreja estava

desenvolvendo um sistema de eleição papal autônomo, é interessante perceber que é na

era dos papas cluniacenses que aquela estrutura de poder central que havia no mosteiro

começa a chegar a Igreja universal. Assim como, os mosteiros tinham autonomia de

escolher seus abades, Nicolás II agora estava querendo dar a Igreja o direito de escolher

o seu papa. Essa ideia política interessa muito, pois um dos poderes supremos da Idade

Média começa a pedir autonomia do outro poder. A partir daqui será apenas questão de

tempo para que o outro poder também queira autonomia e, estando ambos autônomos,

estar-se-á na Idade Moderna.

Page 28: Introdução à Política Medieval

28

O papado

Em Gregório VII, que as duas correntes do século X se encontram, pois de um

lado, havia o fortalecimento gradativo do Império através da secularização do clero, de

outro havia Cluny que após gerar muitos santos para a Igreja chegava ao papado com

Leão IX, ocorreu que um homem se tornou síntese disso: Hidelbrando (Gregório VII).

Ele havia sido monge de Cluny e alimentava aquele ideal reformador, por outro lado

havia feito parte da corte de Nicolás II e conhecia bem como funcionava o jogo político

medieval. Esse foi eleito papa praticamente por aclamação e começou já nos primeiros

anos de pontificado a usar a estrutura de poder de Cluny na Igreja ao espalhar legados

seus em grande parte da Europa. Isso centralizava o poder papal, possibilitando que

pudesse fazer frente ao imperador Henrique IV.

A disputa entre Gregório VII e Henrique IV é emocionante, mas interessa a nós

saber o básico de que o Imperador Henrique IV queria revogar o sínodo de Latrão que

lhe retirava quase todos os poderes na eleição do papa e na escolha dos bispos e

Gregório se recusou a fazê-lo, pelo contrário reafirmou o poder do papa em um

comunicado chamado dictatus papae que contem as seguintes afirmações:

I. «Quod Romana ecclesia a solo Domino sit fundata». (Que a Igreja Romana foi

fundada somente pelo Senhor).

II. «Quod solus Romanus pontifex iure dicatur universalis». (Que só o Pontífice

Romano seja dito legitimamente universal).

III. «Quod ille solus possit deponere espiscopus vel reconciliare». (Que só ele

possa depor ou repor bispos).

IV. «Quod legatus eius omnibus episcopis presit in concilio etiam inferioris gradus

et adversus eos sententiam depositionis possit dare». (Que os seus legados, ainda

que de grau inferior, em um concílio estão acima de todos os bispos, e pode contra

estes pronunciar sentença de deposição).

V. «Quod absentes papa possit deponere» (Que o Papa possa depor ausentes).

VI. «Quod cum excommunicatis ab illo inter cetera nec in eadem domo debemus

manere». (Que com os excomungados pelo Papa não podem, entre outras coisas,

permanecer na mesma casa).

VII. «Quod illi soli licet pro temporis necessitate novas leges condere, novas plebes

congregare, de canonica abatiam facere et e contra, divitem episcopatum dividere

et inopes unire». (Que só a ele é lícito, segundo necessidade temporal, ditar novas

Page 29: Introdução à Política Medieval

29

leis, formar novas comunidades, converter uma fundação em abadia e,

reciprocamente, dividir uma diocese rica e reunir dioceses pobres).

VIII. «Quod solus possit uti imperialibus insigniis». (Que só ele possa levar

as insígnias imperiais).

IX. «Quod solius pape pedes omnes principes deosculentur». (Que todos os

príncipes devem beijar os pés do Papa).

X. «Quod illius solius nomen in ecclesiis recitetur». (Que o seu nome deve ser

recitado em toda igreja).

XI. «Quod hoc unicum est nomen in mundo». (Que este nome é único no mundo).

XII. «Quod illi liceat imperatores deponere». (Que lhe seja lícito depor os

imperadores).

XIII. «Quod illi liceat de sede ad sedem necessitate cogente episcopos

transmutare». (Que lhe seja lícito trasladar bispos de uma sede para outra, se lhe

obrigar a isso a necessidade).

XIV. «Quod de omni ecclesia quocunque voluerit clericum valeat ordinare». (Que

possa ordenar clérigos de qualquer igreja onde queira).

XV. «Quod ab illo ordinatus alii eclesie preesse potest, sed non militare; et quod ab

aliquo episcopo non debet superiorem gradum accipere». (Que um ordenado por

ele possa presidir a outra igreja, mas não servi-la; e que o ordenado por ele não

possa receber grau superior de outro bispo).

XVI. «Quod nulla synodus absque precepto eius debet generalis vocari». (Que

nenhum sínodo se chame universal se não for por ordem do Papa).

XVII. «Quod nullum capitulum nullusque liber canonicus habeatur absque illius

auctoritate». (Que nenhum capítulo nem nenhum livro seja considerado

como canônico sem sua autorizada e permissão).

XVIII. «Quod sententia illius a ullo debeat retractari et ipse omnium solus

retractare possit». (Que suas sentenças não sejam retratadas por ninguém e só ele

possa revê-la).

XIX. «Quod a nemine ipse iudicare debeat». (Que não seja julgado por nada).

XX. «Quo nullus audeat condemnare apostolicam sedem apellantem». (Que nada

pode condenar quem apela a Sede Apostólica).

Page 30: Introdução à Política Medieval

30

XXI. «Quod maiores cause cuiscunque ecclesie ad eam referri debeant». (Que as

causas maiores de qualquer igreja sejam referidas à sede apostólica).

XXII. «Quod Romana ecclesia nunquam erravit nec imperpetuum scriptura testante

errabit».(Que a Igreja Romana nunca errou e não errará nunca, segundo

testemunho das Escrituras).

XXIII. «Quod Romanus pontifex, si canonice fuerit ordinatus, meritis beati Petri

indubitanter efficitur sanctus testante sancto Ennodio Papiensi episcopo ei multis

sanctis patribus faventibus, sicut in decretis beati Symachi pape continetur». (Que

o Pontífice Romano, uma vez ordenado canonicamente, é santificado

indubitavelmente pelos méritos do bem-aventurado Pedro, segundo testemunho do

santo bispo Enódio de Pavia, apoiado pelos muitos santos Padres segundo está

nos decretos do Beato Papa Símaco).

XXIV. «Quod illius precepto et licentia subiectis liceat accusare». (Que por ordem

e permissão sua seja lícito aos subordinados formular acusações).

XXV. «Quod absque synodali conventu possit episcopus deponere et

reconciliare». (Que pode depor e restabelecer os bispos mesmo fora de reuniões de

sínodo).

XXVI. «Quod catholicus non habeatur, qui non concordat Romane ecclesie». (Que

ninguém seja chamado católico se não concorda com a Igreja Romana).

XXVII. «Quod a fidelitate iniquorum subiectos potest absolvere». (Que ele pode

eximir os súditos da fidelidade para com príncipes iníquos) 10

O dictatus papae vai ser praticamente a constituição do papado de Gregório

VII e dele muitas originalidades surgem. A primeira é: o papa tem o poder de depor e

repor bispos. Isso gera uma completa confusão na estrutura de poder feudal, pois agora

não é o senhor feudal que decide qual será o bispo que vai coordenar a terra que lhe

dispõe, mas sim o papa; isso, dá as dioceses autonomia aos senhores feudais

semelhantes à autonomia que Cluny havia recebido no século X, por outro lado dava ao

papa poder sobre as terras dos senhores feudais. Guardadas as devidas proporções é

como se o seu capataz de confiança pudesse ser deposto e reposto a qualquer momento

pelo papa.

10

Disponível em: http://www.avozdedeus.org.br/site/materias/artigos/956-dictatus-papae.html, ou http://www.fordham.edu/halsall/source/g7-dictpap.asp ou http://www.documentacatholicaomnia.eu/01p/1073-1085,_SS_Gregorius_VII,_Registrum,_MLT.pdf, acessado em: 03/12/14 às 16:21

Page 31: Introdução à Política Medieval

31

A segunda é a determinação de que o papa não pode ser jugado por ninguém e

que ele é o juiz universal, por um lado recobrando aquela função petrina original, por

outro tornando confusa aquela teologia gelasiana que afirmava o poder do imperador ser

o poder de Cristo Rei que existe para evitar que o papa se ensoberbeça.

A terceira é o poder de depor o imperador e interferir nos assuntos entre

reinos. Para Gregório VII, não poderiam haver relações feudais entre reinos, pois um rei

que é vassalo de outro não é um rei e se isso acontecesse o papa teria o direito de

intervir nessas questões, pois entendia que essa relação era tirânica. Isso indica que o

papa está salvaguardando as liberdades nacionais dando aos reinos a autonomia que seu

antigo mosteiro recebera, os efeitos disso é a nacionalização que vai crescendo até

chegar a Idade Moderna com o surgimento do Estado, por outro lado, ao se colocar

como árbitro do imperador e dos reis ele está colocando no papado um poder de

intervenção que ultrapassa o atual poder do imperador, gerando um desequilíbrio entre

os poderes.

Não é difícil imaginar qual deva ter sido a reação do imperador depois desse

pronunciamento, tentou por várias vezes depor Gregório VII, por meio de um concílio

até que o papa faz uso do direito adquirido por Silvestre I, no 1000, ainda no reinado de

Oton III de que o papa poderia excomungar e depor o Imperador. Exatamente isso que

São Gregório VII faz, com isso os súditos de Henrique IV deixam de estarem obrigados

a fidelidade, o que se torna uma oportunidade excelente para seus inimigos os

destronarem. Para evitar isso Henrique IV vai pedir perdão a Gregório VII, em 1077,

perdoa-o depois de ele passar três dias fazendo penitência descalço na neve. Essa é uma

imagem do que foi Gregório VII na querela das investiduras, ainda que seja pouco

significativo para a história das ideias. Pois, logo após o perdão do papa, Henrique volta

a Alemanha e trama contra Gregório que morre desterrado. Há autores que entendem

que a querela das investiduras poderia ter sido o maior debate político da história, mas

evitando panegíricos é mais interessante ir aos fatos e perceber que o mundo se torna

outro depois do papado de Gregório VII.

O motivo disso é que Gregório VII, buscando ampliar o poder espiritual,

acabou aumentando o seu poder temporal a níveis inigualáveis. Repare que a estrutura

de poder do império funcionava a partir dos bispos que eram escolhidos pelo Imperador.

Com a reforma gregoriana o poder dos bispos vai para o papa, logo o poder

Page 32: Introdução à Política Medieval

32

administrativo do Império sai das mãos do imperador e vai para as mãos do papa.

Guardadas as devidas proporções, seria como se o bispo da cidade pudesse escolher os

assessores do prefeito, tendo esses assessores um juramento de fidelidade ao bispo. Isso

unido ao poder de depor um rei ou o próprio imperador coloca o papado quase no lugar

de Deus, pois terá todo o poder terreno. Se se considerar o código gelesiano dir-se-ia

que o poder espiritual engoliu o temporal. Ou seja, feriu o código gelasiano pela

supremacia hegemônica do papa. É interessante perceber que a proposta de São

Gregório VII realmente foi capaz de garantir a autonomia da Igreja, entretanto essa

autonomia acabou por transformar a Igreja em um Império que começava a disputar

com o outro que havia sido criado por ela mesma.

Segundo Voegelin, Gregório VII junto com os reformadores da sua época

acabaram por cair na falácia de que um grande poder espiritual exige, igualmente, um

grande poder temporal. Essa percepção não parecia estar clara na cabeça dos

reformadores do século XI e, por isso, entendiam que transformar a Igreja em Cluny

daria para a Igreja os mesmos frutos obtidos naquela comunidade. Assim, o papado de

Gregório VII marca o início da guerra explícita entre o poder temporal e o poder

espiritual, aquela representada pelo partido do imperador e essa pelo partido gregoriano.

Alguns livros foram escritos acerca disso nesse período, mas se poderia resumir a

discussão nos seguintes argumentos:

As teses dos reformistas afirmavam que a chave havia sido dada a Pedro com o

poder de ligar e desligar, afirmavam o poder espiritual ser superior ao temporal,

evocavam a jurisprudência do papa Zacarias ter deposto o último merovíngio, a

necessidade que a Igreja tinha de poder temporal para conservar o poder espiritual,

entendiam que o Imperador era um membro do corpo de Cristo como qualquer outro e

não está isento da disciplina espiritual da Igreja e a necessidade de que o império tivesse

uma instância superior, que seria o papa

As teses do imperador afirmavam que segundo os tratados gelasianos o

sacerdócio dependia reino para a vida temporal; o poder real foi decretado por Deus, e

os sacerdotes devem o respeitar de forma incondicional ou até contribuir; o poder

espiritual só se pode intrometer em caso de heresia; o rei é um elemento do corpo

místico; o poder temporal não é oriundo do mal; a unidade do Sacro Império depende da

unidade dos poderes, o poder espiritual não pode reivindicar supremacia sobre o

Page 33: Introdução à Política Medieval

33

temporal; é o imperador o protetor oficial de Roma e que era dever do imperador fazer

nomeações abaixo do papa.

Essa disputa no fundo consiste no fato de que os reformadores estão pensando

nas coisas do espírito, enquanto os políticos nas coisas práticas. É ela a principal causa

de uma crise estrutural, pois, como indica uma das teses do imperador, o Sacro Império

depende da harmonia entre os poderes, quando eles começam a brigar é sinal de que a

própria estrutura do mundo está para mudar.

Período pós-Gregório

A morte de Gregório não foi o fim da controvérsia das investiduras, pelo

contrário os papas gregorianos acabaram por intensificar mais ainda a disputa contra o

imperador. Como se vê, tanto as teses dos reformadores quanto as teses do imperador

são bastante razoáveis naquilo que tange a forma como as leis iam sendo proclamadas

com o passar do tempo. Ou seja, far-se-ia necessário algum tratado que fosse capaz de

fundamentar teologicamente uma posição ou a outra. Como já foi dito, a fundamentação

é uma exigência feita, sobretudo, por aqueles que acreditam a vida ter de se comportar

segundo os símbolos, ou seja, para os que pertencem a reforma espiritual. Na proposta

de criar um tratado (sistema) teológico que justifique o poder espiritual dever comandar

o mundo o cardeal Humberto escreve o famoso adversus simoniacos. Em que faz uma

teologia fundada na doutrina paulina do corpo místico de Cristo em contraposição ao

corpo do diabo. Essa é uma evocação de caráter espiritual, ou seja, a argumentação

ainda está considerando que as decisões da vida prática devem ser regidas pelos

símbolos da vida espiritual.

Em primeira análise, a disputa entre o partido do papa e o do Imperador foi

puramente jurídica, ou seja, cada grupo evocava séries de leis que favoreciam a um ou a

outro e chegavam a um empasse. A diferença é que o partido do papa teria a vantagem

de ter dentro da sua argumentação uma elaboração teológica, enquanto o imperador

contava apenas com leis antigas para se defender. Em um momento de reforma

espiritual em que os jovens entram ostensivamente nos mosteiros, é claro que a

elaboração teológica é considerada mais importante que alguma lei antiga, que por sinal,

aqueles que leram Humberto chegariam até a imaginar ser essa lei um elemento do

corpo do diabo, mas do que do corpo de Cristo. Por isso é interessante o aparecimento

de uma teologia das teses do imperador, essa teologia aparece na controvérsia das

Page 34: Introdução à Política Medieval

34

investiduras inglesa, chamado tratatus eboracenses, ou tratados de York (Sec. XII). A

grande originalidade desse tratado é o caráter espiritual dos textos e a defesa de algumas

doutrinas que seriam consideradas completamente heterodoxas no seio da Igreja.

Cardeal Humberto (1010 - 1061)

A primeira coisa importante a ressaltar e a influencia do cardeal Humberto, ele

era um monge cluniacense que foi levado a Roma e feito cardeal pelo papa Leão IX, o

primeiro papa cluniacense. É interessante ressaltar que foi levado devido à sua

capacidade intelectual, piedade e ao seu rigor ascético11

. Em outras palavras, o cardeal

Humberto seria um daqueles teólogos do papa. É importante lembrar que o jovem

Hidelbrando também teve participação no papado de Leão IX, assim não é impossível

imaginar que os pensamentos do Cardeal Humberto tenham influenciado Gregório VII.

Por causa dessa enorme influência política que esse cardeal tinha, é esperado que sua

principal obra adversus simoniacos, tenha sido importante para as ideias políticas que

estavam por trás do dictatus papae.

A figura premente no adversus simoniacos é a de Simão, o mago12

. É tão

ressaltada no tratado que em certo momento o cardeal afirma que aqueles que compram

e vendem as coisas sagradas são chamados simoníacos por causa daquilo que tinha feito

aquele Simão. A história de Simão, o mago, se encontra no livro dos Atos dos

Apóstolos, segundo o relato Simão teria sido um homem que tendo visto o poder que os

apóstolos dispensavam através da imposição de suas mãos tentou comprar esse poder de

São Pedro. A resposta dada a ele nessa tentativa de extorsão foi uma maldição terrível

em que São Pedro alerta-o de que ele não receberá nem a herança (salvação) nem o

ministério.

O posicionamento do cardeal Humberto acerca das ordenações é bastante

diverso daquele pensado por São Pedro Damião, para ele as ordenações feitas por bispos

simoníacos não é válida, bem como os batizados etc. A razão disso é que ele entende

que um simoníaco, na realidade, é um herege. Essa é a tese central desse livro, a partir

dela todas as outras são tidas como consequência. A justificativa dada por Humberto é:

aqueles que acreditam o Espírito Santo agir por meio de mãos simoníacas, na realidade,

11

Disponível em: http://www.documentacatholicaomnia.eu/04z/z_1010-1061__Humbertus_Silvae_Candidae_Episcopus__Adversus_Simoniacos_Libri_Tres__MLT.pdf.html acessado em 09/12/14. (admonitio praevia) 12

Cf. At 8, 9-25

Page 35: Introdução à Política Medieval

35

acreditam que esse mesmo Espírito obedece ao homem, afinal a Escritura mostrou que

Deus não criou o seu ministério para ser comprado. Ora, se o Espírito obedece ao

homem, então deveria ser menor que o homem. O que seria um absurdo, pois foram

considerados hereges os arianos que diziam o Pai se maior que o Filho, que dirá aqueles

que dizem o Espírito Santo ser menor que o homem. Em suma, o cardeal Humberto diz

que acreditar que a ordenação dos simoníacos é válida é o mesmo que incorrer em uma

heresia trinitária.

Essa inferência faz com que o cardeal possa usar todo o estatuto vigente na

Igreja referente aos hereges contra os bispos simoníacos. É exatamente isso que ele faz,

como a heresia indica separação da Igreja, é natural que as ações feitas pelos hereges

não sejam católicas, ou seja, não sejam válidas para a Igreja; logo as ordenações, os

batizados etc. quando feito pelos hereges deveriam ser considerados inválidos.

