introdução à Ética filosófica

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ARQUIDIOCESE DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO Seminário Arquidiocesano São José Instituto Superior de Ciências Religiosas da Arquidiocese do Rio de Janeiro INTRODUÇÃO À ÉTICA FILOSÓFICA Organizado por: Leonardo da Silva Machado Rio de Janeiro, 2014.

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Page 1: Introdução à Ética Filosófica

ARQUIDIOCESE DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO Seminário Arquidiocesano São José

Instituto Superior de Ciências Religiosas da Arquidiocese do Rio de Janeiro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO À ÉTICA FILOSÓFICA  

 

 

 

 

 

 

 

 

Organizado por:

Leonardo da Silva Machado

Rio de Janeiro, 2014.

Page 2: Introdução à Ética Filosófica

1    

Sumário Introdução  ....................................................................................................................................  2  

Capítulo 1: A ação em vista da felicidade  ..............................................................................  4  

1.1 A ética filosófica  ...............................................................................................................  5  

1.2 O objeto da ética filosófica  .............................................................................................  7  

Capítulo 2: A relação da ética com outros saberes  ............................................................  10  

2.1 Ética, antropologia, psicologia, sociologia e metafísica  ...........................................  10  

2.2 Ética filosófica, ética teológica e ética cristã  .............................................................  13  

Capítulo 3: A teoria da ação voluntária  .................................................................................  16  

3.1 A ação voluntária  ...........................................................................................................  17  

3.2 O objeto da vontade  ......................................................................................................  21  

Capítulo 4: A estética da vida moral  ......................................................................................  24  

4.1 Virtudes  ...........................................................................................................................  25  

4.2 A responsabilidade e o mérito  .....................................................................................  28  

Capítulo 5: A moral cristã fundamental  .................................................................................  31  

5.1 Princípio fundamental da moral cristã  ........................................................................  34  

5.2 Ética da fé como verdade plena da ética da razão  ..................................................  36  

Bibliografia  .................................................................................................................................  39  

Page 3: Introdução à Ética Filosófica

2    

Introdução

Este trabalho visa apresentar uma introdução ao pensamento filosófico

no que diz respeito à filosofia da ação humana, isto é, à ética filosófica. A

filosofia é o esforço da razão humana para explicar o universo por suas causas

últimas. Tal esforço não pode deixar de voltar-se para o homem. Já a

psicologia e a sociologia estudaram o ser humano, mas em termos

especulativos. Em nosso trabalho queremos estudá-lo em termos práticos: qual

a finalidade da vida humana? Em que consistem a perfeição e a felicidade?

Como atingi-las? A ética atende a estas perguntas estudando a atividade

humana ou os costumes humanos, não enquanto se relacionam com um

aspecto da pessoa: o aspecto artístico, por exemplo, que exige o bom

desempenho musical, poético, pictórico; ou o aspecto profissional, que exige

idônea atividade médica, jurídica etc. Mas a ética considera os atos humanos

enquanto concorrem para realizar a pessoa humana como tal, em todos os

seus aspectos e não apenas como bom médico, bom engenheiro, bom poeta

etc. Em consequência, a ética ou a moral é a ciência que define as leis da

atividade livre do homem ou é a ciência que trata do uso que o homem deve

fazer de sua liberdade para atingir seu fim supremo.

Nosso trabalho se desenvolve com base em algumas obras que tratam

desta temática, sobretudo algumas apostilas utilizadas pelos nossos ilustres

professores: Dr. D. Pedro Cunha Cruz e Dr. Carlos Frederico Calvet Gurgel da

Silveira. Consideramos destas obras aquilo que nos pareceu necessário para

uma melhor compreensão da ética filosófica e para evidenciarmos a

importância de sua aplicabilidade na vida de todo homem. Procuramos

sintetizar, resumir e traduzir aquilo que nos pareceu mais oportuno para o

desenvolvimento deste trabalho em vista da apresentação e fundamentação da

teoria da ação humana, na tentativa de apresentar o que o homem deve fazer

para que ele viva verdadeiramente bem, a fim de ser feliz, e expresse que é,

por sua natureza humana, um ser mais excelente em relação aos demais

seres, isto é, com uma dignidade que deve ser reconhecida e respeitada. Deste

modo, o trabalho que se segue tem uma estrutura semelhante à de um

fichamento das obras utilizadas com o acréscimo de alguns comentários.

Page 4: Introdução à Ética Filosófica

3    

Este trabalho está estruturado em cinco capítulos, em vista das cinco

aulas do nosso curso de verão oferecido pelo Seminário Arquidiocesano de

São José, localizado na Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro. Os

capítulos, ou as aulas, estão estruturados (as) na seguinte ordem e com os

seguintes temas: A ação em vista da felicidade; A relação da ética com outros

saberes; A teoria da ação voluntária; A estética da vida moral; A moral cristã

fundamental. Com base nas aulas de Teologia Moral Fundamental de nosso

Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de

Janeiro, ministradas pelo Exmo. Sr. Dr. D. Antônio Augusto Dias Duarte,

culminamos nosso trabalho com um breve estudo sobre a moral cristã

fundamental que nos é apresentada como um complemento à ética filosófica,

enquanto ambas tendem a apresentar para o homem um caminho que lhe

possibilite o desfrute da felicidade. A moral cristã fundamental é pode ser

chamada de complemento à ética filosófica pois considera, além da luz natural

da razão, a Divina Revelação, ou seja tem algo a mais que a ética filosófica.

Com isso, queremos apresentar a ciência da ação humana, que não

quer apenas descrever e explicar os costumes dos povos e descobrir as

respectivas leis, mas tenciona estabelecer as leis que todo homem deve

respeitar em seu agir para atingir a perfeição e a felicidade.

Page 5: Introdução à Ética Filosófica

4    

Capítulo 1: A ação em vista da felicidade

A felicidade parece ser uma profunda inquietação comum a todos os

homens. Entretanto, o significado que se atribui à felicidade varia nas diversas

linhas de pensamento, bem como o modo de se alcançá-la. Segundo

Aristóteles, “admite-se que toda ação e toda escolha têm em mira um bem

qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto que o bem é aquilo a que todas

as coisas tendem”1. Diante desta tendência, “tanto o vulgo como os homens de

cultura superior dizem ser esse fim a felicidade e identificam o bem viver e o

bem agir como o ser feliz”2. Assim, segundo o pensamento clássico aristotélico,

para ser feliz parece ser necessário viver bem e isto não significa viver como

convém aos desejos do homem, mas viver como é preciso se o que o homem

tem em vista é a felicidade, o bem supremo, e não o mero prazer; este realismo

da ética aristotélica contrasta o realismo de “muitas éticas”. Destarte, o desejo

de felicidade que existe no homem exige dele um determinado comportamento,

isto é, suas ações devem ser capazes de conduzi-lo ao desfrute da felicidade.

Mas, que seria a felicidade? Podemos considerá-la como uma sensação de

plenitude integral que envolve a satisfação integral do homem, isto é, a pessoa

inteira e não somente os aspectos sensíveis ou biológicos do homem. Buscar

essa felicidade era, para os gregos, escolher o bem e tomar as decisões certas

nos diversos momentos da vida em vista desse bem, ou seja, eles não mediam

esforços na tentativa de viver bem em vista da felicidade.

Diante dessa realidade, podemos nos perguntar: “que devo fazer para

viver a vida de um modo pleno?” Em outras palavras, “que devo fazer para ser

feliz?” É verdade que nunca será verdadeiramente feliz o homem que não for

fiel a sua identidade natural. Isto nos leva a perceber, portanto, a necessidade

de uma ciência capaz de apresentar ao homem um caminho que lhe possibilite

a vivência fiel de sua identidade natural e, consequentemente, torne cada vez

mais possível o desfrute da felicidade e é nessas condições que encontramos a

ética filosófica.

                                                                                                                         1 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. I, 1, 1094a 1-3. 2 Ibidem, I, 4, 1095a 17-19.

Page 6: Introdução à Ética Filosófica

5    

1.1 A ética filosófica

A palavra ética tem sua origem na palavra grega “ethos”, que significa

costume, maneira habitual e caráter, e possui o mesmo sentido que a palavra

latina mos, moris. Assim, ética ou moral designam o que podemos definir, de

modo bem simples, como “Ciência ou Filosofia da Ação Humana”, pois está

ligada àquilo que concerne aos costumes. A partir dessa definição etimológica

podemos chamar Ciência Ética ou Moral à simples descrição dos costumes ou

dos modos de agir dos homens em geral e de uma sociedade determinada.

Com base nessa definição, há quem sustente a tese de que a “a Ética

ou Filosofia Moral não passa de um discurso moral”, isto é, a sua função se

reduziria a definir os termos ou conceitos morais, como: bem-mal, justo-injusto,

direito-dever etc. Desse modo, a ética não poderia prescrever nada de modo

absoluto, mas tão somente mostrar que determinada prescrição é, ou não,

coerente com princípios ou valores de base reconhecidos pelo indivíduo; esses

valores estariam inseridos em um esquema previamente escolhido pelo

indivíduo, ou seja, depende de cada pessoa estabelecer o “esquema de

valores” ao qual irá se submeter. Portanto, essa função não corresponderia ao

que a ética filosófica realmente quer apresentar ao homem.

É correta a firmação de que a ética é a disciplina filosófica que estuda o

comportamento (ou a ação) humano e, por isso, podemos chamá-la de ciência

dos costumes ou da ação humana. Porém, para uma definição mais precisa do

conceito de ética convém aprofundar, inicialmente os seguintes elementos: que

se entende por ação humana; se a ética é descritiva ou normativa do

comportamento; se há diferença entre ética e moral.

Entendemos a palavra ação em correspondência ao termo “práxis”, que

está atrelado ao conhecimento prático, ao pensamento prático do indivíduo,

enquanto distinto seja da mera especulação (teoria) e do fazer artístico ou

“criador”, pois a poiésis é uma ação transitiva, técnica, que termina fora do

agente, e a ação à qual queremos nos referir é o efeito do agir, o que os gregos

entendiam por práxis, ou a ação que permanece no agente; podemos dizer que

é a base da ação moral. Entretanto, ao refletir sobre esta ação, que permanece

no agente, devemos notar que há uma clara diferença entre o que pode ser

feito e o que deve ser praticado, ou seja, nem tudo que pode ser feito deve

Page 7: Introdução à Ética Filosófica

6    

necessariamente ser praticado. Nesse sentido, nos deparamos com a

necessidade de uma ciência que favoreça a descrição do comportamento que

deve ser realizado ou não, considerando as inúmeras possibilidades. Diante

disso, devemos nos perguntar acerca da objetividade ou subjetividade da Ética.