Naturalmente, esse posicionamento retoma aquela discussão acerca do caráter objetivo

da administração dos sacramentos. Essa abordagem geralmente divide opiniões, aquele

que defende a objetividade nos sacramentos entenderá que a Igreja é o corpo místico de

Cristo que possui nela bons e maus. Outra é a oposição entre o corpo místico de Cristo e

o ‘contracorpo’ místico do diabo. Embora, haja essa contraposição deve-se lembrar que

para Humberto o caráter sagrado do Rei está conservada, inclusive um dos argumentos

que ele usa contra a simonia é a de que ela corrompe o poder temporal.

Outro dado interessante é de que para o cardeal a cidade do diabo pode ser

transformada, senão até superada. Isso é bastante importante, pois na cidade de Deus

Santo Agostinho coloca o tempo como sendo um lugar de espera para a escatologia, ou

seja, a ‘cidade do diabo’ só seria transformada ou superada na escatologia. Para

Humberto, não, a reformulação da nossa ação é capaz de fazer, ainda em vida, o reino

cristão.

Na terceira parte de seu livro, o cardeal põe a espiritualidade no nível do

mundo corpóreo, ou seja, entende a história do mundo como sendo a manifestação do

Espírito. Essa modificação também é profundamente radical, pois ao inserir as coisas do

espírito no mundo material e visível, Humberto acabou por legitimar as propriedades

dos sacerdotes. Veja que o poder sacerdotal é um poder referente as coisas do espírito,

entretanto, se a estrutura do mundo é manifestação do Espírito, então faz parte do poder

espiritual coordenar as propriedades da Igreja, que também são uma dimensão da vida

Page 36: Introdução à Política Medieval

36

espiritual. Com isso o cardeal justificava o poder temporal dos bispos, por outro lado

não acredita razoável conceder ao imperador o direito de escolher os bispos, pois esse é

um assunto de poder espiritual. Em outras palavras, a espiritualização da história serve

de fundamentação teórica para as atitudes do dictatus papae que faziam exatamente

isso, davam todo o poder espiritual ao papa, autonomia aos bispos sem retirar deles

nenhum poder temporal. É interessante perceber que essa espiritualização também

elimina a tensão escatológica, pois aquele Reino de Deus que há de vir, praticamente, já

veio a medida que os poderes temporais se encontram submetidos aos poderes

espirituais. Isso vai ser muito importante para o século XII, pois a identificação do

Reino de Deus como sendo um reino para esse mundo, será a causa de diversa revoltas

violentas no medievo europeu.

Tratados de York (1108)

Os Tratados de York13

são constituídos de uma série de escritos na controvérsia

inglesa das investiduras, sua importância reside no fato de conseguir sistematizar em

formato filosófico os grandes a confusão que havia tomado conta do império depois da

guerra estabelecida entre o imperador e o papa.

O anônimo, como é conhecido o autor do tratado, assemelha-se ao cardeal

Humberto naquilo que tange o entendimento de que história é o lugar próprio da

manifestação do Espírito. Essa percepção faz com que esses tratados acabem por

entender que é a história o lugar próprio da Revelação divina, ou seja, Deus revela a sua

vontade através dos acontecimentos da história humana. Em outras palavras, o Reino de

Deus é uma mistura da realidade histórico-politica.

Essa percepção dos Tratados de York contribui decisivamente para duas

percepções importantes, a primeira delas referente estrutura política e a segunda ao

pensamento religioso. Acerca da política começou-se a pensar o mundo segundo

critérios imanentes, ou seja, segundo aquelas coisas que vemos e ouvimos. Acerca do

pensamento religioso começou-se a evocar a percepção de que o mundo histórico é

divinamente revelante, ou seja, Deus tem algo a nos dizer a partir do mundo visível.

13

Disponível em: http://normananonymous.org/ENAP/ToC.jsp. Acessado em 09/12/14. A fonte parece

confiável, mas não dispõe de um material em pdf, por isso não serviria para análises mais precisas. Ainda

que atenda bem aos nossos objetivos iniciais

Page 37: Introdução à Política Medieval

37

Essa visão de que Deus se manifesta através do mundo visível vai influenciar

muito a forma de enxergar a função da lei eterna. Essa lei foi formulada por Santo

Agostinho para indicar a ordem divinamente desejada no mundo, por exemplo, as leis

físicas indicam a ordem que Deus quis dispor as coisas na natureza. Esse é o argumento

que o Anônimo usa para justificar que os filhos dos sacerdotes ou das concubinas só

podem ser considerados bastardos pela lei dos homens, não pela lei eterna, pois o desejo

de Deus é que a união carnal entre homem e mulher dê origem a seres humanos tão

dignos quanto os outros. Ele acrescenta que após o batismo essa criança tem a mesma

dignidade no corpo místico que uma criança que não fosse considerada bastarda. Essa

argumentação, para nós, é trivial, mas para a época não era; pois, alguns anos antes, em

1095, o concílio de Clermont havia proibido a ordenação de filhos de sacerdotes. Deve-

se ressaltar que nesse tipo de argumentação concordariam ele e o cardeal Humberto, a

divergência ocorreria no peso que o Anônimo dá à lei eterna, pois como se viu no

argumento o que garante a igualdade entre os homens é Deus por meio da lei eterna, que

é imanente. Ou seja, a dignidade procede de um princípio imanente.

Outro princípio imanente evocado pelo Anônimo é a história, essa entendida

como uma imagem do paradigma da história presente na mente e na vontade de Deus.

Algo semelhante ao conceito de reminiscência de Platão, ou seja, existe uma história na

mente de Deus e a história que se vive é uma imagem dessa história. Segundo o

Anônimo, esse paradigma consiste em três saecula14

: o Antigo Testamento, o Novo

Testamento e o Reino Verdadeiro de Deus. O primeiro se refere a representação geral

da realeza e do sacerdócio, que consistia em dar ao primeiro a função de fazer obedecer

a lei e culto ao Deus verdadeiro e ao segundo o ofício de oferecer sacrifícios em

expiação dos pecados. O segundo se refere a plenitude do sacerdócio em Cristo e a

generalização desse sacerdócio a todos os fieis. O terceiro se refere a situação em que os

crentes reinam com Cristo em sua glória.

Desse modo a redenção é um meio de fazer o homem atingir a realeza final, ou

seja, a obra da redenção feita pelos sacerdotes existe para conduzir os homens a realeza.

Assim a realeza de Cristo é mais importante que o seu sacerdócio, porque esse existe

para que os homens possam atingir aquela. Logo, a função real é mais nobre que a

14

Talvez se pudesse entender como eras, mas como essa nomenclatura de eras é de Vico, far-se-á uso do

termo saecula mesmo.

Page 38: Introdução à Política Medieval

38

sacerdotal, pois os sacerdotes são o sinal do Cristo que se faz homem para redimir a

humanidade e o rei é o sinal do Cristo que é Deus e atingiu a glória do céu.

Outro dado interessante é que o sacerdócio passou a ser comum a todos os fieis

após Cristo, daí surge a pergunta: qual é a função de um sacerdócio especial na

hierarquia da Igreja? Nenhuma. Para o Anônimo os sacerdotes são usurpadores que

conservaram em suas mãos um poder que só lhes teria sido concedido na Igreja

primitiva para resolver o problema das heresias. Exatamente, para evitar cismas que um

dos sacerdotes teria sido como superior entre os outros, papa, o bispo de Roma,

escolhido assim por causa do prestígio daquela cidade. Por isso, ele entende que

encerrado o período dos grandes cismas a função dos sacerdotes também cessa e quem

deve assumir a regência do povo de Deus é o rei. No texto abaixo, Eric Voegelin

destaca do tratado uma passagem que mostra a devoção dada a figura do rei.

O poder do rei é o poder de Deus; Deus detém-no por sua natureza; o

rei por graça de Deus. O rei é portanto, Deus e Cristo, por meio da

Graça, e o que quer que faça, não o faz simplesmente como um

homem, mas como Deus e Cristo por meio da Graça. Em verdade,

aquele que é Deus e Cristo por natureza age através de seu vigário por

meio de quem executa seus assuntos. [o rei] não deve ser chamado

leigo, por que é o Cristo do Senhor, é Deus pela graça é líder supremo

(rector), é o sumo pastor, e governante, e defensor, e professor da

santa Igreja, é o senhor de seus irmãos e deve ser adorado (adorandus)

por todos, pois está acima de todos como Senhor supremo.15

Com essa declaração o Anônimo de York destruiu de vez com as declarações

gelasianas e o poder sacerdotal institucionalizado. O sacerdote nesse sistema se torna

apenas um membro a mais do ‘povo cristão’ que está submetido ao poder do rei que é

conregnans (‘co-reinante’) com Cristo nesse saeculum16

. É interessante perceber que

esse tratado não faz qualquer questão de conservar as estruturas do Sacro Império, pelo

contrário ele prevê a fragmentação das estruturas do Sacro Império.

Essa fragmentação deveria atingir, sobretudo, a hierarquia da Igreja. Como já

se disse, o autor entende que o papado foi uma medida temporal para resolver os

problemas de cismas, por isso Roma deveria deixar de ter o poder central em detrimento

de maior autonomia dos poderes locais. Juntamente, com isso acabava por defender uma

Igreja nacional, dando igualdade de poder a todos os bispos. Para ele, tanto o bispo de

15

ANÔNIMO NORMANDO, Tractatus Eborecensis. apud VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de

Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É realizações, 2012. 16

Esse termo não será traduzido por parecer indicar um termo técnico na obra de Voegelin, mas poderia

ser entendido como mundo, sociedade, era etc.

Page 39: Introdução à Política Medieval

39

Rouen como o bispo de Roma são Pedro e o poder das chaves é dado a ambos, pois a

reunião em Roma dos bispos empobrece a interferência das dioceses longínquas. Uma

das consequências do desejo do aumento da influência episcopal nas suas dioceses é a

Defesa de que os mosteiros deveriam estar subjugados exclusivamente a seus bispos

locais, para evitar que guerra na Igreja.

Com isso o tratado já teria retirado do papa, o direito de escolher os bispos, de

ter um poder central sobre eles, de possuir um mosteiro que deve obrigação a ele, de

possuir um poder temporal institucionalizado e de ser juiz em todas as dioceses do

mundo; para, por fim, destruir completamente a figura do papado só faltava retirar a sua

função de ensino do papa. Foi exatamente o que foi feito, o Anônimo entendia que a

interpretação da Sagrada Escritura deveria ser livre sem a preocupação com a exegese

tradicional e com as instituições eclesiásticas. Diria que se o papado quiser ser mestre

da humanidade que faça isso com os pagãos, pois os cristãos não precisam de seus

ensinamentos. Não é difícil encontrar semelhança entre o pensamento do Anônimo e o

que virá a ser falado na Reforma Protestante.

O tratado de York, independente de influência que tenha tido sobre a mente das

pessoas da época, sem dúvida marca o tipo de pensamento que vigorava na Europa, esse

pensamento deixava claro que o Império estava se deteriorando e que se faria necessário

descobrir qual será a nova estrutura do Saeculum.

Perguntas

1. Faça um paralelo entre a ciência moderna e a espiritualidade medieval

2. Explicite uma originalidade filosófica na vida beneditina

3. Verse sobre a importância de Cluny para a Igreja no século X

4. O que foi o saeculum ferreum obscurum? Indique o principal fator que o

caracteriza.

5. Disserte sobre Otón I e seu império.

6. Apresente em linhas gerais a doutrina de São Pedro Damião

7. Destaque quais as principais alterações que o dictatus papae faz na estrutura do

Sacro Império.

8. Liste as originalidades do pensamento do cardeal Humberto

9. Considerando o conteúdo abordado no tratado de York, comente a frase A Igreja

Romana pode ter se transformado em grande parte em corpo do ‘diabo’.

Page 40: Introdução à Política Medieval

40

Aula 3 (A nova estrutura do Saeculum)

Contexto histórico Para se entender o clima em que se encontrava o século XII, é bom ter em

mente o que estava acontecendo nos dois séculos que o precedem. No X, o Império é

fragmentado, as famílias italianas brigam pelo poder e longe do poder temporal está

Cluny com a primeira fase da reforma monástica. No século XI, o Império volta a sua

influência e tem os bispos como principal instrumento do exercício do poder temporal,

ocorre que Cluny adquire poder temporal e resolve reformar, não só a vida monacal,

mas toda a Igreja, daí surge a querela das investiduras que revela o mundo não mais

conseguir suportar as declarações gelasianas como estrutura adequada para o saeculum.

O século XII aparece exatamente como aquele que vai começar a reestruturação. A

reestruturação não é um projeto feito por alguém, mas sim o espírito de uma terceira

reforma que pairava tanto para aqueles que buscavam o aprofundamento espiritual

quanto para aqueles que queriam resolver os problemas da ordem temporal. A surpresa

ocorrida no século XII é o aparecimento de um ‘terceiro poder’, até então, não visto: o

leigo.

No âmbito espiritual

O final do século XI, mostrou que Cluny já havia se tornado uma superpotência

na ordem temporal inclusive. Ter tido uma série de papas e cardeais que vieram do seu

seio deu ao mosteiro não só poder econômico como também altíssima influência

política. Ocorreu que aquela busca pela espiritualidade monástica rigorosa foi se

esvaindo e se transformando em busca pelos prazeres do poder temporal. Já no século

XI os anacoretas acenavam para o risco de que a estrutura de Cluny atrapalhasse o seu

desenvolvimento espiritual, mas não conseguiram encontrar um modo alternativo para

corrigir a estrutura.

Essa mudança só vai ocorrer, em 1113, quando São Bernardo vai fundar

Claraval reformando a ordem cisterciense que havia sido criada, em 1098, por Roberto

Malesme. Com seus 25 anos, São Bernardo conseguiu unir a estrutura anacoreta com a

organização de Cluny. Provavelmente, essa união entre duas correntes que

aparentemente se chocavam poderia ser comparada aquela feita por São Bento na

formulação de sua Regra.

Page 41: Introdução à Política Medieval

41

Para se entender como a estrutura é uma síntese das duas correntes é

importante saber qual era a atividade dos anacoretas, ou pais do deserto. O que se sabe

sobre eles é que eram homens de altíssimo rigor ascético que viviam praticamente

isolados no deserto. Eram pessoas que queriam estar longe das estruturas sociais, alguns

dos escritos sobre eles diziam que temiam duas coisas: as mulheres e os bispos; as

primeiras para que não caíssem na tentação da carne a os segundos para que não os

fizessem bispos. A única estrutura de poder que se encontrava entre esses era a da

relação de paternidade espiritual, pois muitos jovens iam até eles para se aconselhar

devido à fama de santidade que tinham. Assim, cada pai do deserto podia ordenar coisas

a seus filhos espirituais, entretanto jamais ordenaria algo a outro pai do deserto.

São Bernardo vai combinar isso a estrutura centralizada de Cluny, assim todos

os mosteiros passam a ter abades e não priores. A segunda modificação é que a

influência que um mosteiro pode ter em outro consiste apenas em uma dependência

espiritual, não material, como em Cluny; por exemplo, nenhum mosteiro poderia cobrar

impostos de outro. A terceira modificação diz respeito a influência que um mosteiro

pode ter, para Cluny o todos estavam sujeitos à abadia matriz, para os cistercienses o

mosteiro só poderia influenciar aqueles que poderia ter como filhos espirituais, ou seja,

daqueles mosteiros fundados por ele. Uma forma interessante de distinguir a diferença

entre o poder que Cluny dispensava a seus mosteiros filiais e a forma de poder de

Claraval é através do gráfico abaixo:

Page 42: Introdução à Política Medieval

42

Ocorreu que Claraval se tornou para os jovens do século XII o que Cluny fora

para os jovens do século X. Era impressionante a capacidade que São Bernardo tinha de

encontrar jovens interessados em entrar na vida monacal. Conta-se que toda vez que

tinha de fazer alguma pregação sempre voltava para casa com novos monges. LLORCA

declara que ele foi o diretor espiritual da Europa no seu tempo, provavelmente na

primeira metade do século XII não tivesse personalidade tão influente no nível da

espiritualidade quanto o abade de Claraval. Uma evidência disso é que trinta anos após

a fundação do mosteiro já se tinha um papa cisterciense, Eugênio III (1145-1153).

Diferentemente do século X, em que Cluny tinha o monopólio das novidades

espirituais, o início do século XII está cheio de novas evocações. Uma das mais

importantes é a cruzada. O processo histórico que vai eclodir nas cruzadas é bastante

longo, não é possível tratar aqui com detalhes. Entretanto, basta saber que na época de

Gregório VII, Bizâncio havia pedido ajuda do ocidente para retomar Jerusalém que

havia sido invadida por muçulmanos e que teriam destruído os lugares sagrados

construídos na época de Carlos Magno através de um acordo com os egípcios.

Inicialmente, Gregório se sentiu interessado, mas as suas disputas com o imperador

acabaram por consumir suas forças, além do fato de que Bizâncio não havia pedido

ajuda apenas ao papa, mas também ao imperador Henrique IV. Isso também assustou

Gregório VII que, desterrado, muito pouco pode fazer para ajudar os orientais.

Após isso, os invasores foram depostos, instaurou-se certa paz, até que os

turcos seljúcidas invadiram novamente Jerusalém e expulsaram os egípcios que tinham

acordo com o ocidente. Naquele momento, naquele momento se instaurou uma tensão,

pois deve-se lembrar que as peregrinações a terra santa era uma prática espiritual muito

importante para o medieval. Entendiam que a caminhada até Jerusalém era um exercício

de mortificação que serviria para purgar seus pecados e alcançar a glória do céu. Isso já

seria importante para um cristão em um estado normal, entretanto não se deve esquecer

que após Cluny a evocação da espiritualidade passou a ser o principal motor dos

homens daquele momento, assim fazer uma peregrinação passou a ser algo bastante

mais grave do que antes. Foi desse modo que, em 1095, Urbano II, papa cluniacense,

convoca o povo a tomar o sinal da cruz e ir a Jerusalém para retirar o Santo Sepulcro da

mão dos infiéis.

Page 43: Introdução à Política Medieval

43

A cruzada é algo bastante original, primeiro ela é no fundo o papa convocando

o povo para ir a guerra defender os negócios da Igreja. Ora, isso era função do

imperador! Mais do que isso, a cruzada passou a ser um movimento ‘internacional’,

pois não foi como das vezes em que a Igreja precisava se defender dos lombardos e

chamava os alemães ou os franceses para a defender, agora o papa convoca toda a

cristandade, pobres e nobres de todo o ocidente cristão para defender os seus interesses.

Cabe lembrar que, inicialmente, a proposta da cruzada não é expandir territórios ou

abrir rotas comerciais. Existem pensadores que defendem o caráter guerreiro dos povos

que compunham a cristandade atrapalhar a paz na Europa, por isso era conveniente que

aqueles guerreiros fossem fazer guerra com os infiéis, para que pudessem diminuir a

briga entre irmãos no território europeu. Ainda que muitas teorias possam ser levantadas

para justificar quais teriam sidos os motivos da convocação da primeira Cruzada, o que

se pode ter certeza é que as pessoas aderiam a ela por meio da pregação, ou seja, por

motivos espirituais.

É comum tratar as Cruzadas apenas como um artifício econômico-político,

entretanto tratar apenas em termos desses critérios intramundanos consiste um

anacronismo, pois essas são evocações que surgem na Idade Moderna, ou seja, são

ideias fortes que se fazem presentes na sociedade atual, mas não para a medieval.

Dificilmente, algum rei sairia da sua terra para a guerra se não houvesse um motivo que

lhe fizesse muito sentido. Não bastariam os argumentos econômicos, pois são reis.

Talvez de honra, mas ainda assim se diria, já são reis. Ocorre que se deve lembrar que

na primeira parte da Idade Média é o símbolo e a vida espiritual o motor que leva os

homens a fazer as coisas. Em analogia, no período do Império carolíngio ofereciam-se

benefícios temporais aqueles que lutassem pelos interesses do Império, agora o papa

oferece benefícios espirituais aqueles que lutam pelo benefício da Igreja; naquele

período, os benefícios temporais dados por Carlos Magno geraram uma nova estrutura

política, agora os benefícios concedidos pelo papa geram uma nova espiritualidade: a

militar.

Essa espiritualidade vai ser aquela que vai atingir ser o motor para a fundação

das chamadas ordens militares. Elas foram criadas na primeira metade do século XII

para proteger os peregrinos que iam a Jerusalém, que havia sido reconquistada em 1099

com o fim da primeira cruzada. A primeira delas foi a ordem dos cavaleiros templários,

em 1120. A fama dos cavaleiros templários parece ter chegado ao século XXI recheado

Page 44: Introdução à Política Medieval

44

de panegíricos, mas na realidade eles são a síntese entre duas excelências, a física e a

espiritual. Por um lado, eles eram soldados, por outro eram monges que tinham de

obedecer rigorosamente as prescrições da regra. A ordem dos templários adicionava à

disciplina do soldado a disciplina espiritual ao modo de São Bernardo, ou seja,

discipulado feito ao modo de paternidade espiritual.

O que aconteceu foi que esses cavaleiros se tornaram os melhores da Europa,

pois lutavam, não somente com a técnica, mas também com devoção espiritual. Cabe

lembrar que a influência de São Bernardo era grande, dado o fato de ter escrito um livro

sobre cavalaria para os templários. Isso indica que aquelas evocações espirituais que

São Bernardo usava para fazer a sua abadia ficar lotada de jovens, também

influenciavam os jovens guerreiros que defenderiam os peregrinos nas suas

peregrinações. Essa nova espiritualidade militar trouxe efeitos muito interessantes nas

cruzadas, contam alguns panegíricos que, quando os sarracenos conseguiam capturar

algum templário eles matavam logo, pois sua habilidade e destreza eram semelhantes as

de um demônio que facilmente escaparia.

O primor físico, o rigor espiritual, a confiabilidade ética e a isenção de

jurisdição episcopal a não ser a do papa transformaram os templários em uma

organização internacional de tão alta confiabilidade que nenhuma estrutura feudal teria

condições se comparar. Todo esse prestígio adicionado às costumeiras viagens

internacionais e a isenção de impostos fez com que eles se tornassem o meio ideal para

que se fizessem grandes transferências de dinheiro. Ou seja, eles se tornaram o único

banco internacional da Europa. Por isso eram usados ostensivamente para depósito de

dinheiro, transferências internacionais e empréstimos. Não é preciso muito esforço para

perceber que o enriquecimento dessa ordem era iminente.

Além de todo esse poder é interessante ressaltar que essas ordens militares

começaram com um caráter internacional, mas depois foram assumindo uma

nacionalidade própria, o que é um conhecimento muito interessante, pois a

nacionalização de um conjunto de guerreiros centralizados e disciplinados é chamado de

exército. Isso quer dizer que basta chamar o superior da ordem militar de rei que o

estado nacional estará fundado, pois é a fidelidade que o exército tem para com o rei

que o torna soberano, afinal o rei que não tem quem o defenda é só mais um plebeu.

Page 45: Introdução à Política Medieval

45

Esse provavelmente foi o motivo pelo qual os templários acabaram por ser

extintos na primeira metade do século XIII, por artimanha de Felipe II. No fundo, os

templários já funcionavam como um estado nacional, semelhante ao que ocorrera com

Cluny, a diferença aqui é que Cluny não tinha poderia militar, ou seja, sua

independência era limitar pela sua fraqueza na capacidade de se defender. Isso não

ocorre com os templários, daí não ser possível derrubá-los a força. Aconteceu que na

época do rei Felipe IV, o belo, a ordem era sua credora e o rei não tinha condições de

pagar; aconteceu que naquela época o papa era francês e o rei acusou os templários de

heresia, o papa os condenou e mandou desfazer a ordem e expulsar, com isso Felipe não

precisou pagar a dívida e recuperou seu poder.

A união feita entre a disciplina militar com a espiritualidade fez com que se

percebesse o poder que a evocação espiritual tem para impulsionar os homens agirem de

modo mais perfeito. Essa percepção pode gerar a confusão de que o sucesso das ordens

militares se resume ao fato de terem presentes os símbolos espirituais. Ou seja, poderia

acreditar que os templários só são bem sucedidos porque são piedosos desprezando a

necessidade da disciplina militar. Esse exagero na espiritualidade acabou por gerar um

desconforto na cristandade que foi o fracasso da segunda Cruzada. Nessa época o papa

era Eugênio III, filho espiritual de São Bernardo – que teve importância decisiva na

convocação da empreitada. A importância de São Bernardo consiste no fato de que

ninguém era obrigado a ir para as cruzadas as pessoas deveriam ser convencidas por

argumentos de fé. Ocorreu que naquele período São Bernardo era o melhor pregador do

mundo e fora chamado para caminhar pela Europa para pregar a peregrinação militar à

Terra Santa em vias de defender o santo sepulcro, ou seja, para pregar a cruzada. O

poder de persuasão de São Bernardo é enorme e por onde passa consegue muitos

adeptos, sobretudo entre ladrões, criminosos etc. Ele entendia que isso era uma

demonstração da conversão desses homens que optavam voluntariamente por se

penitenciar indo as cruzadas.

O abade de Claraval conseguiu ainda a adesão de dois reis que iriam comandar

a tropa em direção a Jerusalém. O problema é que esses reis não eram os melhores

guerreiros ou estrategistas de que a Igreja dispunha, gerando uma derrota catastrófica

sob o ponto de vista temporal quanto pelo ponto de vista espiritual. Lembre-se que essa

Cruzada foi pregada por um santo, ou seja, não faltou santidade na sua convocação,

sobretudo porque aquele que pregara a cruzada fora o mesmo que atendia

Page 46: Introdução à Política Medieval

46

espiritualmente os templários que sempre foram bem sucedidos em combate. Logo após

a derrota pessoas foram ao papa e a São Bernardo para perguntar, porque eles

mandaram tantos homens para a morte. A explicação foi que eles não teriam culpa dos

pecados que foram cometidos pelos cruzados durante o caminho. Essa explicação não

foi exatamente satisfatória e o fracasso da segunda cruzada parece trazer a tona o

problema acerca da real influência do poder espiritual nas decisões das coisas práticas

da vida, ou seja, emerge a pergunta: a espiritualidade é suficiente para garantir a

estrutura do saeculum?

No âmbito temporal

A controvérsia das investiduras não acabou com a morte de Gregório VII, pois

aconteceu que durante o seu pontificado a cúria romana ficara cheia de antigos monges

de Cluny, isso significa que após a morte de Gregório VII alguns papas que seguiam a

linha de pensamento de Gregório VII chegaram ao poder continuando a sua reforma.

Entre esses papas destaca-se o papa Urbano II (1088-1099) que fora um verdadeiro

continuador da reforma. Quando assumiu o papado mandou uma carta aos bispos

alemães dizendo que pretendia reforçar tudo o afirmado por Gregório e rejeitar tudo o

que ele rejeitara.

Acerca dos atos políticos desenvolvidos por Urbano II, deve-se destacar a

convocação da primeira cruzada. Para a política, este chamado é muito importante, pois

mostra um papa gregoriano fazendo uso do poder de influência temporal que descende

daqueles decretos da querela das investiduras. O rei, então excomungado, Felipe I da

França adere a primeira Cruzada, não somente ele mas também outros nobres e reis.

Essa aproximação da França ao papado facilitaria muito a solução da querela das

investiduras naquele país.

Além disso, o poder temporal de Urbano II se tornou maior ainda quando

conseguiu por meio de algumas alianças políticas reduzir a influência de Henrique IV

no Sacro Império deixando a Itália sob a dominação de outro rei. Por meio de medidas

diplomáticas Urbano II acabou por conseguir afastar da Igreja a onda de cisma do

ocidente que a querela poderia ter levantado. Para resolver de fato o problema só faltava

convencer a Alemanha a renunciar o direito de escolher seus bispos.

Esse problema durou bastante tempo, e chegou até o papado de Pascoal II,

papa gregoriano, que tentou restituir a paz com a Alemanha. Inicialmente, pensou em

Page 47: Introdução à Política Medieval

47

fazê-lo com o filho de Henrique IV que lutara pela Igreja em determinados momentos,

chegando até mesmo a ir contra o seu pai. Entretanto, não tanto por piedade se fez mas

pelo império. Afinal, o imperador é o defensor da Igreja. Aconteceu que pascoal II

condenou novamente a investidura laica. Para um rei alemão isso era muito mais grave

do que para os outros, pois a administração do reino alemão era toda fundada na

estrutura de otoniana que tem os bispos como os senhores feudais principais, então

Henrique não tem condições renunciar o direito de escolher os bispos sem perder a

soberania do país.

Interessado em receber logo a coroa de imperador Henrique V foi ao papa para

que assim o fizesse, esse pediu para que ele renunciasse seu direito de escolher os

bispos. Então, Henrique pediu para que o papa renunciasse primeiro o poder temporal

de seus bispos. Embora pudesse parecer surpreendente, o papa assentiu ao pedido.

Pascoal II decidiu que o poder temporal dos bispos ficaria restrito ao dízimo que

poderiam cobrar nas suas dioceses. Ainda que essa pareça uma boa proposta, no fundo,

o futuro imperador sabia que essa era uma proposta descabida tanto para o imperador

quanto para o papa. Para o papa, pois os bispos alemãs que estavam acostumados a

viver como senhores feudais passariam a ser padres de aldeia, apenas com os ordenados

do dízimo. Por outro lado, para o imperador também era péssimo, pois teria de deixar as

terras nas mãos de leigos, que teriam filho, ou seja, exigiriam o direito de

hereditariedade da terra, direito esse que atrapalha com que o senhor vai tratar o

imperador, afinal o pai pode ter feito um juramento de fidelidade que o filho não o fez.

Em outras palavras, a administração na Alemanha ficaria desfigurada.

Não é sem motivo que o imperador acaba por obrigar o papa a dar-lhe a coroa

por meio de um truque. Primeiro, ele concorda com abdicar-se do poder de escolher

bispos contanto que os bispos renunciem o poder temporal. Depois ele marca o dia da

coroação que é feita sob a condição de o imperador renunciar seus poderes de investir.

Durante a cerimônia o imperador exige que o papa renuncie ao poder temporal primeiro,

para depois renunciar ao seu poder de escolher bispos. O papa faz isso e depois na hora

do imperador renunciar a sua comitiva sai para deliberar a renúncia material feita pelo

papa. O papa se recusa a coroar Henrique V enquanto ele não renunciar os seus direitos.

Daí, o papa é arrastado pela cidade de Roma e preso. O povo romano se sente insultado

com isso e mata alguns alemães por conta disso. A bárbarie parece instituída na cidade

Page 48: Introdução à Política Medieval

48

quando Pascoal II resolve conceder um privilégio a coroa alemã de escolher seus bispos,

declarando que fazia isso pela unidade da Igreja.

Essa decisão foi vexatória a ponto do próprio Pascoal II retratar-se depois disso

e condenar a ação de Henrique V. Essa disputa se alonga bastante até chegar um papa

cassinense que consegue fazer um acordo com Henrique V que, já com certa idade,

resolve voltar ao seio da Igreja. Depois de muito debate o papa Calixto II consegue

encontrar fazer um acordo definitivo com a Alemanha e dar fim a querela iniciada na

metade do século que o precedera. Essa foi a Concordata de Worms17

(1122) que é

praticamente o atestado de óbito do Sacro Império, pois a partir desse acordo começa a

urgir a necessidade de se encontrar uma nova forma de estruturar a sociedade, pois já

não é mais possível contar com os bispos para isso.

Embora seja muito difícil marcar em história o início e o fim de uma época,

pode-se dizer que essa concordata sem dúvida contribuiu muito para a formulação de

uma nova estrutura do saeculum. A concordata é um documento bastante curto que

consiste em uma declaração do imperador e um do papa. Henrique declarou:

Em nome da santa e indivisível trindade, eu, Henrique, pela graça de Deus

augusto dos romanos, por amor de Deus, da santa Igreja e de nosso mestre

papa Calixto, e para a salvação da minha alma, remeto a Deus, e aos santos

apóstolos de Deus, Pedro e Paulo, a santa Igreja católica todas as

investiduras através do anel e do báculo. Concedo que todas as igrejas que

estão no meu reino ou império possam haver eleições canônicas e livre

consagração. Todas as posses e regalias de São Pedro que, do início da

querela até esse dia, seja no tempo do meu pai ou também no meu, houve

subtração, o que eu mantive: Eu restauro para aquela mesma Igreja Romana.

Além disso, àquelas coisas que não mantive, eu fielmente ajudarei na sua

restauração. Como também as posses de outras igrejas e principados, e de

todas as outras pessoas leigos e clérigos o que perderam na guerra. Segundo

o conselho dos principados ou conforme a justiça, eu restaurarei as coisas

que mantenho; e daquelas coisas que não mantenho eu fielmente ajudarei na

restauração. Eu concedo paz verdadeira ao nosso mestre papa Calixto, e à

santa Igreja romana e a todos aqueles que estão ou estiveram do seu lado.

Naqueles assuntos em que a Igreja precisar de ajuda, concedê-la-ei. Nos

assuntos em que ela denunciar a mim eu concederei justiça a ela. 18

A resposta do papa foi:

17

Disponível em: http://www.documentacatholicaomnia.eu/01p/1119-1124,_SS_Callistus_II,_Concordatum_Wormatiense_[AD_1122-09-23],_MLT.pdf acessado em: 10/12/14 18

Disponível em: http://www.documentacatholicaomnia.eu/01p/1119-

1124,_SS_Callistus_II,_Concordatum_Wormatiense_[AD_1122-09-23],_MLT.pdf acessado em:

11/12/14. tradução comparada feita a partir da versão inglesa retirada do site

http://legacy.fordham.edu/halsall/source/worms1.html.

Page 49: Introdução à Política Medieval

49

Eu, bispo Calixto, servo dos servos de Deus, concedo a ti amado filho,

Henrique, pela graça de Deus feito imperador dos romanos, que as eleições

de bispos e abades do reino alemão, que pertencem ao reino, realizar-se-ão

na sua presença, sem simonia ou sem qualquer violência; para que decida em

favor da parte certa e do povo no caso em que emergir alguma discórdia

entre as partes em um concílio ou julgamento de metropolita ou de

provinciais. Para o eleito, ademais, sem qualquer extorsão pode receber a

regalia de ti através do cetro, e te faça para este o que por direito deveria.

Mas aquele que é consagrado em outra parte do império deverá, em seis

meses, e sem qualquer extorsão, receber a regalia de ti através do cetro, e te

faça para esses o que por direito deveriam. Excetuando todas aquelas coisas

que são sabidas pertencer a Igreja Romana. Esses assuntos concernentes a

Igreja, entretanto, deves fazer consultar a mim e procurar ajuda, Eu, de

acordo com a dever do meu ofício, providenciarei ajuda para ti. Ofereço-vos

a verdadeira paz e para todos os que estiveram ou estão do seu lado nessa

querela.19

Uma leitura desatenta da concordata poderia fazer parecer que se está

restituindo aquela estrutura do Sacro Império, entretanto o que está acontecendo aqui é

exatamente o contrário. Quando Henrique dá a Igreja o poder de investir renuncia a

função de poder influenciar nos assuntos internos da Igreja, ou seja, o corpo místico

deixa de ser composto por dois poderes que auto comunicam. Restitui os bens da Igreja

bem como o de clérigos e leigos a juízo de um conselho de príncipes. Ora, no Sacro

Império o poder de julgar era dos bispos, agora Henrique fala sobre um conselho de

príncipes, não só isso, mas também trás a tona a inferência segundo a justiça; em outras

palavras, o critério para a restituição de posses se dará a partir de forças intramundanas.

Por fim, Henrique deixa claro que ajudará a Igreja naqueles assuntos em que ela

precisar de ajuda ou que o invocar; essa postura é diametralmente oposta daquela

evocação do Imperador cristão, pois esse teria por função fazer valer o cristianismo em

todas as regiões do império, basta lembrar que Carlos Magno erigiu até paróquia,

dividiu dioceses etc. Agora, o imperador se coloca diante da Igreja como mais um rei,

semelhante ao modo como era na época dos Merovíngios na França, em que a Igreja

solicitava o rei quando precisava, mas não dava a ele função nem poder eclesiástico.

A declaração do papa não é menos original, a começar pela primeira frase ao

chamar o imperador de filho. Isso é bastante contrário ao que dizia o código gelasiano,

afinal naquele se dizia que o poder do papa e do imperador provinham de Cristo e que

eles partilhavam o poder, ou seja, o imperador não era um leigo como os outros, mas

desde Gregório VII ficou cada vez mais firme a proposta de que o imperador é um leigo

que deveria estar submetido a todos os estatutos dos cristãos. A segunda coisa

19

Idem

Page 50: Introdução à Política Medieval

50

interessante é que o papa concede que o imperador assista as eleições episcopais,

entretanto só podendo intervir naquelas situações em que houver alguma indecisão

muito grande entre os eleitores. Ou seja, o imperador se tornou um juiz de paz na função

de pacificar problemas entre vizinhos. É interessante notar que essa regalia é restrita ao

seu reino, ou seja, reduziu o imperador a um rei como os outros com a diferença de que

pode conceder as regalias aos bispos de outros reinos, potestade essa que é mais

simbólica do que real, pois o papa restringe o poder do imperador dizendo que não

poderá gerir aquelas coisas que concernem a Igreja sem consulta-lo. Em outras palavras,

o imperador não poderia transferir um bispo se assim o quisesse deveria apenas usar seu

poder de influência para com o papa.