Há quem considere que a ética, enquanto disciplina filosófica, é

constituída por proposições universais e analisa verdades universais, e por

isso, não poderia reger os atos humanos, que são sempre concretos,

singulares. Logo, a ética não poderia ser normativa. Além disso, a moral, como

norma prática do agir humano, é particular e varia de acordo com as épocas e

as culturas, isso confirmaria a impossibilidade de a ética ser normativa. No

entanto, é impossível que as normas sejam todas e totalmente particulares.

Portanto, pode-se dizer que a ética não pode se reduzir à descrição do

comportamento humano, esta descrição pertence a outras ciências como a

antropologia cultural ou à psicologia. Logo, a ética deve estudar o

comportamento humano em vista da indicação de como o homem deve agir.

Admitindo-se, então, o que até aqui consideramos, pode-se dar a seguinte

definição de Ética: A ética é disciplina filosófica prática normativa da ação

humana, segundo a luz natural da razão.

Assim, a ética é uma ciência normativa dos atos humanos, pois diz

respeito ao bom andamento da vida e à reta orientação da existência. Ela é

uma ciência prática, não só porque trata da práxis humana, mas porque visa

dirigi-la anunciando as regras gerais, formulando os princípios que devem

comandar o juízo moral a fim de direcioná-lo à consciência moral. A Ética vai

bem além da descrição dos costumes mediante o método empírico, ela formula

e fundamenta filosoficamente juízo de valor e normas de comportamento de

validade absoluta, com a intenção de orientar o exercício da liberdade pessoal

até o bem da pessoa humana enquanto tal. Contudo, por ser prática ela não

deixa de ser especulativa, pois ela ratifica o intelecto e é neste sentido que ela

é considerada ciência. Os juízos e as normas éticas devem ser racionais e

filosoficamente fundamentados, e não arbitrariamente decididos ou impostos.

Eles devem se apoiar na verdade acerca do bem e do mal da pessoa e de suas

exigências essenciais. Por isso, a finalidade prática da Ética deve pressupor o

momento especulativo, aquele momento em que se busca o conhecimento da

natureza e, no sentido da moral, da virtude, da justiça. Em suma, a Ética

Page 8: Introdução à Ética Filosófica

7    

propõe regras e admoestações, conselhos e preceitos para mostrar aos

homens a direção do viver bem e empenhá-los neste propósito, a fim de que,

fazendo o que deve ser feito para tornar-se o que ele deve ser, o homem

alcance o bem supremo, aquilo que em direção e para o qual ele existe, e seja

feliz. Convém dizer ainda que a ética, enquanto filosófica, considera a realidade

moral como ela se apresenta à razão que usa de sua luz natural, ou seja, ela é

baseada no fato de existir a reta razão que “dita” ou “orienta” a vontade como

ela deve decidir. Isso nos leva a fazer uma possível distinção entre ética

filosófica e moral, embora haja outras possibilidades de distinção: a ética não

tem pressupostos, a não ser o que a razão pode descobrir, ou seja, ela é estrita

e exclusivamente racional; a moral, em contrapartida, deve ser entendida como

ciência teológica do agir humano, isto é, além da razão, pressupõe princípios

que não derivam da própria razão, mas sim da fé, por revelação, nos casos das

religiões reveladas.

1.2 O objeto da ética filosófica

A. Objeto material A Ética, como vimos, compõe-se de investigações sobre os atos

humanos livres, por isso é dito com muito acerto que o seu objeto material são

as ações humanas, pois elas constituem o seu objeto de estudo. Contudo, é

preciso determinar quais são essas ações. Tradicionalmente as ações

humanas passaram a ser distintas e classificadas entre:

Ø Atos humanos → aqueles atos que o homem é capaz de realizar ou

omitir, de fazê-los, ou não, de um determinado modo ou de outro. Eles

procedem da deliberação e da vontade; seja imediatamente da vontade,

os chamados atos elícitos, como o desejo, por exemplo; seja através de

outras potências humanas, os chamados atos imperativos ou

comandados pela vontade.

Ø Atos do Homem → aqueles atos que não são livres, visto que no

momento em que são realizados faltam o necessário conhecimento e a

voluntariedade, isto é, o homem não possui um domínio direto sob

processos nestas condições, como no caso da circulação sanguínea,

por exemplo.

Page 9: Introdução à Ética Filosófica

8    

A distinção que podemos estabelecer entre um tipo de ações e outro

está no modo de agir do sujeito. Assim, se por um lado os atos humanos

permitem ao homem sentir-se responsável pela sua ação e perceber que algo

acontece fora dele tendo-o por causa; por outro, os atos do homem conferem

ao sujeito agente a consciência de que algo ocorre nele, “independentemente”

dele. Portanto, só é humana a ação realizada livremente e somente falamos de

conduta humana em relação aos atos humanos, pois é através deles que o

homem conduz a si mesmo e realiza seus objetivos servindo-se do

conhecimento da realidade e do ambiente que vive. As ações humanas

dependem inteiramente da autodecisão que somente a pessoa é capaz de

expressar e elas só podem estar em relação ao modo de ser moral da pessoa,

isto é, apenas elas implicam responsabilidade moral, pois o sujeito pessoal é

único pode responder pelas ações das quais ele é verdadeiramente autor,

causa e princípio. Isto nos leva a dizer, portanto, que ações humanas,

enquanto são livres, pois é pressuposta a atuação da deliberação racional e da

vontade, são o objeto material da ética.

B. Objeto formal A Ética é a ciência que se encarrega de estudar os atos humanos à luz

da razão natural a fim de que o homem seja orientado a bem agir para viver

bem e alcançar o seu fim querido: a felicidade. Podemos dizer que a

consideração pelos atos humanos que ela expressa se fundamenta em uma

dimensão real e essencial da ação humana e não em um simples modo de

considerá-la subjetivamente, essa dimensão pode ser definida como a

moralidade da ação humana. Assim, o objeto formal da Ética é aquilo segundo

o qual os atos humanos considerados enquanto tais (realmente e não

subjetivamente - do ponto de vista particular) são qualificados como bons ou

maus. A bondade ou a maldade das ações morais enquanto tais são chamadas

genericamente moralidade. Entretanto, vale ressaltar que somente em uma

decisão livre é que o homem pode ser bom ou mal moralmente, pois a

moralidade dos atos só é considerada enquanto tal na dimensão dos atos

humanos, que pressupõem a deliberação e a vontade, a participação da razão

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9    

e da liberdade na ação. Deste modo, podemos dizer que o objeto formal da

Ética é a moralidade dos atos humano.

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10    

Capítulo 2: A relação da ética com outros saberes

A ética é uma disciplina filosófica que, a partir da ideia de bem, tem por

objetivo a elaboração de uma teoria crítica sobre a conduta humana no

contexto das sociedades e a análise do conjunto de condições necessárias

para que uma experiência moral possa ocorrer. Fundamentado na razão, este

objetivo, como vimos, tem uma finalidade especulativa e prática, pois tem em

vista enunciar, no sentido normativo, o que o homem deve fazer caso ele tenha

por propósito se empenhar para alcançar o desfrute da felicidade. Neste

sentido, para o bom desempenho de sua função, a ética deve levar em grande

consideração o auxílio de outros saberes.

2.1 Ética, antropologia, psicologia, sociologia e metafísica

As normas éticas dizem respeito ao bem da pessoa humana, enquanto

expressam o que para ela é verdadeiramente bom. A justificação dessas

normas depende, portanto, do conhecimento do que é bom para o homem e

aqui nos deparamos com um grande problema frente a cultura do relativismo

que demonstra grande força na cultura hodierna. Deste modo, esta justificação

filosófica depende da resposta que se dá à pergunta “que é o homem?” Uma

resposta convincente a essa pergunta deve supor a Metafísica, pois ela nos

remete à Antropologia; além disso, nos leva a demonstrar grande consideração

também pela psicologia e pela sociologia que também têm por objeto de estudo

o homem, claro que com diferentes análises. Assim, se faz necessário uma

compreensão mais clara das contribuições que esses saberes podem oferecer

para a ética filosófica.

I. Ética e Antropologia → A filosofia do homem ou Antropologia filosófica

tem como objeto de estudo o homem em suas dimensões essenciais, isto é, vê

o homem não a partir de seus aspectos acidentais ou mutáveis, mas desde a

unidade que proporciona o saber último sobre a realidade. Podemos dizer que

é precisamente a consideração filosófica o que leva a estudar o homem em sua

globalidade e não em aspectos parciais do mesmo, isto é, na antropologia se

questiona sobre o modo de ser e agir do homem enquanto homem, há grande

Page 12: Introdução à Ética Filosófica

11    

esforço por tentar compreender o que permite ao homem determinados

comportamentos. Em outras palavras, antes de se interessar por um pequeno

grupo de pessoas que se comporta de determinada maneira, a Antropologia

filosófica se interessa em saber se determinado comportamento diz respeito à

natureza do homem, ou seja, o que sustenta ou fundamenta tal comportamento

do homem, não naquilo que é considerado acidental, mas essencial no agir

humano. Assim, podemos considerar que na Antropologia aparecem temas

importantes da ética, tais como a liberdade, a vontade, as paixões, as virtudes,

dentre outros. O que importa para a ética é a elaboração de uma Antropologia

integral e unitária. Na teoria da ação humana (ética) não se pode negligenciar

os pressupostos e fundamentos antropológicos.

II. Ética e Psicologia → Entre a ética e a psicologia experimental existem

estreitas relações. A psicologia estuda as faculdades humanas e suas

operações, assim como as condições que explicam seu funcionamento. Boa

parte das realidades estudadas pela psicologia experimental são também

objeto da ética, tais como as ações livres, os hábitos, os sentimentos, os

afetos, as tendências, dentre outras realidades. A ética pressupõe e necessita

da psicologia, enquanto pressupõe e necessita de conhecimentos que somente

a psicologia pode proporcionar de forma científica. Por exemplo: a influência da

afetividade sobre a atividade livre, dos condicionamentos psicológicos a que

pode estar sujeito o comportamento humano. Dizemos isso porque a psicologia

estuda a natureza e a origem dos atos livres sob o ponto de vista das leis

naturais. Ela é fundamentalmente uma ciência descritiva, ou seja, explica um

fato mediante outro. A ética estuda as ações livres enquanto precisam de uma

ordenação racional sob leis éticas, segundo a qual essas ações são boas ou

más em sentido absoluto. O moralista não pode ignorar, por exemplo, o influxo

das paixões; a existência de forças e mecanismos inconscientes de certas

reações psíquicas diante dos ideais éticos. Ignorá-los seria formular uma ética

abstrata e desencarnada, como tende a ser a ética kantiana no dever pelo

dever. Daí a importância da psicologia em poder oferecer dados certos e

precisos à ética.

III. Ética e Sociologia → A ética e a sociologia coincidem em parte pelo seu

objeto material, pois estudam o comportamento humano, porém, diferem em

seu objeto formal, pois a sociologia positiva descreve, classifica e mede os

Page 13: Introdução à Ética Filosófica

12    

fatos sociais mediante métodos empíricos, como a estatística, por exemplo,

estudando também os aspectos sociais do comportamento moral, enquanto

que a ética, a partir do que o homem é, não só reconhece e analisa seu

comportamento mas dita como ele deveria ser. Contudo, a sociologia considera

e ajuda a conhecer o que há e uma sociedade, porém está fora de seu alcance

dizer o que os homens devem fazer. O desenvolvimento e a aplicação da

ciência sociológica constituirá na sociedade atual uma força verdadeiramente

humanizante, se forem adotados os pressupostos filosóficos adequados. Neste

sentido é válida e obrigatória a consideração de que o homem é no seu ser um

ser naturalmente sociável; aqui reside a adequada relação entre ética social e

sociologia. A ética social afirma que necessariamente faz parte da existência

humana ter uma dimensão social. Cabe à sociologia investigar os modos e as

formas em que se expressa e se atualiza a sociabilidade e os dinamismos que

configuram suas concretas realizações históricas.

IV. Ética e Metafísica → Para analisar de forma cada vez mais precisa o

ethos do homem se faz necessário o conhecimento do ser do homem. A

metafísica é o núcleo central ou fundamental da interpretação da realidade,

própria da filosofia do ser. A ética mantém uma relação estreita com a

metafísica, entendida como disciplina filosófica concreta, no sentido que a

filosofia do ser opera a fundamentação última da ética com alguns

conhecimentos já estabelecidos pela metafísica. Entre ambas existem notáveis

diferenças formais e epistemológicas, já que o bem é formalmente diferente do

ser. Além do mais, a ética tem um ponto de partida próprio e específico: a

experiência moral. A ética não pode ser concebida como uma parte da

metafísica nem como um corolário seu. A relação entre ambas está em parte,

no fato da ordem moral repousar, em última análise, na ordem ontológica, ou

seja, o bem reside no mundo do ser e o mal se resolve, m último termo, na

privação do ser. Podemos dizer ainda que essa relação se funda no fato de

que certos conhecimentos, tais como a existência de Deus (Teologia Natural),

o destino último do homem, a imortalidade da alma, dentre outros, somente a

metafísica pode proporcionar de maneira científica. É isto que a metafísica

proporciona à explicação última da vida moral. A negação da conexão entre

ética e teologia natural é a negação da possibilidade da metafísica como

Page 14: Introdução à Ética Filosófica

13    

ciência, ou ao menos, é a negação da possibilidade de um conhecimento

racional de Deus, como fazem os ateus e agnósticos.

2.2 Ética filosófica, ética teológica e ética cristã

Podemos dizer que da relação entre ética filosófica e ética teológica

(teologia moral) procede a ética cristã. Se a relação da ética com a teologia

natural propõe salvar a unidade da filosofia, que é a unidade da razão e da

pessoa humana; a relação da ética filosófica com a ética teológica visa salvar a

coerência e a unidade interna do homem da fé. Podemos dizer que nesta

relação existe a seguinte distinção: a ética filosófica estuda, à luz natural da

razão, as exigências morais próprias da pessoa humana criada à imagem e

semelhança de Deus; enquanto que a ética teológica trata da vida que

corresponde à elevação do homem à dignidade grandiosa e misteriosa de filho

de Deus e irmão de Jesus Cristo.

A teologia moral parte da Divina Revelação e concentra seu interesse na

dignidade do homem como partícipe, pela graça, da natureza divina; fato

essencialmente gratuito pelo qual a pessoa entra em relações éticas totalmente

novas e mais elevadas que, somando-se as exigências éticas naturais, traçam

uma vida superior que culmina na visão beatífica. Entre a ética e a teologia

moral se estabelece, portanto, a mesma distinção e colaboração entre razão e

fé, ou entre natureza e graça. Afirmamos que a situação da ética filosófica

diante da ética teológica é a do incompleto diante do completo, pois para

alcançar a plenitude a qual o homem foi livremente destinado por Deus é, pois,

necessário recorrer à ética teológica; primeiro para conhecer a finalidade e as

exigências éticas especificamente teológicas, e depois para dispor de uma

justificação e motivação mais elevada e mais eficaz acerca da ação moral.

A ética filosófica deve manter, em relação à ética teológica, a máxima

abertura compatível com a essencial racionalidade da filosofia. Para isso,

torna-se necessário distinguir o que no âmbito teológico é em si mesmo supra-

racional (não racional) e, portanto, um mistério só acessível pela fé. O que em

si mesmo é um mistério excede a filosofia, mas o que é em si mesmo

compreensível pela razão deverá ser examinado pela filosofia moral. A razão

humana tem na divina sua origem e seu fundamento, portanto, devemos

Page 15: Introdução à Ética Filosófica

14    

considerar que a ética deve permanecer aberta às fontes da verdade ético-

racional, que não se reduzem somente à reflexão conceitual, sem causar, é

claro, qualquer confusão entre os saberes filosóficos e teológicos.

Como dissemos, da relação entre ética filosófica e ética teológica

procede a ética cristã e, portanto, se faz necessário analisarmos a relação que

há entre ética e religião. Seria possível existir, ao menos na cultura ocidental,

enquanto foi profundamente marcada pela cultura cristã, uma ética não-cristã?

Entendendo por tal não uma ética não fundamentada na fé, senão uma ética

que não seja detentora dos valores introduzidos na cultura ocidental pelo

cristianismo. Uma possível resposta para esta pergunta ser dizer que tais

valores na realidade são valores humanos, plenamente compreensíveis pela

razão e derivados da dignidade natural da pessoa. De qualquer modo, ainda

que fosse essa a resposta, é inegável a contribuição do cristianismo no

desenvolvimento da cultura ocidental e, inclusive, na noção da dignidade da

pessoa humana. Portanto, é difícil reconhecermos uma ética, ao menos na

cultura ocidental, não marcada pelo cristianismo.

Devemos considerar, contudo, que a ética cristã à qual aqui nos

referimos não é exatamente o mesmo que a teologia moral: a teologia moral

pressupõe o exercício da fé por parte de quem a elabora, enquanto que a ética

cristã é uma reflexão filosófica sobre uma vida moral, sobre uma cultura, sobre

uma sociedade, sobre manifestações artísticas, jurídicas e literárias, que são

consequências da aceitação prática da fé por parte dos homens. A reflexão

filosófica sobre essas realidades experimentais ocorre informada indiretamente

pela fé. A ética cristã é uma análise estritamente filosófica que parte dos dados

que são acessíveis ao nosso espírito mediante à experiência e, portanto, não

introduz nenhum argumento inacessível à luz natural da razão, enquanto que

na teologia moral existe o pressuposto da fé e na argumentação se inclui a

verdade revelada que ultrapassa a nossa razão.

Em suma, podemos dizer que enquanto a ética filosófica tem por base a

razão o concebe as ações como boas ou más moralmente, a ética teológica

considera a razão somada ao dado revelado pela Divina Revelação e concebe

as ações como boas ou más (pecados), e a ética cristã é, na verdade, a

percepção de resquícios da Revelação Cristã que estão presente na cultura,

sobretudo na cultura ocidental.

Page 16: Introdução à Ética Filosófica

15    

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16    

Capítulo 3: A teoria da ação voluntária

Os conceitos éticos fundamentais, tais como bem moral, norma, virtude,

má ação, vício, pecado, dentre outros, referem-se de um modo ou de outro à

ação, e só podem ser entendidos corretamente em relação a ela e aos

conceitos que utilizamos para estuda-la. Neste sentido a ética pressupõe uma

teoria da ação humana. Segundo Boécio, pessoa é a substância individual de

natureza racional, ou seja, é pessoa o indivíduo cuja essência constitutiva é de

caráter racional, espiritual, ou ao menos o indivíduo em que o espírito constitui

a parte formal de sua essência, como é o caso do homem. A ética fala

frequentemente da razão para sublinhar a incomensurabilidade da pessoa

humana com as coisas e os indivíduos das espécies animais. O que nos

interessa mostrar, contudo, é que o espírito não é o único elemento essencial

da pessoa humana, porque nela o espírito também é, essencialmente, forma

do corpo, isto é, a pessoa humana é uma totalidade unificada de corpo e

espírito, também no plano da ação. O corpo humano não é independente do

espírito, assim como o espírito humano não é independente do corpo,

enquanto o vivifica. Também a ação humana é uma unidade de alma e corpo,

intenção interior e realização exterior, projeção e gesto; a presença de ambas

dimensões é que constitui a modalidade especificamente humana.

A natureza da pessoa humana é princípio das ações através de uma

pluralidade de faculdades ou potências. A natureza não pode se confundir com

a soma das faculdades, porque é a sua raiz. Neste aspecto, podemos nos

perguntar: “como o homem é capaz de moralidade e está a ela ordenado?” “Em

virtude de quais faculdades o homem é capaz de atividade moral?” A resposta

mais imediata é que o homem é sujeito moral fundamentalmente por ser

dotado de conhecimento intelectual e de vontade livre; as características

essenciais da moralidade só se verificam no sujeito dotado de razão e de

liberdade. Precisando a nossa resposta, podemos dizer que a moralidade se

refere diretamente ao querer e à tendência, já que o sujeito da moralidade é,

em sentido estrito, a vontade livre.