A concordata de Worms concede a Igreja a liberdade desejada por Gregório

VII, a autonomia do imperador foi alcança, entretanto para isso foi preciso,

praticamente, destruir o imperador, pois seu poder ficou tão esvaziado que se confunde

com um simples rei da Alemanha que possui um título a mais. Assim, o Sacro Império

vai se fragmentando, dessa vez de forma definitiva dado que a Igreja que era o seu

sustentáculo resolveu se separar. Da primeira vez que o império cristão ruiu o papa

conseguiu criar uma alternativa para resolver o problema, dessa vez fora o próprio

papado que exigiu independência. Assim, a nova estrutura do Saeculum será montada ao

sabor da história e das evocações que passavam na mente dos grandes pensadores da

época.

João de Salisbúria (1115-1180)

João de Salisbúria foi um aluno de Pedro Abelardo que abandonando os

estudos de dialética foi ser secretário de São Tomás Becket na Inglaterra. Ele participou

da querela das investiduras na Inglaterra na famosa disputa entre São Tomás Becket e o

rei Henrique II. Em 1159, ele escreve o primeiro tratado político antes da chegada de

Aristóteles no medievo cristão. O policraticus20

é um livro cujo corpo principal é a

reafirmação da doutrina romano-cristã com alguns lapsos de originalidade naquilo que

se refere a relação entre o povo e o rei.

20 Disponível em: http://www.documentacatholicaomnia.eu/02m/1115-

1180,_Joannis_Saresberiensis,_Polycratus_Sive_De_Nugis_Curialium_Et_Vestigiis_Philosophorum,_M

LT.pdf acessado em: 10/12/14.

Page 51: Introdução à Política Medieval

51

A primeira originalidade de João é reinterpretar aquelas categorias de cidade de

Deus e cidade do homem. Como afirma Agostinho a cidade de Deus procede do amor a

Deus e a cidade dos homens do amor de si. Entretanto, para Agostinho a cidade de Deus

e a cidade dos homens designa uma espécie de metafísica da história, para João essa é

uma forma de caracterizar e descrever os homens no mundo. Ele entende que existem

aqueles, raríssimos, que não buscam governar a ninguém e se interessam apenas pelo

amor de Deus, outros, por sua vez, estão atrás do amor de si. Para João esse segundo

tipo de amor é o que define o estado do ‘homem político’. Pois a política tem por base

a ambição pelo poder. Assim, o mundo político para João se torna um mundo mau que

só atingirá a paz completa quando forem destruídas as instituições políticas. Ele justifica

isso com as seguintes palavras

Embora não seja dado a todos os homens apossar-se do poder principesco ou

régio, é raro ou inexistente o homem completamente isento de tirania. No

discurso comum, o tirano é que oprime o povo pelo governo baseado na

força; no entanto, não é apenas sobre um povo como um todo que um

homem pode ser tirano, mas sobre qualquer condição, mesmo a mais

humilde. Se não for sobre o povo inteiro, cada homem procura assenhorear-

se de tudo a que estendo o seu poder.21

Embora entenda a possibilidade de tirania no reinado, João sustenta que o rei é

o ‘portador da pessoa pública’, ou seja, o ‘representante da comunidade’ sem considerar

quaisquer outras instituições. É interessante perceber que João entende comunidade

como sendo o corpo que o favor divino dotou de vida, o sacerdócio é a alma desse

corpo, a cabeça é o príncipe, os funcionários públicos as outras partes do corpo22

.

Analisando, com rigor essas premissas de João de Salisbúria, percebe-se que aqui se

encontram todas as bases para a sua doutrina mais famosa que é o tiranicídio. Segundo

Voegelin, poder-se-ia resumir o sobredito por

O homem no estado político surgia como um tipo novo, mas a análise não

rompe com as categorias antigas de bom e mau; o rei mostrou uma tendência

a transformar-se em representante da comunidade, mas mantém-se a origem

divina do poder; a analogia orgânica mostra a comunidade como uma

unidade intramundana, mas permanece suspensa a existência de unidades

políticas fora do imperium.23

21

Policraticus apud VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas.

Vol. 2. São Paulo: É realizações, 2012. p. 134 22

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.141 23

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.141

Page 52: Introdução à Política Medieval

52

A definição do homem em um estado político distinto do homem santo é

diametralmente oposta aquela evocação do império, deve-se lembrar que a ação política

também fazia parte de um serviço prestado a Deus. Entretanto, João estaria indicando

que, apesar de simbolicamente a política ser um serviço a Deus, na realidade a maior

parte dos homens trabalha por causa própria. Isso mostra que João já está abandonando

as evocações simbólicas para tratar as coisas segundo a forma em que aparecem para

ele, ou seja, evocando forças intramundanas na sua teoria.

A segunda originalidade em relação ao Sacro Império é rei ser um

representante da comunidade e não um servo de Deus a serviço dela. Para os códigos

gelasianos o governante partilhava com o papa o poder de pastorear o povo de Deus

naquilo que tange os bens temporais, apesar de muitos nuances o rei ainda era

considerado pastor de seu povo. Ocorre que, agora, com João ele se torna representante,

ainda que essa representação seja concedida por Deus, ele não tem mais a função de

pastorear o seu povo unido a Igreja, pelo contrário ele é entendido como representante

único da comunidade. Em outras palavras, esvaziou o sentido espiritual do reinado

como representante de Cristo nos assuntos temporais e começou a entender como

representante do povo. Não seria apropriado derivar disso que João está rompendo com

a Igreja, de modo nenhum, ele sustenta que os reis devem estar submetidos a Igreja,

porque ela é a detentora do poder que eles exercem. Como diz De Wulf, (ele reconhece)

a unidade supranacional da Igreja, a jurisdição espiritual do papa, a supremacia e a

universalidade da Lei Romana vista por ele como o fator primordial na civilização do

seu tempo24

. Sendo assim, qual é a diferença? A diferença é que João não traz os

símbolos religiosos para justificar as evocações no nível de organização social. O rei

representa o seu povo executando a lei e se submete a Igreja que tem o poder divino que

lhe interessa, diferente do Império em que o rei, junto com a Igreja, pastoreia o povo.

A terceira originalidade interessante versa sobre o que ele entende como

comunidade. No Sacro Império, comunidade era o próprio corpo místico de Cristo em

que as pessoas são inseridas e permanecem nele devido a ação dos sacramentos que são

de ordem sobrenatural, por exemplo, entra-se no corpo místico através do batismo, que

é uma ação sobrenatural. Para João, a própria comunidade humana constitui um corpo

em que se é inserido pelo nascimento, ou seja, a inserção nesse corpo e, por

24 DE WULF, M. History of Medieval Philosophy. Vol. 1. Nova York: Dover, 1952. p. 232

Page 53: Introdução à Política Medieval

53

conseguinte, a permanência nele não se dá por um instrumento espiritual, mas sim por

critério terrenos tais como o nascimento e a obediência as leis.

É exatamente no momento em que se reflete sobre as leis é que se vai tratar de

como se vai tratar o governante. Para João, o governante não está acima das leis e

quando ele começar a desobedecê-la para satisfazer os seus desejos já terá chegado ao

nível de tirano, em sentido próprio, e a comunidade poderia matá-lo para restituir a

ordem. A decisão radical de João de matar o tirano é quase uma consequência da opção

pelas soluções intramundanas. Na época do Sacro Império um rei tirano seria punido

com a excomunhão ou com o desterro, pois essas duas coisas significavam a exclusão

da comunidade dos santos; agora em João, não há comunidade dos santos, mas sim

comunidade dos homens terrenos cuja forma de expulsar alguém definitivamente é o

assassinato. João é o primeiro autor cristão a defender a pena de morte para um

governante que tenha sido um tirano.

As consequências das doutrinas de João de Salisbúria são grandes, a primeira

delas reflete o fato de que o povo tem a obrigação de vigiar e julgar seus governantes e

percebendo sua tirania tem a obrigação de matá-lo. Essa evocação, ainda que de modo

velado, coloca um terceiro poder em jogo: a comunidade, entretanto esse não tem

nenhuma origem divina, mas sim natural.

Joaquim de Fiore (1145 – 1202)

Contrariamente, ao realismo intramundano de João de Salisbúria, um monge

cisterciense do mosteiro de Corazzo resolve evidenciar a necessidade de se reestruturar

o Saeculum e faz isso a partir das evocações simbólicas que havia surgido no seu

tempo, esse monge é: Joaquim de Fiore.

A primeira coisa a perceber é que Joaquim de Fiore não é o início de um

processo de simbólico, mas o fim de um. Era sabido que Santo Agostinho, e alguns

padres da Igreja, tinham o hábito de interpretar a história do povo de Israel presente na

Bíblia em termos simbólicos, por exemplo, a promessa que Deus faz Davi de que seria

um filho seu o construtor do templo, é interpretada por esses padres como referente a

Jesus Cristo, ainda que Davi sequer pudesse saber de quem se trataria Jesus. Ou seja,

era comum que os padres interpretassem a história bíblica de modo simbólico. Ocorreu

Page 54: Introdução à Política Medieval

54

que no passado alguns autores, tais como Montano, resolveram interpretar a história

presente de modo simbólico.

A interpretação de Montano era que a história humana poderia se dividir em

três eras, cada uma associada a uma pessoa da Santíssima Trindade. Para ele o Antigo

Testamento teria marcado a era do Pai, o Novo marcou a era do Filho e a era atual seria

marcada pela era do Espírito Santo. Assim, a trindade é o mecanismo que move as eras

da história humana. O que acontece é que esses pensadores que veem a história de modo

simbólico acreditam que encontraram a chave mestra do mundo, portanto poderiam

criar estruturas sociais, definir normas e agir segundo o prescrito nesses símbolos. Foi

pensando assim que Montano entendeu que na era do Espírito Santo não se precisaria

mais de Igreja, pois todos teriam contato imediato com Deus. Essa doutrina foi

condenada como heresia e, depois disso, sumiu do universo cristão.

Sucedeu que, em 1110, Rupert de Deutz escreve um livro chamado de sancta

trinitate et operibus eius, que trazia novamente para o universo cristão aquelas

construções simbólicas que associavam as pessoas da Trindade como o princípio de

articulação das eras históricas. Em 1120, Honório de Autun, no seu livro Summa gloriae

intensifica essa forma simbólica de ver a história ao dizer que a era de Cristo seria

subdividida por cinco idades: apóstolos, mártires, clérigos, monges e o anticristo. Nessa

análise o tempo em que vivia era interpretado por ele como sendo o tempo das ordens

monásticas. Em 1135, aparece o Liber de uma forma credendi et multiformitate vivendi

de Anselmo de Havelberg que se propõe a discutir o motivo pelo qual a Igreja se

encontrava divindade já que ela deveria ser una. A explicação que ele encontra é de

ordem psicológica, pois entende que é próprio do homem esmorecer quando não há

desafios na vida, por isso é importante que a Igreja permaneça lutando contra suas

dificuldades de sorte que a medida que luta se torna mais perfeita, o exemplo que ele dá

disso são as ordens monásticas, que se apresentam cada vez mais como símbolo de

perfeição. O que mais importa aqui para a doutrina trinitária é que o Espírito empurra a

Igreja na história em direção a perfeição.

É exatamente a síntese entre esses três pensamentos que vai eclodir o

pensamento de Joaquim de Fiore, para ele a história do mundo é a história da

progressão espiritual que vai desde o momento em que o homem consegue perceber as

leis da natureza até a plenitude da liberdade espiritual. Para ele, essa história também é

Page 55: Introdução à Política Medieval

55

composta por três reinos, em que cada um está associado à ação de uma pessoa da

Trindade. A originalidade de Joaquim é que ele vai dizer que já se tem o conhecimento

de duas eras, portanto poder-se-ia usar as regularidades dessas eras para prever o que

vai acontecer e situar-se nessa história. É exatamente isso que ele faz no Concordia

Novi et Veteris Testamentii, ele vai buscar as regularidades numéricas presentes na

Bíblia para descobrir em que era ele está e para saber quando se daria a mudança de era.

Ocorreu que verificou por argumentos bíblicos que a era de Cristo deveria acabar em

1260, entretanto a chegada de Cristo foi precedida por precursores que vieram antes

dele, por isso entendia que a nova era começava em 1200, já com o anúncio da chegada

do novo líder. Assim, Joaquim se situava como o profeta do novo saeculum que está

para nascer.

Essa ideia de Joaquim teve efeitos importantes na vida política, pois colocou na

sua teoria do novo saeculum uma série de elementos que permanecerão estáveis nas

teorias políticas posteriores. O primeiro fator é a concepção do que seja a história,

Joaquim de Fiore está afirmando que a história é algo inteligível e de que o presente não

é mera passagem, mas uma etapa com direção e sentido definidos. É interessante

perceber como isso está presente em quase todos os pensamentos revolucionário, toda

vez que alguém resolve apresentar uma teoria de uma revolução das estruturas da

sociedade ela sempre entende que o que se está vivendo é uma etapa do processo

necessário para chegar ao objetivo. Embora seja imprudente dizer que os pensadores

modernos teriam lido Joaquim de Fiori não seria imaginar que ele está inaugurando uma

forma de ver a política que, mesmo cheia de símbolos, ainda evoca uma ideia

intramundana. Afinal, o presente que era o momento de espera da volta de Cristo, em

Santo Agostinho, tornou-se etapa para um futuro melhor.

A segunda evocação interessante trazida por essa ideia de Joaquim de Fiori é

acerca da função do pesador político. Perceba que ele se coloca como sendo aquele que

analisa as regularidades históricas e se percebe o profeta de uma nova era. Na sua

profecia está contida o anuncio de um líder, a diferença dessa profecia para as outras é

que ela é obtida segundo um critério científico, ainda que a concepção de ciência de

Joaquim seja muito diferente da nossa, cabe lembrar que anunciou segundo princípios

racionais, tais como o número de gerações entre Adão e Abraão.

Page 56: Introdução à Política Medieval

56

A terceira evocação é exatamente o anuncio de um líder que levará a cabo o

processo histórico de aperfeiçoamento da humanidade. Era claro que o líder evocativo

da era de Cristo era o próprio, mas qual seria o líder da era do Espírito Santo? A

incógnita deixada por Joaquim acaba por permitir que os franciscanos começassem a

acreditar que era São Francisco a personalidade misteriosa que Joaquim havia previsto,

por isso houve uma tentativa até de fundar um corpo místico franciscano como sendo o

fundamento da era do Espírito Santo. Essa tentativa não deu certo, mas a influência que

o pensamento joaquimita teria na ordem dos franciscanos seria decisivo.

Por fim, é importante lembrar que toda reestruturação política exige que se fale

sobre como será o saeculum futuro. O pensamento joaquimita não fez diferente, ele

entende que a nova ‘sociedade’ é formada por uma irmandade de pessoas autônomas

onde reina a vida do espírito. Ele entendia que a primeira era, que fora a do Pai,

manifestou a lei – que era o tempo do leigo; a segunda era, que fora a do Filho,

manifestou a graça – que é o tempo do sacerdote; a terceira e definitiva era, que é a do

Espírito Santo, manifesta o espírito – que é o tempo dos homens espiritualmente

maduros. Nesse último tempo será manifestado o quinto Evangelho, que é o Espírito

que transformam os elementos da ordem em elementos do reino sem a mediação do

sacramentos, nessa época a Igreja deixará de existir, pois nessa época os dos necessários

para a vida do homem serão alcançados sem a necessidade das mãos sacerdotais. Por

fim, nessa sociedade os homens estarão dotados dos poderes espirituais e por isso serão

capazes de organizar a sociedade na paz.

Todas essas novidades apresentadas por Joaquim de Fiori, parecem restituir o

paradigma espiritual que textos como o policraticus pretendem afastar, mas na realidade

estão todos seguindo o mesmo caminho da construção de um Reino de Deus na terra

segundo princípios intramundanos. Com isso esse pensamento acaba por entrar naquele

movimento dos pensamentos intramundanos pré-Tomás como diria Voegelin o homem

espiritualmente maduro de Joaquim segue-se ao indivíduo político de João de Salibúria

e ao intelectual independente dos Tratados de York25

, ou seja, o indivíduo que é capaz

de superar as instituições.

25

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.155

Page 57: Introdução à Política Medieval

57

São Francisco (1182-1226)

São Francisco não era um teórico como os outros, mas é o símbolo mais

importante naquilo que tange a modificação da evocação imperial. Em primeiro, cabe

alertar a relação mútua entre São Francisco e Joaquim de Fiori, pois aquele acabou

tendo sua influência aumentada por causa de ter todas as características do líder

anunciado por de Fiori, por outro a personalidade de São Francisco o fez famosos o

suficiente para que a própria profecia de Joaquim pudesse ser considerada entre os

franciscanos.

Para que se entenda qual é a grande influência que os franciscanos causam

nessa discussão acerca da alteração da estrutura do Saeculum, é importante perceber que

o franciscanismo ocorre como um movimento popular. Isso já é completamente

diferente das reformas espirituais que precederam, pois aquelas queriam reformar o que

havia sido perdido, aqui o que se está fazendo é criar algo novo. A novidade aqui é

oferecer uma espiritualidade acessível ao leigo, sem distinção feudal ou regalias.

Na página franciscana o Elogio das Virtudes, se pode perceber, ainda que

inconscientemente, o modo como se vai atacar as estruturas falidas do mundo. Como já

se disse, embora não haja em São Francisco um sistema de reestruturação da sociedade

há um plano a ser executado contra os males do mundo. A diferença entre o modo de

guerra franciscano e o de João de Salisbúria é que parece que São Francisco entende

que o modo adequado de atingir as estruturas do mundo é, em primeiro lugar, destruir as

estruturas pecaminosas do homem, assim se encontrará frases como a santa humildade

confunde o orgulho e todos os homens deste mundo e tudo quanto há no mundo26

. Vale

lembrar que a humildade é uma virtude pessoal, mas o efeito que ela causa é no mundo.

Em suma, no período em que estão acontecendo muitas revoltas sociais no medievo

cristão, a maior parte delas de cunho herético, São Francisco está pregando que é a

virtude pessoal é o caminho mais adequado para atacar as instituições mundanas.

O uso das virtudes pessoais como instrumento de modificação social, é uma

evocação de caráter intramundano. Já há aqui uma grande modificação em relação ao

Império, pois naquela situação não seria imaginável que um leigo que não fosse dotado

de cargos pudesse interferir na estrutura da comunidade, menos ainda poderia ser

possível imaginar um leigo escrever uma carta endereçada a todos os cristãos, como São

26

http:// www.franciscanos.org.br/?page_id=4045#sthash.xhj7wvE7.dpuf

Page 58: Introdução à Política Medieval

58

Francisco o faz. Isso no império seria função papal ou do imperador, mas nunca de um

leigo.