O homem não é só espírito, sua personalidade se desenvolve e cresce

sob a forma de uma profunda interconexão das faculdades da vida sensitiva,

Page 18: Introdução à Ética Filosófica

17    

vegetativa e racional. A atividade da razão e da vontade pressupõe a atuação

do conhecimento e do apetite sensível. A tonalidade sentimental que

acompanha uma ação não é decisiva para a qualidade moral de determinada

ação, porém, ela constitui, em todo caso, um sinal da estrutura psicológica da

pessoa. De outro lado, o influxo dos sentimentos sob as percepções morais e

decisões voluntárias permitem entender que a adução da esfera sentimental

constitui uma tarefa moral de notável segurança. Contudo, é extremamente

necessário termos claro que o sentimento não qualifica um ato moral. Não se

pode decidir a partir do sentimento, mas a partir da ponderação e deliberação.

Assim, podemos dizer que é preciso uma melhor compreensão do

desenvolvimento da ação voluntária.

3.1 A ação voluntária

A ação voluntária pode ser definida como aquela que procede de um

princípio intrínseco com o conhecimento formal do fim. Ela procede de um

princípio intrínseco pois ela tem origem na faculdade apetitiva do sujeito

agente, que atua, portanto, a partir do interior dele. Enquanto procede de um

princípio intrínseco, a ação voluntária se distingue da ação coagida ou violenta,

que é a ação originada pela violência de uma causa exterior ao sujeito, contra a

inclinação e o desejo deste. Proceder de um princípio intrínseco com

conhecimento formal do fim significa, em parte, que o sujeito agente conhece

aquilo em vista do qual a ação se cumpre (o fim); isto é, conhece, sob a

orientação da razão, o objetivo de sua ação. O sujeito se determina

conscientemente e ativamente a agir, depois de ter julgado a conveniência da

mesma (ação).

O conhecimento formal do fim deve estar como projeto antes da ação,

antes de agir é preciso julgar a conveniência da ação. Isto nos leva a dizer que

o conhecimento ponderado do fim é de algum modo a origem da ação. Neste

sentido, a ação voluntária é uma ação consciente. A ação consciente é algo

mais do que “a ação que tenho consciência”, já que é possível que eu tenha

consciência de algo que não está organizado e nem controlado por mim, como

a batida do coração, por exemplo. Quando dizemos que a ação voluntária é

uma ação consciente, queremos dizer que ela inclui um juízo intelectual na sua

Page 19: Introdução à Ética Filosófica

18    

estrutura íntima. A objetivação cognoscitiva está pressuposta e imersa na

atividade da vontade, que é sempre um tender julgando, pois nihil volitum nisi

praecognitum – nada é querido se não é previamente conhecido. Enquanto tem

origem no conhecimento, a ação voluntária acrescenta ou une um importante

elemento à ação simplesmente espontânea, que procede de um princípio

intrínseco sem o conhecimento formal do fim; como é o caso de muitos

processos vitais de ações instintivas, reações rápidas que não dão tempo para

a deliberação e decisão propriamente ditas. Portanto, a ação para que seja de

fato voluntária deve necessariamente passar pelo juízo.

A vontade possui um ato natural, por isso, convém dizer que nem todo

ato da vontade é um ato voluntário, ou ainda, nem todo ato da vontade é livre,

como o desejo de uma mulher grávida, por exemplo. Podemos estabelecer

uma clara distinção entre o ato natural da vontade e o ato voluntário: o ato

natural, ou livre, da vontade procede de um querer sem determinação e

deliberação do sujeito que deseja, enquanto que o ato voluntário procede de

um querer determinado diante do objeto, levando em consideração a vontade e

a deliberação racional.

Devemos considerar que o termo fim na definição atribuída à ação

voluntária indica o objeto próprio da vontade. Cabe dizer que a ação voluntária

possui um objeto, isto é, é uma ação intencional, no sentido de

intencionalidade, ou seja, projeto com realização, momento da determinação

para realizar tal ação, e não meramente intenção, projeto sem realização, que

é um dos muitos atos da vontade. A intencionalidade é uma das características

dos atos da inteligência e da vontade, que consiste em sua essencial abertura

a um objeto. A intencionalidade da vontade é consciente, ativa e é guiada e

ordenada pela razão. O juízo racional põe em relação a ação ou seu objeto um

motivo: “quero fazer esta ação porque ela é boa ou agradável”. Vale dizer ainda

que a vontade é auto-referencial, isto é, a pessoa fica comprometida, como

pessoa, em todo ato da vontade, e, por isso, toda determinação da vontade

acerca de um objeto é sempre autodeterminação, ou seja, ato pelo qual a

pessoa determina a si mesma, pois o querer implica uma identificação pessoal

com o querido, que não existe no conhecer enquanto tal. Identificação pessoal

significa uma valorização e uma tomada de postura positiva (com amor) ou

negativa (com ódio ou rejeição). Podemos dizer que a pessoa se sente mais

Page 20: Introdução à Ética Filosófica

19    

pessoa e qualificada quando identificada com a ação. A auto-referenciação da

vontade não deve confundir-se com a reflexão, ou seja, com a volta intencional

do querer sobre si mesmo. Assim, conhecer uma conduta desonesta não é

necessariamente uma ação desonesta; ao passo que querer, desejar e

satisfazer-se com uma ação desonesta, torna desonesta a pessoa que a quer.

Falamos da distinção entre atos do homem e atos humanos. São os

atos humanos os que estão na dimensão da ação voluntária, pois dependem

da deliberação e da vontade do sujeito agente. Vale dizer que o valor moral é

aquele que torna o ato humano bom enquanto ato humano. O ato humano é

bom na medida em que responde às exigências do princípio que o especifica

como ato humano. Ora, o princípio da ação humana, enquanto humana, é a

reta razão. O ato humano é essencialmente voluntário e livre; e a liberdade tem

a sua raiz na razão. A vontade não é vontade pelo fato de ser diferente do

apetite natural e animal, mas pelo seu caráter racional, o seu exercício é

inseparável daquele da inteligência que lhe dá a sua forma apresentando-lhe o

seu objeto. A regra moral em questão não é seguir um juízo qualquer da razão,

mas um juízo da reta razão. Quanto mais a vontade segue esse princípio, mas

livre ela é; e o ato torna-se cada vez mais humano. A vontade reta é de fato

aquela que quer o bem e como consequência segue a reta razão. A retidão da

razão não é definível ou conhecível pela comparação com uma regra exterior, a

sua regra está na razão mesma. A reta razão é a razão fiel à sua própria

essência e àquilo que pode ser chamado por seu ideal: a razão exercitando-se

racionalmente, segundo a sua própria lei e não subordinando-se a uma lei

estranha. A ética da reta razão é, portanto, uma ética da liberdade.

Os atos humanos podem ser elícitos ou imperados. As ações elícitas

são chamadas ações interiores ou internas, e as imperadas, ações exteriores

ou externas. Os atos voluntários elícitos são aqueles exercidos diretamente

pela vontade; são imperados os atos realizados imediatamente pela faculdade

diferente da vontade (os braços, as pernas, os olhos etc), sob a influência e a

moção da vontade; assim, ler um livro, cortar uma folha, falar, prestar atenção,

são ações voluntárias imperadas pela vontade. O que imporá aqui é sublinhar a

unidade existente entre os atos elícitos e os imperados. A pessoa, se fizer o

que ama, assimila a qualidade axiológica do amado, e se qualifica a si mesma

sob o ponto de vista do bem. Informada pelo bem amado, a pessoa tende a

Page 21: Introdução à Ética Filosófica

20    

passar à realização; por isso, escolhe um modo de realizar o que deseja (por

meio de atos elícitos) e realiza as potências e os recursos de que dispõe (atos

imperados).

Devemos dar certa atenção também aos diversos graus que pode ter a

voluntariedade e, por conseguinte, a responsabilidade moral da pessoa. Por

um lado temos a ação perfeitamente voluntária, que cumpre plenamente as

condições da ação voluntária, isto é, a pessoa adverte o que faz e consente

plenamente sua ação; por outro, temos a ação imperfeitamente voluntária, que

pode ocorrer porque há um imperfeito conhecimento formal do fim no momento

da ação (pelo fato de haver causas que dificultam ou impedem a normal

realização psicológica do juízo intelectual implicado em todo ato da vontade),

ou pode ocorrer também devido a imperfeição do movimento da vontade até o

objeto, porque este possui também aspectos que causam repugnância, titubeio

etc. A imperfeição do movimento da vontade só se origina perante ações que

se apresentam como ambivalentes: ação honesta porém dolorosa; ação

vantajosa, porém injusta. Quando a pessoa não assume uma postura decidida

diante desses valores de diferentes gêneros, pode-se dizer que ela está em

uma situação de luta que resulta em um movimento voluntário deficiente, não

suficientemente consolidado, próprio de um sujeito que não acabou de decidir.

Podemos dizer, portanto, que a ação voluntária será perfeita se proceder de

um princípio intrínseco com o conhecimento formal do fim, caso falte ao menos

um desses dois requisitos haverá uma ação imperfeitamente voluntária. Em

outras palavras, na ação perfeitamente voluntária há uma advertência do

intelecto e o consentimento da vontade; na ação imperfeitamente voluntária

não se consegue ver bem o fim, mas ainda assim se decide por ele, além de

agir sem ter terminado de decidir, ou melhor, de deliberar.

O conceito de ação voluntária não se aplica somente ao querer ou ao

fazer voluntário, mas também ao não querer e ao querer não fazer, ou seja, ao

que comumente chamamos de omissão. Omitir é uma decisão tão voluntária

como o fazer e a pessoa é tão responsável por esta “não ação” quanto pela

ação. Devemos considerar que se com a devida deliberação e de modo livre a

pessoa se decide por não fazer tal coisa, ou seja, toma a decisão positiva de

não fazer ou agir, esta pessoa se responsabiliza por sua omissão e deverá

Page 22: Introdução à Ética Filosófica

21    

responder por ela, é o que acontece com algumas omissões reprovadas pela

moral ou civil, por exemplo: omissão de socorro.

3.2 O objeto da vontade

O objeto da vontade humana, isto é, aquele em vista do qual a vontade

passa à ação, é o bem enquanto tal, a razão do bem em toda a sua amplitude

universal, que só pode ser captado por um ser inteligente, isto é, só quem pode

ver o bem como fim é o ser humano. Dizer que o objeto próprio da vontade é o

bem significa que toda ação ou coisa concreta pode ser objeto do querer, na

qual o homem vê brilhar de algum modo a razão do bem, isto é, as ações ou

coisas concretas são objeto da vontade na medida em que são vistas como

convenientes ou apetecíveis. O bem é, pois, a razão ou o motivo geral pelo

qual a vontade atua; o horizonte em que a pessoa projeta a realiza a sua ação.

Vale dizer que neste momento pouco importa se a intenção do sujeito é

correta, ou seja, se o bem é verdadeiro ou se é um bem aparente e o sujeito é

vítima de um erro ou ilusão. Tudo o que o sujeito estima como bom pode ser o

objeto da vontade, mesmo que isto não seja um bem verdadeiro, mesmo que

seja somente um bem aparente.

O fim é aquilo que é visto como bom ou apetecível em si mesmo e,

portanto, é querido ou realizado por si mesmo. Uma vez obtido o fim que deu

origem a um ato da vontade, esse ato termina. O fim pode ser objeto da

atividade puramente espiritual da vontade, ou seja, pode ser um fim amado,

cuja realização pode não depender de minha vontade; então, o fim não

significa nada mais que o querido em si mesmo. Porém, o fim pode ser também

algo cuja existência, realização ou consecução dependa de mim, e então é

projetado e querido mediante a minha ação. Neste último caso o fim é um

objeto prático porque ele se realiza por meio da minha ação. A razão geral do

fim (o bem em si mesmo) tem por sua vez duas modalidades fundamentais: o

honesto e o deleitável.

Ø O bem honesto tem um caráter objetivo: a pessoa humana se reconhece

nele e o aprova.

Ø O bem deleitável é querido porque causa em mim uma ressonância

afetiva positiva: prazer, satisfação, alegria etc.

Page 23: Introdução à Ética Filosófica

22    

Devemos considerar também o objeto indireto da vontade, ou seja, não

querido, mas previsto. Acabamos de dizer que o fim e o bem finalizados são

queridos diretamente pela pessoa. Cabe dizer ainda que a vontade pode ter

também um objeto indireto ou mais propriamente um efeito que, na medida em

que foi previsto, entra indiretamente dentro de seu campo intencional. Efeito

indireto é uma consequência da ação que não interessa e nem é querida de

nenhum modo, nem como fim, nem como meio; porém que é prevista e

permitida enquanto está inevitavelmente ligada ao que se quer. Por exemplo:

uma mulher que retira o útero devido um tumor maligno e, como consequência,

fica estéril. A esterilidade é o objeto indireto da vontade, isto é, não querido,

mas é um efeito que a necessidade obriga a tolerar. Para que o efeito previsto

de uma ação possa ser considerado objeto indireto da vontade, tal efeito não

pode ser a causa (no plano intencional) da consecução ou realização do que

realmente interessa. Cabe ao mesmo dizer que o efeito indireto não é querido,

mas permitido, tolerado ou sofrido. Por exemplo: a esterilidade não é a causa

da eliminação do câncer do útero daquela mulher. Nunca é lícito querer

diretamente como fim ou como meio algo que contradiz a ordem moral.

Contudo, em certas situações o mal pode ser tolerado ou sofrido, ou seja, pode

ser efeito indireto da vontade, sem que por isso o sujeito cometa uma culpa

moral.

Em suma, podemos descrever a ação voluntária. O problema se reduz

em última análise em não deixar de fora da descrição nada do que é próprio da

ação humana enquanto tal. Ele exige que se considere a ordem da intenção e

da execução unitariamente, como “alma” e “corpo” da ação humana. O primeiro

se estrutura como um projeto composto de atos finalizados e dos atos eletivos

das ações finalizadas, inspirado todo ele por um amor a um fim. O segundo é a

execução do projetado e se estrutura segundo uma série de nexos causais. O

homem projeta e organiza mentalmente o que vai fazer e este projeto

compreende tanto a proposição da meta que se quer alcançar ou do ideal que

se quer fazer triunfar no mundo através da obra, como a eleição dos meios e

do modo de executá-los. Este projeto mental e volitivo é como a “alma” da

ação, sua interioridade viva sem a qual a ação humana deixa de ser tal para

converter-se em puro movimento físico.

Page 24: Introdução à Ética Filosófica

23    

A descrição da ação humana para ser adequada, deve compreender a

unidade que existe entre a conduta externa e o projeto interior que aquela

realiza. Se atendesse somente à execução, o ato humano seria visto como um

puro evento físico. O projeto é a “alma” que faz do movimento corporal uma

ação humana. O projeto interior compreende tanto o que vou fazer como o

porquê de fazê-lo. O porquê é a razão da obra ou do agir, daquilo em vista do

qual se age. Por isso, o estudo da decisão interior ou eleição e o da intenção é

muito importante já para Aristóteles, que afirma que a decisão ou eleição é o

princípio da prática3, o que significa que o movimento das potências do homem

só merece o nome de ato humano se tiver origem no querer deliberado. Além

disso, Aristóteles sublinha que o princípio da prática é o conhecimento e o

desejo do fim4; isto significa que o agir racionalmente organizado e livremente

decidido responde a um projeto teleológico em que se enquadra a decisão

atual.

                                                                                                                         3 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. VI, 2, 1139a 30-31. 4 Ibidem, VI, 2, 1139a 31-32.

Page 25: Introdução à Ética Filosófica

24    

Capítulo 4: A estética da vida moral

A felicidade sempre foi a meta do homem. Pode-se dizer que os gregos

consideravam que, para ser feliz, exigia-se do homem certo equilíbrio no que

diz respeito às suas excelências técnica e ética. O perfeito equilíbrio entre as

duas excelências coincide com a perfeição do homem. A felicidade é uma

consequência dessa perfeição, ou seja, o equilíbrio entre ambas excelências

conduz o homem à vida feliz. Os gregos tinham claro a ideia de que para ser

feliz era necessário escolher o bem e tomar as decisões certas nos diversos

momentos da vida. Platão, Aristóteles e os estóicos falam frequentemente

daquilo que convém ou não convém ao homem, não do que é possível ou não,

mas do que convém ou não convém quando se tem em vista um determinado

fim; eles falavam também das condutas contrárias à razão, daquilo que era

preciso fazer ou evitar para que o homem encontre a felicidade. Eles

reconheciam a necessidade objetiva do bem e o dever de realiza-lo. Essa

mentalidade grega parecia se tornar uma estética da vida moral, pois, segundo

ela, há uma estreita afinidade entre as noções de bem e belo, de tal modo que

o homem honesto e plenamente humano é bom e belo. As exigências da vida

moral não eram um peso, mas uma livre escolha em vista da felicidade, por

isso favoreciam não só ao crescimento da bondade no homem, mas também

ao crescimento e desenvolvimento de uma beleza interior que não se desfazia

ou se corrompia como a beleza física.

Deste modo, é preciso reconhecer a necessidade de serem

estabelecidas prioridades na vida do homem, a fim de que ele trilhe por um

caminho capaz de lhe favorecer o desfrute da felicidade. Considerando que o

homem não vive sem tomar decisões, deve-se cuidar que essas decisões

sejam cada vez mais estratégicas, isto é, prioridades devem ser estabelecidas,

pois a vida se torna problemática quando coloco o que é secundário como

primordial. Neste sentido é extremamente importante que o homem mantenha

a lucidez na vida, ou seja, que ele tenha clareza das prioridades pelas quais se

empenhará em vivê-las livremente. Para bom êxito nesse propósito é

necessária uma decisão ética que contribui para um comportamento ético, isto

é, deve haver ordem no comportamento humano: o homem deve viver de

Page 26: Introdução à Ética Filosófica

25    

acordo com o que é essencial. Além da ordem deve haver também a harmonia

entre inteligência, vontade e paixões. É necessário haver uma harmonia, um

equilíbrio interior: antes de querer é preciso conhecer, pois o ato cognitivo

precede o ato volitivo e a inteligência influencia a vontade a conhecer o bem

real, integral, devido diante de outros “bens”, isto é, ajuda no estabelecimento

das prioridades. Ao mesmo tempo, essa harmonia faz com que a vontade

influencie a inteligência, isto é, é preciso querer que a inteligência conheça o

bem mais apetecível, o bem moral, aquele bem que realmente me faz bem, e a

vontade deve despertar a inteligência neste sentido. Se não há essa harmonia

passamos a idealizar o bem, em outras palavras, passamos a idealizar a

realidade e nos deparamos com a esquizofrenia da modernidade: não viver

segundo os ditames da razão, da vontade livre. Diante desta problemática é

preciso buscar sinceramente a verdade.

Diante disso, na busca pela felicidade é preciso haver ordem e harmonia

internas. De que modo podemos estabelecer isso? Devemos considerar que as

nossas decisões não são fruto de um mero “situacionismo ético”, isto é, o saber

não se dá exclusivamente da ação, não nasce da ação pura e simplesmente;

elas também não são fruto de um mero “intuicionismo do dever”, isto é, nem

sempre intuímos o que devemos fazer em cada situação particularmente,

embora seja verdadeira a afirmação segundo a qual a experiência nos ensina

que muitas vezes a valorização ética do problema com que nos deparamos

surge espontânea e instantaneamente, isto não significa que a verdade ética

seja intuitiva. Os juízos morais são juízos de conclusão, isto é, juízos que

possuem um fundamento racional, ainda que o sujeito possa não ser

totalmente consciente dele. Esse fundamento é constituído por princípios ou

conhecimentos universais, cuja formulação científica corresponde à ética. A

devida correspondência das ações com esse fundamento depende de

disposições e hábitos que chamamos virtudes.