Outro elemento interessante da pregação franciscana é a adequação a vida do

Evangelho, ao invés de pregar a pobreza por que o Reino de Deus está próximo, ele a

prega por motivo de adequação ao Evangelho. Isso é muito significativo, pois não se

está sendo pobre por motivos escatológicos, ou seja, por que Jesus está prestes a voltar,

mas sim porque esse foi o conselho que Cristo deixou para quem quisesse viver a vida

perfeita. Essa é outra evocação intramundana, pois a escatologia é para uma vida futura

fora desse plano, extra mundo, a imitação da vida de Cristo é para agora, intra mundo.

Apesar da enorme diferença entre a concepção do Sacro Império e o pregado

por São Francisco a sua submissão a Igreja sempre foi verificada, era exatamente isso

que o distinguia dos sectários que pregavam a pobreza evangélica radical como os

pobres de Lyon, Valdenses. A grande diferença entre esses dois grupos é que os

franciscanos entendiam que era preciso que eles vivessem a pobreza e, a partir disso,

algum efeito eclesiástico poderia surgir, diversamente pensavam os valdenses que

queriam obrigar todos os cristãos a viverem a mesma pobreza deles, sobretudo os

bispos. Esses movimentos populares anticlericais foram prefigurados pelas revoltas da

pataria e acabaram por se espalhar pela Europa.

A autorização dada por Inocêncio III as ordens mendicantes vinham junto com

a sua proteção em todo o território cristão. O que aconteceu é que essas ordens

rapidamente se expandiram pela Europa, a ponto de chegarem a consistir um novo tipo

de cruzada que partia em direção aos povos longínquos com a palavra e não com a

espada. Essa popularização dos franciscanos ocasionou o nascimento de uma terceira

força no império os leigos. A espiritualidade laical pensada por São Francisco acaba por

fundar uma ‘Igreja dos leigos’ que estava em plena comunhão com Roma. O acontece é

que, acidentalmente, surgia uma fissura entre a vida do leigo, em conformidade com a

vida de Cristo, e a vida do clero, em conformidade com Roma.

Também podem ser colocados entre as originalidades franciscanas o modo com

que se segue o Cristo. É importante reparar que o Sacro Império também se entendeu

seguidor de Jesus Cristo, entretanto desde São Gelásio se trás a tona que a figura do

Cristo que se está seguindo é o daquele que está sentado à direita do Pai, gloriosamente

reinante, de onde procede todo o poder. Ou seja, se segue no exercício de sua divindade,

Page 59: Introdução à Política Medieval

59

mas pouco se fala do seguimento de Cristo no exercício de sua humanidade. Basta

lembrar as evocações dos Tratados de York para verificar como a realeza de Cristo se

apresenta como premente a sua pobreza. São Francisco faz exatamente o contrário, ele

quer seguir o Cristo do Evangelho e esse se apresenta como pobre e sofredor. Ou seja,

São Francisco está mudando o modo do seguimento de Cristo.

A principal consequência dessa modificação é que a evocação de que Cristo é a

cabeça do Corpo Místico parece esquecida. O corpo místico sem cabeça perde a sua

unidade e se fragmenta. É interessante perceber que São Francisco não está se rebelando

contra a doutrina paulina do corpo místico, mas sim com aquela evocação política que

fazia o corpo místico sinônimo da comunidade política parece destruída à medida que

Cristo a cabeça dessa estrutura a partir de agora é entendido como o pobre que caminha

a pregar o Reino de Deus.

Perguntas

1. Indique qual foi a síntese feita por São Bernardo na reforma que fez na ordem

cistercienses?

2. Distinga a estrutura de administração de Cluny e a de Claraval.

3. Indique qual foi a nova forma de espiritualidade nascida com o advento das

Cruzadas.

4. Justifique a influência que os templários tiveram na Europa.

5. Analise o conteúdo da concordata de Worms e compare-a com as declarações

gelasianas.

6. Comente a frase a doutrina tiranicida de João de Salisbúria é uma

consequência da sua escolha por uma argumentação intramundana

7. Identifique um problema metodológico no pensamento de Joaquim de Fiori

8. Destaque quais são os três princípios básicos de uma teoria política no

pensamento de Joaquim de Fiori.

9. Distinga a pratica da pobreza franciscana da pobreza praticada pelos pobres de

Lyon.

10. Mostre como a atitude de São Francisco contribui para a dissociação do Sacro

Império.

Page 60: Introdução à Política Medieval

60

Aula 4 (O ‘intramundanismo’ e o islamismo)

Como diz Voegelin, o último imperador medieval foi o fundador do estado

moderno. Essa frase resume muito bem o que foi o reinado de Frederico II (1220-1250),

entretanto antes de falar sobre as suas ações é interessante recordar o contexto em que

viveu e que influências sofria. Frederico II é neto de Frederico Barba Ruiva. Ocorreu

que a morte desse deixou a sua esposa com o dever de comandar o reino da Sicília e

cuidar do jovem Frederico. A imperatriz, antes de morrer, deixou as suas terras na

Sicília e a tutela de seu filho nas mãos do papa Inocêncio III (1198-1216).

A segunda metade do século XII poderia ser caracterizada como período das

expansões feitas através de enlaces matrimoniais, e, às vezes, por meio da guerra. Nesse

período, duas regiões se destacam pela influência, a Inglaterra e a Sicília. A primeira,

porque conseguiu através de pactos matrimoniais ter o domínio de grande parte da

França. A segunda, devido o seu posicionamento estratégico para o domínio da Itália,

ocorria que ambas regiões eram caracterizadas por uma estrutura de governo central. Ao

contrário daquele regime feudal em que o rei dá bastante autonomia aos senhores, essas

regiões já estavam acostumadas a possuírem um sistema de impostos unificado, vide o

fato de que a Sicília tinha um sistema de cobrança de impostos que fazia do seu rei o

mais rico da Europa.

Daí seguia a percepção de que o domínio dessas duas regiões praticamente

significaria possuir toda a influência do império, foi isso que fez Henrique VI ao unir o

império com a Sicília. Essa união deixou o papado isolado o que era um grande

problema devido às constantes brigas entre o papa e o Imperador. Por isso o papado de

Inocêncio III fica marcado como um período em que o papa interferiu muito nas

questões internacionais. Nesse período, vê-se intervenção na eleição do rei alemão, na

Inglaterra que se negava a aceitar a reforma gregoriana, na França, contra alguns

casamentos que foram declarados nulos indevidamente etc.

A intervenção na eleição do rei alemão foi decorrente de uma longa discussão

entre os candidatos ao trono, de um lado estava o partido de Felipe de Suábia, que se

encontrava excomungado por ter celebrado um casamento sem certeza da nulidade, de

outro estava daquele que seria Oton IV. Esse fora preterido pelo papa para evitar que o

reino alemão e o francês ficassem unidos gerando um enorme poder no império que

poderia deixar o papa, novamente, cercado. A escolha por Oton IV só foi boa por pouco

Page 61: Introdução à Política Medieval

61

tempo, pois logo que assumiu o poder começou uma campanha bem sucedida que

conquistou o Sul da Itália e a Sicília. Nesse momento a astúcia política de Inocêncio III

fez toda a diferença, um grupo de príncipes alemães, inimigo da família de Oton IV,

elegeu Frederico como rei alemão, por acordo com o papa e com o rei da França. A

guerra que se seguiu foi favorável a Frederico II, que chega, em 1214, à Sicília com

título de conquistador. Naquele lugar, começa a desenvolver uma administração

centralizada e burocrática, da qual se derivará a sua principal influência para as ideias

políticas.

Frederico II (1215-1250)

Esse Imperador já faz parte de um mundo muito diferente daquele vivido pelos

antigos imperadores do Sacro Império. Não são raros os testemunhos de sua impiedade

e pouca preocupação com os assuntos da Igreja, aquelas evocações antigas de corpo

místico passam longe do seu pensamento, embora tenha sido um dos reis mais cultos da

Europa. Talvez tenha sido esse um dos motivos pelo qual tenha aderido a uma forma de

pensar intramundana a ponto de fazer acontecer na vida política o que alguns

intelectuais já previam, o fim do Sacro Império.

No período de Frederico, três são as forças de ordem intramundana que

influem no Império: a arte de governar, o aparecimento do estadista e a consciência

nacional. A arte de governar aparece na Europa, não como uma percepção teórica, mas

sim como uma evocação prática, pois se percebeu que haviam regiões tinham um

aumento enorme de influencia política e econômica quando tinham um poder central

organizado e uma organização militar bem treinada. Como exemplo, poder-se-ia citar a

Sicília que tinha o governante mais rico da Europa ou a liga lombarda que consistia em

um grupo militar organizado que foi capaz de derrotar Frederico I etc. Assim, os

Europeus começaram a perceber que havia uma forma de administração que era capaz

de gerar riqueza e força militar.

Pode-se notar claramente a diferença entre o regime feudal preponderante do

Sacro Império e esse novo regime que aparece. No feudal não há sistema único de

impostos, aqui tem; no feudal, não há grupamento militar organizado, nesse sistema

novo tem. Isso poderia ser considerado só mais um sistema político a ser defendido se

não fossem os exemplos de que o novo regime se apresenta como superior ao primeiro.

Vide que Frederico Barba Ruiva, usando o regime feudal, perdeu para a liga lombarda,

Page 62: Introdução à Política Medieval

62

que usava o modelo novo. Ou seja, a mensagem que fica é: há um modelo novo de fazer

política e esse parece mais eficiente que o antigo.

No nível das ideias políticas vale a pena perceber o motivo pelo qual se pode

chamar essa evocação de intramundana. Se se lembrar do acontecido naquela cruzada

pregada por São Bernardo, ver-se-á a diferença entre a maneira de conceber a guerra.

Basta lembrar que grande parte do exército da segunda cruzada era composto por

ladrões e assassinos, além do fato de que os reis que a conduziam não tinham talento

para a guerra. Mas, mesmo assim foram, por motivos espirituais. Diversamente,

ocorreria no contexto que se está afigurando no início do século XIII, ou seja, não é

mais a espiritualidade que vai decidir o resultado das batalhas, mas sim o preparo

humano e a estratégia do general.

O aparecimento do estadista é um dado fundamental nesse processo, pois não

adiantaria terem encontrado uma forma diferente de fazer política se não se encontrasse

homens com essas capacidades. Bem como, os próprios representantes do antigo regime

começassem a perceber que aquela ideia de império unificado já havia chegado ao seu

fim. Esse último acontecimento sucedeu com Henrique VI ao deixar o Testamento do

imperador em que deixa claro que a ideia de um imperador não tinha mais espaço nos

novos padrões de poder. Não muito distante disso se encontra as ações de Inocêncio III

que parece ter feito mais aliança política com os estadistas emergentes que,

propriamente dito, com o imperador. Na segunda metade do Século XII até o fim do

império de Frederico II, o imperador parecia mais um rei ambicioso a quem o papa tinha

de conter do que com o protetor da Igreja romana.

O nascimento do estadista como uma pessoa independente do corpo místico se

faz cada vez mais clara com as decisões tomadas por Frederico II que praticamente

abandona aquele sentido de imperador cristão e passa a querer ser simplesmente

imperador. Provavelmente, a decisão mais anticatólica tomada por ele, foi a de fazer

aliança com os sarracenos por motivos comerciais. Isso seria uma ousadia bastante

grande, se o seu exército não fosse composto por mercenários sarracenos. Ou seja, para

Frederico os inimigos da Igreja são inimigos da Igreja, não dele. Sua preocupação é

prover uma boa administração e garantir os seus poderes como imperador. Isso mostra

que o estadista nascente não necessariamente está preocupado em ser o rei santo de que

Santo Agostinho falava. Essas atitudes de Frederico acabarão por estar todas

Page 63: Introdução à Política Medieval

63

fundamentadas no proêmio das constituições de Melfi que proclama a Igreja não poder

interferir nos assuntos temporais do reino da Sicília.

A consciência nacional é praticamente consequência das duas primeiras, só se

distingue pelo fato de que ela também exige algum fato de união de caráter cultural, por

exemplo, ocorreu que a Espanha foi a que mais rapidamente chegou a essa consciência,

pois tiveram de passar vários anos lutando contra os muçulmanos o que os identificava

como um corpo unido em favor de um objetivo. Não foi sem motivo que Afonso VIII

(1135) quando coroado rei da Espanha também recebeu o título de imperador. Essa

consciência também atrapalhou a união política entre Inglaterra e a França. Isso mostra

que, por algum motivo, a população dos reinos começou a se identificar como uma

unidade.

Essa ideia é a que sacramenta o fim do Sacro Império, embora no início século

XIII ela ainda não apareça completamente sedimentada a sua presença já mostra

mudança do mundo. O motivo é muito simples, no período do império todos são

membros do único corpo místico de Cristo, ou seja, o que dá unidade ao povo é a

religião. Agora, com a evocação nacional o corpo místico perdeu seu caráter visível e se

tornou uma realidade invisível, pois o que unifica o povo de modo visível é a sua

história, cultura, língua etc.

As três evocações supracitadas se apresentavam naturalmente na Europa sem

qualquer sistematização ou promulgação legal, de fato, as consciências mudavam, mas

ainda de forma silenciosa. Mesmo os arroubos de Frederico podiam ser interpretados

como excentricidades de um imperador ambicioso, coisa que muitas vezes já se tinha

visto. As diferenças começaram a surgir a partir do momento que foram proclamadas as

Constituições de Melfi.

Constituições de Melfi (1231)

Essas constituições o ato conclusivo da reorganização política do reino da

Sicília. Essa constituição acabou por ser polêmica desde o seu início, pois foi

promulgada por Frederico II, enquanto imperador romano. Acontece que naquela época

o imperador não tinha poder para ditar leis para um reino, devido aquele acordo de

Gregório VII que dava autonomia aos reinos, ou seja, proibia que um reino fosse

vassalo de outro. Na Idade Média, aquele que dita às leis administrativas de um lugar se

assenhora daquele lugar. Por outro lado, Frederico não poderia promulgar isso em

Page 64: Introdução à Política Medieval

64

nenhum outro lugar que não na Sicília onde era rei. Naquele momento, Frederico se

colocava como um monarca absoluto, pois concentrava em si o império e o reinado da

Sicília.

Não somente o próprio ato da promulgação, mas também o conteúdo das

constituições é surpreendente, pois misturam elementos imagens cristãs juntamente às

ideias de Roma pagã. O proêmio segue a estrutura do Corpus juri de Roma, que fora

projetada no período de Justiniano como um código legal que pudesse valer para todo o

império; a diferença é que agora Frederico a está promulgando para uma província.

O proêmio começa com o símbolo cristão de que Deus fez o homem bom e

após a queda do pecado o homem ganhou uma inclinação para o mal que é transmitida

hereditariamente. É a partir dessa inclinação que brotam todos os males sociais, por isso

são necessários governantes para preservar a ordem da sociedade humana. Embora isso

se assemelhe muito com o que pensa Santo Agostinho, acerca da fundação da ordem

política, deve-se dizer que há diferenças enormes entre elas.

Primeiro, no proêmio a queda é fruto da desobediência de uma lei cuja punição

permanece até hoje, ou seja, ainda não teve perdão. Isso é contrário ao que diz a

doutrina cristã que defende uma redenção ter acontecido em Jesus Cristo. É exatamente

o fato de ter ignorado essa elemento que leva o proêmio a entender que o governante

como um salvador, pois se não fosse ele a humanidade já teria sucumbido. Isso faz com

que a função do governante seja uma necessidade das coisas, diz-se das coisas, pois

entende que toda a criação está sujeita ao homem, que está sujeito ao seu governante.

Embora essa teoria de origem da sociedade esteja cheio de símbolos cristãos,

ela se afasta bastante daqueles princípios cristãos do poder. O primeiro dado

interessante é que o poder do governante aparece como uma realidade intramundana,

seu poder deriva da falha dos homens e permanece, pois a falha é hereditária. Isso é

completamente oposto àquela ideia de que o poder do governante vinha do Cristo Rei.

Em outras palavras, o poder do governante é dado diretamente pela natureza das coisas

e indiretamente por Deus, enquanto criador da natureza.

Vale a pena ressaltar que esse proêmio está reinaugurando uma forma de criar

teorias políticas, pois ele começa fazendo uma sociogonia, ou seja, contando um mito

de como surgiu a sociedade para justificar os poderes da sociedade presente. Esse

Page 65: Introdução à Política Medieval

65

artifício fora largamente usado na Antiguidade e nos povos bárbaros. Na antiguidade até

por filósofos, como Aristóteles que conta uma breve história de como foi o início da

primeira sociedade para justificar seu sistema. É interessante perceber que esse método

vai se estender até os nossos dias, basta lembrar o mito do ‘bom selvagem’ ou de que ‘o

homem é lobo do homem’ para ver que Roussau e Hobbes (autores modernos) também

fazem uso dessa estratégia. O que há de original nas constituições de Melfi foi ter

conseguido fazer uma teoria naturalista como a desses filósofos usando simbologia

cristã.

Acerca dos símbolos cristãos ainda cabe dizer que a teoria naturalista do poder

desconsidera aquele símbolo do corpo místico e passa a tratar o governante como o

conservador do corpo da humanidade. Isso é muito significativo, sobretudo porque

alguns resolveram interpretar essa mudança de perspectiva para inserir pensamentos

averroístas ao proêmio da constituição. Esses pensamentos procuram entender que a

imortalidade do primeiro casal foi substituída pela imortalidade coletiva da humanidade.

Isso significa que a humanidade é um corpo e nós somos apenas seus membros, nesse

caso os homens seriam como células de um corpo que tudo que são é recebido do

intelecto superior. Em outras palavras, os homens não são pessoas individuas com

inteligência e alma imortal, mas sim partes do corpo da humanidade. Essa é uma

interpretação averroísta da teoria do intelecto agente de Aristóteles que geraria para a

política um problema gravíssimo. Se se combinar as constituições de Melfi com a teoria

de intelecto agente universal, então ter-se-á a teoria naturalista do totalitarismo. Veja, o

governante é aquele que mantém o corpo da humanidade e os seres humanos são apenas

instrumentos para o funcionamento desse corpo. Assim, o governante é aquele homem

que conhece a bem para a humanidade e deve aplicá-lo, quem discordar está

atrapalhando o corpo da humanidade e pode ser descartado, pois não há

individualidades. Em outras palavras, o totalitarismo está institucionalizado.

É importante deixar claro que as constituições não falam isso, nem sequer

insinuam tamanha análise, mas houve quem interpretasse desse modo. É muito pouco

provável que realmente houve influência averroísta nas constituições, mas é interessante

perceber como a mudança da evocação do corpo místico para o corpo da humanidade

trazia alguns riscos.