4.1 Virtudes

A consecução do fim último do homem requer disposições e hábitos que

chamamos virtudes, às quais se opõem os vícios. O homem encontra forças

Page 27: Introdução à Ética Filosófica

26    

para perseverar no bom propósito de encontrar a felicidade na vivência das

virtudes. Em latim, a palavra força pode ser dita virtus, daí a força do homem

ser entendida como a virtude. Esta palavra também é interpretada como aquilo

que é próprio do vir, viris que em latim significa homem. Isto quer dizer que as

virtudes podem ser interpretadas como aquelas forças próprias do homem. A

virtude é o hábito do bem, ou seja, uma disposição estável para praticar o bem.

Ela, vista do ponto de vista humano, disciplina o homem e o aperfeiçoa em

todas as suas capacidades. Oposto à virtude nós temos o vício, que é o hábito

operativo do mal ou a disposição estável para cometer o mal. Assim, viver bem,

do ponto de vista moral, é viver virtuosamente.

É possível distinguirmos duas grandes categorias de virtudes: as

intelectuais e as morais ou cardeais, sendo que as virtudes intelectuais não

estão fora da ordem moral, mas, ao contrário, têm incidência notável sobre o

comportamento ético da pessoa.

A. Virtudes Intelectuais

Conhecemos cinco virtudes intelectuais: três no plano especulativo e

duas no plano prático.

Ø No plano especulativo: o bom senso → no sentido especulativo é a

disposição habitual mediante a qual a inteligência aprende intuitivamente as

verdades evidentes por si mesmas (“o todo é maior do que suas partes”), no

sentido prático é o que nos permite perceber os princípios fundamentais do

comportamento humano (“é preciso praticar o bem e evitar o mal”); a sabedoria

→ é o que nos permite julgar todas as coisas a partir das suas causas mais

profundas e universais; a ciência → procura conhecer a partir das causas

próximas. Tanto a sabedoria quanto a ciência são hábitos intelectuais mais

técnicos. Procuram conhecer mediante as causas e recorrem à demonstração.

Ø No plano prático: a arte → é a disposição permanente que orienta a

atividade de fazer algo, essa orientação se dá quando lidamos com objetos

diferentes de nós mesmos, encaminhando-os para sua finalidade, isto é,

fazemos algo; a prudência → é uma virtude intelectual e, ao mesmo tempo,

moral, porque é ela que julga com retidão quais os meios oportunos para

atingirmos nossa meta suprema, ela orienta nosso próprio comportamento para

que nos leve ao fim supremo, isto é, estamos agindo.

Page 28: Introdução à Ética Filosófica

27    

B. Virtudes Morais ou Cardeais

As virtudes morais têm uma finalidade estritamente prática, pois regem o

comportamento do homem para que, cumprindo seus deveres de estado,

cheguem ao seu fim supremo. Desde Platão distinguem-se quatro virtudes

morais ou cardeais: prudência, justiça, temperança e fortaleza.

Ø Prudência → é a virtude que faz com que nossa inteligência seja

iluminada para escolher os meios adequados que levam à meta proposta. Ela

inclina a nossa inteligência, a escolher em qualquer circunstância os melhores

meios para atingir os nossos fins, subordinando-os ao nosso fim último.

Contrário a esta virtude temos o vício da malícia ou esperteza. Considerando

que a prudência humana é aquela em que se procura coisas boas por meios

lícitos e sem o interesse de enganar. A esperteza é uma forma egoísta de

querer se dar bem em tudo para o seu próprio prazer. Este vício pode chegar

até ao terrível nível da malícia manifesta que faz com que o homem procure a

qualquer custo legitimar seus erros.

Ø Temperança → é a virtude que neutraliza os atrativos desregrados que,

sob a influência do prazer, fascinam o apetite concupiscente (os nossos

desejos espontâneos). Ela modera a atração para o prazer sensível, em

especial, os do gosto e os do tato. Quando praticamos esta virtude nos

habituamos a mortificar aquelas coisas boas e justas para que a razão impere

sobre a nossa paixão. Da temperança derivam a castidade, a sobriedade, a

modéstia, a humildade e a mansidão.

Ø Fortaleza → é a virtude que permite a superação da tentativa de fuga do

difícil e árduo. Ela robustece a alma na conquista do bem árduo. Os principais

atos que encerram esta virtude são empreender e tolerar. O empreendimento

diz respeito à capacidade de começar um trabalho complicado, por exemplo,

livrar-se de um vício. A tolerância diz respeito à capacidade de passar pelas

provações. A virtude da fortaleza possui virtudes anexas a ela que são: a

magnanimidade, a magnificência, a paciência, a constância, a perseverança e

a coragem.

Ø Justiça → é a virtude que dá a cada um o que lhe é devido. Esta virtude

nos direciona ao bem social e ao bem próprio; ela nos direciona ao bem social

à medida que, por meio dela, não causaremos prejuízos a ninguém,

Page 29: Introdução à Ética Filosófica

28    

cumpriremos todas as leis justas e nos preocuparemos com o bem social; De

outro modo, a justiça também serve ao nosso bem próprio, enquanto dá a cada

uma das nossas faculdades aquilo que lhes é devido, ou seja, à razão o direito

de comandar e às paixões o dever de obedecer. A virtude da justiça possui

duas virtudes anexas: a religião e obediência. A primeira se refere à justiça

para com Deus e a segunda da justiça para com os superiores.

Todas as virtudes que acabamos de enunciar com suas subpartes

constituem um todo orgânico no qual há mútua interdependência, isto é, o

progresso em uma virtude facilita o progresso em outras. O mesmo não se dá

com os vícios. Em cada um de nós existem germens de várias virtudes e

vícios, eles se desenvolvem na proporção do cultivo que deles fazemos, pois

as virtudes e os vícios se tornam adquiridos pela repetição dos mesmos atos.

Segundo Aristóteles, as virtudes estão no meio, ou seja, no equilíbrio.

Isto quer dizer que elas se situam entre um excesso ou exagero, de um lado, e

a insuficiência, de outro; esse excesso ou exagero e essa insuficiência

conduzem ao vício. Assim, por exemplo, temos a virtude da fortaleza entre a

temeridade ou afoitice (exagero) e a covardia (insuficiência); a virtude da

temperança entre a gula (excesso) e o descaso da saúde (insuficiência). Isto

não significa que as virtudes morais impliquem mediocridade; estão no meio,

da parte do objeto; mas, da parte do sujeito, estão intensamente arraigadas; o

homem reto deve procurar cultivar cada vez mais (com perfeição crescente) as

virtudes.

Para melhor compreensão da estética da vida moral, devemos abordar

ainda dois aspectos do comportamento virtuoso ou vicioso do ser humano: a

responsabilidade e o mérito.

4.2 A responsabilidade e o mérito

A responsabilidade é a obrigação que incumbe ao ser humano de

“responder” por seus atos ou de sofrer-lhes as consequências. Em linguagem

mais precisa, a responsabilidade é a disposição pela qual um agente livre se vê

obrigado a aceitar as consequências morais de seus atos. Devemos considerar

que o ser humano não vive sem tomar decisões das quais necessariamente

Page 30: Introdução à Ética Filosófica

29    

decorrem consequências que nem sempre são queridas ou esperadas pelo

sujeito que livremente decide. Contudo, é inegável a realidade de que para

cada escolha há necessariamente consequências e elas, de um modo ou de

outro, têm por causa o sujeito que livremente fez determinada escolha, ainda

que não tendo-as em vista. Deste modo nos deparamos com a imputabilidade

moral, isto é, com a propriedade em virtude da qual um ato pode, em plena

justiça, ser atribuído a uma pessoa como sua autora. A responsabilidade supõe

a imputabilidade. Entretanto, alguns fatores podem diminuir a imputabilidade e

a responsabilidade de um ato:

Ø A Paixão ou a atração violenta para um bem sensível → se ela antecede

o ato voluntário, diminui ou suprime o uso da razão, porque obceca; neste

caso, diminui ou suprime a responsabilidade. Porém, a paixão que se segue ao

ato voluntário, estando alimentada por um propósito deliberado, aumenta a

responsabilidade. É importante notarmos, contudo, que os movimentos da

paixão ou cobiça desregrada que antecedem o consentimento do respectivo

sujeito, estão isentos de culpa moral. Pode ocorrer, porém, que a força da

paixão seja a consequência de faltas anteriores; neste caso é culpada na

medida em que resulta de negligência anterior. À paixão se acrescentam as

tendências naturais do temperamento de cada indivíduo: não suprimem o livre

arbítrio, mas podem diminui-lo em grau maior ou menor, pois o podem obcecar

de algum modo.

Ø O medo ou a perturbação mental suscitada por um perigo iminente →

Pode ser superficial ou grave. Sendo superficial, não suprime, mas diminui o

livre arbítrio; sendo grave, pode chegar a suprimir a liberdade e a

imputabilidade, desde que paralise a razão e gere o pânico.

Ø A violência física proveniente de uma causa exterior → ela pode tirar não

somente a liberdade de comportamento, mas também a liberdade de escolha

ou decisão íntima; a pessoa então é subjugada inteiramente.

Ø A ignorância → Quando alguém não conhece determinado valor moral,

não tem culpa se o viola. Muitas vezes, porém, a ignorância da matéria se deve

à negligência da pessoa; esta teria a obrigação de ser mais atenta a seus

deveres.

Além disso, podemos distinguir duas modalidades de responsabilidade:

Page 31: Introdução à Ética Filosófica

30    

a) Reponsabilidade moral: é a disposição que nos incumbe de responder à

nossa consciência por nossos atos livres, interiores e exteriores, até mesmo

por nossas intenções;

b) Responsabilidade social: é a disposição que nos incumbe perante as

autoridades civis em consequência do nosso comportamento frente às leis

civis. Ela só se aplica aos atos exteriores, pois a sociedade não pode

prescrever atos interiores, ela não pode penetrar o foro interno ou o da

consciência (esta é aberta somente a Deus).

Podemos dizer, portanto, que a responsabilidade e a imputabilidade

moral conferidas a cada sujeito que, no decorrer de sua ação, livremente

delibera, decide e se empenha no que for preciso para agir, podem possibilitar

ao homem o desfrute de um mérito ou um demérito, ou melhor, de cada ação

livremente realizada pelo homem pode decorrer um mérito ou um demérito. O

mérito é o direito à sanção, recompensa ou punição, decorrente de ser bom ou

mau o ato moral. A sanção punitiva está ligada ao mérito negativo ou demérito.