Page 66: Introdução à Política Medieval

66

Embora seja impreciso afirmar averroísmos nas constituições de Melfi, não

seria difícil identificar nela certo grau de totalitarismo, ainda que sem fundamentação

filosófica. A ideia de que o imperador é o guardião da humanidade fez dele um

salvador, portanto detentor do direito de fazer tudo o que for preciso manter o reino. O

grande problema que assolava a Europa desde o fim do século XII eram as revoltas

heréticas populares.

Frederico II já havia mostrado que não estava muito interessado em resolver

os problemas da Igreja, mas curiosamente esse ele se dispôs a ajudar efusivamente. A

justificativa parece bem razoável, ainda que o Sacro Império estivesse sendo demolido a

fé continuava a ser o principal elemento unificador do povo, ou seja, um cisma era

sinônimo de uma divisão do reino. Divisão essa que viria precedida de milhares de

brigas internas que enfraqueciam o reino na sua expansão e na administração. Em outras

palavras, a heresia era um problema governamental, não somente religioso. Cabe

lembrar que essas revoltas eram contrárias a toda forma de hierarquia seja ela religiosa

ou real. Esses movimentos queriam instituir uma pobreza obrigatória a todos os cristãos

e, não raras às vezes, eram violentos.

A situação das heresias era tão grave que Inocêncio III chegou a convocar uma

cruzada contra os albigenses que estavam causando terror no interior. Após a derrota do

albigenses foi instaurada a inquisição pelo papa Inocêncio III para fazer valer as normas

ditadas aos cátaros. A característica mais importante do processo inquisitorial foi a

invenção da ‘investigação régia’ que era a caça aos acusados por investigadores oficiais.

Isso era considerado um avanço porque a punição que era dada para aqueles que eram

considerados hereges era a morte. Frederico II foi buscar nos autos romanos qual era a

punição que era dada aos hereges e resolveu aplicá-la no seu reino através das suas

novas constituições, naturalmente isso poderia ser instrumento de perseguição política

se não houvesse um tribunal que assegurasse se o caso era de heresia ou se era apenas

uma calúnia.

O Tribunal da Inquisição foi criado para proteger o povo de algum rei

ambicioso que mandaria matar alguém por motivo de riquezas sob o pretexto de heresia.

Ao contrário de outras decisões da Igreja naquele período os reis, especialmente

Frederico II, estavam dispostos a lutar contra os hereges, por isso não se importaram da

criação de um tribunal internacional vinculado diretamente ao papa. É interessante a

Page 67: Introdução à Política Medieval

67

percepção que Voegelin tem acerca do desejo que os reis tinham em lutar contra os

hereges, segundo ele

As fórmulas usadas para respaldar as medidas anti-heréticas são altamente

sugestivas dos desenvolvimentos posteriores do período dos estados

nacionais. A acusação de que os patarenos induziram uma cisão na

‘indivisível unidade da fé’ nos lembra da ‘indivisível soberania da nação’

nas constituições revolucionárias da França. A alegação de que os patarenos

cruelmente destroem a si mesmos, porque tinham de ser queimados pelos

governantes devido a sua persistência em suas crenças heréticas, lembra-nos

o argumento de Hobbes segundo o qual aquele que desobedece o príncipe, e

consequentemente é levado à morte, comete suicídio.27

A consequência mais desastrosa disso é que a Igreja passa a ser entendida

como a comunidade de mortais organizada por um governante que, em nome de Deus,

os mantém a salvo de si próprios até o nível de matar aqueles que atentam contra a fé.

Essa, por sua vez, tornou-se elemento de unificação nacional a ser tutelada pelo rei.

Essa modificação coloca o rei em um pedestal semelhante aos imperadores pagãos.

Cabe dizer que ele acabou por ser a síntese entre os pensamentos do Anônimo de York e

João de Salisbúria, cumprindo, para alguns, a profecia do anticristo feita por Joaquim de

Fiori. Isso se pode dizer, pois era superpoderoso por causa de Deus, tinha seu reinado

fundado nos princípios intramundanos e refez o a comunidade cristã de modo que,

agora, ele é o salvador da humanidade, não mais Jesus Cristo.

O direito romano

É perceptível que as evocações intramundanas tem se tornado as principais

ideias políticas que se vinculavam na Europa. Exatamente por isso que se fez necessário

um instrumento de argumentação igualmente intramundano para terminar de vez de

alterar as ideias antigas. Deve-se lembrar que no período do Império o principal

instrumento de argumentação era a Sagrada Escritura, declarações dos padres da Igreja,

dos papas etc. Agora, esses instrumentos são insuficientes, restaria saber o que ficaria

no lugar. O direito foi esse novo instrumento, fica patente isso na declaratio papae de

Inocêncio III. Antes de tratar dessa declaração é importante saber a influencia do direito

romano na Europa no período medieval.

Ultrapassando o período dos mitos sobre a origem do direito romano, pode-se

considerar a revitalização feita por Justiniano como a grande reforma do direito romano,

27

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.181

Page 68: Introdução à Política Medieval

68

embora tenha sido uma obra magnânima não se deve acreditar que tenha sido muito

revolucionário, pois o grau de decadência em que esse estava na época de Justiniano era

tão grande que ele só foi ensinado em poucas escolas do império. Uma das intenções do

direito romano era definir uma ordem correta de leis que fosse capaz de valer a para

sempre e em todo o império.

Essa ideia de que havia uma lei que garantiria a ordem quando unida ao

cristianismo chega ao nível de ser considerada como mais digna de todos os objetos,

pois ordena a sociedade e a afasta da iniquidade. É semelhante aquele princípio

platônico de que a lei conduz o cidadão para a virtude, a diferença é que aqui se entende

que a lei conduz a santidade.

Além desse caráter psicológico, adiciona-se o fato de que o mundo é entendido

como emanação de Deus, daí o arcabouço jurídico que organiza as coisas e a vida das

pessoas passa a ser entendido como parte da ordem cósmica. Ou seja, passa a ser

entendido como um instrumento de Deus, que é dado a nós por meio do imperador.

Essa concepção poderia ser capaz de estagnar o direito a ponto de fazê-lo escrita

sagrada, de fato isso se fez em certo sentido no digesto que consistia na lei da velha

Roma, diferentemente da lei do imperador que teria caráter mutável.

Entendendo o direito romano como sendo uma espécie de escrita sagrada para

organizar o mundo, foi transmitida a ele a evoca de universalidade. Ele era entendido

como a lei geral. Mesmo com a fundação do Sacro Império Romano Germânico a Igreja

permaneceu usando o direito romano como sua base. É exatamente a sua universalidade

que é um dos fatores que ocasionam a sua revitalização no século XII a partir da

Universidade de Bolonha, onde estudou Inocêncio III.

Por volta do ano 1100 o direito romano já tinha atingido a dignidade de direito

comum da humanidade, chegava a ser considerado como um dos fatores de civilização,

tais como a língua latina e a Igreja. O século XII, como vimos, é aquele em que começa

a se evocar aquelas ideias intramundanas. Ou seja, o direito romano passaria a ser usado

para resolver aquelas querelas práticas e casuísticas da época. Deve-se lembrar que o

direito romano não tinha a pretensão de ser casuístico no seu início, mas sim de ser

universal, o que obviamente reduz a sua capacidade para resolver problemas práticos

como se desejava fazer no século XII.

Page 69: Introdução à Política Medieval

69

Os efeitos disso foram evidentes, inicialmente se começou tentando deixar

claro o texto que tinha quase caráter sagrado, depois chegou a época dos glosadores que

acabaram por tratar o texto como pretexto para resolver os seus problemas casuísticos.

As alterações eram tão grandes que chegou ao ponto de reunirem todas as posições

contraditórias e construírem um livro para marcar quais eram as glosas concordantes.

Embora fujam do espírito do direito romano essas glosas acabaram por revitalizar o

direito romano para a solução de problemas práticos que era o desejoso dos lombardos.

A universidade de Bolonha, especializada em direito canônico, acabou por

desenvolver através de seu professor, Graciano, um projeto semelhante aquele feito por

Justiniano, entretanto considerando as normas que foram ditadas para o império

ocidental. A ideia era organizar os tratados do direito canônico de modo sistemático, o

trabalho de Graciano ficou tão famoso porque acrescentou ao seu tratado um método

diferente: o método dialético de Abelardo. Hoje, seria chamado de método histórico

crítico, o que fez foi organizar as leis eliminando as contradições possíveis através da

contextualização histórica de cada um dos decretais. Essa obra ficou conhecida como

decretum gratianum (1140) e logo que foi publicada ganhou estatuto quase oficial de

direito canônico e material de estudo para a universidade. Isso é importante, pois alguns

anos depois estaria ali estudando Inocêncio III, isso quer dizer que provavelmente esse

material foi o que ele estudou. Essa informação se torna para entender o posicionamento

do papa na Deliberatio papae.

Essa declaração de Inocêncio III é profundamente bombástica, pois é o

testemunho de que realmente o século XII estava por mundanizar, não só o século, mas

também a Igreja. Essa deliberação indica que o papa tem obrigação de dar motivos

intramundanos para justificar as suas decisões, não basta o carisma da função como no

Sacro Império, agora era fundamental que justificasse. Lembre-se que ninguém

perguntou a Leão III quais eram os motivos pelos quais ele estava coroando Carlos

Magno, ainda que os tivesse, o carisma de sua função bastava. Agora com essa

declaração faz parte do papado justificar as suas decisões de sorte a atingir a verdade

quase que de forma apodítica.

Não há quem não considere isso uma atitude nobre, entretanto o que está

acontecendo é que a declaração transforma a ordem carismática em ordem processual.

Isso pode ser visto pela forma como Inocêncio começa a declaração ao recordar que

Page 70: Introdução à Política Medieval

70

fora a Igreja que transladara o império do Oriente para o Ocidente, por motivos de

segurança, e que fora ela que inventara o império, portanto poderia escolher o

imperador. Em outras palavras, a translação do império já não é mais uma época da

história desejada por Deus, mas um ato jurídico da Cúria com a finalidade de ganhar

um protetor mais eficaz para a Igreja.28

Isso é bastante radical, pois coloca os atos da

Cúria como uma ação intramundana, não mais como uma ação do corpo místico.

Outro elemento intramundano na declaração é a coroação do imperador,

anteriormente era entendido como a cabeça secular do império, só poderia negar a

coroação daqueles que fossem indignos, agora o papa trata a escolha do imperador

como um processo jurídico que pode terminar com a negação do papa por motivos

políticos.

Um dos resultados mais impressionantes dessas evocações consiste no papa

julgar ter poder temporal de fundar um império e de criar um imperador, a ponto de

tratar essa atitude como o ponto máximo do poder jurídico papal. Em si tratando de

forças intramundanas o papa acaba por se colocar novamente como senhor feudal da

terra, isso não é dito explicitamente em Inocêncio III, mas a evolução dessa brecha vai

acabar por levar ao extremo de Egídio Romano dizer que todas as terras da Europa são

do papa e defender o primeiro totalitarismo teórico cristão.

Não somente pela maneira como trata o imperador e o império se deve

considerar o dito por Inocêncio III, mas também pelo próprio conteúdo da declaração

que levanta três preocupações do papa quanto ao futuro imperador: o medo do cerco

imperial, medo da hereditariedade no império e o medo do perseguidor da Igreja. o

primeiro se referia ao caso de um imperador que dominasse a Sicília e acabasse pelo

papa não ter rota de fuga em caso de guerra. A segunda temia o fato de o império acabar

por se tornar hereditário e isso impedir a escolha dos melhores para a função. A terceira

temia que o imperador fosse um perseguidor da Igreja como foi Henrique V. Logo em

seguida o papa enumera às más ações de cada um dos candidatos. Isso indica que o

processo de escolha do papa seguia um critério de política internacional, não mais das

qualidades pessoais do candidato.

28

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.205

Page 71: Introdução à Política Medieval

71

Essa forma de juízo papal anuncia o que vai acontecer com a Igreja no Século

XIV quando o corpo místico de Cristo acaba por se confundir com o corpo jurídico da

comunidade perfeita que toma as suas decisões através de demonstração escolásticas e

seguindo critérios intramundanos antes dos critérios simbólicos espirituais do período

imperial.

As influências islâmicas

O aristotelismo

O aristotelismo chegou ao ocidente por três vias: por Boécio (Séc. VI), por

migrações (séc. XII) e pela filosofia muçulmana (séc. XIII). O aristotelismo traduzido

por Boécio era praticamente a parte do estudo da lógica aristotélica, esses escritos eram

usados no medievo para compor o estudo das artes liberais, aquelas ensinadas as

crianças no início da escola.

As obras que apareceram no século XII dizem respeito aquelas obras

especulativas de Aristóteles, como a física, a metafísica etc. Essas obras continham

alguns ensinamentos que contrariavam o ensinamento da Igreja em vário pontos, por

exemplo, a inferência de que o mundo é eterno.

As obras derivadas da filosofia muçulmana são aqueles comentários de

Averróis alguns deles cheios de neoplatonismo, por exemplo, o Liber de causis que foi

associado atribuído a Aristóteles indevidamente. Os comentários averroístas traziam

consigo uma confusão acerca do intelecto agente que, como já se apontou, implicava

sérios problemas para doutrinas cristãs como a imortalidade da alma.

Por esses motivos as doutrinas aristotélicas foram proibidas de serem

vinculadas na Universidade de Paris, em 1215. Entretanto, essas condenações foram

insuficientes para conter o estudo do aristotelismo. A situação chegou a ser tão grave

que mesmo com a proibição papal de 1263 o estudo não parou nas universidades. Uma

pergunta interessante seria: o que será que havia de tão interessante no aristotelismo que

fascinava os jovens a ponto de desafiarem todas as autoridades para estuda-lo?

É possível que a resposta esteja exatamente no ambiente filosófico em que

vivia a Europa no século XIII. Segundo De Wulf, a filosofia medieval poderia ser

resumida como uma disputa entre o aristotelismo e o neoplatonismo. O primeiro com

características intramundanas como a lógica e o segundo com características

Page 72: Introdução à Política Medieval

72

extramundanas como a metafísica. O que acontecia é que essas tendências apareciam na

mente dos pensadores sem um sistema organizado.

Fazendo uma reflexão atenta naquela tendência intramundana de João de

Salisbúria se perceberá elementos que se assemelhariam ao aristotelismo, por exemplo,

a ideia da comunidade humana. Diversamente, os tratados de York carregam uma

dimensão platônica ao dizer que a história real é uma projeção da história presente na

mente de Deus. Isso indica que havia teorias vinculadas nas universidades que teriam

pontos de contato com essas duas linhas de pensamento. O interessante é perceber que a

primeira metade do século XIII é aquela em que até o papa acaba aderindo às evocações

intramundanas, ou seja, o renascimento aristotélico no período em que as pessoas

tentam reconstruir o saeculum a partir estruturas intramundanas é quase que atear fogo

em um balde de gasolina.

Isso ganha um problema sistemático, porque diferentemente das outras

evocações intramundanas o aristotelismo contem um sistema completo, ou seja, a sua

filosofia consegue tratar desde a lógica até a metafisica a partir de princípios

intramundanos. Isso não seria tão problemático se o renascimento do aristotelismo não

viesse junto às filosofias islâmicas.

Além da rivalidade entre muçulmanos e cristãos vale a pena ressaltar que o

islã primitivo não tem um sistema de pensamento muito desenvolvido e só vai passar a

ter certo grau de aprofundamento a partir do surgimento da Kalam, a teologia

escolástica muçulmana. Ela teria sido fruto do confronto com o cristianismo no século

VIII. Mesmo assim, não havia uma instituição reguladora da ortodoxia com punições

claras aqueles que se separarem da fé como a Igreja, por isso para eles a filosofia era

praticamente um estilo de vida, possivelmente, até mais do que era para os aristotélicos

do período clássico. Entendia-se que aquelas pessoas que haviam tido experiências

místicas ou que tinham um esclarecimento melhor viviam o corão de modo diferente: o

modo filosófico. Deve-se esclarecer que isso não acontece em todos os grupos

muçulmanos, pois também há os grupos mais radicais, como aqueles a que pertencia

Avicena, que repudiando a filosofia acabaram por matar o filósofo a aderir de vez ao

fundamentalismo. O que se quer afirmar disso é que era possível ser fiel ao islã e a

Aristóteles ao mesmo tempo, mas ao que parece não se poderá dizer a mesma coisa do

cristianismo.

Page 73: Introdução à Política Medieval

73

É por isso que uma série de pensadores católicos resolveu debruçar-se acerca

de como fazer para conseguir compactuar o aristotelismo e o cristianismo. Entre eles

Santo Alberto Magno e seu aluno Santo Tomás de Aquino que foram aqueles que

mormente conseguiram atingir a síntese. Esses dois autores foram importantíssimos no

combate a filosofia averroísta que atingia a França. Primeiro, o bispo Francês chamou

Alberto Magno que rapidamente convocou seu jovem aluno, o irmão Tomás, para

disputar com os averroístas. Dessas disputas nasceram os livros, de ente essentia e

summa contra gentiles. Já próximo ao final de sua vida ele via nascer também na

universidade de Paris, onde lecionava, um movimento filosófico que seguia uma índole

islâmica, cujo líder era o jovem professor Sigério de Brabante.29

Sigério de Brabante (1240-1284)

Muito pouco se sabe acerca da vida de Sigério, entretanto se pode saber acerca

da sua doutrina pelas obras que foram compiladas por Pierre Mandonnet, em 1899. Os

três grandes núcleos importantes que se pode derivar da doutrina de Sigério, seguno

Voegelin, são a relação entre fé e razão, a espécie como a comunidade humana e a ética

utilitarista.

Branbante não está interessado em fazer uma união entre fé e razão, mas

simplesmente submeter a primeira a segunda. Um exemplo é a percepção que ele tem de

que a razão não é capaz de provar imortalidade da alma. Mas ele assente que a fé diz

que a alma é imortal e, portanto, adere, pois acredita que há homens privilegiados que

enxergam mais que outros homens, são os profetas, e esses dão testemunho da verdade

aqueles que não têm essa capacidade. Por outro lado, ele entende que a melhor vida que

há é a do filósofo e que não há sábio senão aquele que adere a filosofia. É interessante

perceber a razão se afigura como uma força intramundana que quer tomar conta de

todas as dimensões da vida, afirma Brabante acordarás, estudarás e lerás, e das

dúvidas restantes serás conduzido a mais estudo e leitura, porque a vida sem letras é a

morte e o túmulo do homem vulgar30

.

Ora, parece contraditório assentir que a filosofia deva tomar conta de todas as

dimensões da vida e ao mesmo tempo dizer que dá a fé o estatuto da verdade quando a

29

As pesquisas atuais tem dúvidas acerca da veracidade das acusações feitas a Brabante procedem, mas aqui se está interessado nas ideias que pululavam na época acerca dele. Sejam verdadeiramente dele ou não para as ideias políticas interessa mais saber qual é a evocação que ele trazia. 30

Mandonnet, siger, p.171 apud VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias

políticas. Vol. 2. São Paulo: É realizações, 2012. p.205

Page 74: Introdução à Política Medieval

74

razão é insuficiente. Entretanto, isso não seria contraditório para quem assinta que a fé

não é racional. Ou seja, para aqueles que entendem que a fé é a manifestação misteriosa

da vontade de Deus a alguns homens escolhidos, não há qualquer problema em

contemplar com os filósofos e participar do corpo dos cristãos afirmando as

irracionalidades que afirmam. O problema é que esse é o modo de vida de um filósofo

muçulmano, pois lá poderiam entender a filosofia como a forma de vida espiritual da

elite intelectual e o corão como sendo a forma que os homens vulgares vivem a sua vida

espiritual.

A afirmação da irracionalidade da fé implica um problema sem tamanho, pois

se deve lembrar que naquele período a própria Igreja baseava suas normas em termos

racionais, por exemplo, a declaratio de Inocêncio III. Daí, chegasse ao problema: se a fé

não é racional, como a Igreja pode querer usar critérios racionais para julgar? Sem

critérios racionais como é possível fazer um processo canônico? A adesão a dicotomia

entre fé e razão seria uma evocação que destruiria a estrutura eclesiástica que estava

sendo montada naquele século.

Outro problema consentir uma espiritualidade elitista racional de caráter

islâmico era a própria divisão da Igreja, pois em um século em que a evocação do corpo

místico foi esfacelada não seria impossível que Aristóteles se tornasse uma autoridade

espiritual na Europa, como fora São Francisco, a diferença é que aquele primeiro vai

tratar grande parte daquilo que é doutrina católica como pensamento não filosófico. Em

outras palavras, deixar Aristóteles receber uma autoridade espiritual naquela altura do

século seria como que ressuscitar as seitas gnósticas que estavam no cristianismo nos

primeiros séculos.

Acerca do intelectual de Brabante, Voegelin firma

O pathos do intelectual intramundano independente irrompe aqui com a

mesma veemência que o pathos do indivíduo intramundano em João de

Salisbúria, da personalidade histórica em Joaquim de Fiori, do cristão

intramundano em São Francisco, do governante intramundano em

Frederico II.31

A segunda doutrina é aquela que entende haver uma unidade intramundana da

espécie. Semelhante a João de Salisbúria, ele entenderá que uma comunidade define um

31

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.224

Page 75: Introdução à Política Medieval

75

corpo, a diferença é que agora ele não está mais falando apenas da comunidade política,

mas se refere à unidade de todos os homens. O meio pelo qual se entra nessa

comunidade é através do processo de geração, que se estende até o infinito. Assim, não

existe expectativa racional para um fim do mundo.

Possivelmente, inspirado na ideia averroísta ele entende que nenhuma alma

individual dá forma ao corpo, mas sim um único intelecto que opera sobre os homens.

Esse seria o intelecto objetivo, ou seja, a alma desse corpo que é a espécie humana. Já se

viu uma das consequências políticas para isso, a outra é a criação de uma hierarquia

entre os homens a partir da sua capacidade intelectual. Pois, sendo o intelecto aquilo que

dá vida ao homem, aquele que melhor o tem, melhor homem é. Desse modo os homens

não são iguais, mas sim hierarquizados a partir do seu intelecto. Essa percepção já é um

esboço do que vai acontecer nos próximos séculos em que se pregará que há nos

homens alguma coisa que os faz melhor que os outros, a diferença desse pensamento e

os outros é que substitui a capacidade intelectual por outra qualidade como cor,

condição monetária, família etc.

A terceira teoria é a ética utilitarista de Brabante, assim como para Aristóteles

o fundamento último da sua ética reside na sua antropologia e, por fim, a metafísica,

Brabante também faz a sua ética ser fruto da sua metafísica da espécie. Se se considerar

a espécie humana como um corpo, que possui uma alma própria, então os indivíduos

são instrumentos desse corpo. Semelhante ao que hoje seriam as células para o corpo

humano. Assim, não há bens individuais, somente bens para o corpo; como na célula, o

bem para a célula é o bem do corpo, ainda que o bem do corpo implique a morte dessa

célula. Esse se torna o critério para o bem ou o mal na ética de Brabante, aquilo que

contribui para o bem do corpo da humanidade é bom e o que não contribui é mal. Daí,

surge a ideia do cálculo social, semelhante ao Bentham, o maior bem é aquele que

propaga o bem em maior quantidade na espécie.

Uma das consequências dessa doutrina é uma doutrina sexual bastante

diferente daquela defendida pela Igreja, pois agora o ato sexual é aquele responsável

pela manutenção da espécie, ou seja, o ato sexual é o maior bem que um homem pode

fazer, pois ele sozinho consegue beneficiar ao todo. Sendo o melhor ato, não poderia

estar limitado ao casamento, segue daí também que a continência não seria

Page 76: Introdução à Política Medieval

76

necessariamente uma virtude, pois privaria a humanidade de um bem, por fim, a

abstinência perfeita, como a dos clérigos, é um atentado contra a humanidade.

É interessante perceber como nesse ponto Sigério se afasta em muito da

antropologia cristã, pois na visão cristã Deus cria o homem como um ser diferente de

todo o resto da natureza, para o cristianismo o homem é senhor da natureza. Aqui o

homem é subproduto da natureza, repare que se a teoria de Sigério substituísse homens

por cachorros as conclusões seriam as mesmas. Ou seja, esse pensamento é naturalista

até o nível de confundir homens com meros animais. O mais impressionante nisso é

perceber que, salvaguardando as devidas proporções, há teorias políticas modernas que

ainda conservam o naturalismo que entende homens como um animal entre os outros.

Por fim, essa concepção metafísica também afeta a concepção de história, veja

que o processo de geração é infinito e continuará a existir enquanto houver seres que se

reproduzam. Isso mostra que o processo de evolução histórica não vai parar e funciona

independente do homem. Aqui Sigério se põe como um observador fora da história a

relatar o mundo, diferentemente, fez Joaquim de Fiori que se pôs dentro da história para

alterá-la, mas no fundo a ideia é a mesma a história seguirá apesar dos homens. Isso não

significa que Brabante esteja defendendo uma apatia, ou seja, que as pessoas para de

agir, muito pelo contrário, ele entende que existe um bem comum que deve ser

perseguido apesar dos interesses pessoais.

Perguntas

1. Comente a frase o último imperador medieval foi o fundador do estado

moderno.

2. Indique quais foram as três forças de ordem intramundana que orbitavam o

império no período de Frederico II.

3. Elenque três originalidades das Constituições de Melfi e suas consequências

para a política medieval

4. Comente o interesse que os reis, especialmente Frederico II, no combate as

heresias.

5. Indique como o renascimento do direito romano pode ter contribuído para a

declaratio papae.

6. Analise os elementos da declaratio papae comparando com as declarações

gelasianas.

7. Qual a importância do aristotelismo para as evocações políticas a partir do

século XIII?

Page 77: Introdução à Política Medieval

77

8. Comente a doutrina de Sigério de Brabante acerca da relação entre fé e razão.

9. Aponte dois problemas derivados da concepção de Sigério de Brabante referente

à espécie como comunidade humana.

10. Justifique a doutrina sexual de Brabante na sua metafísica.

Page 78: Introdução à Política Medieval

78

Aula 5 – A doutrina de Santo Tomás (1225-1274)

Aplicações

A primeira coisa importante que se deve saber de um autor é a originalidade do

seu pensamento. Atualmente, destaca-se a sua originalidade no nível metafísico, em que

ele é apresentado como aquele autor que conseguiu fazer a síntese entre o aristotelismo

e o platonismo. O que se poderia conjecturar é se essa originalidade é apenas no nível

metafísico ou se ela também conseguiu atingir outras áreas do pensamento. Ao que

parece a política também foi um lugar em que teria conseguido uma síntese entre a

evocação intramundana, sistematizada pelo aristotelismo, e a evocação espiritual.

Para evidenciar isso é interessante perceber como Santo Tomás trata alguns

assuntos que antes dele eram entendidos como naturalismo. Desde o cardeal Humberto

que o mundo é entendido como feito de espírito. Essa suposição, quando aprofundada

nos tratados de York, geraram a supremacia a do rei sob o sacerdote. Para Santo Tomás,

está impresso na estrutura do universo o intelecto divino. Isso significa que há verdade

na estrutura do mundo, mas ao mesmo tempo essa verdade procede de Deus. Como se

vê, por um lado, há uma evocação intramundana, por outro, uma evocação espiritual,

pois essa verdade não se encerra no mundo. Aqui não se vê mais o mundo como uma

cópia da mente de Deus.

Uma das principais consequências de reconhecer uma verdade no mundo que

procede de Deus é a percepção de que as coisas possuem uma razão de ser. Ou seja, seu

significado hierárquico na obra da criação. Como a verdade que há nas coisas procede

de Deus é para ele que devem voltar todas as coisas. Essa percepção se apresenta como

um atestado de reconhecimento da individualidade. Veja que não se disse que as coisas

coletivamente tem um fim, como pensavam os averroístas, mas sim que a verdade que

está no mundo assim se faz individualmente em cada coisa. Inclusive no homem, esse

tem no seu intelecto a marca do intelecto divino, mas cada indivíduo possui o seu

intelecto agente. Ou seja, aquela evocação intramundana intelectual, passa a ser

espiritual a medida que o intelecto que há em cada um possui uma marca do intelecto

divino.

Essa concepção do que seja o intelecto humana acaba por mudar também a

maneira de enxergar o próprio intelectual. Santo Tomás vai definir na Suma Contra os

Gentios que o filósofo como a aquele que deve ordenar e gerir as coisas para um fim.

Page 79: Introdução à Política Medieval

79

A função do filósofo mudou completamente, deixou de ser aquele que contempla as

verdades e passou a ser aquele que direciona as coisas para o seu fim, que é Deus. Essa

definição mais uma vez dá o caráter dual a definição tomista, pois ordenar e gerir são

atitudes intramundanas, mas o fim é extramundana.

Cabe aqui ressaltar que para Santo Tomás a dignidade dos homens não está

sujeita a capacidade intelectual deles, ainda que ele entenda que um homem sapiente

tenha algumas vantagens, porque por meio do intelecto ele se aproxima de Deus,

entretanto os homens que não são instruídos não são considerados de segunda classe,

pois receberam da revelação àquelas coisas que os filósofos encontraram a partir da

razão.

Essa última ideia só fará sentido se não houver dicotomia entre fé e razão. Essa

é a próxima tese tomista a que se exporá. Para o Aquinate, não fará sentido dizer que fé

e razão se contradizem, pois o intelecto divino se encontra presente no intelecto

humano. O que pode acontecer é que os homens errem, mas não que a própria

inteligência se contradiga com a fé. O que se admite é que haja verdade além da razão,

mas nunca aquém, ou seja, não é possível ter um dado revelado que seja

assintoticamente contrário ao dado da razão. Há uma situação interessante, em que

Santo Tomás mostra a diferença entre uma verdade de fé que é indemonstrável e uma

verdade filosófica. Ele entende que a necessidade de o mundo ter sido criado é uma

verdade filosófico, entretanto entende que o mundo ter se dado junto ao tempo é uma

revelação. A primeira ele prova a segunda não. Ele não provou, pois a razão mostrou ser

incapaz para resolver esse problema, somente a fé poderia fazê-lo. Veja que já não

houve rixas, mas sim harmonia. A filosofia sai na hora em que chega a revelação que

complementa a verdade que o filósofo não consegue atingir.

A diferença com Sigério é enorme, pois naquele havia uma submissão, em que

a razão deveria aceitar o que diz a fé. Aqui a razão espera pela fé para que ela complete

o que seus instrumentos não são capazes de encontrar. A plena harmonia entre razão e

fé acaba por resolver aquele complicado problema da evocação intramundana

eclesiástica que consistia em transformar a Igreja em um corpo jurídico cuja forma de

julgar é a razão. Antes se poderia dizer que a forma de julgar da Igreja havia se tornado

intramundana, mas se se considera a fé e a razão como uma mesma realidade que é a

verdade, então se poderia dizer que aquele que age segundo a reta razão está agindo

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80

conforme a fé e vice-versa. Logo, os processos jurídicos da Igreja possuem uma

significação espiritual, ainda que versem sobre formas de ação intramundanas.

Embora o Aquinate não tenha falado explicitamente dos poderes imperiais vale

apenas lembrar que ele também entende que o poder mais importante é o poder

espiritual, mas é interessante que isso não seja entendido como instrumento de poder.

Veja que uma das características do pensamento tomista é que a dimensão espiritual

seja a causa final, ou seja, ela indica o lugar para onde se quer chegar, mas não o

caminho para chegar lá. Por exemplo, a finalidade de todas as ações do rei são o bem do

povo, essa evocação é meramente intramundana se não se considerar que o motivo pelo

qual se quer que o bem do povo é a sua salvação. Veja a causa final não entra nas

decisões da execução, mas muda o seu sentido.

Essa parece ser a grande capacidade de Santo Tomás, a capacidade de dar as

atitudes intramundanas uma finalidade espiritual de modo que a subordinação que o

temporal deve ter do espiritual não atinge a prática diretamente. Por exemplo, o fato

espiritual de que as pessoas da Trindade possuem missões não pode ser usado como

mecanismo para prever o futuro, pois uma coisa é a Trindade, que é a finalidade dos

homens, outra coisa é a história, que é fruto da ação prática dos homens.

Uma evidência de que Santo Tomás não aceitava aquela teoria histórica que

trata a Trindade como um motor que determina a sociedade se encontra na questão 106

da segunda parte da Suma Teológica. Nessa situação ele afirma que a ideia de um

terceiro reino não faz sentido, porque a era de Cristo já é a era do Espírito Santo, pois

não se pode conceber um estado de vida melhor do que aquele conferido pela Nova Lei.

Isso poderia indicar uma indicar uma estagnação universal, mas não o é. Para o

Aquinate o Evangelho é pregado a todas as gerações algumas delas são mais dóceis ao

Espírito que outras, é essa docilidade que faz uma geração melhor ou pior.

Essa resposta é surpreendente, pois sai do determinismo histórico espiritual de

Joaquim de Fiori para a situação em que o homem se torna o motor da história. Repare

que nessa concepção o mundo melhor virá quando o homem for dócil às inspirações de

sempre. É importante reparar que há uma dimensão da ação do homem que movimenta

a história e se abre a ação de Deus que santifica a história. Mais uma vez se encontra

unido a espiritualidade da praticidade da vida.

Page 81: Introdução à Política Medieval

81

Política

A primeira coisa importante a se entender é que Santo Tomás não escreveu um

sistema político, mas sim enunciou uma filosofia política. Isso quer dizer que estava

interessado em discutir acerca dos princípios que devem reger a vida humana. Em

outras palavras, não há interesse em construir um sistema político perfeito válido para

toda a humanidade. Por outro lado, procura descrever seu pensamento sob a ótica de

forças naturais o que o possibilita promulgar princípios que poderiam valer para toda a

humanidade.

A doutrina política tomista parte do princípio de que o que está no intelecto é

cópia da natureza. Logo, qualquer pensamento sobre a vida prática do homem passará

por alguma concepção da natureza. Por exemplo, sabe-se que a melhor maneira de

esfriar alguma coisa que está quente é fazê-la entrar em contato com algo frio, que é seu

princípio oposto; similarmente, ocorre com o vício, se uma pessoa se encontra viciada

em alimentos promove-se nele a virtude da temperança, atitude oposta. O exemplo

acima mostra uma solução prática resultando da cópia de um aspecto da natureza.

Como o ato humano é melhor quanto mais difunde o bem, por isso os atos

políticos são os mais importantes, pois tem a capacidade de gerar o bem para toda a

comunidade. Exatamente, essa noção de todo, totum, que se vai interessar, afinal, se se

resolve problemas pontuais copiando da natureza coisas pontuais, então se deve resolver

problemas do todo copiando a natureza como um todo. Assim, a comunidade política

deverá ser uma cópia daquilo que o todo da natureza é.

O que se percebe na natureza é que constitui um todo integral com partes bem

rígidas e hierarquizadas, harmoniosamente dispostas32

. Essa disposição é uma

consequência da filosofia da natureza tomista, mais precisamente da física aristotélica.

A hierarquização da natureza pode ser vista a partir do conhecimento que se tinha da

árvore de porfírio, que coloca os seres hierarquizados segundo a sua dignidade e

importância. Por exemplo, o ser humano possui uma dignidade superior aos animais

devido a sua capacidade de mudar a natureza através do seu intelecto. Em suma, na

natureza a hierarquia se dá a partir das suas capacidades e bens que geram ao todo. Daí,

32

SARANYANA, J. I., A Filosofia Medieval: das origens patrísticas à escolástica barroca. São Paulo:

Instituto de Ciência e Filosofia Raimundo Lulio, 2006.

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82

torna-se evidente a necessidade de que a ordem política possua uma ordenação social

hierarquizada em que cada membro tenha a sua função equivalente a sua capacidade.

Se há um paralelo entre a sociedade e a natureza, então o governante deveria

ser análogo a Deus. De fato, essa analogia acaba acontecendo, sobretudo no momento

em que Santo Tomás se afasta do aristotelismo e começa a falar sobre a fundação da

cidade. Deve-se lembrar que para Aristóteles a cidade não é fundada ela é um

subproduto da natureza. Entretanto, a analogia não chega ao nível daquilo que foi falado

no tratado de York. Pelo contrário, a evocação aqui é de cunho naturalista, pois

considera que o homem deve viver em sociedade para conseguir desenvolver as suas

capacidades, diferente do anônimo que entendia a analogia divina do governante como

uma imitação daquilo que se encontrava na mente de Deus, e não na própria natureza

humana.

A comunidade que é capaz de atender ao homem todas as suas necessidades

naturais da vida humana é chamada comunidade perfeita. Perfeita aqui se deve entender

acabada, ou seja, aquela que consegue ser uma analogia da natureza. Lembrando que na

natureza todos os seres são atendidos em suas necessidades, os animais, as plantas etc.

possuem tudo que precisam. No caso deles, bastava dar conta das necessidades de

subsistência, para o homem também se deve preocupar acerca da defesa da vida e da

promoção da intelectualidade. Acerca da subsistência, uma comunidade perfeita deveria

ser capaz de fornecer os alimentos suficientes para garantir a vida; acerca da defesa,

garantir um exército; acerca da intelectualidade boas leis que conduzam a virtude.