O valor meritório de um ato moral depende de três fatores principais:

1) Gravidade dos deveres. Quanto mais importante é o dever a cumprir,

tanto mais meritório é o ato correspondente a esse dever.

2) Dificuldades a vencer. O dever que impõe pesados sacrifícios é fonte de

maior mérito do que o dever executado sem dificuldades. Contudo, não se

deve chegar, com Kant, ao extremo de julgar que o esforço é essencial ao

mérito e que a satisfação no cumprimento do dever extingue o mérito. Na

verdade, a satisfação na execução do dever e no sacrifício pode ser sinal de

intenso domínio das paixões e de autêntico hábito do bem – valores que não

são obtidos senão mediante luta obstinada.

3) Pureza de intenção. Quanto mais pura a intenção do agente, tanto maior

é o seu mérito.

Como atos especialmente meritórios, sejam mencionados aqueles que a

pessoa cumpre além do que lhe é obrigatório, tendo em vista assim atingir mais

plenamente a finalidade que a lei lhe propõe. São esses atos heroicos

decorrentes de quem sabe viver bem que expressam para nós a estética da

vida moral daqueles que se sacrificam para alcançar o desfrute da felicidade.

Page 32: Introdução à Ética Filosófica

31    

Capítulo 5: A moral cristã fundamental

Podemos considerar que entre ética filosófica e moral há uma clara

distinção, embora outras distinções possam ser feitas: a ética não tem

pressupostos, a não ser o que a razão pode descobrir, ou seja, ela é estrita e

exclusivamente racional; a moral, em contrapartida, deve ser entendida como

ciência teológica do agir humano, isto é, além da razão, pressupõe princípios

que não derivam da própria razão, mas sim da fé, por revelação, nos casos das

religiões reveladas. Neste sentido, encontramos a moral cristã fundamental,

que pressupõe a ética filosófica, porém, além dela, pressupõe os princípios que

tem por fundamento a fé cristã, isto é, considera que o comportamento de

Jesus e a sua palavra, as suas ações e os seus preceitos constituem a regra

moral da vida cristã. A vivência moral, também na moral cristã, não é uma

imposição, mas uma necessidade para aquele que aspira alcançar o Bem

Absoluto. A ética da Igreja é positiva, da excelência e não puramente legalista.

Considera-se com mais apreço a afirmação “faça aquilo que é melhor!” ao

invés de “não faça isto!”. Ela deve ser compreendida sempre como um convite

àquele que tem por profunda inquietação o desejo de alcançar o Bem Absoluto.

São João Paulo II, ao comentar um trecho do Evangelho segundo o qual

um jovem rico se aproxima de Jesus e lhe pergunta sobre o que era preciso

fazer para alcançar a vida eterna (cf. Mt 19, 16-21), nos diz o seguinte:

Mais que uma pergunta sobre as normas morais a observar, trata-se de uma questão de plenitude de significado para a vida. Este é efetivamente a aspiração que está no âmago de cada decisão e de cada ação humana, a inquietude secreta e o impulso íntimo que move a liberdade. Esta pergunta é, em última análise, um apelo ao Bem Absoluto que nos atrai e chama para si, é o eco de uma vocação de Deus, origem e fim da vida do homem5.

Esta é a realidade humana, existe uma profunda inquietação no homem:

“que é preciso fazer para encontrar a plenitude da felicidade?”. Podemos dizer

que a ética filosófica, em si, já é uma tentativa de ajudar o homem a alcançar o

desfrute da felicidade. Entretanto, a visão da moral cristã é mais transcendente

                                                                                                                         5 São João Paulo II. Veritatis Splendor. São Paulo: Paulinas, 2014. p. 16.

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32    

e, com base na ética filosófica, ela procura dar uma resposta a essa aspiração

que tem em vista a eternidade.

A moral cristã fundamental pode ser entendida como a teologia moral

que procura mostrar ao homem como se deve viver para que ele alcance a

máxima perfeição da vida humana, isto é, vivendo como o Verbo Encarnado

nos veio ensinar. Em outras palavras, se a ética filosófica procura mostrar o

que é o homem e como o homem deve viver para que sua vida seja expressão

do que é ser homem, a teologia moral procura mostrar o que é o santo e como

o homem deve viver para que sua vida seja expressão da vida divina na qual

Cristo, o Verbo Encarnado, nos insere pelo Batismo. Ele, assumindo a

condição humana, veio ensinar o homem a ser verdadeiramente homem em

um sentido ainda mais profundo.

O homem sempre procurou uma sensação de plenitude capaz de

favorecer a sua pessoa uma satisfação integral do ser homem. Aristóteles

entende que esse desejo de plenitude é o que chamamos de felicidade

(Eudaimonia). Como dissemos, para os gregos e para muitos filósofos ao longo

da história da filosofia, buscar a felicidade é esforçar-se por escolher o bem e

tomar as decisões certas nos diversos momentos da vida. Em outras palavras,

para ser feliz é preciso saber viver, é preciso saber fazer escolhas, pois, por

mais que o homem deseje a sensação de plenitude, ele pode fazer escolhas

errôneas por ver algo mal como bom. Portanto, a felicidade exige um labor do

homem, um exercício contínuo que lhe favoreça viver o que a sua natureza lhe

prescreve ou dita, a fim de que haja uma fidelidade à identidade natural do

homem. Somente sendo fiel à sua natureza, o homem poderá ter a sensação

de plenitude.

Neste sentido, a moral cristã fundamental também exige certa sabedoria

de vida, ou seja, o cristão deve saber viver, deve saber escolher, não só entre

o bem e o mal, mas também entre determinados bens aquele que seria o mais

devido em determinado momento. O homem não vive sem tomar decisões e

isto não é diferente para aquele que em Cristo se tornou uma nova criatura. Se

para ser feliz o homem precisa ser fiel à sua natureza humana, o cristão ou o

santo precisa ser fiel à sua natureza humana e também à sua nova condição: a

de filho de Deus. Para que isto se concretize com sucesso, é preciso haver

decisões estratégicas, é preciso haver uma hierarquia de valores, uma

Page 34: Introdução à Ética Filosófica

33    

hierarquia de prioridades. Um comportamento favorável à sensação de

plenitude não dispensa a vida de acordo com aquilo que é essencial, ou seja, é

preciso haver ordem. Uma pessoa será feliz quando ela escolher bem suas

prioridades.

Deste modo, segundo a moral cristã, devemos considerar a seguinte

ordem de prioridades: a Causa Transcendente, o Criador → devemos ter em

mente que somos criaturas, frutos do imenso amor do Criador e, neste sentido,

devemos ter uma profunda piedade em nosso relacionamento com Ele; Amar

→ devemos amar sobretudo a Deus, mas também ao próximo e, neste

aspecto, devemos destacar o amor em nosso relacionamento familiar: o amor

por nossa família deve ter grande destaque em nossas prioridades, pois

nossos familiares são o primeiro retrato do amor de Deus por nós, eles nos

amam por quem somos; os deveres de cada instante (sejam eles pessoais,

sociais, profissionais, eclesiais ou de qualquer outra instância) → devemos ter

em mente que estes são meios para alcançar o bem; o lazer → o descanso, ele

nos favorece a saúde, a cultura e o equilíbrio.

Reconhecer a limitação pessoal é sinal de excelência ética. Podemos

perceber claramente que hoje é comum dar mais valor àquilo que é material

que àquilo que é essencial. Aquele que almeja ser feliz, aquele que almeja ser

santo, deve questionar-se constantemente: “o que me domina é a inteligência,

a vontade, o corpo ou as paixões?” Não é vergonha para o homem reconhecer

suas limitações (reconhecer que é dominado pelas paixões, por exemplo), mas

é sinal de excelência. O que não pode acontecer é aquele que quer ser feliz

perceber a “esquizofrenia da modernidade” tão atrelada à sua pessoa e não

procurar um modo de se defender desse mal que constantemente tem deixado

o homem dividido dentro de si. É preciso um grande equilíbrio interior: antes de

querer, é preciso conhecer-se a si mesmo e conhecer o objeto a ser querido.

Se não houver uma harmonia interna, correremos o risco de idealizar a

realidade. Para ser feliz, como vimos, é preciso buscar a verdade sinceramente

e isto exige de nós humildade para reconhecer o que em nós precisa ser

mudado se quisermos alcançar a sensação de plenitude; por isso a moral cristã

considera com grande atenção o primeiro anúncio de Jesus Cristo: “Convertei-

vos! Fazei penitência, pois o Reino dos Céus está próximo!”

Page 35: Introdução à Ética Filosófica

34    

Destarte, a moral cristã fundamental tem por objetivo mostrar ao homem

o que é o santo e como o homem pode alcançar a santidade, a sensação de

plenitude, sendo filho no Filho que assumiu a condição humana para nos elevar

a condição de filhos de Deus e nos ensinar a viver no Caminho, na Verdade e

na Vida, sendo homens como Ele é Homem. O homem tem a possibilidade de

escolher o caminho a ser trilhado para alcançar a sensação de plenitude, a

moral cristã fundamental se esforçará para lhe mostrar o caminho que a Igreja,

com base na Divina Revelação, na Tradição e no Magistério, apresenta para

aquele que quer assumir a sua condição de filho de Deus imerso em uma vida

nova pelo Batismo. Deste modo, a moral cristã fundamental vai além da ética

filosófica, ela é mais elevada e profunda.

5.1 Princípio fundamental da moral cristã

O princípio fundamental da moral cristã é a fé, isto é, pode-se dizer que

ela é uma continuação da ética filosófica, mas só a entenderemos de fato se a

olharmos à luz da fé cristã. Portanto, seria incorreto dizer que a moral cristã é

irracional, pois ela considera a ética filosófica, por conseguinte, ela considera a

luz natural da razão. Pode-se dizer que ela é a moral do filho de Deus, isto é,

abraça todas as exigências do ser homem, porém, é algo mais, é uma

elevação de conduta, pois, pelo batismo, recebemos uma vida nova que eleva

a nossa pessoa. O dom da filiação divina, que nos é conferido pelo Sacramento

do Batismo, nos concede uma dignidade superior e a fé nos ajuda a perceber

que devemos viver como homens filhos de Deus, pois passamos a ter uma

nova natureza: devemos viver como homem (criado, redimido e elevado pela

graça batismal) filho de Deus em Cristo por obra do Espírito Santo. Segundo a

moral cristã, para viver em Cristo devemos considerar cinco momentos

simultâneos:

1) Eleição divina → O Pai nos escolheu em Cristo mediante a Graça do

Espírito Santo que nos regenerou pelo Batismo. Jesus é a personificação da

Vontade do Pai, deste modo, inseridos na Vida Nova de Cristo pelo Batismo

somos chamados a ter um comportamento semelhante ao do Filho. Aquele que

entende o que significa o Batismo deve esforçar-se para destruir o pecado que

há em si, isto é, é preciso esforçar-se para deixar a vida velha a fim de assumir

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35    

a nova condição existencial e verdadeiramente viver a Vida Nova de Cristo.