Assim, o regente é aquele que deverá prover essas coisas aos seus súditos. Deve-se

lembrar que, conservando aquela analogia com a natureza, o governante não pode ser

qualquer um, mas sim aquele que possui a capacidade para isso, ou seja, aquele que

possui a virtus regia, a virtude real. Essa virtude entra na ótica do dom natural que

algumas pessoas recebem.

Até então, a doutrina tomista está tão intramundana quanto à de João de

Salisbúria, diferindo apenas do grau sistemático. Vê-se que o naturalismo aqui é muito

mais forte do que aquele, pois a fundamentação da estrutura social é a própria natureza

que foi estudada sistematicamente em outros tratados filosóficos, ou seja, a doutrina

política não é um pensamento isolado do autor para resolver um problema, mas sim um

elemento que compõe um corpo filosófico que engloba todas as dimensões do

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83

conhecimento humano. Embora se tenha chegado a altos patamares filosóficos, o

pensamento supracitado não responde a pergunta acerca de como deveria ser a

configuração de uma comunidade cristã.

A primeira coisa importante a se saber é que a comunidade deve ser livre, para

ele a liberdade é critério para julgar um governo como bom ou mau. Se os membros da

comunidade cooperam livremente para o bem comum, então o governo é bom, se

precisa ser subjugado para fazer as coisas, então é mal. Veja que novamente a

colaboração para o bem comum é importante, mas agora essa cooperação deve ser feita

na liberdade. Em suma, não poderia ser aceito como bom o governo que julgasse

conhecer o bem comum e obrigasse os seus súditos a contribuir para esse bem. Isso é

bastante diferente das teorias políticas averroístas, que tratavam os homens como

instrumento útil para o bem da espécie.

A segunda coisa fundamental é a percepção de que

O homem é naturaliter animal sociale, e é naturalmente inclinado para o

amor mútuo e a solidariedade, mas a finalidade social não reside na esfera

natural. O que constitui a comunidade humana é a finalidade comum de

amar a Deus e a ordenação da vida para a beatitude eterna33

.

Essa segunda é que desponta a originalidade tomista no nível da filosofia

política, ele entende que a finalidade da vida política é a salvação das almas. O mais

impressionante é conseguir fundamentar isso usando Aristóteles, que entendia que a

finalidade da vida política era a felicidade, como a felicidade para o cristão é a vida

eterna, segue-se a vida eterna ser o motivo para fazer política. Essa atitude diversa

daquela teoria naturalista aristotélica e próxima a doutrina do cristianismo primitivo que

entendia todas as coisas estarem ordenadas para a vida eterna.

Antes de partir para o terceiro tópico seria muito importante, deter-se acerca

dessa doutrina da finalidade. Lembrando a analogia entre a comunidade perfeita e a

natureza é importante saber qual é o papel da finalidade na natureza, para que se

entenda que Santo Tomás está falando quando define uma nova finalidade para a

comunidade.

Na doutrina aristotélica da natureza, diz-se que as causas presentes no mundo

podem ser resumidas em quatro tipos: material, formal, eficiente e final. Para

33

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.255

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Aristóteles ainda, o conhecimento das causas é o verdadeiro conhecimento que se tem

das coisas, desse modo conhecer as causas é ter o conhecimento científico, ou seja,

racional. O conhecimento racional é aquele que é usado nas técnicas e na vida prática,

ou seja, é aquele que é usado pelo homem que quer ‘bem fazer’ e ‘bem agir’. Em outras

palavras, o modo certo de conduzir a natureza é aquele que considera as quatro causas.

Além disso, existe uma hierarquia entre essas causas, para Aristóteles a causa final é a

mais importante porque todas se ordenam para ela.

Transferindo isso para a analogia política, dir-se-ia que o modo certo de

conduzir a vida política seria em termos das quatro causas que estão ordenadas para a

finalidade, que é a vida eterna. Isso poderia ser só um jogo de palavras, entretanto deve-

se lembrar que o ‘bem fazer’ e o ‘bem agir’ depende das causas, ou seja, o ‘bem fazer’ e

o ‘bem agir’ político está subordinado a vida eterna. As consequências práticas disso

são devastadoras, pois agora o governante deve se preocupar em saber se as suas

atitudes, como governante, são capazes de conduzir o povo a vida eterna, bem como a si

próprio. Na prática, poder-se-ia estipular uma regra, diante de alguma dificuldade a ser

resolvida pergunta-se: o que significa isso para a salvação? Se a resposta for ‘isso

atrapalha a salvação’, então ela não seria uma boa ação política.

A diferença é exorbitante, pois não há restrições entre o modo como se deve

agir na prática, isso fica a cargo da situação. O que acontece é a percepção do quanto

essa atitude ajuda ou atrapalha a comunidade atingir a vida eterna. Com isso houve uma

excelente síntese entre a vida intramundana e a vida extramundana. Entretanto, faltou

uma instituição: a Igreja.

Com a síntese tomista, de fato, aquelas evocações gelasianas de dois poderes o

espiritual e o temporal acabava por ruir, mas não pouco significado tem a Igreja. Pois, a

partir do momento em que se reconhece que a finalidade da sociedade não está na

natureza simplesmente, a Igreja ganha o estatuto daquela que possui aquilo que esperam

os homens: a salvação. Assim, ele entende que o corpo dos cristãos deve governado

pelo rei espiritual que é Cristo. Somente ele pode ser rei espiritual, pois o rei deve suster

aos seus súditos o que é necessário para a salvação. Na doutrina cristã, ninguém merece

a salvação senão Cristo, somente ele é capaz de prover isso a alguém e faz isso através

dos sacramentos. Por isso, Santo Tomás entende que Cristo é o rei dos homens que

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85

esperam a vida eterna e os ministros desse reino são os sacerdotes, que distribuem para

o povo o que precisam para serem salvos: os sacramentos.

Vê-se aqui a existência de um poder espiritual reservado aos sacerdotes, mas

esse poder não é compartilhado com o governante como em São Gelásio, aqui o

governante recebe o seu poder de Deus, por meio da natureza, por isso rege as coisas

naturais. O papa recebe seu poder imediatamente de Deus, por isso rege as coisas

sobrenaturais. Isso já seria o princípio daquilo que posteriormente será a completa cisão

entre Igreja e Estado, em que se parará de falar de poder espiritual e poder temporal e se

começará a evocar Estado e Religião. A diferença aqui é que para São Tomás a

finalidade do estado deveria ser levar às pessoas a salvação anunciada pela religião.

O problema surge quando ocorre do governante não estar exatamente

interessado em conduzir o povo a salvação e começar a usar o seu poder para satisfazer

as suas próprias vontades. Para evitar esse mal, Santo Tomás também propõe uma

estrutura governamental que fosse capaz de dar a sociedade capacidade de defesa contra

os tiranos. Por isso, defendeu uma teoria do governo constitucional. Nesse pensamento

o poder deveria estar distribuído a partir da divisão da sociedade em três ordens: os

ótimos, os homens honoráveis e o povo vil. O centro de decisões deveria ser feita pelos

reis, os homens honoráveis e os representantes do povo eleitos por sufrágio universal.

É interessante perceber como esse sistema consegue unir as três formas

grandes formas de governo, é monárquica, pois tem rei; é aristocrática, pois existe uma

elite dos bons que tem alto poder de influencia e é democrática, pois há sufrágio

universal para se obter os representantes do povo.

Para Santo Tomás esse sistema possui muito benefícios, o primeiro deles é

conter o poder do rei para que ele não tenha força suficiente de instaurar uma tirania.

Caso isso aconteça, ele defende a deposição do rei, que deverá ser feita pela autoridade

pública coletiva, mas não entende o tiranicídio como uma opção.

O segundo benefício é a participação popular no exercício do poder, ainda que

o povo não possa se dedicar as coisas do governo como os nobres eles participam por

seus representantes. Isso é baseado no princípio de que a estabilidade política exige

algum tipo de participação popular no poder, além do princípio de que o cristão é um

homem livre maduro. Vale ressaltar que considerar a participação do povo simples na

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86

vida política aparece como uma grande novidade. Até então a ação política popular se

resumia as revoltas heréticas e as reinvindicação dos patarenos.

Cabe dizer também que Santo Tomás também se preocupou com esse tipo de

movimento popular que ao invés de exigir participação política estava mais interessado

em instaurar uma tirania do povo. Essa poderia ser caracterizada pelo processo de

compra de votos, eleição de figuras questionáveis e espoliação dos ricos. Nesse caso, ele

recomenda o retorno às formas aristocráticas de governo.

Não é difícil perceber quantos elementos da doutrina tomista estiveram

presentes na Idade Moderna, veja que a estrutura da comunidade em três grupos poderia

se assemelha a estrutura de governo do povo francês no período da Revolução, não é

sem motivo imaginar uma influência tomista dado que São Luis, rei de França, tivera

Santo Tomás por conselheiro.

Por fim, a teoria política só fica completa depois que se vê instaurada o

principal instrumento de ação política: a legislação. Afinal, a natureza se organiza pelas

suas leis, também a política deveria se organizar segundo uma. A grande questão é saber

se Santo Tomás conseguiu fornecer uma teoria do direito que fosse, simultaneamente,

espiritual e funcional.

Direito

Na Suma Teológica, o tratado sobre a lei aparece entre as questões referentes

aos hábitos humanos e as questões sobre a graça. Isso motiva Voegelin a dizer que a

teoria do direito é a teoria da instrução dada por deus ao homem para motivar os seus

atos com vista de um objetivo último – a beatitude. Ou seja, a teoria do direito, assim

como a política está sujeita a finalidade da beatitude eterna.

Assim como na política, o Aquinate vai buscar na natureza a justificativa para a

sua teoria do direito. A primeira coisa que se nota ao olhar para natureza é a existência

de regularidades, por exemplo, o sol nasce todo dia. Então, há na natureza uma lei a que

todos os seres estão submetidos, pois todas as coisas criadas têm, em si, uma norma que

provem da semelhança que se tem do criador; essa é a lei eterna. Ela não é outra coisa

senão a razão divina que se encontra presente em todas as coisas.

Se a lei eterna está presente em todos os seres criados então ela também deve

estar presente no homem, entretanto não habita no homem do mesmo modo como nas

Page 87: Introdução à Política Medieval

87

coisas, pois o homem possui a razão, que é centelha da liberdade divina. Por isso que no

homem a lei eterna se apresenta como lei natural. Como o homem é imperfeito ele só

apreende a lei natural em termos gerais, fazendo-se necessário uma lei humana que

torne evidente para vida prática os ditames da lei natural. Entretanto, a finalidade do

homem não é meramente natural, assim é preciso uma lei não natural capaz de ordená-

lo ao seu fim, essa é a lei divina.

Essa teoria das quatro leis se relaciona diretamente com o direito, pois esse é

definido como o ordenamento da razão para o bem comum, promulgado pelo chefe da

comunidade34

. É interessante percebe com essa definição consegue dar conta dos quatro

tipos de leis, pois a lei eterna já é a própria razão divina que ordena toda a criação; a lei

natural faz o mesmo para a vida do homem; a lei divina também segue essa estrutura,

pois é Deus ordenando o seu povo para a beatitude eterna e, por fim, a lei humana, pois

nenhuma lei emitida sem qualquer proveito para o bem comum pode ser realmente

considerada uma lei.

Devido a existência de leis naturais se torna possível emitir a possibilidade de

uma teoria do direito natural. A lei natural foi considerado por Santo Tomás como a

participação da criatura racional na lei eterna. Ela acontece nos homens a partir daquela

luz natural da razão que denuncia algo como bom ou como mau. Percebe-se que, para o

homem, só é possível falar que algo é bom ou mau quando se tem algum critério de

comparação, nesse caso o critério de comparação é a própria lei eterna que habita no

homem. Como a lei é algo promulgado para conduzir os homens ao bem, o conjunto das

leis naturais consistirá em um direito natural. Esse direito comporta os seguintes

princípios: autopreservação, preservação da espécie por meio da procriação e

educação, preservação da natureza racional através do desejo do conhecimento de

Deus e a inclinação para a vida comunitária civilizada35

.

Esse direito natural comportaria aquilo que é fundamental para a natureza

humana subsistir, ou seja, a realização da vida humana depende que esses direitos sejam

respeitados, pois atentar contra eles é o mesmo que atentar contra a natureza. Essa teoria

de um direito objetivo que aparece como uma lei da natureza é o fundamento mais forte

para a fundação de uma ordem jurídica. Pois se se prescindir de direitos naturais, duas

34

S.Th. I-II q.90 a.4 35

S.Th. I-II q.94 a.4

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88

possibilidades emergem: um direito positivo não fundamentado ou tratar algum aspecto

particular da vida humana como sendo o fundamento. O primeiro torna o legislador

onipotente, pois poderá emitir quais leis sem que qualquer pessoa possa questionar, por

exemplo, se se admite uma teoria do direito sem a lei eterna, então a proibição de matar

é apenas uma lei positiva o dia em que se retirar dos estatutos ela será considerada lícita.

A segunda possibilidade não é menos perigosa, pois se se escolhe a ciência como

critério de fundamento para o direito, por exemplo, os direitos seriam voláteis, pois a

ciência muda o tempo todo.

No mundo moderno, existe a chamada declaração dos direitos humanos, mas

ela é entendida como sendo mais um acordo internacional, ou seja, o momento em que

alguém resolver retirar alguma cláusula dos estatutos, algum direito humano poderá ser

violado. Exatamente, por causa desses problemas referentes ao direito que Veogelin vai

dizer que o fundamento ontológico de uma teoria do direito natural de Tomás de

Aquino é provavelmente a única posição defensável para uma filosofia do direito36

.

Cabe ressaltar aqui que

Não é por acaso que as teorias universalistas aparecem no momento em que

as instituições antigas começaram a se desintegrar. A dissolução da polis

forma o pano de fundo do estoicismo assim como a dissolução do Sacrum

Impérium constitui o cenário da ontologia transcendental de Tomás.37

Tende em mente o que seja o direito natural fica mais fácil entender como deve

proceder o direito positivo, ou seja, a feitura das leis humanas. Essas são as leis que

existem para preencher as lacunas da lei natural, elas seguiram as contingências dos

homens. Por exemplo, a lei natural diz que o homem tem direito a autopreservação, a lei

positiva vai dar direito de defesa e não vai punir aqueles homens que matarem alguém

enquanto estão se defendendo. É a lei positiva que vai reger a vida prática, entretanto

ela não pode contradizer a natural, por exemplo, a lei positiva não poderia permitir o

assassinato, pois isso seria uma atitude contra a preservação da espécie. Isso significa

que a lei positiva possui uma regra negativa que a impossibilita de fazer qualquer coisa.

A lei divina também é passível de contingências com a lei humana, não por

causa do legislador, mas por causa da incapacidade dos homens. Por isso o tratado

36

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.261 37

VOEGELIN, E. Idade Média até Tomás de Aquino: história das ideias políticas. Vol. 2. São Paulo: É

realizações, 2012. p.264

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acerca da lei divina acabou por ter duas fases: a lei antiga e a lei nova. Ele manifesta ser

apenas uma lei revelada em etapas diferentes. A função da lei divina é levar os homens

a beatitude eterna que não pode chegar por suas forças, daí a necessidade de que a lei

divina apoie os homens na produção de suas leis positivas. Santo Tomás enuncia três

motivos para isso.

Primeiro, porque a lei humana só pode punir atos não intenções. Essa

percepção é muito importante, pois mostra a diferença do poder de ação das coisas

religiosas das coisas civis. Aqueles que são representantes da lei divina têm autorização

de tratar do foro íntimo das pessoas e ‘legislar’ acerca das suas intenções, por exemplo,

o nono mandamento da lei de Deus que fala da cobiça a mulher do próximo. A lei

humana não pode legislar sobre essas coisas, pois fica restrita as coisas de for externo.

Segundo porque uma proibição exaustiva dos maus atos pela lei humana

também destruiria o bem da vida comunitária. Isso segue do fato de que a liberdade fica

comprometida, o que seria um mal para a vida do homem, por conseguinte, da

comunidade. É por esse motivo que há diferença entre crime e pecado, o primeiro fica

restrito ao mal da comunidade civil, o outro ao mal da alma individual.

Terceiro porque a lei divina tem que sancionar esses males que escapam da lei

humana. A vida humana existe para a perfeição, essa só é obtida pela beatitude eterna,

então na sociedade deve haver convergência entre as duas leis, a primeira garantindo o

bom convívio comunitário e a segunda promovendo a finalidade da sociedade.

É no tratado sobre a lei nova que Santo Tomás sobre a teoria da propriedade

privada em que ele entende que a autoridade do legislador está restrita a ordem jurídica,

enquanto a autoridade da ordem privada procede do súdito. Assim, o legislador não

pode emitir leis que firam a privacidade dos seus súditos. Isso inclui o direito de o

súdito poder fazer com seus bens o que lhe aprouver compra e venda com qualquer

pessoa que julgar apropriado. Hoje isso é considerado trivial, mas no século XIII isso

era uma enorme novidade, pois no regime feudal o senhor podia obrigar os vilões a

comerciar apenas com ele.

A lei nova é um tratado bastante pequeno, mas que tem uma importância, pois

acaba por emitir uma teoria acerca da essência do cristianismo ao afirma que a lei nova

está fundada na justificação pela fé. A prioridade da fé em relação a obediência da lei é

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importante, sobretudo no contexto em que se vivia a Igreja. Na realidade o que

testemunhava é que a mediação da Igreja existe em função da fé e não o contrário. Ou

seja, isso mostra o caráter livre da espiritualidade cristã. Liberdade essa que vai eclodir

nos místicos do século XIV.

É interessante perceber que a teoria do direito de Santo Tomás consegue ser tão

realista quanto espiritualmente profunda ao subordinar toda lei humana a um princípio

transcendente, que é a lei eterna, faz com que, mais uma vez, a prática intramundana se

torne um instrumento para a espiritualidade. Faz também com que aquelas ideias de

transformar a Igreja em um corpo jurídico acabassem por ganhar o significado espiritual

de serem vontade de Deus a medida que seguem a lei natural e a divina, embora não

deixe de protestar quanto ao fato de que a espiritualidade cristã não está presa a leis.

Perguntas

1. Apresente a doutrina tomista de que há verdade nas coisas do mundo

2. Diga qual é a função do filósofo em Santo Tomás

3. Compare a atividade do intelectual entre Santo Tomás e Sigério de Brabante

4. Distinga a relação entre fé e razão, em Santo Tomás e Sigério de Branbante

5. Explicite qual é o princípio de onde Santo Tomás parte para a sua teoria política

6. Indique a diferença entre Santo Tomás e Aristóteles na doutrina política

7. Compare a doutrina política tomista com as declarações gelasianas

8. Quantos e quais são os tipos de lei defendidos por Santo Tomás

9. Explique a doutrina do direito natural e as consequências do seu abandono

10. Indique qual é a relação entre a lei humana e a lei divina.

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91

Bibliografia

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