Essa tentativa de aniquilar o pecado que há em si pode ser traduzida em uma

vida ascética.

2) O dom divino → Fomos escolhidos para receber o dom mais precioso da

Vida Nova em Cristo: o dom da liberdade. Para isto nos resgatou Cristo, para a

liberdade dos filhos de Deus. A morte para o pecado concede ao homem a

possibilidade de viver essa liberdade dos filhos de Deus. A vida cristã não

consiste em fazer aquilo que é indicado, mas em querer fazer a Vontade de

Deus. Deve-se considerar que a moral cristã é Trinititária, é Cristocêntrica e

tem a Eucaristia por centro; é uma ética do amor, da caridade, que nos leva

mais além do que é possível, neste sentido é a ética da “loucura”, do

“escândalo”. A vida nova em Cristo não é uma vida de preceitos, mas uma vida

sacramental que é livremente assumida.

3) Testemunho Evangélico → Não se compreende a vida cristã sem a

dimensão missionária, não só por meio de palavras, mas, sobretudo, por meio

do testemunho de vida. A grande novidade que recebemos com os

Sacramentos da Iniciação Cristã é Jesus Cristo, que devemos deixar

transparecer em nossa vivência diária. A vida moral é uma vida de anúncio:

pensando e conhecendo a Verdade, o homem permite-se viver a Vida Nova e

passa a trilhar um novo Caminho.

4) Transformação interior → Viver a moral cristã é viver em contínuo

processo de transformação interior. O anúncio do Reino de Deus é convite à

conversão e essa transformação não é para “ser bom”, mas para dar glória a

Deus, isto é, não devemos nos colocar em evidência, mas devemos evidenciar

quem é Deus, glorificar a Deus. Por ser uma ética que move o interior, pode-se

dizer que é também a ética do segredo (“entra no teu quarto e reza em

segredo”).

5) Impulso do Espírito Santo → Se o Espírito Santo é o Dom de Deus, Ele

é a Força que nos impulsiona: pelos sete dons colhemos os sete frutos. A vida

moral é uma consequência da vida espiritual. O Espírito Santo é Aquele que

nos santifica: Ele nos dá o discernimento intelectual para distinguir não só o

bem do mal, mas o bem do “bem da hora”, de modo que vamos aprendemos a

discernir sobre o que é mais grato à Deus, aquilo que mais glorifica Deus, por

exemplo: há momentos em que precisamos fazer render o talento que

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36    

recebemos, mas também há momentos em que precisamos renunciar o talento

que recebemos, de modo que glorifiquemos a Deus com nossas atitudes à luz

do Espírito Santo. Esse discernimento não vem simplesmente pelo

conhecimento, mas pela íntima vida de oração, daí se conclui que a vida moral

cristã reflete minha relação com Deus. O Espírito Santo não age somente em

ocasiões especiais, mas diariamente nos convida a uma interiorização e

discernimento sobre nossas escolhas.

Podemos considerar três atos de Deus: criar, redimir e santificar. Essa

realidade expressa a grandiosidade do amor de Deus e exige do batizado uma

resposta de amor e de fé: a obediência. Assim, o princípio fundamental da

moral cristã é a fé, isto é, entrar na lógica de Deus e em uma profunda relação

de amor com Ele.

5.2 Ética da fé como verdade plena da ética da razão

A fé cristã parte sempre da Revelação Bíblica que nos ensina o primado

de Cristo na criação. A decisão de criar evidencia o querer de Deus ao fazer ou

elevar o homem à condição da natureza da filiação divina tendo em vista a

participação da Vida de Cristo. O centro de todo o projeto da criação de Deus

está no Filho Eterno e, neste sentido, cada ser humano é chamado a ser filho

no Filho Eterno do Pai. Deste modo, cada ser humano é dom em duplo sentido:

a) A criação não foi necessária, pois Deus é Deus sem o mundo, sem a

humanidade. Cada homem, portanto, é fruto do ato livre de amor de

Deus. Cada um de nós é amado em si mesmo.

b) Cada ser humano, uma vez criado, é chamado, convocado, vocacionado

pelo Batismo à uma existência temporal filial, isto é, viver toda a vida

como filho no Filho de Deus. Cada ser humano é chamado à santidade,

tendo como padrão de vida a Vida de Cristo Jesus, o Filho que por nós

se encarnou, se entregou à morte e, ressurgindo, renovou a vida.

Deste modo, a fé nos oferece uma verdade total e integral sobre a

pessoa humana e a ética filosófica está intrinsecamente ligada a moral cristã.

Segundo a moral cristã, o homem tanto mais crescerá em humanidade se

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37    

crescer na participação da Vida de Cristo, que ensina o homem a ser homem

verdadeiramente. A ordenação da estrutura humana que devemos viver não

está no externo de nosso ser expresso em leis, mas nosso interior, pois faz

parte de nossa humanidade. Não viver essa ordenação equivale a viver contra

a natureza humana. A ordenação da vida de uma pessoa não vem de forma

extrínseca, mas intrínseca. Neste sentido, a ética filosófica está ordenada à

moral cristã e encontra nesta a sua verdade última. A experiência da vida

moral, portanto, apresenta-nos a experiência do ser pessoa enquanto pessoa.

Entendemos melhor essa afirmação se considerarmos que o bem moral possui

propriedades específicas que o diferencia de todos os demais bens, ele é uma

necessidade integral e os seus desdobramentos estão ligados, unidos,

harmonizados entre si: não se pode viver o amor sem a sobriedade, sem a

temperança, por exemplo. O bem moral se integra a todos os bens, a todos os

valores que Cristo falou, ou melhor, viveu. Cada um dos bens morais ou

mandamentos estão interligados e esse conjunto me concede uma

humanidade verdadeira, uma identificação com Cristo verdadeira. O bem moral

é o maior de todos os bens humanos, por isso é possível sacrificar os demais

bens em favor dele.

Cada desdobramento do bem moral (identificação com Cristo) tem uma

importância decisiva: quem eu sou, quem eu quero ser e para onde quero ir?

Deus respeita nossa liberdade, mas nossa resposta deve ser incondicional.

Reconheço quem sou e decido livremente se quero ou não seguir por

determinado caminho sem impor condições. Em outras palavras, a pergunta é:

quero ser pessoa ou Pessoa? Fomos criados para em Cristo viver a verdadeira

Vida, participada na Vida dEle. Não há valor mais pessoal que ser humano no

sentido mais integral. Uma pessoa chega a ser Pessoa (cristã) integralmente

na medida em que ela realiza a verdade sobre si mesma, isto é, na medida em

que ela vive como foi criada: para ser filha no Filho, para participar na Vida

divina por ação do Espírito Santo. O ser humano possui dignidade, ou seja,

possui uma excelência que lhe confere um valor pelo simples fato de ser ele

uma pessoa. É preciso que o homem tenha consciência dessa dignidade,

desse valor que ele possui, e essa consciência deve se traduzir em seu

comportamento, isto é, ele deve se comportar de maneira condizente com sua

dignidade. A primeira atitude ética do homem consiste em reconhecer a

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38    

dignidade que ele possui e viver de maneira condizente a esta dignidade. Isso

se desdobra quando reconheço a dignidade do meu próximo e o respeito.

Notemos que não concedemos dignidade a ninguém, apenas a reconhecemos

e respeitamos. Antes de qualquer decisão, deve-se pensar se a dignidade

humana é colocada em risco com nossa possível escolha.

A verdade da pessoa humana já está presente nela desde a criação,

mas ela é chamada, convocada a viver de maneira condizente a esta dignidade

através da vida moral. Deus nos chama à verdade sobre nós mesmos, a

sermos autênticos: pessoa, cristão, pai, amigo, cidadão, padre etc. Esta busca

pela verdade sobre si mesmo revela a busca do bem, que se traduz no amor a

Deus, a si e ao próximo; isto revela a beleza da vida. A experiência ética

fundamentalmente é o amor, não como sentimento, mas como comunhão.

Neste sentido, compreendemos que a nossa vocação original é convite ao

amor. A verdade sobre nós mesmos exige de nós uma vida de comunhão que

se traduz no amor em relação ao Outro e aos outros. O amor é um convite a

comungar da vida do outro, comunhão no sentido de amizade: amar o outro

pelo que ele é e não pelo bem que ele pode ser para mim. Assim, o ato moral

por excelência é o ato de amor e todos os atos livres que fazemos deve ter por

princípio nossa vocação original (chamado ao amor), manifestando-se pelo

amor e em vista do Amor.

Em suma, realizar-se como pessoa é um dom de Deus que assumimos

como dever. Assim, a moral cristã não fica recolhendo preceitos, mas é vivida a

partir da comunhão de pessoas, isto é, acontece uma articulação de vontades:

Espírito Santo (por meio de moções) e eu (por meio de consentimento livre).

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39    

Bibliografia ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1998. BITTENCOURT, Estevão. Curso Bíblico Mater Ecclesiae: Curso de Filosofia por correspondência. Rio de Janeiro: Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, [199 - ?]. CRUZ, Pedro Cunha. Apostila de Ética I. Rio de Janeiro: Edição do autor, 2007. HRYNIEWICZ, Severo. Para Filosofar Hoje: Introdução e História da Filosofia. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1999. JOÃO PAULO II. Veritatis Splendor. São Paulo: Paulinas, 2014. JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 2001. SILVEIRA, Carlos Frederico Calvet Gurgel da. Apostila de Ética. Rio de Janeiro: Edição do autor, [200 - ?].